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Departamento de Ciências Sociais
O DIREITO À APRENDIZAGEM VISTO PELO ÂNGULO DA
SOCIOLOGIA DA INFREQUÊNCIA E DA EVASÃO ESCOLAR
Aluno: Mariana Junqueira e Dorlene Meireles Mendonça
Orientador: Marcelo Burgos
Apresentação
O projeto em desenvolvimento é resultante do amadurecimento de um conjunto de
questões propiciado pela realização de pesquisas sobre a infrequência e o abandono escolar,
um recorte atual de um denso projeto de pesquisa do qual participo há cinco anos – Projeto de
Gestão Escolar e Territórios Populares – e que agora tem uma nova frente de análise acerca
do vazio institucional que engloba o mundo do aluno, com repercussões sobre sua trajetória
escolar.
O projeto Gestão Escolar e Territórios Populares abrange as escolas públicas de ensino
fundamental do entorno da PUC-Rio, cujos estudantes são, em sua grande maioria, moradores
de favelas da região, especialmente da Rocinha. Em linhas mais gerais a pesquisa vem se
dando em torno do estudo da relação das escolas públicas com o que temos chamado de
“mundo do aluno”. Entende-se por mundo do aluno, a escola, a família, a vizinhança e o meio
de socialização no qual o aluno está inserido.
Introdução
A partir das pesquisas que temos realizado, foi possível observar as lacunas existentes
entre a escola, a família e o Conselho Tutelar, que são instituições fundamentais para a
formação e garantia do direito da criança\adolescente. Com base nessa observação passamos a
trabalhar com conceito de vazio institucional, que permite problematizar de uma perspectiva
sociológica aspectos tipicamente escolares como a infrequência e a evasão. O esvaziamento
ou a falta de relação entre as instituições que cercam a criança e o adolescente caracteriza o
que temos chamado em nossa pesquisa de vazio institucional, um conceito que passou a fazer
parte da pesquisa conforme foram observadas as esferas que cercam a criança\adolescente,
citadas anteriormente.
Constata-se, a partir da leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
toda criança e adolescente se configura perante a lei como sujeito de direitos que deve ser
protegido pelas instituições responsáveis. Consideramos que o estudo do que seja vazio
institucional referido às instituições citadas acima, precisava ser problematizado com relação
aos dados da recente pesquisa sobre alunos infrequentes/abandonantes que realizamos, e que
engloba a relação da escola com o mundo do aluno, da família e do aluno com a escola, bem
como a sua relação com o meio no qual estão inseridos (vizinhança/espaços de socialização,
grupos de referência), além da relação de ambos com o Conselho Tutelar (CT).
Para dar conta daquilo que temos chamado de vazio institucional é preciso que se leve
em conta as diversas esferas que cercam crianças e adolescentes, como por exemplo, a escola,
a família e o Conselho Tutelar (CT), que formam aquilo que denominamos tripé institucional,
e que deveria servir como base de sustentação para essas crianças e adolescentes de classes
populares, aos quais tenho me dedicado à análise há cerca de quatro anos. Já tendo
apresentado uma reflexão dos aspectos da relação escola – família, debruço-me agora nas
questões relacionadas ao CT.
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A atenção para o Conselho Tutelar foi despertada a partir da vivência nas escolas
situadas no entorno da PUC-Rio, e com as quais, conforme dito anteriormente, tem sido
mantida uma relação de pesquisa e extensão. Durante a convivência com os profissionais
dessas escolas ouviu-se com frequência a referência ao CT como forma de ameaça tanto para
as crianças como para seus responsáveis; sendo visto quase sempre como uma agência
punitiva e não de parceria.
De fato essa questão se tornou ainda mais clara quando foram realizadas entrevistas
com diretores(as) e professores(as) das escolas contempladas pelo projeto, nas quais se
estabeleceu uma conversa direcionada a uma reflexão sobre a relação da escola com a
diversidade de seu público e com os alunos mais vulneráveis. Visou-se também explorar a
percepção dos entrevistados a respeito do envolvimento da escola com outras instituições
responsáveis pela garantia do direito da criança/adolescente, entre as quais, o CT. (BURGOS;
LOPES; ROSSI, 2014)[1]
O que se constatou é que, parte dos entrevistados(as) veem o CT como última
instância que vai garantir a autoridade sobre os alunos, e por isso é acionado somente em
casos extremos, mas acredita-se que “o CT deve ser reestruturado para dar um suporte maior
para a escola”, em outras entrevistas afirmou-se que, nem em situações graves de
indisciplina dentro da escola o CT é solicitado, pois não é reconhecido como ferramenta de
apoio, mas é utilizado como forma de ameaça aos pais dos alunos: “quer que eu mande pro
conselho?”, visto pelos pais e pelos alunos como uma espécie de aparato punitivo e não como
parte de uma rede de proteção à criança/adolescente. (Idem; P. 379, 372)
Por vezes o argumento que justifica a falta de integração da escola com o CT baseia-se
na ideia de que essa agência está assoberbada de problemas mais sérios para resolver, de
modo que os problemas relacionados à escola acabam sendo deixados de lado.
Um dos problemas que buscamos abordar por meio das entrevistas foi o da questão da
infrequência escolar dos alunos, pois durante a pesquisa nas escolas tomamos conhecimento
de um documento da SME (Secretaria Municipal de Educação), que estipula 12,5% de faltas
como um limite para que a escola comunique ao CT. No entanto, apenas em um momento
surgiu a questão da infrequência relacionada ao CT, visto pela professora como sendo um
problema grave e que mesmo assim acaba ficando para trás por conta de diversas demandas
complicadas que chegam àquela agência.
Afim de conhecermos melhor a relação do CT com a escola, foi organizado o projeto
de pesquisa Conselho Tutelar e gestão escolar de famílias vulneráveis, que teve como
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laboratório de referência o Conselho Tutelar da Zona Sul (CTZS)1, que na época da pesquisa
tinha como região de competência toda a Zona Sul do Rio de Janeiro – incluindo a Gávea e a
Rocinha, onde se situam as escolas contempladas pelo projeto Gestão Escolar e Territórios
Populares.
Já em uma primeira visita ao CTZS verificou-se que para a realização do trabalho seria
necessário desenvolver uma parceria com essa agência no sentido de qualificar a sua gestão
de informações, já que o arquivo com o registro dos dados dos casos em andamento ou
arquivados no CT encontrava-se em uma situação muito precária, sem padronização dos
formulários utilizados, com um sistema de busca basicamente manual e muito dependente da
memória de uma de suas funcionárias mais antigas. De modo que, essa fragilidade
organizacional observada no CT nos interessou pelo fato de essa ser uma instituição que atua
no sentido de validar o direito da criança/adolescente, que assim como a escola opera
praticamente de forma autônoma, pois, além de todos os problemas relacionais, lhes falta o
apoio necessário das esferas públicas.
Pensando o CT como um sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente
que ele é, e que foi criado para ser uma das faces da política setorial do país com a
responsabilidade direcionada a medidas preventivas, no sentido de atuar próximo à população,
aos bairros e escolas visando uma política de atendimento que integre a sociedade civil nas
esferas institucionais, preocupa-nos o fato de que o vazio institucional observado durante a
pesquisa, está referido não só à escola, à família dos alunos e a sua vizinhança, como também
ao CT, que apesar de ser também uma instituição muito fragilizada, faz parte desta relação da
escola com o mundo do aluno.
O fato de o CT ter sido concebido como um modelo descentralizado visando a
participação da sociedade civil, uma instância que foi incorporada pelo ECA e tem como
suporte a Constituinte, permiti-nos incluir essa instituição como parte da trama institucional,
formando dessa maneira, o tripé – escola, família, CT – que permitiria identificar e estudar
com mais precisão o problema do vazio institucional que perpassa estas instituições, afetando
diretamente o modus operandi entre elas e as crianças/adolescentes. Pois, a premissa
metodológica é a de que o CT é um campo privilegiado para a observação dessa complexa
relação, e sendo o CT um canal de comunicação que mobiliza a integração social, propicia à
sociedade civil participação no debate de renovação da democracia.
1 A pesquisa no CTZS deu lugar a uma sessão inteira do livro A escola e o mundo do aluno. Ver BURGOS; 2014,
capítulos 9 e 12. No Rio de Janeiro existem 16 Conselhos Tutelares, com 5 conselheiros em cada unidade, quando na verdade
o previsto seriam 60 Conselhos Tutelares.
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O Conselho Tutelar pode ser entendido como sendo uma instituição que foi pensada
para atuar como agência de proximidade entre o direito e os contextos do “mundo da vida”
cotidiana das famílias de crianças e adolescentes, e a escola estando presente em praticamente
todas as famílias de nossa sociedade, seria junto ao CT uma instituição garantidora
principalmente do direito à educação escolar. No entanto, pelo que tem sido observado por
nossas pesquisas, o CT tem uma capacidade preventiva baixa com relação às demandas
escolares, pois falta para essa instituição estrutura material e apoio para dar conta da extensa
realidade de demandas envolvendo a violação dos direitos da criança/adolescente, em especial
o direito à educação. Além disso, os conselheiros tutelares sofrem com a ausência de
propostas de capacitação para a classe.
A ideia de ter uma instituição que atua à nível local como parte de um sistema de
garantia de direitos como o CT, remete-nos ao conceito de “mundo da vida” utilizado por
Jüngen Habermas. Em conotação sociológica o “mundo da vida pluralizado” é composto por
subsistemas cujos processos comunicativos têm como médium linguístico o direito, que é tido
como uma ferramenta da racionalização que permite a integração entre as instituições e quem
sabe entre os indivíduos. (HABERMAS, 1997).[2] Conforme analisa o autor:
“A universalização de um status de cidadão institucionalizado pública
e juridicamente forma o complemento necessário para a juridificação
potencial de todas as relações sociais. O núcleo dessa cidadania é formado
pelos direitos de participação política, que são defendidos nas novas formas de
intercâmbio da sociedade civil, na rede de associações espontâneas protegidas
por direitos fundamentais”. (Idem, P. 105)
Pensando de modo horizontal, o “mundo da vida” engloba uma gama de instituições e
atividades envolvidas com a reprodução da sociedade, algumas dessas instituições são caras a
nossa pesquisa, como por exemplo, as famílias e as escolas, que estão relacionadas a
atividades como a educação; em apoio às famílias e à escola pode-se pensar o CT como sendo
porta-voz do direito que tem função socialmente integradora da criança/adolescente no Brasil.
Nesse sentido, o CT pode ser analisado na chave proposta por Habermas como uma
instituição mediadora; o CT como uma espécie de médium linguístico, baseado no direito da
criança e do adolescente.
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Em tese, o CT2 deveria ter uma parceria com a escola, de modo a contribuir para o seu
fortalecimento institucional. No entanto, a fragilidade das relações entre as instituições citadas
anteriormente esconde por vezes crianças e adolescentes que estão em situação de
vulnerabilidade. Vista de um ângulo estrutural, essa vulnerabilidade pode se agravar ainda
mais quando se pensa nos territórios urbanos pelos quais essas crianças e adolescentes
transitam, frequentemente marcados por mecanismos de segregação urbana.
Visto por Habermas, o “mundo da vida”3 está centrado nas ações comunicativas do dia
a dia em que o indivíduo constrói sua trajetória, que é resultante do que ele chama de “jogo
entre reprodução cultural, integração social e socialização”, e que precisa do direito como
dimensão fundamental para fomentar o diálogo em busca do entendimento entre as diferentes
formas de mundo da vida, e para a integração entre os subsistemas. (HABERMAS; 1997,
P.111)
Ao constatar que a linguagem das ações comunicativas é insuficiente para possibilitar
a integração social devido à pluralização do mundo da vida, Habermas encontra no direito
uma solução para essa integração, não pelo fato do direito ser impositivo, mas por atribuir
validade às pretensões de verdade advindas da esfera pública, definindo o direito como um
possibilitador da racionalização do mundo da vida e um meio de integração social.
Pensar instituições como a escola, a família e o CT na chave habermasiana, através das
quais crianças/adolescentes podem ter uma formação cidadã dignificada se houver consensos
lógicos acerca da comunicação entre Estado, sistemas educacionais, família e sociedade civil,
remete à questão de como é regida a conduta da vida cotidiana dessas crianças e adolescentes.
De modo que, para se chegar a esse entendimento pode ser útil recuperar o método da análise
fenomenológica de Peter Berger e Thomas Luckmann, que explicita o fato de a realidade
social da vida cotidiana depender das interações sociais. (BERGER; LUCKMANN, 2003)[3]
A análise fenomenológica serve como método fundamentalmente empírico de estudo
da subjetividade da vida cotidiana, possibilitando a compreensão da forma como as
perspectivas pessoais acerca da realidade divergem de uma consciência individual para outra,
2 O Conselho Tutelar é composto por cinco membros, eleitos pela comunidade para acompanharem as crianças e
adolescentes e decidirem em conjunto sobre qual medida de proteção para cada caso. Devido ao seu trabalho de
fiscalização de todos os entes de proteção (Estado, comunidade e família), o Conselho goza de autonomia funcional, não tendo nenhuma relação de subordinação com qualquer órgão do Estado.
3 Foi o filósofo Edmund Husserl que introduziu o conceito de “mundo da vida” como tema para a filosofia, com o
objetivo de contrapor o mundo da vida ao pensamento científico predominante que se pautava nas ciências da natureza
como forma de conhecimento única. Para a formulação da teoria do agir comunicativo Habermas recupera o conceito de
mundo da vida, mas estabelece críticas à teoria huserliana. (informação retirada da web
http://www.eumed.net/rev/cccss/20/bls.html)
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formando assim uma rotina da vida cotidiana; rotina essa que quando interrompida acaba
iluminando um setor problemático da realidade como ocorre no caso de trajetórias escolares
vulneráveis. Nesse sentido, os autores pontuam que a sociologia do conhecimento deve
contemplar o entendimento sobre o “conhecimento” do senso comum, pois é este o
conhecimento que explica o real sentido das relações sociais.
Berger e Luckmann (2003) apontam a sociologia do conhecimento como forma de
entendimento desse saber comum que estrutura a vida cotidiana e procuram explicitar como
são utilizados dentro dela determinados conceitos. Pois, a partir da perspectiva do “eu”
existem tipificações abstratas que resultam numa estrutura social que vai sendo construída de
acordo com as relações que se estabelecem ao longo do percurso de formação de cada
indivíduo. Estas tipificações abstratas advêm do anonimato presente nestas relações;
abstrações que podem ser exteriorizadas a partir de atitudes subjetivas de uma consciência,
que tem como forma objetivar a subjetivação humana.
A fenomenologia busca, portanto, dissociar o “mundo da vida” das explicações com
significados meramente científicos, a partir dos quais foi introjetada nos indivíduos a
concepção de que toda explicação deve ser científica, ao passo que, como vimos
anteriormente, as explicações acerca do “mundo da vida” podem ser diversas, já que ele é
composto por uma multiplicidade de realidades em que se encontram os indivíduos.
A respeito disso, explica-se a linguagem como sendo parte de um sistema que tipifica
comportamentos e experiências que permitem aos indivíduos um compartilhamento do
mesmo tipo de conhecimento, que por sua vez serve de orientação para o indivíduo seja no dia
a dia ou na multiplicidade de realidades nas quais estão imersos. Nesse sentido Berger e
Luckmann (2003) afirmam que a linguagem é a maneira pela qual o mundo externo se
interioriza nos indivíduos, de modo a fazer com que as ações da vida cotidiana tornem-se
hábitos que acabam por se institucionalizar; esta institucionalização é tida como uma
necessidade humana de se obter hábitos compartilhados.
Pensaando na perspectiva da criança e do adolescente como atores sociais que
precisam ser integrados à sociedade em que vivem e que para isso necessitam de um sistema
que os integre, podemos articular a ideia de direito como médium linguístico, e o Conselho
Tutelar como mediador e garantidor do direito da criança/adolescente.
A evidência empírica encontrada por meio dos dados dos alunos de nossa pesquisa
denota um problema de gestão escolar, o qual envolve a forma como a escola administra a
situação de infrequentes/abandonantes e como lida com a família destes alunos. Além disso, é
preciso que se leve em conta os problemas relacionados à educabilidade que, possivelmente,
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os alunos têm fora da escola. De modo que tanto infrequência/abandono como gestão escolar
e família, são dimensões que dizem respeito à sociologia da educação, pois o alto índice de
infrequência/abandono encontrado traz à tona o tema da invisibilidade dos alunos perante os
gestores de uma escola, como também perante as famílias dos alunos em questão. A respeito
disso, parto do pressuposto de que os efeitos da infrequência\abandono podem estar
relacionados ao que temos chamado de vazio institucional.
Em linhas mais gerais, este trabalho tem por objetivo apresentar o estudo realizado em
torno dos mecanismos e dinâmicas de instituições como a escola, a família e o Conselho
Tutelar que são, por excelência, garantidores do direito à aprendizagem de crianças e
adolescentes, explorando de que modo estas esferas de sociabilidade, fragilizadas pelo vazio
institucional que as perpassa, podem potencializar a invisibilidade de alunos, afetando
diretamente suas trajetórias escolares.
Objetivos
Motivados pela relevância do fenômeno da infrequência e abandono dos estudos, nossa
pesquisa levantou dados sobre as trajetórias escolares de alunos com problemas de
assiduidade, que muitas vezes caracteriza uma situação de exclusão duradoura (mas não
necessariamente definitiva da escola), que leva à exclusão do direito à aprendizagem escolar.
Por isso, os objetivos mais gerais deste projeto foram o de compreender de que forma
trajetórias escolares mais vulneráveis estão relacionadas com uma trama social que pode ser
entendida a partir de um tripé institucional composto pela escola, família e conselho tutelar.
Foi a partir da incursão empírica no estudo desse tripé que chegamos à noção de vazio
institucional. Ou seja, nossa principal hipótese é a de que as trajetórias escolares vulneráveis
são em grande medida determinadas por esse vazio.
Desse modo, o estudo sobre os alunos infrequentes/abandonantes servirá como uma
forma de iluminar aspectos importantes da gestão escolar, na medida em que levanta questões
acerca de um problema que, até onde já pudemos identificar, parece invisível aos olhos dos
gestores, possibilitando assim que sejam pensadas ações preventivas para tal problema, muito
especialmente aquelas que dizem respeito à relação do Conselho Tutelar com as escolas.
A hipótese inicial da pesquisa sobre alunos infrequentes/abandonantes tem como
ponto de partida normativo a questão que envolve o direito constitucional da
criança/adolescente. Portanto, importa estudar os fatores perversos que privam estas
crianças/adolescentes de seu direito à educação.
Os dados sobre infrequência/abandono apontam, sem dúvida alguma, para a
necessidade de se fortalecer as instituições que atuam junto à escola, no sentido de assegurar a
plena cobertura do direito de toda criança/adolescente à aprendizagem escolar e, entre elas,
muito especialmente o Conselho Tutelar, guardião por excelência desse direito. Até porque, o
conjunto de hipóteses com que temos trabalhado, inclui a ideia de que em boa parte dos casos,
tanto o abandono como a infrequência são apenas a ponta do iceberg de configurações
familiares nas quais as crianças e adolescentes são privadas de outros direitos ainda mais
fundamentais.
Metodologia
A realização dessa pesquisa resulta de um acúmulo de diferentes abordagens empíricas
que tiveram como locus privilegiado de realização o Conselho Tutelar da Rocinha e escolas
públicas localizadas no entorno da PUC-Rio. No CT/Rocinha levantamos dados sobre casos
encaminhados pelas escolas sobre infrequência e evasão, e de como essas situações
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frequentemente escondem problemas sociais mais graves; já a pesquisa nas escolas partiu de
um levantamento quantitativo realizado em uma escola que atende basicamente adolescentes
moradores da Rocinha. Com base nesse levantamento, foram identificadas situações típicas
que permitiram a delimitação de um universo de estudantes a serem entrevistados juntamente
com suas famílias e professores.
Para melhor situar de qual realidade estamos falando, as escolas contempladas pelo
projeto atendem basicamente moradores da favela da Rocinha (local de moradia de 85% a
95% de seus alunos), pode-se falar de cerca de 5.000 crianças e adolescentes matriculados nas
nove escolas estudadas. E olhando para o contexto da Rocinha, lá vivem em torno de 30.000
crianças/adolescentes (entre 0 e 18 anos). Segundo dados produzidos pelo censo realizado
pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (2008), na Rocinha 18% das crianças e
adolescentes entre 7 e 14 anos não estão na escola; já no segmento de 15 a 17 anos, que
deveria estar cursando o ensino médio, a situação se mostra mais grave: 79% frequentam a
escola, mas apenas 39% no ano escolar compatível, indicando que além de problemas de
acesso, que afetam parcela significativa das crianças e adolescentes moradores da Rocinha, a
grande maioria – mais de 60% – chega à faixa etária dos 15 aos 17 anos fora do ano escolar
compatível com sua idade ou mesmo fora da escola, caracterizando a distorção idade-série.
Consideramos que estes dados apontam para a existência de um fenômeno
extremamente grave e que não pode ser reduzido único e exclusivamente a um problema
escolar, pois ele é também de cunho sociológico. E possível sustentar que o problema da
infrequência e do abandono no ensino fundamental é muito mais preocupante do que se
costuma reconhecer, e que isso possivelmente guarde relação com sua baixa visibilidade para
a própria gestão escolar.
De modo que, o problema pode se agravar ainda mais quando se leva em conta os
dados já compulsados por nossa pesquisa. Esses alunos, na falta de intervenção das agências
responsáveis pela garantia do direito à educação escolar, certamente são candidatos a
engrossarem a estatística dos que já estão fora da escola.
Motivados pela relevância do fenômeno da infrequência e abandono dos estudos,
nossa pesquisa levantou dados sobre as trajetórias escolares de alunos com problemas de
assiduidade, que muitas vezes caracteriza uma situação de exclusão duradoura (mas não
necessariamente definitiva da escola), que leva à exclusão do direito à aprendizagem escolar.
Para fins estatísticos dessa vertente da pesquisa, classificamos como infrequentes alunos com
mais de 25% de faltas em, pelo menos duas, disciplinas, (cálculo estipulado por nós para
analisar os dados), e “abandonantes” aqueles que por necessidade de trabalhar e/ou doença ou
anomalia grave deixaram de frequentar a escola permanentemente.
Nesse sentido, buscamos compreender de que forma trajetórias escolares vulneráveis
estão relacionadas com uma trama social que pode ser entendida a partir do tripé institucional
composto pela escola, família e Conselho Tutelar, e como a falta de regulação dessas
instituições pode levar a uma enorme invisibilidade do aluno que se encontra em situação
vulnerável.
O estudo sobre os alunos infrequentes/abandonantes serviu como uma forma de
iluminar aspectos importantes da gestão escolar, na medida em que levanta questões acerca de
um problema que, até onde já pudemos identificar, parece invisível aos olhos dos gestores,
possibilitando assim que sejam pensadas ações preventivas para tal problema, muito
especialmente aquelas que dizem respeito à relação do Conselho Tutelar (CT) com as escolas.
Para que se torne um pouco mais clara a forma como o aluno e sua família lidam com
essa problemática, será apresentada a entrevista com uma das alunas que se encaixa na
categoria de infrequente de nossa pesquisa, junto a sua família, e para contrapor, será
explicitada a opinião de professores da escola dessa mesma aluna acerca de problemas como
atrasos constantes, infrequência, distorção idade-série, reprovação e evasão.
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A evidência empírica encontrada por meio de pesquisa realizada em uma das escolas
contempladas pelo projeto, envolvendo o tema da infrequência e do abandono dos estudos
denota diversos problemas. Um desses problemas é de gestão escolar, o qual envolve a forma
como a escola administra a situação de infrequentes/abandonantes e como lida com a família
destes alunos, estando quase sempre presos a um discurso do senso comum; o outro diz
respeito às configurações familiares dos mesmos e a quase inexistente relação entre escola,
família e Conselho Tutelar fortalecendo, dessa maneira, a invisibilidade dos alunos com
trajetórias vulneráveis.
Para que se tenha um melhor entendimento de como foram separadas e analisadas as
duas categorias de nossa pesquisa, infrequentes e abandonantes, vou apresentar as tipificações
de ambas. Para o primeiro público, antes de mais nada, definimos o que consideraríamos
como infrequência: infrequentes, para efeitos de nossa pesquisa, são os alunos com mais de
25% de faltas em, pelo menos, duas disciplinas.
No ano de 2013, 47 alunos, 10,9% do total da escola eram infrequentes. Dividimos
este grupo entre os que tinham uma infrequência baixa, com 25% ou mais em 2 ou 3
disciplinas, e os que tinham uma infrequência alta, com mais de 25% ou mais em 4 disciplinas
ou acima disso. Uma parcela dos alunos que tinham uma infrequência baixa são, na verdade,
alunos que chegam atrasados quase que diariamente, sempre no segundo tempo de aula.
Entende-se que, ao perder um tempo de aula a cada dia aluno perde cinco tempos de aula por
semana, o que ao fim do mês soma quatro dias de falta.
Chegamos aos alunos infrequentes de 2013 a partir da consulta das pautas dos
professores na escola. Consultamos as pautas de 4 a 7 disciplinas do total de 10 turmas (6° ao
9° ano, além das turmas de Acelera 1, 2 e 3). Desconsideramos, porém, o período de greve na
rede Municipal do Rio de Janeiro, que ocorreu entre agosto e outubro.
Elaboramos então uma planilha em Excel onde foram listadas todas as turmas com o
total de aulas e faltas por disciplina. Para isso, somamos as diversas faltas das folhas dos
respectivos diários de cada disciplina, depois somamos as informações dessas folhas e
calculamos a razão entre as faltas e o quantitativo de aulas dadas, obtendo assim o resultado
final do percentual de faltas dos alunos em cada disciplina. Consideramos apenas aqueles que
tivessem 25% ou mais de faltas em duas disciplinas ou mais, como explicitado anteriormente.
Para realizar possíveis cruzamentos de dados foi preciso construir um perfil básico de
cada aluno, que engloba informações tais como bairro de moradia, com quem o aluno mora,
se recebe programas sociais, entre outros.
Para a categoria dos que abandonaram a escola, consideramos o período de 2009 até
2013, aqueles que deixaram de frequentar a escola. As opções de motivos para o abandono
consistentes do SGA (Sistema de Gestão Acadêmica) eram as seguintes: necessidade de
trabalhar, doença ou anomalia grave ou então abandono simplesmente, sem justificativa. Pelo
fato de contarmos com a participação de dois professores da escola pesquisada, obtivemos a
informação de que, quando o abandono ocorre por causa de gravidez, a opção escolhida
geralmente é a de doença ou anomalia grave, já que no SGA não existe essa opção. A partir
daí, a exemplo do método utilizado para os infrequentes, buscou-se no SGA informações que
permitissem elaborar o perfil desses alunos.
Para a construção da base de dados fizemos um recorte somente para o ano de 2013,
elencando dois tipos de situação: alunos que abandonaram sem deixar registro de que estavam
indo para outra escola; e alunos infrequentes. Dessa maneira a base de dados foi consolidada
com o total de 60 alunos, sendo que destes, 47 alunos eram infrequentes, correspondendo a
10,9% e 13 alunos haviam abandonado a escola, 3% do total. Ou seja, no ano de 2013, 13,9%
dos alunos da escola pesquisada eram infrequentes ou “abandonantes”.
Considerando que a escola pesquisada se trata de uma instituição de porte médio, com
o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de 5,1, enquanto sua meta é de 5,2,
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e que apresenta boa reputação entre as demais escolas da região, os dados encontrados não
deixa de nos surpreender.
Nas tabelas a seguir ficará melhor explicitado o universo referente às categorias de
alunos infrequentes e “abandonantes” com o qual estamos lidando:
Tabela 1 – Situação de vulnerabilidade e Sexo do aluno
Sexo do aluno
Total Feminino Masculino
Situação de
vulnerabilidade
Abandono 9 4 13
69,2% 30,8% 100,0%
Infrequência 27 20 47
57,4% 42,6% 100,0%
Total 36 24 60
60,0% 40,0% 100,0%
Em primeiro lugar, notamos que, na tabela 1, tanto o abandono como a infrequência
são majoritariamente femininas. Tendo 69,2% de abandono e 57,4% de infrequência.
Tabela 2 – Ano-série do aluno * Situação de vulnerabilidade
Situação de vulnerabilidade
Total Abandono Infrequência
Ano-série do
aluno
6º ano 4 23 27
30,8% 48,9% 45,0%
7º ano 0 5 5
,0% 10,6% 8,3%
8º ano 2 12 14
15,4% 25,5% 23,3%
9º ano 4 7 11
30,8% 14,9% 18,3%
Acelera 3 0 3
23,1% ,0% 5,0%
Total 13 47 60
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Tabela 2 – Ano-série do aluno * Situação de vulnerabilidade
Situação de vulnerabilidade
Total Abandono Infrequência
Ano-série do
aluno
6º ano 4 23 27
30,8% 48,9% 45,0%
7º ano 0 5 5
,0% 10,6% 8,3%
8º ano 2 12 14
15,4% 25,5% 23,3%
9º ano 4 7 11
30,8% 14,9% 18,3%
Acelera 3 0 3
23,1% ,0% 5,0%
Total 13 47 60
100,0% 100,0% 100,0%
Em segundo lugar, ressalta-se na tabela 2, o fato de a infrequência ser mais alta no 6º
ano do que no 9º ano, e do abandono ser tão alto no 6º quanto no 9º ano. Dos alunos que
abandonaram a escola 30,8% estava cursando o 6º ano, o mesmo ano em que 48,9% dos
alunos era infrequente.
Tabela 3 – Idade do aluno * Situação de vulnerabilidade
Situação de vulnerabilidade
Total Abandono Infrequência
Idade do aluno 12 1 12 13
7,7% 25,5% 21,7%
13 1 8 9
7,7% 17,0% 15,0%
14 2 11 13
15,4% 23,4% 21,7%
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15 2 6 8
15,4% 12,8% 13,3%
16 5 7 12
38,5% 14,9% 20,0%
17 1 3 4
7,7% 6,4% 6,7%
18 1 0 1
7,7% ,0% 1,7%
Total 13 47 60
100,0% 100,0% 100,0%
Importa notar na tabela 3 que estamos falando de adolescentes com idade entre 12 e 18
anos e o percentual mais alto, tanto de abandono quanto de infrequência, foi encontrado entre
alunos com idade de 14 a 16 anos, portanto menos expostos à lógica do ingresso precoce no
mercado de trabalho informal.
Tabela 4 – Turno * Situação de vulnerabilidade
Situação de vulnerabilidade
Total Abandono Infrequência
Turno Manhã 5 15 20
38,5% 31,9% 33,3%
Tarde 8 32 40
61,5% 68,1% 66,7%
Total 13 47 60
100,0% 100,0% 100,0%
Outro dado que chama a atenção é que, na tabela 4 a maioria dos alunos
“abandonantes” e infrequentes, estuda no turno da tarde. Sendo 61,5% dos que abandonaram
e 68,1% dos infrequentes.
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Tabela 5 – Programas institucionais: Bolsa Família e/ou Cartão Família
Carioca
Infrequentes % Total
Bolsa Família
9 19,1 19,1
Bolsa Família e Cartão Família
Carioca
2 4,3 23,4
Não recebe
36 76,6 100,0
Total
47 100,0
A tabela 5 contém somente os alunos infrequentes. Nela são apresentados dados de
programas sociais que beneficiam 23,4% destes alunos. Enquanto a grande maioria, 76,6%
dos infrequentes, não recebe nenhum tipo de benefício. Importa lembrar que os benefícios
como o Bolsa Família e Cartão Família Carioca têm relação com a política de diminuição da
infrequência escolar.
Ainda que sejam dados preliminares, pois a pesquisa sobre infrequência e abandono
dos estudos foi realizada em apenas uma escola, consideramos que eles apontam para a
existência de um fenômeno de grande relevância para o universo escolar, já que indica uma
parcela considerável de alunos matriculados, mas que não tem sequer conseguido ser exposta
ao trabalho escolar, o que significa que para eles sequer se aplica todo o esforço voltado para
a melhoria do desempenho escolar; uma melhoria que para obter sucesso deve olhar com mais
cuidado para o problema que envolve infrequência e abandono de estudos.
No caso da Rocinha, campo privilegiado de nossa pesquisa, os dados coletados em
uma das escolas contempladas pelo projeto, deve ser agregado ao enorme contingente de
crianças e adolescentes em idade escolar (entre 7 e 14 anos) que, segundo o censo realizado
pelo PAC, está fora da escola (18%). Caso o padrão de abandono e infrequência encontrado
por meio de nossa pesquisa se repita nas demais escolas que atendem à Rocinha, teríamos um
quadro no qual cerca de 32% das crianças e adolescentes em idade escolar moradora daquela
favela estaria ou fora da escola, ou saindo dela, ou simplesmente não a frequentando.
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Esses dados apontam, sem dúvida alguma, para a necessidade de fortalecer as
instituições que atuam junto a escola, no sentido de assegurar a plena cobertura do direito de
toda criança/adolescente à aprendizagem escolar, e entre elas, muito especialmente o
Conselho Tutelar, guardião por excelência desse direito.
Conclusões
Depreende-se a partir da pesquisa sobre infrequência e abandono que estas são
categorias que nos permitem adentrar em outras esferas encobertas por questões que
inicialmente se traduzem apenas como escolares, mas que na verdade estão referidas a
diversas configurações, incluindo as familiares, como veremos adiante.
Até agora estávamos exemplificando consequências do que temos chamado de vazio
institucional, que por sua vez pode potencializar a invisibilidade dos alunos dentro e fora da
escola. Além disso, apresentamos o fato de haver dentro de uma escola um alto nível de
infrequência e abandono dos estudos, caracterizando um fenômeno que não deve ser
entendido apenas como escolar, mas também como um fenômeno social.
Pensando a distância entre as instituições que cercam crianças e adolescentes; uma
distância que nos propiciou o estudo de nuances encobertas pelo vazio que permeia o tripé
institucional, podemos abrir um espaço para pensar a distância existente entre os fatos e o
significado dos fatos. Para tanto, pode ser útil que o campo da discussão social seja acessado
em interlocução com o campo factual. Pois, como bem explica John Dewey:
“ (...) muitas pessoas parecem supor que os fatos carregam em si o seu
significado, mas o poder dos fatos físicos de coagir a crença não reside nos
simples fenômenos. Ele provém do método, da técnica de pesquisa e cálculo.
Os fatos são simples e familiares. E somente quando se permite livre curso aos
fatos para a sugestão de novos pontos de vista é que alguma conversão
significativa da convicção quanto ao significado é possível”. (DEWEY; P. 23,
1927)[4]
Reverberando o pensamento de Dewey (1927), para que o sentido que está por trás da
infrequência seja compreendido, é preciso nos debruçarmos sobre o método de pesquisa
qualitativa aplicado a uma das alunas infrequentes e sua família e criar uma interface a partir
do fenômeno da infrequência/abandono e as informações colhidas durante as entrevistas. E,
com base nos dados que se referem a este fenômeno, será apresentada uma síntese dos
resultados que podem elucidar um outro ponto de vista de tais problemas, o ponto de vista das
configurações familiares.
Para tanto, partimos do pressuposto de que o desempenho de crianças e adolescentes
podem sofrer influências não só da escola, como da família e do seu local de moradia. Nesse
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sentido, podemos fazer remissão ao argumento de Bernard Lahire, que pontua uma
problemática que envolve a relação entre escola e família no processo de escolarização,
trazendo para o debate a questão do bairro de moradia como forte influência neste processo.
Os três aspectos analisados por Lahire como, escola, família e vizinhança, serão elucidados
por meio de nossa pesquisa qualitativa. (LAHIRE; 1997)[5]
As entrevistas qualitativas que serão articuladas durante este tópico, além de trazer o
problema da infrequência, engloba questões como atrasos constantes, reprovação, distorção
idade-série e dificuldade de ensino-aprendizagem. Para apresentar de uma perspectiva
sociológica o ângulo dos alunos infrequentes e suas famílias, selecionamos a entrevista de
uma aluna que sofre com os problemas possivelmente gerados pelo vazio institucional que
permeia as instituições que a cercam.
A entrevista qualitativa foi realizada na casa da aluna Júlia (nome fictício) e de sua
família, situada na favela da Rocinha, em um local de difícil acesso como tantos outros nessa
região; em um beco sem feixes de luz e úmido estava situada a casa de quatro cômodos, onde
moram oito pessoas. Além de Júlia, residem em sua casa seus pais, seu irmão de 19 anos e sua
irmã mais velha de 27 anos com seus três filhos de 3, 7 e 8 anos.
A recepção para nossa entrevista foi tímida e agradável, apesar do pouco espaço
ficamos bem acomodadas na sala, que era o primeiro cômodo da casa. Optamos por
entrevistar a Júlia antes de seus pais, que concordaram com a ideia, mas pela timidez da
menina de 13 anos, foi preciso que os pais ajudassem em algumas respostas.
Durante a entrevista foram abordados pontos como rotina e lazer da aluna e da família,
atividades que Júlia realizasse fora do horário escolar, como ela e os pais lidam com o fato de
Júlia andar sozinha, com quem anda, quais são os grupos de referência, como a aluna se
relacionava com a escola anterior e como pontua as diferenças entre as duas escolas, como
percebe o nível de avaliação da atual escola, além de questões sobre infrequência e
reprovação.
Com relação à rotina de Júlia e seu lazer, próximo e distante da família, os pais da
menina dizem não permitir que ela saia com as amigas, pois não confiam muito nas
companhias. E para reforçar afirmam: “quando chega da escola almoça, cuida da casa, lava
louça, varre e ajuda a cuidar dos sobrinhos pequenos, dá banho neles. Nos fins de semana o
lazer é mesmo dentro de casa, ouvindo música, assistindo TV, mexendo no computador”.
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Além disso, atualmente Júlia não faz nenhuma atividade fora da escola. Chegou a fazer
“lambaeróbica”4 anos anteriores, mas perdeu o interesse rapidamente.
Quando indagamos sobre o fato de Júlia andar sozinha, os pais afirmaram que não
deixam, exceto para ir à escola. Júlia diz que quando deixou de ir para a escola de ônibus
escolar e passou ir sozinha (com 12 anos), sentiu um pouco de medo, por estar no ônibus
sozinha e descer no ponto errado. O motivo por não permitirem que Júlia ande sozinha está
referido à violência, que segundo o pai não é exclusiva do Rio de Janeiro, mas também é um
problema grave no Ceará, sua terra natal. Ele diz: “inclusive no Nordeste a violência tá pior
que aqui”. A família de Júlia migrou do Ceará para o Rio de Janeiro há 17 anos e desde então
reside na favela da Rocinha.
Ao perguntarmos sobre as amizades de Júlia, a menina responde que só tem amigos na
escola e que não os encontra fora do ambiente escolar, pois a mãe não permite o encontro por
não conhecê-los. Júlia diz que as amigas a convidam para festas, mas ela não tem permissão
dos pais. A mãe confirma e diz: “tem uma amiga que às vezes vem visitá-la e eu não vejo
problema, mas me preocupo em controlar, porque tem umas meninas da mesma idade que
são muito“atiradas”, e também tem o irmão dela que me ajuda a controlar”.
Com relação aos grupos de referência de Júlia e de sua família, o pai diz que
dificilmente eles vão à igreja, e se define como católico não praticante. A mãe diz que Júlia
frequentou durante 3 anos o NOAP-PUC5, e que isso ajudou muito no desenvolvimento
escolar da menina, pois até os 8 anos não sabia ler, nem escrever. A mãe diz: “ajudou também
nessa timidez dela, porque lá tinham vários grupos de conversa que até eu participava
algumas vezes”. O pai lamenta o fato de que Júlia não pôde mais participar do programa por
não ter mais crianças o suficiente para formar uma turma, pois o horário de Júlia passou a não
bater com os horários do NOAP.
Júlia foi indagada sobre a sua relação com a escola anterior a essa na qual realizamos a
pesquisa sobre infrequência e abandono, escola pública também situada no bairro da Gávea,
mas quem responde é a mãe: “lá ela pegou uma professora muito ruim, que gritava muito e
4 Lambaeróbica é uma dança que trabalha e tonifica os músculos do corpo, a qual, geralmente, é animada pelo ritmo de
música baiana.
5 NOAP - Núcleo de Orientação e Atendimento Psicopedagógico é um serviço vinculado ao Departamento de Educação,
foi fundado em 1982 e vem desde então buscando viabilizar a ligação universidade - escola Básica, para a compreensão,
redefinição e superação do fracasso escolar. O NOAP conta com uma equipe de 25 ex-alunos PUC-Rio todos
especialistas na área de aprendizagem que atendem voluntariamente, em grupos, os alunos encaminhados pelas
diferentes escolas do município. Nos últimos cinco anos o NOAP vem dar assistência aos universitários da PUC-Rio que
apresentam dificuldades acadêmicas, poucos recursos em metodologias de estudo e/ou déficits pedagógicos. O NOAP
atende uma media de 200 crianças por mês. O NOAP paralelamente dá suporte às famílias e à escola das crianças e adolescentes atendidos
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destratava os alunos, um dia até chamou a Júlia de macaca, não foi filha?” Júlia confirma,
mas diz que só contou o episódio para os pais depois que mudou de escola, e quando
perguntamos o motivo, ela disse que não contou antes porque tinha apenas 6 anos e não
entendia muito bem a seriedade da situação.
Em uma das poucas vezes em que Júlia se colocou sem o “empurrão” dos pais, foi
quando perguntamos sobre a diferença entre as duas escolas, uma de 1º segmento e a outra de
2º. A menina disse preferir a escola anterior, pelo fato de ter menos matérias e apenas um
professor. “Agora com tantas matérias e professores sinto mais dificuldade, mas essa escola
é legal, os professores também”. No entanto, a mãe relata que no início a filha não gostava
tanto da atual escola, pois sentia medo de meninas que implicava com ela por sua timidez. E
Júlia diz que gosta muito do coordenador de sua atual escola por ele ter a ajudado nessa
situação.
Apesar de gostar da escola Júlia reitera o que foi dito anteriormente e diz que sente
muita dificuldade pela variedade de matérias e que não gosta de nenhuma em especial, mas
que se considera com pior rendimento em Ciências e Matemática, a única que sente menos
dificuldade é Português. Além disso, Júlia não tem preferência por nenhum professor e diz: “é
muito difícil, mas às vezes eu vou até os professores para tirar dúvidas”.
Quando lhe foi perguntado, Júlia disse ter sido reprovada no 6 º ano, que estava
cursando novamente ao realizarmos a entrevista, e lamenta: “eu reprovei porque não sabia
nada das matérias, eu fazia as provas mas era tudo muito difícil e também tinha muito dever
de casa, eu não tava dando conta”. No entanto, o pai de Júlia diz que ela não desanimou com
a reprovação, e a menina diz que a reprovação não lhe causou estranhamento algum, na
verdade afirma sentir agora, mais facilidade para realizar os deveres de casa.
O assunto sobre infrequência surgiu sem que precisássemos incluir Júlia de forma
acusatória nesta categoria. Os pais afirmam que não deixam a menina faltar, exceto em caso
de tiroteio na favela, e quando o tiroteio ocorre à noite eles esperam um pouco mais para levá-
la no ponto de ônibus, o que muitas vezes, faz com que Júlia chegue atrasada na aula. O pai
não permite que ela vá para a aula em situações de muito tiroteio porque diz que com UPP6 e
bandidos juntos dentro da favela é mais perigoso que antes: “quando começa o tiroteio entre
eles não importa quem tá na frente”.
A partir dessa informação procuramos saber um pouco mais sobre os atrasos, pois
tivemos a confirmação de que Júlia se enquadrava na categoria de infrequência baixa, que é
6 Unidade de Polícia Pacificadora – implantada em algumas favelas do Rio de Janeiro com o intuito de pacificar o tráfico
de drogas e a violência.
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referente àqueles alunos que chegam atrasados frequentemente. Júlia diz não se atrasar tanto,
mas o pai a contradiz: “aaah ela se atrasa bastante sim, fica aí penteando o cabelo, passando
creme, ainda vai almoçar e às vezes sai na hora que tem que entrar na aula, e ainda pega o
trânsito aqui de dentro que é uma beleza”. Com relação à cobrança por parte da escola sobre
constantes atrasos, Júlia diz não haver nenhum tipo cobrança ou punição para quem chega no
2º tempo de aula, mesmo que isso ocorra diariamente.
Indo contra o discurso proferido pelo senso comum escolar, apesar de Júlia ser uma
aluna com muitas dificuldades de aprendizagem, durante a entrevista com seus pais
constatamos que ela está inserida em uma família estruturada e que se preocupa com a sua
escolarização. São pais presentes o tempo todo na vida de Júlia e ficou claro o bom
relacionamento entre eles e a filha durante o tempo em que estivemos presente em sua casa.
O pai de Júlia trabalha sai para trabalhar por volta das 16hs e retorna antes de 1h hora
da manhã. Ele trabalha como cozinheiro em um restaurante na Barra da Tijuca, situada na
Zona Oeste do Rio de Janeiro, tendo livre toda a manhã para ficar com a filha e diz que
aproveita algumas vezes para “passar a lição” com ela, ou pede para o filho de 19 anos fazer
isso pelo fato de entender mais as dificuldades da irmã. Júlia diz gostar da profissão do pai e
que às vezes é ele quem assume a cozinha de casa: “tem hora que o pai fala, hoje a cozinha é
minha”, e ela gosta. A mãe não trabalha fora, e diz que se dedica a cuidar dos afazeres do lar
e de Júlia, que é sua caçula.
Tanto a mãe quanto o pai não avançaram muito nos estudos, o pai estudou até a 4ª
série e a mãe até a 2ª Série, ambos no Ceará. O pai diz que não estudava porque não queria,
pois chegava apanhar para ir à escola e não ia, e a mãe diz que não participa tanto dos
assuntos escolares por não saber “assinar as coisas”, por isso agradecem a ajuda do irmão
mais velho de Júlia. A mãe diz: “Paulo é um menino muito bom, está no 9º ano, mas já quer
parar para trabalhar, tem que estudar e fazer faculdade.” O pai diz: “tem que, pelo menos,
terminar o ensino médio para depois trabalhar, mas ele quer logo trabalhar”.
Quanto ao acompanhamento da rotina escolar de Júlia, os pais dizem que todos da
família participam e que às vezes eles vão às reuniões de pais, mas outras vezes quem vai é a
irmã mais velha. O pai diz que se preocupa muito com a escolarização da filha e que a
incentiva a estudar, pelo menos, 20 minutos por dia, mas ultimamente ela tem tomado a
iniciativa sozinha
Pelo que pudemos captar, apesar de ninguém da família ter completado os estudos e
Júlia e seu irmão ainda estarem estudando, são todos bastante comprometidos com a
escolarização de Júlia, e pelo tempo que permanecemos em sua casa percebemos que há
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grande afinidade entre os pais e Júlia, eles demonstraram naturalmente ser uma família muito
unida e reservada, que tem pouco contato com os vizinhos, tem alguns mais próximos, porém,
não fazem nenhuma programação juntos.
A reflexão acerca tanto do material qualitativo aqui exposto, como do quantitativo
apresentado anteriormente, remete ao estudo realizado por Bernard Lahire, quando o autor
sustenta a argumentação com relação ao “fracasso” e “sucesso” escolar nos meios populares,
acreditando que a forma escolar define o padrão de relação que os alunos estabelecem com a
própria escola. (LAHIRE, 1997)
Lahire traça alguns perfis familiares a partir de 26 entrevistas realizadas com alunos e
suas famílias, além das notas etnográficas de tais entrevistas, assim como materiais recolhidos
no meio escolar: fichas de matrícula dos alunos, cadernos de avaliação, entrevistas com
alunos, professores e diretores. A respeito disso o autor trabalha com a ideia de configurações
familiares, buscando entender as diferenças entre os iguais, articulando as singularidades dos
alunos e o contexto no qual estão inseridos.
Além disso, o autor pontua que para obter uma melhor compreensão do comportamento
e do resultado escolar dos alunos é essencial que se reconstrua uma rede de relações
familiares com a escola, e ressalta como sendo uma das maiores causas do fracasso escolar a
falta de estímulos familiares com relação ao universo escolar, associando o fracasso escolar à
dissonância entre a as configurações familiares e a escola, culminando no fato de que os
alunos não podem compartilhar em casa os problemas que enfrentam na escola, que por sua
vez também é distante do universo do aluno que ocupa um lugar solitário, interiorizando por
meio dessa estrutura familiar e escolar que não estão atentos a determinados problemas, um
comportamento por vezes incompreensível.
Ao passo que o sucesso escolar é explicado por uma combinação de diversos fatores,
como por exemplo, a relevância que se dá à transmissão do capital cultural familiar, bem
como a disponibilidade da família em interagir com as crianças e se interessar por atividades
escolares, valorizando o conhecimento adquirido por seus filhos.
Podemos a partir das informações colhidas no campo supor que, pelo fato de Júlia ser
uma criança sem fortes vínculos de amizade, a não ser na escola e junto da família, que não
tem permissão para sair sozinha nem nos arredores de sua casa com as amigas da escola e está
sempre respondendo à cobrança dos estudos, seja por parte da escola ou por parte do pai e do
irmão mais velho, podemos refletir sobre o fato de que hábitos familiares fazem parte de
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fenômenos como o da infrequência escolar que, em conjunto aos fatores escolares e ao vazio
institucional, podem potencializar as trajetórias ditas vulneráveis7.
Do ponto de vista qualitativo, a seleção de uma única entrevista sobre a situação de
infrequência não autoriza grandes generalizações, e nem mesmo temos a pretensão de explicar
a realidade geral dos alunos da escola pesquisada por meio desta. No entanto, a trajetória de
Júlia abarca categorias importantes de nossa pesquisa que remetem a clássicos problemas
escolares, quais sejam, atrasos constantes que caracterizam uma infrequência baixa e
reprovação que caracteriza Júlia como sendo uma aluna em situação de atraso escolar.
Para compreender a forma com a qual professores da escola pesquisada lidam com o
problema da infrequência e os demais problemas que por ela são acarretados, pode ser útil
recuperar o estudo realizado por Harold Garfinkel, no qual a atenção está voltada para as
práticas reflexivas, utilizadas para reconhecer ou demonstrar adequação racional para os
resultados de determinadas pesquisas, de modo a usar as respostas como forma de
contraponto a um discurso racional preso ao senso comum, provocando a reflexão em torno
do objeto pesquisado (GARFINKEL; 1996).[6]
Essa seria segundo o autor, uma forma de “abordagem etnometodológica por
considerar que se trata de um caminho que viabiliza descobertas que vão além da concretude
visível e de fácil percepção. Ela possibilita uma compreensão tanto objetiva quanto subjetiva
da ação cotidiana”. (Idem; P. 4)
A esse respeito, procuramos direcionar para o nosso objeto de pesquisa um olhar que
reflete a abordagem etnometodológica, acreditando que por meio de entrevistas realizadas
com professores teríamos um entendimento de um lado objetivo e de outro subjetivo de suas
ações e percepções. O que nos possibilitaria, a partir da reflexividade, compreender o sentido
real de suas falas, muitas vezes encoberto por narrativas presas ao senso comum escolar.
Serão articuladas a partir de agora, entrevistas realizadas no primeiro semestre de
2015, com três professores da escola de Júlia, que ministram as disciplinas de Matemática,
Geografia e História, e que foram entrevistados separadamente. A entrevista foi pensada a
partir de percepções do campo, da realidade dessa aluna e de sua família e de sua relação com
a escola.
De modo a criar uma interlocução entre os fatos observados sobre a realidade de Júlia,
abordamos nas entrevistas com os professores pontos como o nível de contato que eles têm
7 A entrevista com Júlia e sua família foi realizada ao final do ano letivo de 2014, e no início de 2015 recebemos a
informação de que a aluna havia sido reprovada novamente no 6ºano e que seria transferida para outra escola pública da
Gávea, que por seu turno é a escola com o IDEB mais baixo do bairro. Júlia estaria sendo inserida em uma turma de Aceleração.
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com a realidade dos alunos dessa escola, se sabem o local de moradia dos alunos, ou se
tomam conhecimento de alguma atividade que o aluno faz fora da escola, e seus momentos de
lazer. Também foi perguntado se os professores sabem quem são os responsáveis pedagógicos
de seus alunos e qual o nível de participação deles em atividades escolares. Como os três
tinham sido professores da Júlia pedimos que eles falassem um pouco sobre como percebiam
a relação da aluna com os colegas, e com os professores, pontuando sua timidez, introversão e
dificuldade de tirar dúvidas com professores.
Para abordar o fenômeno da infrequência/abandono, indagamos aos professores a
respeito de quais motivos eles acreditam que influenciam um aluno a ser infrequente ou
chegar atrasado constantemente. Nesse momento foi útil a técnica proposta por Garfinkel
(1996), de aplicar a etnometodologia visando a reflexividade das respostas, usando como
contrarresposta as informações colhidas na entrevista com Júlia e sua família. Além disso,
buscamos saber como os professores lidam com alunos que se atrasam constantemente e com
os infrequentes, tanto daqueles que os entrevistados consideram como sendo de família
estruturada, quanto os de família na visão deles, desestruturada.
Como forma de trazer para a conversa outros pontos relevantes que o fenômeno da
infrequência engloba, pontuamos questões sobre a dificuldade dos alunos de uma maneira
geral com relação ao ensino-aprendizagem e à distorção idade-série, questionando se os
professores acreditam que tais fatores implicam em um maior número de faltas, atrasos ou até
mesmo reprovação. Sempre em vias de tentar compreender como os professores lidam com os
tipos de situação pontuados durante a entrevista e se têm alguma forma específica para tratar
determinados problemas, além de indagar qual a visão deles sobre como a escola lida com a
problemática que envolve infrequência, evasão e seus negativos encalços.
De maneira geral, o nível de contato que os professores entrevistados têm com a
realidade de seus alunos é apenas por meio daquilo que lhes é relatado em sala de aula, relatos
sobre a violência existente na Rocinha, reconhecida pelos entrevistados como lugar de
moradia da grande maioria dos alunos. Um dos professores disse que alguns relatos fazem-no
pensar e entender alguns problemas escolares, pois segundo ele, as situações retratadas se
refletem na situação emocional de determinados alunos. Além disso, uma professora pontua o
fato de se chocar com alguns relatos e diz: “para essas crianças faltam recursos e apoio,
estes alunos não têm o que deveriam ter desde pequenos, isso vai desde políticas públicas,
que são praticamente ridículas ou tem um viés eleitoreiro, até a própria sociedade e os pais
que não acreditam na educação”.
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Os três participantes da entrevista afirmaram ter uma boa relação com os responsáveis
pedagógicos de seus alunos, pelo fato de eles serem presentes nas reuniões de pais, mas há um
adendo sobre o fato de que os pais que, normalmente, vão às reuniões, são de alunos com bom
rendimento, pois, segundo eles, os pais de alunos que têm baixo rendimento os pais pouco
aparecem na escola. Uma das professoras chegou a afirmar que, “são poucos os pais que
sabem do que acontece na vida do aluno, chegam para a reunião e não sabem nem em que
ano o seu filho está, não estudam com a criança, e nós acabamos sendo mãe, psicóloga,
assistente social, além de professora”.
Nesse momento foi possível usar o exemplo de Júlia, que está inserida em uma família
que pode ser considerada estruturada e preocupada com a sua escolarização, e que mesmo não
sendo uma regra, suscita uma reflexão por parte dos entrevistados.
Como réplica todos os professores disseram não se lembrar dos pais de Júlia, nem de
sua irmã mais velha que, às vezes, participava das reuniões de pais, e que, na verdade, a
maioria dos pais só vai na escola quando é chamado para conversar sobre algum problema,
mesmo aqueles que vistos como sendo de uma família estruturada.
Na visão dos entrevistados a relação de Júlia com os colegas e com os professores da
escola era bastante restrita. Eles lembram da aluna andar somente com uma amiga de turma e
caso essa amiga faltasse ela até chegava a se aproximar de outras duas meninas, mas era
muito reservada e assim era com os professores. Conforme relatou uma professora: “O fato de
ela faltar e se atrasar sempre, acabava dificultando o vínculo com os colegas e professores.
Além disso, ela tinha muitas dificuldades e normalmente quando os alunos têm muita
dificuldade acabam de escondendo”.
Importa ressaltar um ponto sobre a invisibilidade dos alunos que surgiu durante uma
das entrevistas, na qual a professora disse nunca ter ouvido falar nada a respeito de Júlia,
nenhuma reclamação de comportamento, nem mesmo sobre seus atrasos, a única coisa
pontuada era o seu baixo rendimento. De acordo com essa professora:
“ (...) talvez uma menina como ela precisasse de uma atenção especial,
talvez se alguém chegasse e sinalizasse... olha você existe, eu te percebo... que
é a maneira do professor dizer que o aluno tem importância e é isso que fica
no emocional do aluno, talvez ela fosse mais participativa e teria um melhor
rendimento, mas eu não fiz isso e confesso que é difícil ter essa preocupação,
tem alunos que eu só percebo meses depois”.
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Em resposta à questão sobre quais os fatores influenciam os alunos a chegar atrasados
ou faltar aulas constantemente, houve unanimidade. Todos acreditam que os motivos estão
relacionados a problemas familiares, que vão desde conflitos em casa, que geram problemas
emocionais na criança, até pais pouco escolarizados que não se preocupam com a
escolarização do filho. Para tentar fazer com que os professores pensassem em outros fatores
que podem influenciar seus alunos nessa questão, reforçamos a ideia de que a Júlia tem uma
família estruturada, na qual pai, mãe e irmãos são preocupados com a escolarização da aluna,
e mesmo assim ela chegava no 2º tempo das aulas, implicando em diversas faltas por mês,
além de já ter sido reprovada.
Como réplica uma das professoras disse acreditar que o exemplo de Júlia serve para
elucidar o misto de realidades de uma criança que mora na Rocinha e está exposta a uma
violência diária, que afeta pode afetar o que os professores costumam chamar de lado
emocional, levando à desmotivação dos alunos de uma maneira geral. Outro professor
acredita que a escola tenha uma parcela de culpa nos atrasos constantes, pois a instituição
permite a entrada dos alunos até o 2º tempo de aula e os que chegam depois disso acabam
“matando aula” e que, no caso de Júlia, ele acredita que possa ser a má influência de alguma
amiga que esteja “desvirtuando-a”.
Uma das professoras reafirmou que a família é a grande culpada por atrasos e
infrequência dos alunos, pois ela acredita que:
“ (...) há uma mitificação dessa coisa da família chamada estruturada.
Há problemas de relacionamento entre os pais que refletem no
desenvolvimento escolar da criança, que acabam desmotivando a aluna.
Talvez a Júlia fosse uma menina depressiva, não sei se é o caso, porque muitas
vezes a criança não expõe seus problemas internos e os adultos acham que tá
tudo certo”.
Conforme relataram os entrevistados, eles lidam com alunos faltosos e que se atrasam
constantemente tentando sinalizar para os pais e para os próprios alunos. Um dos professores
disse não gostar de desistir de seus alunos, pois acha a relação professor-aluno muito
importante: “quando você conversa com o aluno no mano a mano ele é outro, diferente de
quando está com os amigos, alguns eu consigo recuperar através da conversa sobre a
importância do estudo como forma de sobrevivência em um país como o nosso, outros se
perdem”.
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Outra professora acredita que estes problemas estão relacionados ao fato de que
“alguns alunos sofrem de baixa autoestima e já tem registrado: “eu sou um fracasso, o
mundo me vê assim”, além de ter a questão de não gostar de estudar”. Em busca de tentar
compreender melhor essa fala a professora é provocada sobre o fato de alunos que são
faltosos e se atrasam, mas que são interessados mesmo não tendo um bom rendimento. E a
entrevistada diz acreditar que, nestes casos, “é basicamente uma sequência de fracassos
pessoais, a pessoa introjeta a ideia de que não é capaz de aprender e pronto. Tanto que em
dez anos de magistério público eu costumo dizer que emburreci, porque não sou desafiada e
muitas vezes tenho que baixar o nível do que vai ser ensinado”.
A respeito de como a escola lida com determinadas situações de atrasos e
infrequência, todos os entrevistados disseram que diretor e coordenadores pedem que os
professores sinalizem quais são os alunos nestas situações, a partir dessa sinalização a escola
telefona ou envia comunicados aos responsáveis pedagógicos. Se isso não ocorre
frequentemente, acaba se dando ao fim de cada bimestre.
Quando perguntados sobre o fato de a dificuldade com relação ao ensino-
aprendizagem e a distorção idade-série acarretarem um maior número de faltas ou
reprovações, todos os entrevistados disseram acreditar que são fatores que têm sim forte
influência, pois “são poucos os que estão em distorção idade-série que conseguem recuperar
e assim vão acumulando matéria, além de serem estigmatizados pelo fato de serem os
maiores da turma, mas que sabem menos que os menores”. Para tentar contornar esses
problemas os professores dizem não ter nenhuma forma específica, e que às vezes tentam dar
a devida atenção, mas pelo alto número de alunos em uma turma, um atendimento
diferenciado acaba não ocorrendo.
Uma das professoras lamenta: “eu efetivamente não chego no aluno, eles se perdem
na multidão, somos todos corresponsáveis pela perda de alunos problemáticos”.
Os professores acham importante a presença de estagiários na escola, pois assim
podem dar atenção a alunos com dificuldade de ensino-aprendizagem com mais calma. Além
disso, os entrevistados acreditam que, apesar de não ser a melhor das soluções, as turmas de
Acelera são uma solução momentânea para o problema da distorção idade-série.
Com base nas evidências empíricas encontradas por nossas pesquisas, podemos
concluir que o problema da infrequência esconde uma situação que não é apenas dever da
escola buscar uma solução, mas é também uma responsabilidade social. A partir desse
enfoque, podemos compreender que alunos infrequentes tendem a ser reprovados, e a partir
daí experimentarem trajetórias irregulares que podem gerar o abandono dos estudos, que por
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seu turno está quase sempre associado a situações de maior exposição a diferentes formas de
violência. Assim é que o problema da infrequência, que surge como um assunto escolar, acaba
se configurando como um importante problema sociológico, que no final das contas reflete
situações de vazio institucional que comprometem a garantia do direito da criança e do
adolescente à aprendizagem.
Buscou-se por meio deste trabalho identificar as lacunas existentes na relação entre as
instituições que são responsáveis por garantir o direito da criança e do adolescente, em
especial o direito à aprendizagem. Para tanto, articulamos o acúmulo de diferentes abordagens
empíricas que tiveram como locus privilegiado de pesquisa, o Conselho Tutelar e escolas
públicas localizadas no entorno da PUC-Rio. A pesquisa sobre infrequência e abandono de
estudos partiu de um quantitativo obtido em uma escola que atende basicamente adolescentes
moradores da Rocinha. Com base nesse levantamento, foram identificadas situações típicas
que permitiram a delimitação de um universo de estudantes que foram entrevistados junto a
suas famílias, tendo sido apresentada aqui uma dessas entrevistas.
Além disso, foram realizadas entrevistas qualitativas com professores de uma das
escolas pesquisadas em busca de criar uma interlocução entre os fatos observados sobre a
realidade de alunos infrequentes e abandonantes e a visão dos professores acerca desta
problemática que, na realidade, encobre diversos outros fatores que vistos de uma perspectiva
sociológica, são resultantes do processo de invisibilização do aluno de uma escola massificada
e que não encontra suporte no tripé institucional que temos estudado até agora.
O que podemos apreender das diversas pesquisas aqui articuladas em torno do direito
da criança e do adolescente, é que eles não são apenas alunos que têm tido violado o seu
direito à aprendizagem, são também aprendizes em processo de construção de conhecimento
e, antes de mais nada, são indivíduos, são sujeitos de direitos. Esse pensamento me permite à
remissão ao argumento de Alan Touraine, no qual o autor sustenta a ideia de que a educação
não deve ser meramente uma via de socialização, mas deve em primeiro lugar, ser a base para
uma formação que capacita o sujeito a “agir e pensar em nome de uma liberdade criadora
pessoal que não pode desenvolver-se sem contato direto com as construções intelectuais,
técnicas e morais do presente e do passado”. (TOURAINE; 2003, P.337)[7]
Nesse sentido, pode ser útil o diálogo com professores, provocando a sua reflexão
sobre determinados problemas que aparentam ser somente escolares, estimulando-os dessa
maneira, a não permanecerem apenas no domínio das suas disciplinas quando seus alunos são
o “outro” que faz parte de uma realidade desconhecida. Há, por isso, que se valorizar a
importância da qualidade das relações professor-aluno para que o processo de ensino-
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aprendizagem se realize com sucesso; a melhora na relação não acontece quando se diminui o
nível do conhecimento que deve ser transmitido, e sim quando são lançados novos desafios de
modo a vencer as problemáticas em torno, por exemplo, de trajetórias escolares vulneráveis.
De modo que todas as fragilidades embutidas na rede de instituições que deveriam
garantir o direito de crianças e adolescentes, mesmo com os progressos da legislação
brasileira e das políticas públicas que têm sido implementadas, caracterizam a falta de apoio a
uma parcela da sociedade que, em geral, é pobre, negra e na maioria das vezes moradora de
favela, como vimos em nossas pesquisas, e que é contemplada de forma marginal por uma
rede de proteção que, por sua fragilidade institucional, não dá conta de cumprir o seu dever
que é o de garantir os direitos de crianças e adolescentes. Através de distâncias existentes
entre estas redes de proteção se perdem a criança/adolescente e os alunos que são
invisibilizados em meio a um acúmulo de acontecimentos que não articulam suas
singularidades e o contexto no qual estão inseridos.
Importa lembrar que a luta pela redemocratização do Brasil está intrinsecamente ligada
à busca pelos direitos integrais de crianças e adolescentes como sujeitos em formação. O
Estatuto da Criança e o Adolescente (ECA) é um marco na legislação mundial e serve de
exemplo para legislações do mundo todo. Através do ECA é possível não só responsabilizar,
mas também proteger todas as crianças e adolescentes do nosso país, principalmente os mais
vulneráveis que têm sido, recentemente, responsabilizados por parte da sociedade brasileira
como os grandes causadores da violência no país.
Mesmo que este trabalho não tenho seu foco exclusivamente voltado para a questão da
violência urbana sofrida por crianças e adolescentes na cidade do Rio de Janeiro, é preciso
estar em alerta para determinados acontecimentos, já que estamos situados no bairro da
Gávea, onde tem sido palco de diversos acontecimentos que denunciam a segregação urbana
sofrida em geral, por crianças negras e de classes populares, que se torna ainda mais grave
quando estas crianças estão vestidas com o uniforme da rede pública de ensino.
Em síntese, os protagonistas de minha monografia sofrem uma invisibilidade
acometida por diversos fatores históricos, sociais, econômicos, culturais e estéticos, que
mesmo com a criação de práticas assistenciais voltadas para as camadas mais pobres da
população, crianças acabam sendo desqualificadas, pois o benefício está sempre
acompanhado da perda de outros direitos de cidadania como vimos ao longo deste trabalho;
crianças que sofrem estigmas desde muito cedo por conta de sua condição de vida material,
tendo como seus responsáveis pessoas que na visão de parte da sociedade, não são capazes de
garantir um padrão de dignidade, sendo julgadas e não reconhecidas como sujeitos de direitos.
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Referências
1 - BURGOS, Marcelo Baumann (coord.) – A Escola e o Mundo do Aluno. Rio de Janeiro,
editora Garamond, 2014
2 - HABERMAS, Jürgen – Direito e democracia: entre faticidade e validade. Editora Tempo
Brasileiro, 1997.
3 - BERGER. Peter; LUCKMANN, Thomas - A Construção Social da Realidade, Editora
VOZES, 2006.
4 - DEWEY, John –Em busca do público, In: PDF – La opinión pública y sus problemas
Ediciones Morata, S. L. 1927.
5 - LAHIRE, Bernard – Sucesso Escolar nos Meios Populares, As Razões do Improvável. São
Paulo, editora Ática, 1997.
6 - GARFILKEL, Harold - O que é etnometodologia? In: PDF Cambridge: Polity Press, 1996.
7 - TOURAINE, Alain – Poderemos Viver Juntos? Iguais e Diferentes. Editora Vozes,
Petrópolis 2003.