o direito internacional entre dois pós-modernismos: a...
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Titulo: O Direito Internacional Entre Dois Pós-Modernismos: A
Ressignificação das Relações Entre Direito Internacional e Direito Interno
Autor: Arthur Roberto Capella Giannattasio
Publicado em: Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 6, 2010, pp.
Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume6/
ISSN 1981-9439
Com o objetivo de consolidar o debate acerca das questões relativas ao Direito e as Relações
Internacionais, o Centro de Direito Internacional – CEDIN - publica semestralmente a Revista Eletrônica de Direito Internacional, que conta com artigos selecionados de pesquisadores de todo o Brasil.
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O DIREITO INTERNACIONAL ENTRE DOIS PÓS-MODERNISMOS: A
RESSIGNIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO INTERNACIONAL
E DIREITO INTERNO
Arthur Roberto Capella Giannattasio
RESUMO
Discute-se, a partir de um estudo de caso, a relação entre o Direito Internacional
e o interno, para entender as explicações de duas diferentes chaves-cognitivas
justificadoras da prevalência de um ou de outro.
O Caso LaGrand aponta para o tema da relação da ordem jurídica interna com a internacional, questão de fundamental importância para o pensamento jurídico
internacionalista, uma vez que, no momento da aplicação do Direito, deve-se optar pela
aplicação das disposições do Direito Internacional ou do Direito interno
A compreensão clássica, westfaliana, permeia concepções sobre as relações
entre o Direito Internacional e interno e sobre a prevalência de um ou de outro. Fundada
no instituto jurídico-político Moderno da Soberania, essa compreensão voluntarista do
Direito Internacional remete à superada discussão entre o dualismo e o monismo.
A inserção do Direito Internacional na Pós-Modernidade implicou a superação
dessa percepção clássica, impondo a reconstrução do conceito de Direito Internacional,
de seus princípios estruturantes e das soluções tradicionais. Dentro do Pós-Modernismo jurídico, existem dois modelos que explicam a
relação entre o Direito Internacional e o interno. Neste Pós-Modernismo Transicional,
os dois diferentes modelos buscam justificar, por motivos racionais de especialização
funcional temática (Governança Global), ou por razões axiológicas (Direitos Humanos),
a prevalência incondicional do Direito Internacional sobre o interno. Trata-se de
ambiente de transição, em que o modelo novo convive com o antigo, persistindo a
diferenciação entre ordem interna e internacional.
Palavras-chave: Caso LaGrand; monismo; dualismo; Pós-Modernidade
ABSTRACT
The paper discusses, starting from a case study, the relationship between
International Law and Domestic Law from the perspective of two main models.
LaGrand Case points to a fundamental issue in international legal thought, as it
is permeated by the discussion on the relationship between International Law and
Domestic Law: when applying the law, one must choose between the provisions of
International Law or those from Domestic Law.
Doutorando do Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FADUSP); Graduando em Filosofia pela FFLCH/USP; pesquisador do
NEV/USP e da DireitoGV-FGV/SP.
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The classical westphalian explanation is the basis of conceptions about the
relationship between International Law and Domestic Law, as well as of interpretations
on the prevalence of one of them. Founded in the Modern political and legal institute of Sovereignty, this volitional apprehension of International Law refers to the surpassed
debate between dualism and monism.
The insertion of International Law in Post-Modernity surmounted this classical
comprehension, since its juncture imposed the reconstruction of Law and International
Law‟s conceptions, of their structuring principles, as well as of their traditional
solutions.
Within Legal Postmodernism, there are two understandings which explain the
relationship between International Law and Domestic Law. This Transitional
Postmodernism, due to rational motives of thematic functional specialization (Global
Governance), or due to axiological reasons (International Human Rights), believes that
International Law prevails unconditionally over Domestic Law, expressing a transitional context in which the new model coexists with the older one, remaining the
difference between the two legal orders.
Keywords: LaGrand Case; monism; dualism; Postmodernism
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1 INTRODUÇÃO
[D]o jurista também se exige a capacidade de escolher e de aprimorar as
instituições existentes, ou de criar outras novas, em função de objetivos que
lhe são propostos pelas necessidades da vida quotidiana. (COMPARATO,
1978, p. 470-1).
O direito internacional pós-moderno tem de enfrentar os problemas da vida e
do mundo. O mundo é o teatro no qual se faz o direito internacional pós-
moderno, como produto cultural e reflexo do tempo no qual se inscreve. Com
toda a vastidão e complexidade que isso acarreta. (CASELLA, 2006, p. 831).
O presente artigo trata, a partir de uma abordagem jusfilosófica, do clássico tema
da relação entre o Direito interno e o Internacional, com base em um breve estudo de
caso relacionado ao assunto. O objetivo de presente estudo consiste em apresentar e de
propor conclusões e questões renovadas sobre o referido tema clássico, a fim de
contribuir para o desenvolvimento do pensamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, optou-se por apresentar, de maneira bastante breve, as principais
questões em torno do Caso LaGrand, julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ),
em que se discute principal, mas não exclusivamente, o tema do descumprimento de
obrigação internacional, assumida por um Estado, de criar condições para haver a
proteção consular de estrangeiros, presos em seu território, por parte de seus respectivos
países de que são nacionais, nos termos da Convenção de Viena de Relações Consulares
de 1961 (CVRC), seja por meio da comunicação dos órgão consulares de determinado
país acerca da prisão de um de seus nacionais, seja por meio da informação da
existência desse direito de assistência ao estrangeiro preso.
Em outras palavras os Estados Unidos da América (EUA) deixaram de cumprir a
obrigação constante de Tratado Internacional, a CVRC, desconsideraram mandamentos
vinculantes emitidos pela própria CIJ, além de terem entendido não ter havido qualquer
prejuízo ao Direito Internacional pela não alteração da ordem jurídica positiva
processual interna em função de compromisso internacional assumido, na medida em
que não existiria qualquer obrigação no sentido de modificação do Direito interno em
razão do Direito Internacional.
O Caso LaGrand, como nos casos BREARD e AVENA e outros Nacionais
Mexicanos, toca o tema da relação da ordem jurídica interna com a internacional,
questão de fundamental importância para o pensamento jurídico internacionalista, uma
vez que, no momento da aplicação do Direito, deve-se optar pela aplicação das
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disposições do Direito Internacional ou do Direito interno (ACCIOLY; NASCIMENTO
E SILVA, 2002, p. 64-5).
A dificuldade de aplicação conjunta e concomitante de mais de um ordenamento
jurídico decorre do fato de que, por exigências típicas de um sistema do Direito, a saber,
a identidade, a singularidade e a totalidade (FERRAZ JR., 1976), consubstanciadas na
idéia de coerência e coesão sistêmico-funcionais (KELSEN, 2000, 2005; MÜNCH,
1996), em determinados pontos em torno de questões específicas, os tratamentos de
cada regime jurídico podem ser incompatíveis em razão de contradição ou de
contraditoriedade entre as disposições (ALVES, 2003).
Em outras palavras, nesses momentos de potencial aplicação de normas jurídicas
oriundas de regimes jurídicos distintos, há que se decidir pela prevalência de um ou de
outro para solucionar uma controvérsia sujeita àqueles dois regimes jurídicos
(ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 64-5), a fim de que a decisão seja
sistemicamente coerente e coesa – relação de homeostase dinâmica entre os elementos
intra-sistêmicos -, de tal modo que o resultado possa ser previsível, estável e seguro
(FARIA, J. H., 2004, p. 145-50; MÜNCH, 1996, p. 188-202).
Deve-se notar, entretanto, que, se dentre o pensamento jurídico internacionalista,
é possível identificar uma preferência pela prevalência do Direito Internacional sobre o
Direito interno, não se pode se esquecer de que essa posição da literatura jurídica de
Direito Internacional nem sempre foi, e nem é, de todo unânime entre os principais
autores de Direito Internacional, como poderá ser verificado oportunamente.
Ademais, não se pode deixar de mencionar que mesmo as práticas dos Tribunais
nacionais - nem mesmo dos principais Tribunais brasileiros – seguiu aquela posição,
devendo-se notar, nesse sentido, que essa postura de recusa da prevalência da ordem
jurídica internacional sobre a interna se trata de opção político-jurídica de resistência ao
Direito Internacional que não é exclusiva de países centrais no cenário político,
econômico e jurídico internacional.
Deste modo, o presente estudo examina, precisamente, sob uma perspectiva
jusfilosófica, o tema da relação entre o Direito Internacional e o Direito interno, a fim
de tentar compreender a sucessão histórica de modelos teóricos que tentaram explicar
essa interação sistêmica entre duas ordens jurídico-positivas diversas.
Não se pode deixar de perceber, inclusive, que cada um deles pretendeu fornecer
uma resposta, de acordo com seus critérios e parâmetros específicos, à dificuldade de
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lidar com a complexidade e com a diversidade de possíveis regimes jurídicos incidentes
sobre uma mesma situação juridicamente regulada, sempre com o objetivo de
determinar a prevalência de um ou de outro, ora a ordem jurídica internacional sobre a
interna, ora esta sobre aquela.
Nesse sentido, será possível identificar dois grandes grupos de pensamento que
tentam explicar a lógica de funcionamento da inter-relação entre Direito Internacional e
Direito interno, com o objetivo de tentar encontrar uma possível prevalência de um
regime jurídico positivo sobre outro. São eles, (i) o Modernismo Westfaliano; e o (ii)
Pós-Modernismo Transicional. Cada um deles oferece uma matriz cognitiva dotada de
aparato conceitual próprio, permitindo, segundo sua lógica e sua linguagem específicas,
identificar uma espécie de padrão de legalidade prevalecente.
Todavia, ao mesmo tempo em que se desenvolvem arsenais conceituais jurídicos
renovados, com objetivos singularmente direcionados em função das contingências e
das conjunturas histórico-sociais que perpassam e que alternam correntes de
pensamento filosófico, político e econômico distintas, há a dificuldade de
operacionalização desse aparato lingüístico constantemente re-criado pela literatura
jurídica que busca contribuir para o desenvolvimento concreto (HEGEL, 1980, p. 340-
6) do pensamento jurídico. Afinal,
a contemporaneidade não pode prescindir do estudo das bases do direito
internacional dos tempos precedentes, sob pena de se perder a compreensão
do papel e do alcance possível deste, na construção das normas e dos
respectivos mecanismos de implementação. (ACCIOLY; NASCIMENTO E
SILVA; CASELLA, 2009, p. 98).
A impossibilidade de desdobrar praticamente em ato o potencial que reside nas
diferentes soluções de cada modelo teórico (atualização: passagem da potência para o
ato) (HEGEL, 1980, p. 341) pode ser diagnosticada como decorrendo da persistência de
modelos explicativos e cognitivos anacrônicos, porque inviáveis e inaptos para lidar
com os novos elementos constituintes da realidade jurídico-político-econômica e
filosófica vigente.
O presente trabalho, assim, estrutura-se em quatro partes.
A primeira parte se destina à breve exposição dos principais aspectos do Caso
LaGrand, com o objetivo de ressaltar as questões e os problemas pertinentes ao tema
desta investigação. A insatisfação de juristas com relação às soluções práticas dadas
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pelo Direito positivo apontará para o caráter intrinsecamente jurídico-filosófico da
questão, justificando, inclusive metodologicamente, as abordagens de caráter histórico-
filosófico a serem feitas nas demais partes do texto.
A segunda parte centra sua discussão em torno da tentativa de compreender o
primeiro modelo explicativo das relações entre Direito Internacional e Direito interno, a
partir do paradigma jusfilosófico tipicamente Moderno-westfaliano. Após o exame dos
principais critérios que informam essa corrente, será possível apresentar, com finalidade
puramente cognitiva, em linhas bastante gerais, as duas principais – e clássicas –
vertentes desse modelo de pensamento, a saber, o monismo e o dualismo, com suas
diferentes soluções e ramificações.
Constatada a obsolescência do paradigma anteriormente tratado, tendo em vista
a inserção do Direito Internacional em contexto jusfilosófico e econômico diverso, de
caráter Pós-Moderno, será possível perceber, não apenas a superação do debate entre
monismo e dualismo, tendo em vista a impossibilidade de continuar a discussão em
termos Modernos dentro de ambiência em que não mais possuem a mesma significação,
mas também o surgimento de novo arcabouço conceitual que pretende lidar com as
mesmas questões.
Nesse sentido, a terceira parte tratará das vertentes de Pós-Modernismo
identificadas, a fim de tentar compreender de que maneira cada uma delas busca
resolver a questão da relação entre Direito Internacional e Direito interno, no sentido de
buscar pela prevalência de um sobre o outro.
Cabe ressaltar que o presente trabalho não pretende ter exaurido a apresentação
de modelos teóricos destinados a encaminhar para a solução do referido problema, visto
que a exposição desses dois principais não significa que não possam existir outros
modelos relevantes e pertinentes que dêem ao tema, a partir de perspectiva renovada,
soluções ainda mais interessantes.
Ademais, a apresentação dos modelos teóricos mais recentes especificamente
diagnosticados não decorre de qualquer preferência explícita e a priori por um ou por
outro, mas, sim, da intenção de tentar apresentar as diferentes tendências dos modos de
pensar o mesmo tema, para além da tradicional e superada discussão entre o monismo e
o dualismo.
Por fim, a quarta parte discutirá a importância de se continuar a se re-propor,
continuamente, e de modo insaciável, novas leituras de institutos e de temas jurídicos
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clássicos, a partir de diferentes referenciais teóricos e filosóficos mais próximos das
tendências mais recentes do pensamento e do conhecimento humanos contemporâneos.
2 O PONTO DE PARTIDA CASUÍSTICO DA REFLEXÃO FILOSÓFICA: O
CASO LAGRAND
Por que se pára para pensar e quem pára para pensar? Quem pára para pensar
são os juristas com interesses filosóficos em função dos problemas colocados
pelo Direito Positivo – problemas que não encontram solução e
encaminhamento no âmbito estrito do Direito Positivo. A Filosofia do Direito
é, assim, o campo dos juristas com interesses filosóficos, instigados, na sua
reflexão, pelos problemas para os quais não encontram solução do âmbito do
Direito Positivo. (LAFER, 2004, p. 54)
O presente tópico apresenta, de maneira sucinta, as principais questões
envolvidas no Caso LaGrand que se mostram pertinentes à temática a ser desenvolvida
no presente estudo, a saber, a necessidade de se escolher pela prevalência de uma das
duas ordens jurídicas que mantêm relação entre si na regulamentação de conflitos de
caráter internacional, a saber, o regime jurídico internacional e o interno.
Nesse sentido, é importante frisar que o caso a ser examinado detém a função,
neste estudo, de constituir ponto de partida de uma reflexão filosófica em torno do tema
escolhido para este trabalho, o que justifica, metodologicamente, a abordagem, de
caráter jusfilosófico internacional, a ser desenvolvida nos tópicos seguintes.
Trata-se de uma postura típica de uma abordagem de Filosofia do Direito
Internacional, uma vez que as dificuldades encontradas no desenvolvimento das práticas
em torno do Direito Internacional positivo – entendido como o Direito Internacional
vigente - convidam a parar para pensar, visando a encontrar o significado das coisas,
atribuindo-lhes um significado global, a fim de que se possa agir (LAFER, 2004, p. 54),
não apenas dentro do mundo, conforme as determinações da situação, mas também,
sobre ele, de modo a o alterar.
Há, dessa maneira, um desligamento provisório do mundo tangível, da realidade
dos fatos, a fim de perquirir soluções, novas ou antigas, para os problemas surgidos da
práxis (LAFER, 1979, p. 28, 93 e 98), ou seja, abandona-se, temporariamente, mas com
a pretensão de retornar em breve, a realidade ontológica, para refletir, com o escopo de
elaborar/encontrar uma solução, a partir dessa reflexão, para os problemas surgidos da
prática, para atuar sobre o mundo transitoriamente abandonado, para tentar uma
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transformação do mesmo a partir do pensamento e de seu resultado/produto, a solução
do presente, teoricamente formulada, para fins práticos futuros.
Apesar de invisível, a atividade do pensar irrompe no mundo das aparências.
Sócrates, como lembra Hannah Arendt, valeu-se da metáfora do vento para
explicar o seu impacto: os ventos são invisíveis, mas ainda assim o que eles
fazem é manifesto para nós e de alguma maneira sentimos a sua
aproximação. (LAFER, 1979, p. 86-7).
Note-se, inclusive, que “as questões referentes à vida social e aos produtos
culturais da atividade humana permeiam as ciências sociais e as humanidades”, não
sendo de propriedade exclusiva de qualquer ramo do conhecimento humano, devendo-
se evitar qualquer dogmatismo decorrente da obsessão por uma única via teórica
compreensiva (GIDDENS; TURNER, 1996, p. 7e 10).
Nesse sentido, não basta uma singela análise calcada apenas nos pressupostos e
nos conceitos jurídicos, devendo-se se utilizar de aparato auxiliar de outros ramos do
conhecimento humano, naquilo que interessam à reflexão jurídica, na exata medida em
que admitem, dentro de suas preocupações, um espaço para o estudo do Direito
(FERRAZ JR., 2001, p. 39-44; ROESLER, 2002, p. 82).
Assim, em outras palavras, a partir de determinadas questões suscitadas no caso
estudado, diante da insatisfação do encaminhamento prático obtido, será iniciado um
movimento de reflexão tipicamente filosófico em torno dos paradigmas jurídicos que
informam a lógica de funcionamento da relação entre o Direito Internacional e o Direito
interno, com a finalidade de expor a alternação histórico-filosófica de cada um dos
modelos teóricos identificados que pretendem solucionar ou trabalhar a questão dentro
de seu específico aparato conceitual.
Por esse motivo, enfim, é que se mostra indispensável a apresentação breve do
caso do qual a temática principal do presente estudo é depreendida de forma evidente,
na medida em que expõe, emblematicamente, como se compreende, nas práticas
internacionais, a relação entre Direito Internacional e o interno, de modo a se haver a
decisão da prevalência de um ou de outro.
Dentre os mais notórios episódios de descumprimento de normas jurídicas
internacionais, convencionais e costumeiras, por um país, em razão da opção pela
prevalência da aplicabilidade de sua norma jurídica interna, destacam-se as práticas
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estadunidenses relacionadas a posicionamentos da Corte Internacional de Justiça (CIJ)
nos casos BREARD, LaGrand e AVENA.
O primeiro deles, de 1998, se encerrou com a desistência do Paraguai após a
execução de BREARD sem que a Corte houvesse proferido decisão sobre o mérito.
Quanto ao mais recente, o caso AVENA de 2004, as conseqüências alcançaram o
extremo a ponto de levar os EUA a retirarem a aceitação de jurisdição da CIJ: “a
rejeição de um tribunal internacional já estabelecido não é uma infração leve”
(HABERMAS, 2006a, p. 97).
Algumas das motivações a esta gravíssima retirada podem ser encontradas na
combinação de uma pressão interna a um desprezo da administração da época em
relação às instituições e ao Direito Internacional, bem como em uma distorcida
interpretação da CIJ como interferência indevida ou ainda instância adicional a que se
apelaria apenas após o esgotamento dos recursos internos.
No entanto, o foco do presente trabalho se deterá no caso LaGrand, por
considerá-lo mais sintomático para o tema em questão, consistindo também no principal
precedente do caso que levaria a tal retirada da aceitação, bastante lembrar que “[o] caso
LaGrand foi precedente direto do caso AVENA.” (CASELLA, 2008, p.1261).
De nacionalidade alemã, Walter e Karl LaGrand foram morar ainda durante a
infância nos EUA – sem jamais, porém, deixarem de ser cidadãos alemães. Foram
detidos em Mariana (Arizona) em 7 de janeiro de 1982, sob acusação de roubo a banco
que levou à morte de um gerente e graves lesões em outro funcionário. Após
julgamento, foram condenados em 1984 por homicídio, tentativa de homicídio e roubo a
mão armada.
Oito anos após a condenação, os irmãos foram informados de que lhes era de
direito contatar o serviço consular alemão e contar com a proteção do mesmo – a que as
autoridades estadunidenses replicaram com a alegação de desconhecer a nacionalidade
de ambos. Os LaGrand passaram então a solicitar revisões por diversas vezes, até
mesmo à Suprema Corte, devido à violação do art. 36 da Convenção de Viena sobre
relações consulares.
Com fundamento na alegação de trânsito das sentenças em julgado, os pedidos
na ordem jurídica interna foram negados, sob a justificativa de que a reabertura dos
casos estaria impedida por vícios processuais.
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Karl foi executado com injeção letal em 24 de fevereiro de 1999, mas a
República Federal da Alemanha solicitou medida cautelar à CIJ a fim de impedir que o
irmão tivesse o mesmo fim antes do julgamento do caso.
Em 3 de março, o pedido foi aceito pela CIJ mas rejeitado pela Suprema Corte
Americana, que acabou por executar Walter na câmara de gás naquele mesmo dia,
conforme marcado.
A não suspensão foi sustentada por alegações de que não fora dado aos EUA
direito de defesa no que diz respeito ao pedido de medida cautelar, bem como que a
CVRC seria inaplicável ao caso por se restringir a funcionários consulares e
diplomáticos e finalmente que os obstáculos provenientes das divisões internas
jurisdicionais e a solicitação tardia impediam que o caso fosse suspenso.
Uma vez prevista pelo artigo 36 da Convenção de Viena a assistência consular
pelas autoridades do estado do qual é nacional o estrangeiro em julgamento, não se
mostra cabível a alegação de se querer criar “instância adicional de apelação” em
benefício deste.
Cabe apontar, ainda, que, além do descumprimento da medida cautelar, os EUA
ignoraram a reparação e o pedido de garantia pleiteados pela República Federal da
Alemanha, além de terem expressamente alegado perante a CIJ que não teriam a
obrigação de alterar sua ordem jurídica interna em função de compromisso assumido
internacionalmente.
A atuação dos Estados Unidos se conta como péssimo precedente no cenário
mundial e como retrocesso no esforço de implementação e aplicação
consistentes do direito internacional. (CASELLA, 2008, p. 1262).
Isso porque, enfim, os EUA deixaram de cumprir a obrigação constante de
Tratado Internacional, a CVRC, mas também simplesmente desconsideraram
mandamentos vinculantes emitidos pela própria CIJ, além de terem entendido não ter
havido qualquer prejuízo ao Direito Internacional pela não alteração da ordem jurídica
positiva processual interna em função de compromisso internacional assumido, na
medida em que não existiria qualquer obrigação no sentido de modificação do Direito
interno em razão do Direito Internacional.
O caso LaGrand é remetido a duas ordens de direitos: tanto da parte do Estado,
no sentido da proteção de seu nacional em território estrangeiro, quanto do indivíduo,
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que, enquanto estrangeiro, pode valer-se da devida assistência consular. Não apenas
constituições e sistemas nacionais podem assegurar os direitos fundamentais, mas
especialmente os tratados internacionais que podem implementá-los por meio da CIJ.
Uma vez signatário sem reservas da CVRC e de seu Protocolo facultativo, os
Estados Unidos se comprometem a acatar as decisões de tal Corte. A violação desta
norma internacional, portanto, “também fere e solapa as bases de direitos fundamentais
em relação aos estrangeiros [...] sujeitos ao direito interno e à interpretação deste pelos
tribunais nacionais [...]” (CASELLA, 2008, p.1259).
A relevância do caso se mostra, portanto, evidente:
[F]rom a purely juridical perspective, LaGrand is not primarly about the
death penalty. The main points it stands for are the binding force of
provisional measures indicated by the Court and the finding that consular
access is an individual right” (RODLEY, 2002, p. 318).
LaGrand deve também ser foco das atenções não apenas para que se evite novas
infrações do tipo, mas para que sejam revelados na pena de morte estadunidense alguns
“pequenos segredos sujos”, nas palavras de Joan FITZPATRICK:
that it is largely restricted to marginalized elements in the community, and
that the basic rights of capital defendants are often significantly violated
during the investigative and Trial phases of their cases. They often do not
raise timely objections to these deprivations, because their appointed counsel
fails to act on their behalf (FITZPATRICK, 2002, p. 309).
3 O PARADIGMA DO MODERNISMO WESTFALIANO: O VOLUNTARISMO
SOBERANO
Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os chamados movimentos
de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a
práticas sádicas. (ADORNO, 2006, p. 137).
O direito político ainda etá por nascer, e é de presumir que nunca venha a
nascer. Grotius, o mestre de todos os nossos doutos nessa matéria, não passa
de uma criança e, o que é pior, uma criança de má-fé. Quando ouço elevarem
Grotius às nuvens e cobrirem Hobbes de execração, vejo quantos homens
sensatos lêem ou compreendem esses dois autores. A verdade é que seus
princípios são exatamente semelhantes; eles só diferem pela expressão.
Diferem também pelo método. Hobbes apóia-se em sofismas, e Grotius, em
poetas; tudo o mais lhes é comum. (ROUSSEAU, 1999, p. 646-7).
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O Modernismo westfaliano consiste no padrão clássico de Direito Internacional,
calcado no conceito típico de delimitação espacial de fronteiras estatais sujeitas a um
poder Soberano. Esses caracteres foram delineados pelos Tratados de Münster e de
Osnabrück, na Westfália, assinados em 24 de outubro de 1648,
quando triunfa o princípio da igualdade jurídica dos estados, estabelecem-se
as bases do princípio do equilíbrio europeu, e surgem ensaios de
regulamentação internacional positiva. Podem ser apontados não somente o
conceito de neutralidade na guerra, em relação aos estados beligerantes,
como também fazer paralelo, entre o princípio então adotado, da
determinação da religião do estado pelo governante, o que seria o ponto de
partida do princípio contemporâneo da não-ingerência nos assuntos internos
dos estados. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p.
64-5).
A Soberania, hoje anacronicamente defendida e protegida de modo
incondicional, configura-se como poder absoluto que não reconhece outro acima de si
(CAMPILONGO, 2007, p. VIII), remontando ao nascimento dos grandes Estados
nacionais europeus, apesar de não ter sido consolidada completamente em sua dimensão
externa (FERRAJOLI, 2007, p. 1-3), conforme um ainda persistente Projeto Moderno
de organização política das sociedades no mundo (FERRAJOLI, 2006).
Poder exclusivo e absoluto de alguma autoridade político-jurídica sobre
determinada circunscrição territorial, englobando todos os recursos minerais, naturais,
animais e humanos nela insertos, a Soberania se trata de uma potestas que se estende
sobre um dominium, mas que não encontra algo além dela sobre aquele território, por
ser a suprema potestas superiorem non recognoscens (FERRAJOLI, 2007, p. 1), dirige
tudo o que se encontra dentro daquela delimitação geográfica espacial: ar, terras, povos,
vegetação, animais, minérios, águas (rios e mares), etc., tudo de alguma forma, espécie
de território de propriedade estatal (aéreo, terrestre, líquido, humano, etc.).
Essa concepção ficou mais clara, e mais sincera/transparente, com a admissão,
por Hugo GRÓCIO, o pai do Direito Internacional, da possibilidade de considerar como
matáveis todos aqueles que se inserissem no território inimigo das colônias, inclusive
mulheres, crianças e prisioneiros, visto violarem o direito natural – assimétrico – de os
espanhóis poderem acessar os bens comuns (os recursos naturais, animais e vegetais)
(FERRAJOLI, 2007, p. 17-8).
De qualquer forma, a Soberania possui o caráter de ser poder absoluto,
exclusivo, supremo, inalienável e independente, “sem igual ou concorrente, no âmbito
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de um território, capaz de estabelecer normas e comportamentos para todos seus
habitantes.” (FARIA, 2004, p. 17). Ela se consolida internamente pela progressiva
monopolização dos instrumentos de violência e de Poder decisório e nomogenético pelo
Estado, por meio da eliminação dos particularismos locais, extinguindo a fragmentação
política medieval. Concentra-se o Poder nas mãos de um vértice único, dentro de uma
hierarquia piramidal rígida. (FARIA, 2004, p. 18-21).
Segundo este modo de compreensão de mundo, o Direito Internacional é produto
das manifestações de concordância dos Estados, ou ainda, da mera vontade (voluntas) dos
Estados, que assentem a regras jurídicas, de tal modo que a Soberania pode optar pela
limitação voluntária dela mesma (FARIA, 2004, p. 150-6) – assentimento que, tão quão
foi voluntariamente dado, pode ser retirado, um comportamento típico de um modelo
clássico “de um poder imperial que se esquiva de normas do direito internacional porque
estas limitam o seu próprio espaço de ação (HABERMAS, 2006a, p. 189) -.
Este modelo de compreender a formação do Direito Internacional decorre da
indevida subjetivação do fenômeno estatal, ou seja, da não acertada aplicação dos
preceitos da filosofia subjetivista (do sujeito), tipicamente Moderna, inaugurada por
René DESCARTES (GIANNATTASIO, 2009b), ao Estado. A Filosofia do sujeito
propõe que o ser cognoscente, para compreender o mundo, deve partir de seu próprio
ego, interpretando o mundo de acordo com a vontade e conforme a idéia do sujeito: o
sujeito (Estado) se mostra como o verdadeiro ponto de partida, o centro único, exclusivo
e Soberano do mundo jurídico (KELSEN, 2005, p. 549).
Não é sem motivo, inclusive, haver a atribuição, pelo Discurso Jusfilosófico
Político Moderno, de uma vontade ao Estado, qualificada, classicamente, de vontade
geral (ROUSSEAU, 2006). Mas não se deve se esquecer de que
o Estado não é uma unidade biofisiológica, e nem mesmo uma unidade
sociológica. A relação entre Estado e Direito é radicalmente diversa da
relação entre indivíduo e Direito. [...]. Acredita-se que o Estado seja um
objeto de regulamentação apenas porque a personificação antropomórfica
dessa ordem nos leva, primeiro,a equipará-lo a um indivíduo humano e,
então, a tomá-lo erroneamente por um indivíduo suprahumano. (KELSEN,
2005, p. 536)
Bastaria, nesse sentido, mencionar como interessante exemplo, não único, o
entendimento de Dionisio ANZILOTTI (1923, p. 39-40), que afirma serem fonte do
Direito Internacional Público os acordos das vontades manifestadas pelos Estados, de
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modo expresso (Tratados Internacionais) ou tácito (costume), mas sempre o acordo
entre as vontades estatais.
Essa concepção permite compreender de duas maneiras distintas as relações
entre Direito Internacional e Direito interno, na medida em que é possível, com base em
divisão de fronteiras, distinguir dois regimes jurídicos, um nacional e outro
internacional. Podem eles ser ordenamentos independentes, sem quase contato algum
entre eles, ou ramos de um mesmo sistema jurídico, em que se mantém alguma relação:
a primeira escolha é apresentada pelos seguidores da visão dualista, enquanto que a
segunda é pregada pelos da corrente monista (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA;
CASELLA, 2009, p. 210-1).
Em apertada síntese, um interessante exemplo da visão dualista é a conclusão
apresentada por Carl TRIEPEL que, ao examinar as características do direito interno e
do direito internacional, entende que eles constituem sistemas jurídicos distintos,
passíveis de serem configurados como dois círculos que não se sobrepõem, mas que se
tangenciam, na medida em que regem relações diversas, não havendo concorrência, nem
conflitos, entre as fontes dos dois sistemas jurídicos: o direito interno regeria relações
intra-estatais e o direito internacional regularia relações interestatais (ACCIOLY;
NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 212; CASELLA, 2007c, p. 18).
Por outro lado, Hans KELSEN é um dos maiores defensores da visão monista,
entendendo não ser possível admitir a existência de dois sistemas jurídicos, igualmente
válidos e independentes, visto que, conforme sua concepção de Direito, as relações
entre o direito interno e o Direito Internacional convergem e se superpõem, havendo a
necessidade de se encontrar uma maneira que discipline essas duas categorias e a
relação entre elas, dentro de uma única ordem jurídica, com nuances e subdivisões, a
partir da imagem da pirâmide kelseniana de normas, em cujo vértice se coloca o
princípio pacta sunt servanda (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA,
2009, p. 211; CASELLA, 2007c, p. 19-20).
Assim, entre as duas possíveis relações entre Direito Internacional e direito
interno, o conflito entre as normas de ambas apenas surgirá, ou deverá ser cogitado, a
partir do momento em que se concebe a interação entre ambas de acordo com a
concepção monista, porque a unidade científica do sistema jurídico demanda que não haja
a possibilidade de contradições e de conflitos: a solução deve ser dada, entendendo-se que
uma, ou outra, deve prevalecer (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 64-5).
56
É neste ponto que se subdividem os seguidores da corrente monista, visto que,
(i) para alguns, há a prevalência das normas de Direito Internacional sobre as de direito
interno (Hans KELSEN, p. ex., por motivos práticos); enquanto que, (ii) para outros,
prevalecem as normas de direito interno sobre as de Direito Internacional. (ACCIOLY;
NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 65; ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA;
CASELLA, 2009, p. 211)
Há ainda aqueles que seguem uma posição intermediária, entendendo que a
supremacia de uma, ou de outra, depende de utilização de critérios temporais (the later
time rule), visto que possuiriam o mesmo status jurídico e hierárquico (monismo
moderado), conhecida também como teoria da legalidade ordinária dos tratados
internacionais. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 213)
A Corte Internacional de Justiça tem sido invariável ao reconhecer o caráter
preeminente do direito internacional. Em parecer de 1930, a Corte Permanente de
Justiça Internacional declarou ser princípio geralmente reconhecido, do direito
internacional, que, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as
disposições de uma lei interna não podem prevalecer sobre as do tratado. Além disso, a
própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados adotou em seu artigo 27 a
mesma regra: uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para
justificar o inadimplemento de um tratado. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA,
2002, p. 65)
No direito brasileiro, por sua vez, em relação ao conflito entre fontes vê-se certo
descompasso entre a doutrina, alinhada pela concepção do monismo kelseniano,
segundo a qual o tratado sempre deve prevalecer sobre a lei interna, ainda que se trate
da Constituição (Clóvis BEVILAQUA, Haroldo VALLADÃO, Vicente Marotta
RANGEL, Pedro LESSA, Philadelpho AZEVEDO, Vicente RÁO, Hildebrando
ACCIOLY e Carlos MAXIMILIANO), com algumas exceções com relação apenas a
este último aspecto (Oscar TENÓRIO, Francisco REZEK), e a interessante evolução da
jurisprudência pátria, com avanços e retrocessos, onde, por caminhos tortuosos,
equipara-se o tratado à lei interna, sujeitando estes às modificações supervenientes
decorrentes de alterações posteriores do ordenamento nacional, privando a norma de
direito internacional positivo de seu sentido e alcance. (CASELLA, 2007c, p. 22-7).
Essa situação configura descumprimento de obrigação pelo Estado contratante,
enquanto sujeito de direito internacional, em relação aos demais signatários do mesmo
57
instrumento: de fato, como lembra Haroldo VALLADÃO, a norma internacional tem
sua forma própria de revogação, a denúncia, que não toma forma de norma jurídica
interna, podendo-se cogitar de responsabilidade internacional do Estado em razão de
descumprimento de norma por força de ato de órgão interno (insegurança no plano
internacional). (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 215-6).
O julgamento que sedimentou a posição do STF com relação a esse tema foi o
RE 80.004 (1978), classificado pela doutrina como exemplo de monismo moderado,
momento, inclusive, do surgimento dessa terminologia. Nesse caso, o STF decidiu que
uma lei interna superveniente poderá afetar um tratado em vigor, com exceção daqueles
referentes à matéria tributária, em face do que dispõe o artigo 98 do CTN. Depois de
incorporado o tratado à legislação interna, encontra-se em iguais condições às demais
leis ordinárias (hierarquicamente inferior à Constituição, portanto), e todas as
contradições temporais que se apresentarem serão solucionadas com base em critérios
temporais de solução de antinomias aparentes (ver, ainda, entre outros, ADIN 1.480, CR
8.279 e HC 72.131); essa posição, ainda, foi seguida, em 1994, pelo STJ, em decisão
que expressamente faz referência ao RE 80.004. (ACCIOLY; NASCIMENTO E
SILVA; CASELLA, 2009, p. 213-4; CASELLA, 2007c, p. 27).
Esse julgamento consubstanciava falha técnica e distorção conceitual que parece
ter sido corrigida, porque nenhum país civilizado, e com pretensões de maior projeção
internacional, como o Brasil, pode aceitar uma interpretação nesse sentido. Aliás, deve-
se lembrar que a doutrina criticou essa posição, seja de forma sutil (Jacob DOLINGER,
José Carlos de MAGALHÃES e Hildebrando ACCIOLY), seja de maneira mais
incisiva (Celso Albuquerque de MELLO).
De uma forma, ou de outra, entendeu-se que o RE 80.004 representa um
retrocesso no tratamento jurisprudencial da matéria, visto estar fundamentada em
autores antigos e dualistas, como TRIEPEL: o STF, segundo Celso de MELLO, errou, e
não tem coragem de admitir seu erro, nem de o corrigir, constituindo uma orientação
restritiva e obsoleta. (CASELLA, 2007c, p. 28-30).
Há indícios de uma eventual tendência de reorientação da jurisprudência do
STF, ao menos se for analisado o fundamentado voto proferido pelo Ministro Gilmar
Ferreira MENDES, no RE 466.343-1/SP, no qual, em linhas gerais, assinala o
entendimento de como deve ser feita a inserção dos tratados na ordem jurídica interna,
após a Constituição de 1988, afirmando a necessidade de se revisitar a orientação
58
jurisprudencial do STF, sendo anacrônica a tese da legalidade ordinária dos tratados
internacionais, por haver uma tendência mundial do constitucionalismo contemporâneo
de prestigiar as normas internacionais, principalmente as que inserem o homem como
centro de suas preocupações (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2009, p. 214;
CASELLA, 2007c, p. 33-8).
De qualquer modo, deve-se notar, por fim, que a discussão diferenciadora entre
monismo e dualismo apenas remete a algum sentido dentro de um discurso jurídico-
filosófico e político tipicamente moderno westfaliano, na medida em que nos dois
modos de pensamento e de compreensão Pós-Modernos, a serem expostos a seguir, o
exclusivismo estatal voluntário, fundado na Soberania, perde seu sentido, restando
superado, ou infrutífero, o debate, ao menos nos termos clássicos do pensamento
moderno westfaliano, entre monismo e dualismo.
Pode a reflexão sobre o papel histórico, que poderia ter a desempenhado o
dualismo, no contexto da Alemanha e da Itália, o final do século XIX e início
do século XX, ensejar a superação da visão e da aplicação deste – embora
sob a suposta forma mitigada de dualismo moderado, tal como se anunciava
não faz muito – e ensejar revisão do corte epistemológico entre conceitos
universais e expedientes específicos no Brasil, preparando o caminho para a
adoção mais ampla do direito internacional pós-moderno em nosso
ordenamento e na ordenação das relações do estado com os seus pares, na
ordem externa, bem como em relação aos demais agentes (não estatais)
internacionais. (CASELLA, 2006, p. 838).
4 O CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL
[A]quele que segue estes singulares caminhos não encontra ninguém, o que é
próprio destes “singulares caminhos”. Ninguém vem em nosso auxílio; é
preciso livrar-nos de todos os perigos, de todos os azares, de todas as ciladas,
de todos os temporais. [...].
Desde que o mundo é mundo, nenhuma autoridade permitiu tornar-se objeto
de crítica [...]. (NIETZSCHE, 2008, p. 9-10).
O mundo não vai se dobrar ante a vontade daqueles que venham impor
fórmulas prontas, sem discussão: o progresso intelectual da humanidade se
faz na medida em que se formularam indagações críticas; é preciso
questionar o mundo e o estado deste (CASELLA, 2007b, p. 14).
Maurice MERLEAU-PONTY (2004), em 1948, ao contrapor o pensamento
tradicional ao que se encontrava em gestação em sua época, acenara para a
impossibilidade de se perpetuar um arcabouço conceitual, cognitivo e perceptivo
tipicamente calcado nos moldes do clássico mundo da ciência, exatamente por ele não
59
ser capaz de fornecer uma representação do mundo que seja completa, na medida em
que, ao primar pela inteligência, desprezava a dimensão da percepção dos sentidos.
Seu Discurso Filosófico é arquitetado em direção a uma crítica ao Discurso
Filosófico Moderno, iniciado pelo movimento deflagrado pela Filosofia de René
DESCARTES (GIANNATTASIO, 2009b), por ele entendido como clássico, mas não
pretende negar “o valor da ciência como instrumento do desenvolvimento técnico ou
como escola de precisão e de verdade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 5). Na verdade,
o autor aponta para a insuficiência dos critérios norteadores da reflexão da Ciência e do
Discurso Filosófico Moderno, tendo em vista que o mundo percebido, captado pelos
sentidos, é por ele ignorado como fonte do engano, do não-saber.
A breve menção à reflexão de Maurice MERLEAU-PONTY se mostra relevante
para o presente estudo, não tanto em razão dos pressupostos fenomenológicos ou das
conclusões construídas pelo pensamento deste autor, mas, sim, pelo fato de apontar para
um específico dado, muitas vezes ignorado, de caráter metafísico, porque primeiro, no
direcionamento da arquitetura da concepção de Direito, a saber, a medida em torno do
qual são constituídos todos os princípios estruturantes do Direito – inclusive do Direito
Internacional -, toda a base reflexiva e conceitual relacionada em torno do fenômeno
jurídico, bem como todo a repertório instrumental operacional.
É preciso estudar e tratar o direito, e especificamente o direito internacional,
como parte de fenômenos mais amplos e que tem relação direta e necessária
com o tempo e contexto no qual se inscrevem e do qual derivam.
(CASELLA, 2009a, p. 68).
A medida, como fundamento hipotético do pensamento – hipótese de início do
pensamento -, e em função da qual todo o arcabouço teórico e prático do Direito é
concebido, é o critério que deve ser adequadamente compreendido para que se possa
conhecer, de modo mais completo possível, o Direito, seus ramos, seus institutos e suas
respostas práticas às demandas que se lhe apresentam. Mas se deve tentar entender a
idéia de medida, e de que modo ela influencia da formação do Direito Internacional.
A continuidade da reflexão de Maurice MERLEAU-PONTY permite apreender
a noção do campo semântico de medida. De certa forma, o pensamento clássico pode
ser visto limitado, por outros motivos, uma vez que não considerava, para a formação de
seu instrumento de busca do conhecimento, bem como do próprio conhecimento, a
dimensão da animalidade, ou melhor, a existência de outros modos de compreender o
60
mundo, residente nos animais, nos homens primitivos, nas crianças e nos loucos, em
desacordo com o padrão tipicamente Moderno e artificial do homem civilizado, maduro
e são (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 29-40).
Em outras palavras, o pensamento Moderno estava desprovido da escala de
conhecimento, enquanto método de aproximação do mundo, de sua constituição, e de
construção do saber, fornecido pelos outros modos de existência que não o padrão
artificialmente construído por um Discurso Filosófico específico. Em outros termos,
faltava-lhe, por preconceito, a medida de perspectiva cognitiva dos outros serem que
“habitam [o mundo] à sua maneira” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 30).
Há que se notar, nesse sentido, a existência de diferentes padrões de mensuração
do mundo, com o objetivo de o conhecer. Mais do que isso, a inúmeras escalas
constitutivas do pensamento, dos modos de pensar, bem como do próprio saber, variável
de acordo com as condições subjetivas do ser cognoscente, ou mesmo conforme as
condições objetivas que o envolvem.
O uso de uma única régua para apreender a realidade, ou mesmo para construir o
conhecimento sobre a mesmo, sempre será limitado, com resultados incompletos,
insuficientes e insatisfatórios, motivo pelo a medida não pode ser universalizada, sob
pena de se inviabilizar o processo de conhecimento e o de explicação da realidade, ou
mesmo de operacionalização da mesma.
Essa constatação da existência de diferentes medidas deve ser aplicada para o
objeto do presente estudo no seguinte sentido: não há como compreender o fenômeno
jurídico inserto na crise da Pós-Modernidade a partir do aparato conceitual puramente
Moderno. Se se pretende conhecer o Direito Internacional na Pós-Modernidade, de
modo a aperfeiçoar os conceitos clássicos para serem operacionalizados nessa nova
(des)ordem, deve-se entender, minimamente, a que se propõe a Pós-Modernidade,
desvencilhando-se dos preconceitos e das premissas tipicamente Modernas.
Em outros termos, não há como conceber a operacionalização de uma chave-
cognitiva e operacional típica de construção de acordo com o paradigma do discurso da
filosofia jurídico-política Moderna em um contexto em que se constatam os
descaminhos do Projeto Moderno (HABERMAS, 1987b, 1992).
Deve-se notar que a Pós-Modernidade é um fato que não pode ser negado, e com
o qual se deve buscar lidar, na medida em que ele se instalou de modo definitivo
(BITTAR, 2005a, p. 100; CASELLA, 2009a, p. 168),
61
a pós-modernidade não se põe como escolha, mas como fato da vida: o
mundo mudou, e as percepções culturais têm de enxergar o mundo e tentar
captá-lo, a sua operação se porá como necessidade: é preciso entender o
mundo, tal como o temos, hoje (CASELLA, 2007b, p. 10).
A característica primeira da Pós-Modernidade é sua incapacidade de gerar
consensos (BITTAR, 2005a, p. 99), na medida em que insere a variável da incerteza em
todos os elementos constituídos sob a égide do pensamento Moderno, de modo a
questionar sua validade, ou ainda, de modo a desnaturalizar, a superar e a destruir as
“doces ilusões e confortos” das certezas do conhecimento obtido pela reflexão anterior
da modernidade (CASELLA, 2007b, p. 13, 2009b, p. 9).
Inscreve-se o direito como produto do tempo histórico e do contexto cultural.
O direito há de ser entendido não como mera técnica, mas como parte de
construção humana, entre história e cultura, como entre política e moral:
produto do seu meio e do seu tempo, o direito internacional põe a nu a
fragilidade que os direitos internos tentam disfarçar sob a aparência de
coerência dos sistemas nacionais, coerência essa muito mais ilusória que
efetiva. (CASELLA, 2009b, p. 2).
Em Direito internacional, deste modo, vive-se em período em que vigem
constelações pós-nacionais que questionam os frutos das lições da Modernidade
(HABERMAS, 2001, 2002, 2006a). A forma de organização política da sociedade
internacional em torno de Estados nacionais, de acordo com as diretrizes do modelo da
Paz de Westfália de 1648 (CASELLA, 2007a; FERRAJOLI, 2007, p. 40), mostra estar
esgotando toda a sua capacidade de lidar com a complexidade que se coloca a sua frente
(HABERMAS, 1993, p. 82), fruto das inúmeras desconstruções operadas no âmbito da
Filosofia Política (HABERMAS, 2001), da Filosofia do Direito (FERRAJOLI, 2006,
2007; KELSEN, 1989, p. 469 apud FERRAJOLI, 2007, p. 4), do Direito Internacional
Público (CASELLA, 2006) e da Sociologia (SANTOS, 1995, 2003), entre outros ramos
do conhecimento e da atividade cultural humana, como as Ciências (SANTOS, 1988) e
as Artes (CASELLA, 2007b).
Enfim, encontra-se em um momento de transição, em que os paradigmas da
Teoria Geral do Estado sofrem uma crise de degenerescência epistemológica (TOJAL,
1997). Nesse sentido, há a flexibilização da tipicamente Moderna e rígida noção de
Soberania estatal, associada à progressiva desconsideração dos limites estabelecidos
pelas fronteiras nacionais, bem como o surgimento de novas arenas de Poder e de
62
produção de normas jurídicas para além do fenômeno estatal (CASELLA, 2009b, p. 10;
FARIA, 2004; HABERMAS, 2006a, p. 183-4).
No direito internacional, a configuração, estritamente estatal, vigente durante
séculos, deu lugar ao contexto pós-moderno, no qual claramente os estados
não mais conseguem fazer operar o sistema internacional como todo. Assim o
tempo histórico e o contexto cultural obrigam a rever os fundamentos do
direito internacional pós-moderno, para que este não se desligue da realidade,
mas alcance a necessária efetividade de sua implementação como mecanismo
regulador da convivência entre sujeitos e agentes do contexto internacional.
(CASELLA, 2009a, p.168).
Dessa forma, deve-se notar que o Direito Internacional, em ambiente Pós-
Moderno, não mais se apresenta de modo tão internacional – entre nações, ou melhor,
entre Estados-nações – como pretendia o clássico pensamento jusfilosófico político
Moderno. (CASELLA, 2006, p. 838). Há, de fato um pluralismo de fontes do Direito, e
mesmo um pluralismo de sujeitos de Direito Internacional (CASELLA, 2009b, p. 7) que
desestabiliza a ordem internacional anterior, entendida de acordo com as concepções
superadas tipicamente Modernas, inserindo a variável da desordem internacional,
fragmentada, uma perspectiva ínsita ao Direito Internacional no século XXI (ACCIOLY;
NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 97; CASELLA, 2007b, p. 13).
Foi possível identificar a emergência de duas principais correntes Pós-
Modernistas no Direito Internacional, cada uma fornecendo respostas diferentes para a
questão da relação entre Direito Internacional e o Direito interno, de modo a determinar
a prevalência de um regime jurídico sobre o outro conforme seus específicos critérios, a
serem examinadas a seguir.
As duas correntes identificadas se inserem dentro de um Pós-Modernismo de
caráter Transicional, qual seja, um que articula suas respostas em critérios racionais,
ainda que diferentes entre si (especialização funcional temática e setorial de caráter
técnico ou axiológico-finalístico), que justificam, apriorística e incondicionalmente, a
prevalência do Direito Internacional sobre o interno.
Ambas partem do pressuposto de não mais ser o Estado o único sujeito de
Direito Internacional, nem sua vontade o único e exclusivo centro produtor de normas
jurídicas e tomador de decisões políticas fundamentais, exatamente por abandonar o
monismo estatal Soberano de detenção do Poder (FARIA, 2004).
63
E talvez se possa aposentar o dualismo, como visão de dicotomia entre uma
ordem interna e outra ordem estanque, esta internacional, concepção
superada pela evolução do direito internacional pós-moderno. (CASELLA,
2006, p. 838).
4.1 O Pós-Modernismo Transicional e as Razões de sua Solução
[N]a medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus
integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente. (ADORNO,
2006, p. 137).
Obviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, ou uma
nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o viver
transitivo é exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois tempos,
entre dois universos de valores, enfim, entre passado erodido e presente
multifário. (BITTAR, 2005a, p. 100, grifos do autor).
O Pós-Modernismo transicional pode ser entendido como uma vertente que
compreende a Pós-Modernidade como um contexto sócio-histórico bastante singular,
caracterizado pela transição (BITTAR, 2005a, p. 96; CASELLA, 2007b, p. 16).
Enquanto período contemporâneo, não mais totalmente Moderno, porque não
mais se pauta exclusivamente pelo Discurso Filosófico-Político Moderno, mas também
não inteiramente um modelo completamente novo e alternativo, trata-se de momento
específico de transição, em que o modernismo clássico e o pós-modernismo novo
coexistem, persistindo cada um deles nos discursos e nas práticas jurídicas nacionais e
internacionais (BITTAR, 2004). De fato,
[a] pós-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a
modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto é fato. Suas
verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus valores [...]
ainda permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo
que a simples superação imediata da modernidade é ilusão [...]. (BITTAR,
2005a, p. 100).
Há, desse modo, a constatação da obsolescência do modelo anterior, que, por
força do contexto cultural, passa a sofrer um processo de desconstrução, apesar de
continuar a ser aprendido, ensinado, reproduzido, e até aplicado, exatamente por não ter
havido a consolidação do novo sistema de princípios, de normas e procedimentos
culturais (CASELLA, 2007b, p. 15). Alguns autores preferem denominar esse período
de transição, por isso mesmo, de neomodernidade, em que inúmeras adaptações dos
64
preceitos da Modernidade devem sofrer adaptações (KESSEDJIAN, 2002, p. 290 apud
CASELLA, 2009b, p. 10-1).
A transição paradigmática envolve, necessariamente um processo de
resistência contínua e conjugada contra os fortes, complexos, arraigados e
enraizados valores da modernidade que se insculpiram com ares de
eternidade no horizonte da sociedade ocidental; (BITTAR, 2005a, p. 100).
No Direito Internacional, a variável transicional da Pós-Modernidade implica o
reconhecimento da não-exclusividade do Estado como sujeito do Direito Internacional,
na medida em que partilha tal condição com Organizações Internacionais (OIs) e com
os seres humanos. Percebe-se, deste modo, que a ordem jurídica internacional não mais
se fundamenta nos parâmetros westfalianos do consenso estatal voluntário e, nesse
sentido, haveria outros centros nomogenéticos jurídicos internacionais para além dos
Estados, como as OIs e fóruns multilaterais (CASELLA, 2006, 2009b; CANÇADO
TRINDADE, 2006a, 2006b, 2006c; FARIA, 2004; KUNTZ, 2003).
Diante da constatação da não exclusividade, ou mesmo da perda de centralidade,
do Estado nas dinâmicas políticas e jurídicas internacionais, o pensamento Pós-
Moderno transicional reconhece haver a prevalência do Direito Internacional sobre o
Direito interno, tendo em vista que ainda é possível diferenciar dois regimes jurídicos
distintos (Estado não desapareceu da arena jurídica internacional, mas também não é
único ou exclusivo, sendo, assim, mais um), mas coordenados sistêmica e
funcionalmente a partir da ordem internacional, que passa a pautar a Agenda Jurídica
nacional (FARIA, 2004, p. 178 e 25-9) – inclusive, propondo a desconsideração integral
dos limites jurídicos e físicos estabelecidos pelas fronteiras por sistemas de regulações
jurídicas funcionais que penetram no território, apesar das fronteiras, por meio do
Direito privado! -.
Estados e demais global players de caráter não-estatal, como corporações
multinacionais, organizações não-governamentais, fóruns multilaterais, mecanismos de
concertação não institucionalizados, e OIs, convivem na arena jurídico-política
internacional, cada um buscando sua própria política, mas se influenciando
reciprocamente.
Se os Estados não mais se mostram mais capazes de assegurar, por si, as
fronteiras do próprio território, os meios de subsistência da própria subsistência ou
mesmo a independência no processo de deliberação de sua política interna, em razão da
65
existência e da atuação desses outros entes não-estatais, por outro lado, os Estados
continuam a ser os agentes políticos e econômicos mais importantes, na medida em que
apenas eles possuem o mínimo necessário de legitimidade internacional para atuar sobre
as esferas da vida individual (HABERMAS, 2006a, p. 183-4).
Convivem elementos Modernos e Pós-Modernos nesse ambiente em transição, e
que determinam um específico direcionamento para a questão da relação entre o Direito
Internacional e o interno, no sentido de determinar qual deve prevalecer sobre o outro
(tensão estabilidade e mutabilidade). Há o abandono definitivo do debate entre uma
concepção monista e, outra de caráter dualista, por parecer prevalecer, por motivos de
ordem racional, e não mais voluntaristas, o entendimento de que se trata de uma única
ordem jurídica, pautada sempre pelos mandamentos normativos do Direito Internacional.
Desconsidera-se o discurso dualista (CASELLA, 2006, p. 838) por se perceber
haver a coexistência da fonte de Direito Internacional estatal com a fonte oriunda de
outros centros, como OIs e fóruns multilaterais, todas não propriamente voluntárias,
mas de fundamento racional técnico, temático ou finalístico, mas que, exatamente por
esse motivo, sobrepõem-se aos resultados da atividade nomogenética estatal quando há
incompatibilidade entre uma e outra ordem jurídica.
Deste modo, apesar se poder encontrar explicações teóricas que mostrem a
insuficiência da continuidade da aplicação e da execução do modelo Moderno para a
condução das questões da vida cotidiana, persiste a utilização de seu arcabouço
conceitual e de seus institutos jurídicos (BITTAR, 2005a, p. 102), não apenas para
explicar, mas também para movimentar processos novos das práticas jurídico-políticas
internacionais que se mostram incompatíveis com a lógica clássica.
Foi possível diagnosticar a existência de dois modelos de sistema de Direito que,
em ambiente de transição pós-moderno, tentam lidar com o tema da relação entre o
Direito Internacional e o direito interno, em ambos havendo a prevalência das normas
jurídicas da ordem internacional sobre a de origem interna.
Os dois modelos se articulam em torno de critérios racionais, a saber, (i)
Regimes Jurídicos de Governança Global, em que a razão da prevalência do Direito
Internacional sobre o interno é de caráter técnico-funcional, especializado setorial e
tematicamente; e (ii) Direito Internacional dos Direitos Humanos, em que o motivo
de prevalência do Direito Internacional sobre o interno decorre de razões finalísticas de
66
prevalência axiológica dos Direitos Humanos. Cada um deles será brevemente
examinado, a seguir.
4.1.1 Regimes Jurídicos de Governança Global
A postmodern approach to institution‐building (and not nation‐building)
should adapt itself to the logic of plural legal regimes and try to establish
“rules of collision” for the management of different legal regimes.
(LADEUR, 2009, p. 1359-60).
[A]s fronteiras se tornam permeáveis - ou mais permeáveis - a decisões
tomadas no exterior. O que importa, para caracterizar a nova situação, é a
incapacidade crescente do Estado, por seus processos interiores, de
neutralizar os efeitos de fatores externos. Desde o início da era moderna, essa
vulnerabilidade nunca foi tão ampla quanto hoje, em tempos de paz.
(KUNTZ, 2003, p. 49).
Os Regimes Jurídicos de Governança Global se constituem a partir da
constatação do fenômeno da fragmentação (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004) a
partir da expansão e do aprofundamento do fenômeno da globalização (KUNTZ, 2003).
Essa concepção de regime jurídico global, fundada na percepção da entrada do
Direito Internacional na Pós-Modernidade (LADEUR, 2009, p. 1357), possui
fundamentos bastante precisos em torno de ideais tipicamente liberais, a tal ponto que
foi possível inclusive, aos “neoliberais nos anos 90, através da rápida globalização
econômica, deixar[em]-se inspirar pelo sonho da extinção do Estado.” (HABERMAS,
2006a, p. 175): tratava-se, a final, do vislumbre da potencial imagem do regime jurídico
global/transnacional sem o Estado (TEUBNER, 2006).
De fato, a integração, em alta velocidade, dos mercados, intensificando a
circulação de bens, de serviços, de tecnologias, de capitais, de culturas e de informações
globalmente, implicou profundas transformações na ordem mundial ocorridas no último
quarto do século XX. Houve a erosão, ou ainda, a relativização, dos principais conceitos
do modelo jurídico tipicamente Moderno, como a Soberania estatal e o Poder de o
Estado determinar, por si só, políticas econômicas e sociais internas, por meio da
desconcentração, da descentralização e da fragmentação de seu Poder decisório e
nomogenético (FARIA, 2004, p. 7-8). Há uma verdadeira reordenação do “tabuleiro
global” em dimensões econômica, política e militar (KUNTZ, 2003, p. 46-7).
67
“No nível internacional”, segundo David Held, “ocorrem disjunções entre a
idéia de Estado como em princípio capaz de determinar o próprio futuro e a
economia mundial, as organizações internacionais, as instituições regionais e
globais, a lei internacional e as alianças militares que operam para conformar
e restringir as opções dos Estados-nações individuais.” (KUNTZ, 2003, p.
50).
A fragmentação do Direito Internacional em regimes jurídicos globais
setorialmente específicos está relacionada à complexificação da sociedade, em que o
Direito Global tematicamente especializado é reflexo da diferenciação sistêmico-
funcional da sociedade global em diferentes racionalidades (econômica, político, social,
comercial, ....) mais ou menos institucionalizadas (FISCHER-LESCANO; TEUBNER,
2004, p. 1004).
Em razão dessa fragmentação intensa, há uma crescente complexificação da
sociedade, de tal modo que há o incremento de incerteza e de riscos, exigindo a
necessidade de mais regimes regulatórios circunstacialmente destinados para cada
tema/setor especializado, por meio de normas jurídicas flexíveis para regular as “micro-
estruturas” de cada um desses setores especializados, dotados de racionalidade social
específica, da sociedade funcionalmente diferenciada (KJAER, 2009, p. 484-5): “The
law must therefore adapt itself to the existence of a wide variety of overlapping and
multi-level networks, which are not only profoundly a-hierarchical, but also encompass
a wide variety of actors, both public and private.” (KJAER, 2009, p. 484-5).
Aplica-se, desta forma, como pressuposto de entendimento deste modelo de Direito,
um específico padrão de organização social que informa a estrutura geral do contexto dentro
do qual o novo modelo de Direito se estrutura (KJAER, 2009, p. 483), qual seja
an adequate pattern of social organization for a radically fragmented and
globalized society in a “network of networks” of heterarchical social
relationships generating collective order as a secondary transsubjective effect
of individual cooperation and coordination under conditions of uncertainty.
(VIELLECHNER, 2009, p. 517-8).
Para essa concepção, a Pós-Modernidade no Direito Internacional deve ser
entendida como estando caracterizada pela lógica de fragmentação heterárquica e
relacional, ínsita à Globalização (VIELLECHNER, 2009, p. 527). Há, nesse sentido, a
transformação das estruturas organizacionais, despedaçando as concepções tipicamente
Modernas de hierarquia, as distinções ente público e privado (KJAER, 2009, p. 483), e
68
de existência de um único centro detentor do Poder decisório dotado de capacidade
nomogenética (FARIA, 2004, p. 53-5).
Assim, o regime jurídico global consiste em uma rede (cadeia de redes) maior de
série de regulações jurídicas em rede de origem privada, pública não-estatal e estatal de
caráter nacional, transnacional, internacional, intergovernamental e supranacional, que
devem se coordenar harmonicamente (VIELLECHNER, 2009, p. 528) por critérios
diferenciação sistêmico-funcional em linhas setoriais especializadas (FISCHER-
LESCANO; TEUBNER, 2004), em que a ordem é gerada de modo acêntrico, por meio
de racionalidade relacional entre redes jurídicas globais de regulação temática
(VIELLECHNER, 2009, p. 518).
A globalização produz, dessa forma, um efeito no modelo de Direito em que
acompanha processos maiores de auto-organização societal no sentido de constituir
redes não-estatais, desterritorializadas, auto-organizadas (VIELLECHNER, 2009, p.
524-5), em que o Direito é constituído por estruturas legais heterárquicas e
policêntricas: “The rise of networks is taking place at all levels – locally, nationally,
regionally, and globally; the result is the emergence of a system of multi-level
networks.” (KJAER, 2009, p. 488).
Beyond the traditional forms of territorial separations, a new “sectoral
principle of differentiation,” which deploys its eigen‐rationality (specific
rationality), is emerging. The new legal system follows a logic of
networking: more and more transnational legal regimes come to the forefront
that generate, observe, and manage their own rules. The reflexive potential of
private “regimes” for the management of rules differs from the normative
systems of the past. This evolution corresponds to the above‐mentioned rise
of network‐like hybrid organisations and inter‐relationships (“flat
hierarchies”) in the economy. (LADEUR, 2009, p. 1358, grifos do autor).
Deste modo, em suma, essa concepção percebe uma sociedade internacional
globalizada, articulada reticularmente, sem vértices ou centros únicos de Poder, porque
heterárquica e acêntrica, onde a regulação jurídica deixa de se orientar por critérios de
soberania territorial, mas, sim, por critérios sistêmico-funcionais, temática e
setorialmente funcionalmente especializados (LADEUR, 2009, p. 1358-9, 1362 e 1365).
“Transnational communities,” or autonomous fragments of society, such as,
the globalized economy, science, technology, the mass media, medicine,
education and transportation, are developing an enormous demand for
regulating norms which cannot, however, be satisfied by national or
international institutions. Instead, such autonomous societal fragments satisfy
their own demands through a direct recourse to law. Increasingly, global
69
private regimes are creating their own substantive law. They have recourse to
their own sources of law, which lie outside spheres of national law-making
and international treaties. (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p.
1010).
Segundo tais critérios, estariam as regulamentações jurídicas não-estatais
fundadas em razões técnicas advindas de fóruns multilaterais e de OIs que,
definitivamente, determinariam as diretrizes de conduta dos indivíduos e dos Estados
(Regime Jurídico Global Financeiro, Bancário, Comercial, Trabalhista, Penal,
Econômico, de Direitos Humanos, de Propriedade Intelectual, Lex Mercatoria, Lex
Digitalis,...) (BRAITHWAITE; DRAHOS, 2004; FARIA, 2004, p. 39; FISCHER-
LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1010-1; SLAUGHTER, 2004; VIELLECHNER,
2009, p. 519-20).
Nesse sentido, os problemas do Direito inserto em Economia Globalizada, cada
vez mais extravasam os limites do Estado (KUNTZ, 2003, p. 53; LADEUR, 2009, p.
1357), que passa a ter sua orientação nomogenética orientada por arenas que se
encontram em ambiente estranho ao modelo jurídico tradicional tipicamente Moderno.
Trata-se de um Projeto Pós-Moderno de uma ordem descentralizada, para além do
Estado (VIELLECHNER, 2009, p. 526), e acima dele: transnacional, significa a
desconsideração e a sujeição do Direito interno com relação ao Direito não interno, não-
estatal, Internacional, classificado como transacional ou global.
Nesse ambiente Pós-Moderno, portanto, permanece a figura do Estado-nação
Soberano (persistência de elementos tipicamente Modernos no ambiente de transição)
(VIELLECHNER, 2009, p. 526), mas ele detém menor autonomia com relação à
ambiência externa, exatamente por seus poderes legais terem sido esfacelados em muito
(HABERMAS, 2006a, p. 184; KUNTZ, 2003, p. 52).
[A]s condições de operação da economia, [...] limitam a eficácia dos meios
tradicionais da política econômica e, portanto, da autoridade formal do
Estado. Isso não quer dizer que as políticas fiscal e monetária tenham perdido
utilidade, nem que as políticas de desenvolvimento se tenham tornado
inócuas. Significa apenas que a integração cada vez mais estreita dos vários
mercados sujeita as economias, cada vez mais amplamente, às conseqüências
de decisões tomadas fora do território nacional. Nesse novo quadro, podemos
acrescentar, direitos associados à regulação dos mercados – trabalhistas por
exemplo – tendem a perder eficácia, porque se alteram as condições de
proteção de seus detentores formais. (KUNTZ, 2003, p. 50-1).
70
Este Direito Global está, dessa forma, fragmentado em linhas setoriais sociais
temáticas, e não territoriais, sendo que a colisão de regimes jurídicos não mais seria
entre a ordem jurídica interna e a Internacional, visto haver a incondicional supremacia
da regulação jurídica transnacional diferenciada tematicamente, mas, sim, entre os
setores da regulação jurídica temática (Comércio versus Meio-Ambiente, ...)
(FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 999-1000).
Esse modelo de sistema legal impõe que se pense a reelaboração da concepção
de conflitos entre regimes jurídicos, bem como dos critérios destinados a os solucionar,
na medida em que não mais se trata da contraposição entre Direito Internacional e
Direito interno (debate do tradicional monismo), mas, sim, de choques de
racionalidades setorialmente especializadas (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004).
Nesse sentido, a solução não deve seguir a resposta tipicamente Moderna de
caráter hierárquico, à imagem e semelhança das respostas dadas pelo Estado-nação, mas,
sim, de acordo com a supramencionada lógica de rede (FISCHER-LESCANO;
TEUBNER, 2004, p. 1002 e 1004; LADEUR, 2009, p. 1358): heterarquia acêntrica, em
que a integração possua “natureza eminentemente sistêmica, acima de tudo alicerçada na
especialização e „mercantilização‟ do conhecimento, na eficiência, na tecnologia, na
competitividade, na produtividade e no dinheiro.” (FARIA, 2004, p. 52, grifos do autor).
De qualquer maneira, para não extrapolar os objetivos do presente estudo, deve-
se notar que este modelo de sistema legal constata que sempre há a prevalência da
regulação jurídica não-estatal, elaborada para além das fronteiras do Estado, em âmbito
transnacional, em razão de especialização sistêmico-funcional temática e setorial, sobre
a pretensa regulamentação jurídica, sobre os mesmo temas, realizada por meio do
Direito positivo interno do Estado.
O Direito passa a existir e a ser produzido em esferas diversas da estatal, para
além de seus limites, desenvolvido de acordo com a lógica de diferenciação funcional,
global, com a rápida expansão de OIs e de regimes regulatórios temáticos que se
estabelecem como ordenamentos jurídicos autônomos, de origem setorialmente
especializada (fragmentação setorial).
Formam-se, assim, regimes jurídicos transterritoriais que possuem um alcance
definido por questões temáticas, e não em razão de limites ou de fronteiras territoriais
(não mais de acordo com o paradigma do Modernismo westfaliano), havendo, dessa
forma, uma validade global que ignora – e que até despreza, além de desconsiderar – as
71
fronteiras estabelecidas pelos ordenamentos jurídicos estatais por seu Direito positivo:
global law without a State (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1007-9;
TEUBNER, 2006).
O comportamento particular dentro dos Estados, e mesmo a ação estatal, é
completamente orientado “de fora” por um regime jurídico não-estatal, superior a seus
limites – transterritorial, global, ou mesmo, internacional -, ainda que a figura do Estado
Soberano persista (FARIA, 2004, p. 29 e 37): o Moderno (não mais) e o Pós-Moderno
(não ainda) convivem neste período de transição.
[T]he rise of global forms of co‐ordination beyond public international law
can no longer be regarded as anomalous deviation from the right way of
statebased law, but as the expression of an evolutionary step towards new
forms of the self‐organization of societal norms which go beyond the official
legal system. (LADEUR, 2004, p. 7 apud VIELLECHNER, 2009, p. 520).
4.1.2 Direito Internacional dos Direitos Humanos
Exprimir a dimensão do humano, como sujeito de direito internacional é a
grande transformação em curso no direito internacional pós-moderno. Assim
se pode reescrever a relação do indivíduo com o estado, e deste com a
dimensão social, da gestão pública. Esta se inscreve, como necessidade e
como imperativo de ação, e norteador de rumos: de nada adianta falar em
governabilidade, em escala nacional, ou governança global, se não se tiver
conteúdo que faça da dignidade humana o valor central da gestão e do
governo, local, estadual, federal, ou mundial Serão somente discursos vazios.
(CASELLA, 2009b, p. 5, grifos do autor).
A sistemática internacional, como garantia adicional de proteção, institui
mecanismos de responsabilização e controle internacional, acionáveis quando
o Estado se mostra falho ou omisso na tarefa de implementar direitos e
liberdades fundamentais. (PIOVESAN, 2003, p. 61).
O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge como resposta às
atrocidades ocorridas durante o Pós-Segunda Guerra mundial (BITTAR; ALMEIDA,
2006, p. 544; CASELLA, 2007a, p. 17; MIRAGEM, 2005, p. 308 e 311-2; PIOVESAN,
2003, p. 59), de certa forma buscando superar a conclusão de Hannah ARENDT de que
de nada adianta conservar a condição de homem no Estado, porque ela não impede o
cometimento das maiores atrocidades contra aqueles que se encontram desprovidos da
qualidade de cidadão (ARENDT, 2004, p. 333-4).
Constatada a obsolescência do modelo de Direito Internacional legado e herdado
fundado na voluntariedade estatal – um Direito Internacional interestatal, porque
72
constituído à imagem e semelhança dos Estados, e para estes exclusivamente -, o
contexto Pós-Moderno percebe o Direito Internacional como fruto racional da sociedade
civil internacional, com o objetivo de o tornar mais próximo possível de uma dimensão
humana (CASELLA, 2006, p. 1290-1), de modo a evitar o recometimento das barbáries
experienciadas pela humanidade na Segunda Guerra Mundial (BITTAR; ALEMIDA,
2006, p. 546).
Direito internacional pós-moderno não mais somente como emanação dos
estados e da vontade destes, projetada para o plano externo, mas construindo
dimensão humana mais abrangente. Que venha o ser humano a ocupar papel
e espaço de atuação específicos no direito internacional pós-moderno é
necessário e desejável, mas, todavia, não se tem os modelos específicos para
a canalização e a veiculação de tal atuação. (CASELLA, 2006, p. 1291).
Segundo esta específica concepção de encaminhamento do Direito Internacional
no ambiente da Pós-Modernidade, a inserção do homem como exercendo um papel
central na formação do Direito Internacional é o valor fundante e fim deste contexto
Pós-Moderno, no qual os Direitos Humanos se inserem como critério e baliza primeiros,
quase que metafísicos, para que a Justiça, para além da técnica, seja o objetivo a realizar
em uma ordem internacional dos Direitos Humanos que pretenda proteger a vida, a
liberdade e a dignidade humanas, em todos os Estados, por todos os Estados, sem
restrições (CASELLA, 2006, p. 1290).
A idéia fundamental é a de que haja a alteração do Direito Internacional para que
ele se adeqüe a seu contexto histórico de progressiva afirmação dos Direitos Humanos,
de modo a o tornar teleologicamente humano por um progressivo processo histórico de
humanização do Direito Internacional, inclusive por meio da atribuição da condição de
sujeito de Direito Internacional ao ser humano (CANÇADO TRINDADE, 2006a,
2006b, 2006c, p. 143-4; CASELLA, 2007a, p. 41). O objetivo é “rumar à ordenação
humana do mundo[, ...] instaurar regimes de co-regulação normativa, onde se combine a
presença e a atuação do ser humano, no plano internacional, ao lado dos estados, como
princípio central da boa governança.” (CASELLA, 2009b, p. 11, grifos do autor).
Assim, o valor central a nortear as concepções jurídicas deverá ser a dignidade
humana, inclusive nas relações entre Direito Internacional e Direito interno. Trata-se de
um “novo direito, que visa proteger a vida. No século XX, este direito tem um nome:
73
Direito Internacional dos Direitos Humanos[, que deve ser entendido como minimum
dos povos].” (BITTAR; ALMEIDA, 206, p 540), detendo, dessa forma, valor universal:
Não existiria apenas um direito internacional, mas um direito de caráter
supranacional – os direitos humanos – estando a liberdade de ação dos
Estados circunscrita a este direito. (MIRAGEM, 2005, p. 319).
Nesse sentido, por haver a conversão dos direitos humanos em tema de legítimo
interesse comunidade internacional, há um grande esforço de se buscar reconstruir os
Direitos Humanos como o paradigma e o referencial ético destinador a orientar a ordem
jurídica contemporânea (PIOVESAN, 2003, p. 59).
Por se inserir em uma preocupação jurídica internacional, independentemente da
regulação estatal, é a disposição jurídica internacional que incorpora o tema da proteção
dos Direitos Humanos, universalmente, que deverá prevalecer sobre o Direito interno
em hipóteses de incompatibilidade. Trata-se da “ordenação teleologicamente humana do
mundo, por meio do direito internacional pós-moderno.” (CASELLA, 2009b, p. 5).
Esse novo conceito é a inerência da dignidade do ser humano. Isso significa
que a liberdade e a igualdade em dignidade e direitos surgem com o
nascimento do ser humano e o acompanha, de modo inseparável e
incondicional, no decorrer de sua existência. Não dependendo, em absoluto,
de qualquer outro título ou condição. [...].
O Direito à vida foi estabelecido para os cidadãos do mundo, já que o Estado
Nazista, além de ser assassino, era genocida. Reprimir o genocídio foi uma
das primeiras tarefas do DIDH. [...].
[O] genocídio de Hitler é parte de uma política de governo; aos olhos do
Estado Nazista, trata-se de uma atividade legal. Para que a comunidade
internacional pudesse punir o crime de genocício, era preciso tipificá-lo. É o
que faz a Convenção de 1948. (BITTAR; ALMEIDA, 2006, p. 546 e 550,
grifos do autor).
A idéia é assegurar “a maior efetividade possível na tutela e promoção de
direitos fundamentais” (PIOVESAN, 2003, p. 60-1), por meio dos sistemas globais e
regionais de proteção dos Direitos Humanos, independentemente do nível de proteção –
e de desproteção, intencional ou não – concedido pelo Estado, ou até mesmo contra ele.
Trata-se da forte tendência de reforçar o discurso de necessidade de proteção dos
Direitos Humanos para assegurar a Paz e a Segurança Internacional, não apenas se
cingindo ao fenômeno volitivo do Direito Internacional.
A Pós-Modernidade no Direito Internacional impõe um modelo conceitual que
pretende reconstituir o modelo jurídico internacional apresentado em torno da inserção
74
da dimensão humana nas relações entre Estados (inter-nacional), inclusive com a
atribuição da qualidade de sujeitos de Direito Internacional para os Homens, porque o
sistema internacional entre Estados, tal qual foi concebido na Idade Moderna, mostra
não mais inteiramente sustentável à luz das práticas atuais nas relações entre os povos
(novo modelo conceitual em construção de aproximação do Direito Internacional dos
Direitos Humanos). O Direito Internacional em contexto Pós-Moderno é, inclusive,
entendido como um Direito na Idade dos Direitos Humanos (CASELLA, 2009b, p. 6).
Lembre-se, assim, que o Conselho de Segurança deve agir no sentido de
promover e de manter a Paz global, ainda que por meio de intervenção nos Estados, por
a Paz não ser a ausência de guerra, mas, sim, a não violação de Direitos Humanos.
Ainda que haja Estados que não se filiem à ONU, ela deverá agir no sentido de que eles
cumpram, respeitem e promovam os Direitos Humanos, de modo a assegurar a Paz
Internacional.
O questionamento do voluntarismo estatal ocorre, deste modo,
concomitantemente, com a intersecção entre Direito Internacional e Direito Humanos,
em que a opção racional é o direcionamento do jurídico a partir dos Direitos Humanos.
O que reflete, em suma, o esgotamento do modelo clássico do exclusivismo do Estado-
nação, mas a transformação em curso para um modelo ainda não finalizado.
[O] único elemento de aglutinação dos indivíduos adotado como critério de
validade de fenômenos de ordem moral e jurídica passa a ser o denominado
paradigma dos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana,
observando-se a partir deles os desafios de promoção e garantia desses
direitos universais. (MIRAGEM, 2005, p. 328).
5 O PODER E A IMPOTÊNCIAS DAS TEORIAS: A EDUCAÇÃO EM DIREITO
INTERNACIONAL
Apesar de invisível, a atividade do pensar irrompe no mundo das aparências.
Sócrates, como lembra Hannah Arendt, valeu-se da metáfora do vento para
explicar o seu impacto: os ventos são invisíveis, mas ainda assim o que eles
fazem é manifesto para nós e de alguma maneira sentimos a sua
aproximação. (LAFER, 1979, p. 86-7)
Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e
importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a
barbárie contra a qual se dirige toda a educação. (ADORNO, 2006, p. 119).
A efetiva prevalência do Direito interno sobre o Direito Internacional não é
prática corrente exclusiva de ações narcísicas, instrumentais, auto-interessadas e
75
estratégicas de países centrais nas relações políticas, econômicas e jurídicas
internacionais, na medida em que são passíveis de serem encontradas também dentre
entendimentos não tão remotos de países em desenvolvimento, com o objetivo de se
esquivar da obrigação internacional ou de a contornar, tornando-a ineficaz.
Por mais que haja inúmeras teorias no pensamento jurídico internacionalista que
possam tentar explicar a prevalência teórica do Direito Internacional sobre o Direito
interno – ou mesmo justificar a necessidade dela –, deve-se perceber que todas elas
podem estar desvinculadas das práticas político-jurídicas correntes ou oportunistas.
Nesse sentido, de nada adianta haver a construção dos mais diferentes modelos
teóricos voltados à busca da arquitetura de uma maneira específica de compreensão e de
visão de mundo se não há a preocupação em as difundir no período de formação das
concepções jurídicas daqueles que atuarão dentro do mundo do Direito.
Apenas por uma abordagem instrumentalmente diversa de um objeto jurídico é que se
poderá tentar desenvolver novas compreensões acerca do mesmo, de modo a permitir a
construção de novas possibilidades de compreensão, pela literatura jurídica, sobre este mesmo
objeto. De fato, a utilização de viés de análise diferenciado viabiliza a confecção de diferentes
possibilidades de significação sobre o mesmo objeto (ALVES, 2003, p. 298; CAMARGO,
1982), atribuindo-lhe novas finalidades e funções, conforme cada uma das compreensões
construídas. O objeto é, assim, construído de forma renovada.
Se o Direito, enquanto linguagem, constitui a realidade, não sendo, ainda, algo
desvinculado de sua prática consciente na realidade (FERRAZ JR, 2001, p. 34-40;
LOPES, 2004, p. 24-46), apenas por meio da construção de um novo patamar
lingüístico-significativo de compreensão de um mesmo objeto, a partir de uma
interpretação mediada por aparato conceitual instrumental renovado, não tradicional, é
que se poderá constituir nova realidade.
Isso porque novas interpretações diferentes sobre um objeto significam a
abertura de um nova série de possibilidade contingentes de formas de compreensão do
mundo e, portanto, do direcionamento deste, a partir de uma nova compreensão sobre
um instituto jurídico, porque o estudo de um objeto significa o construir (ALVES, 2003,
p. 298) e, se o objeto é o Direito, uma compreensão renovada do Direito, significa uma
reestruturação da arquitetura institucional e social da realidade (LOPES, 2004).
Nesse sentido, deve-se compreender a maneira pela qual se apresenta o
fenômeno jurídico, hoje, a fim de que se possa cogitar da alteridade, na medida em que
76
o Direito não é, mas está, “assim”, construído de determinada maneira histórica e
culturalmente específica, mas que poderia ser completamente diversa. Produto humano,
nunca natural, porque histórico-cultural, admite outras possibilidades de conformação
constitutiva e operacional, estando sempre aberta à mutação.
Com efeito, em tempos em que utopias de um fracassado Projeto Moderno de
emancipação parecem estar estilhaçadas, estando fadadas ao esquecimento, e em que
esperanças sobre um futuro promissor, promitente de felicidade (HABERMAS, 1987b,
1992), aparentam estar fragmentadas, apenas por meio de renovação das compreensões,
voltadas para a constituição do novo, e somente mediante a cogitação da alteridade
(SANTOS, 1997), é que se pode esperar a construção de um futuro que divirja do
passado (HABERMAS, 1993) determinante do presente insatisfatório.
Afinal, Educação em Direito Internacional para quê?
Após a ocorrência do maior espetáculo de carnificina humana, decorrente da
afirmação incondicional da ordem jurídica estatal nacional interna sobre a ordem
internacional durante a Segunda Guerra Mundial,
determinadas leis de um Estado aparta[ra]m-se dos princípios e valores que
governa[va]m o direito internacional ou contraria[ra]m as expectativas da
comunidade internacional, [ainda] que dotadas de efetividade e ainda que
correspond[esse]m aos anseios da comunidade nacional, não pode[ria]m [ter
sido] consideradas normas jurídicas e, sim, simples exercício do poder de
coerção, destituído de legitimidade [reductio ad hitlerum]. [...].
Dir-se-ia que, na Alemanha, de Hitler, ou na Itália, de Mussolini, havia
identidade entre o ordenamento jurídico e as aspirações da nação, seduzida
pela doutrina oficial. Nesse sentido, as normas nazistas ou fascistas traduziam
valores nacionais. Contudo, não coincidiam com princípios acatados pela
comunidade internacional como um todo. Daí sua injuridicidade.
(MAGALHÃES, 2005, p. 26-7 e 28-9).
Nesse sentido, após as barbáries da Primeira Guerra Mundial,
a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a
educação[, ... e] a pouca consciência existente em relação a essa exigência e
as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo
nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que
depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas
(ADORNO, 2006, p. 119).
Todo e qualquer processo de Educação, inclusive em Direito Internacional, não
pode ignorar a premissa de conduzir à emancipação, em busca de evitar o
recometimento de Auschwitz, principalmente quando se constata que a prática
77
discursiva que pauta e que estrutura a condução das relações internacionais não se
alterou significativamente nos últimos anos (ADORNO, 2006, p. 120 e 139).
De fato, persistem as psicóticas opções por um nacionalismo agressor,
tipicamente Moderno, avesso aos imperativos racionais – sistêmicos ou axiológicos -,
ou de crenças de juridicidade, que determinam, respectivamente, o primado de uma
ordem jurídica internacional, ou o primado do Direito fundado na plural e
constantemente mutável condição humana.
Não se pode ignorar o peso e a imensa pressão dos elementos objetivos
existentes sobre as pessoas, ou seja, não se pode deixar de se conscientizar a
persistência de uma racionalidade Moderno-westfaliana, estritamente estatal-
nacionalista e voluntarista, que ainda concebe o Direito Internacional como mero fruto
da voluntas estatal, por ele livremente derrogável ou dispensável, conforme sua
conveniência (ADORNO, 2006, p. 122-3 e 143).
No entanto, não se pode deixar de se orientar por um objetivo de busca de um
“esclarecimento geral que, que produz[a] um clima intelectual, cultural e social que não
permita tal repetição; [...] um clima em que os motivos que conduziram ao horror
tornem-se de algum modo conscientes” (ADORNO, 2006, p. 123), porque a cega força
de uma realpolitik não pode impedir a constituição de um estado de consciência
coletivo que perceba o status quo como não-natural, porque fruto de um processo
histórico sistêmico de direcionamento da formação e da conformação de seus contornos
(ADORNO, 2006, p. 129-32, 144-5 e 185) que, exatamente por ser espacial e
temporalmente cultural, não é imutável, porque passível de contínuas reconstituições.
Conscientizar sobre o presente é fundamental, mas sua mera descrição como
imposição incontrastável não deve ser o objetivo da Educação em Direito Internacional,
que deve buscar, por seus mecanismos, impor, antisistemicamente, a negatividade do
presente (ADORNO, 2009), a fim de que o passado-presente insatisfatório não
permaneça sendo a única possibilidade do futuro (HABERMAS, 1993).
A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação
e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria
igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well
adjusted people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação
existente se impõe precisamente no que tem de pior. (ADORNO, 2006, p.
143, grifos do autor).
78
Esta é a importância e a força de uma educação em Direito Internacional que
estimule a constante renovação de seus pressupostos, uma vez que permite criar, a partir
do presente, um mundo alternativo possível (alteridade) (CASELLA, 2006, p. 26;
STIELTJES, 2001, p. 319), porque pensado pelo homem (ALVES, 2003, p. 357), com
potencial de modificação da realidade, por servir de base de comparação com o mundo
real, de forma a estimular um outro agir para que este possa chegar o mais próximo
possível do estado concebido, ainda que, efetivamente, a este não se chegue nunca.
[S]e os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo.
Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do
acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída.
(HOBSBAWM, 2000, p. 191)
Representa, nesse sentido, a importância, a força e o objetivo do parar para
pensar, da tarefa do filósofo (HABERMAS, 2006b), que pretende alterar a realidade,
ainda que inicialmente apenas pela alteração dos valores disseminados, canalizando-os
para a criação de um algo, no futuro, que produza uma realidade diferente (BITTAR,
2005b, p. 21-2), devendo a “crítica deste realismo supervalorizado [....] ser uma das
tarefas educacionais mais decisivas [...].” (ADORNO, 2006, p. 145).
Dessa forma, é possível constatar uma possível persistência de deformação e de
conformação da educação jurídica brasileira vigente em torno de temas fundamentais do
Direito Internacional Público, bastando lembrar ter deixado de ser obrigatório o ensino
de Direito Internacional das Faculdades de Direito do país no início dos anos setenta.
Apenas com o novo currículo mínimo obrigatório, a partir de 1994, é que se
reintroduziu o ensino deste ramo do Direito: até então, seu estudo havia desaparecido de
inúmeros cursos de Graduação em Direito brasileiros (CASELLA, 2006, p. 662-3).
O fenômeno seria cômico se não fosse trágico, visto ter ocorrido em boa
parte das faculdades de direito do país, todavia mostra os seus efeitos, em
relação a toda essa geração, que se graduou entre a vigência dos currículos
mínimos obrigatórios dos cursos de graduação em direito, de 1972, até o
advento do novo currículo de 1994, fez e ainda faz carreira, sem nada ter
aprendido de direito internacional, quer público quer privado. (CASELLA,
2006, p. 663).
Essa opção de política educativa permitiu a deformação, e não a formação, dos
bacharéis em Direito no Brasil, que foram substituídos, ou até mesmo convencidos, por
fautores da Realpolitik, os analistas internacionais que, formados na Escola Realista, de
79
Hans MORGENTHAU, segundo o qual é da natureza humana aspirar cada vez mais ao
Poder (HABERMAS, 2006a, p. 173), apenas acreditam ser o único critério determinante
e regulador da realidade os interesses do mercado e o poder de tomada de decisões
(ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 97).
“Esses frutos ainda estão sendo encontrados.” (CASELLA, 2006, p. 663), visto
se perpetuar, ainda, uma crença de que as ”relações entre os Estados [são] dominadas
exclusivamente pelo interesse por poder e [pel]a acumulação de poder.”, em que
“arranjos jurídicos [...] reflet[em] constelações de interesses instáveis e transitórios entre
potências” (HABERMAS, 2006a, p. 173) que efetuam um cálculo racional egoísta
expandido ao extremo, excessivamente concentrado no interesse próprio, incapaz de
perceber o outro ou qualquer elemento além de si (ADORNO, 2008, p. 30); são, enfim,
lembrando Hans KELSEN (2002, p. 136), em 1937, ao avaliar a Tese de Umberto
CAMPAGNOLO,
sintomas característicos do nosso tempo, assinalado pelo desmoronamento da
Sociedade das Nações e por uma notável debilitação da eficácia do direito
internacional. Nessa situação, é compreensível que – diante de duas possíveis
interpretações da realizada jurídica – primazia do direito internacional ou
primazia do ordenamento jurídico estatal -, a segunda tome novamente a
frente e seja preferida, sobretudo pelos autores mais jovens.
No entanto, é imprescindível também que haja uma preocupação com a
construção transformadora de uma específica sensibilidade dentre os estudiosos do
Direito, a fim de que o Direito concebido, positivado, estudado e aplicado, qualquer que
seja ele, Internacional, interno, transicional, heterárquico ou pós-moderno, em suma,
esteja voltado à preservação da comunidade geral dos homens, o (CÍCERO, 1999, p.
71), fruto de uma Educação em Direito internacional que motive um modo de agir
politicamente refletido que esteja a serviço da humanidade (ADORNO, 2006, p. 160).
A educação como ferramenta fundamental. E o direito, no contexto pós-
moderno, como condição para a sobrevivência da humanidade neste novo
milênio. (CASELLA, 2009a, p. 69).
Neste sentido, é fundamental relembrar a importância que deteve a idéia
tipicamente Republicana de Estado de Direito para a constituição do Estado Moderno,
tendo em vista que a idéia de República está associada, deste modo, à idéia de
“Governo” ou de “império das Leis”, ou ainda, a “Estado de Direito”, “expressões que
80
declaram, na sua acepção mais imediata, a prescrição de que os que mandam também
obedeçam [...].” (CARDOSO, 2004, p. 45-6).
Se não há como se pensar em Estado de Direito em âmbito internacional, ao
menos que se lembre da importância do governo das Leis nas relações internacionais,
primando, a final, pela Soberania do Direito (KRABBE, 1906 apud CASELLA, 2006,
p. 1263), desde que afinado à constantemente inconstante medida humana, tendo em
vista que “a pesar de todo, parece que la idea del Derecho sigue siendo más furte que
cualquier outra ideologia de poder.” (KELSEN, 1943, p. 204).
Nesse sentido, não se pode esquecer de que o direito se trata de uma
superestrutura, uma ferramenta técnica de viabilização da vida humana em sociedade,
qualidade que não deve ser ignorada, mas sempre relembrada, sempre de acordo com as
decisões dadas pela política (CASELLA, 2009a, p. 67-8 e 71), ainda que ela decorra de
deliberação de prevalência do Homem plural e diverso sobre o Direito cristalizado e
rigidamente inflexível em razão de sua totalização por determinada visão – inclusive a
visão sobre os Direitos Humanos! -. “É preciso acreditar no espaço e no papel do
direito internacional, como condição de sobrevivência da humanidade. É enfático
Chrsitan Tomuschat, no seu curso geral na Haia (1999).” (ACCIOLY; NASCIMENTO
E SILVA; CASELLA, 2009, p. 97, grifos do autor), “para evitar que a humanidade
soçobre no caos e na anarquia.” (CASELLA, 2007a, p. 26). .
Apenas assim se poderá garantir a subsistência da comunidade geral dos
homens, enquanto homens, afastando qualquer dimensão de uma animalidade egoísta,
ou a possibilidade de sobrevida dos artefatos humanos sobre o próprio Homem, ambos
nutrientes daquele antagonismo mútuo estimulado por anacrônicos e psicóticos
nacionalismos narcísicos, pretensamente justificados por algum discurso ideológico
(LUKÁCS, 2001). Apenas assim é possível “cultiv[ar], prote[ger] e preserv[ar] a paz e a
unidade do gênero humano” (CÍCERO, 1999, p. 71).
6 CONCLUSÕES
[O] que é um pensamento discursivo novo e criativo, senão um pensamento
que se exprime de modo diverso ou de modo original em relação às coisas
ordinárias do senso comum? Dizer a mesma coisa de maneiras diversas
produz sempre algo novo, muitas vezes surpreendente.). (ALVES, 2003, p.
349).
81
A influência histórica e a importância absoluta de uma idéia não dependem
nunca da sua novidade, mas sim da profundidade e da força com que foi
compreendida e vivida. (JAEGER, 1979, p. 302).
O presente estudo pretendeu discutir o tema da relação entre o Direito
Internacional e o Direito interno, com o objetivo de tentar entender as maneiras de
explicação e de tratamento do mesmo segundo três diferentes chaves-cognitivas de
caráter jusfilosófico internacional.
Para iniciar a atividade de reflexão filosófica em torno do tema, como toda
reflexão típica de Filosofia do Direito, foi necessário partir de uma situação fática que
provocasse o sentimento de insatisfação com relação à solução dada pelo Direito
positivo vigente, incitando o jurista a parar para pensar o significado das coisas, sempre
com o objetivo de retornar à realidade para a solucionar de modo diverso e inventivo.
Nesse sentido, a primeira parte deste estudo consistiu em uma brevíssima
exposição dos principais elementos do caso LaGrand, apontando para a questão de ter
havido um consciente e deliberado descumprimento de normas jurídicas internacionais
constantes de Tratados Internacionais, ou de normas de origem costumeira ou
decorrentes de medida ordem jurisdicional internacional, por parte dos EUA, em razão
de aspectos e de dispositivos de Direito interno.
Essa situação concreta, em que se evidencia o choque de normas jurídicas
distintas, originadas de regimes jurídicos diversos – o doméstico e o internacional –
convida ao parar para pensar, com o objetivo de tentar compreender as relações entre as
duas esferas de normatividade jurídica, no sentido perceber a sucessão histórica de
racionalidades que pudessem justificar o discurso de prevalência de um Direito sobre o
outro, ou do outro Direito sobre o um.
Foi possível identificar a existência de um Discurso Jusfilosófico Internacional
de caráter clássico, de origem westfaliana, que permeia as práticas, os discursos e as
concepções sobre as relações entre o Direito Internacional e o Direito interno e a
eventual prevalência de um ou de outro. Fundada no instituto jurídico-político
Moderno da Soberania, nos moldes westafalianos, essa compreensão voluntarista do
Direito Internacional remete à superada discussão entre o dualismo e o monismo.
Em seguida, foi apresentada a superação da percepção clássica do Direito
Internacional em razão da inserção deste em contexto Pós-Moderno: a crise da Pós-
Modernidade impôs a reformulação do conceito de Direito e de Direito Internacional, a
82
reelaboração dos princípios estruturantes do Direito Internacional, a reconstrução de
determinadas compreensões sobre o fenômeno jurídico, bem como o repensar das
soluções tradicionalmente construídas pelo pensamento jusfilosófico internacional
anterior, visto que a medida tipicamente Moderna de se apreender e de se explicar o
mundo não mais estaria apta a mensurar e a operacionalizar o entendimento e as práticas
Pós-Modernas, dotadas de escalar completamente diversa.
Nesse sentido, dentro do Pós-Modernismo jurídico Transicional, foi possível
divisar a existência de duas vertentes que tentam entender o modo de relação entre o
Direito Internacional e o interno.
O Pós-Modernismo Transicional, a despeito da diferença significativa dos dois
modelos identificados e apontados, por motivos racionais técnicos e de especialização
funcional de caráter temático (Governança), ou por razões teleológicas (dignidade da
pessoa humana), entende haver a prevalência incondicional do Direito Internacional
sobre o interno, tout court. Há, assim, resquícios Modernos em um ambiente de
transição, em que o modelo novo, não consolidado, convive com o antigo, persistindo a
diferenciação entre ordem interna e internacional, ainda que a primeira esteja sempre
sujeita à última por imperativos racionais, sejam eles sistêmicos, sejam eles axiológicos.
Por fim, em último lugar, o presente estudo pretendeu apontar para o fato da
importância da Educação, em Direito Internacional, contra a barbárie, e para a
emancipação.
Diante da insatisfação com relação ao tempo presente, em que persiste uma
prática afinada a um Discurso Jusfilosófico Político Internacional anacrônico, clássico,
tipicamente Moderno, mostra-se fundamental estimular um pensamento constantemente
renovado, crítico e inovador, com o objetivo de, pela reconstituição lingüística dos
signos formadores dos conceitos, permitir a propositura contínua da alteridade dos
modelos e das chaves-cognitivas formadoras das concepções que sustentam as práticas
nas relações internacionais atuais e futuras, visando a um devir que não sejam
unilateralmente uma reprodução do triste e não tão remoto passado.
83
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