o espelho da página
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O espelho da página
Giovanna Martins
Os fantasmas graciosos na página, com que facilmente rotulamos o mundo, não são o mundo.
Alberto Manguel
I
Não me lembro com muita precisão o que dei primeiro à minha filha
quando era bem pequena: se um caderno para desenhar ou um livro para ver. O
fato é que, já muito cedo, o códex – essa sucessão de folhas dobradas em
cadernos costurados, encerrados numa encadernação – começou a ser
introduzido em seu imaginário.
O livro como mundo nos é apresentado assim, já em nossa infância.
Através de mãos generosas, ele nos é oferecido como infinita possibilidade
combinatória de prazer. Tê-los em nossas mãos é ter a ilusão de possuir um
pedaço da História. Folhear um livro e lê-lo é partilhar um pouco da solidão de
um outro que a ele se adere, reviver a escritura, transformar o passado em
presente, subtrair do tempo sua lógica opressora.
Os livros parecem nascer do frágil espaço do desejo que antecipa -
como toda linguagem - o ato de inscrever o desenho da escrita que, mesmo se
sabendo insuficiente insiste em registrar aquilo que não se deixa apreender; da
busca de dar forma ao pensamento, de capturar o mundo (e essa impossibilidade
é o que leva o artista à — infinitamente — reiniciar, recomeçar, reconstruir).
Ao se incorporar às instâncias solitárias do nosso cotidiano, este
objeto, aparentemente fixo, adquire movimento. Viaja, assim, do dentro ao fora
e, só depois, encontra sua morada provisória na intimidade e no silêncio de
quatro paredes. Sua vida, quase sempre latente, repousará por fim sem ruídos
sobre estantes ou mesas. Estará ali, corpo presente, objeto que contêm em seu
interior o mistério e o fascínio de algo sempre desconhecido, as promessas
eternas da sabedoria.
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II
Tenho por hábito andar quase sempre com um pequeno caderno, que
chamo diário, dentro de minha bolsa. Ele se presta a anotar coisas: fulgores,
rabiscos de projetos, notícias de jornais, imagens recortadas de revistas, textos
e tudo aquilo que, por algum motivo, me captura e estabelece uma conexão com
o exterior. Não sei se um dia todas essas coisas e idéias ali esboçadas irá
desencadear um trabalho elaborado, um objeto a mostrar, uma reflexão mais
completa; se vão pretender tomar outra forma que não esta do fragmento. Este
diário serve para me dar pistas, ele representa uma seqüência dos pontos de
referência que um escritor estabelece e fixa para reconhecer-se.1
Em uma das páginas desse pequeno caderno está uma notícia
recortada de um jornal: em 2003 morria a ovelha Dolly, o primeiro clone de um
mamífero projetado e criado em um centro científico de ponta na Escócia. Os
jornais estampavam seu rosto singelo, seu olhar atento (todos os pecados dos
homens estão guardados nos olhos dos animais). Li artigos e, em seguida, escolhi
e guardei dois deles.
O tempo passou e, cada vez que folheava o pequeno diário, ela estava
lá (Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo). Esperava.
Iniciei O Livro de Dolly (sua concretude) em fevereiro de 2004.
Tomei uma antiga fotografia minha de passaporte para ser ―clonada‖.
As imagens-células, derivadas da matriz original, deveriam ser idênticas. Queria
que aludissem, entre outras coisas, a um desaparecimento. Isso seria percebido
pelo pouco contraste que essas imagens teriam contra o fundo branco das
páginas onde seriam impressas e, também, porque elas se repetiriam,
interminavelmente, em mil imagens idênticas.
Depois, essas páginas ganharam o formato de um livro, encadernadas
em lombada de couro negro. Em sua capa está, novamente, a mesma imagem
que se repete nas sucessivas 500 páginas e sobre a qual foi inscrito o título O
Livro de Dolly e o nome da autora.
1 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. RJ: Rocco, 1987.
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Na contra-capa do livro imprimi fragmentos de dois textos que falam
de Dolly e sua morte: [...] Conheci o mito Dolly numa manhã de março de 1999.
Dei meu rosto ao animal em mim. Eu precisava falar sobre ela, sobre
sua morte, sobre a morte de todos os seres que morrem como passarinhos suas
mortes eternas. Então, transformei as páginas em espelhos. Através delas,
entra-se no reino silencioso das palavras impronunciáveis.
O livro é um jogo cheio de questões dirigidas ao leitor: Quem narra?
Quem está próximo de Dolly? Quem desapareceu? Qual a condição do homem
diante de sua criação? Quais polêmicas podem ser re-abertas a partir daí?
O livro está aí.
Somente perguntas.
Meu eterno respeito.
III
O mundo e o livro reenviam-se eternamente e infinitamente as suas imagens refletidas.
Maurice Blanchot
A partir dos anos 60 as artes visuais lançaram mão, definitivamente,
do objeto livro, de seus códigos e significados. Livros do artista, conhecidos até
então como livros de anotações e projetos, espécie de diário como os de William
Blake (1788-1821) e os cadernos de Leonardo da Vinci (séc.15 e 16), passam a se
diferenciar dos novos livros de artista.
O livro de artista (sem hífens e sem maiúsculas) vem a ser aquele
espaço onde o exercício consiste em trabalhar o livro como idéia e onde o artista
visual brinca surrupiando do livro os sentidos esperados, como um ladrão na
noite.
Explorando seu caráter seqüencial -, no qual uma coisa vem antes ou
depois da outra -, o artista transitará por um universo diverso daquele do quadro
ou do desenho, no qual tudo é visto e oferecido aos olhos de uma só vez (no
livro, as páginas ao serem passadas se ―apagam‖, nem que seja por um só
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momento, e o que contêm só permanece na memória). Outra possibilidade é
ressaltá-lo como corpo, objeto feitiço, convertendo assim o próprio livro - sua
fisicalidade - em imagem, symbolum (aquilo que reúne, aproxima). Ou, ainda,
viajar por sua função documental, utilizar-se de seu caráter distributivo,
repetitivo e acumulativo, dar-lhe voz ou silenciá-lo, partilhar ou interditar sua
intimidade.
Aprendemos a ler - mais as palavras do que as imagens - desde nossa
infância. O livro de artista veio depois, para exercitar em nós seu próprio
conceito, pois ele cria uma rota necessária, um caminho de ida e volta, de
diálogo entre as funções da imagem e do texto. Para que isso aconteça é
necessário certo esforço por parte daquele que o lê, não tentando ver e
entender a obra isolando suas partes, mas sim a percebendo como aquilo que
resulta de/num todo, observando intensamente o que a rodeia, se deixando
perder nos labirintos de seus significados, nos espelhos que elas nos colocam,
deslizando por seus interstícios, suas inúmeras faces, para que depois,
finalmente, aquilo que vem do silêncio possa a ele retornar.
Portanto, ao se fazer um livro de artista é preciso destruir a
linguagem tal como ela é e realizá-la sob uma outra forma, negar os livros
fazendo um livro com o que não são. Uma prática que transita no espaço do
indefinido e do móvel – razão de ser do imaginário -, pois o quê cada livro
persegue é a essência daquilo que todo artista desejaria descobrir, daquilo que
lhe foge eternamente.
E é nessa busca, nesse movimento, nesse fluxo contínuo entre
exterior e interior que toda obra se constrói, num incessante reenvio de imagens
que se refletem. O espelho da página leva o leitor a lugares intangíveis e, depois
dessa viagem, devolve-o a um novo ponto de partida, não mais como aquele que
foi, mas como aquele que dela retorna.
Migrando das artes literárias para as artes visuais, o livro, tomado
como objeto de arte, torna-se, então, jogo, injúria, lança mão de outros
artifícios e se nomeiam:
Livro Para Sempre Fechado
Livro De Cabeceira De Páginas Apagadas
Livro Para Os Que Não Querem Ler
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Livro De Letras Soltas
Livro de Linhas Com Páginas Costuradas
Livro De Imagens Desfocadas
Livro Que Não Se Pode Tocar Ou Ler
Livro De Vidro
Livro Dicionário Esculpido
Livro De Cerâmica
Livro De Páginas De Chumbo
Livro De Tecidos Transparentes
e tantos e tantos outros que fazem do campo finito do livro a ―soma infinita de
seus possíveis‖.2
Inverno de 2004
Giovanna Martins é artista plástica e professora. Formou na Escola Guignard (UEMG) e faz
mestrado em Artes Visuais na EBA (UFMG). Nos últimos anos tem investigado as relações de
afeto no campo das artes visuais, assunto sobre o qual tem realizado diversos livros de artista,
ministrado cursos e publicado artigos.
2 BABO, Maria Augusta. A escrita do livro. Lisboa: Veja, 1993.
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Bibliografia:
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. R.J.: Editora Rocco, 1987.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio D’Agua, 1984.
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. S.P.: Companhia
das Letras, 1999.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. S.P.: Ed.
UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999.
MANGUEL, Alberto. No bosque do espelho. S.P.: Companhia das Letras,
2000.
SILVEIRA, Paulo. A página violada. Da ternura a injúria no livro de artista.
Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.