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Artur Oscar de Oliveira Deda O Direito nos 500 Anos do Brasil (UmaSíntesedaHistóriadoDireitoBrasileiro)

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Artur Oscar de Oliveira Deda

O Direito nos 500Anos do Brasil

(Uma Síntese da História do Direito Brasileiro)

Artur Oscar de Oliveira Deda.Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.

O Direito nos 500 Anos do Brasil(Uma Síntese da História do Direito Brasileiro)

Separata da Revista do Tribunal de Justiça doEstado de Sergipe nº 25, jul./dez., 2000

Aracaju2000

4 Artur Oscar de Oliveira Deda O Direito nos 500 Anos do Brasil

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPEDepartamento de Divulgação Judiciária

Direção: Joana Angelica de Souza TorresRevisão: José Alberto AlvesEditoração Eletrônica: Ana Lúcia da Silva LourençoTiragem: 500 exemplaresImpressão:

Praça Fausto Cardoso, nº 112,1º andar, salas 12 e 13 - Centro

CEP 49010-080 - Aracaju � SergipePABX: (079) 211-2030 - Ramais 197, 238 e 270

e-mail: [email protected]

DEDA, Artur Oscar de Oliveira.

O Direito nos 500 Anos do Brasil: uma síntese da história do direitobrasileiro / Artur Oscar de Oliveira Deda. -- Aracaju : Departamento de Divulga-ção /TJSE, 2000.

26 p.

Separata de : Revista do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, n. 25 (jul./dez. 2000)

I. Direito. II. História do direito brasileiro III. Título

CDU 34:94 (81)

D299d

O Direito nos 500 Anos do Brasil Artur Oscar de Oliveira Deda 5

Sumário

Introdução ....................................................................................................... 7

O Direito Reinícola Português .......................................................................... 9

A Organização Judiciária do Direito Reinícola ................................................. 11

O Direito do Brasil Independente ................................................................... 17

O Direito Republicano ................................................................................... 21

O Direito nos 500 Anos do Brasil Artur Oscar de Oliveira Deda 7

Introdução

Se compreendermos a História do Direito como o estudo progressivo dos institutosjurídicos, no tempo e no espaço, disciplinando as relações interpessoais, havemos de conce-ber a História do Direito Brasileiro como o estudo das leis e dos costumes aqui praticados aolongo do tempo. Mas � desde quando? Eis a questão.

Desde as primeiras pessoas que aqui viveram? que ocuparam partes deste imensoterritório?

Se entendêssemos assim, evidente que a História do Direito Brasileiro não teria apenas500 anos. Remontaria a mais de 10 mil anos, desde a presença, no litoral, dos homens dossambaquis. Ocorre, porém, que a constatação do ubi societas, ibi jus � não serve para estabe-lecer o marco inicial da História do Direito Brasileiro, pois que os homens dos sambaquis �pescadores, catadores de ostras � eram uma gente insubmissa a um sistema de vida que sepudesse considerar jurídico. Nem mesmo poderiam ser considerados habitantes.

Então, o termo a quo do nosso Direito teria sido o dia 22 de abril de 1.500?Alguns respondem, na esteira do raciocínio anterior, que os índios eram de uma �rusti-

cidade quase animal�. E acrescentam: �Se cabe aqui o advérbio�. Segundo o testemunho doPadre Simão de Vasconcelos, os índios viviam como feras montanhesas, andando em manadaspelos campos, sem leis nem jurisdição. Registra Waldemar Ferreira, a propósito: �Colocada,pelos conquistadores da terra, a gente, que nela vivia, à margem da civilização transplantada,mercê do estado de escravidão, a que foi condenada, subsistiu qual era, pouco a poucosubjugada e em condição ínfima. Nem tinha ela, de resto, o que oferecer, na trama de suascondições de vida, ao respeito dos que a submeteram, nem mesmo sua forma humana, seme-lhante à divina.�1

Outros, porém, revelam a existência de dados significativos da contribuição do aboríginespara a etiologia jurídica. Clóvis Beviláqua, por exemplo, vê manifestações de Direito Internaci-onal Público nas relações, entre si, das tribos selvagens. A declaração de guerra era simboliza-da pelo arremesso de flechas na taba inimiga. A celebração da paz, pelo quebrar da flecha. E

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recorre ao simbolismo poético, como o descrito por José de Alencar, em Iracema:�Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba e correu para o guerreiro, sentida da

mágoa que causara. A mão que rápida ferira estancou mais rápida e compassiva o sangue quegotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida; e dando a haste ao desconhecido,guardou consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: Quebras comigo a flecha da paz?�.2

O certo é que, se alguma colaboração houve dos nativos para a formação do nossodireito, foi mínima, sem importância, inexpressiva. Podemos então dizer que o direito brasileirocomeçou efetivamente depois de iniciada a colonização?

Também não!Precisamente pela influência dos colonizadores, a história do nosso Direito começou

antes do descobrimento. Por estranho que pareça � como assinala o Prof. Waldemar Ferreira,a história do Direito Brasileiro, nos seus primórdios e em grande parte do seu desenvolvimen-to, confunde-se com o Direito Português. Para Sílvio Romero, operou-se �a bifurcação brasi-leira, ou seja o transplantio do organismo jurídico-político português para esta parte do conti-nente sul-americano�.

É ainda Sílvio Romero quem diz não haver um só caso de um povo mais culto adotar asinstituições políticas do mais atrasado. Daí porque �o Direito teve� �de seguir fundamental-mente o seu curso reinol, tomando, apenas, de longe em longe, uma coloração divergente nasua superfície, sob o influxo de fatores étnicos e mesológicos.�3

Depois destas breves considerações, talvez possamos admitir que a História do DireitoBrasileiro conta mais de 500 anos.

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O Direito Reinícola Português

1. Durante o reinado de D. Manuel, os portugueses, depois do descobrimento, desinte-ressaram-se pelo Brasil. Deixaram-no praticamente ao abandono. Estavam mais preocupadoscom a exploração da Índia.

Coube a D. João III cuidar da colônia sul-americana, em razão mesmo do receio dacobiça de outros povos europeus. E foi instituído o sistema das Capitanias Hereditárias.Foram criadas doze, concedidas por carta de doação, cada qual das capitanias medindo cin-qüenta léguas de extensão, na costa brasileira, e �pelos sertões a dentro com a extensão que seachar�.

Desde as Capitanias até a Independência, vigorou no Brasil o Direito reinícola, compre-endendo, sucessivamente, as Ordenações Manuelinas e Filipinas, porque as Afonsinas jáhaviam sido substituídas pelas Manuelinas de 1512, com uma edição definitiva em 1521.

2. Mas para que se implantasse aqui o sistema das Capitanias, foi necessário mudar oDireito português. É que vigorava em Portugal, àquela época, a famigerada Lei Mental, cujarevogação manifestava-se imprescindível ao êxito do empreendimento colonizador.

E o que era a Lei Mental?A Coroa portuguesa, por interesses momentâneos do poder, começou a praticar uma

política nefasta, dilapidadora dos bens públicos. Para atender ao interesse de certas pessoasinfluentes, poderosas, terras e terras foram doadas, sem critério nem escrúpulo. Se fosse hoje,esse comportamento dos beneficiários seria chamado �fisiologismo�.

Aconteceu, porém, que os donatários, com �mundos e fundos�, tornaram-se muitopoderosos. Era preciso fazer reverter à Coroa essas doações. Mas como? Através da LeiMental, um modo indireto e arbitrário de obter a reversão.

Por que Lei Mental?Porque não era escrita, nem tornada público. Existia apenas na mente do rei.Conta-se que coube ao famigerado João das Regras a sugestão dessa lei, com a seguin-

te motivação, segundo Martins Júnior:

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�Vendo o Sr. D. João I que muitas doações eram inoficiosas pela absoluta e irreversívelalienação e pela independência em que os donatários a este respeito ficaram da Coroa, equerendo por uma parte remediar esses males, mas por outra conhecendo que as circunstânci-as do tempo o não permitiriam fazê-lo abertamente, como podemos conjeturar, formou na suamente (in petto) uma certa norma, segundo a qual regulava intelectual e intencionalmente osdireitos dos donatários sobre os bens doados, sobre a forma e modo de sucessores, etc.�4

O jurista atendia ao interesse do rei, mas prejudicava os de sua filha, donatária demuitas terras recebidas da Coroa. Mas para João das Regras o problema era de fácil solução.As doações feitas a sua filha passaram a uma nova classe, a das �doações especiais�, que nãopoderiam ser alcançadas pela lei restritiva.

O certo é que para efetivar a colonização do Brasil à semelhança do que fora feito nasilhas do Atlântico, não bastava o sistema das Capitanias. Era preciso romper com a Lei Mental,para atrair � a contribuição interesseira de quantos nobres sonhassem mundos e fundos e sedispusessem a empreendimento recheado de tantos tropeços e dificuldades�.

3. A carta de doação era o instrumento jurídico da Capitania, mas não tratava apenas detransferência de latifúndio (cinqüenta léguas de terras agricultáveis), pois compreendia tam-bém a carta de foral, que tratava dos privilégios, das prerrogativas, dos poderes dos donatários,governadores de pequenas coletividades submetidas ao poder senhorial.

O donatário era, assim, o Capitão e Governador. E a carta de doação e a carta de foral,reunidas num só instrumento, formavam o estatuto da Capitania. Era uma espécie de Mini-Constituição.

4. Com o fracasso da experiência, D. João III instituiu o Governo Geral, com o objetivode obviar as dificuldades resultantes da pulverização de poderes. Era preciso concentrar aadministração, �coibir os abusos e desmandos contra os gentios, regular as relações entre ascapitanias e submeter o poder dos donatários...�, conforme dispôs o Regimento Real de 1548.

O Governador-Geral tinha o seu regimento, que era uma espécie de Constituição. Aliás,o regimento de Tomé de Souza ficou conhecido como a primeira Constituição do Brasil.

5. No período do Vice-Reino, de 1640 a 1808, não houve modificações notáveis noâmbito da administração, no Brasil.

6. A importância do Brasil foi reconhecida, internacionalmente, depois da Carta Régia deAbertura dos Portos (1808), conseqüência da transmigração da família real, estabelecendo aquio governo monárquico português.

Depois, veio a Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815, elevando o Estado do Brasil àgraduação e categoria de reino.

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A Organização Judiciária do DireitoReinícola

1. Como já nos referimos, dentre os poderes dos donatários figurava o de governarpequenas coletividades. A carta de foral outorgava-lhes, dentre outras prerrogativas, a denomear o ouvidor, que era, depois deles, a autoridade de maior prestígio, desempenhando,além da função jurisdicional, a função administrativa. Era uma espécie de secretário. Noexercício da função jurisdicional, cabia-lhe a posição de cúpula do judiciário. A ele estavamsubmetidos os juízes, os almotacés, os escrivães e os meirinhos.

2. O Juiz Ordinário, ou Juiz da terra, era eleito, como os vereadores. Escreve, a propó-sito, a historiadora sergipana Maria Thétis Nunes, em trabalho sobre �A importância dosArquivos Judiciais para a Preservação da Memória Nacional�, publicado na Revista do Centrode Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal:

�Os juízes ordinários eram magistrados eleitos anualmente para integrar as CâmarasMunicipais, exercendo a presidência, cabendo-lhe a aplicação da lei na alçada do Município�...�Eram eleitos entre os �homens bons�, dos quais estavam excluídos operários, mecânicos,degredados, judeus e estrangeiros.�

�Aqui está: homens bons eram todos os que exploravam o alheio: os que do seutrabalho viviam, livres e escravos, nem os primeiros entravam naquele rol, comenta MaxFleuiss,na História Administrativa do Brasil.�5.

A competência do Juiz Ordinário cessava quando chegava o Juiz-de-Fora, nomeadopelo rei, com o poder de avocar a jurisdição do Juiz da terra. A preferência pelo Juiz-de-Fora eraexplicada por lei antiga, antes do descobrimento: A Carta de Lei de 1.352, do tempo de D.AfonsoIV. Nela se diz que melhores são os juízes-de-fora:

�...por presumir o direito que, sendo estranhos, sem na terra terem parentes e amigos,compadres ou companheiros, ou bem malquerenças e ódios com outros, podiam resistir àsprepotências dos poderosos, castigar os seus excessos, sem ficarem expostos à vingança dos

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mesmos poderosos, e assim faziam melhor justiça que os naturais da terra�. Assim estava aexplicação, na lei.

3. O Juiz Ordinário e o Juiz-de-Fora se distinguiam pelas insígnias que usavam publica-mente. Era uma vara � que não podia ser de cipó ou de junco para não parecer chibata (Nãoseria, porventura, a preocupação de afastar da justiça a idéia da prepotência e do abuso dopoder?). A vara do Juiz Ordinário era vermelha. Era branca, a do Juiz-de-Fora.

No Brasil, o primeiro Juiz-de-Fora foi o Dr. Joseph da Costa Correia, nomeado em 27 defevereiro de 1696.

4. Havia também o Juiz das Vintenas ou Vintenário. Tinha poderes limitados. No lugarou aldeia com vinte vizinhos, até cinqüenta, e que fosse mais de uma légua afastado da cidadeou vila, da qual fosse termo, o juiz da cidade e os vereadores podiam escolher esse juiz, quepodia prender malfeitores, conhecer de contendas entre os moradores, sem agravo nem apelo.Mas não podiam decidir sobre bens de raiz nem sobre crimes.

A denominação vem da exigência legal: no mínimo vinte vizinhos.Os Juízes Pedâneos surgiram com o aumento exagerado dos Juízes Ordinários. Passam

a ter competência muito limitada: o julgamento de causas insignificantes. Embora não hajaunidade de vistas entre os historiadores, a denominação resulta do fato de que os juízespedâneos atendiam às partes, �de pé�.

O processo não tinha forma nem figura de juízo. Era oral e sumaríssimo. Ouvidas aspartes, o juiz ditava a sentença, absolutória ou condenatória, ao escrivão.

5. Estabelecido o Governo-Geral, chegou na Bahia, em 29 de março de 1549, na comitivade Tomé de Souza, o Ouvidor-Geral (espécie de Ministro da Justiça) nomeado por D.João III.Era o desembargador Pero Borges, de passado não muito exemplar, segundo a pesquisa deEduardo Bueno, historiador e colunista da Revista Época, no artigo �O Patrono dos HomensPúblicos Ímprobos�. Conta Eduardo Bueno que Pero Borges, quando Corregedor em Elvas,fora incumbido pelo rei de supervisionar um aqueduto. E �adquiriu o estranho hábito dereceber dinheiro em casa, sem a presença do escrivão nem do depositário�. Denunciado pelodesvio de 114.064 réis, mais de 10% do total da verba, foi condenado, em 17 de maio de 1547, adevolver o dinheiro, e suspenso por três anos do exercício de cargos públicos. Mas um ano esete meses depois foi nomeado pelo mesmo rei para ser o primeiro Ouvidor-Geral do Brasil.

Em 1587 foi criada a Relação da Bahia, que deveria assumir, em grande parte, as atribui-ções do Ouvidor-Geral. A idéia da implantação do tribunal, porém, não foi aceita pacificamente.Gerou polêmica, muitos afirmando que os conflitos poderiam ser solucionados pelos métodosantigos. Prevaleceu, entretanto, a determinação de Felipe II, criando o tribunal, estabelecendoo seu regimento e nomeando os dez desembargadores, cuja viagem para o Brasil foi desastra-da. O navio que os transportava, em virtude de condições adversas, teve que voltar paraPortugal. O rei faleceu no ano seguinte.

Conta-se que o governador Diogo Botelho foi �quem primeiro lembrou ao Conselho anecessidade, ainda insatisfeita, do estabelecimento da Relação do Brasil. Não era, a julgarpelos documentos, um modelo de paladino da Justiça. Condenado à morte, em Portugal, pelasua resistência à posse de Felipe II, foi perdoado, já ao pé do patíbulo, por interferência defamiliares do rei. A lembrança era tão forte que, ao chegar à Bahia, mandou arrancar o pelourinhoda Praça do Palácio. Inobstante, requereu e conseguiu da Coroa que o restabelecimento daRelação fosse posto em análise. Felipe III mostrou-se favorável e, após quatro anos de consul-tas, a Relação do Brasil foi novamente regimentada, a 7 de março de 1609�. 6

O Direito nos 500 Anos do Brasil Artur Oscar de Oliveira Deda 13

O tribunal submetia-se a rígida disciplina: deveriam seus desembargadores despacharpelos menos quatro horas; eram proibidos de se afastar, exceto �por tal necessidade, que senão possa escusar�; não podiam freqüentar a casa de outras pessoas, salvo dos próprioscolegas. Também eram proibidos de tomar afilhados dentro da sua jurisdição.

Em 1751 foi criada a Relação do Rio de Janeiro. E quando o Brasil passou a Reino-Unido, foi criada a Casa de Suplicação e a Mesa do Desembargo do Passo, Consciência eOrdens, e, também, as Relações de Pernambuco e Maranhão.

6. Na organização judiciária do nosso passado, destacava-se a figura curiosa do meirinho,que era o oficial de justiça encarregado, como hoje, das comunicações dos atos judiciais. Nemfisicamente se confundiam com os de hoje, como se vê do registro do escritor Manuel Antôniode Almeida, no livro �Memórias de um Sargento de Milícias�:

�Os meirinhos desse belo tempo não se confundiam com ninguém; eram originais, eramtipos: nos seus semelhantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calcu-lados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesmacor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita perduravamum círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéuarmado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusavade sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, ocidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folhade papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio emtais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível � Dou-me por citado.�

7. O Direito reinícola experimentou grande transformação positiva no século 18, duran-te o reinado de D.José I e sob a influência inovadora do Marquês de Pombal. Essa modificaçãonotável do Direito português teve por instrumento a lei de 7 de agosto de 1769, a chamada Leida Boa Razão. Antes dela, os juízes estavam acostumados a julgar mecanicamente, preguiço-samente, citando autores medievais e a jurisprudência dos arestos, sem maior exame da razãoe do espírito das leis. Com a Lei da Boa Razão, mandava-se observar, por ser �muito maisracionável e muito mais coerente, o direito nacional, em vez do direito romano, da glosa e dosarestos que não estivessem em consonância com o direito natural e as leis das nações cristãsiluminadas e polidas, se em boa razão forem fundadas�.

�Fac-símile� da Edição da Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa

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O Direito do Brasil Independente

1. Proclamada a independência, a Assembléia Constituinte instalou-se em 3 de maio de1823 e, no mesmo ano, criou a lei que declarou em vigor a legislação pela qual se regia o Brasil,pois jus abhoret vacuum. Mesmo os decretos das cortes portuguesas, naturalmente desdeque não colidissem com a emancipação política. E a constituinte começou a elaboração doprojeto constitucional. Até que D.Pedro I resolveu dissolvê-la e nomear uma comissão de dezmembros para realizar o projeto de que resultou a Constituição de 1824, outorgada. Foi institu-ído o Estado Unitário e um governo monárquico e hereditário.

2. Grandes transformações sociais e políticas aconteceram durante o Império, desde aFundação dos Cursos Jurídicos (Lei de 11 de agosto de 1827), até a criação do Instituto daOrdem dos Advogados Brasileiros (1843). Foi nesse período que começou a campanhalibertadora dos escravos no Brasil, em que se destacavam, de um lado, a mocidade estudantilbrasileira, representada por Castro Alves; do outro, os advogados, representados por Agos-tinho Marques Perdigão Malheiro, presidente do Instituto dos Advogados. Sobre a importân-cia da atuação dos dois líderes, escreveu Haroldo Valladão:

�O brado de 1863, pela abolição, de Perdigão Malheiro no Instituto dos Advogados, ea campanha de Castro Alves, ambos com grande repercussão nacional, determinaram a inter-venção direta e ostensiva do Imperador que apresenta em 1866, ao Conselho de Estado, cincoprojetos sobre a emancipação, a seu pedido elaborados por Pimenta Bueno, um dos quaisrelativo à libertação dos nascituros�. 7

A poesia alvesiana é comovedora, quando, em versos como estes, lembra o sacrifíciodos pobres escravos, cujos grilhões cruéis somente se quebravam depois da morte:

�Caminheiro, do escravo desgraçadoO sono agora mesmo começou.Não lhe toques no leito de noivado.Há pouco a liberdade o desposou.�

18 Artur Oscar de Oliveira Deda O Direito nos 500 Anos do Brasil

Nesta corajosa imprecação anti-escravista, a poesia alvesiana é empolgante e arrebatao estudante de direito de sua época:

�Auri-verde pendão de minha terra,Que a brisa do Brasil beija e balança;Estandarte que a luz do sol encerraE as promessas divinas da esperança,Tu que da liberdade após a guerra,Foste hasteado dos heróis na lança,Antes te houvessem roto na batalha,Que servires a um povo de mortalha.�Desse movimento humanista e glorioso resultou a Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888,

com apenas dois artigos:�Art. 1º - É declarada extinta a escravidão no Brasil.��Art.2º - Revogam-se as disposições em contrário.�3. A Constituição de 1824 reconhecia a existência de quatro poderes: o Executivo, o

Legislativo, o Judiciário e o Moderador. Na verdade, este último, concebido para moderar opoder do monarca, servia apenas para o monarca �moderar� os outros poderes.

O art. 163 determinava que �na capital do Império, além da Relação que deve existir,haverá também um tribunal com a denominação de Supremo Tribunal de Justiça, composto dedezessete juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades, e serão condecoradoscom o título de conselheiros...� Esse tribunal foi organizado pela Lei de 9 de setembro de 1829.O primeiro presidente foi o português José Albano Fragoso, formado em Coimbra em 1789, eque foi desembargador da Relação do Rio de Janeiro e desembargador da Casa de Suplicaçãodo Brasil.

Monumento legislativo do Império é o Código Comercial Brasileiro, velho de muitasdécadas, ainda em vigor. É de 1850.

O Direito nos 500 Anos do Brasil Artur Oscar de Oliveira Deda 19

Fontispício da Constituição de 1824

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O Direito Republicano

1. Proclamada a República e estabelecido o Governo Provisório, este convocou aAssembléia Constituinte, marcada a eleição para 15 de setembro de 1890, e sua reunião para 15de novembro. Foi nomeada uma comissão para elaborar o projeto da Constituição Federal.Antes de votada a Constituição, o Governo Provisório empreendeu importantes reformaslegislativas, como a Lei do Casamento Civil e o Código Penal, que vigorou por mais de meioséculo.

O Ministro da Justiça Campos Salles exerceu notável influência. Pelo Decreto nº 848, de11 de outubro de 1890, o Supremo Tribunal de Justiça passou a denominar-se Supremo Tribu-nal Federal, agora com a função relevante de controlar a constitucionalidade das leis. Naexposição de motivos, disse o Ministro que o órgão de cúpula do Judiciário brasileiro não maisseria, apenas, mero aplicador da lei.

Em 24 de fevereiro de 1891, a Assembléia Constituinte aprovou a Constituição, adotadoo regime federativo e representativo. Vigorou até 1930.

2. Após o reconhecimento constitucional, o Supremo instalou-se no dia 28 de fevereirode 1891, com os seus quinze ministros. Em face de sua nova posição � entidade oracular nadefesa dos direitos individuais � haveria de enfrentar crises políticas nos primeiros anos doregime. Assim, a controvérsia sobre a permanência do Vice-Presidente Floriano Peixoto, de-pois da renúncia de Deodoro, que cumpriu apenas nove meses do seu mandato. Foi decretadoo estado de sítio e figuras de destaque nacional foram presas sem processo regular, como opoeta Olavo Bilac e o Senador Almirante Wandenkolk.

Em favor dos perseguidos, Rui Barbosa impetrou habeas corpus, indeferido � diz-se�porque prevaleceram as chamadas �razões de Estado�. Um voto divergente, apenas; o doMinistro Pisa e Almeida, a cujas mãos, reverente, beijou o paladino da liberdade. A maioria,entendeu não ser da competência do Tribunal a apreciação de matéria política, já entregue aoexame do Congresso, que ainda não se pronunciara.

O ato emocional de Rui, beijando as mãos de Pisa e Almeida, sempre nos pareceu que foi

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menos de louvor a quem proferiu o corajoso voto discrepante, e muito mais de desapreço àmaioria que tergiversou. Mas os libelos ruianos que se seguiram àquela decisão política,haveriam de substituir-se por declarações de confiança no Supremo. Foi quando houve aconcessão de habeas corpus aos presos do navio Júpiter. Então, disse Rui: �...tivemos pelaprimeira vez a visão desse pontificado quase divino da magistratura judiciária qual os america-nos a criaram�.

Grande obra legislativa da Primeira República foi o Código Civil Brasileiro, de 1916,ainda em vigor. Sílvio Romero participou de sua elaboração como Presidente da Comissão dos21.

3. A vitória eleitoral de Júlio Prestes, para a Presidência da República, apoiado porWashington Luiz, e, conseqüentemente, a derrota da Aliança Liberal, fez irromper o movimentorevolucionário no Rio Grande do Sul, liderado por Getúlio Vargas. Com a vitória da revolução,assumiu o poder uma Junta Governativa, aguardando a chegada triunfal de Getúlio, o queocorreu no dia 31 de outubro de 1930. Em 11 de novembro foi publicado um decreto instituindoo Governo Provisório e confirmando a dissolução do Congresso Nacional, das AssembléiasLegislativas e Câmaras Municipais. Foi mantido o Poder Judiciário, mas suspensas as garan-tias individuais e excluída a apreciação judicial dos atos do governo.

O STF foi atingido duramente, sendo aposentados diversos ministros.O Governo Provisório reduziu para onze o número de ministros do Supremo, quadro

que a Constituição de 1934 manteve.Com a Constituição de 1937, houve o retorno à ditadura do Governo Provisório. Foi

instituído o Estado Novo em que só o Presidente governava, através de decretos-leis, decretose atos. Acentuou-se a produção legislativa. Assim, foram promulgados, nesse período, oCódigo de Processo Civil (1939), o Código Penal (1940), o Código de Processo Penal (1941) e aConsolidação das Leis do Trabalho (1943).

Com o fim da segunda guerra mundial, também chegava ao termo a segunda República.A campanha da redemocratização fez-se vitoriosa. A ditadura emite a Lei Constitucional nº 9,de 28 de fevereiro de 1945, prometendo uma Constituinte. Não o cumpre. Depois da vitória dosaliados, Getúlio é deposto pelos militares, assumindo o governo o Presidente do STF, MinistroJosé Linhares, marcadas as eleições para 2 de dezembro de 1945. Foi eleito o Marechal EuricoGaspar Dutra. Um modelo de Constituição liberal foi a de 1946, que enfaticamente, dispunha ,no art. 141, que �a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão dedireito individual�.

4. Depois de fatos políticos relevantes, como a renúncia de Jânio Quadros, a posse deJoão Goulart, a instituição e extinção do parlamentarismo e o comício da Central do Brasil,instaurou-se a Revolução de 1964, com uma seqüência de atos institucionais.

O Ato Institucional nº 1 foi editado em 9 de abril, depondo o Presidente da República einiciando o processo de cassações.

O Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965 manteve, com alterações, a Constitui-ção Federal e as Estaduais, instituindo eleição indireta para Presidente da República, extinguin-do os partidos políticos e reabrindo as cassações.

O Ato Institucional nº 3, de 5 de fevereiro de 1966, instituiu eleição indireta para osEstados e estabeleceu a nomeação de Prefeitos nas capitais.

O Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966, convocou o Congresso para votara Constituição que passou a vigorar em 24 de janeiro de 1967. Essa Constituição, no art. 151,

O Direito nos 500 Anos do Brasil Artur Oscar de Oliveira Deda 23

previa a possibilidade de condenação por abuso da liberdade de manifestação do pensamento.A primeira tentativa de aplicação do art. 151 gerou grave crise política de que resultou o AtoInstitucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. É que a Câmara negou o pedido de licença parao processo de um de seus membros. Os reflexos dessa crise foram os piores, mergulhando oPaís na ditadura que mais violentamente atingiu as liberdades democráticas e mais ostensiva-mente afetou os Poderes Legislativo e Judiciário.

Do Poder Judiciário foi retirada a prerrogativa de apreciação dos atos revolucionários ea de conceder habeas corpus em casos de crimes políticos contra a segurança Nacional. Igual-mente impedia o Judiciário de apreciar a decretação de confisco de bens pelo Presidente daRepública. Com base nesse ato foram aposentados os Ministros Victor Nunes Leal, EvandroLins e Silva e Hermes Lima. Em gesto de solidariedade aos colegas punidos, requereramaposentadoria os Ministros Lafayette de Andrada e Gonçalves de Oliveira, este, Presidente doSupremo, à época. O ministro Gonçalves de Oliveira fez o possível na defesa da instituição,agindo serenamente, sem impulsos nem arrebatamentos.

No início do seu Governo, o Presidente Ernesto Geisel fez visita protocolar ao SupremoTribunal Federal, manifestando o interesse de empreender a reforma necessária e obteve ochamado �diagnóstico� do Judiciário, ponto de partida para a Emenda Constitucional nº7 , de13 de abril de 1977, e a Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, a chamada LOMAN. Naverdade, essas alterações legislativas pouco significaram. Aliás, cuidou-se mais de problemasmenos importantes. Tratou-se até de miudezas, como, por exemplo, a inserção no texto dodocumento legislativo de uma norma a explicitar a prerrogativa de o magistrado portar arma dedefesa pessoal. Ora, a reforma que se esperava era a que viesse manifestar-se positivamentena primeira instância, sobretudo, e particularmente nos grandes centros urbanos, onde seresolvem os problemas que afetam o dia a dia do povo.

O quadro angustiante de um judiciário em descompasso com a realidade e inacessívelaos pobres, de uma justiça ineficiente e tarda, ou, para usar a expressão candente do saudosoMinistro Ribeiro da Costa, �perdido nos labirintos cartoriais, triturado na transferência intermi-nável das instâncias�, permaneceu com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Depois da distenção que se pretendia �lenta e gradual� � aqui e ali prejudicada porfatos surpreendentes, como a explosão de uma bomba no Riocentro � veio a campanha das�Diretas Já�, e, finalmente, a redemocratização, culminando com a Constituição em vigor. Sãofatos da atualidade. Deles, cuida a crônica. Ainda não pertencem à história.

A vitória da revolução traz como conseqüência a dissoluçãodo Congresso Nacional e a anistia, mas a Junta aguarda achegada do Dr. Getúlio a esta capital a fim de serem expedidosos necessários atos.As nomeações até agora feitas são as estritamente indispen-sáveis ao regular funcionamento dos serviços públicos e

têm, todas elas, caráter interino.Foram expedidas pela Junta e pelas forças revolucioná-

rias do sul e do norte as ordens definitivas para acessação das hostilidades e completa pacifica-

ção do país.A Junta garantirá a ordem pública, a

segurança nacional, a distribuiçãoda justiça, o respeito aos traba-

lhos e a unidade nacional e pro-cederá, para alcançar o seu ob-jetivo, com a maior energia.Ela aguarda unicamente achegada do Dr. GetúlioVargas para que se inicie anormalização definitiva

do governo do país.Capital Federal, 27 de

outubro de 1930.General Augusto

Tasso Fragoso,General João de

Deus MenaBarreto eContra-Almi-rante Isaíasde Noronha.

Getúlio Vargas no Palácio do Catete

1 �História do Direito Brasileiro�, Primeiro volume, Ed. Saraiva, 1962.2 �Criminologia e Direito�, Salvador, 1896.3 Apud W. Ferreira, ob. cit.4 �História do Direito Nacional�, Rio, 1895.5 Rev. citada nº 5, Brasília, agosto de 1998.6 �Memória da Justiça Brasileira�, Vol. I, Salvador, 1993.7 �História do Direito Especialmente do Direito Brasileiro�, 3ª edição, Freitas Bastos,

1977.