o endireita

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Page 1: O Endireita
Page 2: O Endireita

DESIGN:

DAVID RAFACHINHO

LEITURA REVISTA POR:

PEDRO DINIS CORREIA

EM CONFORMIDADE COM

O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

Page 3: O Endireita

PREFÁCIO

Quando, pelos bons ofícios da minha filha Mónica, me chegou

o convite para escrever este prefácio, a minha reação foi

dizer logo que sim.

Primeiro, pelo nome do autor do livro. Não sou amigo íntimo

de Edson Athayde, mas acompanho e admiro, há muitos anos,

o que ele fez pela publicidade em Portugal: a abordagem

completamente diferente, a capacidade de inovar, a imposição

nem sempre pacífica de conceitos criativos que abalaram

tabus.

Depois, porque a própria distribuição do livro será uma

novidade. A obra não irá para as livrarias: poderá ser lida

gratuitamente pela Internet (e eu tenho um interesse crescente,

pessoal e profissional pela Internet). Será, além disso, a

primeira, ou das primeiras, a ser publicada, em Portugal e no

Brasil, respeitando as regras do novo Acordo Ortográfico (e

eu sou a favor do novo Acordo Ortográfico).

Entendi, no entanto, que não devia deixar-me transportar

pelo meu impulso inicial sem, como manda a mais elementar

prudência, ler os contos que constituem o livro.

Li e gostei. Edson Athayde consegue dizer muito em poucas

palavras. Os seus contos são mais fábulas do que histórias

com princípio meio e fim. Procura tirar uma conclusão, uma

moral, por vezes através da citação de provérbios. Os seus

personagens, do Poema Feliz ao endireita, do anacrónico ao

rei Inconstitucional, de Raimundo ao rapaz sem braços nem

pernas, representam, de modos diferentes, a busca de algo

que não se encontra, a falsidade do êxito, o desgosto dos

amores de um dia.

Frustração? Não diria tanto. Talvez o desengano, a

impossibilidade de prolongar o que é bom, a dificuldade de

arrostar com o peso das multidões, de lutar contra as

convenções. Mas também a vivência plena de momentos

isolados, mesmo quando se sabe de antemão que a seguir

virá, inevitavelmente, a desgraça, a solidão, o vazio.

Um livro que se lê depressa, ao ritmo de um mundo cada vez

mais fragmentado pelo abuso das novas tecnologias e mais

devastado pelos desequilíbrios da globalização. Mas um livro

que, se quisermos deter-nos um pouco sobre o significado

de cada um dos contos, nos obriga a pensar sobre o que

somos e para que servimos. Para chegarmos à conclusão

de que somos muito pouco e que o mais provável é que não

sirvamos para nada.

Francisco Pinto Balsemão

Page 4: O Endireita
Page 5: O Endireita

ZERO

“Quem é que tu pensas que és?”

Sempre que eu ouço essa pergunta tremo nas bases.

“Quem é que tu pensas que és?”

Nunca sei se a pergunta é a sério ou uma mera figura de

retórica.

“Quem é que tu pensas que és?”

Na dúvida, minto. Digo que penso que sou o que não sou.

E depois passo a ser.

É por isso que já fui mergulhador nas Antilhas, mensageiro

na Índia, piloto da Nasa.

Já fui serial killer em Detroit, pop star na Cochinchina, bombeiro,

chulo, Bispo de Braga.

Já fui diplomata depois de uma crise matrimonial com uma

dona de bar no Arkansas.

Fiz carreira, cheguei a cônsul na Jamaica.

Mas, um dia, numa discussão de trânsito, alguém me

perguntou quem eu pensava que era e passei a ser

investigador científico renomado.

Estava a pesquisar uma misteriosa virose que atacava uma

minoria étnica, quando o meu irritadiço chefe me obrigou a

dizer que eu era um palhaço.

Desde então segui a vida num circo, onde as crianças vinham

rir das minhas piadas.

Viajei meio mundo, fui à Rússia, ao Ceilão, à ex-Jugoslávia.

Casei com a mulher barbada e tive três filhos: um trapezista,

um mágico e um anão.

Mais uns anos de trabalho e conseguiria dinheiro para comprar

a minha própria tenda.

Até que um dia, o domador, numa inexplicável crise de ciúmes

pelo leão, fez-me a pergunta fatídica: “Quem é que tu pensas

que és?”

E então eu respondi que era apenas um publicitário com

pouco menos de quarenta anos, cliente especial de uns dois

ou três bancos, que adora filmes, livros, i-pods e coisas

moderninhas, que não sabe se acredita em Deus, mas que

tem a certeza que Deus acredita nele, que tem poucos amigos

reais e muitos imaginários, que tem medo de chegar ao fim

da vida sem ter feito nada que valha realmente a pena

esquecer, que tem a mania de que é uma daquelas pessoas

sensíveis que a gente encontra nos bares ou naquelas festas

de casamento em que não conhecemos os noivos e que

costuma dizer que o mundo é duro, injusto e cruel, enquanto

pede mais um gin tónico com um ar superior, o tipo de gente

que não dá para confiar, pois ao mais pequeno descuido

apanha a sua alma, arranca-lhe os olhos, e aproveita-se dela

para escrever um conto sem lhe pagar mil contos.

E, o pior, é que dessa vez tenho a impressão de que eu disse

a verdade.

Page 6: O Endireita
Page 7: O Endireita

UM

Como um lampião num poste, ele era anacrónico. Tinha uma

timidez intrínseca, uma desesperança anímica e um ar

levemente cómico. Ela, ao contrário, já nasceu em berço

esplêndido, boca, lábios encarnados, pernas, coxas de

marquesa, seios fartos, generosos, como apóstolos numa

santa ceia.

Ele tropeçava em vírgulas, era gago e muito feio. Apanhava

na escola dos miúdos, dos valentes encartados, seis gonçalos,

vários nunos e um talvez chamado pedro. Ela dava certo em

tudo, era a musa do recreio, frequentava os sonhos lúbricos

de todos os caixa d'óculos, onde sempre aparecia nua e lívida,

enigmática, uma minimonalisa.

Como um velho cromo do jovem Eusébio, ele era anacrónico.

Fazia ilusionismo no intervalo para um escasso público: duas

professoras gordas, um amigo cego e outro surdo.

Transformava lenços em flores, tirava pombas da cartola,

sem receber um simples aplauso, um elogio, uma gala. Houdini

desencantado, deixou-se prender aos livros, gostava de

Pessoa, de Eça, de O'Neill mesmo sem perceber palavra.

Ela, ao contrário, era fútil, inconsequente. Miúda rica, filha

única de um demente, estava mal acostumada.

Encontraram-se, por acaso, numa ida ao circo. Ela de vestido

e brinco, simplesmente um arraso. Ele quase teve um treco

só de ver tal epifania, meio metro de beleza, tão rara quanto

estranha. E jurou amor para sempre, sem nem saber seu

nome. Mas sabendo lá por dentro que o que é do homem o

bicho não come.

Ela disfarçou o incómodo, sempre impávida e serena, assistiu

ao espetáculo com a altivez de uma sereia. Aproveitaram o

entreato para ir comprar farturas. Ele num rompante de

coragem aproximou-se da medusa. Tocou seu lindo braço e

sorriu com o aparelho. Ela desceu do pedestal, permitiu tal

investida. Apesar de tão miúdos, apaixonaram-se num segundo.

Deliraram no espaço, esqueceram o pobre mundo.

Ele era anacrónico. Ela era estupenda. Ele era desolado. Ela

era uma encomenda. Ele era execrado. Ela era um pesadelo.

Encantados que estavam nem toparam o grande pânico.

Pipocas voaram pelo ar, gritos, corre-corre súbito. Fugia

lépido um leão, solto, livre, esfomeado. Terror total na multidão.

Enquanto eles parados como um quadro, freeze frame da

paixão.

A fera aproximou-se rápido, pronta para dar o bote, engolir

a rapariga, estraçalhar a princesinha e arrotar seu laçarote.

Ele num gesto de magia, improvável Harry Potter, paralisou

a grande besta. Valente como nunca, agarrou a sua cauda

e rodou no ar o mau leão, provocando a sua morte afogado

num tufão. Raios e coriscos, cobras e lagartos, grande

tempestade, chovia por todos os lados. Ele levitou incrédulo.

Ela desmaiou de medo. Perderam-se de vista ia a tormenta

a meio.

Nunca mais se encontraram. E os anos se passaram. Ele

seguiu com aquele circo, tal Mandrake redivivo, deu a volta

ao planeta, só não voltou, no grande giro, a passar pela

cidade. Dela quis o destino pouco mais que o medonho.

Formou-se em contabilidade. Casou, pariu, enviuvou. Sem

esquecer aquela noite do sorriso, da fera e do sonho. De

como ela era tão menina. Que ele tinha um aparelho. Que

ela era tão bonita. Que ele era grande, bobo e feio. Mas, o

que é irónico, foi o único que ela amou. Ele que era anacrónico.

Como um trenó no inverno. Como uma pálida polaroid. Como

um conto de amor eterno.

Page 8: O Endireita

DOIS

Inconstitucional era um rei triste. Disputava com o seu irmão

Paralelepípedo o trono do País das Palavras. Era uma refrega

sangrenta. Com um incontável número de línguas mortas em

combate. Houve mesmo palavras que de tão estropiadas

caíram em desuso. E crescia cada vez mais, naquele

empobrecido país, a quantidade de blasfémias e termos

chulos.

Inconstitucional preocupava-se. Paralelepípedo perdera a

última batalha mas não a guerra. Paralelepípedo era duro

como uma pedra. E, junto com a sua amante chamada

Quimera, a despeitada marquesa careca, tramava o seu

regresso ao poder com um plano de guerrilhas, executado

por um grupo de mercenários chamados Gírias. Segundo

rumores, o Reino dos Números ajudava-o de maneira

camuflada, infiltrando zeros, disfarçados de ós, em palavras

dúbias como Orangotangos e Quiproquós.

Os números desejavam destruir o País das Palavras. Eram

invejosos. Sempre foram ricos, somavam e multiplicavam

cifras ao infinito, mas sabiam que as palavras quando queriam

eram muito mais simpáticas. Os números odiavam

principalmente o Exército das Poesias, pois sabiam que era

o mais poderoso. É que as Poesias usavam armas ardilosas,

eram difíceis de atacar, ao colocar as palavras foram do

habitual contexto. Para ter uma ideia, uma vez os números

despejaram uma carga na simplória palavra «cesto», sem

saber que fazia parte de um poema de um desconhecido

escritor bissexto. Quando perceberam já era tarde, o «cesto»

afinal representava o próprio universo, num sentido, é claro,

pouco concreto. Não foram poucos os pares e os ímpares

que no ataque desapareceram, como que engolidos por

buracos negros.

Com tantos problemas, Inconstitucional sentia que algo estava

errado. Qual seria o futuro do seu país? Como não poderia

deixar de ser, ele era um rei letrado. Mas o que aprendera

no passado já de nada servia. Os tempos eram outros.

Recordava-se amargurado de antigos aliados. Suspirava de

saudades por Aristóteles e Platão. Os gregos, esses sim, é

que eram bons. Mas o que fazer num tempo em que

dominavam os fundamentalistas do Calão, uma estranha

religião, um tempo em que nada mais era estupendo, glorioso,

magnífico, no máximo era giro, era fixe. E o pior,

Inconstitucional já não tinha mais sequer adjetivos bons para

expressar o tamanho da sua tristeza. Se ainda mantinha a

realeza era porque os adjuntos, adverbiais e nominais,

ajudavam. Mas eram cada vez maiores os problemas de

conjugação.

Inconstitucional estava diante do espelho a refletir,

metaforicamente falando, sobre a situação, quando o palácio

foi invadido por uma horda de ícones chineses, liderados por

um indecifrável anagrama alemão. Inconstitucional quis resistir

mas fora abandonado por todos. Só lhe restava a fidelidade

da sua secreta amada Esperanto, mas que era, obviamente,

uma língua inútil. Desesperado, ainda tentou escrever uma

carta de suicida mas lhe faltaram palavras. E assim morreu

Inconstitucional. Ao lado do seu corpo foi encontrado apenas

um papel com o seu nome, umas aspas e um ponto final.

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Page 10: O Endireita

TRÊS

Não tinha coração. Nasceu sem. Não que isso fosse um

problema, uma crise no sistema, uma questão por aí além.

Não tinha coração. E isso era até uma vantagem, sublime

malandragem, tendo em vista que quem tem coração costuma

ser bobo. E ele, que não era nenhum menino de coro, nasceu

para se dar bem.

Como não tinha coração, também não tinha sangue, como

as santas, as baratas e as vamps. Mas tinha um propósito

na vida, seria o dono do mundo, ou não se chamava Raimundo,

o que além de uma rima, era uma solução. Viveu sem

escrúpulos, roubou doces aos miúdos, vendeu a mãe várias

vezes mas nunca entregou. Seguia à risca o seu plano

selvagem, para tudo tinha coragem, até que um dia, daqueles

normais em que apetece dar banho ao cão ou visitar a tia,

Raimundo encontrou Maria Rita (ou Rita Maria, nunca soube

ao certo), doce menina dos olhos verdes e sorriso aberto.

Rita Maria (ou Maria Rita) tinha ido à cidade fazer uma

promessa, pois sofria de uma terrível mazela: amava ao

próximo como a si mesma. O problema é que o próximo era

sempre o que estava mais perto, fosse branco, preto ou

amarelo, sem nenhuma discriminação de idade, sexo ou

credo. Maria Rita com tanto amor para dar, recebia muito

pouco. Sofria com aquele amor sem morada, sem nome, sem

nexo, sem cara. Daí ter feito uma promessa tão rara: se

pudesse não amar algum homem, fosse ele um político, um

mendigo ou artista, subiria o Evereste de joelhos.

Raimundo, reparou em Rita Maria na igreja e apaixonou-se

à primeira vista. Para quem não tinha coração, aquilo era

muito, um despautério, um absurdo. Daí que Raimundo sentiu

uma dor no peito. Era um coração que ali nascia meio que

sem jeito. Quanto mais ele mirava Maria Rita mais o órgão

crescia, crescia, crescia. Rita Maria, demorou mas deu pelo

Raimundo, o outrora dono do mundo, agora um simples mortal.

Como por um milagre, não se apaixonou. Pelo contrário, sentiu

escárnio, viu em Raimundo um pobre, um lixo, um chulo.

Raimundo, apaixonado, perdeu o rumo, perdeu o chão, perdeu

tudo. Passou a andar pelas ruas como um cão, a beber, a

fazer poesias bobocas, típicas de um idiota que amava pela

primeira vez. Maria Rita sabia daquele amor impossível e se

ria por dentro do amante falhado, sem eira nem beira, vestido

de trapos, que fazia vénias quando ela passava em direção

da padaria, da farmácia ou da missa.

Em pouco tempo o coração de Raimundo já estava do tamanho

de uma bomba, daquelas de cartoon, tipo assim redonda,

com um pavio aceso na ponta, prestes a rebentar. Rita Maria

sabia da triste história e alimentava a paródia, fazia olhinhos

sempre que o encontrava, mas depois travava qualquer

investida. Várias foram as vezes em que na tasca a sacripanta

entrou para tripudiar do cretino, que chorava aos seus pés

como um Deus menino, enquanto ela, indiferente, bebia uma

Fanta.

Page 11: O Endireita

Depois de uns tempos e de uns ventos de monção, Raimundo

não aguentou e a bomba do seu coração estoirou, voando

pedaços de paixão para todos os lados, emporcalhando

jardins, muros, telhados. Raimundo morreu num instante,

desprezado enquanto amante, mas misteriosamente feliz.

Como todos os apaixonados, mesmo os renegados, Raimundo

teve, por um triz, a sorte madrasta de saber para que servia

um coração de verdade. E Maria Rita, na sua sublime maldade,

aquela que amava a todos menos um, decidiu, um bocado

na pressa, pagar a sua promessa, rumando para o Nepal.

Mal lá chegou, apaixonou-se por um monge budista, chamado

Ming, meio santo, meio autista, que diziam as más-línguas

tinha sido amante do Sting. O monge, com um certo azedume,

desprezou solenemente a donzela. Que morreu como uma

cadela, congelada de joelhos bem pertinho do cume. O monge,

não sem uma suspeita alegria, no lugar onde Rita Maria jazia,

tentou sem sucesso plantar um arvoredo. De Raimundo, o

que queria ser dono do mundo, ninguém guardou memória.

Mas fica a mensagem da sua história: quem tem coração,

tem medo.

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Page 13: O Endireita

QUATRO

O rapaz sem braços e sem pernas queria nadar. Sonhava

em atravessar o Canal da Mancha. Queria mesmo bater o

recorde mundial dessa travessia. E por isso ele podia ser

visto pelas manhãs nas margens do canal a passear na sua

cadeira de rodas prateada. Era nesses passeios que ele

treinava. Dava braçadas ilusórias contra ondas irreais. Não

tinha braços, não tinha pernas, mas tinha sonhos.

O rapaz não tinha pais, parentes, descendentes. A única

pessoa que algum dia vi com ele foi a sua enfermeira, gorda

como uma baleia. Era ela que empurrava, de cá para lá, de

lá para cá, a sua cadeira. Gostava de levá-lo para passear

no canal por causa das gaivotas e dos ventos. Havia lido,

nuns quaisquer documentos, que os espaços abertos

contribuíam para a tranquilidade de uma alma sofrida. Mal

sabia das intenções secretas do pobre rapaz. De qualquer

maneira, pensava, «passear mal não faz.» A enfermeira, além

de gorda, também se achava muito sabida.

Passados alguns anos, o rapaz sem braços e sem pernas já

era um atleta. Nadara milhares de quilómetros dentro da sua

cabeça. Ganhara medalhas de ouro, prata e bronze, todas

atribuídas por um juiz que existia apenas em seu cérebro. E,

por mais que pareça absurdo, dentro do seu ranking etéreo,

ele ocupava o primeiro lugar do mundo.

Um belo dia, o rapaz sem braços e sem pernas cansou-se

da ilusão. Se ele queria atravessar o canal, teria que cair na

água, sair do chão. Faria isto de qualquer maneira, contra

tudo, contra todos, contra a enfermeira. Ele não tinha braços,

nem pernas, mas era um homem duro. E depois de tantos

anos de treino, sentia-se seguro. Conhecia cada palmo da

Mancha, sabia que se o seu desejo fosse verdadeiro, se a

sua vontade fosse muita, podia atravessar o canal e ser

recebido na outra margem com uma grande festança. E então

não seria mais o rapaz que braços e pernas não tinha, seria

um herói nacional, mundial, interplanetário. Dedicaria a vitória

a todos os que ultrapassaram barreiras algum dia. E mostraria

que, mesmo sem metade do corpo, estava no páreo.

A enfermeira nem viu quando o rapaz, a utilizar apenas a

força da mente, soltou o travão da cadeira, que saiu ladeira

abaixo em desabalada carreira. Não demorou a cair na água.

E então o rapaz sem braços e sem pernas descobriu o que

era um mergulho de verdade. Sentiu as ondas a acariciarem-

-lhe o corpo, a deixarem-no louco. Nesse momento ele tornou-

-se um puro de espírito, um ser sem vaidade. Riu, sorriu,

gargalhou. O seu sonho mais secreto tornara-se verdade.

Foi aí que o rapaz deixou de ser ele mesmo e passou a

simbolizar todos nós, a representar na sua débil estrutura os

nossos mais íntimos desejos, as nossas mais estúpidas

loucuras. Ele iria atravessar o Canal da Mancha não mais

para ganhar um prémio, para vencer uma aposta, nem porque

gosta, ele iria fazer aquilo como um santo moderno para

salvar-nos do inferno. E, pela primeira vez em décadas, parou

de chover na Mancha e os raios de um sol muito forte

iluminaram as águas.

Quem lá estava relata, talvez num exagero de prosa, que as

nuvens tornaram-se algumas azuis e outras cor-de-rosa. É

pouco provável, mas o rapaz pensa ter visto um golfinho a

indicar-lhe o caminho. E ao mover a cabeça, ao girar o tronco,

ao agitar o dorso, bendito seja, encontrou a paz necessária

para cumprir o seu destino, para sentir-se uno, para sentir-se

inteiro, para sentir-se todo.

Levaram uma semana para encontrar o seu corpo.

Page 14: O Endireita

CINCO

Eles se encontraram no tempo em que o mundo estava cheio.

Lembra-se? Naquela época havia gente por todos os lados.

Cada um era para o outro um verdadeiro emplastro. O mundo

parecia, às vezes, uma imensa Tóquio. E Tóquio havia

afundado com o peso dos japoneses.

Com o mundo tão cheio não havia privacidade. Em cada

canto da cidade, em cada casa, em cada quarto havia sempre

vinte, trinta, quarenta pessoas a disputar uns parcos

centímetros. O mundo estava cheio e eles não podiam estar

a sós nem só com o seu amor. Foi num elevador.

Nas pequenas colunas do teto, Aretha Franklin cantava.

Talvez tenha sido aquele leve toque no braço ou a maneira

dela respirar, o facto é que ele, se houvesse espaço, teria

caído para o lado no exato instante em que se apaixonou.

Com ela não foi diferente. Muitos homens já haviam passado

pela sua vida mas não como aquele. E, de repente, era como

se não houvesse mais ninguém na sua frente.

Saíram do elevador e foram para o lounge do hotel. Ao fundo,

sob a luz de um lustre cor de mel, "Garota de Ipanema" era

executada por uma pianista claramente derrotada pela vida.

Não deixava de ser irónico que uma música tão ensolarada

fosse tocada por pessoa tão sombria. Ele lhe fez um sinal

com o olhar. Ela respondeu levantando ligeiramente a pestana.

E, isso é que foi bacana, dali teriam, se possível fosse, ido

diretamente para a cama.

Mas o mundo estava cheio, lembra-se? O sexo era difícil. Só

os mais desinibidos conseguiam fazer de conta que não

estavam ali durante o ato, a serem vistos por dezenas de

completos desconhecidos. Há muito que já não havia portas.

Todos viviam como em vidros de compota, agarrados uns

nos outros e, como é óbvio, sozinhos como ninguém. Mas a

vontade era tanta que eles se amaram mesmo assim, sob o

olhar de reprovação de cinco freiras que rezavam e diziam

amém.

Depois do amor dormiram, de pé como era o costume.

Dormiram e sonharam com pradarias virgens, onde corriam

cavalos selvagens. Com nuvens fofinhas onde se podiam

deitar. Com praias desertas onde podiam rolar pela areia

como num filme americano antigo, daqueles que passam de

madrugada na televisão. Mas a verdade é que não, tudo

aquilo era apenas sonhos.

Quando acordaram, já trinta pessoas reclamavam para que

eles fossem um pouco mais para o lado, pois queriam passar.

Ela ainda pensou que ele iria agarrar na sua mão e tentar

fugir dali, correndo contra a multidão. Ele, um espírito prático,

despediu-se em silêncio, deixando-se levar pela corrente. Ela

chorou desesperada enquanto ele sumia no meio daquele

turbilhão de gente. E pensou, horas depois, resignada, que

certa estava a sua avó que sempre que sempre que podia

dizia "minha filha, antes só do que mal acompanhada."

Page 15: O Endireita

SEIS

O cidadão anónimo por acaso tinha um nome e uma morada

e um BI. Era anónimo, mas era feliz. Nunca tinha aparecido

na TV, nem respondido aos inquéritos dos jornais sobre a

incrível moda dos gelados de banana, nem mandado SMS

para os concursos vários que dão bilhetes para festivais de

rock de Verão ou elegem a rapariga mais bonita do quarteirão.

O cidadão anónimo, além de ser anónimo e feliz, cultivava

o saudável hábito da alienação.

Não lia Jornais, nem revistas, nem livros. Não que fosse

analfabeto, pelo contrário, havia aprendido a ler muito cedo,

apenas não queria se chatear com o que quer que fosse,

nem com as notícias sobre golfinhos enfermos nem com os

comentários de políticos torpes. Não tinha mulher, nem filhos,

tinha um cão, teve um gato, queria ter um papagaio e isso

já era o bastante, tendo em vista que o basta não precisa de

ser necessariamente muito, nem grande.

O cidadão anónimo não dava nas vistas, mais que um

personagem, ele fazia parte do cenário, objeto perdido, sem

brilho nem mácula, como urna espécie de candelabro barato

no castelo do Conde Drácula.

Até que o cidadão fez uma grande besteira ou cometeu um

ato genial ou, se calhar, mais do que banal, mas que caiu no

gosto dos media, catapultando o anónimo para o

reconhecimento geral, tornando-o no novo ídolo dos

reformados, dos miúdos rebeldes, dos betos, dos queques

e até de algumas tias. Famoso da noite para o dia, o cidadão

anónimo deixou cair a sua máscara. Afinal, tinha ideias.

Sobretudo, tinha a sua estranha visão do mundo e propostas

concretas para salvar a humanidade ou para ajudar quem

tinha problemas de estrias.

Na boleia da fama, fez um filme e gravou um CD. Participou

em anúncios, deu entrevistas na rádio, posou para fotografias

ao lado de belas modelos, simulou dois ou três romances

com algumas loiras de plantão, até que casou com uma

morena e foi de lua de mel para o Ceilão. Na volta, deparou-

-se com um dilema: na sua ausência, tendo em vista as

necessidades da assistência, outro anónimo havia sido

promovido e era o famoso da hora. O anónimo ficou uma fera,

saudoso da exclusividade de outrora, pois o outro nem era

assim tão anónimo, tendo participado quando jovem de uma

cena marada qualquer e por isso sido preso e tido a fotografia

publicada num jornal regional ali para os lados de Alenquer.

Na briga entre os dois, o público dividiu-se. Uma parte preferia

a boçalidade de um enquanto outra parte preferia a

imbecilidade do outro. A disputa durou algumas semanas,

tendo sido resolvida no dia em que em plena televisão o povo

pôde participar de uma mega eleição. O resultado foi um

empate, o que não era nenhum disparate, tendo em vista que

entre os dois venha o diabo e escolha. Coisa que foi feito em

seguida. Satanás, chamado para dar o seu voto de minerva,

preferiu o anónimo de segunda. Declarou o seu voto enquanto

príncipe das trevas, soltando fogo e vomitando pus. Claro

está que o resultado era roubado, pois nos bastidores o

vencedor já havia vendido a sua alma por três tostões e um

lugar numerado no novo estádio da Luz.

Caído em desgraça, o cidadão anónimo voltou para a sua

vidinha sem graça. Hoje anda por aí, no papel de mais um

ilustre desconhecido da praça. Parece um tipo comum, mas

só por fora. Por dentro remói um plano de vingança. E mais

cedo ou mais tarde cometerá um desatino, provocará uma

guerra.

Page 16: O Endireita

Se você ainda tem alguma, pode perder a esperança. Pode

não ser hoje, pode não ser amanhã, mas o cidadão anónimo

vai manifestar-se. Votando no partido errado, crucificando

um cristo, maltratando a manutenção de um avião, comprando

uma batalha diplomática desnecessária com o Gabão,

provocando numa feira popular um grande pânico ou

simplesmente desrespeitando as leis de trânsito. E aí, amigo,

vai ser o fim do mundo em cuecas. Pois o cidadão anónimo

pode ser invisível mas tem a marca da besta eternamente

tatuada na testa.

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Page 18: O Endireita

SETE

Se ele não entrar naquele elétrico, ele que é tão racional, tão

terra a terra, tão cético, nunca vai ver, na outra esquina, a

rapariga que vende flores embrulhadas num jornal.

Ela, tão magra, mirrada, pequenina, fugiu daquele filme do

Chaplin e jurou nunca mais voltar. A rapariga vive em câmara

lenta, sempre com um solo de piano a sublinhar os seus

gestos. Passa a vida a olhar os carros que passam, as

pessoas que passam, à espera do seu grande amor, de um

homem que lhe dê valor, mesmo sabendo que ela é muda

como uma porta, daquelas que falam com os olhos,

acreditando por todos os poros, num ardor temerário, que o

amor não é um filme falado, muito pelo contrário, que o amor

é gesto e silêncio, é um momento sublime suspenso no vento.

Se ele não entrar naquele elétrico não vai, numa obra do tal

acaso, esse sujeito tão imprevisível e tão parvo, apaixonar-

-se pela rapariga das flores. Não vai descer quatro paragens

antes da sua, voltando correndo e suando para o Terreiro do

Paço, com o coração aos saltos, esbarrando em homens

baixos e altos, que circulam pela Baixa com propósitos

desconhecidos, talvez a caminho dos empregos ou apenas

a fugir de medo, o que é normal entre aqueles que não sabem

o próprio destino.

Se ele não entrar naquele elétrico não terá motivo para,

enquanto corre debaixo da chuva fina, repassar toda a vida.

Não lembrará o primeiro beijo, nem a última noite de desejo,

nem o vazio da manhã seguinte, o cheiro de cigarro no quarto,

nem aquela dor no peito, espécie poética de enfarte, típica

de quem está sentado na beira da cama, ao lado de uma

qualquer fulana, perto de quem acaba de fazer amor mas

longe de alguém que possa chamar de amor.

Se ele não entrar naquele elétrico não vai, dali a pouco, trocar

olhares de louco com a rapariga das flores. E ela não vai por

um instante tão curto acreditar que o seu sonho absurdo

finalmente se realizou. Ela não vai seguir o movimento do

elétrico com a cabeça, esquecendo que está a atender uma

freguesa que pediu três rosas, dois lírios e um cravo, um

ramalhete que servirá de desagravo no encontro com uma

paixão antiga, do tempo em que ainda era tão menina que

nem tinha todos os dentes.

Se ele não entrar no elétrico, não poderá olhar pela janela,

nem a rapariga das flores terá vontade de se levantar e correr

atrás daqueles olhos febris, que circulam pela cidade num

veículo amarelo da Carris, nem ficará afinal sentada, assistindo

a tudo desesperada. Ela não irá agarrar, transtornada, numa

qualquer flor, nem irá ferir a sua mão nos espinhos, nem

sangrará na calçada.

Se ele não entrar no elétrico não terá motivos para sentir-se

o melhor dos homens quando, depois de correr toda a rua

Augusta, avistar do outro lado da praça aquela rapariga que

vende flores e que saiu de um filme raro da cinemateca. Nem,

por causa disso, irá saltar distraído para a frente de um

autocarro da linha Benfica-Marateca que perdeu os travões.

Não irá ser atropelado e morrer. Não irá ficar estendido na

rua, motivo de pena e escárnio de anónimos peões. Nem

terá o corpo coberto pelos jornais do dia enquanto não chega

a polícia. Nem irá emocionar-se, apesar de morto que está,

quando a rapariga depositar sobre o seu corpo todas as flores

que teria que vender naquele dia. Nem vai chorar, nem vai

sorrir quando ela se afastar e decidir regressar para a sua

velha fita. Onde ao lado do Charlot vai tentar, sem conseguir,

esquecer que um dia o seu grande amor encontrou.

Se ele não entrar no elétrico nada disso irá acontecer. E a

sua vida seguirá, sem graça, patética e vulgar, até morrer de

velho, de gripe, de sarna ou de nada.

Mas, graças a Deus, ele entrou.

Page 19: O Endireita

OITO

O seu nome é Meridional. Tem um enorme sorriso no rosto

como a dividir os polos. Meridional é negro mas ninguém

percebe. Acham que é mulato, compram gato por lebre. Ele

é lobista de um hotel da Baixa. Fica pelos cantos do lobby

o tempo todo a dizer "bom-dia". Mete conversa com franceses,

chineses, ingleses, faz-se de turista. Quem olha diz que

acabou de chegar, quando na verdade nunca foi nem há de

voltar.

O gerente põe-no louco, quer que invente histórias para daqui

a pouco. É que está a chegar um lote novo de coreanos e

Meridional tem de ser rápido. Para deixar claro, Meridional

não é vigarista. Apenas é pago para falar com turistas. Houve

um tempo em que não tinha hotel fixo, era lobista freelancer,

alugado à hora, ao tempo, ao tanque. Depois do bom dia,

Meridional conta sempre histórias de malas perdidas, de voos

calmíssimos e filhos distantes. Os viajantes ficam tranquilos

ao ouvir tal falar, e pensam: “há alguém parecido comigo

nesse mundo que está a acabar.” Meridional então simula

um ataque de tosse, pede desculpas e parte para outra.

Mas hoje Meridional está assustado. É que história para

coreanos ele nunca teve. A sua especialidade são histórias

para texanos e malteses. O gerente assobia, Meridional

desconfia e treme. Os coreanos entram pelo lobby adentro.

Entre a cruz e a caldeirinha, Meridional não hesita, improvisa.

E aos primeiros olhos puxados que esbarra, Meridional abre

a boca, solta a fala.

E conta uma história sobre uma viagem ao Evereste, no dorso

de um lhama. Fala de uma seita exótica e de um longo período

de jejum, que durou meses. E de como encontrou a chama

divina primeiro que todos os homens. E de como o seu corpo

foi elevado ao ar até onde a vista não alcança, tendo quase

sido ceifado por um misterioso avião da Lufthansa. Fala de

como depois caiu em cima de um pântano e de como passou

a vaguear pelo mundo à procura da sua tribo. Fala tudo isso

em pouco mais de um segundo e já ia estender a mão com

um ar de até mais ver quando é surpreendido com a imagem

do coreano a ajoelhar-se no chão.

E todos os coreanos em volta, ao entenderem o sinal, erguem

os braços aos céus a agradecer a dádiva recebida. E então

o mais velho dos coreanos, pelo menos duzentos anos em

cada perna, debruça-se sobre o ombro de Meridional e sopra-

-lhe no ouvido: «Mestre!».

Desde então Meridional nunca mais deu notícias. Consta que

o gerente teve um destino terrível.

Page 20: O Endireita

NOVE

O Poema Feliz era de amor. Que, é claro, rimava com a

palavra flor. Como todos os poemas felizes, era estúpido,

envergonhado, deserdado pelo próprio autor. Durante anos

viveu escondido num caderno mas, como nenhum segredo

é eterno, um dia foi descoberto por um literato que tirou o

Poema Feliz da sua aldeia e o levou para a cidade, com o

objetivo confesso de exibi-lo numa grande feira.

O Poema Feliz não era inteligente, diria mesmo que, apesar

do grande coração, tinha pouca cabeça. Confrontado com a

súbita fama, reagiu de estranha maneira. Em pouco tempo

podia ser visto acompanhado de críticos, artistas, intelectuais,

políticos e rameiras. Comprou roupas de marca, passou todas

as marcas, acreditou poder ser modelo, sem perceber que

o que hoje é belo amanhã é feio. Na boleia da fama,

frequentava os bares da moda, sem entender que os seus

novos amigos de borga, não eram amigos, não eram felizes,

eram a sua perdição.

O Poema Feliz, que fora um ingénuo, passou a beber demais,

a fumar demais, a cheirar coca. Estava sempre trémulo pelo

Bairro Alto à procura de drogas. Aos poucos o seu estilo

mudou. Esqueceu-se que era um poema. Soberbo, imaginava-

-se prosa. E nem reparou quando a flor da sua poesia murchou.

Então, porque já não tinha piada, porque já não era um poema,

porque já não era feliz, foi abandonado por todos a troco de

nada, a troco de um novo poema que abusava da letra xis e,

isso que era de mais, praticamente não tinha vogais. Daí para

a prostituição foi um pulo. Vendeu as suas rimas para um

trovador caolho e burro. As metáforas, perdeu-as nas Docas

de Alcântara, numa rusga onde uma navalha cortou do seu

corpo a palavra esperança.

O Poema agora era uma triste figura, dormia na rua a pensar,

nas noites sem Lua, em praticar um haikai. Foi quando o Lar

do Poema Abandonado o recolheu e ofereceu tratamento.

Passado um tempo, o Poema era outro. Recuperado, hoje

vive numa vila ao sul do Tejo. Mas o Poema sabe que Feliz

nunca mais. Perdeu aquele seu ar de criança, que alguns

chamavam pateta, mas que era apenas a opção de um esteta

inábil com as palavras mas cheio de amor. E quanto à sua

flor, definitivamente morreu, nunca mais germinou.

Page 21: O Endireita

DEZ

Quando acordou, ele não se sentia um homem novo, ele era

um novo homem. Literalmente. É verdade que todos os

homens são iguais, mas aquele, por destino, magia ou milagre,

ficara diferente. Não tinha mais os defeitos banais da raça,

nem tão pouco as suas reduzidas qualidades, sequer era

gente como a gente. Não era um homem de trazer por casa,

nem um daqueles que as mulheres do interior mandam

comprar na cidade.

O novo homem, para passar a sua mensagem, apareceu na

televisão. Surpreendendo todos, ele não queria poder, dinheiro

ou ouro. Não queria ser rei, presidente nem papa. Ele dizia

que não queria nada. E, como é óbvio, ninguém acreditava.

Por mais que por detrás dos seus três lindos olhos só

emanasse sinceridade.

O novo homem virou uma moda sem igual. E ele nem percebeu

que estava a ser usado, nem mesmo quando a sua imagem

apareceu numa embalagem de cereal. Até Madonna fez uma

música em sua homenagem, que resultou num clip onde ela

fazia sexo com três doninhas e um texugo selvagem.

Em pouco tempo, em todos os supermercados do planeta,

as prateleiras estavam cheias com os produtos do novo

homem: o iogurte que fazia crescer cabelos, o sabonete sem

cheiro, a pasta de dentes para banguelas, a carne que vinha

da vaca que nadava e tinha guelras, o peito do frango que

cantava tango em vez de fazer cocorocó.

O novo homem a tudo assistia sem perceber o que se passava

na realidade. O novo homem nascera para pregar a

honestidade, para defender tudo o que tinha um bom valor,

esquecendo que não era o primeiro a sofrer nas mãos dos

vendilhões do templo do senhor.

Foi então que o presidente dos Estados Unidos da América,

que não estava preparado para reconhecer a bondade,

declarou guerra. Mandou prender o novo homem para fazer

uns exames, antes que os vírus supostamente presentes no

seu sangue contaminassem o planeta.

O novo homem, que apesar de tudo continuava sem eira nem

beira, foi uma presa fácil. Ninguém lhe quis dar abrigo, pois

em relação ao presidente dos Estados Unidos o melhor é ser

amigo. O novo homem, depois de abatido, foi dissecado ao

milímetro. Não encontraram, claro, nada de errado. Mas o

equívoco até deu jeito. Morto e enterrado, o novo homem

deixou de ser um problema, deixou de, só pela sua existência,

ser urna pedra incómoda no sistema.

De uma forma ou de outra, o novo homem não tinha futuro.

Passada a novidade, os seus produtos já não vendiam mais.

A sua mensagem de amor e de paz era muito quadrada. E

a Madonna, que não era boba nem nada, já estava noutra,

compondo um rock bacana em parceria com uma banana

profeta, a fruta que nascera dizendo ser a encarnação de um

deus asteca que previa o apocalipse para o fim do ano. Coisa

que ninguém levou a sério. O que explica o grande mistério

de o mundo ter entrado, naquele Dezembro, alegremente

pelo cano.

Page 22: O Endireita
Page 23: O Endireita

ONZE

Era quieto. Ficara assim há tanto tempo que já ninguém

lembrava da sua voz. Não que fosse mudo, o que de resto

nem seria um desígnio assim tão atroz, mas não falava, só

pensava e, por pensar, era diferente de nós. Olhava o mundo

como um voyeur olha por uma janela. Com um interesse

absurdo, uma reverência completa até pelas coisas mais

singelas. Como era quieto não incomodava, não era ator, era

cenário. O seu silêncio era uma gaiola, ele, velho canário.

Talvez tenha sido exatamente isso: o seu silêncio.

Provavelmente, já que não era bonito. O certo é que a mulher

que falava pelos cotovelos apaixonara-se de súbito por ele.

Aquilo foi uma grande surpresa, tendo em vista que ela era

uma celebridade, dessas de cama e mesa. Numa época em

que ninguém mantinha a boca fechada, ela contribuía com

a fantochada com os seus cotovelos poliglotas, capazes de

recitar poemas inteiros em cinco línguas vivas e sete mortas.

O romance era estranho. Ele quieto, ela inquieta. As diferenças

de personalidades eram de tal tamanho que nem um louco

acharia suposto que aquilo pudesse dar certo. Mas, como o

destino é esperto, o namoro prosseguiu até ao fim, culminando

num casamento ao som de uma canção da Adriana Partimpim.

O pior foi depois, quando os cotovelos dela calaram. Foi

assim de uma hora para outra, sem aviso prévio, sem nem

um recado. Com os cotovelos mudos, ela rendeu-se a um

triste recato. Perdeu o seu programa de TV, deixou de poder

gravar CDs, e o pior, vejam vocês, começou a drogar-se e

a beber. Tal situação só gerou mais barulho. A comunicação

social não largava o casal, o que era normal, exigindo uma

declaração qualquer. Mas ela, com os cotovelos calados não

podia falar. E ele, por não estar habituado, não sabia como

defender a mulher.

Foi aí, numa conferência de imprensa, que aconteceu o

impensável. Pressionado pelos jornalistas, ele finalmente

tomou uma atitude e exigiu silêncio. Primeiro ficaram todos

em suspenso. “Silêncio?” O que era aquilo? Os mais velhos

ainda se lembravam vagamente da coisa.

Claro está que o debate foi intenso. Todos falavam ao mesmo

tempo e ninguém ouvia ninguém. O ruído foi tanto que quebrou

a barreira do som. E isso é que foi bom, o estrondo ecoou

por todo o planeta, como um trovão enviado pela grande

besta. O resultado foi que ficaram todos surdos, com os

tímpanos estoirados. Menos o nosso rapaz, que do alto do

seu silêncio doirado, sobreviveu ao desastre, talvez por não

passar a vida a ouvir e a dizer disparates.

Com todos surdos, logo também ficaram mudos. Sem

comunicação, não tardou a começar o declínio de toda a

civilização. Passadas algumas gerações, estavam como

primatas. Regrediram ao macaco e até mais além. Fora os

descendentes do homem quieto. Estes como aprenderam a

ouvir, aprenderam a falar também. Reunidos numa tribo onde

primava o bom senso, onde só era dito o essencial, passaram,

uns para os outros, todos os conhecimentos. Só é pena que

trouxessem nos genes a herança materna. Cedo ou tarde a

história iria repetir-se, pois nenhuma coisa boa é eterna.

Mas isso ainda demora, e como brincadeira tem hora, só falta

a moral dessa história que fala de um homem tão quieto e

sábio como um touro: “acreditem, amigos, o silêncio é de

ouro.”

Page 24: O Endireita

FICHA TÉCNICA

DESIGN: DAVID RAFACHINHO

REVISÃO: PEDRO CORREIA

Page 25: O Endireita

DOZE

Ele era um endireita, gostava de endireitar o mundo, o tudo,

o todo. Gostava mas não conseguia. E, portanto, endireitava

colunas, ajeitava espinhas, deixava ereto quem chegava

afoito ao seu consultório feito num oito.

Por força do ofício, acostumara-se a sentir-se como um

palhaço de circo, daqueles que arrancam sorrisos até de

quem está cheio de dor. Cada cliente era um número, uma

cena, um sistema. Cada coluna, um palco, um picadeiro, um

teorema.

Em seus sonhos secretos, imaginava-se um mago capaz de

transformar a gorda com a marreca numa ginasta romena

hirta e bela. O reformado reumático, após uma massagem,

saltava da maca como nadador salvador de um colorido

parque aquático algarvio. A grávida problemática, dona de

um ar pesado e doente, tornava-se uma lasciva dançarina

do ventre, daquelas que seduzem serpentes e encantam

meninos. Ele era um endireita dos corpos alheios, só não

conseguiu endireitar o próprio destino.

Um dia, o presidente do planeta caiu de uma escada, durante

uma gala e magoou a espinha. Ficou preso numa cama de

um quarto sem janelas, onde o Sol não entrava, nenhum

pássaro voava e nem uma flor nascia. O presidente perdeu

o contacto com o mundo. O que acontecia fora do quarto

passou para ele a ser apenas um relatório diário lido, num

tom monocórdico, por um mordomo com um leve sotaque

húngaro e que, por acaso, era anão. E o presidente, que já

havia dado a volta ao planeta a bordo de um balão, contentava-

se em dizer nem que sim, nem que não, sem poder levantar-

se do seu leito nem que fosse para beijar a mão de uma doce

princesa ou abraçar um amigo do peito. E ele que antes era

um governante alegre, sábio e justo, passou a tratar o planeta

com desprezo e escárnio. Tomou-se num déspota rezingão

que cuspia por cada narina um trovão, fazendo do mundo um

lugar obscuro.

O mordomo anão era uma boa pessoa e gostava do presidente,

apesar de ser tratado sempre com extrema desfeita. E um

dia, visitando uma tia na Hungria, soube da fama do endireita.

Contratou os seus serviços na esperança dele curar o

presidente do mundo e com isso acabar com aquele triste

absurdo. O endireita vestiu a sua roupa de missa e foi até a

casa do presidente tratar da tarefa. Assustou-se com o que

viu. No lugar do antigo senhor do planeta, líder sereno e

impávido, encontrou um homem pequeno, contorcido e inválido.

O trabalho não foi fácil. O endireita passou sete dias e sete

noites a tentar endireitar o enfermo. Não comeu, não bebeu,

não dormiu. Gritou, blasfemou e até sussurrou algo que

pareceu vagamente uma puta que o pariu. Foi quando o

presidente finalmente reagiu. Num movimento brusco, levantou-

-se da cama e deu três pulinhos. Depois rodopiou pelo quarto

como se o mordomo anão tivesse um violino e tocasse uma

valsa. E, sem pestanejar, deu um salto mortal e fez o pino.

O endireita de tão cansado só conseguiu esboçar um sorriso.

Caiu para o lado e deu o seu último suspiro, com a certeza

de ter feito o certo, o justo, o reto. Endireitara o homem mais

poderoso do mundo. E, quem sabe, com isso o futuro de

todos. Nem viu quando o presidente, num estabanado

movimento, tropeçou no anão, caindo de cara no penico,

morrendo afogado no próprio excremento. O mordomo, ao

contemplar a cena final, pensou em chorar, não sem antes

exclamar naquele momento a fala final deste conto triste e

porco: “Mundo que nasce torto, morre torto.”

Page 26: O Endireita

TREZE

“Eu tenho tudo.

Eu tenho tudo, vejam vocês.

Tenho mulher, dinheiro, saúde.

Celular? Tenho três.

Carro, diploma, cartão do Sporting.

Ano passado tive um jacto, mas passei adiante

pois, hoje em dia, o que interessa é não ter nada

de interessante.

Não moro numa casa, vivo num estúdio.

Tenho um loft no Soho e uma vizinha chamada

Socorro.

Tenho um cão, uma catatua que canta boleros,

um mastim assassino e uma chinchila.

Nunca mostro os documentos.

Quem é não precisa provar.

Tenho trinta, mas aparento menos,

muita água francesa é o meu elemento.

Comprei dois laptops e fiz milhões:

de euros, de inimigos, de escudos.

Não gosto da pobreza, o meu negócio é a beleza.

De pobre basta o meu karma, o meu porteiro, o meu berço.

Já tentei vários suicídios, alguns bem sucedidos.

Também tenho as paranoias da moda.

Sonho com o dia do juízo final, o meu loft a arder e a catatua

em chamas a cantar «Besame Mucho».

Nesse dia enforco o mastim e dou para o cão comer.

A chinchila uso como casaco.

Apanho o primeiro voo para Bali.

Hospedo-me num Holliday Inn para manter as aparências.

Alugo um carro desportivo de um ano indefinido

e vou para uma praia qualquer em que se assaltem as pessoas.

Ataco um ou dois turistas, com os meus próprios dentes

arranco-lhes as orelhas vermelhas.

Depois mergulho na água e começo a cantar uma música do

Lloyd Cole.

E antes que o sol se ponha e que o mundo expluda,

mergulho e conto até cento e cinquenta e cinco.

E, por instantes, não vou ter nada na cabeça e no bolso.

Vou ser só um pobre yuppie louco.

E, pela primeira vez na vida,

Quando o oxigénio acabar e eu vencer

os meus primários instintos de sobrevivência,

quando o meu corpo começar a contorcer-se à procura de

luz

quando pela minha boca entrar

a água, o sal e todo o poder da mãe Terra,

quando eu começar a grunhir e ganir

e a chamar pela minha vizinha

Socorro,

eu serei por um milionésimo de segundo,

acredite amigo, eu serei feliz.

nem que seja por uma unha,

por um casco,

por um triz.»

Page 27: O Endireita