o discurso da morte na história

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o Discurso Da Morte Na História

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  • A morte interdita: o discurso da morte na Histriae no documentrio

    Christiane Pereira de SouzaMestre em Multimeios, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

    [email protected]

    Resumo: O texto faz uma reflexo sobre a morte e a tica de sua relao com ahistria e com o documentrio. Da idade mdia ao cinema documental, como tratamosum assunto to delicado e polmico ? Como a imagem sustenta o interdito ? atravsda construo de um pensamento tico e claro sobre a vida que dialogamos com amorte e suas barreiras ticas.

    Palavras chave: cinema, documentrio, morte, discurso.

    Resumen: El artculo reflexiona sobre la tica de la muerte y su relacin conla historia y el documental. La edad media de pelcula documental, cmo tratamosun asunto tan delicado y polmico ?Cmo la imagen sustenta la prohibicin ? Es atravs de la construccin de un pensamiento claro y tico acerca de la vida comopodemos establecer el dilogo con la muerte y sus barreras ticas.

    Palabras clave: cine, documentales, muerte, discurso.

    Abstract: The paper reflects on the ethics of death and its relation to history andthe documentary. The average age of documentary film, how do we treat a matteras delicate and controversial ? As the image maintains the interdict ? It is through theconstruction of a clear and ethical thinking about life we dialogue with death and theirethical barriers.

    Keywords: cinema, documentary, death speech.

    Rsum: Le document de rflexion sur lthique de la mort et sa relation lhis-toire et au documentaire. Lge moyen du film documentaire : comment traitons-nousdune question aussi dlicate et controverse ? Comment limage maintient-elle linter-dit ? Cest grce la construction dune pense claire et thique sur la vie que nousdialoguons avec la mort et ses barrires thiques.

    Mots-cls: cinma, documentaire, de la parole de mort.

    Parece ser que hay un grave error de funcionamiento. Comentarista en voice-over de la NASA durante la explosin de la lanzadera espacial Challenger, 28 de enerode 1986)

    (Nichols,1997,p.289)

    Doc On-line, n.07, Dezembro 2009, www.doc.ubi.pt, pp. 17-28.

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    Ograve erro de funcionamento diagnosticado pelo comentarista era o inesperado, oolhar acidental de uma cmera que capta a morte, o fragmento de uma imagemque cumpre sua funo narrativa e adiciona a ela um clmax dramtico, a espreitada morte ao vivo e a cores. Mas a representao da morte dentro de um espao ticonunca foi tarefa fcil, h sculos somos levados a encarar o Et moriemur ; Morremostodos (Aris, 2003, p.64). Mas como a registramos imagticamente ? Dentro de umdiscurso possvel, sustentado pelo interdito, como a representamos ? Como a imagemd conta de uma interdio to pungente ?

    Dos sculos XII ao XIII observamos uma intensa e profunda representao damorte sem culpa, a morte era domesticada, familiar, quase encenada. Amigos e par-entes do morto reuniam-se para contempl-lo em sua hora derradeira, durante scu-los a morte era um espetculo pblico que ningum pensaria em esquivar-se (Aris,2003, p.22).Mas a morte, ou sua representao transformou-se: O homem no sc XIIreconhece a morte de si mesmo, mas no sculo XVIII ela , antes de tudo, a mortedo outro; ela uma violao a vida cotidiana, uma ruptura, um interdito; a morte areafirmao de que a prosperidade do coletivo est ameaada. Na impossibilidade deimpedi-la, vamos silenci-la.

    Segundo Orlandi (2002) na Anlise do Discurso existe o silncio imposto, colo-cado em forma de dominao, onde o sujeito perde a voz; e o silncio proposto, umaforma de resistncia, de defesa e proteo. Para a psicanlise o silncio indicador desentido, tradutor de mensagens do inconsciente e isto ser refletido em toda relaodo homem com o a morte, mesmo silenciado ele d significado a sua representaodo fim inevitvel da condio humana, mesmo silenciada a morte possui um dizer.

    Surge neste perodo, um pouco fruto deste inconsciente, o erotismo macabro emrbido do sculo XVI ao XVIII, representado pelo Teatro Barroco, pela personificaomortal e quase sexual de santos como So Bartolomeu, Santa gata e as virgensmrtires, passando pelo Memento mori (Aris, 2003, p.144), como as mscaras mor-turias e fotografias instantneas e realistas do morto no sculo XIX, o fascnio pelocorpo morto existia e consagrava tabus.

    Paralelo ao fascnio se instaura o medo da morte, a repugnncia ao cadvere a interdio do olhar. O homem durante sculos conseguiu dominar o medo damorte e traduzi-lo em palavras. A sociedade permitia os ritos familiares e a brevi-dade melanclica de um fim anunciado era tratada com dignidade sem fugas ou falsifi-caes, a morte no era indizvel e inaudvel, mas tornou-se; e quando realmente estemedo apareceu, a Igreja, as pessoas e os mdicos se calaram, a morte se comprimiuno imaginrio, no mundo dos sonhos. So projees imaginrias, fetiches que habitamo inconsciente.

    Detentora de um discurso moral, a sociedade no se sente mais vontade emtratar da morte, pois ela despe o ser humano de uma aura eterna e consagra o fra-casso, portanto melhor que seja sempre a morte do outro, sem exceder o ponto ticode querer mostrar-se. A interdio da morte um processo lento, quase imperceptvel,que imposto, interiorizado e expresso no domnio dos gestos, do olhar, das palavrase das atitudes em relao morte e ao luto. a morte domada.

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    A Morte e o Interdito na Imagem

    A imagem significa dentro do estatuto da linguagem, ela se constitui em discurso(social, cultural, histrico) obedecendo a condies de produo e no mbito do si-lencio, do interdito, a imagem pode ser apagada, silenciada e mecanismos no faltampara recompor esta imagem.

    Tomando Foucault como exemplo, temos em sua histria da loucura uma condiomuito prxima da nossa histria da morte, pois quando a loucura torna-se familiardemais, ela expulsa do convvio social e aprisionada e a decifrao do louco resgatauma produo imaginria, literria e pictrica que expe sua condio. A formaodiscursiva da loucura e da morte segue um roteiro de interpretao ligado a regrasdeterminadas: religiosas, mdicas, patolgicas, etc.

    Quando a representao da morte era ainda permitida, mesmo que como reve-laes do inconsciente surgem imagens e atitudes instigantes. No sculo XIX com ainveno da fotografia aconteceu o fenmeno das fotografias morturias que repre-sentam bem a relao que o homem ainda estabelecia com a morte.

    A fotografia morturia tinha a inteno de preservar a imagem do morto para aposteridade, eternizar o momento do luto e da dor. A famlia compartilhava com a so-ciedade a rememorao de seu ente querido, antes da fotografia a mscara morturiacumpria bem este papel; Wagner, Rodin, Verlaine, Robespierre, todos tiveram seusrostos retratados na hora morte, na fotografia foram retratados; Victor Hugo, Adele H,Jean Coucteau, aps a democratizao da fotografia, os costumes apontaram parauma classificao mrbida deste ato, quase patolgica, que foi aos poucos abandon-ado. Mas estes atos quando realizados estavam em conformidade com classes e con-ceitos que sustentavam um discurso na poca.

    Para o homem moderno a morte e o morrer passam a ser tratados dentro docampo do desapego e dos ritos da funcionalidade das instituies atuais, o corpomorto inspira um sentimento de curiosidade, mas tambm de asco.

    O cinema, o real e a puno da morte repre-

    sentada

    O cinema documentrio diferente do cinema de fico trabalha a representaoda morte dentro de um espao tico. A imagem comprometida agora com uma reali-dade, no pode transpor a tnue linha do obsceno.

    O medo da morte deu lugar ao medo da imagem da morte, o cdigo tico que regeo documentrio sabe que perigoso expor os extremos de horror e prazer, porque oolhar do espectador ainda se esquiva do horror, o olhar procura a imagem silenciadapara estabelecer seu elo com o indizvel, pois a morte no sculo da imagem ainda amorte interdita.

    O olhar da cmera deve justificar-se perante a morte, pois segundo Vivian Sobchacka morte confunde todos os cdigos. (Sobchack, 2005, p.127) Sua representao ex-cede os limites da codificao da imagem. Mesmo assim a imagem do documentrio

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    capta fragmentos do real que normalmente so trabalhados atravs da montagem, dainsero da fala, da intencionalidade do cineasta, mas que podem compor um quadrosingular, a tenso da tomada que captura um instante nico. Vivian Sobchack nosfala desse olhar, vejamos alguns exemplos, (Sobchack, 2005, p.127):

    O olhar acidental : A cmera estava ali no momento da morte inesperadamente.Exemplos : a filmagem do assassinato de John F. Kennedy ou o assassinato de umjovem negro pelos motoqueiros dos Hells Angels em um show dos Rolling Stones emGuimme Shelter (1969), a cmera apresenta-se normalmente vulnervel, catica. Oolhar acidental s est separado da curiosidade mrbida por uma linha bem tnue...as psicopatologias do desejo podem infiltrar qualquer tica (Sobchack, 2005 ,p.128).

    OOlhar impotente : Percebe-se a distncia do cinegrafista em determinado evento,distncia fsica ou dentro da lei, sem possibilidade de interveno. Os registros filma-dos de execues so uns exemplos.

    O Olhar ameaado : percebido no pela distncia do evento, mas pela proximi-dade com eventos de violncia e morte. Documentrio de guerra um bom exemplo.

    O Olhar interventivo : o olhar que estabelece um encontro visual com a morteconfrontante, existe um envolvimento fsico com o ato. A repentina interrupo deuma seqncia no documentrio francs, A batalha do Chile (1973-1979) resultadoda morte ao vivo do cinegrafista, um exemplo, a tela escura revela a morte derra-deira.

    Todos estes olhares e outros mais so trabalhados dentro de uma esttica dodocumentrio que age sobre o real de diversas maneiras, que se posiciona frenteaos mecanismos de produo e expe seus seguimentos, seja o cinema verdade, odocumentrio clssico, etc. Isso que dizer que as imagens passam tambm por umprocesso de historicizao, elas possuem um dizer e um j dito e no caso da interdi-o do olhar, possuem um silncio. Dentro de um interdiscurso, vimos o que dito oque esquecido ou no dito, e todos so ricos em significado. O documentrio escol-hido para anlise apresenta um ponto importante na interdio da imagem, na ticado corpo e na representao da morte. Dentro da perspectiva da anlise, temos in-meras possibilidades e foi escolhida uma aplicada ao documentrio : O Homem Urso(2005) de Werner Herzog.

    O Homem Urso (Grizzly Man)

    Mrio Quinta muito sabiamente disse certa vez : Se eu amo meu semelhante ?Sim. Mas onde encontrar meu semelhante ?. A relao com o outro, a alteridade, jrendeu muitas discusses acaloradas e desafia o cinema desde seus primrdios aexpor-la, question-la, subverte-la. O documentrio enquanto linguagem estabelececom o outro uma tnue relao de troca, de compromisso e cumplicidade. O docu-mentrio um desafio ao espectador porque habilitado a falar pela realidade quando,como toda linguagem, carrega sua prpria idia do real e sua prpria viso do outro.Werner Herzog sempre soube decompor detalhadamente este tema em seus filmes,de Aguirre ( Aguirre, Der Zorn Gottes, Alemanha/ Mxico/ Peru, 1973) a Nosferatu(Nosferatu, Phantom der Nacht, 1979, Alemanha / Frana)passando por Kaspar Hau-

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    ser(Jeder fr Sich und Gott Gegen Alle, 1974), e at em sua relao com o ator KlausKinski ele sempre lidou de maneira brilhante com a predisposio do homem com odiferente.

    A filmografia de Herzog tem uma farta composio de documentrios que expeum pouco, como os documentrios de Robert Flaherty, o homem frente natureza esua dimenso pica. Mas o homem de Werzog um homem exposto, em sua fragili-dade e em sua dimenso humana, sua solido e sua loucura, chegando aquele limiteque nos impressiona. Temos um resumo de sua obra explicada por Amir Laback:

    Fata Morgana (Fata Morgana, Werner Herzog, Alemanha, 79, 1970) - Fata mor-gana quer dizer miragem, explica o prprio cineasta. Realidade e fantasia se mis-turam, fundando uma nova realidade a partir de uma atribulada viagem pela frica.O Grande xtase do Entalhador Steiner (The Great Ecstasy of Woodcarver Steiner ,Werner Herzog,Alemanha, 47 min,1974) - Um retrato do campeo mundial e recordistade saltos de esqui, Walter Steiner. Um heri legitimamente herzoguiano : obcecado,solitrio, sempre desafiando os prprios limites.

    Lies da Escurido (Lessons of Darkness,Werner Herzog, Alemanha, 52, 1992)- De volta ao estranho espao do deserto, Herzog acompanha a primeira Guerrado Golfo. Hipnotiza-o especialmente o infindvel incndio dos poos de petrleo noKuwait. Num ensaio livre, visualmente exuberante, frisa o convvio entre o fascnio e omacabro nos conflitos blicos.

    Sinos do Abismo : F e Superstio na Rssia (Bells from the Deep, WernerHerzog,Alemanha/EUA, 60, 1993 - Um filme sobre a f e a superstio na Rssiaps-sovitica.

    Pequeno Dieter Precisa Voar (Little Dieter Needs to Fly, Werner Herzog, Ale-manha, 80,1997) - Um retrato de Dieter Dengler, imigrante alemo nos EUA que setornou prisioneiro de guerra dos vietcongues. Grande Prmio do Jri de Amsterd1997.

    Meu Melhor Inimigo (Mein Liebster Feind, My Best Fiend, Werner Herzog, Ale-manha,95, (1999) - Filme sobre a relao de amor e dio entre o diretor WernerHerzog e o ator Klaus Kinski, protagonista de alguns de seus mais importantes filmesde fico, como Aguirre, a Clera dos Deuses e Fitzcarraldo, lanado no Festivalde Cannes de 1999.

    Juliane Cai na Selva (Julianes Sturz in den Dschungel/Wings of Hope, WernerHerzog, Alemanha/G-Bretanha, 70, 1999) - Em 1971, um avio com 92 passageirosdesapareceu na selva amaznica peruana sem deixar pistas. Aps dez dias, as bus-cas intensas foram abandonadas. No dcimo segundo dia, eis que Juliane Koepcke,uma menina de dezessete anos, aparece. Foi a nica sobrevivente

    ODiamante Branco (TheWhite Diamond,Werner Herzog,EUA,90, 2004) - Amaz-nia, 1992: um acidente com um prottipo de dirigvel criado pelo cientista britnico Gra-ham Dorrington mata seu amigo e diretor de filmes ecolgicos, Dieter Plage, enquantofilmava animais selvagens junto ao Rio Amazonas. Doze anos depois, Werner Herzogretorna regio ao lado de Dorrington, disposto a fazer uma segunda tentativa. Melhordocumentrio pelo New York Film Critics Circle.

    Alm do Infinito Azul (The Wild Blue Yonder , Werner Herzog, EUA, 81, 2005) -Herzog parte aqui de uma proposio hipottica: um grupo dos astronautas circunda a

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    Terra em uma nave espacial e no pode retornar, j que o planeta tornou-se inabitvel.As causas do desastre so desconhecidas. Os astronautas precisam encontrar um lo-cal mais habitvel no espao, mas descobrem que, sem os humanos saberem, o plan-eta tem sido visitado por outros seres h dcadas. Eles vm de um planeta submersoem gua, o Infinito Azul, e tentam criar uma nova comunidade na Terra. Vencedor dopremio FIPRESCI, no Festival de Veneza de 2005.

    A anlise ser sobre seu documentrio O Homem Urso (Grizzly Man, 2005) queconta histria do ecologista americano Timothy Treadwell que dedicou literalmentesua vida a preservar os ursos pardos do Alasca e a reconhecer neles, no no homem,seu semelhante.

    Ele viveu sua saga de ambientalista por aproximadamente treze anos, antes dissodescreveu a si mesmo como aspirante a ator, e teve um srio envolvimento com drogase lcool, questionava sua relao com as pessoas, com as mulheres e tentou fugir deum destino que soava medocre, para entrar na histria como um heri dos direitosambientais.

    Como ambientalista percorreu escolas e programas de TV para discutir sua ex-perincia e educar o pblico sobre a preservao dos ursos pardos e neste perodogravou em uma cmera porttil sua perigosa relao com estes animais. Fundou tam-bm a Grizzly People uma organizao voltada para proteger os ursos e seu habitat.Da apatia de no se encaixar nos moldes de uma sociedade conservadora a person-alidade polmica, foi um pulo.

    O documentrio baseado nas imagens que Timothy fazia com sua cmera nosacampamentos que freqentava, quando passava meses dormindo, comendo, obser-vando e cuidando dos grandes e assustadores ursos pardos e nas imagens (entrevis-tas, reflexes narrativas) do prprio Herzog. Poderamos analisar dois documentrios,o de Timothy e o de Herzog, os dois com narrativas complementares.

    A imagem que Treadwell captava era uma imagem quase sem contracampo, tra-zendo um espao do inesperado, um espao presente no imaginrio do espectador eausente na imagem. Desfeitas de uma resposta pronta, s cenas de Treadwell encer-ravam em si todas as dvidas e as poucas certezas de sua histria; quem era ele afi-nal? Seu passado, seu excessivo sentimentalismo, seu descompassado pensamento,sua luta ambiental. So imagens quase brutas e espontneas que camuflam, masno escondem suas imperfeies. Quando mostram Timothy amando os animais ouodiando os homens.

    Por outro lado temos as imagens e a edio de Herzog, seu enquadramento, suanarrativa, sua montagem, que nos conduzem a dedues mais ousadas sobre o queescondia as entrelinhas da histria, as imagens continuam carregadas de interesse,de imperfeies, manipulaes, mas agora um documentrio sobre um documentoquase bruto. O documentrio mais do que a fico busca desafiar o status da verdadee nos propor indagaes ou certezas. O Homem Urso (Grizzly Man) carrega as duascoisas.

    Como um dirio de uma tragdia anunciada Timothy nos legava a cada filmagemum aspecto de sua ousadia que em certos momentos, nos deixava perplexos e emoutros convencidos de que: mais do que preocupado com os ursos ele estava desilu-dido com o ser humano. Oscilava momentos de compaixo, como a cena em que se

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    comove com a morte de uma abelha ou a amizade com uma raposa, e raiva, como emseu brutal desabafo sobre seus crticos.

    Ele era questionado por todos. Tcnicos ambientais, diziam que a rea em queviviam estes ursos j era de preservao ambiental e a maneira como Timothy abor-dava os animais era extremamente perigosa. A policia queria proteg-lo dos possveisataques e at o povo que sempre respeitou os ursos pardos, os esquims, acredi-tavam que seu mtodo de aproximao dos ursos tornava os mesmos vulnerveis ahumanos, um perigo para a espcie. Mas ele desafiava o espectador a se colocar emseu lugar o sentenciando a morte: Voc morrer se fizer o que eu fao, porm asentena se estendeu ao seu prprio destino.

    Chegamos ao ponto; a morte surge como tema principal do documentrio de Her-zog, uma morte anunciada, desejada e quase encenada por Timothy, o ambientalistaem um discurso cifrado expe o gozo da morte. Suas imagens so a espreita da trag-dia que mais cedo ou mais tarde se abateria sobre ele.

    Herzog realiza um documentrio honesto sobre um personagem solitrio, humanoe quase insano. Timothy, por sua vez tambm realiza um documento de sua ousadia,como um sujeito da cmera ameaado ele produz a imagem intensa, da qual nos falaFerno Ramos em Mas afinal... o que mesmo um documentrio? a integridadedo corpo fsico ameaada, podemos ser surpreendidos pelo ataque dos ursos a Tread-well, mas ele se posiciona frente cmera e solitrio, aguarda que sua sentena secumpra.

    Mas temos a tica da imagem, Pascal Bonitzer fala em seu artigo Lcran dufantasme (Ferno, 2008, p.151)do paradigma da fera sobre a tica do sujeito cmeradevorado, uma tica que cobra do espectador um distanciamento e no uma gula,uma necessidade de presenciar o esfacelamento do corpo.

    Timothy e sua namorada Amie Huguenardforam literalmente devorados e a ferainstaurou para Herzog a dura pena de pensar na representao da morte. Como aidia de um corpo levado condio extrema? O dilaceramento da dor cruel de umhomem devorado por sua causa maior.

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    Amie Huguenard e Timothy Treadwell

    O documentrio trava um duelo com a morte de Timothy, expondo atravs de de-poimentos de pessoas envolvidas com o ambientalista o relato sobre seus ltimos mo-mentos e a descoberta de sua morte trgica. O ambientalista e sua namorada foramcomodos por um urso velho e faminto e com riqueza de detalhes temos a descriode como aconteceu o ataque, como foram encontrados os corpos e como a ousadia,compaixo, a coragem e insanidade de Timothy selaram seu destino e o de Amie.

    Cada olhar revela uma resposta, cada olhar representa um discurso velado sobreo horror da morte trgica e desvenda signos do inconsciente, cada olhar carrega seuprprio silncio de resistncia, de censura, de compaixo.

    Segundo Bill Nichols em A Representao da Realidade: Como podemos viven-ciar as contradies de um evento que esta construdo a partir do inimaginvel, doinvisvel e do insuportvel? (Nichols, 1997).

    Em duas cenas particularmente instigantes temos a reflexo sobre o inimaginvel,e a representao da morte dentro de um limite tico encontrado por Herzog foi usarprimeiro o discurso do legista que atravs de expresses, gestos e principalmente afala relata como estavam os restos mortais e como, segundo seus estudos, aconte-ceu o ataque e legitima o discurso da morte fsica. O documentrio no pode fugirdo inevitvel fim de Timothy e tenta cumprir-lo da maneira mais ntegra possvel. Olegista enquadrado em seu habitat signos do inconsciente (Nichols, 1997) com aven-tal azul, uma cama branca, ferramentas de autpsia, acompanhado por uma cmeratensa que reage ao seu exaltado e emocionado relato, esta cmera ao final se afasta,chocada e enternecida.

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    Legista em O Homem Urso

    Mas a cena que expe a tragdia de maneira silenciosa, com economiade palavras e riqueza de expresses a cena em que Herzog ouve a fita da mortede Timothy e Amie. No dia em que foi morto, ele deixou a cmera ligada, mas tam-pada, somente o som foi gravado, em uma cruel coincidncia, Timothy foi poupado deter registrado o insuportvel, a imagem intensa. A tomada que carregaria a dolorosacondio da fragilidade humana no existe, maspode-se ouvir, segundo Herzog e olegista, os gritos e gemidos de Timothy e Amie.

    Herzog ouve a fita ao lado da ex-namorada de Timothy e desaba; visivelmentechocado ele pede a ela que destrua a fita para que esta nunca mais a assombre.

    A cmera fecha em close seu rosto, de lado com as mos tremulas, em choque aoouvir o som da morte e acompanha um close do rosto de Jewel em profundo assom-bro. So imagens fortes que dimensionam a dor dos envolvidos sem necessariamenteexpor o obsceno. No precisamos ouvir a fita para compreender a tragdia. O traumaest l nas expresses de Herzog e Jewel, que sua vez legitimam a morte respeitosado ser humano, enquanto o legista nos enche de detalhes do esfacelamento do corpo,Herzog e Jewel nos mostram com seu silncio o esfacelamento da alma humana, ocorpo profanado continua l, mas salvo de qualquer exposio.

    O silncio da imagem aqui significa, e o corpo morto tambm compe a histria,e reconta seu drama. O cinema realiza a sua grande funo desafiar o espectadora transformar a ausncia em presena, esvaziar, preencher, refazer os espaos e otempo.

    Herzog e Jewel

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    Concluso

    O horror! O horror!Joseph Conrad Corao das TrevasFalar da morte sem exagerar no mrbido um paradoxo profundo, mas a morte

    a pulso da vida e compreende-la, apresenta-la, resgata-la do imaginrio, do incon-sciente encerr-la no destino humano, como parte instigante dele.

    O documentrio de Herzog inevitavelmente trata da morte, pois ela selou o des-tino e Timothy e Amie cedo demais e dentro dos limites ticos que necessitam dosilncio para expor o grito de dor, Herzog cumpriu na imagem um belo papel.

    Joseph Campbell, grande estudioso americano da mitologia, dizia que temos emns algo que adormece e que herdamos do nosso contato primitivo com os animaisda floresta, este algo ameaa despertar quando nos aventuramos em regies inex-ploradas, talvez esteja a nsia de Treadwell de desafiar sua prpria natureza. Eledeixava a condio de homem para tentar exercer a de urso, o que poderia impedi-lo?

    Em outubro de 2003 Timothy Treadwellestava em busca de seu semelhante, masno sobreviveu a ele. Foi morto junto com sua namorada Amie Huguenardpor um ursopardo, velho e faminto nas montanhas do Alasca. Para ele, encarar a possibilidade damorte era menos traumatizante do que sobreviver a sociedade, portanto morrer era suma conseqncia de uma guerra que ele travava desde muito cedo com o mundo emque vivia e consigo mesmo.

    Poderia se encaixar muito bem como personagem de Herzog e conseguiu estepapel custa de sua tragdia particular, o documentrio um raio-X de um person-agem intrigante que desafiou o prprio e tnue limite entre ousadia e loucura.

    E ns mais uma vez aprendemos com Herzog, que a imagem deduo; e arealidade no se faz na pelcula, mas na conscincia do espectador. O documentrionos apresenta um homem convencido de que sua tragdia era um rito de passagemnecessrio, mas sem volta. Muitos jamais compreendero seus atos, mas com Herzogpercebemos que o Homem Urso Timothy uma extenso de nosso inconformismolevado ao extremo. Viver estes extremos sempre foi muito perigoso.

    No julgamento que sempre nos acomete quando nos deparamos com person-agens polmicos e instigantes s nos resta lembrar que era do semelhante humanoque Treadwell mais tinha medoe este mesmo semelhante que mais fascina Herzog,deste antagonismo surge um grande documentrio.

    A ltima palavra sobre a morte e o silncio vem de Rubens Alves e cabe bem aopapel que cumpre a imagem quando reflexiva usa o no verbal para significar.

    Eu vivia em Nova York com a minha famlia. A o pai da minha esposa foi mortonum acidente, no Brasil. Ao abrir a porta do apartamento, no cho estava um buqude flores. Aquele que o trouxera se retirara em silncio. No tocara a campainha. Masdeixara um bilhete onde estava escrito: No quis perturbar a sua dor.(Alves, Rubens,2008).

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  • 28 Christiane Pereira de Souza

    Filmografia

    Guimme Shelter (1969) de David e Albert MayslerLa Batalla de Chile(1973-1979) de Patricio GuzmanGrizzly Man (2005) de Werner HerzogAguirre, Der Zorn Gottes (1973) de Werner HerzogNosferatu, Phantom der Nacht ,( 1979) de Werner HerzogKaspar Hauser (1974) de Werner HerzogFata Morgana (1970) de Werner HerzogThe Great Ecstasy of Woodcarver Steiner (1974) de Werner HerzogLessons of Darkness (1992) de Werner HerzogBells from the Deep (1993) de Werner HerzogLittle Dieter Needs to Fly (1997) de Werner HerzogMein Liebster Feind, My Best Fiend (1999) de Werner HerzogJulianes Sturz in den Dschungel /Wings of Hope (1999) de Werner HerzogThe White Diamond (2004) de Werner HerzogThe Wild Blue Yonder (2005) de Werner Herzog