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573 O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva The healthcare professional-patient relationship: a contribution of psychoanalytic narrative to the issue of the subject in public health 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social/FCM/Unicamp. Cidade Universitária Zeferino Vaz, caixa postal 6.111, 13084-971, Campinas SP. [email protected] Rosana Onocko Campos 1 Abstract It is our purpose, in this work, to de- bate the relationship between workers and pa- tients in the clinic context. Using a hermeneutic and narrative approach, we shall discuss some narrative lines in order to situate the present study. We offer some psychoanalytic and institu- tional psychotherapy categories, as a tool for re- thinking this relationship, in their institutional, clinic, and managing aspects. In the end, follow- ing Kristeva, a linking between text, narrative and experience is proposed. Key words Collective health, Management-sub- jectivity, Hermeneutic critic, Narrative, Clinics, Psychoanalysis Resumo Neste trabalho procurou-se problema- tizar o tema do encontro assistencial entre usuá- rios e trabalhadores de saúde. Utilizando uma abordagem hermenêutico-crítica e narrativa ma- peiam-se brevemente algumas linhas narrativas visando situar em relação a elas o tema em estu- do. Oferecem-se algumas categorias oriundas da psicanálise e da psicoterapia institucional para repensar a dimensão do encontro profissional- usuário, nas suas relações com a instituição, a clí- nica, o acolhimento e a gestão. No final, a partir das elaborações de Kristeva, propõe-se uma liga- ção metodológica entre texto-narrativa e expe- riência. Palavras-chave Saúde coletiva, Gestão-subjeti- vidade, Hermenêutica crítica, Narrativa, Clínica, Psicanálise

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O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde:uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva

The healthcare professional-patient relationship:a contribution of psychoanalytic narrative to the issue of the subject in public health

1 Departamento deMedicina Preventiva e Social/FCM/Unicamp. Cidade Universitária ZeferinoVaz, caixa postal 6.111,13084-971, Campinas [email protected]

Rosana Onocko Campos 1

Abstract It is our purpose, in this work, to de-bate the relationship between workers and pa-tients in the clinic context. Using a hermeneuticand narrative approach, we shall discuss somenarrative lines in order to situate the presentstudy. We offer some psychoanalytic and institu-tional psychotherapy categories, as a tool for re-thinking this relationship, in their institutional,clinic, and managing aspects. In the end, follow-ing Kristeva, a linking between text, narrativeand experience is proposed. Key words Collective health, Management-sub-jectivity, Hermeneutic critic, Narrative, Clinics,Psychoanalysis

Resumo Neste trabalho procurou-se problema-tizar o tema do encontro assistencial entre usuá-rios e trabalhadores de saúde. Utilizando umaabordagem hermenêutico-crítica e narrativa ma-peiam-se brevemente algumas linhas narrativasvisando situar em relação a elas o tema em estu-do. Oferecem-se algumas categorias oriundas dapsicanálise e da psicoterapia institucional pararepensar a dimensão do encontro profissional-usuário, nas suas relações com a instituição, a clí-nica, o acolhimento e a gestão. No final, a partirdas elaborações de Kristeva, propõe-se uma liga-ção metodológica entre texto-narrativa e expe-riência.Palavras-chave Saúde coletiva, Gestão-subjeti-vidade, Hermenêutica crítica, Narrativa, Clínica,Psicanálise

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Introdução: abordagem hermenêuticacrítica e narrativa

Escrever sobre os encontros é encarar o próprioparadigma da escrita. Toda escrita é ao mesmotempo um encontro e um desencontro. E todaescrita somente poderá surgir de algum encon-tro. Ensina-nos Paul Ricoeur que todo texto “éa vinda à linguagem de um mundo” (1990).Portanto, concordando com ele, diríamos quenão há escrita que não tenha sido provocada,produzida, pela vida real e concreta, ao menospara quem escreve.

Na sua proposta de uma hermenêutica crí-tica, Ricoeur (1990) faz algumas proposições,visando superar a divisão entre teórica crítica ehermenêutica. Sua obra interessa-nos por pro-duzir uma reconexão entre escolas do pensa-mento que em muito contribuíram metodolo-gicamente nas últimas décadas para alguns dosprincipais trabalhos da saúde coletiva brasileira.

Achamos que há inovações importantestrazidas por Ricoeur (op. cit.), pois ele propõeuma síntese diferente, com interessantes pon-tos de sutura, que não separam a crítica da her-menêutica, porém destacam a inegável potên-cia da crítica, de certa forma sempre já impli-cada no exercício hermenêutico.

A empreitada de Ricoeur parte, fundamen-talmente, da Escola de Frankfurt (como expoen-te da teoria crítica, e notadamente da crítica deHabermas a Gadamer), e das elaborações sobrehermenêutica realizadas por Gadamer em Ver-dade e método.

Dentre as principais contribuições de Ga-damer (1997) nessa obra, destacam-se as de“mundo do texto”, “história efeitual”, “tradi-ção”, e o reconhecimento da função positiva,como mola do movimento hermenêutico, dos“preconceitos”. Se Habermas critica que o con-ceito de tradição é conservador (pois a tradi-ção é assentada sobre séculos de dominação,poder e trabalho), Gadamer também argumen-ta que é clássico aquilo que permanece em faceda crítica histórica. Talvez, poderíamos dizer,hoje, que nossos clássicos mantêm-se vigentes,pois falam de algo que se repete. Psicanalitica-mente diríamos: os clássicos falam de nossaneurose no contemporâneo. Gadamer destacao fato de que, ao lermos um clássico, ele reatua-liza-se na leitura, parecendo que diz algo espe-cificamente dirigido a quem o lê. Isso é o queRicoeur chama de agenciamento formal dotexto. O mais importante – nos diz ele – não éprocurar segredos por trás do texto, pois inter-

pretar nada mais é que “explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado na frente do texto”(Ricoeur, 1990).

Com Freud (1975) e Roudinesco e Plon(1998), trabalhamos a interpretação como com-posta sempre de dois movimentos: a análise e aconstrução. Às construções – que fazem, no di-zer de Freud, uma espécie de aposta na produ-ção de sentido, a vinda à tona de uma nova his-tória – chamamos, junto com Ricoeur, de nar-rativas. As narrativas, para este autor, nadamais são do que “o agenciamento dos fatos,histórias não (ainda) narradas” (Ricoeur, 1997),mas que se podem ser contadas, é porque estãojá inseridas em alguma práxis social. Nessa li-nha, o que caracteriza uma narrativa funda-mentalmente é sua linha argumental, o muthos:agenciamento dos fatos.

Em trabalho anterior (Onocko Campos,2003a), consideramos que, antes de assistir auma mudança paradigmática (Kuhn, 1997),conseguiríamos descobrir o aparecimento denovas narrativas disciplinares. Talvez possamospensar a transição paradigmática como umafase que poderia ser preferencialmente estuda-da com a abordagem narrativa. Em relação aotema em estudo, arriscamos a hipótese de se tra-tar de um momento de mudança nas aborda-gens clássicas sobre a subjetividade na atençãoà saúde, no campo da saúde coletiva brasileira.

No contexto da atenção à saúde, o tema dosencontros profissionais/usuários é clássico e aomesmo tempo novo no seu enfoque: “(...) o ve-lho e o novo crescem sempre juntos para umavalidez vital (...)” (Gadamer, 1997). Tentare-mos fazer uma análise hermenêutico-críticadesse tema. Para isso, procuramos primeiro fa-zer uma reflexão sobre o tema dos encontros,para depois fazer um breve percurso por algu-mas linhas narrativas que nas últimas décadasproblematizaram a questão. Voltamos a seguirao contemporâneo, às grandes cidades brasilei-ras, suas periferias e o contexto do SUS, bus-cando aproximar algumas reflexões advindasda psicanálise ao cenário atual. Ao final, recor-remos à Julia Kristeva e sua conceituação daexperiência e da narrativa política à guisa deconclusão provisória.

O que é um encontro?

Diz o dicionário que encontro é o ato de en-contrar. E que encontrar é: deparar com, achar,dar com, atinar com, descobrir, achegar, unir,

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mas também opor-se a, contrariar, chocar-secom (Ferreira, 1997). Pôr-se em contato, por-tanto, sempre com resultado incerto. O encon-tro pode ser cordial ou pode ser um rijo encon-trão. Quem se contata com quem? Corpos eafetividades em jogo. Se entendermos por ins-tituições as formações discursivas que adquiri-ram valor de verdade, quantas instituições me-diam esse encontro quando se trata de uma si-tuação de atenção à saúde?

Na saúde coletiva costumamos lembrar queo usuário sempre comparece a esse encontromovido por demandas mais ou menos explíci-tas, munido de seu corpo e sua singular subje-tividade. Mas, são muito menos freqüentes osestudos que procuram analisar o que acontececom esse sujeito que um dia se transformou,por obra da academia, ou da vida, em um tra-balhador de saúde. Categoria que proposital-mente, por enquanto, preferiremos manter as-sim, ampla e mal definida de maneira que, nes-te ponto de nosso estudo, caibam nela desdeprofissionais universitários até agentes de saú-de e pessoal da recepção. Isto não pressupõeapagar suas diferenças em relação às divisõestécnicas e sociais do trabalho, mas manter aber-ta a possibilidade de pensar alguns aspectos dasubjetividade dessas pessoas que, com graus dequalificação diversos, compartilham o espaçode trabalho nos serviços de saúde.

Algumas linhas narrativas que pensaram esse encontro

Pretendemos a seguir mapear algumas linhasnarrativas, não com o objetivo de fazer um es-tudo exaustivo ou historiografia, porém com ointuito de poder situar em relação a elas nossaprópria contribuição narrativa, (...) num senti-do verdadeiramente hermenêutico, isto é, com aatenção posta no que foi dito: a linguagem emque nos fala a tradição, a saga que ela nos conta(Gadamer, 1997). Portanto, procuraremos ne-las os traços fundamentais de uma estruturaargumentativa e ilustrá-las-emos com algunsexemplos de autores, sem desconsiderar que orico universo de produção dessas linhas narra-tivas é muito mais amplo do que pode ser abor-dado neste estudo.

Para tentar situar nossa própria produção,é importante recuperar na tradição a linha quechamarei de “medicina social latino-america-na”, cujo marco, segundo Fleury (1992), foi aConferência de Cuenca. Ali houve uma clara

crítica à forma predominante de organizaçãoda prática médica. Desde os estudos de JuanCésar García sobre educação médica, passandopelo termo cunhado por Menendez (1992) –“modelo médico hegemônico” –, a crítica apro-fundou-se com a entrada em cena das ciênciassociais na área da saúde, dedicando uma gran-de parte de sua produção, nas décadas de 1970-1980, a questionar o positivismo vigente, a de-nunciar a falta de consideração de outras cate-gorias e adentrando-se ferrenhamente numcerto furor preventivista de viés histórico-es-trutural.

Como destaca Fleury, o paradigma históri-co-estrutural no campo da saúde, partindo do re-conhecimento da insuficiência das teorias prece-dentes para darem conta da explicação dos de-terminantes do processo de saúde e doença e daorganização social da prática médica, procurouna relação entre medicina e estrutura social o ca-minho para tais explicações (1992). Essa linhanão produziu estudos sobre o encontro assis-tencial que incluíssem o corpo e a subjetivida-de de profissionais e de usuários como catego-rias de análise.

É a partir da medicina social latino-ameri-cana que a “saúde coletiva brasileira” (OnockoCampos, 2003a) conforma-se como uma linhanarrativa original que desabrocha em uma ricaprodução teórica, em núcleos de pós-gradua-ção e pesquisa e em elaborações originais quepouco a pouco a diferenciam, por sua riqueza evolume, da produção latino-americana.

Duas décadas passadas, essa linha conta noseu acervo com clássicos (no sentido gadame-riano) do peso de Cecília Donnangelo (1975) eSergio Arouca (2003). Não é o propósito desteartigo fazer uma análise exaustiva dos numero-sos autores da saúde coletiva brasileira, porémpretendemos, ancorados nesses dois exemplos,caracterizar a narrativa produzida em relação àsubjetividade no encontro assistencial. E é pos-sível vermos, assim, partindo dos estudos pio-neiros de Donnangelo sobre o trabalho médi-co, ou da crítica de Arouca no Dilema preventi-vista, que pouco se pensava, nos anos 70, nasubjetividade e no corpo dos trabalhadores dasaúde e que o tema da clínica ficou fora dasanálises, a não ser para contrapô-la às ações co-letivas. Essa linha, preocupada com a crítica,produziu intensos questionamentos sobre a clí-nica, a biologização excessiva das práticas echamou muito bem a atenção para o processode construção sócio-histórico das categoriasoperatórias dominantes (Luz, 2000).

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Herdeira do referencial teórico estrutural-marxista, outros trabalhos já mostraram que asaída da hegemonia desse referencial teóricodeu-se a partir da incorporação de novos refe-rencias teóricos e metodológicos entre o fim dosanos 70-80 (Burlandy & Bodstein, 1998), dandoentrada a categorias como cotidiano e represen-tação social, na tentativa de alargar o debate emrelação às explicações macroestruturais.

É na década de 1990 que essa questão entrana pauta das argumentações de alguns autores.Abordados do ponto de vista do sofrimentodos técnicos (Pitta, 1990) ou da incorporaçãodo tema da clínica (Campos, 1991) sob váriasformas de organização (Gonçalvez, 1994), essatemática começa a ser abordada no fim dos anos80 e tem sido cada vez mais incorporada nosúltimos anos (Carvalho, 2003; 2002; Minayo,1995).

Já a finais dos anos 90, o tema da subjetivi-dade destaca-se e temos, assim, uma produçãoque começa a argumentar sobre essas questões(Campos, 1994; 2000; Ayres, 2001; Merhy, 1997;Luz, 2000). A discussão sobre a reformulaçãodos modelos assistenciais, como bem mostramalguns autores, é recente e mais retórica queprática (Vasconcelos, 2005). Em alguns traba-lhos anteriores, argumentamos que a reformada clínica e a mudança do modelo assistencialsão questões importantes de serem encaradasem prol da eficácia do SUS (Onocko Campos,2003a; 2003b).

Poderíamos afirmar que, no interior da gran-de narrativa constituída pela saúde coletivabrasileira, algumas linhas narrativas começama se diferenciar; elas caracterizam-se precisa-mente por destacarem nos seus argumentos as-pectos pouco explorados pela produção clássi-ca, cujo destaque se produz do encontro comas práticas no SUS, no seu percurso histórico.

Diz Gadamer (1997) que são o presente eos seus interesses os que fazem o pesquisadorvoltar-se para o passado, para a tradição. As-sim, não é de estranhar que no século 21 os au-tores comecem a problematizar aspectos antesnegligenciados.

A partir do tema da subjetividade esboça-seuma preocupação com as instituições de saúde.L’Abbate (2003) mostra que há uma relaçãoentre “análise institucional” e saúde coletiva: háa análise institucional na saúde coletiva e dasaúde coletiva; e há também a saúde coletivacomo instituição. Contudo, a entrada do cha-mado – no Brasil – institucionalismo foi muitomais estimulada pelo movimento da Reforma

Psiquiátrica que pelo da Reforma Sanitária(Luz, 2000). Nascidos de um momento políticocomum, os dois movimentos ora se aproximam,ora se separam (Furtado & Onocko Campos,2005). No Brasil, várias correntes como a so-cioanálise, esquizoanálise e psicoterapia insti-tucional combinaram-se de formas diversas epouco ortodoxas para caracterizar o que algunsautores têm chamado de institucionalismo(Rodrigues, 1993).

Todavia, é preciso reconhecer que essas con-tribuições tiveram relativamente pouca pene-tração. Talvez seja por se valer de um referen-cial teórico que não fazia parte das disciplinasclássicas estudadas pelos sanitaristas; o fato éque esse conjunto de referenciais que tem gran-de potência para pensarmos as relações entreas pessoas e as instituições continua pouco ex-plorado na saúde coletiva até hoje.

Algumas categorias da psicanálise na busca de novas narrativas

Alguns autores, ainda, transitaram o caminhoentre saúde coletiva e “psicanálise” (Birman,1980; Campos, 1994, 2000; Figueiredo, 1997).A redescoberta do tema do sujeito faz-nos in-sistir em trilhar esse caminho.

Procuramos aproximar alguns conceitosdessa disciplina e da psicopatologia institucio-nal ao campo da gestão em saúde.

Na ética que caracteriza a psicanálise, todosujeito é mais do que portador do cogito carte-siano. A descoberta do inconsciente por Freudmarcou uma das grandes quebras da moderni-dade na opinião de alguns autores (Benasayag& Charlton, 1993). Assumir que as pessoas, ostrabalhadores de saúde, também agem movi-das por reações inconscientes, que elas própriasdesconhecem, e sobre as quais não detêm o con-trole mudará nossa forma de abordar os equi-pamentos de saúde e as relações que ali se de-senvolvem. O reconhecimento da dimensão in-consciente mudará nossas análises.

Portanto, seria importante neste ponto fa-zer uma distinção (não sendo uma separação)entre psicanálise e hermenêutica. Para a her-menêutica, lidamos conscientemente o tempotodo com um conjunto de valores de cujo sig-nificado não nos damos conta imediatamente,mas ao qual poderíamos aceder por meio dareflexão sistematizada. Para a psicanálise, po-rém, estaríamos fadados a desconhecer parasempre uma porção de nós mesmos. O nosso

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inconsciente irrompe quando menos o espera-mos no meio de nossa ação mais racional. Nãose trata, portanto, de uma polaridade conscien-te/inconsciente que se corresponderia com ou-tra racional/irracional, mas de assumirmos oser humano como um ser que nunca será abso-lutamente dono de si, um ser “barrado” que nãopode tudo, e nunca terá a certeza de conhecerapuradamente o rumo do seu desejo.

Alguns autores colocaram em contato aconcepção do homem como sujeito do incons-ciente e a vida na instituição (Enriquez, 1997;Motta & Freitas, 2000). Segundo Kaës (1991), ainstituição funciona para o psiquismo comoasseguradora de funções da vida social e psí-quica (como a mãe) é uma das razões do valorideal e – necessariamente persecutório – que elaassume tão facilmente.

Ser um trabalhador da saúde, do SUS, eacreditar no valor positivo do próprio trabalhoconstituem funções estruturantes da subjetivi-dade e ajudam a suportar o mal-estar advindodas tarefas coletivas (mal-estar inevitável, se-gundo ensinou Freud, 1997).

Kaës (1991) chama isso de aderência narcí-sica à tarefa primária. Ou seja, os sujeitos “ne-cessitam” se identificar favoravelmente com amissão do estabelecimento no qual trabalham,acreditar que seu trabalho tem um valor de uso(Campos, 2000). Quando o contexto de traba-lho coloca entraves à tarefa primária, seja porfalta de recursos humanos, de materiais ou porexcesso de autoritarismo gerencial (Campos,2000), os sujeitos valem-se de estratégias de-fensivas para atenuar o próprio sofrimento psí-quico. Algumas delas: apelo excessivo à ideolo-gização, somatização, burocratização, desen-volvimento de estados passionais...

O termo paixão descreve muito bem o inten-so sofrimento psíquico, próximo dos estados psi-cóticos, que ali [na instituição] se experimenta, éo transbordamento da capacidade de conter e sercontido, a capacidade de formar pensamentos éparalisada e atacada: a repetição, a obnubilaçãoservem de cobertura a ódios devastadores, contraos quais surgem defesas por fragmentação (...)(Kaës, 1991).

Quantas vezes não dizemos da dificuldadedas equipes em trabalhar conjuntamente, dasfalhas de comunicação, do conteúdo excessiva-mente ideologizado de certas defesas do SUS,em cujo nome, e segundo a ocasião, tudo podeou tudo não pode?

Tentamos mostrar que esses sintomas insti-tucionais são produzidos pela própria realida-

de do trabalho; pelo próprio contato permanen-te com a dor e a morte e a dificuldade de sim-bolização que situações como a pobreza extre-ma nos provocam.

Nos equipamentos de saúde e educaçãoacontecem processos de identificação entre tra-balhadores e usuários. Se a população da áreade abrangência é vista como pobre, desvalida,desrespeitada, sem valor, após um tempo, a pró-pria equipe se sentirá assim. Pensamos que me-canismos como esse estão por trás da produçãode impotência em série de que adoecem muitasequipes de saúde. Também pode acontecer que,na tentativa de se defender desse espelho desa-gradável, a equipe se feche tentando uma dis-criminação maior entre o nós e os outros, e as-sim a equipe monta fortes barreiras que evitamse colocar em contato com aquilo que tantodói. Ou, pior ainda, pode se tornar agressiva eretaliadora com os usuários.

Se isso é assim, o que lhes receitaremos? Di-vã para todos os trabalhadores? Maior comuni-cação (e então como ajudar a comunicar o quepermanece inominável?). Doses maiores e deli-beradas de boa vontade? Faremos, acaso, maisapelos ideológicos na defesa do SUS?

Lidar competentemente com essas dimen-sões também requer competência técnica. En-sina-nos Oury (1991) que no trabalho não setrata simplesmente de relações individuais comalguém, e de que o trabalho de equipe precisa-rá sempre levar em conta os outros e a si pró-prio, mas que deve sempre ser tomado no âm-bito que lhe é mais específico: um espaço onde“possa acontecer alguma coisa”.

Kaës (1991) propõe criar dispositivos detrabalho que permitam restabelecer um espaçosubjetivo conjunto, uma área transicional co-mum, relativamente operatória.

Temos defendido que a gestão poderia exer-cer essa função, mas, para isso, ela precisa seconstituir como uma instância, como um lugare um tempo, onde e quando se possa experi-mentar a tomada de decisões coletivas e anali-sar situações com um grau de implicação maiorem relação àquilo que é produzido (OnockoCampos, 2003c).

Portanto, seria necessário incorporar novasdisciplinas na formação de gestores e planeja-dores que lhes permitissem entender as váriasdimensões com que estão lidando na hora dasdecisões e conflitos no palco grupal, pois nãose trata somente de criar espaços de fala e tro-cas auto-reflexivas que propiciariam a demo-cratização e um grau de análise maior das prá-

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ticas, coisa de por si já importante. Trata-se depoder compreender também que esses espaçossão freqüentemente lócus de apresentação deuma mise-en-scène de estados pulsionais in-conscientes.

Oury destaca a importância de reconhecer-mos essa dimensão inconsciente nas relaçõesde trabalho:

Ora, na própria equipe já existe uma formade colocar em prática permanente as relaçõescomplementares, assim como as complementari-dades (mas não as complementaridades tais co-mo: “sou especialista nisso, ele naquilo, etc...”).Trata-se, com efeito, de um registro quase mate-rial: de um lado a articulação de diferentes com-petências, de outro as condições de uma certa for-ma de convivência. Aí existe uma armadilha:não se trata de uma complementaridade mais oumenos romântico-moderna, do gênero “estamostodos do mesmo lado”, que se perde no especular,mas de uma complementaridade inconsciente(Oury, 1991).

Gestão-subjetividade-clínica

Qual seria a saída para o SUS se não houvesseuma profunda reformulação da clínica que ne-le se pratica? Teria o Estado brasileiro as condi-ções para financiar um sistema de caráter uni-versal nos moldes, por exemplo, do modelonorte-americano? E, ainda, imaginando quehouvesse recursos sem fim, seria justo subme-ter a população a tal grau de medicalização,que beira a iatrogenia?

Recentemente, tem se reavivado o debatesobre a integralidade. É interessante esse pon-to, pois durante anos a grande diretriz do SUSa ser conquistada foi a do acesso. E devemos re-conhecer que houve avanços em relação ao aces-so, contudo, muitas vezes se avançou sem in-terrogar acesso a quê (Onocko Campos, 2003a,2003b).

Na moda de finais dos anos 90, no furor pe-la eficiência e pelo Estado mínimo, pratica-mente se eliminou a discussão sobre a eficáciadas práticas de saúde, e isso se viu agravado porum certo discurso pós-moderno que, ampara-do em um forte relativismo, desqualificou asanálises técnicas.

Todavia, é preciso reconhecer – no caso dosencontros assistenciais, da clínica – que semprehaverá uma dimensão técnica do trabalho en-volvida. O recalcamento de algumas categoriasé sempre interessante de ser interrogado. Por

exemplo, o tema do cuidado tem sido muitoabordado ultimamente. Entendo que váriosautores procuram com isso chamar a atençãopara a dimensão não técnica sempre (também)envolvida nos encontros assistenciais. Valorizaro aspecto intersubjetivo, comunicativo, as cha-madas tecnologias leves (Artman, Azevedo &Castilho Sá, 1997; Ayres, 2001; Rivera, 1995,1996; Merhy, 1997). É essa uma questão pre-mente e importante no desenfreado consumode tecnologias duras que o mercado médicotem colocado, sem dúvida.

Porém, gostaríamos de chamar a atençãopara o caráter de recalcado da categoria clínica.A psicanálise ensina-nos a ficar atentos àquiloque “não se fala”. Eliminarmos a problematiza-ção sobre qual é a clínica que se faz nos equipa-mentos de saúde acarreta o risco de banalizar-mos a importância dos aspectos técnicos dotrabalho. O que diferencia os trabalhadores desaúde do restante da população em termos devalor de uso (e de troca) de sua própria forçade trabalho é a qualificação técnica e é, sempre,“um dado saber”. Mas, também, acarreta o ris-co de não problematizarmos a clínica comouma disciplina que, precisando sempre de umasólida ancoragem teórica, não se esgota na suadimensão técnica, devendo sempre ficar atentaà produção tanto de acolhimento quanto dedesvio, como muito bem chamaram a atençãoPassos & Benevides (2001).

Trabalharmos em prol da transdisciplinari-dade, buscarmos relações mais horizontaliza-das de poder entre os diversos saberes (médico,popular, alternativos, psi, etc.) não nos deveriaofuscar o reconhecimento do avanço que o do-mínio de certa competência técnica traz à pro-dução de saúde, no tratamento e reabilitaçãode algumas doenças. Sendo críticos com umaleitura tecnicista da saúde, porém, desejamosressaltar que, a nosso ver, é fundamental nãodescartar a clínica e sua qualidade técnica, co-mo se fosse o bebê com a água do banho.

Essa questão parece-nos central, inclusive,porque a definição de quais meios técnicos umdado trabalhador possui, ou não, na sua práti-ca, será fundamental tanto para a eficácia des-sas práticas quanto interferirá também no graude resistência e tolerância com que o sujeito emquestão conta para enfrentar o dia-a-dia emcontato permanente com a dor e o sofrimento.

Deter o domínio de uma ou várias técnicasnão é bom ou ruim em si. Segundo tentamosmostrar, dependendo do seu funcionamento,do tipo de processos de subjetivação que um

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dado equipamento favorece ou não, a técnicapoderá se constituir em alavanca de novos pro-cessos criativos, abertos à diversidade, acolhe-dores da diferença; ou funcionar como receitaprescritiva, guarda-chuva defensivo contra aqui-lo que no outro nos ameaça. Mas isso não éuma qualidade da técnica, dependerá do contex-to de experimentação da técnica em questão.

Oury destaca claramente esta função em re-lação à clínica:

(...) exige uma disposição particular que seadquire pelo exercício de uma “tekné”, espécie deatenção trabalhada que a torna sensível á quali-dade do contexto, à polifonia dos discursos, àsmanifestações paradoxais de um sentido ilumi-nado. Aí está um dos objetivos fundamentais aque uma formação bem conduzida poderia sepropor. Para desvendar tal ou tal forma de ma-nifestação patológica é preciso estar “adverti-do”. Problema banal semelhante à aprendizagemda escuta dos barulhos do coração: se não esta-mos preparados, não adianta escutá-los com oestetoscópio, pois não ouvimos senão ruídos con-fusos (Oury, 1991. Grifo nosso).

Digamos que o trabalhador de saúde quenão conte com razoável formação técnica serásubmetido a mais um fator de sofrimento, a an-gústia que provoca o “nada saber”, ou, no dizerde Oury, o fato de não estar advertido. Quandoa insegurança técnica é grande, toda demanda éamplificada, não é possível discernir em relaçãoa riscos e urgências. Tudo se torna tão intensoque, para aplacar essa angústia, tudo acaba porser banalizado, caracterizando uma das formasda burocratização. Também, essa insegurançaestá por trás dos mecanismos que perpetuamcertos usos do poder na instituição, como, porexemplo, o excessivo poder médico: se eu nadasei, suponho que outro saiba, delego a ele o sa-ber e o poder... Por esses argumentos todos,consideramos os trabalhadores menos qualifi-cados, do ponto de vista técnico, mais vulnerá-veis a sofrimento psíquico no contexto dos equi-pamentos do SUS que analisaremos a seguir.

Os conhecimentos técnicos teriam, na nos-sa argumentação, duas funções produtoras deeficácia: uma específica na produção de saúdedos usuários, e outra importante na produçãode saúde dos trabalhadores. Eles poderiam sera mola da ampliação da clínica (Campos, 2003),do resgate da dimensão do cuidado, da melho-ra nos processos intersubjetivos de comunica-ção, etc.

Cremos, portanto, que, em saúde, a amplia-ção da clínica é uma questão de eficácia do sis-

tema e, sendo preciso diferenciar, é sempre ne-cessário não separar, nem dissociar a questãoclínica das formas de organização do trabalhoe sua coordenação (gestão). E a gestão estarásempre entrelaçada às questões subjetivas.

Por que gestão-subjetividade? O contato com o irrepresentável da miséria, no contemporâneo

Detenhamo-nos brevemente, então, para anali-sar a que está exposto um trabalhador de saúdena periferia das grandes cidades brasileiras nocontemporâneo, no SUS.

Se estar em contato significa expor-se a afe-tos e, portanto, a ser afetado, deveríamos pen-sar na realidade dos grandes bolsões de pobre-za. Quem trabalha nesses locais sabe quão difí-cil resulta colocar-se em contato com tanta in-tensidade cotidianamente. Não estamos falan-do somente da já dura experiência (que pode-mos ter em qualquer hospital universitário) deconviver com a dor e a morte, o excesso de de-manda, a falta de recursos.

O grau de miserabilidade dessas popula-ções extrapola nossa capacidade de resistência.Uma coisa é saber – em tese – que o Brasil é umpaís cheio de pobres. Outra bem diferente étentar uma intervenção terapêutica com pes-soas que estruturaram sua própria resistência àmorte por meio de formas de subjetivação quenão conseguimos compreender. Uma mãe quenão demonstra preocupação com seu filho gra-vemente enfermo e mal nutrido. Um contextoem que vida e morte (tráfico, violência mate-rial e subjetiva) significam outra coisa e não aque estamos costumados a entender. Deseja-mos destacar a intensidade dessa experiência ea sua singularidade. O grau de esgarçamentosimbólico que percebemos em algumas dessascomunidades, nas quais, por exemplo, em vezde conversar, mata-se, coloca em xeque todasnossas propostas interpretativas. Falta-nos su-porte, arcabouço conceitual ou categorial paraa saúde coletiva poder de fato apoiar os seusagentes nesse percurso. É nessa busca que tra-balhamos com a idéia da gestão como uma im-portante produtora de processos de subjetiva-ção. A gestão como produtora de passagens,para dar cabida a tanta intensidade como há notrabalho em saúde na rede pública.

Às vezes, afirma-se que os usuários não es-tão preocupados com os destinos do SUS, queestão desapropriados dele. Discordamos: eles

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não estão desapropriados do que lhes interessaou daquilo que lhes diz respeito às suas pró-prias estratégias de sobrevivência. Montar ser-viços de saúde, criar PSFs são estratégias nos-sas. Eles não têm de se apropriar. A mãe do me-nino desnutrido não está desapropriada de na-da, ela inventa uma forma de resistir.

Por isso, a relação equipes/população deveser mediada por oferecimentos (Campos, 2000).Um oferecimento é como um cavalo encilhadopassando. A nossa função é multiplicar as opor-tunidades para que algumas pessoas o mon-tem. É uma questão ética: nós não saberíamossobreviver a situações que vemos nos bolsõesde pobreza das grandes cidades brasileiras. Elessabem. Nós que temos muito de apreender.Nós só podemos ofertar nossa diferença, nossoestranhamento como um convite a experimen-tar outras formas de ser na comunidade. E nãoporque a nossa seja melhor, senão porque te-mos um compromisso ético em desviar a pro-dução em larga escala de miseráveis. Tudo oque é vivo resiste. E muitas dessas comunida-des inventaram estratégias muito eficazes dereprodução. De fato, vários séculos de Brasilnão conseguiram eliminá-los. Nossa estratégiaé desviar essa reprodução e colocá-la na trilhada produção do novo... Talvez seja a única coi-sa que nos dê um pouco de consistência.

Nesse contexto, em publicações recentes,afortunadamente destaca-se a idéia da integra-lidade. E aí coloca-se a questão sobre qual oconceito de integralidade que permeia a clíni-ca. É a integralidade dos encaminhamentos?Nada como um bom encaminhamento paranos proteger do estranhamento de pormo-nosem contato... Cada vez que um caso cria algu-ma angústia na equipe ele é encaminhado à ou-tra, até que esta não agüente mais o medo, ou asensação de impotência e assim vai... à deriva,derivado para sempre. Contudo, muitas equi-pes defensivamente chamariam isso de integra-lidade, pois sempre há para onde encaminhar.A integralidade está, a nosso ver, profunda-mente relacionada com a ampliação da clínicapara além do puramente biológico, na direçãodos riscos subjetivos e sociais (Campos, 2003).

É claro que não estamos com isso desconhe-cendo os gargalos do SUS. Em muitos locaisnão há para onde encaminhar, ou não há vagaspara procedimentos importantes; esse continuaa ser um entrave do sistema como macropolítica.

Contudo, a solução macropolítica, por sisó, sempre será insuficiente (a oferta gerandocada vez mais demanda), se não operarmos

desvios nas formas de produzir saúde. Por isso,sustentamos que a gestão tem um compromis-so em dar um certo suporte, em criar instân-cias de análise para as equipes. Mas isso no sen-tido psicanalítico, ajudando a compreender queo turbilhão de emoções que nos acompanha notrabalho é inseparável de nossa condição dehumanidade. Como diz Kaës sofremos também,na instituição, por não compreendermos a causa,o objeto, o sentido e a própria razão do sofrimen-to que aí experimentamos (Kaës, 1991). Seráque a gestão pode-nos ajudar nessa tarefa?

Cremos que isso não será possível na dimen-são e escala que a realidade brasileira hoje nosdemanda, se não nos valermos de alguns dispo-sitivos para propiciar a tomada de consistência.

Diretrizes como as de responsabilização, re-solutividade e acolhimento poderiam funcio-nar como uma espécie de operador lógico(Oury, 1991) para a reorganização dos serviçosem prol da ampliação da clínica e da humani-zação da atenção à saúde.

Para conseguir operar com diretrizes comooperadores lógicos (disparadores de análises emudanças, e não como camisas de força ideo-lógicas), seria necessário criar nos equipamen-tos uma certa ambiência. Ambiência que nãodependeria de engenharias cosméticas nos pré-dios e salas de espera, porém, no dizer de Oury,seria constituída pelas “maneiras da civilizaçãolocal que permitem acolher o insólito”. Para es-se autor:

(...) poder decifrar naquilo que se apresentao que é importante acolher, e de qual maneiraacolhê-lo. A função de acolhimento é a base detodo trabalho de agenciamento (...) Não se trata,certamente, de se contentar com uma resposta“tecnocrática” tal como função de acolhimento =hóspede de acolhimento! O acolhimento, sendocoletivo na sua textura, não se torna eficaz se-não pela valorização da pura singularidade da-quele que é acolhido. Esse processo pode-se fazerprogressivamente, por patamares, e às vezes nãoé senão ao fim de muitos meses que ele se tornaeficaz para tal ou tal sujeito (...) à deriva (Oury,1991. Grifo nosso).

Como vemos, tais mudanças desejáveis nosencontros assistenciais requerem intervençõescomplexas (no sentido do grande número devariáveis) e de grande investimento técnico,ético e político. Não acontecerão somente comboa vontade, não demoram somente por causade falhas na comunicação, nem por “falta” dehumanização. Mas bem acontecem por inevi-tável humanidade dos humanos ali envolvidos.

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Volta à abordagem metodológica, dahermenêutica-crítica à narrativa política

Gadamer (1997) coloca o tema da aplicação lo-go antes da discussão sobre saber ético e sabertécnico. Ele afirma enfaticamente que seria fal-so pensar que com o desenvolvimento tecnoló-gico poderíamos prescindir da reflexão ética.Pensamos que no bojo dessa discussão, e na suaelaboração sobre o destaque do objeto (lem-brando que, para esse autor, são o presente e osinteresses do pesquisador os que operam o “des-taque”), está a questão da práxis. No universogadameriano há sempre uma relação já exis-tente entre linguagem e ação. Essa é a causa pe-la qual a hermenêutica está sempre em buscado sentido, à diferença de certos ramos da lin-güística preocupados com a estrutura da lin-guagem.

Gadamer diz-nos: aquele que atua lida comcoisas que nem sempre são como são, pois que sãotambém diferentes (...) Seu saber deve orientarsempre seu fazer (1997). Parece-nos importantedestacar esse aspecto que vincula indissociavel-mente a práxis à ética. Sempre que nos depara-mos com dilemas éticos é em relação a algumaação, raramente a um discurso. A retórica estásalva dessas indagações, ou senão não existi-riam os sofismos. À retórica interessa conven-cer e não a busca da verdade. Destarte, enquan-to a retórica afirma, a hermenêutica interroga.

Recentemente Julia Kristeva, reflexionandosobre “as novas doenças da alma”, interpela-nos: Você tem uma alma? Essa pergunta – filosó-fica, teológica ou simplesmente incongruente –encerra hoje uma nova dimensão. Confrontadaaos neurolépticos, à aeróbica e ao massacre damídia, a alma ainda existe? (2002a).

Para essa autora, toda interpretação é uma“revolta” (Kristeva, 2000). Na etimologia da pa-lavra revolta, lembra-nos, está contida a acep-ção “rejeição da autoridade” (autores comoFoucault e Nietzsche teriam concordado). Gada-mer, na sua elaboração sobre o mundo do tex-to, afirma que não é fácil pensar que o que estáescrito não seja verdade. O próprio movimen-to de fixação pela escrita outorga ao texto es-crito um estatuto de autoridade. Mas, para ele,a autoridade é algo que aceita ser inspecionadoe não uma submissão. É na volta à tradição, naescuta das múltiplas vozes com que ela nos falaque podemos achar a nossa própria voz.

Kristeva lembra-nos que somos indivíduose há muito tempo. Houve de fato, na moderni-dade, diversas figuras da subjetividade e diver-

sas modalidades do tempo. Dentre elas, a psi-canálise nos diz que a felicidade só existe aopreço de uma revolta: A revolta que se revelaacompanhando a experiência íntima da felicida-de é parte integrante do princípio do prazer.Aliás, no plano social a ordem normalizadora es-tá longe de ser perfeita e gera os excluídos(...)(Kristeva, 2000).

Portanto, esta autora chama-nos a atençãopara a necessidade de uma cultura-revolta nu-ma sociedade que vive, se desenvolve e não es-tagna. Para ela, quando essa cultura não existe,a vida transforma-se em uma vida de morte, deviolência física e mortal, de barbárie. Não é in-teressante, neste momento, voltar a refletir so-bre a periferia das grandes cidades brasileiras,as relações equipes-usuários que tentamos ma-pear acima, e a formulação de políticas públi-cas à luz das questões trazidas por Kristeva?

Tenho dúvidas sobre se a palavra barbárie,oferecida pela autora, seja a mais apropriadapara se pensar na miséria brasileira. Contudo,carecendo de maior criatividade, penso que pe-lo menos seria uma tentativa de tirar a situaçãode seu caráter inominável. Parece-me que po-deríamos aceitar uma frase do tipo: a produçãoem larga escala de miseráveis no Brasil consti-tui-se em uma barbárie.

O dicionário diz que barbárie vem de bar-baria “selvageria, crueldade, atrocidade, barbari-dade, barbarismo”. Talvez devamos dizer, narrarde novo e de outra forma essa atrocidade queno contemporâneo se apresenta naturalizada.Sabemos que é produzida, não é “natural”. E épreciso uma certa revolta para poder recuperara “experiência íntima de felicidade” no laço so-cial. Operação que só pode acontecer no “inter-esse”: entre a palavra e a ação (Kristeva, 2002b).

Para essa autora, o “inter-esse” é próprio dapolítica, e assim ela volta a colocar em contatoa narrativa e a política: É pela narrativa, e nãopela língua em si (que não lhe perdura menos co-mo via e passagem) que se realiza o pensamentopolítico (Kristeva, 2002b). Lembra-nos com is-so que a narrativa é sempre memória da ação eestranheza incessante. A ação nunca é possívelno isolamento desde que sempre estará inseri-da no mundo social. Portanto, seria precisoainda fazer uma outra tarefa: Ultrapassar a no-ção de texto, (...) Hei de me esforçar para intro-duzir, em seu lugar, a noção de experiência, quecompreende o princípio de prazer e o de renasci-mento de um sentido para o outro, e que só seriapossível compreender à luz da experiência-revol-ta (Kristeva, 2000).

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Experiência que, para essa autora, a psica-nálise poderia propiciar a cada sujeito humanoindividualmente.

Tentamos alinhavar uma narrativa que ar-gumenta que a psicanálise também teria umacontribuição a dar no contexto da saúde coleti-va brasileira, dos encontros entre trabalhadorese usuários, e nas instâncias de gestão do coti-diano. Procuramos mostrar as potencialidadesque algumas categorias da psicanálise pode-riam trazer para os nossos serviços de saúde. Ode um reconhecimento de um sentido para ooutro que não se baseie no recalque de nossa

afetividade, que possa aceitar um certo grau demal-estar, precisamente porque inserido no la-ço social.

E, na trilha aberta por Kristeva, autorizar-nos-íamos a dizer que o que traz para o textosua dimensão ética é constituir-se em uma nar-rativa política, aliás, única maneira de consti-tuir uma memória organizada desde os temposde Péricles. Assim, queremos deixar nossa con-tribuição na Saúde Coletiva brasileira, nossamaneira de responder metodológica, teórica epraticamente à pergunta de Kristeva: sim, ain-da temos uma luta e uma alma.

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Data de apresentação em 14/03/2005Aprovado em 19/04/2005Versão final apresentada em 5/05/2005