o enigma das musas

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O ENIGMA DAS MUSAS Evany Nascimento 1 Figura 1- As quatro Musas: Callíope, Euterpe, Melpômene e Thalía. Fotos: Evany Nascimento, outubro de 2012. Quem visita hoje o Teatro Amazonas, o ícone da Belle Époque Manauara, no coração simbólico do Centro Histórico de Manaus, encontra em seus jardins quatro esculturas femininas. São peças em ferro, sem identificação (visível) na peça de autoria ou fundição, provavelmente trazidas da França, nesse período do final do século XIX e início do século XX. As quatro esculturas (Figura 1) apresentam uma placa dourada com letras pretas e bordas florais que as identifica como Callíope 1 Arte-educadora e pesquisadora do patrimônio e arte pública em Manaus. Doutoranda em Design, PUC-Rio. Bolsista da FAPEAM.

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Texto sobre as percepções a partir de postais antigos da cidade e o enigma de obras que desaparecem.

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Page 1: O Enigma das Musas

O ENIGMA DAS MUSAS

Evany Nascimento1

Figura 1- As quatro Musas: Callíope, Euterpe, Melpômene e Thalía. Fotos: Evany Nascimento, outubro de 2012.

Quem visita hoje o Teatro Amazonas, o ícone da Belle Époque Manauara, no coração simbólico do Centro Histórico de Manaus, encontra em seus jardins quatro esculturas femininas. São peças em ferro, sem identificação (visível) na peça de autoria ou fundição, provavelmente trazidas da França, nesse período do final do século XIX e início do século XX.

As quatro esculturas (Figura 1) apresentam uma placa dourada com letras pretas e bordas florais que as identifica como Callíope (Musa da Poesia Épica) e Euterpe (Musa da Música), nos jardins frontais e Melpômene (Musa da Tragédia) e Thalía (Musa da Comédia), nos jardins de fundo do Teatro. Mas estas não eram as únicas existentes em espaços públicos da cidade. Você sabia que existiam mais esculturas iguais à estas do Teatro(figura 1)? Durante o período áureo do ciclo da borracha, muitas esculturas foram trazidas da Europa para adornar praças e

1 Arte-educadora e pesquisadora do patrimônio e arte pública em Manaus. Doutoranda em Design, PUC-Rio. Bolsista da FAPEAM.

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prédios públicos e privados da capital amazonense. Muitas dessas peças foram transferidas outras simplesmente desapareceram. Desvendar esse mistério requer uma boa pesquisa em arquivos antigos, periódicos, livros, postais...

Quanto aos postais posso apresentar algumas informações. Os postais representam a imagem de um tempo e espaço que se quer guardar e eternizar, por se considerar apreciável. As cidades tem sempre seus postais para que os visitantes levem dela alguma recordação, mesmo hoje, quando a fotografia tirada dos celulares é o registro mais instantâneo de viagens.

Manaus teve vários momentos de produção de postais que ainda podem ser encontrados em algumas bancas de revista do Centro da cidade ou nos acervos de colecionadores e instituições. Em 1902 uma série de postais em preto e branco foi lançada mostrando a Manaus da Belle Époque, suas ruas, construções, pessoas... Passado esse período, os postais da Edição A Favorita, dos anos de 1960, traziam imagens coloridas de praças e alguns lugares da cidade, que conservava ainda no Centro os casarões do período da borracha, antes das modificações para a instalação do centro comercial. Em 1970, os postais já mostravam uma cidade com as transformações dos arranha-céus no Centro, além de alguns lugares como balneários e o encontro das águas. Nos anos 1980 e 1990, era comum encontrar postais com os prédios históricos e algumas ruas do centro comercial. Os postais da primeira década de 2000 apresentam mais o aspecto da natureza estampado, são imagens de animais, dos rios e do encontro das águas; as figuras indígenas, especialmente de mulheres indígenas com os seios à mostra, aparecem como exóticos. Da cidade vê-se o ícone de sempre: o Teatro Amazonas e alguns outros prédios públicos. Mais recentemente, depois da reinauguração da Praça Heliodoro Balbi, o Governo do Estado também lançou uma coleção de postais com as imagens da praça, do Palacete Provincial e de todas as esculturas que estão neste espaço.

Figura 2- Postal A Favorita - Praça Antônio Bittencourt (ou Praça do Congresso), acervo particular.

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Quanto às imagens antigas, neste postal (Figura 2) por exemplo, vemos o traçado da Praça Antônio Bittencourt, com as duas vias da Avenida Eduardo Ribeiro passando ao lado do Monumento à Nossa Senhora da Conceição. Vários bancos na praça, mais as árvores pequenas e os postes de iluminação, dão um tom agradável de cidade pequena. Do lado esquerdo do postal ainda é possível ver um antigo casarão ou palacete, como eram chamados no período da borracha. Este palacete deu lugar a um dos arranha-céus que compõe a paisagem atual do Centro Histórico de Manaus. Além destes detalhes, o que nos interessa para este texto é a figura no canto direto do postal: uma escultura feminina. Mesmo que, vista de costas, ela apresenta semelhança com a escultura que encontramos nos jardins frontais do Teatro Amazonas, denominada de Euterpe, a Musa da Música (Figura 3).

A imagem do postal é uma vista do Instituto de Educação – IEA. Mas esta escultura há muito que foi retirada. Quando? Isso continua um mistério. É possível também que existissem outras esculturas iguais a essa, inclusive uma delas no Teatro Amazonas. Mas se o Teatro já tinha a sua escultura, onde foi parar esta do Instituto de Educação? Mais uma provocação: se esta escultura estava em um dos lados do muro do Instituto, é provável que existisse outra compondo o equilíbrio do outro lado, possivelmente a escultura que recebe a identificação de Callíope, a Musa da Poesia Épica (Figura 4). Por que essa suposição? Porque ambas apresentam características semelhantes, como o panejamento em estilo panos molhados; a mesma posição, equilibrando o peso na perna esquerda; e os objetos em evidência, uma segura uma tabuleta e a outra uma lira, atributos que as caracterizam como musas, segundo a mitologia grega. Mas... e quanto às outras esculturas dos jardins posteriores do Teatro? Já estavam lá? São mais raros os postais antigos que mostram a parte dos fundos do Teatro Amazonas e o seu jardim. Então, neste momento não é possível afirmar se elas já formavam o conjunto das quatro musas como se vê atualmente. Mais uma vez recorre-se aos postais antigos para uma boa surpresa.

Imagem 5 – Palácio Rio Negro – Postal 1973 – acervo particular

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Este postal (Imagem 5) faz parte de um conjunto de mini postais identificados como “Mini sanfona Mercator – Manaus/AM”, de 1973 “by Gráficos Brunner Ltda”, impresso em São Paulo. Ao todo são 20 mini postais com imagens de Manaus, privilegiando mais seu aspecto urbano, praças, prédios públicos, porto, embora com alguns postais de balneários e do encontro das águas. Traz também uma vista aérea do Estádio Vivaldo Lima ainda em construção, hoje demolido para a construção da Arena da Amazônia, projeto para a Copa do Mundo de Futebol de 2014.

No postal (Imagem 5) é possível ver o Palácio Rio Negro em tom de amarelo desbotado e com sinais visíveis de deterioração em toda a extensão da fachada. Vê-se que as esculturas do Índio e Índia, que adornam a entrada do prédio já estavam colocadas lá. Este luxuoso palácio foi morada de um rico comerciante alemão, chamado Waldemar Sholz, no período áureo do ciclo da borracha. Também é possível perceber duas outras esculturas no segundo piso da fachada do prédio (Figura 6). Essas esculturas já aparecem na fachada do palácio no postal de 1939 (In: Álbum do Amazonas). Ainda que distantes pode-se perceber que são semelhantes às duas esculturas encontradas nos jardins posteriores do Teatro Amazonas, denominadas de Meupômene, Musa da Tragédia e Thalía, Musa da Comédia (Figura 7).

E o mistério continua. Podemos confiar na imagem de um postal? Se podemos, então onde foram parar essas esculturas? O Instituto de Educação do Amazonas é um prédio público, portanto a escultura vista do lado direito no postal (Figura 2) é patrimônio público também. O Palácio Rio Negro passou a compor os bens do Estado em 1918 e foi tombado pelo Estado em 1980. Cabe então uma investigação mais apurada sobre esses descaminhos das três esculturas que vimos nos postais. Um trabalho minucioso que pode trazer muitas surpresas.

Os postais trazem essa memória pela imagem. A mudança visível na frente do espectador. O tempo presente e sua distância do tempo passado estampado nas cores e elementos gráficos. Um pedaço de papel e uma história a ser lida. Lembrei-me de Maurília, a cidade dos velhos cartões-postais de Ítalo Calvino... só o tempo é que dá beleza às imagens estampadas e “mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi”... Ainda assim, “os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília”... ou se chamava Manáos.

Evany Nascimento,

18 de outubro de 2012.

[email protected]

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Detalhes das imagens.

Figura 3 - Escultura do Teatro Amazonas (2012) e Escultura do postal A Favorita (1960).

Figura 4 – Callíope e Euterpe. Fotos: Evany Nascimento.

Figura 6 – Esculturas na fachada do Palácio Rio Negro, detalhe de postal de 1973.

Figura 7 - Meupômene e Thalía. Fotos: Evany Nascimento