o ensaio de oito partes

Upload: jose-ramos

Post on 06-Oct-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Filosofia Chinesa

TRANSCRIPT

  • ENSAIOS DE OITO PARTES

    ANDR BUENO 2011

  • 2

    Todos os direitos reservados Creative Commons BUENO, Andr. Ensaios de Oito Partes. In www.andrebueno-sinologia.blogspot.com 2011

  • 3

    ENSAIOS DE OITO PARTES

    O Ensaio de Oito Partes A Arte de Ser Indireto Dignidade e Pacincia

    O Quadro de Ma Yuan Caminho da montanha na primavera

    As Peregrinaes de Confcio O Tempo das Dinastias Um Ps Confucionismo

    Uma Teoria Daosta do Sonho Estar, e no Ser

    A Melhor Estratgia Cu e Terra

    Um retrato em vrias cores Punir a Discordncia, Proibir a Diferena

    Teorias Finalistas O atraso dos Qing

    A Desnecessidade da Filosofia Confiana ou Capacidade?

    O gnero chins Uma civilizao sem mitos de criao A quase irrealidade de um retrato real

    Razes Filosficas da China Contempornea A China em Gerndio

  • 4

  • 5

    O Ensaio de Oito Partes

    Durante a dinastia Ming, os intelectuais confucionistas desenvolveram o baguwen, ou "Ensaio de oito partes", um modelo de redao para as provas do exame imperial, e usualmente utilizado para o desenvolvimento de artigos reflexivos. O sistema do baguwen propunha uma metodologia de escrita sinttica, cujos objetivos eram o esforo de conciso, aliado a proposio de idias ou dissertao sobre o tema. O baguwen buscava concretizar o ideal de expresso confucionista: poucas palavras representando uma reflexo profunda, sobre um assunto pr-determinado, em geral extrado da literatura letrada.

    A concepo original deste mtodo acabou sendo deturpada, em funo de arcasmos e frmulas pr-estabelecidas. Ao invs de estimular um raciocnio objetivo e esclarecido, a burocracia dos exames imperiais privilegiou a observao de aspectos formais e estilsticos, em detrimento dos contedos.

    No entanto, acredito que este mtodo poderia ser resgatado - e adaptado - para a (re)criao de um modelo de escrita confucionista. O que proponho, aqui, um novo tipo de "ensaio de oito partes", que doravante empregarei na produo dos artigos aqui presentes. O Ensaio de Oito Partes 1) Abertura: escolher uma fonte ou fragmento que denote o que ser analisado no ensaio, e que conecte ao ttulo do mesmo. Pode ser um trecho de Confcio ou um outro qualquer, que ajude na interpretao do texto. 2) Apresentao do fragmento: apresentar o texto, frase

  • 6

    ou parte do texto que ser analisado. Pode ser, igualmente, uma imagem, se o ensaio se trata de uma anlise iconogrfica. 3) Apresentao do problema: discutir a questo que se apresenta neste fragmento, e que se pretende analisar. 4) O comentrio confucionista: apresentar a contraparte confucionista do assunto escolhido, que o coloca em reflexo. 5) Articulao da discusso do problema, do fragmento e do comentrio confucionista, apontando a idia central. 6) Comentrio final do autor do ensaio. 7) Concluso reflexiva do texto. 8) Fragmento confucionista que d fecho ao texto, e que se articule ao restante da anlise do mesmo.

    O corpo central do texto (3, 4, 5, 6 e 7) deve conter em torno de 512 palavras, de modo a estimular a sntese apropriada, a meditao correta e centrada no tema definido e, por fim, a escolha cuidadosa das palavras empregadas na redao.

    Que o "ensaio de oito partes" aqui proposto seja um mtodo estimulante para a escrita, e no uma priso para o raciocnio. Desvinculado de testes governamentais, ou de uma aferio superficialmente funcional - que determine por antecipao um simples cumprimento de regras estilsticas - esta proposta constitui um desafio para o raciocnio histrico e filosfico, de modo a torn-lo mais coerente e objetivo, cuja nica aprovao esperada aquela, somente, dos leitores crticos.

  • 7

    A Arte de Ser Indireto

    Sbio aquele que torna o bvio acessvel a todos. Confcio

    Zhuangzi e Huizi conversavam numa ponte, quando

    Zhuangzi apontou para os peixes que nadavam abaixo dela e disse: veja como se agitam e nadam! Eles esto felizes!, ao que Huizi replicou: mas voc no um

    peixe, como pode saber o que eles sentem?. Zhuangzi respondeu: e voc no sou eu, como sabe que eu no

    sei? Zhuangzi

    A questo levantada por Zhuangzi e Huizi consiste no seguinte: como aprender por meio do indireto? Muitas vezes, nos deparamos com pessoas incapazes de compreender ou aceitar uma explicao: contudo, postas diante de uma msica ou um poema, elas despertam sua mente e acessam o problema apresentado. Por vezes, ainda, necessrio um mtodo para abordar determinadas questes ou ensinar certas tcnicas. Tal mtodo consiste em exerccios ou colocaes cujo sentido s se apresenta gradualmente, e sobre os quais apenas os sbios tem uma viso de conjunto. No que consiste, pois, esta arte de ser indireto? Ela consiste na habilidade de decompor as partes de um problema, analis-las, e inferir o melhor meio de apresent-las, de modo compreensvel, para aqueles que precisam aprender. Esta metodologia, porm, pretende que algumas coisas podem ser mais facilmente abordadas

  • 8

    por meio de analogias. Confcio entendia que esta forma de proceder era cabvel, de acordo com as circunstncias: Zixia perguntou: "O que significam estes versos: Oh, as covinhas do sorriso dela! Ah, o preto e branco de seus lindos olhos! sobre a seda puramente branca que as cores brilham". O Mestre disse: "A pintura se inicia na seda puramente branca". Zixia perguntou: "O ritual algo que vem posteriormente?" O Mestre disse: "Ah, realmente abriste meus olhos! apenas com um homem como tu que se podem discutir os Poemas".

    Neste trecho, por exemplo, Confcio pretende mostrar que existem significados subjetivos, porm aparentes, nos discursos sapienciais. A questo se trata, de fato, de buscar os princpios contidos no texto. No entanto, as analogias apenas funcionam se as buscas forem feitas de modo adequado do contrrio, as comparaes seriam exerccios inteis de abordar, indiretamente, uma questo. No se deveria comparar elementos de propriedades diferentes: ao se perguntar se um homem fica melhor com o tempo, tal como um vinho, ou se fica pior, tal como um carro, associamos trs coisas absolutamente distintas, e nenhuma concluso satisfatria pode ser alcanada. Este seria um exemplo ineficaz. Mas, se fazemos analogias com modelos consagrados ou, se realizamos comparaes com fins especficos, podemos obter algum sucesso: O Mestre disse: "Coloca-me na companhia de duas pessoas escolhidas ao acaso - elas invariavelmente tero algo para me ensinar. Poderei tomar suas qualidades por

  • 9

    modelo e seus defeitos como alerta". Por fim, a arte do indireto deve ser lida pela

    oposio complementar: a busca de captar seus sentidos pode ser feita pela captao da idia central ou mesmo, por sua negao, o que revela o intuito do autor. No caso de Zhuangzi, por exemplo, sua afirmao final um ganho retrico, mas continua sendo um erro: ele no um peixe, e peixes no tem a idia de alegria como um conceito. Deste modo, seu exerccio de analogia foi uma pea bem pregada no nominalista Huizi, mas carece de um sentido, sendo um mero diatribe de palavras para fazer vencer palavras vazias.

    A arte do indireto a manifestao da subjetividade aparente, por meio de uma associao simplificada que ajuda o leigo a se conduzir as concluses acertadas. Por isso Confcio disse: O sbio no maltrata nem as pessoas, e nem as palavras.

  • 10

  • 11

    Dignidade e Pacincia

    O pior erro no corrigir seus prprios erros. Confcio

    Ao fugir de um pas para outro, Confcio e seus

    discpulos passaram fome e sede. Zilu, revoltado, perguntou a Confcio: mestre, um cavalheiro tem que passar por essas indignidades?. Confcio respondeu:

    o que torna algum um cavalheiro o modo digno com que ele encara as indignidades.

    Confcio

    Confcio levanta um problema srio para qualquer buscador da sabedoria: quais os limites da dignidade e da pacincia? O mestre, por vezes, suportou ofensas atrozes de maneira inexpugnvel; de outras, revoltou-se de imediato com certos acontecimentos. H um padro para lidar com os problemas sem perder o controle? E se existe, qual ?

    Nas Conversas de Confcio est escrito: Os discpulos de Zixia perguntaram a Zizhang sobre as relaes sociais. Zizhang disse: "O que Zixia vos disse?" Eles responderam: "Zixia disse: 'Associai-vos ao tipo certo de pessoas; evitai aquelas que no so do tipo certo'". Zizhang disse: "Ensinaram-me algo um pouco diferente: um cavalheiro respeita os sbios e tolera os medocres, louva os bons e tem compaixo pelos incapazes. Se tenho uma vasta sabedoria, quem eu no toleraria? Se no tenho uma vasta sabedoria, as pessoas me evitaro; com base em que deveria eu evit-las?". Na

  • 12

    Justa Medida tambm se diz: se algum faz dez vezes o que outros fazem um; se faz cem o que outros fazem dez; se faz mil o que outros fazem cem; esta atitude que leva a sabedoria. Ambos os trechos mostram que o exerccio da pacincia e da dignidade so prticas constantes, e seu domnio procede de uma intensa, profunda e dedicada ateno. Elas procedem do desejo de no buscar o conflito desnecessrio, de atentar ao conjunto das possibilidades de resoluo, e de ponderar corretamente, sem fazer concesses levianas ou abandonar o que correto.

    Porm, em situaes extremas no h nada o que fazer para alterar o curso das coisas: pior, manter-se numa determinada posio pode mesmo significar um envolvimento ou compromisso com a causa dos problemas. Nestas situaes, melhor das s costas ao mundo e seguir adiante. Se no se pode combater o problema frontalmente, e se a arte do indireto no serve para a elucidao daqueles envolvidos no erro, ento, pr-se a caminho no covardia ou medo apenas a constatao de que nada pode ser feito, e a dignidade real consiste em conter-se e ausentar-se do contexto em erro.

    No hexagrama 61 do Tratado das mutaes, analisa-se a verdade interior, a autenticidade realizante, derivada da centralidade do indivduo. A sexta linha, que nove e conclui o hexagrama, traz um comentrio interessante: o galo canta para o cu, mas no voa, o que significa; podemos denunciar os crimes, mas se no podemos voar, se no tivermos o poder e a autoridade para corrigi-los, acabaremos s criando mais problemas. Portanto, nestas horas, por mais certos que estivermos, precisamos nos conter e praticar a pacincia

  • 13

    com dignidade. Tolerar uma virtude: comedir-se, uma excelncia. A covardia s existe quando algum pode, de fato, resolver uma questo mas se ausenta, seja por medo ou por compromisso. Quando algum desconhece a prpria fora, deve cuidar-se para no confundir humildade com indulgncia perante os erros. A autoridade moral para enfrentar as indignidades difcil de se obter, e a pacincia confundida com covardia, mas o buscador da sabedoria deve ter um compromisso, antes de tudo, com o que apropriado e consigo mesmo, no temendo a reprovao alheia.

    Sem princpios comuns intil discutir. Confcio

  • 14

  • 15

    O Quadro de Ma Yuan Caminho da montanha na primavera

    O que d sentido a roda no sua forma, mas o vazio de seus aros.

    Laozi

    Ao vislumbrarmos a pintura de Ma Yuan, Caminho da montanha na primavera, percebemos algo interessante: a paisagem pintada se encontra atrs do personagem central, que se desloca em direo a uma nvoa, um vazio quase absoluto. Um olhar primeiro, ocidental, poderia mesmo supor que a pintura est inacabada, pois a figura principal contempla um espao vazio. Contudo, e se pudermos afirmar que este vazio seria, justamente, o espao principal da pintura, que Ma Yuan coloca como o centro de sua mensagem dentro da

  • 16

    imagem? Sobre a percepo, Confcio comentou: Esclareo

    apenas os estudiosos: oriento apenas os interessados. Depois de eu ter levantado um lado de uma questo, se o estudante no conseguir descobrir as outras trs, no repito. Por conseguinte, se tomarmos por base este comentrio sobre o exame das coisas, anlise desta pintura deveria levar o observador a perceber a idia central da imagem, mas quando este despreparado para compreender a mentalidade artstica tradicional chinesa, seus esforos sero superficiais, inteis e mesmo grosseiros. A pintura de Ma Yuan um desafio aos cnones artsticos ocidentalistas, que pressupunham alguma universalidade da beleza. De universal, somente, h o princpio de uma busca por algo belo, que se define pela eficcia em representar uma idia. O que, pois, Ma Yuan queria representar?

    A esttica da pintura Caminho da montanha na primavera remete-se ao conceito do vazio gerador, que em oposio complementar matria, manifesta e d forma aos princpios. Assim, a figura central da cena contempla aquilo que d origem a imagem, s formas, em um vazio que gradualmente se condensa em vapor, nvoa, e que vai se concretizando numa vegetao robusta, que abriga um pequeno servial. No vazio da tela, pois, se extrai a forma, e o pincel do artista seu agente. Sua habilidade consiste em construir este cenrio harmoniosamente, e inverter o paradigma dos detalhes: o importante se torna, desta maneira, o que o mais simples, e de onde provm o restante. Diz o Tratado sobre a Compreenso da Arte: Por isso a obra de arte um jogo entre a habilidade do artista, sua mente, e a matria bruta. O artista treina as tcnicas para

  • 17

    aprimorar sua percepo; ao aprimorar sua percepo, consegue desenvolver aspectos de sua mente; sua mente consegue, ento imaginar o principio escondido na forma; e a habilidade em manifest-lo d-lhe primazia.

    Por outro lado, poderamos supor que a figura no centro da cena dirige-se nvoa, partindo o lado em que se encontra a matria-bruta: sendo assim, ele caminharia em direo dissoluo das coisas concretas, deixando-se envolver-se no vazio em que tudo acaba. Mas, o ciclo da mutao cclico, e princpio-matria se engendram mutuamente. Logo, mesmo que o homem dirija-se para o fim, este fim o novo comeo, o contraponto, e o gerador da imagem.

    Ma Yuan nos proporciona uma incrvel acrobacia visual e intelectual, capaz de, por vrias interpretaes distintas, apontar uma mesma concluso. Disto assim, no podemos consider-lo um artista de qualidades fenomenais e profundas?

    A pintura completa a cultura, ajuda nas relaes humanas e explora os mistrios do universo.

    Chang Yen Yuan

  • 18

  • 19

    As Peregrinaes de Confcio

    Entre os quatro mares, somos todos irmos. Confcio

    "Posso falar sobre o ritual Xia? Seu herdeiro, o pas de Qi, no preservou suficientes evidncias. Posso falar sobre o ritual Yin? Seu herdeiro, o pas de Song, no

    preservou suficientes evidncias. No existem registros suficientes e tampouco homens sbios suficientes; caso contrrio, eu poderia obter evidncias a partir deles".

    Confcio

    Confcio viajava por duas razes: a primeira, para conhecer mais; a segunda, para escapar dos perigos promovidos por seus adversrios. Peregrinar ser, pois, um ato de em si mesmo? Qual a necessidade de viajar?

    Liezi dizia que viajava para ver o que mudou, e Wuchen que no se pode conhecer o mundo trancando dentro de um quarto. No nos dedicaremos aqui as viagens de exlio, foradas, mas as viagens educativas, como as propostas pelos trechos acima.

    Algum deve viajar para sair de seu pequeno mundo, no qual aprendeu a compreender a realidade de apenas um modo. Para um sapo, sua lagoa seu reino, mas ele almeja ser mais do que um sapo. Uma pessoa que deseja ser mais do que precisa conhecer algo alm para realizar-se.

    No entanto, h pessoas que temem viajar, porque aprender mais significa mudar seus valores de vida. H

  • 20

    outros, ainda, que cientes destes mesmos hbitos que desejam manter, viajam somente para lugares em que possam ser iguais a sua terra natal. Isso lastimvel, representando o pior tipo de ignorncia recalcitrante.

    Mesmo o grande mestre Confcio, o 1 grande historiador chins, viajou em busca das tradies, e pouco encontrou o que poderia encontrara algum, pois, que s v a si prprio de modo to superficial?

    Durante sculos, caravanas viajaram o mundo todo para levar as mais distantes mercadorias que demonstravam, para as pessoas, as riquezas das artes e cincias das mais diversas civilizaes. Estes mercadores aprenderam novas lnguas, compreenderam outras culturas, e de leste a oeste eles construram pontes no mundo. uma vergonha para os professores, que se pretendem ensinantes, saber menos do que qualquer outro que no se prope a ensinar nada, mas apenas saber um pouco mais sobre as coisas.

    O hexagrama 53 do Tratado das Mutaes, Lu, o viajante, no ensina que um andarilho deve ser um expert em diplomacia. Ele enfrenta perigos, visita lugares estranhos e desconhecidos, mas aprende os melhores meios e se precaver das armadilhas, desenvolve hbitos de etiqueta e cortesia para evitar conflitos e aprimora a si mesmo, de maneira a continuar caminhando.

    Ao conhecer diversas culturas, ele se torna um supervisor das mutaes no mundo, e vislumbra a humanidade em sua variedade. O viajante se torna uma autoridade para discutir o que universal e o que particular nas culturas do mundo, e escapa a maldio do ignorante, que tripudia do mundo partindo do buraco em que habita. Especulao sem movimento projeta a

  • 21

    mente em direo ao transcendental, mas cada vez mais distante do imanente. Houveram pensadores que escreveram grossos volumes sem sair de suas plagas: o que se faz quando apenas se imagina, e o sonho toma o lugar da razo, mas sem ser um idealismo saudvel e coerente. Constroem-se mundos alternativos na mente, e passa-se a morar neles. Quem no viaja, pois, navega na ignorncia absoluta ou na superficialidade ilustrada, e no se aventura no mundo.

    Viajar sair de si mesmo, e encontrar o humano nos outros.

  • 22

  • 23

    O Tempo das Dinastias Shang sucedeu Xia, assim como Zhou sucedeu Shang.

    No vejo como isso ir mudar. Confcio

    Xia foi madeira; Shang foi metal; Zhou foi fogo; Qin foi

    gua; Han terra. Sima Qian

    Mais do que uma casa real ou o nome de um reino, o tempo dinstico, para s chineses, era um estado de coisas na matria. O que Sima nos prope, ao afirmar que as dinastias seguem o ciclo dos cinco estados da matria?

    Quando o mundo segue o Caminho, os ritos, a msica e as expedies militares so todas determinadas pelo Filho do Cu. Quando Confcio criou a teoria do Mandato Celeste, o mesmo entendia que o tempo de uma dinastia era determinado pela relao harmoniosa entre os cuidados do mundo, por parte dos humanos, e o respeito s leis ecolgicas que regiam a natureza e a sociedade (entendida como desdobramento da primeira). Os cuidados significavam Li a cultura, - que ordena as relaes, os ritos, as prticas, hbitos e leis e que as pessoas tomariam entre si, de modo a cuidarem-se, preservarem a vida mutuamente e assim, no se exceder em relao natureza. Havendo He harmonia a relao desta ecologia entre humanidade e natural estaria preservada.

    Os meios pelos quais se mantm um povo

  • 24

    consistem, pois, em sua cultura. Investigar como a mesma surge, se aplica e se transforma realizar a histria. Esta, pois, ao investigar os ciclos dinsticos, infere que uma dinastia um estado das coisas na mutao, na matria, organizadas numa relao cujas leis so constatadas numa determinada poca podendo, contudo, se alterar.

    A histria, portanto, acompanha as transformaes da mutao para extrair dela os princpios que retm a centralidade, a unidade de uma civilizao. Sima Qian, ao perceber isso, pretendeu identificar as propenses da mutao para compreender que fenmenos sustm, conservam ou desagregam um estado das coisas na sociedade ou seja, o conjunto das relaes dentro de uma temporalidade, que caracterizam todo um sistema, toda uma forma que a cultura adquire no perodo em questo. Sua proposta consistia em aceitar que esta cultura, por provir da natureza humana o que o cu concedeu a natureza humana, como est no Justo Meio pertencia s relaes ecolgicas do mundo, tal como Confcio propunha; por conseqncia, estes estados da matria deveriam acompanhar os estados do Qi (a prpria matria bruta, em forma de energia), na mutao, que foram estabelecidas pelo sistema dos cinco agentes wuxing. Assim, o tempo de uma dinastia caracterizado ou mesmo tornado em escala macrocsmica, pelas tendncias de um estado do Qi. Por isso, a dinastia Qin, que era regida pela gua, foi absorvida por Han, que era Terra; e a violncia destruidora foi substituda pelo terreno frtil da prosperidade pacfica. Sculo depois, Sima foi criticado, mas tambm desenvolvido: o estado das coisas no gera marcaes cronolgicas precisas para a transformao

  • 25

    da cultura, mas se estrutura num movimento que pode ser, de modo razovel, manifesto num perodo determinado, classificado pela hegemonia de uma dinastia.

    Ao estender o pensamento de Sima Qian, compreendemos que a histria chinesa cuidou-se, at certo ponto, de delimitar de forma estrita o estudo da histria. A criao destas leis da histria e da cultura serviriam tanto de referncia quanto como objeto de desconstruo. Isso talvez no seja uma novidade, claro: mas o que para os ocidentais tem um sculo ou mais, surgido desde Ranke o defensor da crena da verdade histrica para os chineses uma discusso que tem mais de mil anos. S uma teoria razovel pode sobreviver tanto. Recolha tudo que pode, ponha de lado o que duvidoso,

    isso o conhecimento. Confcio

  • 26

  • 27

    Um Ps Confucionismo

    Um povo mostra o quanto educado pela conscincia de seu passado.

    Confcio

    Enquanto tradio poltica dominante no pas, o confucionismo a alternativa bvia.

    Daniel Bell

    Aps quase um sculo de marxismo, a China retomou o estudo do confucionismo. Perseguida, humilhada e proibida, a doutrina confucionista sofreu agresses atrozes numa poca presente da histria no entanto, depois de 30 anos, aps a morte de Maozedong, ela voltou a ser um dos temas fundamentais na pauta poltica e intelectual da China contempornea. possvel, assim, falar de um ps-confucionismo? O prprio Confcio disse, nesta frase consagrada que mostra o cerne de seu pensamento: sbio aquele que, por meio do antigo, descobre o novo. A doutrina confucionista se transformou, desde seus incios, num poderoso e influente sistema tico-social, cujas contribuies foram importantes para a arte de governar na China e um bom exemplo a prpria durabilidade do imprio. Alm disso, Confcio propunha que o fundamento da preservao da cultura era a educao, o que propiciou o estabelecimento e a continuidade das tradies sem impedir, contudo, os progressos tecnolgicos e intelectuais. Confcio buscava, no passado, compreender as razes pelas quais a cultura (e

  • 28

    nas suas prticas, a moral) se originava, se mantinha, se aplicava e por fim, se transformava. Na compreenso do passado, portanto, residia a compreenso das coisas.

    Isso no impediu que o confucionismo engessasse em certas pocas da histria. O que hoje mesmo chamamos de neoconfucionismo como o de Zhuxi, seu grande expoente representou uma renovao dos estudos e propostas confucionistas. Tal condio demonstra que, apesar de todos os esforos, atingir a sociedade de maneira completa e abrangente era uma tarefa complexa, difcil e permanente. A educao um processo contnuo, que no deveria cessar, mas os interesses volveis de certos governantes dificultavam, sempre, a manuteno deste princpio fundamental.

    Assim, aps as tormentas da revoluo comunista, a China percebe e retoma, sem receios, as origens de sua cultura e eles sabem, o grande zelador deste patrimnio foi Confcio e a escola dos letrados, que por 2600 anos produziram a histria e a antropologia desta civilizao. Mais do que uma teoria poltica ou econmica, o confucionismo um sistema de anlise da vida, da formao dos seres humanos autnomos e conscientes, e o retorno deste doutrina como orientao fundamental do governo chins era apenas uma questo de tempo, como bem afirmou Daniel Bell. As revolues do sculo 20 tentaram destru-lo e apag-lo, o que se demonstrou to equivocado e impossvel quanto as perseguies de Qinshi Huangdi no sc. -3, ou das destruies patrimoniais provocadas pelos movimentos sociais da histria chinesa. A ignorncia pode atentar contra a sapincia, mas no pode submet-la por muito tempo. A retomada do confucionismo vem ocupar o vazio tico e filosfico de um marxismo

  • 29

    cansado, contraditrio e cada vez mais distante do mundo. O Tratado do esprito da Histria diz: Por estas razes, a histria moral, pois ela serve para ordenar a sociedade, recuperar os laos perdidos, restabelecer ou criar meios e condutas corretas..

    O resgate do confucionismo, pois, o cumprimento destas proposies, e a reconstruo dos laos com o passado. Este confucionismo moderno, adaptado ao mundo contemporneo, mas calcado nas tradies antigas , se podemos consider-lo assim, um ps-confucionismo, que incorpora as anlises do neoconfucionismo e os desafios dos sculos 20 e 21 num novo e instigante movimento social e intelectual. O grande fim da cincia no outro seno o de procurar

    a inteligncia perdida. Mncio

  • 30

  • 31

    Uma Teoria Daosta do Sonho

    O Mestre no gostava de falar de coisas espirituais. Confcio

    Zhuangzi sonhou que era uma borboleta. Ao acordar,

    no sabia se era ele que sonhara ser uma borboleta ou se era uma borboleta sonhando ser ele.

    Zhuangzi

    O sonho foi a atividade humana que mais motivou a concepo de existncia da alma. Ao dormir, o ser humano no estado mais prximo da morte total acorda, porm, no mundo do sonho, em que aparentemente pode viver um momento de outra vida. o sonho, pois, a prova da alma? Na viso daosta, o que o sonhar representa para os seres?

    Confcio dizia que antes de nos preocuparmos com os mortos, devamos saber servir aos vivos. Com isso, ele no descartava de modo algum a existncia dos espritos, mas insistia que discutir sua presena e atuao seria uma questo extremamente problemtica. O encontro com os ancestrais se dava em ocasies apropriadas, durante cerimnias que determinavam o trnsito entre os mundos. O prprio Confcio chegou a afirmar, no Justo Meio: O poder das foras espirituais no Universo - como se faz sentir por toda a parte! invisvel aos olhos, e impalpvel aos sentidos, inerente a todas as coisas e nada escapa sua influncia". No entanto, seriam as foras materiais que regeriam o mundo e o Tratado das mutaes cumpria

  • 32

    devidamente este objetivo. J os caminhantes eram escapistas, e lhes

    interessava, justamente, a possibilidade de ausentar-se dos laos que os ligavam a este mundo. O privilgio aos aspectos espirituais do ser, em detrimento dos interesses materiais, focavam a ao humana, na viso dos caminhantes, no desprendimento sensorial e da busca deste transcendental, que encontrava no sonho a possibilidade de sada.

    O sonho de Zhuangzi mostra, pois, que o estado de conscincia em que se encontra uma pessoa acordada , to somente, um momento em que o esprito se encontra plenamente ligado ao corpo. Mesmo num momento de devaneio, em que algum no esta dormindo, mas se perde em pensamento, sua alma se transporta para outro lugar, obliterandolhe os sentidos (mesmo com os olhos abertos), e s retorna mediante o estmulo ou a vontade prpria.

    Todavia, no momento do sonho, o corpo relaxa seus laos e a alma pode movimentar-se para fora. E para onde ela vai? A teoria de Zhuangzi se torna complexa, neste ponto. Podemos ser uma alma que, ao dormir, transporta-se para outro corpo (no caso, o da borboleta), que est em outro mundo o do sonho. Porm, podemos tambm estar acordados neste mesmo mundo, mas apenas em outro corpo o fato de dormirmos a noite no significa que no seja dia em outro lugar. O sonho, pois, to somente a percepo de algum que est acordado em algum lugar e dormindo alhures. Isso significa que posso estar, inclusive, adormecido, agora, em outra instncia, enquanto escrevo; do mesmo modo, estar acordado equivaleria simplesmente a estar sonhando. Mas podemos ir alm:

  • 33

    se sonhamos ser um tigre, uma outra pessoa, ou mesmo ns numa realidade alternativa, ento, podemos ser mais que uma alma; podemos ser vrias conscincias que operam, paralelamente, em realidades distintas! Se aceitarmos que h um mundo dos sonhos, ento, a questo ficaria resolvida: e l seremos o que quisermos ser. Mas, se supusermos ser uma borboleta sonhando ser gente, deste modo, somo de fato ente, borboleta, o tigre, eu agora, outra pessoa e eu mesmo em um outro lugar cuja nica distino aquela da conscincia que predomina num dado momento. Logo, eu s estou tendo a impresso de estar acordado enquanto escrevo, porque esse eu de agora no fugiu para nenhum outro lugar ou est dormindo em outras formas corporais. Contudo, se esse eu parar tudo e comear a me imaginar em outro lugar, eu estarei l, e o corpo permanecer parado, aguardando minha presena.

    Por esta razo podemos concluir que, seja o que formos, somos a nossa mente. A distino das realidades conscientes , como vimos, uma teorizao do escapismo, mas enquanto nos encontramos em um certo mundo, precisamos viver nele. Aps a morte do corpo, podemos acordar em outro lugar, mas tal suposio no nos isenta de termos que sobreviver agora. O Mestre disse: "Estou ficando assombrosamente velho.

    Passou-se muito tempo desde que vi o duque de Zhou em sonhos pela ltima vez".

    Confcio

  • 34

  • 35

    Estar, e no Ser Na banheira de Tang estava escrito: renova-te, renova-

    te, renova-te. O Grande Estudo

    O Mestre disse: "Aos quinze anos, orientei minha mente para aprender. Aos trinta, plantei meus ps firmemente

    no cho. Aos quarenta, no tinha mais dvidas. Aos cinqenta, conhecia a vontade do Cu. Aos sessenta,

    meu ouvido estava sintonizado. Aos setenta, sigo todos os desejos de meu corao sem transgredir nenhuma

    regra". Confcio

    Estamos, no somos. Muda-se o corpo, muda-se a mente, e o nico que sabe quem sou eu, de fato, sou apenas eu mesmo. Sondar a mente um exerccio interessante e relativamente eficaz de criar associaes para descobrir se uma identidade nomeada corresponde, com efeito, ao corpo apontado. Carregamos um nome por toda a vida, mas porque o aceitamos, como se ele fosse o nome do prprio esprito se este for eu mesmo.

    E de que serve, pois, saber que estamos algo? Nas Conversas (Lunyu) est escrito: O senhor Ji

    Wen sempre pensava trs vezes antes de agir. Ao saber disso, o Mestre disse: "Duas vezes j suficiente.".

    Este pequeno trecho vem explicar o que o sentido de estar: buscar analisar a si mesmo a fim de tornar-se melhor, o que a sim, um empreendimento ativo, individual e sbio. Contudo, Confcio estava sendo

  • 36

    irnico com aqueles que, ao se afirmarem pensadores, dizem ponderar profundamente sobre as coisas quando, na verdade, ou so indecisos ou j tem suas coisas pr-concebidas. Muita indeciso fraqueza de princpios e de carter; planos arquitetados ou estratgias demais significam maldade de inteno e corao ignorante. Quanto ao sbio, ele fica indeciso somente em relao ao bem proceder, porque j tem seus princpios consolidados, e busca o que apropriado acima de tudo. Assim, ele no tem, e nem faz, maquinaes pr-concebidas e apenas guia-se pelo correto. Por isso Confcio j sabia o que fazer quando tinha que decidir, e s pensava duas vezes. Ao buscar a si mesmo, uma pessoa se aperfeioa, e supera suas limitaes. Por isso Mncio disse: quem no gosta de pensar faz o trabalho pesado, o que significa que quem ignorante por opo ou por circunstncia, tem que fazer tudo dobrado, e sua ambio nunca rende.

    O sbio, no entanto, desprende-se das necessidades para alcanar o pensamento, e tenta aplic-lo no bem cotidiano. Busca no eu a resposta das coisas apropriadas, e sabe que a ponderao o terreno frtil das boas coisas. Sabe que o suor amigo das boas idias, e por isso no descansa em busca de si mesmo, do que est, e do que pode fazer pelos que o rodeiam. Busca adaptar-se, sempre, e renova-se a cada dia, tentando captar na mutao a manifestao dos princpios, dirigindo-os a harmonia com as pessoas e as coisas.

    Somente a sei que estou, o que fui e como pretendo estar; o sbio entende que, por isso, os princpios no mudam, mas as manifestaes sim adequar um ao outro o exerccio racional e profundo

  • 37

    de da ordem as coisas partindo de si mesmo. O Mestre sem idia, sem necessidade, sem posio e

    sem eu. Confcio

  • 38

  • 39

    A Melhor Estratgia

    Em pendengas eu sou to bom em decidir quanto os outros; o melhor mesmo que elas no ocorram.

    Confcio

    O Caminho significa aquilo que faz com que o povo esteja em harmonia com o seu governante, de modo que

    o siga aonde for, sem temer por sua vida, nem de se expor a qualquer perigo.

    Sunzi

    Duque de Song foi dar combate s tropas de Chu, e chegou ao local da batalha antes. Nesse momento, as foras de Chu atravessam um rio, e estavam em posio totalmente desvantajosa. Mesmo tendo a oportunidade de atacar, o Duque de Song resolveu esperar que as foras de Chu sassem da gua e se alinhassem, pois atac-los de outro modo no seria nobre nem cavalheiresco. O resultado: as tropas de Song foram vencidas, o Duque ferido e os oficiais liquidados. (Primaveras e Outonos).

    Nesta passagem problemtica, o Duque de Song agiu como um cavalheiro, e perdeu. Mas no seria um cavalheiro o mesmo que um buscador da sabedoria e dos princpios morais? E sendo assim, no deveria ele ter ganho a batalha?

    Nas Conversas est escrito: Zilu disse: "Se tivsseis o comando das Trs Armas, quem tomareis como vosso lugar-tenente?" O Mestre disse: "Para meu lugar-tenente, no escolheria um homem que luta com tigres

  • 40

    ou que atravessa os rios a nado sem temer a morte. Ele deveria estar cheio de apreenso antes de entrar em ao e sempre preferir uma vitria alcanada por meio da estratgia".

    A proposta de Confcio clara: o melhor estrategista que vence a guerra, e infelizmente, aps o incio de um conflito, difcil manter a moralidade e o humanismo. O que o mestre notou aqui simples, porm objetivo e pragmtico: podemos tentar ser bons, mas isso no significa sabedoria. Podemos praticar o caminho, mas ainda no sermos sbios. Por fim, no se deve confundir alhos com bugalhos; ningum, pelo simples fato de ser bom, ir vencer uma guerra ou fazer qualquer coisa bem apenas porque bom. como se um mdico, aps ter salvo milhares de vidas, pedisse a Deus o dom de tocar um instrumento musical e fosse automaticamente atendido , tocando de imediato melodias delirantes e dificlimas.

    Por causa disso Sunzi j falava tanto de preparao para o combate; Shang Yang dedicou captulos a isso, e mesmo Mozi se preocupou com os mtodos e histrias da guerra. Confcio, pois, no poderia eximir-se do problema. Em Wei, quando o duque Ling quis que ele fosse um planejador militar, o mestre desculpou-se e foi embora, prevendo confuses para o seu lado. Isso porque, comeada uma guerra, a estratgia que prevalece, tentando maximizar os ganhos e atenuar ao mximo as perdas. Cortesia, compaixo e humanismo exigem uma fora de carter incrvel, e devem ser administrados com cuidado sob o risco de ocorrer o mesmo que se deu com o duque Song que, cheio de pudores, ou tentando representar, de modo equivocado, valores maiores que buscava compartilhar, acabou

  • 41

    cometendo um erro terrvel. Melhor que se evite a guerra mas se ela inevitvel, que se faa de maneira menos destrutiva e raciocinada.

    Por isso, est nas Conversas: Zigong perguntou sobre governo. O Mestre disse: "Alimento suficiente, armas suficientes e a confiana do povo". Zigong disse: "Se tivsseis de chegar a bom termo sem um desses trs, qual descartareis?" - "As armas". - "Se tivsseis de chegar a bom termo sem um dos dois restantes, qual descartareis?" - "O alimento; em ltima instncia, todo o mundo acaba morrendo um dia. Mas, sem a confiana do povo, nenhum governo se mantm".

    Como podemos perceber, a confiana nos lderes o fundamento de tudo. Esta confiana tem que ser mtua, do contrrio nenhum governante pode ir a uma guerra. Mais do que isso, porm, numa sociedade em que prevalecem os valores da cultura, e que a ordem se encontra instaurada, as pessoas lutam pelo seu pas, por suas famlias e pelo seu modo de vida. Por isso, o ideal no so grandes exrcitos, mas boas escolas; a melhor estratgia proporcionar bem estar ao povo, e fazer com que ele acredite no que dever defender. Quando isso ocorre, os exrcitos servem ao povo, e no contra ele; defendem a ptria, so bem treinados, bem cuidados, e lhes do meios para que possam reagir s ameaas vindas de fora isso porque, um povo que ama seu pas se dispe a defend-lo; mas no se pode esperar, igualmente, que apenas o ardor mova as pernas dos soldados. Do contrrio, estaramos cometendo o mesmo erro do duque de Song. A melhor estratgia se preparar, em tudo; o melhor conflito, aquele que se resolve pela discusso e pelo acordo; a melhor guerra, a que no ocorre.

  • 42

    por isso que um sbio controla seu povo dentro dos mais altos princpios e o governa com retido. Estimula-

    o com rituais e sossega-o com tratamento humano. Quando estas quatro virtudes so praticadas, o povo

    floresce; quando so esquecidas, desvanece. Foi assim que Tang atacou Xie e o povo de Xia ficou feliz; Wu de Zhou atacou Chouxin de Shang e o povo nem se mexeu.

    Agiram conforme a vontade do Cu e dos homens e puderam realizar estes feitos.

    Wuzi

  • 43

    Cu e Terra

    Quando as paixes, tais como a alegria, a clera, o pesar e o prazer ainda no acordaram, temos nosso eu

    "central" ou ser moral (zhong). Quando essas paixes acordam e cada qual, e todas, atingem uma certa medida e grau, temos a "harmonia", ou ordem moral (he). Nosso eu central, ou ser moral, a grande base da existncia, e

    a "harmonia", ou ordem moral, a grande base da existncia, a lei universal no mundo.

    Justo Meio

    Terra acima, Cu abaixo Paz, Hexagrama 11 Cu acima, Terra abaixo Estagnao, Hexagrama 12

    Tratado das Mutaes

    A grande busca do pensamento chins a harmonia (He). Mais do que o Caminho (Dao), to propalado por ser o centro na proposta de cada escola, a harmonia o resultado pretendido por todas. E que a harmonia?

    O mesmo Justo Meio diz: Quando a centralidade do eu e a harmonia forem atingidos, o universo ento torna-se um cosmo e todas as coisas chegam a seu completo desenvolvimento e grandeza; disse tambm Laozi: Para conhecer a harmonia preciso estar de acordo com o eterno, e conhecer o eterno chama-se ser iluminado; e ainda, Dong Zhongshu: Cada coisa est ligada mutuamente a outras, e muda quando as outras mudam.

    Todos dizem o mesmo: a harmonia do mundo a ecologia funcionando em suas leis da mutao. No h

  • 44

    equilbrio esttico: as coisas mantm-se harmonizadas num processo dinmico, que gera esta filosofia do ajuste correto. Adaptar as propenses, se conduzir no ritmo adequado, respeitar as leis naturais, isso harmonia.

    O que se manifesta no bem estar das coisas, se reproduz no das pessoas. quando a paz, a terra e o cu se buscam, pra copular e reproduzir-se. Eles se engendram mutuamente, como yin e yang, e geram o trs, a origem dos guas e das dez mil coisas. Este o hexagrama da paz. Mas h o inverso, quando a Terra e o Cu esto distantes. Na vida, isso se d quando impossvel discutir com os ignorantes, quando no h harmonia e nem um sbio para restaurar a ordem. Contudo, nas linhas positivas h mudana, o fim da estagnao e a busca da ordem, de um mundo melhor.

    Alguns dizem: que cada um faa sua parte porm, qual a parte que cabe a cada um? Algum o sabe? No af de ter mais, os maus violam as regras do equilbrio, desproporcionam tudo todos, e causam imensa confuso. necessrio um sbio para pr as coisas no lugar. Mas como difcil! Como complicado ser como o sol, que desinfeta o pntano sem sujar seus raios! Contra a obviedade do bem que se pode proporcionar a muitos, os ignorantes legislam em causa prpria, atacam a natureza e as pessoas. Disse Lubuwei: O fim ltimo de toda atividade do filho do cu manter intacta a vida engendrada pelo cu. Essa a origem dos cargos de um governo: sua razo de ser a preservao intacta da vida. Os equivocados dirigentes atuais tem multiplicado os cargos do governo, usando-os para danar a vida com que perdem sua razo de ser, e tambm Dong Zhongshu: A gnese de todos estes prodgios e catstrofes o resultado direto dos

  • 45

    erros do governo. Quando em um Estado comeam a se manifestar os primeiros indcios de erro, o Cu envia prodgios assombrosos e calamidades para advertir ao homens manifestar sua vontade de fato. Se, apesar destas advertncias e anncios os homens no levam em conta seus erros, ento o Cu envia catstrofes e espantos aterrorizantes.. Quando h calamidades, porque no harmonia com a natureza; neste momento o sbio emerge das sombras para tentar reconduzir o mundo uma nova ordem, o que significa harmonia e se h harmonia, h paz, o estmulo mtuo, e o mundo se pe em movimento, novamente, buscando o ponto certo do equilbrio, do ajuste ideal.

    Esta tarefa exaustiva, e exige uma humildade tremenda, uma coragem insana para defrontar-se contra o mau e, por fim, uma cautela absurda, unida a uma retrica infalvel para convencer as pessoas a abandonar o erro, o desespero e a ignorncia recalcitrante.

    Nem mesmo um cavalheiro (junzi) abandona seus princpios, que se diga um sbio. Ele se adapta s necessidades para melhor ouvir os que precisam, ponderar, decidir o que melhor e assim discernir o caminho (dao). S assim alcana-se a harmonia, e o mundo volta paz. Confcio entendeu que, por causa disso, que precisaremos estudar sempre. Xunzi pediu ao cu que morresse em cima de um livro. Quem pretende buscar o que seja um caminho, pois, que se inspire nisso, e procure os livros como o cu e a terra se procuram. Ao estudarmos, esquecemos todo o resto, e estamos em harmonia com ns mesmos.

  • 46

    O Mestre disse: "Um cavalheiro busca harmonia, mas no conformidade. Um homem vulgar busca

    conformidade, mas no harmonia". Confcio

  • 47

    Um retrato em vrias cores

    Nenhum cavalheiro chegaria a contemplar a idia de exceder-se em seu cargo. Conversas, de Confcio

    No devemos rechaar de modo algum a herana dos

    antigos e dos estrangeiros. Maozedong

    Nos julgamentos histricos que se fazem, passam-se anos e as pessoas buscam na figura de um homem o papel de heri ou vilo. Na histria da China, Maozedong um desses lderes cuja existncia recente comea a sujeitar-se as regras da mutao, e a avaliao em conjunto de sua vida dar um novo carter a sua figura e ao mundo chins. E qual o ser?

    Confcio falou sobre a reputao: Para alcanar a percepo, um homem tem de ser talhado em madeira reta e amar a justia, examinar as palavras dos homens e observar suas expresses, e ter em mente a necessidade de deferir aos outros. Quanto ao reconhecimento, basta assumir um ar de virtude, ainda que comportando-se contrariamente. Mantm apenas uma aparncia imperturbvel, e certamente obters reconhecimento na vida pblica, e certamente obters reconhecimento na vida privada".

    Maozedong se encaixaria em qual dessas categorias? A dos que buscam reputao ou uma sabedoria? Mao odiava Confcio, mas sabia que a revoluo chinesa dependia, antes de tudo, em aceitar

  • 48

    que a herana milenar se impunha sobre a sociedade e que aquela lhe dava, justamente, a coeso que tornou a China uma das civilizaes mais antigas do planeta. Dito isso, Mao adquiriu reputaes distintas: uma de sbio, propagandeada por Lin Biao, seu adulador e depois, traidor que foi objeto de uma terrvel campanha de difamao promovida pelo prprio Mao. Por outro lado, foi tambm um defensor do povo, e um general vitorioso para isso, salvou milhares de pessoas da misria, mas matou indiretamente tantos outros milhares por conta da fome e da crise que ele permitiu ocorrer por conta de sua inpcia administrativa. Mao fez a grande revoluo que libertou o pas, e lhe trouxe respeito novamente. Proclamou as cem flores, para ouvir as discordncias e opinies; depois, massacrou a oposio, e instaurou a revoluo cultural, movimento violento e arrebatador, que contou com a ajuda de milhes de chineses dedicados. Ele peitou os Estados Unidos e a Unio Sovitica, mas sacrificou mais gente que Hitler e Stlin. Na China, em que tudo superlativo, difcil aceitar qualquer forma de proporcionalidade para as almas perdidas. Mas quem disse que uma revoluo fcil? Libertar-se das maiores naes da Europa, de um Japo agressivo, e de um governo corrupto e indeciso no so tarefas fceis. Como disse o prprio Mao: a revoluo no um convite para jantar. O Mao que dizimou pardais e rvores para o seu grande salto, fez com que belamente os chineses andassem de bicicleta e que mundo magnfico era esse! Fez com que as pessoas se ajudassem nas ruas, e cuidassem das conquistas do pas com carinho. Fez a bomba atmica, mas no ameaou ningum com ela. Chutou as pedras de Qufu, tentou

  • 49

    destruir Confcio, e admirava Qinshi Huangdi. Que mundo fantstico era esse, em que a burguesia arrogante foi conhecer o trabalho braal nos campos de reeducao; e que lugar terrvel para algum viver se pensasse diferente, e fosse taxado de pequeno burgus. Como disse Hanfeizi: o crtico anda com o caixo debaixo do seu brao e isso era mais do que adequado na China de Mao.

    A austeridade andava de braos dados com a pobreza, a discordncia era amiga da subverso para a Lei. Depois de tudo isso, a pergunta: devemos refutar o grande timoneiro, que permitiu a China ser o que hoje? cmodo e simples apontar os erros de um morto, sem que ele possa se defender. Contudo, negar seu legado outra coisa.

    Como confucionista deveria repudiar Mao por completo, mas exatamente por quais razes? Por mais paradoxal que parea, se hoje Confcio volta com toda a fora, porque suas sbias virtudes foram relevadas em relao aos erros do comunismo mas que o Cu permita que nunca mais a sabedoria seja redescoberta em funo de massacres. No Psconfucionismo da China atual, h espao para ambos, e o legado de Mao ser lido em sntese. Nesse retrato de vrias cores, destaca-se, mais que o vermelho, o amarelo de Mao o mesmo amarelo da China e de Confcio...

    Disse Mncio: "Quando prevalece no reino o governo justo, os prncipes de pouco valor e virtude mostram-se

    submissos aos de grandes predicados e de elevado valor. Quando predomina o mau governo, os pequenos so

    sujeitos aos grandes, os fracos servem os fortes. Estes dois casos so lei do Cu. Os que se harmonizam com o

  • 50

    Cu so poupados; os que se rebelam contra o Cu tm de perecer". [...]

    Mncio

  • 51

    Punir a Discordncia, Proibir a Diferena

    O bom governo temido pelo povo, enquanto as boas recomendaes so amadas por ele. O bom governo se

    apodera da riqueza do povo, enquanto as boas instrues se apossam do seu corao.

    Mncio

    A sofstica e a sagacidade constituem um apoio ilegalidade; os festejos e a msica so sinais de desregramento e libertinagem; a simpatia e a benevolncia constituem a me adotiva das

    transgresses; o emprego e a promoo representam oportunidades para a crueldade dos malfeitores.

    Shang Yang

    Regimes totalitrios so especialistas em pr ordem nas coisas da mutao, mas s duram enquanto a violncia sancionada pelo povo, e se demonstra austera ou de aplicao correta. Mas qual a diferena entre uma punio justa e um regime excessivo?

    Quando um pas for administrado por homens bons durante cem anos, a crueldade e o assassinato desaparecero. Como verdadeiro este ditado, disse Confcio. Mas o problema esperar cem anos para o restabelecimento da paz. Planos longos so mais eficazes, pois permitem erros, ajustes e perdas menores; mas intervenes diretas so aplaudidas quando parecem instaurar o caminho.

    Shang Yang pensava nisso, mas suas intenes devem ser questionadas. As premissas pelas quais

  • 52

    operava o pensamento legista devem ser lidas com cuidado, e nos ensinam muito sobre regimes ditatoriais e violentos.

    J de incio, o legismo depende de um pensamento nico, articulado em funo da lei. Para a lei ser respeitada, ele deve ser imposta e aceita; a inteligncia a coloca em questo, e por isso deve ser coibida. No se deve pensar por conta prpria, mas o regime legista deve ser de um pensamento nico. Deve-se punir a discordncia, e proibir a diferena de opinio. Este seria o caminho da harmonia.

    Existindo harmonia, pois, as tenses sociais se aliviaro, e as pessoas no precisaro mais se descontrair com msicas ou festas. Do contrrio, a prtica das mesmas poderia impelir as pessoas a questionar a ordem, buscar o desregramento e ir contra a lei. Por isso o ideal de austeridade legista a casa de famlia em que todos se sentam quietos, na mesa de jantar, sem proferir uma palavra. Todos se vigiam, tudo punvel. Este clima deveria ser de paz, mas algum o consegue de fato? No harmnico mundo legista, so duas as ocupaes bsicas: o trabalho no campo ou o exrcito. Ambas so feitas para que se pense o mnimo, se trabalhe o mximo, se gere fartura (pela produo ou pelo saque) e que ningum tenha oportunidade de questionar.

    Formar grupos de amigos perigoso e transgressor; e no trabalho, punio e recompensa devem ser cuidadosamente atribudos, sob o risco de se transformarem em corrupo ou favor. Tudo isso instaurar uma ordem eficiente, segundo os legistas.

    bvio ento que nos final de Zhou e nos tempos iniciais de Qin os ritos estavam deteriorados, e a ordem

  • 53

    corrompida. Mas o governo Qin fracassou ao tentar corrigir estas falhas, adicionando a elas leis e punies durssimas. Este no foi um grave erro?, disse Sima Qian. Isso foi h 2000 anos atrs; porque ser que as pessoas continuam insistindo, ento, em solues imediatistas e violentas? Porque elas abrem mo de sua liberdade de pensamento e autonomia em troca de uma lei dura, que suprime seus direitos e lhes encarrega de deveres tremendos?

    O abandono da sapincia d nisso: quando em pocas de calamidade, intervenes corretas devem ser administradas de modo a exterminar o mal, mas no devem tornar-se um hbito, bem como as pessoas no podem abandonar suas responsabilidades individuais e jog-las nas costas da lei (pois a lei que as julgar depois...). Quando as pessoas se largam a merc das coisas, a desordem brota e se esparrama. Por esta razo, deve-se estimular sempre o estudo, as presena da opinio, a coragem das atitudes e a determinao do pensamento. Este o melhor meio de se precaver contra o mal sem o que, sempre foraremos que outros usem armas para coibir a violncia, sem perceber que, com isso, s a aumentamos.

    S os homens cultos sabem conservar o nimo firme, mesmo que no tenham a subsistncia certa. O povo,

    pelo contrrio, se lhe faltar o sustento, no h o que no faa, na senda do desnimo, da transgresso moral, da

    depravao, do desregramento. E, depois que os homens se desgarraram e esbaldaram no crime, a punio priv-los da liberdade. Como pode tal sistema ser aplicado, sob o governo dum homem clemente?

    Mncio

  • 54

  • 55

    Teorias Finalistas

    Atravs da fuso de matria e energia do cu e da terra,

    todas as coisas do mundo so produzidas espontaneamente.

    Wang Chong

    Em geral, espera-se das propostas dos grandes mestres um final para tudo. Influenciados pelas crenas apocalpticas (no caso ocidental) ou nas teorias do universo cclico (como no caso do budismo ou do hindusmo), o senso comum aguarda destas doutrinas uma soluo definitiva para os problemas da existncia e da humanidade.

    Disso decorre a sensao de descrena, quando passados milnios, a crise final no se instaura e a salvao no chega ou, posterga-se para adiante, em previses inexatas, o real final das coisas.

    Mas e se a proposta do sbio consistir, de fato, na constate renovao do mundo? E se o ser humano for um eterno aprendiz, do qual depende justamente a educao?

    As teorias finalistas criam a utopia de uma realizao complexa, que resulta na frustrao de uma renovao que no ocorre ou que joga a real salvao para o transcendente. A teoria de Confcio, porm, no necessita disso. Ela se baseia nos princpios da mutao, da ciclicidade das coisas, que se transformam tal como as estaes do ano. A sabedoria adaptar-se, construindo a cultura que evolui, com o tempo, e que aperfeioa o modo de ser da humanidade.

    Assim, no h um final, e evoluir uma constante.

  • 56

    Educar um exerccio infinito, que no se presta a um trmino. Os seres precisam, sempre, da construo proporcionada pela educao, e renovada pelo desenvolvimento. Ainda que se aprendam muitos valores morais com as promessas de salvao, as sociedades precisam, antes de tudo, da cincia de seu momento, e de que a estabilidade depende da capacidade de preparar-se, educar-se e aprimorar-se. As crises so cclicas, e surgiro para incitar o movimento e o fim da estagnao. A paz, contudo, depende de uma viso correta das crises, e da coragem do enfrentamento calcada da reflexo e na prontido sapiencial.

    Assim sendo, no h fim para o estudo, nem para a educao. Os aparentes apocalipses derivam, de fato, da ausncia de estudo e da ignorncia das multides. A crena de que tudo vai acabar um simplismo otimista, que cria a falsa esperana da redeno, baseado num suposto extermnio do mal. A redeno comea agora, aqui, e por meio da educao. O mal a estupidez.

  • 57

    O atraso dos Qing Sem apoio em bases de real importncia, sem o impulso positivo das doutrinas de Descartes, Bacon e Voltaire,

    caminhando de abstraco em abstraco, encontrou ela no vcuo da sua prpria constituio os fundamentos da

    sua desorganizao. As qualidades morais do povo, seguindo passo a passo a trajectria da civilizao,

    recuaram do ideal e do abstracto altrusmo em que se haviam embrenhado nos fabulosos tempos do imperador Yao, e apropriaram-se do mais feroz egosmo e da mais

    lamentvel perverso, em que se encontram actualmente.

    Camilo Pessanha, sobre a China Qing

    Tratar superficialmente da base fundamental ou do princpio racional e moral, dar muita importncia aos

    acessrios, ou as riquezas; perverter os sentimentos do povo e excita-lo, por exemplo, pratica do roubo e das

    rapinas. Grande Estudo

    Os sinlogos tem se debruado sobre uma questo

    que lhes parece crucial no entendimento da mentalidade chinesa: porque a China perdeu a corrida tecnolgica, sobre a qual manteve a proeminncia at o sculo 18?

    Weber achava que isso tinha relao com a religio; Marx, com um sistema de explorao econmico primitivo; os chutes so muitos, e alguns bem fundamentados. Contudo, carece-nos o que poderia ser uma viso chinesa disso.

    Os Qing no eram chineses e compreenderam que,

  • 58

    para governar, precisavam sinizar-se. Adotaram paulatinamente as regras sociais, os ritos, a cultura e a doutrina confucionista, e se instalaram no topo da hierarquia social. Perceberam, porm, que o mundo da mutao se transforma: e tentaram ludibri-lo, tal como fizeram os alquimistas, criando um elixir de imortalidade. Este elixir seria a educao arcaizante, superficial, despreparada e obscurantista que se desenvolveu durante seu governo.

    Assim, Confcio foi transformado num zumbi dogmtico, ensinando um passado que devia, mais que ser preservado, nunca ser mudado. As tcnicas e invenes novas que poderiam ser utilizadas, perigosamente, contra o regime foram desestimuladas, e o cerne do racionalismo chins degradou-se numa cincia equivocada e ancestralista. A China dos pensadores e historiadores transformou-se no pas dos antiqurios. O principal motor da mudana social a educao foi reestruturado num sistema conservador, cujo regime de exames inibia a originalidade.

    Por fim, Qing se fechou ao restante do mundo, esperando que seu eremitismo o salvasse das perigosas influncias externas afinal, no eram eles mesmos estrangeiros? O que derrubou a China, no passado, servia-lhes muito bem agora; todavia, eles no conseguiam entender que o mesmo remdio se voltaria contra eles.

    Desatualizados, crentes de que um falso moralismo os salvaria, os Qing perderam a noo da realidade global, e se lanaram as trevas da ignorncia. Impediram o caminho para adaptar-se, e acreditavam poder preservar seu poder pela reproduo infindvel do confucionismo bestializado.

  • 59

    A lio foi clara: derrota aps derrota, e a seqncia fulminante de humilhaes, os Qing foram depostos. Passado um sculo completo, a China de hoje- estudiosa, obstinada, dedicada e consciente - outra. E no por acaso, lana um filme sobe Confcio: o grande terico que j havia afirmado que a grandeza, e a decadncia das naes, dependem da educao de seus povos... Ter com efeito de ser assim? Nao e raa encontrar-

    se-o no extremo estado de decomposio, vasto podredoiro operando de modo lento mas seguro a sua

    transformao o prprio aniquilamento , incessantemente laborado por tantos agentes de

    destruio implacveis a preguia, a ignorncia, o egosmo, a covardia, a crpula, a injustia e a

    venalidade dos magistrados, a intriga e a cupidez dos eunucos, e a ignorncia e imbecilidade estupenda dos

    governantes isolados de toda a contempornea civilizao no seu delrio arqueolgico de grandezas e cultivando, no convvio de um mundo de espectros, a

    logomaquia inane e a complicada e esotrica hieroglifia da sua morta literatura.

    Camilo Pessanha, idem...

  • 60

  • 61

    A Desnecessidade da Filosofia O Mestre disse: "Atacar uma questo pelo lado errado -

    isso de fato danoso". Confcio

    Para que serve a Filosofia? De to distante da vida

    prtica, alguns dizem que ela no serve para nada. Ora, se assim for, ela ento poderia ser abandonada, como as mquinas de escrever. Por outro lado, afirma-se que ela constri um senso crtico; este fundamental para uma vida social e intelectual s, mas muitos mestres de filosofia tm feito o contrrio: eles estimulam seus alunos e a pensar de um nico modo (em geral, o seu prprio), o que no nada crtico e nem saudvel.

    O mais incompreensvel disso tudo o fato dos prprios filsofos, em geral, defenderem estas posturas. Isso prova que, assim, como se formam hoje maus professores e maus mdicos nas faculdades, se formam igualmente maus filsofos. A diferena brutal, porm, que as diversas modalidades de professores querem, pretendem ou visam dar aulas; de mdicos, atuar como tais; e filsofos? No sabemos, muitos preferem no fazer nada.

    A prpria oportunidade de ensinar filosofia nas escolas tem sido encarada como um subterfgio para a sobrevivncia; algo do tipo se eu no me virar, dou umas aulas, o que significa a total despreocupao com o chamado aspecto formador de cidadania.

    Obviamente que estes comentrios no se dirigem a todos, seno, eu defenderia a extino da filosofia, tanto dos currculos escolares como mesmo, das

  • 62

    universidades. Mas, como confucionista que sou, pretendo que vrios clichs, ligados a filosofia, se tornem reais, tais como: - melhor das auto-ajudas, se no for superficial nem falsamente espiritualizada; - a melhor formadora de crticos, se for aberta e ampla; - a melhor formadora de valores, se for tica e moralmente aplicada nas escolas, ensinando o sentido da cultura e da moral;

    Obviamente, isso nos possibilita enxergar a filosofia por outro ngulo, que o daqueles pensadores que realmente se dedicaram a causa humana, tais como Gandhi (promotor ao pacifista), Arne Gaess (criador da causa ecolgica), Paulo Freire (pedagogia do oprimido) e por a vai... Todos eles saram de suas cmodas cadeiras universitrias e ousaram lutar por melhorias no mundo. Como Confcio fez no passado, se tornaram andarilhos, e foram mesmo ameaados, mas no temeram, nem se renderam ao pensamento estril.

    O que distingue esses pensadores de todo a escria restante, que pouco se preocupa com os destinos da realidade mundial, o ntido, profundo e sentimental envolvimento com a humanidade, e com a sua preservao. A sua capacidade nica de observar as coisas, de modo global, lhes permitiu compreender as necessidades conceituais, intelectuais e valorativas dos contextos de crise. Isso ainda d algum sentido para o ensino da filosofia; isso ela ainda pode o dar, se for bem ensinada, por filsofos realmente dispostos a mudar o mundo.

  • 63

    Do contrrio, se ela h de tornar um meio de conservar teorias caquticas, defender e justificar movimentos ignominiosos, ou mesmo, a ser defendida por filsofos limitados que no lhe do razo alguma de existir que ela encerre, pois, seu ciclo, e que se feche como uma escola cuja histria gloriosa deve ser preservada. Basta dos pensadores que falam bonito para terem seus empregos e amantes; a filosofia precisa mais do que isso! Precisa ser, novamente, invocada para atuar na mutao.

    Ou que se acabe! E que deixem aos outros o seu trabalho...

    O Mestre disse: "Zilu, vou ensinar-te o que o

    conhecimento. Tomar o que sabes pelo que sabes, e o que no sabes pelo que no sabes, isso conhecimento".

    Confcio

  • 64

  • 65

    Confiana ou Capacidade?

    No tenha receio de ser desconhecido pelas pessoas: tenha somente de desconhecer as pessoas.

    Confcio

    Um dilema moral e profissional transformou-se num caso clssico dentro das empresas: deve-se dar um cargo para algum que se conhece e confia ou para algum que demonstra capacidade?

    O conhecido tem suas vantagens; voc sabe quem ele , o que faz, tem intimidade com ele para resolver questes espinhosas e pode contar com ele para apoi-lo dentro da instituio. Por outro lado, ele pode se transformar num acomodado presunoso, que se vale da amizade para se encostar e fazer nada; difcil mand-lo embora, pois ele se entende um amigo, e a relao que os une mais sentimental que profissional; ele pode ser um incompetente, s dando problemas que voc ter que assumir; por fim, nada impede que ele, por interesse prprio, o traia para subir na vida.

    Quanto ao profissional cujo currculo impressiona, mas um desconhecido; mais fcil mandar-lhe, tanto quanto se pode atribuir tarefas para testar suas capacidades; em caso de incompetncia e da, demisso ele passa por mentiroso, isentando o selecionador. Por fim, o fato de ser um desconhecido no o impede de tornar-se um amigo, ou ao menos um bom colega de trabalho.

    Contudo, ele pode ser tambm um ambicioso mesquinho, disposto a subir rapidamente na carreira;

  • 66

    apesar de relativamente competente, no traz consigo valores morais que o incapacitem de ser um conspirador de marca maior; no final, ele pode ser simplesmente intratvel, contaminando o ambiente de trabalho com sua falta de urbanidade.

    Como Confcio responderia a isso? O mesmo mestre que defendia a meritocracia era um paternalista. Qual a soluo, pois, para este dilema? Para Confcio, era simples: faa do que sabe o seu amigo.

    Tornar-se amigo de um idiota e ajud-lo, depois, com grandes compromissos que envolvam sua pessoa, to idiota quanto. Ajudar pessoas com limitaes intelectuais um problema; no sabemos se elas so moralmente estveis ou no. H muitas pessoas pobres que trazem consigo a honestidade como um princpio interno; mesmo assim, isso no as capacita, simplesmente, para tarefas que exigem, para alm da bondade ingnua, o exerccio da estratgia ou da coragem.

    Por outro lado, existem pessoas que demonstram certo lustre cultural, mas ao serem examinadas mais profundamente, revelam suas limitaes. Muitas dessas entendem o saber, na verdade, apenas como um meio de alcanar seus propsitos e realizarem seus interesses, sem se aterem ao nvel mais profundo da sapincia que se preocupa com a humanidade. Estes so ainda mais perigosos, pois parecem saber, mas no sabem; se sabem, pouco; e empregam o que sabem de modo mesquinho e vil.

    Por isso, um bom confucionista buscaria avaliar, primeiro, os conhecimentos de algum; depois, sabatinaria-o com exerccios morais que manifestem seu carter. Dando tarefas e funes a algum, fica-se logo

  • 67

    sabendo do comprometimento deste com o seu trabalho. Alm disso, na viso confucionista, a amizade somente surge da comunho de interesses intelectuais e morais, livre de amarras ou compromissos materiais. Em larga escala, os confucionistas criaram o sistema de exames para dar uma chance a todos, sem distino, de mostrarem suas capacidades; e os governantes competentes selecionavam entre os melhores aqueles que seriam seus prximos de confiana. Isso se dava (ou se d, ainda?) porque aqueles que realmente so mais inteligentes e capazes so, tambm, moralmente superiores. A sapincia no envolve apenas o estudo superficial ou tradicional das coisas (xue) mas tambm, a experincia vivida com as coisas (zhi).

    Entre a capacidade e a confiana, o dilema s existe para quem no compreende o total envolvimento entre as duas.

    O Mestre disse: "Com um homem que no fosse confivel, eu no saberia o que fazer. Como poderias puxar uma carroa sem uma canga ou uma carruagem

    sem as varas?" Confcio

  • 68

  • 69

    O gnero chins A causa da fraqueza dos homens est somente no fato de que aproveitam de forma abusiva todos os caminhos do relacionamento entre os elementos feminino e masculino. Neste ponto, a mulher

    superior ao homem, da mesma forma que o fogo quando apagado pela gua. [...] Quem est bem

    informado sobre os caminhos dos elementos feminino e masculino desfrutar os cinco prazeres;

    quem no os conhece e no os segue encurtar a prpria vida. Quantos prazeres e alegrias podem

    ser experimentados e desfrutados! Quem no dedicaria sua ateno a isso?

    Livro da Alcova

    A china de hoje parece regida por um pudor misterioso, posto que no cristo, no qual a luta dos sexos se d de modo amplo e assumido, tentando-se quebrar a hegemonia masculina.

    So raros os que pensam mais na virtude do que no sexo, disse Confcio. Isso no implica que devemos negar o sexo, e estaramos interpretando mal o velho mestre. Embora moralista, ele sabia que o sexo era algo natural, e no podia ser negado. Os caminhantes tambm sabiam, e escreveram o Fang Chungshu (Livro da Alcova). A questo saber quando os chineses comearam a ser misginos pra valer, e em que momento a mulher foi realmente relegada ao segundo plano.

    Voltemos ao mundo chins antes dos mongis; o sexo era visto de modo natural, amuletos com forma de

  • 70

    membros ou smbolos sexuais eram usados, e a alquimia sexual caminhante defendia a harmonia dos sexos. Como isso pode ter mudado? A luta entre a igualdade e o machismo j existia, mas os mongis a acentuaram, trazendo para a china uma violncia submetedora, cujos valores alijavam o sexo de sua naturalidade para um mundo de submisso, harm, estupro e troca. No que isso no ocorresse antes, mas o que era exceo deixou margem regra. Os Ming mantiveram certos preconceitos, e com isso surgiu a pornografia sinal de que a represso tornou as pessoas fechadas e ignorantes. Com os Qing a coisa piora, seja por que fossem brbaros, seja por que instauraram uma espcie de puritanismo confucionista-budista que no podia dar bons frutos. A China comunista chamou para si a necessidade de mudar isso; leis aviltantes de casamento foram anuladas, a escravido e o concubinato acabaram, e se fizeram grandes campanhas de controle da natalidade e preveno da gravidez e de doenas sexuais. Contudo, ainda assim h homens que cultuam a volta desse machismo, to iguais aos homens do Brasil, que no deixam suas mulheres estudarem pelas mesmas razes.

    Neste caso, estamos mais prximos da civilizao chinesa do que costumeiramente imaginamos...

    prncipe! Depois de cem dias de faina, deixe-os

    festejar! Confcio

  • 71

    Uma civilizao sem mitos de criao Nos tempos antigos, as pessoas moravam em cavernas.

    Ijing

    Paul R. Goldin, escreveu um artigo, The Myth That China Has No Creation Myth, (Monumenta Serica, 2008, 56: 1-22), no qual defende o abandono da tradicional teoria de que a China no teria conhecido, em suas origens, mitos de criao. Anne Birell, em seu livro Chinese Myths (1999) j reproduzira essa idia, listando uma srie de possveis mitos de criao chineses.

    Ao meu ver, o problema claro: h uma necessidade cultural essencialmente ocidental que, por meio de justificativas antropolgicas, torna inaceitvel que uma civilizao no tenha mitos de criao, dentro de uma linha de raciocnio que basicamente Greco-romana-crist. Por causa disso, tanto Goldin quanto Birell desprezam a documentao confucionista e o desinteresse dos intelectuais chineses pelo tema. Ambos usam exemplos tardios, e no caso de Birell, que cita Zhuangzi, ela utiliza textos absolutamente aforsticos como se fossem histrias, confundindo uma parbola sapiencial com um acontecimento ou tradio mtica.

    A questo que se os chineses tiveram ou no seus mitos de criao, isso foi absolutamente desinteressante para os estudiosos da antiguidade, bem como para a prpria religio popular. O princpio do raciocnio chins era bsico: os chineses acreditavam que no podiam descrever o que no presenciaram.

  • 72

    Qualquer teoria nesse sentido era absolutamente especulativa, sem ter qualquer serventia para a tica tema central das escolas a partir do sculo -6. O prprio Confcio, to preocupado com os costumes, tradies e origens, no apontou nenhum desses mitos. Sua descrio dos tempos antigos, presente no Liji, essa: No comeo, Li (civilizao) surgiu com a comida e bebida. O povo assava milho e carne de porco, cortados mo, em lascas de pedra aquecidas. Cavavam buracos no cho, maneira de vasilhames, e bebiam diretamente nas conchas das mos. Modelavam em barro seus tambores e as baquetas, materiais esses que parece terem-se provado altura de seus cultos aos espritos. Quando morria algum, os parentes subiam ao telhado e gritavam bem alto, ao esprito: "Ahoooooo! Fulano, quereis fazer o obsquio de voltar ao vosso corpo?" (Se o esprito no voltava, e a pessoa estava realmente morta) ento assavam arroz cru e carne assada para oferendas, levantavam a cabea para o cu "a fim de ver longe" (wang) o esprito e enterravam o cadver. O elemento material descia ento ( terra) e o elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos eram enterrados com a cabea na direo norte, e os vivos tinham suas casas com o frontispcio voltado para o sul. Tais eram os costumes primitivos. Antigamente os governantes no possuam casas; moravam em grutas escavadas ou em abrigos de madeira empilhada, no inverno, e em ninhos feitos com ramos secos (na copa de rvores) durante o vero. No conheciam os usos do fogo; comiam frutos e a carne de aves e animais, bebendo-lhes o sangue. No tinham sedas nem outros tecidos, vestiam-se com penas e peles de animais. Mais tarde vieram os Sbios, que lhes ensinaram a utilizar o

  • 73

    fogo e a fundir metais em moldes de bambu e a modelar o barro em vasilhas. Ento construram galpes e casas com portas e janelas, e passaram a chamuscar e fumegar e cozer e assar a carne em espetos, e fabricaram o vinho e o vinagre. Comearam tambm a usar tecidos de fibras e sedas, preparando as vestes para uso dos vivos e oferendas aos mortos e cultos aos espritos e ao Cu. Absolutamente humana e baseada numa observao dos povos ainda primitivos de sua poca. Temos detalhes sobre a crena dos mortos, mas nada de origens csmicas. Se esse detalhe fosse realmente importante, no teria passado pelo crivo do velho sbio.

    Assim, os mitos de criao universal, como conhecemos, s surgiram na literatura do sculo +1, e mesmo assim parecem importados de outros lugares como o famoso mito de Pangu.

    Fuxi e Nuwa (Nugua), antes humanos nos textos confucionistas, comeam nessa poca a serem representados, nos relevos, com caudas de cobra. Antigos soberanos e heris se amontoam em tradies inexistentes no sculo 6, quando Confcio escrevia seus livros. Como reao a histria confucionista de Sima Qian, aparece o Shanhaijing o tratado das montanhas e dos mares cuja geografia mtica absolutamente desconsiderada pelos sbios. Com certeza, o crescimento dos caminhantes como religio que influencia fortemente essa viso das coisas. A filosofia caminhante cedia espao alquimia e aos cultos aos deuses, sendo sua sabedoria paulatinamente substituda por uma tradio dogmtica e baseada na f. A reao clara dada por Wang Chong, que dedica todo um captulo a combater a mitificao da origem do universo: os comentadores do Ijing dizem que, no

  • 74

    incio, s existia uma massa catica e uniforme. A separao do yin e yang se deu espontaneamente, e continua a ocorrer, sem que haja uma vontade do cu ou de terra para provoc-la. apenas isso [...] buscar propsitos para a criao celeste, ao invs de aceitar sua espontaneidade, como fazem os caminhantes, uma perda de tempo e em geral termina de modo decepcionante e contraditrio. Se suas propostas no vingaram de modo imediato, serviram contudo para o surgimento de uma cosmologia cientificizada que se consolidou entre os neoconfucionistas do perodo Song. Estas questes nos levam a pergunta: porque uma civilizao tem que possuir mitos de criao? Essa uma imposio mental ocidentalizada, cuja recusa por esta exceo curiosssima, que a China, mostra as limitaes de uma antropologia que se pretende laica mas que no escapa velha busca filosfica da Ark (origem) to importante para os gregos, que filosoficamente acabaram, mas to intil aos chineses, que continuam.

    Siga a ordem natural das coisas. Confcio

  • 75

    A quase irrealidade de um retrato real Ele pintou os olhos do drago, e eles saram voando da

    parede... Zhang Chengyao

    O tema em si batido, e com uma crtica consolidada e apropriada. Todavia, com quase uma ingenuidade que os especialistas em humanidades tratam a questo do retrato pintado ou fotogrfico como uma fonte de estudo. Desconhecendo seus variados aspectos, ou clamando por tericos j batidos, eles no sabem usar o retrato como um documento original; e quando o fazem, com um amadorismo gritante e surpreendente.

    Disse Confcio: mostro um ngulo, e se o estudante no percebe os outros, deixo ele para l. Isso significa que um bom crtico consegue perceber, de modo simples, os ngulos diversos que envolvem a anlise de um retrato. A maioria, porm, projeta sobre o retrato a esperana de ser fiel e real a realidade propriamente dita, o que um sonho ingnuo.

    E por qu? Como dissemos, mesmo sendo um assunto j discutido, vale talvez dar-lhe um resumo para os iniciantes. Sem a pretenso de me propor um especialista, mas a constatao de alguns elementos bsicos sobre a questo pode ser interessante como um compartilhamento de conhecimentos.

    Comecemos pelo mito do retrato fiel: seja uma foto ou uma pintura, eles so absolutamente construdos, e sua fidelidade se atm, somente, ao que o

  • 76

    artista prope. Tomemos como exemplo a foto preto-e-branco, ou um retrato do sculo 18, em que os representados se mostram de bocas fechadas para no mostrarem suas banguelas; luz, cor, ambiente, tudo planejado. Como dizer que isso natural, entendendo o natural e o espontneo como o mais fiel?

    Ainda assim, poderamos supor que um retrato feito por acidente seria realstico. Uma filmagem de celular de um crime, no caso, seria o real?. A questo : com que propsito ele foi feito? Qual a perspectiva de quem o fez? Isso modula o olhar do retratista, que pode - a partir de uma viso particular determinar o carter de um retrato. Algum pode retratar uma agresso feita por um policial tanto para denunci-la como pode concordar com ela e se ausentar. Algum pode ainda faz-lo pelo simples desejo de projetar-se pessoalmente, sem medir qualquer tipo de conseqncia.

    Isso se d, por exemplo, quando se fotografam feridos de guerra, com o objetivo de denunciar a violncia da mesma. Que profissional humanista se v diante de um ferido e retrata sua agonia sem nada fazer? A idia do registro vlida, bem como a sua divulgao; mas humanitrio testemunhar a morte sem interferir para que os outros intervenham e acabem com aquilo?

    Novamente nos remetemos ao fato de que o retrato exclui no s o autor como todo o resto que no lhe interessa. Tanto o contexto pode ser manipulado e mesmo ignorado como o autor se exime de responsabilidade pelo que faz.

    Somente o retrato autoral no qual o retratista faz questo de identificar-se e projetar-se intelectualmente sobre a imagem delineia o propsito

  • 77

    do retrato mas acaba, assim, com sua naturalidade, j que o desejo do autor, desde o incio, impressionar e causar algum tipo de efeito.

    Soma-se a essas questes os recursos modernos de manipulao de imagens, e veremos que os retratos so to passveis de adulterao como um texto. A questo que se mantm a crena de que o suposto registro visual menos manipulvel que o escrito quando somente as dificuldades tcnicas e o contexto que limitam (ou no) a adulterao do documento. Milhares de arquivos de governos anteriores, por exemplo, foram queimados. Quem relatou sua destruio supe, mas no sabe ao certo, o que continham. Poderiam ser relatos de tortura como despachos inteis que enchiam gavetas e estantes. A incerteza gerar tanto a desconfiana quanto o descaso, e daqui h algum tempo eles simplesmente no tero existido porque no foram vistos. Por outro lado, se for preservada a memria de sua existncia ainda que se desconhea por completo seu contedo ele ser a prova irrefutvel de que se pretendia esconder algo ou seja, a teoria da conspirao se provar pela ausncia da prova!

    Assim, as imagens precisam ser lidas de modo absolutamente crtico, envolvendo requisitos no menos importantes e especficos que os dos materiais textuais. Como diz uma antiga parbola budista: nesse momento, uma rvore caiu no meio da floresta. Se voc no ouviu ou viu, no pode afirmar que ela caiu; e pelos mesmos motivos, pode-se mesmo afirmar que ela no caiu? A estao das cerejeiras linda, mas nunca uma igual

    outra.

  • 78

  • 79

    As razes filosficas da China contempornea

    A concepo dialtica do mundo ensina-nos sobretudo a observar e a analisar o movimento das contradies nos diferentes fenmenos, bem como a determinar, na base

    dessa anlise, os mtodos prprios para resolver tais contradies. Eis porque a compreenso concreta da lei

    da contradio inerente aos fenmenos duma importncia extrema para ns. [] Os comunistas

    chineses devem assimilar esse mtodo, pois s assim podero analisar corretamente a histria e a situao

    atual da revoluo chinesa, e deduzir-lhe as perspectivas. Maozedong

    O pensamento chins carrega consigo, mesmo nos dias de hoje, sua herana milenar. Desde a antiguidade, os chineses buscam um Dao (ou Tao, numa grafia mais comum) que possa dar ordem ao mundo, a sociedade, e ao indivduo. Dao significa algo como mtodo, via ou caminho, que estabelece os procedimentos, as normas e as teorias a serem utilizadas para administrar as coisas do mundo - desde a sociedade e o cotidiano at mesmo a poltica ou as cincias. No entanto, alguns elementos so comuns a todas as escolas de pensamento chinesas que propuseram alguma forma de Dao.

    Um deles, por exemplo, o sistema de oposio complementar, conhecido como yin-yang, que poderamos traduzir de modo bastante adequado como

  • 80

    dialtica. Por ser mal conhecido no ocidente, o sistema yin-yang foi entendido muitas vezes de modo grosseiro, como se fosse uma simples classificao arbitrria e dualista das coisas. Para se ter uma idia, quando o marxismo chegou China, um dos fatores de atrao para esta teoria foi o fato dela propor um sistema (a dialtica do materialismo histrico) que os chineses entendiam ser muito parecido com o seu yin-yang, mas criado dentro de outro ambiente, o ocidental, o que lhe trazia vantagens substanciais em relao s cincias europias e ao desejo chins de modernizar-se. O sistema yin-yang prope, na verdade, que uma coisa est em oposio a outra, e da contraposio das duas pode surgir uma nova, ou mesmo a alternncia. Assim, nada no pensamento chins , em absoluto as coisas esto de certa maneira, em dado momento.

    Outro conceito fundamental o de eficcia. Todo e qualquer Dao precisa propor meios para se efetivar, seno falho. o potencial de realizao, ou propenso (shi), que torna um Dao mais bem sucedido do que outros. Neste caso, as escolas filosficas clssicas chinesas diferiam quanto ao expediente: os confucionistas acreditavam que a eficcia residida no estudo da cultura; os legistas, na arte de legislar e governar; os mostas, na prtica do comunitarismo e de amor universal; os daostas, na arte do bem viver; e os estrategistas, na tcnica das artimanhas e estratagemas. O marxismo foi considerado um Dao vlido, pois havia demonstrado sua eficcia na Rssia, em 1917. Seu potencial (shi) residia na cientificidade ocidental presente em sua elaborao, o que o tornava um meio atraente de modernizar a China

  • 81

    do incio do sculo 20. No entanto, mesmo sua implantao foi permeada de conflitos e permutas com o pensamento tradicional, transformando-o num novo tipo de comunismo, cuja incgnita intelectual desafia ao mundo com sua originalidade. Ns podemos agora concluir com poucas palavras. A lei da contradio inerente aos fenmenos, quer dizer, a lei

    da unidade dos contrrios, a lei fundamental da Natureza e da sociedade, por consequncia a lei

    fundamental do pensamento. Ela est em oposio concepo metafsica do mundo. A descoberta dessa lei

    foi uma grande revoluo na histria do pensamento humano. Segundo o ponto de vista do materialismo

    dialtico, a contradio existe em todos os processos dos fenmenos objetivos, bem como no pensamento

    subjetivo, e penetra todos os processos, desde o incio at ao fim; nisso que reside a universalidade e o

    carter absoluto da contradio. Cada contradio e cada um dos seus aspectos tm as suas particularidades; nisso que reside a particularidade e o carter relativo

    da contradio. Em condies determinadas, h identidade dos contrrios, eles podem pois coexistir na mesma unidade e transformar-se um no outro; nisso

    igualmente que reside a particularidade e o carter relativo da contradio. Contudo, a luta dos contrrios ininterrupta, prossegue tanto durante a sua coexistncia

    como no momento da sua converso recproca, momento em que se manifesta com uma evidncia

    particular. De novo nisso que reside a universalidade e o carter absoluto da contradio.

    Maozedong

  • 82

  • 83

    A China em Gerndio

    A auto-satisfao inimiga do estudo. Se queremos realmente aprender alguma coisa, devemos comear por libertar-nos disso. Em relao a ns prprios devemos

    ser "insaciveis na aprendizagem" e em relao aos outros, "insaciveis no ensino"

    Maozedong

    Mestre aquele que, por meio do antigo, descobre o novo

    Confcio

    Maozedong j sabia que a China no pode ser reinventada do zero o prprio fato dela continuar sendo China mostra isso. O que causa apreenso que China encontraremos pela frente. Todavia, somente uma abjeta e total ignorncia sobre o passado da China, em relao ao mundo, poderia causar tanto temor. Como afirmou Kang Yuwei, o mundo do futuro ser globalizado talvez no como ele pretendia, e mais difcil ainda saber como ele achou isso nas Primaveras e Outonos. No entanto, desde antigamente, a China j produzia culturas e tecnologias para o mundo; sua atuao no mercado fosse pela seda ou pela porcelana influenciava diretamente as economias euro-asiticas.

    No se trata de afirmar que esta hegemonia seria perene ou ser retomada; a questo que a fora de trabalho chinesa, aliada ao seu projeto social de educar para civilizar (a grande herana confucionista) a tornaro, indubitavelmente, uma potncia como

  • 84

    sempre foi, com rara excees temporais. A miragem causada pela depresso ps-imperial iludiu o ocidente sobre a fraqueza da China. O conflito em torno das doutrinas ocidentalizantes convenceu ainda mais os experts de que a China seria reformulada como um pas de 3 mundo. No entanto, a abnegao desta civilizao, consolidada em sua herana intelectual e suas tradies, fez-na retomar um nvel de crescimento impactante e influente no planeta.

    J sabemos, as hegemonias passam: Roma uma sombra de seu passado, a Inglaterra e Espanha perderam seus imprios, ento provvel que a China voltar a ter suas crises daqui a um ou dois sculos. A questo, contudo, que no se pode menosprez-la. A China um continuum de um povo gigantesco, que se articula em torno de seus ritos, o velho e bom Li confucionista, que sua cultura. A China no foi, nem , nem ser. Talvez o melhor tempo que defina a China o horrvel e pouco sonoro gerndio, pavor dos trabalhos acadmicos de hoje com sua presena insuportvel e repetitiva, mas que guarda um sentido profundo e preciso: ele denomina o ato sem fim, que est acontecendo, que foi e que continuar a se desenrolar. A China tem esta continuidade indiscutvel, sobre a qual especulamos suas manifestaes mais prximas. Surpreender-se, porm, com seu reerguimento, de uma ignorncia preocupante.

    Napoleo j sabia: quando a China se levantar, o mundo inteiro tremer. A China, estando grande...; quando foi isso? O tempo todo!

    S os tolos e os romnticos se agarram ao pretrito mais-que-perfeito.

  • 85

    Os antigos relutavam em falar, pois temiam que suas

    palavras no correspondessem aos seus atos Confcio