o escravismo colonial - ens

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Escravismo Colonial - Gorender

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  • ABREVIATURAS........................................................................... 13REFLEXES METODOLGICAS ........................................... 151. Implicaes metodolgicas do enfoque no modo de produo 182. Modo de produo e formao social................................. 223. Modo de produo e h is t ria ............................................... 264. Lgico e histrico..................................................................... 315. Epistemologia das Cincias Sociais...................................... 366. Teoria geral, modelos e tipos ideais..................................... 44

    PRIMEIRA PARTECATEGORIAS FU ND AM ENTAIS................ , . , 0

  • 3. O feudalismo em P o rtuga l............................... 1134. Significao econmico-social da expanso

    ultram arina........................................................... 1185. Primrdios da conexo de Portugal com a es

    cravido m oderna............................................... 124Cap. v Fontes originais da fora de trabalho escravo . . . . 126

    1. Modalidades de contato com os indgenas. . . . 1262. O indgena e a escravido............................... 1293. Os a fricanos........................................................ 1334. Natureza econmica do tr fico ...................... 137

    Cap. vi Aspectos do estabelecimento da plantagem escravista no B ra s il 1421. Voluntariedade e condicionamento objetivo . . 1422. Continuidade, difuso e evoluo.................. 1443. Geografia da plantagem escravista e tipologia

    da co lonizao .................................................... 148

    TERCEIRA PARTE

    LEIS ESPECFICAS DO MODO DE PRODUOESCRAVISTA COLONIAL .........* ...................... 153Cap. vii ^frfroduo r_e \9 .......... 155

    1. SobrCo ritri metodolgico p> V. . qv. . 1552. Sbre a teoria das leis econmica$v. .............. 159

    Cap. v u i^ e i d^enda moijH$)$Ha 0,^9. . O *'........ 1641. Forma predominante do excedente no escravis

    mo colonial ...........................2. O tscravismo p a tr ia rc a l..................................... 166

  • 1Cap. x - Efeitos da lei da inverso inicial de aquisio doescravo ...................................................................... 1921. O preo do escravo.......................................... 1922. A inverso inicial de aquisio do escravo no

    conjunto das inverses do p lan tad o r.............. 1993. Influncia da inverso inicial de aquisio do

    escravo sobre o processo de acumulao no plano microeconmico...................................... 204

    4. Influncia da inverso inicial de aquisio doescravo sobre o processo de acumulao no plano macroeconmico ....................................208

    5. O escravo como fator fundamental e decisivode domnio da produo.................................. 211

    Cap. xi Leis da rigidez da mo-de-obra escrava...............2161. A rigidez diante das variaes estacionais e

    conjunturais........................................................ 2162. Determinao quantitativa do plantei de es

    cravos ........ ..........................................................2173. Efeitos do sistema sobre as condies de tra-

    balh^os escravos............................................2234. Recursos eventuais para enfrentar a rigidez da

    ^\Omo-de-oIgW fecra^'.............. ^ 228^*5. Tr&agJias.eoiSfciais . . . -e,-, - 230

    6. ...............& ........240Cap. xu - Lei da correlao entre a economia mercantil e a

    economia natural na plantagem escravista.......... 2411. Os doi^egmentos da p lantagem .................. 2412. Caractersticas da economia natural na plan-

    itgep^^craysta ' - ...................................... 2423. Correlao dinmica entre os dois segmentos . . 2494; Syipaio .g^clusivo........................................... 2575. A economia do escravo ...................................258

    Cap. xiii - Dinmica econmico-social e historiografia. . . . 2681. Incorporao de reas de economia natural

    predominante ao sistema de plantagem . . . . 2682. Escravismo, economia natural e patriarcalismo 2743. Os enfoques da historiografia.......................... 279

    Cap. xiv Categorias heterogneas ao conceito de escravismocolonial.......................................................................2871. Homens livres assalariados na plantagem . . . . 287

    i

  • 2. Homens livres agregados...................................3. Pequenos cultivadores no-escravistas inde

    pendentes ..............................................................Cap. xv Dualismo, integracionismo e outras interpretaes

    da histria ................................................................1 . 0 mecanicismo dualista....................................2. Teorias do capitalismo incom pleto..................3. Integracionismo e capitalismo p u ro ..............4. Algumas consideraes crticas a respeito do

    dualismo e do integracionismo......................Cap. xvi Lei da populao escrava .......................................

    1. Correlao entre escravos e homens livres2. Movimento tendencial da populao escrava. .3. A lei da populao escrava aps o trmino do

    trfico a fr ica n o ...................................................Cap. xvii Fatores contrrios ao crescimento da populao

    e scrav a .................. .......................... \ P -...............1. Predomnio do sxo masculino na composio

    do plantei^escravista . .^9 - .................................2. Grau de interesse na procriao dos escravos. .3. Efeito das alforrias sobre o quantitativo servil. .4. Tratamento dos escravos e sua avaliao . .. .

    Q W T A PARTEREGIME TERRITORIAL E RENDA DA TERRA . ............Cap. xviii - Regime territorial no Brasil escravista..............

    1. Pluntagem e grande propriedade fundiria2 . Capitania 1fired#&-ias > 7 .................................

    ^ ^ S s r q ^ s _ A O r ...............................................................'c4. Metamorfs^ institucionais...............................

    5. '0 & < ^ S m ^ s ........................................................6 . Significao econmica da propriedade da

    terra ........................................................................Cap. xix Renda escravista industrial e renda escravista

    da t e r r a ......................................................................1. Sobre os lavradores de cana sem engenho

    p r p rio ..................................................................2. Contradies entre senhores de engenho e

    lavradores.............................................................3. Renda escravista industrial...............................

    291

    297

    302303305310

    314318318320

    324

    333

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    359361361364368370379

    386

    391

    391

    394395

  • 4. Situao contratual dos lavradores arrendatrios ................................................................ 397

    5. Renda da terra elementos tericos.............. 4006. Renda escravista da t e r r a ............................... 403

    QUINTA PARTEFORMAS PECULIARES DA ESCRA VID O ..................... 409Cap. xx Escravismo na pecuria ..............................411

    1. O setor pecurio no sistema econmico.......... 4112. Relaes de produo na pecuria .................. 4143. Renda da terra na pecu ria ........................... 422

    Cap. xxi - Escravismo na minerao........................... 4271. Problema de uma economia pecu liar.............. 4272. O homem liv re .................................................. 4303. O escravo ............................................................ 4374. A economia posterior m inerao .................. 447

    Cap. xxii Escravido urbana . .................................... 4511. Artesanato urbano e escravid^...................... 4522. Escravos dos Servios ufbjts ...................... 4553. Os es6)ivos dom sticos....................................461

    Cap. xxiii - Formas da escravido indgena . .. . ^ 4681. A forma completa da escravido indgena e

    suas 5 5 . . . . . . . . .^ 0 ? . .............4682. Formas incompletas de escravido indgena . . 476

    SEXTA PARTEOS PROCESSOS DE CIRCULAO E DE REPRODUO 487 Cap xxiv - Financiamento da produo circulao mer-

    . ^ .o ^ . .................................... 4891. Financiamento originrio do modo de pro

    duo'. ....................................................... 4892. Financiamento e comercializao no processo

    de funcionamento do modo de produo . . . . 4913. Valor e preo de m onoplio .......................... 5014. Monoplio e concorrncia .............................. 5095. Circulao da mercadoria-escravo.................. 517

    Cap. xxv Plantadores e m ercadores.......................................5241. Os plantadores como classe dominante colonial 5252. Os mercadores do escravismo colonial.......... 5323. Concepo terica das categorias de mercado . . 536

  • REFLEXES METODOLGICAS

    A interpretao histrica do Brasil sob o prisma de categorias sociolgicas e no mais como simples evolver cronolgico de acontecimentos polticos deu seus primeiros passos numa fase em que era muito recente a reestruturao da sociedade nacional conseqente Abolio. Do distanciamento entre o passado e o presente nascia a intuio de que o pas tinha histria, isto , de que no seu corpo social haviam ocorrido transformaes. Percebia-se que a extino da escravatura representava um divisor de pocas. Desde o incio, contudo, no se fez do escravo a categoria central explicativa da formao social extinta. O foco do interesse interpretativo se concentrou sucessivamente em outras categorias, que serviram de elemento-chave reconstruo conceituai do passado. O escravo, est claro, sempre figurou no quadro geral, mas explicado por este e no o explicando. Como se devesse ocupar na hierarquia terica o mesmo lugar subordinado que ocupara na hierarquia social objetiva.

    Por motivos ideolgicos, o primeiro tipo de interpretao sociolgica colocou a classe senhorial no centro do quadro e, guiando-se por certos dos seus caracteres exteriores, modelou a histria de uma sociedade patriarcal e aristocrtica. Nisto se identificaram Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, expoentes desse tipo de interpretao. significativo terem ambos chegado ao mesmo resultado apesar da divergncia em matria antropolgica, no to completa, alis, quanto se afigura superfcie. Se Oliveira Vianna legitimou a aristocracia escravista brasileira pela superioridade racial, o anti-racismo de Gilberto Freyre deixa margem explcita a uma legitimao anloga pela presumida superioridade gentica dos stocks, das estirpes ou das etnias.

    Os dois autores mencionados incluram a sociedade patriarcal na tipologia feudal, conquanto o fizessem com impreciso. De ponto de vista ideolgico oposto ao deles, porm com uma viso semelhante do quadro histrico e os mesmos elementos sistemticos, elabo-

  • 1 6 REFLEXES METODOLGICAS

    rou-se uma teoria categrica da sociedade feudal no Brasil. A nfase incidiu no latifndio, entendido como categoria central da qual se segue necessariamente uma forma qualquer de feudalismo. No caso brasileiro, era preciso admitir que o feudalismo se baseou em relaes escravistas fenmeno considerado secundrio diante do pri- vilegiamento terico da grande propriedade territorial ou que o escravismo, entendido com superficial especificidade, teve existncia restrita, logo submergida pela formao feudal, desde as origens coloniais estabelecida na maior parte do territrio. A primeira variante a de Alberto Passos Guimares e a segunda pertence a Nelson Werneck Sodr.

    A linha de interpretao oposta anterior comeou a se formar no terreno da historiografia econmica. Aqui, a categoria central se tornou, desde logo, a do comrcio exterior, identificando-se a histria econmica do Brasil-colnia e do Brasil-imprio com a histria da sua exportao, condensada e periodizada segundo certos produtos dominantes. Cada perodo de dominao de um produto de exportao foi considerado um ciclo e, assim, toda a srie histrica resultou articulada pela teoria dos ciclos. Da a conhecida periodizao pelos ciclos do pau-brasil, acar, ouro, algodo e caf.

    \ v' , f\\ . W- -CNo deixa de ser interessante que a primeira obra talvez a

    empreender uma exposio compreensiva dentro do esprito da teoria dos ciclos tenha sido uma obra de histria econmica de Portugal e no do Brasil. Todas as pocas de Portugal Econmico, de J. Lcio de Azevedo, exceo da primeira - uma espcie de pr-histria , correspondem a ciclos de produtos coloniais. Excludos os da pimenta e dos produtos africanos, em todos os demais se confundem as histrias econmicas de Portugal e do Brasil. Acertadamente, observou Vitorino Magalhes Godinho que, ressalvado o primeiro captulo, pocas de Portugal Econmico quase s uma histria comercial. 1

    Ao historiador portugus seguiu-se J. F. Normano. Deu-nos este, com sua Evoluo Econmica do Brasil, uma exposio mais elaborada da teoria dos ciclos, incluindo a tentativa de explicao do mecanismo que levava sucesso de sistemas econmicos inteiros , originados na dominncia de certos produtos de exportao.

    1 Cf. G o d in h o , Vitorino Magalhes. Introduo Histria Econmica. Lisboa, Livros Horizonte, p. 15 e 25. [s.d.].

  • REFLEXES METODOLGICAS 1 7

    Foi com a Histria Econmica do Brasil, de Roberto Simonsen, que a teoria dos ciclos atingiu seu acabamento. Baseada em levantamento fatual e em avaliaes quantitativas inovadoras, esta obra articulou em seqncia histrica no s os produtos dominantes da exportao, mas tambm os produtos secundrios, todos eles indicadores das vrias fases da formao econmica do pas.

    Pela estreiteza do seu campo de viso, a teoria dos ciclos cedo alcanou o limite de suas possibilidades explicativas, restando apenas ocupar-se dos detalhes. A nova linha de interpretao deveria super-la. E a superao veio, com um salto qualitativo, na Formao do Brasil Contemporneo. Ao invs de tomar os ciclos dos produtos de exportao como pocas ou sistemas econmicos, Caio Prado Jnior descobriu neles manifestaes seqenciais de algo mais profundo, de uma realidade permanente e imanente a estrutura exportadora da economia colonial. 2 Ultrapassou-se a histria comercial e se avanou no caminho do conhecimento do arcabouo econmico-social, porm, s na medida em que o permitia o mirante onde se colocava o pesquisador a perspectiva do comrcio exterior. Este impe colonizao e evoluo brasileira o fim, o sentido conceito reiterado na obra de Caio Prado Jnior e determina a natureza da estrutura em que se combinam trs caracteres: grande propriedade da terra, monocultura e trabalho escravo. 3 A escravido propriamente merece poucas pginas na parte dedicada Vida Material a mais longa do livro , s sendo abordada detidamente na parte reservada Vida Social , que se ocupa com aspectos superestruturais e em que se inclui tambm a apreciao do patriarcalismo, j sem verdadeira significao estrutural., Q ^ Wv . %

    A idia da economia de estrutura exportadora, subjacente as modificaes de curta ou longa durao, inspirou a literatura histo- riogrfica posterior e estabeleceu os seus lineamentos principais. nesta linha de interpretao, embora com tratamento terico diverso, que se insere a obra de Celso Furtado. , tambm, a linha de interpretao que inspira toda uma corrente de historiadores paulistas, de Alice Canabrava a Fernando Novais. Em que pesem as diferenas, une a todos eles o ponto de vista do qual focalizam a economia e a sociedade coloniais o da sua atividade exportadora.

    2 Cf. P r a d o J n io r , Caio. Formao do Brasil Contemporneo Colnia. 4. ed. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1953. Particularm ente p. 120-23.3 Ibid. p. 13-26 e 113-14.

  • 18 REFLEXES METODOLGICAS

    O patriarcalismo desce a modesto segundo plano e na figura do plantador emerge o empresrio. A escravido a forma em que o empresrio colonial lida com o fator trabalho. Mas, uma vez que essa forma tida por contingente, devia ficar margem a preocupao com o estudo da especificidade das relaes de produo escravistas. No caso de Celso Furtado, por exemplo, a preocupao consiste apenas em esclarecer o efeito da economia exportadora- -escravocrata sobre a distribuio da renda.

    A primeira linha de interpretao histrica elaborou o quadro de uma sociedade patriarcal ou feudal. Da segunda linha de interpretao surgiu o quadro de uma sociedade colonial capitalista. As variantes referem-se a qualificaes desse capitalismo: se potencial, implcito, incompleto ou simplesmente inadjetivado.

    Uma terceira linha, intermediria entre as anteriores, tentou uma sntese e no alcanou mais do que uma justaposio. Refiro-me s interpretaes ditas dualistas, com suas polarizaes mecanicistas entre setor arcaico e setor moderno, entre economia de subsistncia e economia de mercado, entre relaes de produo internas e externas. Conquanto o enfoque dualista se encontre em Normano e integre a concepo geral de Celso Furtado, foi nas obras de Ignacio Rangel e de Jacques Lambert que ganhou formalizao bem definida.

    c,0 * 1. Implicaes metodolgicas do enfoque no modo de produo

    c S? Q& Y=r M No seu desenvolvimento, todas essas linhas interpretativas chegaram a contradies tericas insuperveis dentro dos limites da orientao metodolgica. Contradies que se revelam com toda fora quando se deve enfrentar a questo das relaes de produo.

    Veja-se a interpretao sob a categoria de feudalismo. Empreendeu-a Nestor Duarte e certa coerncia lhe foi possvel enquanto se manteve no mbito das instituies extra-econmicas, assim mesmo para reconhecer que o feudalismo brasileiro foi atpico. 4 Que papel teria, contudo, a escravido, numa sociedade feudal? Embora reconhea nela a base do sistema produtivo, Nestor Duarte a definiu como uma forma de escravido domstica , como economia inclusa na famlia patriarcal. Em sugestivo trabalho, escreveu o ensasta baiano:

    4 Cf. D u a r t e , Nestor. A Ordem Privada c a Organizao Poltica Nacional. 2. ed . So Paulo, Cia. Ed. N acional, 1966. p. 18 c 67.

  • A escravido brasileira foi eminentemente caseira e constituiu a maior fora em que se apoiou a instituio familiar para desenvolver a sua economia prpria, esteio de sua unidade e do seu centripetismo". 5Sendo assim, teramos uma reproduo do escravismo antigo,

    greco-romano, e no do medievalismo. O problema reside aqui em que no a famlia patriarcal que explica o escravismo colonial, porm o contrrio o escravismo colonial explica a famlia patriarcal. Invertidos os termos, descobre-se que os traos patriarcais do escravismo brasileiro estiveram condicionados e restringidos pela orientao principalmente mercantil das unidades produtoras.

    Idntica dificuldade apresentou-se diante de A. P. Guimares e eis como pretendeu resolv-la:

    Foi o modo de produo do acar aqui implantado que conformou nos primeiros tempos da colonizao o regime de terras e, demais, toda a sociedade que ento sobre ele se erguia. Modo de produo talvez sui generis na histria, pois que reunia elementos de dois regimes econmicos: o regime feudal da propriedade e o regime escravista do trabalho". 6O conhecimento histrico demonstra, no obstante, a contra

    dio formal in adjecto da proposio de um regime territorial feudal associado a um regime escravista de trabalho. Recorrer ao sui generis conduz, no final de contas, a deixar em suspenso a soluo terica coerente. Ao invs de explicar o regime territorial isoladamente por certos traos institucionais, cumpria descobrir sua determinao pelas relaes de produo. Evitar-se-ia a justaposio mecnica da propriedade territorial ao regime de trabalho e se abriria caminho concepo do modo de produo em sua totalidade orgnica

  • 2 0 REFLEXES METODOLGICAS

    do capitalismo colonial. Ficava, todavia, um vazio terico a preencher. Dado que o capitalismo com escravos no cabe na teoria geral marxista sobre o modo de produo capitalista, Fernando Henrique Cardoso recorreu ao instrumental tipolgico de Max Weber e lgica do integracionismo. Sobraram, contudo, tantas determinaes resistentes assimilao conceituai, que s restou relacion-las mediante o recurso ad hoc ao historicismo. 7

    As duas linhas de interpretao, a que me referi no incio, fizeram avanar o processo cognoscitivo da realidade histrica, mas o travaram, cada qual delas, com o seu unilateralismo prprio. E o travaram e desviaram ambas pelo obstculo que opuseram ao estudo da categoria central de todas as formaes sociais: a categoria de modo de produo. As tentativas de aproximao a esta categoria pela via de qualquer daquelas linhas e, ainda, da linha dualista intermediria resultaram frustradas. Muitssimo mais do que uma questo de rotulao classificatria, o que se acha em jogo a desobstruo metodolgica do acesso ao conhecimento histrico da sociedade brasileira.

    Advirta-se que o obstculo continuar intransposto enquanto nos ativermos a formulaes do gnero de modo de produo colonial 8 ou "sistema de produo colonial '', pois, ainda aqui, o enfoque no deixou de ser exterior estrutura econmico-social e, por isso mesmo, a escravido permanece em tais conceituaes elemento contingente e acessrio. Demonstra-o Fernando Novais, com notvel nitidez, quando considera o modo de produo colonial definido ... nos mecanismos do sistema colonial . O modo de produo escravista-mercantil seria uma forma-limite do modo de produo colonial e este, por sua vez, teria o estatuto terico de pea do sistema colonial. Uma vez que os mecanismos do sistema colonial mercantilista constituem o determinante estrutural do conjunto, seu elemento bsico e definidor, resulta que somente o prprio sistema colonial se apresenta com identidade substantiva. 1 0

    7 C f . C a r d o s o , Fernando Henrique. Classes Sociais e H ist ria : Consideraes Metodolgicas. In : Autoritarismo e Democratizao. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1975. p. 99 et seqs.8 Ibid. p. 104, 106, 114 et pas.9 Cf. F e r n a n d e s , Florestan. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na Amrica Latina. Rio de Janeiro, Z ahar Editores, 1973. p. 48-49.10 Cf. N o v a i s , Fernando A. Estrutura e Dinmica do Antigo Sistema Colonial. So Paulo, Cadernos CEBRAP, 1974. n. 17, p. 12-13, 27 e 31-34.

  • A desobstruo metodolgica impe a inverso radical do enfoque: as relaes de produo da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora, ao contrrio do que tem sido feito, isto , de fora para dentro (tanto a partir da famlia patriarcal ou do regime jurdico da terra, quanto a partir do mercado ou do sistema colonial). A inverso do enfoque que permitir correlacionar as relaes de produo s foras produtivas em presena e elaborar a categoria de modo de produo escravista colonial na sua determinao plenamente especfica.

    No minha idia que a viso metodolgica de fora para dentro seja intil e, por si mesma, distorciva. Com ela foi possvel estudar a colonizao como ato de colonizar e tudo o que seu processo implicou para a economia europia. Neste terreno temtico se situa a obra clssica de Eric Williams. Mas, se rejeitarmos os integracio- nismos simplificadores e considerarmos que o ato de colonizar originou nas Amricas modos de produo que precisam ser estudados em sua estrutura e dinmica prprias, ento, a viso metodolgica carecer de uma volta de 180 graus para focalizar seu objeto de dentro para fora.

    Da fecundidade desta revoluo metodolgica j tivemos uma primeira demonstrao na obra de Eugene Genovese sobre a economia poltica do escravismo. 11 A economia poltica a delineada no vlida apenas para o Sul dos Estados Unidos, mas se identifica, outrossim, com o Brasil escravista. Digo delineada porque Genovese teve insuficiente empenho na sistematizao categorial da teoria econmica do escravismo estadunidense. Sua obra, no obstante, encerra o mrito de introduzir na legtima problemtica da formao social escravista e do modo de produo especfico que lhe correspondeu. ^ ^ AO9 ' ,

    Outro passo srio em direo a tal problemtica foi dado por Ciro Cardoso, que, ao invs da abstrao de um modo de produo colonial , nico e indefinido, ateve-se proposio concreta do modo de produo escravista colonial. 12 Por outra parte, sou de opinio que a proposio de Ciro Cardoso padece das limitaes

    11 G e n o v e s e , Eugene D. Economie Politique de l'Esclavage. Paris, Franois Mas- pero, 1968.12 C a r d o s o , Ciro F. S. Sobre los M odos de Produccin Coloniales de Am rica e E l M o d o d e P r o d u c c i n E s c la v is ta C o lo n ia l en A m r ic a . In : A s s a d o u r ia n , C a r d o s o , C ia f a r d i n i , G a r a v a g l i a , L a c l a u . Modos de Produccin en Amrica Latina. Crdoba, Argentina, Cuadernos de Pasado y Presente, 1973.

    IMPLICAES METODOLGICAS DO ENFOQUE . . . 2 1

  • 2 2 REFLEXES METODOLGICAS

    epistemolgicas dos modelos , reduzindo-se a uma combinao de traos caractersticos. O de que se carece, ao ineu ver, de uma teoria geral do escravismo colonial que proporcione a reconstruo sistemtica do modo de produo como totalidade orgnica, como totalidade unificadora de categorias cujas conexes necessrias, decorrentes de determinaes essenciais, sejam formulveis em leis especficas.

    Em O Capital, temos a teoria geral do modo de produo capitalista. Com ela, deu-nos Marx o mtodo dialtico categorial-sis- temtico atravs do qual aquela teoria foi elaborada. Que no somente o capitalismo constitui objeto apropriado ao tratamento por este mtodo, demonstrou-o A-mando Castro com o seu monumental estudo do modo de produo feudal em Portugal. 1 3

    2. M odo de produo e form ao socialNa sntese do materialismo histrico includa no prefcio

    Contribuio Crtica da Economia Poltica 1 4 defrontamo-nos com estas duas categorias axiais: as 'd e modo de produo e de formao social. Discuti-las significa realmente discutir o fundamental no materialismo histrico, por mais que a discusso assuma, aqui e ali, aspectos escolsticos. Aspectos negligenciveis, uma vez que o confronto de idias em torno da questo permite arrancar a teoriamarxista do atoleiro dogmtico em que o stalinismo a mergulhou.

    ' * ^< 6 1 ' y* c O \Este no lugar para descer aos detalhes do debate, quercolocado no plano puramente terico, 1 5 quer vinculado a uma questo histrica delimitada. 1 6 Restringir-me-ei a tornar precisas minhas posies conceituais.

    A economia poltica a cincia dos modos de produo, de todos em gerai e de cada um deles em especial, de sua sucesso e das transies de um para o outro. O modo de produo da existncia material constituir'funda/nento ontolgico da sociedade humana. Donde ser a economia poltica a primeira das cincias sociais,

    13 C a s t r o , A rm a n d o . A Evoluo Econmica de Portugal dos Sculos X II a XV. L isb oa , P ortu glia E d ., 11 v o lu m es , v. 1, ed ita d o em 1964.14 M a r x , K . Contribution la Critique de L ' conom ie Politique. Paris, d itions S o c ia les , 1957. p. 4-5.15 C l. L u p o r in i , C esare; S e r e n i , E m ilio et al. E l Concepto de Eormacin Econom ico-Socia l." C rd o b a , A rgen tin a , C u a d ern o s d e P asad o y Presente, 1973.10 C f. C entre d tu d es et R ech erch es M arxistes (C .E .R .M .) . Sobre o Feudalismo. L isb oa , Ed. E stam p a, 1973.

  • MODO DE PRODUO E FORMAO SOCIAL 2 3

    cronolgica e sistematicamente. O ser social dos homens no mais do que a produo e reproduo dos prprios homens como sociedade humana. A esta altura, advirta-se que a dialtica no exclui a ontologia. A concepo da unidade de ser e no-ser modernamente devida a Hegel revolucionou a categoria de ser, no a suprimiu. Se se dissolve o ser no puro jogo de relaes destitudas de estatuto ontolgico, tem-se uma ultradialtica que, voltando- -se sobre si mesma, vai dar numa forma de idealismo metafsico.

    Quando falamos em sociedade humana no singular, pensamos no sujeito nico e contnuo da histria, pensamos na humanidade como categoria sob a qual abrangemos desde a mais primitiva tribo at as mais modernas organizaes sociais do sculo XX. A sociedade humana se antagoniza consigo mesma pela diviso em classes e se pluraliza na histria pela multiplicidade de formaes sociais coexistentes e sucessivas. Pela prpria atribuio ontolgica dos seres humanos seres prticos conscientes que espiritualizam sua materialidade - , as formaes sociais no se reduzem aos modos de produo. Compem-se de modos de produo e formas de conscincia social e instituies, que os homens criam coletivamente sobre a base do modo de produo. Estrutura (modo de produo) e superestrutura (formas de conscincia e instituies) se englobam e articulam em cada formao social. A categoria de formao social seria dispensvel se a concepo marxista da sociedade humana se prendesse unicamente ao modo de produo. No estudo das formaes sociais e dos modos de produo, a economia poltica se une sociologia e cincia da histria. Sob o prisma categorial das formaes sociais, as chamadas cincias humanas superam sua necessria especializao e readquirem a unidade cognoscitiva que exige seu objeto comum. Na categoria de formao social se conjugam sistema e histria, justamente o que no se consegue com a categoria de sociedade global , instrumentalizada como postulado formalista pela sociologia acadmica.

    Sob o conceito de modo de produo no se compreende apenas a produo propriamente dita de bens materiais, porm, por igual, sua distribuio, circulao e consumo. O modo de produo constitui uma totalidade orgnica e um processo reiterado de produo, distribuio, circulao e consumo de bens materiais, todas elas fases distintas e, ao mesmo tempo, interpenetradas no fluir de um processo nico. Mas, neste, produo que pertencem a determinao fundamental e o ponto de partida sempre recorrente

  • 2 4 REFLEXES METODOLGICAS

    A produo contm em si as demais fases como seus pressupostos e momentos particulares. Por isso, ela o princpio formador da organizao social dos homens que chamamos de modo de produo. 1 7

    Do modo de produo abstramos duas categorias essenciais: as relaes de produo e as foras produtivas. Os homens sempre produzem como seres sociais, ainda quando produzem como indivduos isolados. No processo de produo, os homens estabelecem entre si relaes objetivas, independentes de sua vontade, o que no implica que no adquiram alguma forma de conscincia delas. Tais so as relaes de produo ou relaes econmicas, que constituem a base das relaes dos homens na generalidade dos seus aspectos sociais, quer os associem comunitariamente ou os dividam em classes. Por outro lado, a produo resulta sempre da conjuno de um agente subjetivo (os homens) com certos elementos materiais (ou meios de produo, que incluem os meios e o objeto de trabalho). Os homens e os elementos materiais, com e sobre os quais atuam, constituem as foras produtivas. O modo de produo tem a forma de estrutura de relaes entre os homens, consolidadas, permanentes, repetidas no cotidiano da vida social, relaes apoiadas nas necessidades da produo organizada segundo determinado carter assumido pelo desenvolvimento das foras produtivas. O modo de produo , assim, por si mesmo, um modo de reproduo continuado das relaes de produo e das foras produtivas.

    Os homens seriam iguais s formigas ou s abelhas se houvessem se fixado na forma originria das suas foras produtivas. No teriam outra histria que no fosse a histria natural, ou seja, a histria diretamente determinada pelas condies naturais externas. Do ponto de vista propriamente humano, no teriam histria. Sabemos, porm, que os homens acumulam e transformam suas foras produtivas. A comear por eles prprios como fora produtiva dotada de subjetividade e intencionalidade. Possuem, por conseguinte, uma histria que obra do seu ser social e no das condies naturais externas. *Na acumulao das foras produtivas acumulao de meios de produo e de conhecimentos tcnicos dos prprios homens est o substrato da continuidade da histria e do desen-

    17 Cf. M a r x , K . Introduccin. In : Elementos Fundamentales para la Critica de la Economia Poltica (borrador) - 1857-1858. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Argentina Ed., 1971. v. 1, p. 3-20. Esta obra ser citada sempre no texto como Grundrisse e sua Introduccin como Introduo Critica da Economia Poltica.

  • MODO DE PRODUO E FORMAO SOCIAL 25

    volvimento do seu sujeito nico. Refiro-me acumulao como a resultante geral do processo universl at hoje, o que no tem excludo retrocessos localizados, rupturas e destruies irreparveis. Da transformao das foras produtivas, por sua vez, se gera a descontinuidade da histria, a substituio de relaes de produo j incompatveis com o carter adquirido pelas foras produtivas por novas relaes de produo, a sucesso dos modos de produo e das formaes sociais.

    O estudo de uma formao social deve comear pelo estudo do modo de produo que lhe serve de base material. As formaes sociais podem confer um nico modo de produo, o que lhes atribuir homogeneidade estrutural. Podem conter, no entanto, vrios modos de produo, dos quais o dominante determinar o carter geral da formao social. Comumente, os prprios modos de produo no so puros, mas encerram categorias insuficientemente desenvolvidas ou decadentes, que representam embries ou sobrevivncias de modos de produo diferentes.

    O objeto desta obra, estritamente limitado, o modo de produo escravista colonial. Por conseguinte, somente o fundamento da formao social escravista, no toda ela. Uma vez que o autor tem conscincia da distino entre modo de produo e formao social, seria descabido imputar-lhe a deformao economicista na abordagem de um objeto do domnio da economia poltica. O que se deu foi, alis, algo bem diverso, conforme constatar o leitor: a abordagem do modo de produo sob o trplice enfoque da economia poltica, da cincia histrica e da sociologia. concluso de Octavio Ianni sobre a especificidade da formao social escravista e da sua diferena categorial com relao formao social capitalista, a esta acertadssima concluso devo acrescentar que o fundamento da especificidade reside no modo de produo que a formao social escravista teve por base. O estudo deste modo de produo no constitui, por isso, opo preferencial ou questo de detalhe, mas necessidade metodolgica prioritria. De outra maneira, escapar-nos- a prpria especificidade, o que, em alguma medida, ainda me parece ocorrer com o prprio Ianni 18. No se justifica o receio de que a abordagem privilegiada dos fatores econmicos resulte numa viso economicista ou descambe para a historiografia

    18 Cf. I a n n i , Octavio. Escravido e H istria. In : Debate & Crtica. So Paulo, Ed. H U C ITEC , julho de 1975. n. 6, p. 131 et seqs.

  • 2 6 REFLEXES METODOLGICAS

    quantitativista a-histrica, embora caiba ao historiador ter em mente o risco de semelhante distoro. 1 9 O fato que a abordagem das formaes sociais isenta de fundamentao nos modos de produo conduz ao arbtrio historicista de que proporcionou exemplo Darcy Ribeiro. 2 0

    3. Modo de produo e histria

    A economia poltica clssica elaborou categorias com a pretenso da universalidade e da intemporalidade. Sua sucessora moderna, assentada sobre o terreno do positivismo, deixou de ser poltica e se converteu na Economics dos anglo-americanos. Preocupa- -se apenas com as variaes ocorrentes na alocao quantitativa dos fatores de produo, na distribuio da renda e no mercado, conservando o pressuposto da imutabilidade do mundo econmico.

    A crtica da economia poltica clssica feita por Marx e Engels consistiu em desvendar o carter histrico de suas categorias. A teoria do modo de produo capitalista no se estende aos modos de produo precedentes. Ao invs de se ocupar com um mundo econmico intemporal, cuja racionalidade relativa apenas ao capitalismo, a economia poltica deve ter por objeto a pluralidade dos modos de produo, cada qual regido por suas leis especficas. Algumas categorias possuem, no entanto, validade universal - manifestando a identidade permanente do sujeito nico da histria , mas elas mesmas se apresentam com a determinao de cada modo de produo dado. Uma essncia econmica pairando acima da sucesso dos modos de produo representaria pura abstrao metafsica. A categoria de modo de produo se qualifica por sua absoluta generalidade, uma vez que, em todo o decurso da histria, incluindo o que chamamos de pr-histria, nos deparamos com alguma organizao social produtiva. Ao mesmo tempo, a categoria de modo de produo s concebvel em cada organizao social historicamente determinada.

    19 Sobre a falcia do quantitativism o historiogrfico, v. P r a d o J n io r , Caio. Histria Q uantitativa e M todo da H istoriografia. In: Debate & Critica. Op. cit. Se as sries quantitativas s fazem sentido dentro de quadros estruturais, que lhes conferem determ inao qualitativa, cabe, por igual, a advertncia de V. M. Godinho a respeito das interpretaes marxistas retricas, que desprezam quantificaes penosamente elaboradas. V. Introduo Histria Econmica. Op. cit., p. 94.20 V. R ib e ir o , Darcy. Teoria do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Paz e T erra, 1972. Cap. I I ; /(/. O Processo Civilizatrio. 3. ed. Rio de Janeiro, Ed. Civilizao Brasileira, 1975.

  • MODO DE PRODUO E HISTRIA 27

    todos os estdios da produo escreveu Marx possuem caracteres comuns que o pensamento fixa como determinaes gerais, porm as chamadas condies gerais de toda produo no so mais que estes momentos abstratos que no permitem compreender nenhum nvel histrico concreto da produo." 21 Tratava-se de uma revoluo no s no domnio da economia

    poltica, mas tambm no domnio da cincia histrica. As grandes pocas histricas passavam a ser compreendidas luz do desenvolvimento e da sucesso dos modos de produo e das formaes sociais.

    Esta revoluo esterilizou-se desde o momento em que, no campo do marxismo, se instaurou o esquema da seqncia evolutiva universal de cinco modos de produo fundamentais. O materialismo histrico deixou de ser cincia social, como o entendeu Lnin 22, e se converteu em mais outra filosofia da histria, marcada pelo apriorismo e pela teleologia.

    Sem pretender aqui qualquer investigao filolgica exaustiva, creio poder afirmar que este esquema invarivel e universal no se originou em Marx, nem em Engels.

    certo que Marx se referiu a pocas progressivas da formao econmica da sociedade, identificadas, a grandes traos, com os modos de produo asitico, antigo, feudal e burgus. 23 No indicou, porm, que tivesse em vista uma linha nica de desenvolvimento histrico. Qualquer dvida que restasse ficaria eliminada nas cartas que escreveu ao diretor dos Otichestviennie Zapiski (fins de 1877) e a Vera Zassuch (8 de maro de 1881), nas quais taxativamente declarou no atribuir carter universal linha de evoluo da Europa ocidental, estudada em O Capital. A gnese do capitalismo no Ocidente europeu no deveria ser metamorfoseada numa teoria histrico-filosfica da marcha geral que o destino impe a todos os povos, quaisquer fossem suas circunstncias histricas. A primeira das mencionadas cartas encerra-se com palavras que vale a pena reproduzir:

    Assim, pois, acontecimentos notavelmente anlogos, que, no entanto, ocorrem em meios histricos diferentes, conduzem a re-

    21 M a r x , K. Introduccin. Op. cit., p. 8.22 Cf. L n i n , Vladimir. Ce que Sont les Amis du Peuple et Com ment Ils Luttent C ontre les Social-Democrates. In : uvres. Paris, d. Sociales. Moscou, d. en Langues trangres, 1958 . t. I. p. 155 et pas.23 Cf. M a r x , K. Contribution la Critique le l'Economie Politique. Op. cit.. p . 5.

  • 2 8 REFLEXES METODOLGICAS

    sultados totalmente distintos. Estudando em separado cada uma dessas formas de evoluo e comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave do fenmeno, porm nunca se chegar a isso mediante o passaporte universal de uma teoria histrico- -filosfica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra- -histrica. 24Ironia amarga da qual no escapam muitos marxistas.Na Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado,

    encontramos a conhecida seqncia evolutiva: comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo . 2 5 Mas, ao iniciar a exposio da linha de evoluo histrica, advertiu Engels expressamente que no se ocuparia com a parte oriental do Imprio Romano o que restringe aquela seqncia Europa ocidental e, adiante, introduziu a evoluo particular dos povos germnicos, os quais passaram da comunidade primitiva ao feudalismo sem conhecer o estdio escravista. 2 6 Nada, pois, que devesse ser tomado por esquema universal, decorre da concepo de Engels.

    O mesmo se pode dizer de Lnin, se considerarmos a concepo e a metodologia do conjunto de sua obra. No obstante, lemos em sua conferncia Acerca do Estado, de julho de 1919:

    0 desenvolvimento de todas as sociedades humcuias no curso de milnios, em todos os pases sem exceo, nos demonstra que este desenvolvimento obedece a leis comuns, regular e conseqente, de modo que, a princpio, tivemos uma sociedade sem classes, a sociedade patriarcal primitiva, na qual no havia aristocratas; em seguida, a sociedade baseada na escravido, a sociedade escravista. Atravs destas etapas passou toda a Europa civilizada contempornea, na qual a escravido era o regime dominante em absoluto h dois mil anos. Atravs desta etapa passou tambm a enorme maioria dos povos dos demais continentes... A este regime se seguiu na histria outro, o da servido da gleba. Na imensa maioria dos pases, a escravido, no curso

    24 M a r x , K. "D e M arx al D irector dei Otiechestviennie Zapiski." In : M a r x , Carlos y E n g e l s , Federico. Correspondendo. Buenos Aires, E d . Problemas, 1947. p. 371-72. M arx a Vera Zassulich. I n : G o d e l ie r , M a r x , E n g e l s . Sobre et Modo de Produccin Asitico. Barcelona, Ed. M artinez Roca, 1969. p. 171-72.15 E n g e l s , F. " E l Origen de la Fam ilia, la Propiedad Privada y el Estado. In: M a r x y E n g e l s . Obras Escogidas. M oscou, E d . en Lenguas Extrangeras, 1952. t. II, p. 300-02.26 Ibid. p. 278 e 285.

  • de seu desenvolvimento, converteu-se na servido da gleba ... No curso do sculo X V III e no curso do sculo XIX, tiveram lugar revolues em todo o mundo. A servido da gleba foi eliminada em todos os pases da Europa ocidental. Isto sucedeu na Rssia mais tarde que em nenhuma outra parte. Em 1861, tambm na Rssia se operou uma reviravolta radical, que teve como conseqncia a substituio de uma forma de sociedade por outra, a substituio da servido da gleba pelo capitalismo 2 7 Percebe-se que Lnin conferiu generalidade ao processo que

    Engels relacionou exclusivamente ao Ocidente europeu includo no Imprio Romano. Talvez o trecho citado seja nico na obra de Lnin e sua evidente simplificao da complexidade histrica obedecesse a fins didticos. Todavia, difcil argumentar que no representasse o pensamento maduro do autor, j refletindo possivelmente uma corrente de idias no campo do marxismo.

    O fato que Stlin se encarregou de oficializar o que se converteu em esquema no sentido estrito:

    A histria escreveu conhece cinco tipos fundamentais de relaes de produo: o comunismo primitivo, a escravido, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo". 2 8 Na verdade, a exposio no se reporta a relaes de produo,

    mas a modos de produo. Conquanto estabelea a ressalva a respeito dos tipos fundamentais, Stlin deles excluiu o modo de produo asitico que, para Marx, correspondia a uma poca da formao econmica da sociedade. Os tipos secundrios de relaes de produo ficaram omitidos e no se sabe que lugar teriam na histria. De qualquer maneira, Stlin no deixou margem a dvidas ao concluir sua seqncia dos cinco tipos fundamentais:

    7 a/ o quadro que apresenta o desenvolvimento das relaes de produo entre os homens, no curso da histria da humanidade' " . 2 9 dispensvel insistir na fora institucional com que este esque

    ma, durante muito tempo, se imps aos estudos marxistas. Toda a histria universal ficava de antemo decifrada por uma seqncia unilinear. J se conhecia previamente o que precisava ser pesquisado

    MODO DE PRODUO E HISTRIA 2 9

    27 L n in , Vladimir. Acerca del Estado. In : Marx,-Engels y el Marxismo. M oscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1947. p. 454-55.28 St l in , J. Sobre el M aterialismo Dialctico y el M aterialism o Histrico. In: Cuestiones del Leninismo. M oscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1941. p. 658.29 Ibid. p. 662.

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  • 3 0 REFLEXES METODOLGICAS

    e esclarecido. Bastava selecionar fatos para encaixe na seqncia preestabelecida. A este esquema, que dispensa o penoso trabalho de pesquisa e reflexo da cincia, poderamos aplicar a crtica de Hegel ao mtodo intuitivo de Schelling:

    ... se considerarmos de mais perto este desdobramento, vemos que no resulta de que uma s e mesma matria se configurou e se diversificou; ele , pelo contrrio, a repetio informe do Idntico que somente aplicado do exterior a materiais diversos e obtm, com isso, uma fastidiosa aparncia de diversidade. Se o desenvolvimento no nada mais do que esta repetio da mesma frmula, a idia, indubitavelmente verdadeira por si mesma, fica sempre, de fato, no seu comeo. Quando o sujeito explicitando seu saber no faz outra coisa que pregar esta forma nica e imvel aos dados disponveis, quando os materiais so mergulhados de fora neste calmo elemento, tudo isso, bem como as fantasias arbitrrias sobre o contedo, no constitui a consecuo do que reclamado, ou seja, a riqueza jorrante de si mesma, a diferena de figuras se autodeterminando. Tal procedimento antes um formalismo monocromo, que chega distino no contedo somente porque este contedo diferenciado j fo i preparado e j bem conhecido . 3 0No precisamos ser hegelianos para reconhecer que dificilmente

    se caracterizaria melhor todo dogmatismo na filosofia e na cincia. Inclusive o dogmatismo stalinista, tambm reduzido a um formalismo monocromo para o qual o contedo, diferenciado apenas na aparncia ou em detalhes insignificantes, j est preparado e bem conhecido.

    Inspiradas no esboo genial das Formen31, as investigaes marxistas mais recentes vm explorando a multilinearidade da evoluo histrica, de acordo com a concepo genuna de Marx e Engels.O modo de produo asitico, discricionariamente abolido por Stlin, recuperou o estatuto de categoria marxista. E, ao invs da teleologia, do finalismo ideolgico, o reconhecimento do progresso histrico decorre de um critrio objetivo: o da imanncia da dialtica entre o desenvolvimento das foras produtivas em primeiro lugar,

    30 H e g e l , G. W. F. La Phnomenologie t/c PEsprit. Paris, Aubier, 1939. t. I. p. 15.31 Cf. M a r x , K. Form as que Preceden a la Produccin C apitalista . In: Elementos Fundamenta/es. Op. cit., v. 1, p. 433 e t .set/s. Ser citado no texto com o Formen. A respeito, v. o notvel ensaio in trodutrio de Eric J. Hobsbaw n publicado na edio em separata (Crdoba, Argentina. C uadernos de Pasado y Presente, 1971).

  • LGICO E HISTRICO 31

    os prprios homens e a revoluo das relaes de produo. Qualquer que seja a respeito o julgamento de valor, as direes da histria humana, em suas variadas formas, consubstanciam o progresso das foras produtivas, em ltima anlise, a elevao da produtividade social do trabalho e o crescente domnio do homem sobre a natureza. 3 2

    4. Lgico e histrico

    O objetivo desta obra consiste em estudar o escravismo colonial no Brasil ao nvel do conhecimento categorial-sistemtico da histria. Cabe indagar da legitimidade de tal objetivo, uma vez que a histria costuma ser entendida ao nvel exclusivo dos acontecimentos singulares.

    Situando-se a este nvel, o historicismo do sculo XIX teorizado por Dilthey, Croce e Rickert difundiu afirmaes assimiladas pelos historiadores: os fatos histricos so nicos e irrepetveis, a histria no comporta causalidades generalizadoras, to-somente causalidades singularizadas. No haveria como pensar em leis, em relaes recorrentes e necessrias, onde os conceitos no podem deixar de ser sempre individualizados. Tais afirmaes pareciam tanto mais convincentes quanto o historicismo deixava para trs a histria especulativa, maneira do iluminismo ou particularmente de Hegel, e refutava concepes historiogrficas inspiradas no naturalismo positivista. O historicismo separou a cultura da natureza e parecia alcanar o ideal epistemolgico de uma concepo ima- nentista da histria. A tal ponto se identificou com o prestgio desse ideal cognoscitivo que Gramsci no criticou Croce por ser

    32 Cf. H o b s b a w n , Eric J. M arxs C ontribution to Historiography. In: Ideology in Social Science. 2. impresso. Londres, Fontana/Collins, 1973. Ed. Robin Blackburn, p. 275-77. Igualmente, L u p o r in i , Cesare. M arx Segn M arx. In: El Concepto de Formation Econmico-Social". Op. cit., p. 101-03. Neste ensaio de Luporini, veja-se a exegese da concepo de M arx sobre a continuidade da form ao econmica da sociedade (no singular) e a descontinuidade e pluralidade dos m odos de produo e das formaes sociais. A propsito e de passagem, observo que julgou incorretamente Francisco Iglsias quando enfileirou M arx ao lado daqueles, como Com te e Spencer, que extrapolaram o determinismo naturalista para o m bito da histria hum ana. Os esquemas explicativos globais e a seqncia obrigatria , a que se refere o historiador brasileiro, no podem ser im putados a M arx, porm, isto sim, a Stalin, sendo ilegtimo identificar um e outro no plano doutrinrio, tal a distncia que os separa. V. I g l sia s , Francisco. N atureza e Ideologia do Colonialismo no Sculo XIX . In : Histria e Ideologia. So Paulo, Ed. Perspectiva, 1971. p. 98-102.

  • 32 REFLEXES METODOLGICAS

    historicista, mas por no o ser verdadeiramente, por ainda conceber a histria maneira especulativa. Donde, diria Gramsci, o imanen- tismo hegeliano se tornaria historicismo absoluto somente com a filosofia da praxis, isto , com o materialismo histrico. Unicamente com este a concepo imanentista ter-se-ia despojado de todo aroma especulativo e se reduzido a pura histria ou historicidade, equivalente de puro humanismo. 3 3

    H ai uma questo de significao gnosiolgica para o estudo da histria, pois no constitui iluso admitir na histria um nvel real onde os fatos so acontecimentos, irredutivelmente nicos, nem por isso destitudos de efeitos histricos. S que, do ponto de vista gnosiolgico e no mais do que desse ponto de vista, nenhum historiador consegue permanecer ao nvel puro dos acontecimentos. No historicismo, que aspira conscincia terica de si mesmo, certa conexo ou interpretao dos acontecimentos ser buscada fora deles, em entidades extra-histricas ou na ideologia compreensiva do historiador. J com isso, a histria deixa de ser concebida em sua imanncia e a historiografia transcende os acontecimentos fatuais aos quais desejava ser inteiramente fiel. No caso de Croce, que aspirava unio da filosofia com a histria e rejeitava o historicismo da linha fatogrfica e positivista, maneira de Ranke, 1 1 0 caso de Croce, o sujeito da histria o esprito cujo atributo consiste na realizao da liberdade . O esprito aqui, certamente, o esprito humano, despido do envoltrio teolgico hegeliano, mas seu estatuto metafsico se mostra to notrio quanto 0 da Idia de Hegel. 3 4

    Se nos reportarmos aos historicistas da linha fatogrfica e positivista, que no teorizam e se pretendem rigorosamente fatuais, verificaremos que seu deus ex-machina se identifica com o acaso absolutizado, sob a denominao de acaso mesmo, de fatalidade, de destino, seno de Providncia Divina. Ora, o acaso, absoluto ou no, uma categoria filosfica ao mesmo ttulo que a necessidade e o determinismo.

    A historiografia no dispensa o nvel do singular, o nvel do acontecimento nico e irrepetvel. Detida, porm, neste nvel, o historicismo inevitvel e, de tal ponto de vista, inegavelmente

    :!;i Cf. G r a m s c i , A ntonio. II M ateria lism o S torico e la F ilosofia ili V enedetto Croce. 2 .a ed. T urim , G iu lio E inaudi Ed., 1949. p. 105 e 191.:u V. C r o c e , B enedetto . H istory as tlie S tory o f L iberty. N ova Io rque, M eridien Books, 1955.

  • LGICO E HISTRICO 33

    coerente a teorizao de Jos Honrio Rodrigues 35. Mas esta mesma teorizao, se aceita, condenaria a cincia historiogrfica a irremedivel atrofia, em especial ao mal incurvel da personalizao, criticado pelo prprio Jos Honrio Rodrigues. A historiogra fia do fato singular constitui, ao meu ver, uma especializao necessria, porm, como especializao, s adquirir plena envergadura cientfica se se libertar do historicismo.

    O prestgio crescente da economia e da sociologia, ao acentuar a insatisfao com o exclusivismo dos acontecimentos singulares, datados e personalizados, impulsionou a historiografia ao nvel do particular, das instncias sociais mediadoras dos fatos individualizados. Surgiram as historiografias da vida econmica, das instituies e das formas culturais de comportamento coletivo. Com isso, a cincia histrica se despersonalizou e revelou fatores dotados de eficcia propriamente social. Sob o prisma gnosiolgico, sem levar em conta a ideologia de cada historiador, essa historiografia do particular representou um avano qualitativo, inclusive no Brasil. O nvel do particular ainda no constitui, todavia, o termo da escalada. A historiografia deve ascender a um terceiro nvel o do categorial- -sistemtico. Indaguemos o que isto significa.

    Quando se decidiu a estudar a formao social capitalista no plano da economia poltica, isto , do modo de produo, Marx partia da teoria do materialismo histrico anteriormente elaborada. A prioridade atribuda economia poltica no foi, portanto, arbitrria, mas coerente com a tese ontolgica do materialismo histrico.

    Tampouco foi arbitrria ou sequer opcional a escolha do sistema de exposio adotado em O Capital. A metodologia, de que o sistema expositivo de O Capital constituiu aplicao delimitada, tem validez para a abordagem de todos os modos de produo, os existentes e os j extintos. A exposio categorial-sistemtica representou o acabamento, a forma conclusiva da superao do historicismo. Cabem a respeito algumas consideraes especiais, dada a amplitude da discusso que o assunto vem suscitando.

    35 V . R o d r i g u e s , Jos H onrio. 'Icoria da Histria do Brasil (Introduo Metodo-i So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1957. v. 1, cap. 1 a IV. hl. A Pesquisa His

    trica no Brasil. 2." ed. So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1969. n 69 p ?4-34 e 144-45.

  • 3 4 REFLEXES METODOLGICAS

    O prprio Marx, regra geral esquivo no concernente a explicitaes metodolgicas, se sentiu obrigado a um esclarecimento no posfcio da segunda edio de sua obra:

    Certamente, o modo de exposio deve distinguir-se formalmente do modo de investigao. A investigao h de se apropriar em detalhe da matria investigada, analisar suas diversas formas de desenvolvimento e descobrir seus nexos internos. Unicamente depois de cumprida esta tarefa, pode o movimento real ser exposto de maneira adequada. Se isto for conseguido, de maneira que a vida da matria se reflita na sua reproduo ideal, ento pode parecer que se est diante de uma construo a priori . 3 6 O esclarecimento precisa ser tomado em sua inteireza. Em pri

    meiro lugar, na rejeio radical do empirismo historicista, rejeio cujo pleno alcance se apreende na Introduo Crtica da Economia Poltica. Mas, por igual, na advertncia final a respeito da impresso possvel apenas impresso de construo a priori. A rejeio do empirismo historicista se dissocia da confuso com o formalismo apriorista.

    Talvez esta mesma preocupao explique a simplificao com que Engels focalizou a questo dos dois modos de tratamento prprios do mtodo dialtico: os modos lgico e histrico. O nico indicado para o tratamento da matria era o modo lgico. A escolha no tinha carter optativo e sobre isto Engels no deixa dvidas. Entre o lgico e o histrico inexiste, contudo, separaoabsoluta. Certamente, pretendendo evitar uma interpretao que separe o lgico do histrico ou at os oponha o que no estaria conforme com o pensamento de Marx , Engels se adianta at a identificao entre ambos ao afirmar que o modo (ou mtodo) lgico

    ... no , na realidade, mais que o mtodo histrico, despojado unicamente de sua forma histrica e das contingncias perturbadoras". 3 7 r 'Concordo com Luporini em que esta exposio de Engels abre

    caminho ao historicismo e contrasta com a concepo de Marx, segundo a qual a ordem de sucesso das categorias no acompanha a ordem histrica, mas se determina pelas relaes que existem

    36 M a r x , K. Das Kapital. Berlim, Dietz Verlag, 19 6 8 . Livro Primeiro, p. 27. Os trs livros de O Capital correspondem aos tom os 23-25 desta edio alem das Obras de M arx e Engels pelo Dietz Verlag.37 E n g e l s , F. "L a C ontribucin a la Crtica de la Econom ia Poltica de Carlos M arx. In: Obras Escogidas. Op. cit., t. I. p. 342-43.

  • LGICO E HISTRICO 3 5

    entre elas na moderna sociedade burguesa (objeto do estudo). Porm me pergunto se Luporini, ao contestar a assimilao do modo lgico ao modo histrico, no cedeu tentao do formalismo estruturalista que, em hiptese alguma, pode ser compatibilizado com a concepo de Marx. Essa concesso ao formalismo estruturalista se manifesta na reduo do histrico a apenas momento ou varivel subordinada do lgico-sistemtico. 38 O histrico, ao meu ver, um modo especial de abordagem que o lgico-sistemtico supera, ou seja, ultrapassa e conserva. Nos processos de gnese e de transio sem os quais desaparece a histria - o modo histrico absolutamente indispensvel, sem se dissociar do lgico- -sistemtico. Este ltimo ser sempre o fundamental, inclusive parao tratamento propriamente histrico da matria. Concluso a que chega Sereni e que me parece de todo vlida, independente dos aspectos filolgicos da sua polmica:

    ... nenhum tratamento poderia ser exclusivamente histrico, sem estar sempre fundado sobre o mtodo lgico, sistemtico, estrutural, que lhe d seu carter cientfico e sem o qual seria uma pura e simples enunciao de fatos e dados h is t r ic o s 39 A contribuio de Luporini se afigura, entretanto, particular

    mente valiosa por mostrar que O Capital seria outra coisa se sua matria fosse tratada pelo modo histrico. A obra perderia grande parte de sua eficincia cientfica, de sua universalidade e flexibilidade de aplicao. A importncia especial do modo lgico (ou categorial-sistemtico) reside no que Luporini chama de acesso no-emprico ao emprico. 4H

    Tudo isto dito, cumpre esclarecer mais detidamente o que o mtodo dialtico categorial-sistemtico tem a ver com o estrutu- ralismo, pois impossvel omiti-lo nestas reflexes.

    Marx poderia ser considerado um estruturalista avant la lettre, sugere Hobsbawn, a tal ponto que Lvi-Strauss reconhece ter-se inspirado nele em parte. 41 Apesar disso, a incompatibilidade entre

    38 Cf. L u p o r in i , Cesare. "D ialctica Marxista e Historicismo e M arx Segn M arx. In : EI Concepto de Formacin Econmico-Social." Op. cit., p. 25-27, 130 et seqs.39 S e r e n i , Emilio. La Categoria de Form acin Econmico-Social. In: El Concepto. Op. cit., p. 86.40 Cf. L u p o r in i , Cesare. Dialctica M arxista e Historicism o. Op. cit., p . 26-27. Id. Marx Segn M arx. Op. cit., p. 115.41 Cf. H o b s b a w n , Eric J. Op. cit., p. 278. Sobre "um aspecto estruturalista em M arx , v. P ia g e t , Jean. O Estruturalismo. So Paulo, Difel, 1970. p. 101.

  • 3 6 REFLEXES METODOLGICAS

    ambos incide precisamente no conceito de estrutura. 4 2 No entanto, no em Lvi-Strauss que pretendo me deter, mas em Althusser. Desde logo, deixo claro que considero insignificantes as mltiplas retificaes, ressalvas e emendas introduzidas por Althusser na sua concepo original, pois as suas teses fundamentais permanecem estritamente intocadas, sobretudo e antes de tudo no terreno epis- temolgico. H diferenas entre Althusser e Lvi-Strauss, mas isto no autoriza o primeiro a declarar-se alheio ou at contrrio ao estruturalismo. A questo no de rotulaes, porm do contedo do pensamento.

    5. Epistemologia das Cincias SociaisCreio j ter sido suficientemente apontado o carter a-hist-

    rico do conceito de estrutura na filosofia de Althusser. Sua refutao do historicismo contm bons argumentos, mas o conduziu a conceber a histria sem historicidade. A histria ficou resumida nas variaes e combinaes de uma estrutura autoperpetuante, causalidade metonmica , eficaz pela ausncia e imanente nos seus efeitos, que seriam os prprios elementos da estrutura por ela organizados num todo articulado. 4 3 O invariante estrutural seria a condio

    A0 0 ^42 Esta incom patibilidade radical, pois diz respeito concepo ontolgica do homem. O ideal cientfico ltimo de Lvi-Strauss uma antropologia entendida em sentido mais alto, ou seja, um conhecim ento do homem que associe diversos mtodos e diversas disciplinas e que nos revelar um dia as molas scrtas que movem este hspede, presente sem ser convidado aos nossos debates: o esprito hum ano .Se ainda no sabemos que so essas molas secretas, onde, ao menos. deveramos procur-las? Na atividade inconsciente do prprio esprito, na sua estrutura eterna, diz-nos Lvi-Strauss: Se, com o cremos, a atividade inconsciente do esprito consiste em im por formas a um contedo, e se as form as so fundam entalm ente as mesmas para todos os espritos, antigos e m odernos, primitivos e civilizados comoo estudo da funo simblica, tal como se exprime na linguagem, o mostra de maneira to notvel - preciso e basta atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituio ou a cada costume, para obter um princpio de interpretao vlido para outras instituies e costumes, sob a condio, naturalm ente, de estender bastante a anlise . L v i-S t r a u s s , Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro, Tem po Brasileiro, 1967. p. 37 e 99. dispensvel insistir na oposio entre esta concepo e a de Marx, precisamente no que se refere estrutura da sociedade humana. Convm alertar, alis, que, no meu contexto, os termos estrutura e funo tero emprego em acepes completamente diversas daquelas que o estruturalism o e o funcionalismo puseram em circulao. Para estas escolas, tais term os indicam sistemas fechados e autoperpetuantes, o que no se coaduna com o m aterialism o histrico.43 Cf. A l t h u s s e r , Louis. L Objet du C apital. In : A l t h u s s e r , Louis, et a i Lire Le Capital. Paris, Franois M aspero, 1967. t. II. p. 170-71.

  • EPISTEMOLOGIA DAS CINCIAS SOCIAIS 3 7

    das variaes concretas das contradies. 44 No materialismo histrico, a fonte das contradies histricas reside no desenvolvimento das foras produtivas, que se chocam com as relaes de produo existentes. Balibar substitui o desenvolvimento das foras produtivas pelo deslocamento dos seus elementos invariveis, donde as variaes consistiriam apenas em combinaes diferentes de tais elementos. 45 No fundo, toda esta concepo resulta da operao episte- molgica mediante a qual se atribui existncia indeterminada s categorias que s do ponto de vista mais abstrato so pertinentes universalidade da histria. 46

    Ao estruturalismo em geral no apenas o de Althusser faltam instrumentos tericos para explicar as transies histricas. As alternativas que se lhe deparam, pensa Hobsbawn, seriam as de aproximao ao marxismo ou de negao da mudana evolutiva. A abordagem de Lvi-Strauss e a de Althusser parecem confluir no sentido da segunda alternativa, observa o historiador ingls:

    Aqui comenta ele a mudana se torna simplesmente a permutao e combinao de certos elementos' (anlogos, para citar Lvi-Strauss, aos genes da gentica), os quais, a prazo suficientemente longo, pode-se esperar que se combinem em diferentes padres e, se suficientemente limitado, que esgotem as combinaes possveis. Se for assim, a histria o processo de jogartodas as variantes num final de xadrez. 47

    Av V- O r a\^Alongar-me-ei um tanto na operao epistemolgica subjacen

    te a semelhante concepo da histria sem histria. Uma vez que Althusser salientou com muita fora o carter sistemtico de O Capital - o que foi indiscutivelmente um mrito - , cumpre precisar a epistemologia do prprio Marx.

    E sintomtico que, apesar de se oporem, Sartre e Althusser persigam o mesmo ideal de apodicticidade do conhecimento histrico. Diz Sartre:

    44 Id. Pour Marx. Paris, Franois M aspero, 1967. p. 219.45 Cf. B a l ib a r , tienne. Sur les Concepts Fondam entaux du Matrialisme His- torique. In : Lire Le Capital. Op. cit., t. II. p. 235 et seqs.46 Categorias como foras produtivas, instrum entos de produo, relaes de produo, trabalho, propriedade, etc., so desprendidas pelos estruturalistas de sua existncia determinada a nica em que aparecem na histria e empregadas como conceitos abstrato-form ais em combinaes inevitavelmente especulativas.47 H o b s b a w n , Eric J. Op. cit., p. 211.

  • 3 8 REFLEXES METODOLGICAS

    preciso encontrar nossa experincia apodctica no mundo concreto da histria . 4 8

    Ao que Althusser replica: Esta histria do terico, das estruturas da teoricidade e das

    formas da apodicticidade terica, est para ser constituda .. . . 4 9

    Sartre se inspira em Kant e Husserl, substitui o sujeito transcendental pelo indi\iduo concreto e encontra em sua capacidade de totalizao o princpio apodctico da dialtica. Althusser se inspira em Spinoza e se lana empresa de revelar em O Capital a economia poltica demonstrada segundo a ordem geomtrica . C om preende-se, ento, que tenha por idnticas as prticas tericas do materialismo histrico e da matemtica. 5 0

    No que se refere a Marx, seria a apodicticidade o ideal d a elaborao terica? Ou seu objetivo fundamental estaria antes na reproduo do concreto emprico sob uma forma terica, no- -empirista?

    Em sua Introduo Crtica da Economia Poltica, afirm ou Marx ser o mtodo cientfico correto o que comea, no com o concreto real, porm com as categorias abstradas deste (suas determinaes unilaterais) a fim de reconstituir o concreto como "rica totalidade com mltiplas determinaes e relaes". Este concreto- -totalidade o concreto pensado, produto da mente, sua obra de reconstituio da realidade emprica, a realidade dada na intuio e na representao, que o processo analtico da abstrao decom ps nas determinaes categories, mais simples. A realidade im ediata, decomposta pela abstrao, recompe-se pela sntese, j no com o representao catica do conjunto , porm, como rica totalidade com mltiplas determinaes e relaes (totalidade estruturada, de acordo com a exegese correta de Althusser). Nas palavras dc Marx: O concreto concreto porque a sntese de mltiplas d e terminaes, portanto, unidade do diverso . Em todo esse processo ressalta a atividade do pensamento, o trabalho que lhe inteiramente peculiar, de apropriao terica do mundo material. N o obstante, se o concreto aparece (assim o diz. Marx) no pensam ento

    48 S a r t r e , Jean-Paul. Critique tie let Raison Ditileeliiim . Paris, I.ibrairie ( ia ll in ia rd , 1960. p. 131.*' A i . i h u s s l r , L. u Capital la Philosophic dc Marx. In; Lire l.e Capital. Op. cit., t. I. p. 61.50 Ibid. p. 75.

    A

  • EPISTEMOLOGIA DAS CINCIAS SOCIAIS 3 9

    como processo de sntese, como resultado, no como ponto de partida (pois o ponto de partida da sntese foram as abstraes categoriais), o concreto (trata-se indiscutivelmente do concreto real) o verdadeiro ponto de partida (do pensamento) e, em conseqncia, o ponto de partida tambm da intuio e da representao. Note-se bem: a elaborao da totalidade concreta como totalidade pensada comea com as abstraes, mas o ponto de partida verdadeiro do processo do pensamento o concreto enquanto concreto real, do mesmo modo que o ponto de partida da primeira escala cog- noscitiva, ou seja, a percepo intuitiva e representativa. Ao contrrio do que pretendia Hegel, pois com Hegel que Marx dialoga, o concreto pensado no em absoluto ...um produto do conceito que pensa e se engendra a si mesmo, de fora e por cima da intuio e da representao, mas , pelo contrrio, um produto do trabalho de elaborao que transforma intuies e representaes em conceitos . (Esta crtica a Hegel caberia tambm a Althusser, apesar da averso deste ltimo a tudo quanto parea sintoma de hegelianismo.) Ainda segundo Marx, o processo cognoscitivo, enquanto trabalho terico, percorre em seqncia dois caminhos: No primeiro caminho, a representao plena volatilizada numa determinao abstrata; no segundo, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto pelo caminho do pensamento . Dois caminhos de ida e volta: do concreto real ao abstrato e do abstrato (pela sntese das determinaes abstratas) ao concreto pensado, que reproduz racionalmente o concreto real ponto de partida original de todo o processo. O segundo caminho no se isola do primeiro, no se converte em esfera independente, porm s comea a ser percorrido depois que j o foi o primeiro. Por duas vezes, indica Marx a conexo entre os dois caminhos. Numa vez, escreve: Chegado a este ponto [isto , percorrido o primeiro caminho], haveria que reempreender a viagem de retorno ou seja, percorrer o segundo caminho, de volta ao concreto, agora apropriado pelo pensamento. Adiante, torna a esclarecer: Uma vez que estes momentos [isto , as relaes abstratas determinantes] foram mais ou menos fixados e abstrados, comearam os sistemas econmicos 5 1

    A leitura de Althusser obstina-se em isolar o segundo caminho e torn-lo apodctico. O princpio epistemolgico vem de Spinoza.

    51 Cf. M a r x , K . Introduccin. Op. cit., p . 20-22.

  • 4 0 REFLEXES METODOLGICAS

    Diria que a redescoberta de Spinoza por Althusser introduziu algo de novo e importante na compreenso da histria do pensamento filosfico: Spinoza foi o primeiro a pensar a substncia, o ser total, sob o conceito de estrutura, o que confere significao imensa sua teoria dos atributos e dos modos . 5 2 Diria, outrossim, que h em Spinoza a antecipao das trs escalas da epistemologia de Marx. As escalas spinozistas so os trs gneros do conhecimento: a Imaginao percepes e noes gerais extradas dos objetos singulares; a Razo noes comuns adequadas das propriedades das coisas; e a Cincia Intuitiva. Este terceiro gnero do conhecimento ...procede da idia adequada da essncia formal de certos atributos de Deus [ou substncia total] ao conhecimento adequado da essncia das coisas . 5 3 O que se poderia traduzir como o retorno ao concreto (as coisas) mediante sua reproduo como concreto pensado, como totalidade. No obstante, diferena de Marx, h na epistemologia de Spinoza uma separao absoluta entre a primeira e a segunda escalas. Da o princpio epistemolgico: O esforo ou o Desejo de conhecer as coisas pelo terceiro gnero de conhecimento no pode nascer do primeiro gnero de conhecimento, mas antes do segundo . 5 4

    O prprio Althusser se encarrega da exegese, sem dvida acertada :

    Entre o primeiro genero de conhecimento e o segundo genero, Spinoza estabelecia uma relao que, na sua irnediatidade (se se faz abstrao da totalidade em Deus), supunha justamente uma descontinuidade radical. Ainda que o segundo gnero permita a inteligibilidade do primeiro, no sua verdade . 5 5 Com efeito, Spinoza categrico: 0 conhecimento do primeiro gnero a nica causa da falsidade; o do segundo e do terceiro necessariamente verdadeiro". 56 Nos termos da epistemologia de Marx, ao contrrio, o que

    Spinoza chama de conhecimento do primeiro gnero a causa-

    52 Cf. A l t h u s s e r , L. Op. cit., p. 36 c 49; hl. "L 'O bjet du C apita l . In : Lire Le Capital.Op. cit., t. II. p. 50-51, 168 e 171.53 S p in o z a , B. thique. Paris, d. G arnier Frres, 1953. t. I. p. 203. Segunda Parte,proposio XL, esclio IL54 ibid. t. II. p. 213. Q uinta Parte, proposio XXVIII.55 A l t h u s s e r , L. Pour M arx. Op. cit., n." 40, p. 75.56 S p in o z a , B. Op. cit., t. I. p. 205. Segunda Parte, proposio XLI.

  • EPISTEMOLOGIA DAS CINCIAS SOCIAIS 41

    primeira seja da falsidade, seja da verdade. Dele procede a verdade enquanto concreto pensado, enquanto reconstruo racional da realidade emprica. Por isso, salientou Marx,

    tambm no mtodo terico necessrio que o sujeito, a sociedade, esteja sempre presente na representao como prem i s s a 5 7Na viso de Althusser, tratar-se-ia de um cogulo de empi

    rismo no dissolvido no crebro de Marx. A fim de depurar o marxismo de influncias empiristas, o filsofo francs interpreta o texto da Introduo Crtica da Economia Poltica nos termos do racio- nalismo spinozista. Como no poderia deixar de ser, v-se na contingncia de forar o texto (o que no raro na sua leitura). O texto de Marx conteria e dissimularia um silncio sintomtico : o silncio sobre a natureza das abstraes iniciais. Uma vez que este silncio poderia ser preenchido por uma ideologia empirista da abstrao , Althusser se prope completar o discurso. 5 8 E o faz mediante o estabelecimento de critrios exclusivamente internos do que denomina de prtica terica, critrios que nada tm a ver com a correspondncia objetiva da teoria ao concreto real. Donde a validao de uma proposio cientfica se assegurar como conhecimento pelo jogo de formas particulares. 5 9 Em outras palavras: '

    0 efeito de conhecimento, produzido ao nvel das formas de ordem do discurso da demonstrao, depois ao nvel de tal conceito isolado, por conseguinte possvel sob a condio da siste- maticidade do sistema, que o fundamento dos conceitos e de sua ordem de apario no discurso cientfico. 6 0 O esforo de Althusser dirige-se no sentido do privilegiamento

    do que Marx denominou de modo de exposio. Em O Capital escreve Althusser - , defrontamo-nos com a exposio sistemtica, com a ordenao apodctica dos conceitos ... Identificada dialtica, a exposio marxista instaura uma nova forma de apodicti- cidade. Balibar foi rigorosamente claro a respeito: ... s a exposio a cincia . 6 1 Tal privilegiamento inexiste em Marx, se o lermos sem distores preconcebidas. Consubstanciai ao mtodo

    57 M a r x , K . Op. cit., p . 2 2 .58 Cf. A l t h u s s e r , L. LObjet du C apital. Op. cit., p. 30-31.59 Id. Du C apital la Philosophie de M arx. In: Lire Le Capital. Op. cit t I p 85-86.60 Ibid. p. 87.61 Ibid. p. 60-64; B a l i b a r , E. Op. cit., p. 314.

  • 4 2 REFLEXES METODOLGICAS

    lgico, a exposio constitui sua forma organizacional, a forma apropriada ao nvel categorial-sistemtico do conhecimento. Desenvolvida segundo procedimentos dedutivos, a exposio contm obviamente proposies apodicticas. Mas a fundao do conhecimento exposto no apodctica. Se o fosse, estaramos no domnio da lgica formal e no da dialtica. A fundao da exposio dialtica a prpria realidade empirica, o mundo da objetividade. Por isso, antes de se resumir na exposio, o mtodo lgico aplica-se a cada conceito em separado no processo de investigao, de tal maneira que o sistema nasce da implicao recproca entre os conceitos e assim reproduz o concreto real como concreto pensado. Em O Capital, a anlise do sistema capitalista enquanto tal foi precedida pela anlise exaustiva da mercadoria, cuja existncia independe do sistema capitalista e pode ser logicamente estudada fora dele. O sistema, por sua vez, no uma ordenao apodctica, porm uma articulao contraditria de mediaes e tendncias mltiplas, cuja inteligibilidade a prpria lgica dialtica. Dizer que no sistema est o fundamento dos conceitos significa conferir-lhe uma precedncia de tipo gestaltista, que no cabe na dialtica marxista. A exposio impensvel sem que antes a investigao tenha realizado sua tarefa: domnio da matria em detalhe,-anlise das formas de desenvolvimento e descoberta dos seus nexos internos. E, se bem sucedida, a exposio no deve ser tomada pelo que pode parecer: uma construo a priori. Justamente por se recusar a ouvir esta advertncia gritante, prope Althusser uma teoria apriorista que se alimenta dos seus prprios objetos (pois um objeto do conhecimento nunca um objeto real) e que apenas se expe e reexpe.

    Marx superou o mecanicismo empirist dos sensualistas e destacou com toda fora a atividade pensante, porm, no o fez para retornar a algum gnero de epistemologia idealista, spinozista, kantiana, hegeliana, fenomenolgica ou qualquer outra. Com igual razo, descabido identificar a epistemologia marxista com certo reflexismo que anula a atividade criadora do pensamento e lhe atribui funo meramente especular.

    A m conscincia, que lhe provocou o corte radical entre teoria e realidade emprica, obrigou Althusser a uma emenda: acrescentou aos conceitos tericos, abstrato-formais, os conceitos provisoriamente denominados de empricos, que dizem respeito s determinaes da singularidade dos objetos concretos . Com a ressalva de no se tratar de uma recada no empirismo, o filsofo francs

    M W

  • EPISTEMOLOGIA DAS CINCIAS SOCIAIS 4 3

    relembra algo elementar em epistemologia-: nenhum conceito se reduz ao dado puro. 6 2

    Os conceitos encerram, est claro, graus diversos de abstrao, conforme sua maior ou menor proximidade da realidade emprica fenomenal. Mas conceito emprico uma contradio em termos, e sua aceitao implicaria a admisso de outros conceitos os abstrato-formais, de Althusser que simplesmente nada teriam a ver com a realidade emprica.

    A realidade histrica como toda realidade existe puramente, independente de que a conheamos. Nisso consiste sua objetividade. Mas, desde que a queiramos conhecer, sua existncia perde a pureza e se torna referencial ao sujeito do conhecimento. Por isso, o dado puro uma fico, uma ilogicidade. O dado puro ou fato bruto, acertadamente afirma Adam Schaff, constitui uma contradio in adjecto, um conceito destitudo de estatuto lgico. 6 3 Mas a referncia a um sujeito cognoscente no tira dos fatos seu carter de realidades que s por sua objetividade podem ser fatos.

    Deve ficar claro que o marxismo no se confunde com o realismo ingnuo, que a sua epistemologia tampouco positivista, nem acrtica. A iluso do dada'puro, passivamente recebido, j havia sido atacada por Hegel, importando menos, no caso, se o fez para forjar outra iluso, a da Razo Divina que governa a histria. 6 4 O dado s o para o historiador que sabe interrog-lo e interrogar pressupe atitude ativa, orientao anterior recepo do dado e que lhe confere significao de dado. O que justamente mostrou Marc Bloch:

    3 P a investigao histrica admite, desde os primeiros passos, que o inqurito tenha j uma direo. De incio est o esprito. Nunca, em cincia alguma, foi fecunda a observao passiva. Supondo, alis, que seja possvel . 6 5

    62 Cf. A l t h u s s e r , L. Sobre o Trabalho Terico. Lisboa, Ed. Presena, p. 55 e 58. M j 61 Cf. S c h a f f , Adam. Histria e Verdade. Lisboa, Ed. Estampa, 1974. p. 214-19. 04 Cf. Hixil i., G. W. F. The Philosopliy o f Historv. Nova Iorque, Dover Publications, 1956. p. 11. "Mesmo o historigrafo ordinrio, 'imparcial', que acredita e professa que mantm uma atitude simplesmente receptiva, rendendo-se unicamente aos dados que lhe so fornecidos no , em absoluto, passivo com relao aos seus poderes pensantes. Ele traz consigo suas categorias e v os fenmenos apresentados sua viso mental exclusivamente atravs destes meios.65 B l o c h , Marc. Introduo Histria (Apologie pour lHistoire ou Mtier dHisto- rien). Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1965. p. 60-61.

  • 4 4 REFLEXES METODOLGICAS

    Como bvio, o esprito, que est de incio, pode ser entendido de vrias maneiras. Uma delas seria a de identific-lo com o sujeito transcendental de Kant. Para mim, o esprito o indivduo cognos- cente como ser material e social que condensa conhecimentos elaborados e acumulados socialmente antes dele. So esses conhecimentos, objetivados no tecido tambm social da linguagem, que fazem do indivduo um esprito j constitudo ao comear sua atividade cientfica. A natureza dessa atividade distingue-a, por sua vez, como atividade espiritual. A teoria resulta de um ato da mente que pensa, a qual se apropria do mundo sua maneira especfica, maneira conceituai, diferente, como escreveu Marx, da apropriao do mesmo mundo pela via artstica, religiosa ou prtico-es- piritual. 66

    A prioridade epistemolgica sempre da realidade objetiva, o que decorre da posio determinante do ser com relao conscincia. Mas, do ponto de vista do indivduo cognoscente, colocado no processo de elaborao do conhecimento cientfico, desde que se distinguiu como esfera especializada, h tambm uma precedncia epistemolgica de categorias tericas, seno de uma teoria sistemtica.

    Com isso, no estaremos admitindo ao menos o risco do subje- tivisino em alguma das suas formas? Sem dvida. O risco do subje- tivismo jamais desaparece da atividade cientfica o que s os dogmticos ignoram - e no nos resta seno aceit-lo e venc-lo passo a passo. Nenhuma teoria fornece certificado de garantia total contra o risco do subjetivismo. O que da teoria se deve esperar que encaminhe ao conhecimento da realidade ao invs de obstruir o acesso a ela.

    6. Ieoria geral, modelos e tipos ideais-Y ,c

    Julgo ainda necessrio esclarecer a questo da relao entre teoria geral e modelos. Luporini e Sereni incorporam a categoria de modelo precisamente na acepo de teoria geral das formaes sociais e Luporini inclusive polemiza contra os que rejeitam a noo de modelo sob o argumento de sua filiao epistemologia burguesa. 61

    66 Cf. M a r x , K. Introduccin. Op. cit., p. 22.67 Cf. L u p o r in i , Cesare. Op. cit., p. 14 et seqs. e 155; S e r e n i, Emilio. Op. cit., p. 84.

  • TEORIA GERAL, MODELOS E TIPOS IDEAIS 4 5

    Ciro Cardoso apresenta um modelo do modo de produo escravista colonial e o define como esquema geral abstrato ... que reduz a seus mecanismos fundamentais um certo tipo de organizao scio- -econmica . 6 8 Infere-se que o modelo responderia aos requisitos da teoria geral do modo de produo em questo. J Oskar Lange distingue entre as teorias gerais da economia poltica e os modelos que especificam os pressupostos prprios de uma teoria econmica parcial. 69 A distino feita por Lange no de todo clara.

    Ao meu ver, no cabe a rejeio in limine da noo de modelo, sob alegao de sua origem ideolgica. Mas aceit-la como idntica noo de teoria geral seria atribuir a esta uma carga pragmatista comprom etedora.

    Com a teoria geral do modo de produo capitalista, Marx no elaborou um modelo operacional e conveniente , porm sistematizou categorias e leis que, sob formas particulares, se manifestam em todos os pases onde o modo de produo capitalista se desenvolveu. Cum prindo n o ta r que o particular no um exemplo do geral, conforme a desastrosa confuso estabelecida pelo meca- nicismo stalinista, porm a existncia do geral mais rica de determinaes do que o prprio geral. 7 0

    Os modelos combinam variveis, em regra, quantificveis, no quadro de referncia categorial previamente elaborado pela teoria geral. Modelos demonstrativos da prpria teoria e modelos prticos, como os que permitem formular uma poltica econmica. Assim, os modelos se validam teoricamente pela prpria teoria geral, sem

    68 C a r d o s o , Ciro. El M od de Produccin Esclavista C olonial en A m rica. Op cit., p. TL$C P60 Cf. L a n g e , O skar. Economie Politique. Paris, Presses U niversitaires de F rance, 1962. t. I. p. 121-22. 0 V NY y g f y70 V . G o r e n d e r , Jacob. "E o rren tes Sociolgicas no Brasil. In : Estudos Sociais. Rio de Janeiro , 1958. n. 3/4, p. 351. D esvinculado das particu laridades e das singularidades em que deve se m anifestar e concretizar, o geral se afasta da realidade o b jetiva em devenir, tende a se tran sfo rm ar e acaba se tran sfo rm ando em pura ab strao , adquirindo afinal um car te r de en tidade metafsica.acom panhar de o u tro a in d a : a a rb itr ria elevao categoria ue generalidade do que no representava seno particu laridade e, s vezes, apenas singularidade. Perdeu- -se de vista que entre geral, particu lar e singular no h som ente un idade, m as tam bm contradio. A preocupao se concentrava em en co n trar os exem plos b rasileiros das teses m arxistas, os quais se agregassem m ecanicam ente aos exem plos de o u tro s pases, e no o modo particular de m anifestao de leis universais na realidade social de nosso pas.

  • 4 6 REFLEXES METODOLGICAS

    a qual no teriam consistncia. Nesta acepo restritiva, e s nela, a noo de modelo se legitima metodologicamente.

    So por demais conhecidos os modelos prticos de poltica econmica. Os modelos prticos tm aplicao, na verdade, em todos os campos que comportam a interveno racional e planejada da ao humana. Quero referir-me, em especial, aos modelos demonstrativos. Marx os empregou com abundncia em O Capital, sempre depois de desenvolver as formas categoriais e a fim de demonstrar sua adequao a um conjunto de suposies pertinentes. Uma vez desenvolvidas as formas categoriais, podiam ser expostas as condies e as variveis quantificadas comportadas pelo modelo. Tais so os modelos da reproduo simples e da reproduo ampliada do capital e os modelos da renda capitalista da terra. 71 Com toda evidncia, no estava no pensamento de Marx que tais modelos fossem os nicos possveis a partir da teoria geral. No modelo, por exemplo, da reproduo ampliada, as sees I e II da produo social se desenvolvem a taxas iguais e constantes. Na sua polmica com os populistas russos, Lnin elaborou um modelo diferente, introduzindo mais uma varivel: a do progresso tcnico, que se traduz na expanso mais acelerada do capital constante com relao ao capital varivel, resultando no crescimento da seo I a uma taxa mais alta do que a da seo II. Mas Lnin o fez, assim o diz expressamente, apelando teoria de Marx. 72

    Suficientemente desenvolvidos, os modelos no s trazem preciso teoria geral, mas ainda podem conduzir a inferncias dedutivas, que representam novas aquisies do conhecimento no quadro da teoria geral. Esta define categorias qualilativas articuladas numa totalidade estruturada. Porm, o que qualidade j contm por si mesmo os limites dentro dos quais a quantidade pode variar. Por isso, so sempre possveis as variaes das correlaes quantitativas numa estrutura que conserva sua identidade qualitativa. Os modelos demonstrivos permitem explorar, por via dedutiva, as diferentes correlaes quantitativas entre as categorias de um modo de produo e, dessa maneira, aprofundam o prprio conhecimento qualitativo de sua estrutura e das particularidades de sua dinmica.

    71 Cf. M a r x , K . Das Kupitat. Op. cit. Livro Segundo. Seo III. Cap. XX e XXI; Livro Terceiro. Seo VI, Cap. XX XIX a XLI.12 Cf. L n i n , V . " A Propos de Ia Question Dite des M archs. In: uvres. Op. cil., t. I. p. 97-101.

  • TEORIA GERAL, MODELOS E TIPOS IDEAIS 47

    Se a elaborao de modelos se justifica dentro da acepo acima, o mesmo no cabe dizer da construo de tipos ideais. Lange aponta certa similitude entre a metodologia dos tipos ideais, proposta por Max Weber, e a dos modelos econmicos tericos fundados na abstrao cientfica qual recorreu Marx. 7 3 Segundo o que escreve Lange, poder-se-ia inferir sobre a compatibilidade da metodologia dos tipos ideais com o marxismo, uma vez depurada aquela da influncia neo-kantiana que afetou a concepo episte- molgica de Weber . 7 4 Ao meu ver, a prpria concepo metodolgica dos tipos ideais weberianos intrinsecamente inseparvel da epistemologia subjetivista.

    Weber impunha construo tipolgica a norma de um timo na adequao de sentido , o que se alcanaria ... na sua forma mais plena ... mediante conceitos e regras racionais (racionais com relao a valores ou com relao a fins) . 7 5 A coerncia interna do tipo ideal se subordina a um valor ou a um fim e sua construo se obtm mediante a acentuao unilateral de um ou mais pontos de vista . 7 6 Weber pretendeu que, em contrapartida vacuidade relativa de suas construes, o mtodo tipolgico pode oferecer ... a univocidade incrementada de seus conceitos . 7 7 Mas, uma vez que o tipo ideal uma forma a-liistrica, a pretendida univocidade se perde. Por um lado, dependendo do ponto de vista escolhido pelo observador, o mesmo fenmeno histrico pode ser ordenado segundo diversos tipos ideais. Por outro lado, o mesmo tipo ideal ou forma social abrange fenmenos histricos inteiramente diversos. Da a possibilidade de identificao conceituai entre realidades sociais diferentes em sua substncia. Enquanto a categoria marxista de modo de produo capitalista rigorosamente unvoca e historicamente determinada, o tipo weberiano orientao capitalista de lucro permite descobrir seis formas de capitalismo , desde a Antigidade at a poca contempornea. 7 873 Cf. L a n g e , O skar, ( $ . d \ $ : \ 22-24.74 Deve ficar claro que no a tribuo a Lange concesses de princpio sociologia de M ax W eber, mas um a atitude aberta prpria do verdadeiro cientista. Leia-se a critica de Lange a W eber na obra citada, p. 304-15.75 W e b e r , M a x . Economia y Sociedad. Mxico-Bucnos Aires, Fondo de Cultura Econm ica, 1964. v. 1, p. 16-17.76 Id. "Objectivity in Social Science and Social Poliey . 0 7 . upud: F e r n a n d e s , Flores- tan. Fundamentos Empricos da Explicao Sociolgica. So Paulo, Cia. Ed. N acional, 1959. p. 99.77 Id. Economia y Sociedad. Op. c