o diário de um gago

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1 O Di-di-ário de Um Ga-gago (Texto integral recebido por e-mail há anos, provavelmente postado semanalmente na internet. Não se encontra em sites ou publicações atuais. Encontrei apenas uma referência satírica ao seu autor, Papapaulo Cococoelho) Uma alucinação pode se tornar real, mas a realidade não é uma alucinação. Este livro é dedicado a todos os que tiveram sua luz interior cortada por falta de pagamento. 1 - O início de tudo - Cada homem tem sua própria trilha até Deus. A revelação é um caminho a se seguir sozinho. As palavras de Swami Zédanta, ditas em tom grave num inglês imperfeito, tocaram o fundo de minha alma. Prostrei-me à sua frente em posição de lótus e meditei por alguns minutos antes de dizer ao reverendo mestre, titubeante, que não havia entendido nada. - Eu quero dizer que, de agora em diante, você vai seguir sozinho. Um tremor de pânico percorreu meu corpo. A perspectiva de escalar solitariamente o Himalaia, partindo de um de seus pontos mais íngremes e selvagens, não me parecia uma idéia animadora. Além do mais, o anúncio do Swami publicado na revista "Esoteric World" prometia muito mais pelos meus dez mil dólares. - Meu anúncio promete uma viagem com guia, eu sei. Mas não promete um guia aprisionado ao grosseiro corpo físico. Vá sozinho. Estarei ao seu lado, em matéria astral sutil. Procure Ramatrama, no vilarejo denominado Krshnapura. Lá você encontrará a revelação. A viagem foi penosa. Meus ossos doíam de frio. Enfrentei salteadores e animais selvagens. Mas a serena presença astral de meu mestre garantiu minha integridade física e psicológica. A viagem ao Himalaia coroava quinze anos de buscas, até então infrutíferas. Desde adolescente, quando

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    O Di-di-rio de Um Ga-gago

    (Texto integral recebido por e-mail h anos, provavelmente postado

    semanalmente na internet. No se encontra em sites ou publicaes atuais. Encontrei apenas uma referncia satrica ao seu autor, Papapaulo Cococoelho)

    Uma alucinao pode se tornar real, mas a realidade

    no uma alucinao. Este livro dedicado a todos os que tiveram sua luz interior cortada por falta de pagamento.

    1 - O incio de tudo - Cada homem tem sua prpria trilha at Deus. A

    revelao um caminho a se seguir sozinho. As palavras de Swami Zdanta, ditas em tom grave

    num ingls imperfeito, tocaram o fundo de minha alma. Prostrei-me sua frente em posio de ltus e meditei por alguns minutos antes de dizer ao reverendo mestre,

    titubeante, que no havia entendido nada. - Eu quero dizer que, de agora em diante, voc vai seguir sozinho.

    Um tremor de pnico percorreu meu corpo. A perspectiva de escalar solitariamente o Himalaia, partindo de um de seus pontos mais ngremes e selvagens, no me parecia uma idia animadora. Alm do mais, o anncio do Swami publicado na revista "Esoteric World" prometia muito mais pelos meus dez mil dlares.

    - Meu anncio promete uma viagem com guia, eu sei. Mas no promete um guia aprisionado ao grosseiro corpo fsico. V sozinho. Estarei ao seu lado, em matria astral sutil. Procure Ramatrama, no vilarejo denominado Krshnapura. L voc encontrar a revelao.

    A viagem foi penosa. Meus ossos doam de frio. Enfrentei salteadores e animais selvagens. Mas a serena presena astral de meu mestre garantiu minha integridade fsica e psicolgica.

    A viagem ao Himalaia coroava quinze anos de buscas, at ento infrutferas. Desde adolescente, quando

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    as acnes e um acentuado problema de dico me transformaram numa piada entre os amigos, entender o sentido da vida se tornou uma espcie de obsesso. Enquanto todos os meus colegas de ginsio se dedicavam

    a prticas grotescas e mundanas como namorar, ir ao cinema, praticar esportes e fazer sexo, eu mergulhava na leitura esotrica para no morrer de inveja.

    Imagens do passado, fragmentadas como um mosaico, me acompanharam em cada etapa do caminho. Quando cheguei a Krshnapura, dias depois, meus ps eram duas nicas bolhas de sangue. Apesar de no falar o dialeto da aldeia, encontrei facilmente Ramatrama, graas a uma placa, em ingls, na porta de sua cabana: "Zdanta Co. Spiritual Revelation".

    Um velhinho me recebeu, com ar de pouco caso. Entregou a xerocpia de uma carta do Swami, que dizia: "Saudaes discpulo. Voc enfrentou o frio, o vento, os

    animais e os criminosos. Dia aps dia superou as dificuldades do caminho, com o nico propsito de encontrar a revelao divina. Se depois de tanto sacrifcio Deus no tiver lhe dito nada, porque o seu estgio evolutivo ainda no permitiu a comunho com o Cosmo. Volte ano que vem. Com a apresentao desta carta a Zdanta Co. oferece 20% de desconto na sua prxima viagem".

    Fiquei estupefato, com os olhos fixos no papel. Todo o turbilho de emoes acumuladas durante a escalada do monte, a surpresa diante da mensagem do Swami e a dor fsica causada pelo cansao, pelo frio e pela fome se traduziram numa frase lancinante:

    - F-f-f-filho da p...!

    2 - A viagem de volta No avio, durante a viagem de volta, meditei muito

    sobre minha experincia mstica no Himalaia.

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    Lentamente, o dio inicial que eu senti pelo Swami foi se diluindo, dando lugar a uma calma compreenso dos acontecimentos.

    Quando desembarquei em So Paulo j tinha plena

    conscincia da mensagem que aquele homem santo queria me transmitir.

    Tudo no passou na verdade de um teste, para medir meu grau de humildade e resistncia. Senti vergonha ao constatar que meu corao ainda um poo de dio e rancor. Mais ainda pela ousadia de pensar que um ser to imperfeito como eu estaria pronto para receber a revelao. Jurei para mim mesmo que iria me dedicar com fervor aos exerccios de meditao para, no prximo ano, humildemente, tentar mais uma vez a viagem do Swami.

    A esta altura dos relatos imagino que voc j esteja querendo saber um pouco mais sobre mim. Tive uma

    infncia feliz, numa famlia de comerciantes bem sucedidos, de formao catlica. Os problemas, como j disse, s comearam a aparecer na adolescncia. Cresci muito, e muito cedo. Aos quatorze anos eu era um vara-pau magrelo e desengonado. Aos dezesseis, um vara-pau magrelo, desengonado e cheio de espinhas. Hoje, aos trinta e dois, quando me olho no espelho e vejo as pequenas crateras, heranas da puberdade, penso nas marcas ainda mais indelveis que aqueles tempos deixaram na minha alma.

    Foram maus momentos. Desprezado pela turma do bairro, toda formada por pequenos-burgueses materialistas como eu mesmo era, apeguei-me leitura como um nufrago a uma tbua (j vi isto escrito em

    algum lugar...). Ento, acidentalmente, entre um clssico da literatura e a obra comentada de algum filsofo francs, um livro fininho do Richard Bach chegou s minhas mos. Foi a revelao! Um novo mundo, muito mais sensvel e menos materialista se descortinou diante dos meus olhos. De Bach passei para outros autores

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    mais complexos, como Herman Hesse e Lobsang Rampa. Depois Rajneesh e Blavatsk. No meu auge, estava lendo Paulo Coelho em paquistans.

    No cheguei a me envolver profundamente com

    nenhuma crena especfica, mas esta bagagem ecltica me ajudou a conceber um conceito muito prprio sobre Deus e os mistrios da vida. Minha forma de conceber o mundo sofreu uma mudana radical, e a famlia logo percebeu. Mame detestava minhas batas indianas. Papai pensava que o cheiro de incenso no meu quarto era maconha. Eu havia encontrado um universo rico e misterioso, mas continuava fechado em mim mesmo.

    O alento encontrado nos livros no substitua a necessidade adolescente de se relacionar com outros jovens. Mas a esta altura era eu quem no queria o reconhecimento e afeto da turma de vizinhos, vazia e materialista.

    Chorei muito, sozinho no meu quarto, pensando que eu estava fatalmente condenado eterna solido. Foi quando descobri os cursos gnsticos.

    3 - A garota do Cinema Eu havia acabado de assistir "Ferno Capelo

    Gaivota" pela oitava vez no cine clube. Dispensei o motorista e resolvi seguir a p, observando o colorido da rua e assoviando uma das belas canes compostas por Neil Diamond para o filme.

    Sempre passava em frente quele enorme prdio com salas comerciais na rua 24 de Maio. Mas pela primeira vez, por capricho dos astros, observei as placas

    fixadas na portaria, oferecendo os servios de profissionais liberais, compra e venda de ouro e cursos profissionalizantes. Uma delas dizia, em letras gticas vermelhas sobre um fundo branco: "Gnose. Os mistrios do universo ao seu alcance".

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    Nem esperei o elevador. Subi as escadas correndo, movido por minha vocao mstica e pela natural ansiedade dos dezoito anos. Poucos minutos depois estava matriculado no curso "Poder de Cura dos

    Cristais", que comearia no dia seguinte. Mas quem mais me chamou a ateno foi, sem

    dvida, a garota na primeira fila. Simplesmente linda, com um vestido hippie de americano cru e sandlias de couro. Aos dezoito anos, a sexualidade se manifesta nos homens encarnados com um vigor selvagem. Eu bem que lutei contra os maus pensamentos que comearam a aflorar em minha libidinosa mente juvenil, mas no obtive sucesso. Sem perceber, fiquei pelo menos quinze minutos com os olhos parados no corpo da garota. Ao trmino do transe, quando ergui um pouco a cabea e fitei seu rosto, percebi que ela tambm me observava. De repente, o pnico!

    Ela se levantou e veio caminhando, entre as carteiras, em minha direo. Comecei a suar frio, antecipando a reprimenda que eu, sem dvida e merecidamente, iria receber. Era certo que aquele anjo de pureza se sentiu maculado por meu olhar encharcado de desejo inferior.

    - Tem um a pra gente fumar depois da aula? A naturalidade com que ela fez esta pergunta me deixou absolutamente sem resposta.

    - Meu nome Bia. Voc novo aqui, no ? Ela continuava falando comigo! E eu mudo,

    tomado pela surpresa de quem, pela primeira vez, era abordado pelo sexo oposto. Eu sempre gaguejava quando ficava nervoso. Era assim em ocasies banais, como nas

    vezes em que precisava apresentar um trabalho na escola, quando tinha que responder a uma bronca dos meus pais ou quando me via forado a conversar com algum com quem no tinha intimidade.

    Diante de Bia este defeito tomou propores gigantescas. A natural atrao que ela me despertou, j

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    no primeiro olhar, sua beleza serena e segura, o prprio lugar onde estvamos, cheio de gente que eu no conhecia... Tudo colaborava para aumentar meu desespero.

    Num ltimo esforo, tentei organizar minhas idias. Montei na cabea uma frase de resposta, convencional, curta e educada. Fiquei repetindo as palavras at me familiarizar com elas. Respirei fundo e, num s flego, falei:

    - ... No saiu nada. A lngua enrolou, em caracol,

    enchendo a boca. O suor ensopou meu rosto. Depois de alguns segundos angustiantes, Bia retomou a palavra, aparentemente achando normal o meu silncio. Num monlogo, comeou a me contar que fazia teatro amador, tai chi chuan e anlise transacional. E eu s ali, escutando.

    Muito mais tarde, quando Bia e eu j ramos bons amigos, ela disse que entendeu, no meu silncio, o sinal exterior da calma profunda tpica das grandes almas. "Achei teu papo o mximo", costuma me dizer, sobre aquele primeiro encontro. Naquela sala apertada, com vinte cadeiras, pela primeira vez me senti entre iguais. Pelo menos mais quatro rapazes usavam camisetas como a minha, comprada de um hare krshna no viaduto do Ch. Todos os outros alunos tambm me pareceram gente diferente, deslocada neste mundo, exatamente como eu.

    4 - Alto Paraso a cidade mstica

    Quatro meses se passaram desde aquele meu primeiro encontro com Bia. Nos tornamos amigos e, com a convivncia, aprendi a admirar suas qualidades e aceitar seus defeitos. Ela era doce, franca, positiva. Demonstrava um interesse que nenhuma outra mulher, alm de mame, havia me dispensado.

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    "Meu nico grande erro foi am-la", pensei, naquela poca. Bia parecia no ter nascido para ser de ningum. Era volvel e estava sempre querendo abraar o mundo com as mos. Tinha com o esoterismo uma

    relao superficial; simples curiosidade despretensiosa. E o que ela parecia sentir por mim no era muito

    diferente. Apesar dos riscos, agarrei-me a ela como um nufrago se agarra a uma tbua (adoro essa frase!). Quando estvamos juntos, sentia um misto de conforto e culpa. Culpa porque j no me dedicava meditao e leitura como antes. Me distraa com facilidade e sentia um desejo sexual incontrolvel cada vez que evocava mentalmente sua imagem.

    Entendi, finalmente, a necessidade do celibato dos santos. Tentava, sinceramente, elevar meus pensamentos a planos mais nobres. Com grande esforo procurava visualizar bosques, cascatas e crregos

    cristalinos com coelhos e veadinhos s margens, sempre que estava com Bia. Mas que bunda tinha aquela mulher, meu Deus.

    Meu aproveitamento no curso sobre cristais no foi dos melhores, como voc j deve ter imaginado. Mesmo assim, a escola de gnose me ajudou a conhecer um grupo de bons amigos dedicados, como eu, a desbravar as sendas do Eu superior. Estvamos seis de ns em Alto Paraso, Gois, considerada por msticos de todo o planeta como sendo o "corao da terra". Localizada em uma chapada de altitude elevada, a cidade famosa pela apario de objetos voadores no identificados, que encontram nela um perfeito campo de pouso.

    Na viagem fomos acompanhados pelo professor Zoon, nome inicitico do proprietrio da escola de gnose que, entre os leigos, se chama Edmilton. Ele havia protagonizado uma experincia fantstica, naquele mesmo lugar, h dois anos, quando foi sequestrado por um disco voador. A descrio que o professor Zoon fez

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    dos pequenos tripulantes, do equipamento e do comportamento das criaturas no deixou dvidas quanto veracidade da histria: correspondia exatamente aos relatos que eu havia lido na revista "Planeta". Fiquei to

    fascinado pela experincia do professor que financiei a expedio do pequeno grupo at Alto Paraso.

    Agora estvamos todos em crculo, de mos dadas, numa estrada que dava acesso cidade, o ponto exato onde Zoon havia sido sequestrado.

    - Eles me levaram para uma estranha sala no interior da nave - contou pela milsima vez o professor, ante os nossos insistentes pedidos.

    "Ento", prosseguiu, "fui preso a uma mesa cirrgica onde, com estranhos aparelhos, extraram um pouco do meu sangue. Estranhamente, eu no estranhava nada, dominado por um estranho estado de hipnose. Depois disso, adormeci. Dois dias depois fui

    encontrado na beira da estrada", concluiu. Um arrepio percorreu minha coluna. Desligamos

    nossas lanternas e a luz das estrelas s nos permitia enxergar vultos. Como o combinado, comeamos a entoar mantras evocativos. A inteno era criar um crculo de energia csmica, atravs da canalizao de nossas foras vitais, e atrair naves pilotadas por seres superiores.

    O exerccio exigia, claro, o mximo de concentrao. Mas cometi o erro de me sentar justamente ao lado de Bia. O toque suave de sua mo na minha, seu calor e as pequenas contraes de seus dedos me deixaram louco. No conseguia pensar em mais nada, tomado por uma excitao animalesca.

    Mesmo assim, o cntigo continuava a encher o ar

    com sua cadncia ritmada. Enquanto as almas de meus colegas se elevavam a planos nirvnicos, permaneci atado terra por meu vergonhoso desejo carnal.

    Talvez por isso mesmo, fui o primeiro a perceber quando aquela pequena luz amarelada surgiu no horizonte. Ela foi crescendo, se aproximando, e logo pude

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    notar que se dividia em dois diferentes focos paralelos. Quando o objeto se encontrava j bem prximo de nosso pequeno grupo, pude ouvir um ronco contnuo e distingui uma luz menor, vermelha, piscando sobre as outras

    duas. Neste momento, primeiro o professor, depois Bia

    e os colegas saram de seu transe mstico e viram com espanto o objeto iluminado, prximo o suficiente para cegar nossos olhos. Duas portas se abriram, e pudemos perceber os contornos de duas criaturas. Conversaram algo entre si. Depois, em portugus claro mas carregado de um sotaque diferente, uma delas se dirigiu ao professor. Era apenas o comeo de uma inesquecvel experincia.

    5 - Homens da lei

    - Que ceis to fazendo a na beira da estrada uma hora dessas?

    Quando o policial, num forte sotaque goiano, fez a pergunta ao professor, pude observar a expresso de surpresa dos meus companheiros, iluminados pelos faris da viatura. O segundo policial recuou, apagou a luz vermelha que piscava em cima do veculo, apanhou uma arma e se juntou ao colega, lanando olhares lnguidos para Bia e as outras duas mulheres no grupo.

    Professor Zoon bem que tentou explicar a verdade, mas os homens da lei no pareceram acreditar muito na histria. Com frases secas, o mais velho mandou nos deitarmos lado a lado no acostamento, enquanto o outro policial apenas vigiava a movimentao,

    empunhando a arma. Depois, passou a revistar um por um de ns. A

    prtica iogue de grande valor em situaes delicadas como aquela. Ali, deitado de bruos no asfalto gelado, consegui dominar o medo e me abstrair daquela realidade inslita. No tnhamos mesmo nada a temer. Pelo que

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    soubemos, esoterismo e paranormalidade faziam parte da rotina da cidade. As autoridades locais s no gostavam de arruaceiros e desocupados, perturbando a ordem local, e tudo o que fazamos era tentar travar contato com

    seres superiores. Do que poderiam nos acusar? - Ih, ia aqui, cabo. A mocinha t com um cigarro

    de maconha. Sempre fui visceralmente contra as drogas.

    Evitava, porm, julgar ou discriminar quem quer que fosse, razo pela qual a condio de Bia, como consumidora espordica, nunca tenha chegado a me incomodar. Isso foi at aquele dia. Espremido naquela cela, a nica da cidade, com meus outros colegas e mais dois bbados locais, me senti agredido e aviltado como nunca em minha vida. Prometi a mim mesmo que me afastaria de Bia, por mais que isto custasse, caso no conseguisse tir-la deste hbito maldito.

    - P, gente... No me olhem com essa cara. Como que eu podia adivinhar que os homens iam baixar no pedao?

    A impresso que eu tinha era de que Bia no percebia a gravidade da situao. Eu, ao contrrio, estava s margens do desespero. O que meus pais iriam pensar de mim? Eles, que sempre foram to presentes e afetuosos, que at conseguiram minha dispensa do exrcito graas influncia de um coronel amigo da famlia... Como eu poderia simplesmente ligar para casa e dizer: "Estou preso"?

    Mas no era s a vergonha e o constrangimento pela priso que me preocupavam. Havia ainda um enorme sentimento de fraqueza interior. Claro que os

    discos voadores no atenderam ao chamado do meu grupo, na estrada, porque interrompi a corrente.

    Dominado por um irresistvel desejo carnal, provocado pelo toque suave do corpo de Bia, no me concentrei nos mantras evocativos. Meus colegas no

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    sabiam, mas minha fraqueza levou nossa misso ao fracasso.

    6 - Zoon, eloquente e calmo

    Passamos umas poucas horas naquela cela, at que

    amanhecesse o dia, mas nos pareceu uma eternidade. Felizmente, os dois bbados incomodaram menos do

    que poderamos supor. Um ficou dormindo a maior parte do tempo, o outro se mostrou respeitoso para com nosso grupo e at nos distraiu com suas histrias sobre desiluses amorosas. Desde a priso, os policiais no tiveram dvidas de que o professor Zoon, visivelmente o mais velho, era uma espcie de lder dos rapazes e moas que integravam nossa pequena excurso. Logo cedo ele foi chamado por um dos dois guardas de planto para conversar no escritrio da Delegacia.

    Todos ns ficamos tranquilos: Zoon era um homem eloquente e calmo. Saberia contornar a situao de modo satisfatrio. Alm do mais, tudo fica mais transparente luz do dia, como afirma um mestre hindu de cujo o nome no me recordo. Os policiais perceberiam que somos pessoas de bem e eu haveria de sair daquela sem que meus pais sequer tomassem conhecimento. Meia hora depois o professor voltou cela, acompanhado por um homem engravatado trajando um terno de linho fora de moda.

    - Este o doutor Armando, - disse Zoon -, um advogado da cidade que est nos ajudando. Ele conversou com o delegado, por telefone, e conseguiu convenc-lo a nos libertar sem processo. Respiramos

    aliviados. Mas por pouco tempo. - O problema que o delegado est numa cidade

    vizinha - prosseguiu Zoon - e s volta depois de amanh. At l ele quer que pelo menos Bia continue na cidade. Mrcia e Cristina, as duas outras garotas no grupo, comearam a chorar, falando ao mesmo tempo que se

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    passassem mais dois dias em Alto Paraso teriam problemas com suas famlias. Depois, descontroladas, comearam a agredir Bia. "Maconheira!", disse Mrcia, que detestava drogas, como eu. "Bandeirosa!", gritava

    Cristina, que costumava fumar com Bia de vez em quando. De repente os rapazes se juntaram discusso histrica e engrossaram o coro de ofensas minha amada. Bia s se encolheu num canto da cela, cobrindo o choro com as mos.

    - Eu poderia ficar com Bia, mas amanh comeam as inscries para o curso avanado "Elementais da Natureza" e preciso estar na escola...- disse o professor, to logo o grupo acalmou os nimos.

    Quando todos comearam a fugir dos olhares uns dos outros, percebi que ningum tinha a inteno de permanecer na cidade em solidariedade colega toxicmana.

    - Eu f-f-f-f... Todos os rostos se voltaram para a minha

    direo, com expresses ansiosas, enquanto me esforava para dominar o nervosismo e completar a frase.

    - ...fico com Bia. O grupo soltou os ombros, em suspiros unssonos e sorrisos aliviados.

    Bia pareceu profundamente agradecida pelo meu gesto de coragem e senti que, daquele momento em diante, ela passou a me olhar de um jeito diferente. Com sua fala envolvente e a beleza cativante de seus vinte e dois anos, logo conseguiu convencer os policiais de que o cigarro j veio no bolso do vestido, quando ela o pegou emprestado de uma amiga em So Paulo.

    O grupo partiu na hora do almoo, como o

    previsto. Bia e eu nos hospedamos numa penso da cidade, em quartos separados. Seria fcil fugir, mas temi que a polcia nos perseguisse. Telefonei para casa e menti que estava tudo bem, que apenas ficaria mais um tempo em Alto Paraso, aproveitando as frias escolares.

  • 13

    Passados os dois dias fomos finalmente dispensados, depois de uma longa conversa com o delegado. Mas ainda existia um problema. Havamos perdido nossas passagens e gastei quase todo o resto do

    meu dinheiro pagando o advogado. Pensei em telefonar e pedir mais recursos ao papai, mas isso levantaria suspeitas.

    - Fica frio, a gente volta de carona. Bia, como sempre, resolveu o problema com seu invejvel senso prtico.

    7 - Bia se despiu naturalmente.... Doze horas e trs caminhes depois estvamos Bia e

    eu na carroceria de uma pick-up, em algum lugar do Tringulo Mineiro. Num rompante, sem me explicar nada, ela passou a esmurrar o vidro da cabine gritando:

    - Pra! Pra que a gente vai descer! O motorista disse alguma coisa mulher e

    criana que viajavam com ele, encostou num trecho reto da rodovia e Bia saltou lpida.

    - Vem! O que voc est esperando? Desci, desconfiado, no meio do cerrado deserto.

    Agradecemos ao motorista, que seguiu sem entender nada.

    - Voc nem imagina a coincidncia! Viu aquela estradinha de terra na ltima curva? ali que mora uma das pessoas mais incrveis que eu conheci na vida. Voc vai adorar! Bia ia frente, em passos firmes me falando sobre o velho ingls que largou tudo na Europa para se dedicar ao estudo de razes brasileiras. Ele morava numa

    casa rstica, num stio a poucos metros do local onde estvamos. Bia esteve l trs anos antes, com uns amigos.

    - Eu sabia que era em Minas, mas nunca me lembrava onde. Encontrar o stio do velho Henry, assim, por acaso, s pode ser um sinal divino...

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    Caminhamos menos de um quilmetro pela estradinha de terra quando perceb uma sbita mudana na paisagem. O cenrio agreste foi ficando mais e mais verde, medida que nos aproximvamos do barulho de

    um rio. Entramos mato adentro e de repente, para meu espanto, me deparei com a mais bela cachoeira que meus olhos j haviam visto. As guas caam, claras, de uma corredeira de uns trs metros, e deslizavam num ritmo calmo entre as pedras redondas do fundo do rio.

    - Meu Deus! Um banho! Era tudo o que eu queria da vida...

    Bia se despiu naturalmente, revelando um corpo muito mais perfeito do que meus mais vulgares sonhos erticos poderiam imaginar. Era uma fada! Um anjo! Um onrico ser fantstico, irradiando uma luz prpria e inocente. Entrou na gua, sorrindo muito, com comentrios sobre o frio.

    - Entra, bobo! No tenha vergonha de mim. Somos amigos ou no?

    Mais uma vez me senti menor que um rato. Cus, quanto eu ainda precisaria evoluir para chegar ao estgio de pureza alcanado por Bia! claro que no haveria nada demais num banho inocente. ramos crianas de Deus, compartilhando, juntos o belo espetculo da natureza.

    Tirei a roupa e entrei tambm no rio, raso o suficiente para deixar expostas nossas genitlias. Um pequeno peixe dourado ziguezagueou entre minhas pernas. Bia brincava com a gua, vontade, como uma sereia. Os passros cantavam nas rvores vizinhas, compondo uma inesquecvel sinfonia com o som da

    correnteza. Tudo parecia convergir, harmonicamente, para a

    construo de um quadro paradisaco. O que estragava era aquela minha maldita e indisfarvel ereo.

    8 - Suas ndegas redondas e firmes....

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    Tenho plena conscincia de que jamais teria atingido

    um estgio to elevado de interesses espirituais se, materialmente, a vida no tivesse me poupado tanto.

    Mas o conforto tambm traz desvantagens. O futuro profissional e financeiro nunca chegou a ser um problema.

    Naqueles primeiros tempos com Bia, eu era um jovem vestibulando que, duas ou trs reprovaes depois, acabaria sendo admitido numa faculdade particular de Administrao. Hoje sou um bem-sucedido executivo, auxiliando papai na manuteno de seus negcios. Tenho tempo e dinheiro para empreender minhas buscas superiores. Mas me falta, talvez, a necessria vivncia para sugar as lies mais profundas e subliminares oferecidas a cada nova experincia.

    Se aos trinta e dois anos ainda sou, muitas vezes,

    uma criana diante dos desafios da vida, imagine como me senti naquele dia, aos dezenove, tomando banho no riacho. Os sedosos cabelos castanhos de Bia, levemente ondulados, flutuavam em movimentos graciosos na superfcie, enquanto ela deslizava de bruos sustentando o corpo com as mos no fundo do rio. Suas ndegas redondas e firmes ultrapassavam a altura das guas, qual duas pequenas alvas ilhas.

    De vez em quando ela esticava o brao, vergando as costas e me permitindo ver um par de seios de bicos rseos e pontas entumescidas. Sa correndo, desesperado, mata adentro.

    Minutos depois, com os nimos j amolecidos, voltei para o riacho, envergonhado. Para minha sorte, Bia

    no teve tempo de perceber o desejo que, involuntariamente, me provocara. Ela estava vestida, ainda mais linda com os cabelos molhados. Lanou um nico olhar tmido e sorridente enquanto eu tambm me vestia. Ficamos por alguns segundos sentados, os dois, s margens, observando a cachoeira, sem dizer nada. Foi

  • 16

    ela quem rompeu o silncio. Fez um carinho em minha nuca e disse:

    - Me perdoa, criana. Eu sei o quanto voc se esfora para preservar sua pureza e inocncia. Esse

    banho a dois no tinha nada a ver... Que alma superior, pensei. Ela se desculpa por

    um erro que meu. - V-v-voc no f-fez nada, Bia. - respondi,

    lacnico como sempre. - Vem. Vou te apresentar ao velho Henry. E me puxou, pela mo, de volta estradinha. O velho Henry morava numa cabana parecida

    com aquelas dos filmes de faroeste. Bia me contou que ele vivia de uma penso da Marinha Britnica e que j estava instalado naquele mesmo lugar h pelo menos dez anos. Ele reconheceu minha companheira primeira vista, parecendo contente em nos ver e

    surpreendentemente socivel para algum que escolheu a vida em isolamento.

    Entramos e me deslumbrei diante da mais completa biblioteca esotrica que eu j havia conhecido. O velho jeep, livros recentes e comida industrializada deixavam claro que Henry no era afinal to ermito quanto eu imaginara a partir das histrias que Bia me contou no caminho. Ele era um septuagenrio bonacho, com uma longa barba grisalha e um bigode que tampava a boca. Dois pequenos olhos azuis expressivos pareciam o tempo todo ler o fundo de nossa alma.

    Nos sentamos, os trs, numa rstica mesa redonda e comemos o que me pareceu a melhor refeio de minha vida. Eu no me alimentava h pelo menos dez

    horas e o po caseiro do velho Henry foi recebido pelo meu estmago como um banquete dos deuses. Era a ltima coisa que eu comeria dentro das prximas quarenta e oito horas, o perodo de durao de uma das minhas mais absurdas viagens msticas.

  • 17

    9 - Era um pequeno demnio... Os olhos muito azuis e o rosto alvo de Henry eram

    os nicos sinais de sua origem europia. Seu portugus

    era perfeito, apenas carregado demais nos erres, como o sotaque do interior paulista. De vez em quando ele soltava uma ou outra interjeio em ingls quando se empolgava com um determinado assunto. Foi assim, por exemplo, quando, logo depois da refeio, ele comeou a nos contar sobre suas experincias no Mxico.

    - Holly shit, eu nunca vou me esquecer da primeira vez que ingeri mescalina. Aquele vegetal do deserto tem o real poder de nos colocar em sintonia com o motor que move o universo...

    Bebi sofregamente cada palavra do ancio. Estava por demais traumatizado com a recente experincia proporcionada pela ligao de Bia com as

    drogas, mas a descrio que Henry fazia daquela e de outras plantas as transformava em algo puro, superior.

    - Algumas razes e folhas - prosseguiu - so colocadas pelo criador na terra apenas para servir de canal de comunicao com ele. Culturas milenares descobriram isso e se aproximaram de Deus graas aos vegetais.

    O velho Henry ento nos contou que veio ao Brasil justamente para pesquisar razes nativas e que obteve grandes avanos.

    - Desenvolvi um ch, sob a inspirao de espritos da selva. Ele capaz de proporcionar uma perfeita comunho com as dimenses mais sutis de vida. - Oh, Henry, isso fantstico! Deixa a gente tomar um

    pouquinho... No acredito, sinceramente, que nenhum homem

    mortal, por mais evoludo que fosse, conseguiria dizer no a um pedido de Bia. O velho se levantou da cadeira, num pulo, tomado por uma sbita energia.

    - Yeah! Porque no?

  • 18

    Fiquei olhando para o copo, tomado por uma desconfiana quase to grande quanto a minha curiosidade. O lquido turvo tinha cor de Ki-Suco de uva. - O q-q-que t-t-tem aqui dentro? - perguntei.

    - Well, um pouco de jagube e rainha, plantas amaznicas. Uma lasquinha de mescalina. Dois diferentes tipos de cogumelos silvestres e um outro ingrediente, secreto, que os espritos no me permitem revelar.

    - Tem gosto de Ki-Suco de uva - disse Bia, sorvendo num gole o contedo do seu copo.

    - Shit! Voc descobriu o ingrediente secreto! Inspirado pela coragem da minha companheira

    de viagem, bebi tambm minha dose do ch. Velho Henry apenas nos observava, com o olhar confiante de quem j havia feito muitas vezes o caminho que iramos percorrer.

    - Cada um tem uma reao diferente ao tomar o

    ch. Uma reao que depende da sintonia astral e do estgio de evoluo de cada alma. Vou ficar aqui, sem beber, para acompanhar as "viagens" de vocs.

    A preocupao do velho Henry me deixou mais a vontade. Durante dez minutos no senti qualquer reao orgnica substncia. De repente comecei a ser tomado por uma sensao de conforto, que comeava na barriga. "Tenho um raio de sol no estmago", pensei, traduzindo mentalmente a letra de Peter Gabriel para uma antiga cano do Genesis. A cabana do Henry permanecia a mesma, com todos os objetos em seus lugares. Bia e o velho estavam sentados nas cadeiras ao meu lado, ainda prximos mesa onde fizemos a ltima refeio.

    Quando olhei pela janela percebi que o cu

    mudava de cor. Subitamente passou de azul para amarelo. E laranja, vermelho, verde e maravilha, at se firmar num quase roxo turvo, mesmo tom cromtico da bebida que tomamos.

    A "luz do sol" no meu estmago pareceu percorrer minhas veias. Inundou meu corao e atingiu minha

  • 19

    cabea, com um impacto refrescante. De repente a porta da cabana se abriu e dois pequeninos elementais alados comearam a fazer acrobacias no ar. Um era vermelho, o outro branco. Eles se aproximaram e pararam, mantendo

    altura com um leve bater de asas, perto dos meus ombros.

    Percebi, para meu espanto, que o vermelho - parado minha esquerda - era um pequeno demnio. O outro, branco, era um anjinho com aurola e tudo. Eram o bem e o mal, a dualidade da minha conscincia.

    No tive dvidas disto quando reparei nas feies dos dois e descobri que eles eram iguaizinhos ao Pato Donald.

    10 - Toquei seus lbios com os meus... - Voc um otrio mesmo... A garota deu o maior

    mole no riacho e voc no fez nada... Foi o pato vermelhinho quem falou primeiro,

    apontando ameaadoramente seu tridente de demnio em minha direo.

    - Voc agiu bem. A satisfao momentnea de um desejo carnal apenas lhe afastaria da iluminao... - respondeu o pato anjinho.

    - Quac! Bobagem! O cara tem dezenove anos e ainda virgem ! - disse o demnio, exaltado - Quer pecado maior?

    Fiquei assistindo, passivamente, ao combate entre as minhas duas vozes interiores. Os dois patinhos trocavam agresses verbais, olhando um para o outro, alheios minha presena.

    - Ele uma alma pura! - Balela! Voc viu a ereo? - Ele teve autocontrole e fugiu para o mato... - Por covardia! Ele no sabia era como comear.

  • 20

    O pato branco perdeu, momentaneamente, as palavras. O vermelho aproveitou o vacilo do oponente e se voltou para mim.

    - Voc sabe que eu estou certo. A Bia um teso

    e gosta de voc. Esquece os conselhos deste idiota e ataca a mina...

    - O sexo no vai lhe trazer nenhum tipo de realizao interior, - disse o anjo - resista e eu lhe prometo prazeres muito maiores no paraso...

    - C-c-c-calem-se! - exigi, gritando -N-nenhum dos dois est certo.

    Gaguejando bastante, como de costume, confessei s duas metades de minha conscincia que desejava, sim, Bia. E muito. Mas imaginava o sexo como a manifestao fsica do meu infinito amor por ela, no a mera realizao de um impulso carnal. "Se fugi para o mato, hoje no riacho, foi porque no tinha e no tenho

    certeza de que meus sentimentos so correspondidos", falei. Os dois patinhos pareceram aturdidos com minha veemncia. Senti que suas formas bruxuleavam, como o fogo de uma vela. De repente um flutuou na direo do outro, e se fundiram num nico Pato Donald cor-de-rosa.

    - Bem, nesse caso, abra seu corao para Bia. S assim voc saber se seus sentimentos so correspondidos - disse a conscincia, num tom de voz que me lembrou o do pato branco. Depois, subitamente assumindo a voz do vermelho, completou:

    - E se for correspondido, larga de ser babaca e passa a vara nela!

    Depois deste primeiro contato mstico com a minha prpria conscincia, senti que o efeito do ch se

    tornou mais forte. J no tinha mais a menor noo de tempo e espao. Estava em um limbo psicodlico, onde fragmentos de imagens e cores nunca vistas desfilavam diante dos meus olhos. Queria recobrar os sentidos, voltar cabana. Mas no conseguia, por mais que me

  • 21

    esforasse. Firmei os olhos na direo onde - supostamente - Bia estava sentada.

    A cortina de luz foi se dissipando lentamente. Pude v-la, vestida com um tecido de minsculas estrelas

    cintilantes, num trono brilhante de cristal. Ela estava ainda mais linda e logo percebi que o que estava vendo no era seu corpo carnal, mas uma de suas projees sutis, num plano superior.

    Naquele estado de conscincia, as palavras no eram mais necessrias. Podamos beber os pensamentos, um do outro. Senti que Bia vasculhava a minha mente, e eu a dela. Lgrimas de felicidade inundaram meu rosto quando pude ler, no fundo da alma daquela mulher, que os belos sentimentos que em segredo lhe dedicava eram correspondidos. Sim, ela me amava!

    Planei em sua direo e, timidamente, toquei seus lbios com os meus. Ela me envolveu num abrao

    quente e luminoso. Sem que precisssemos dizer nada, entramos num estado de sintonia e intimidade que nos transformava numa s pessoa. Livramo-nos de nossas roupas. A pele de Bia tinha uma cor branca, pura e irradiante.

    Estvamos de p, mas no sentamos a fora da gravidade. Flutuvamos, sem qualquer desconforto. Penetrei-a, lentamente. Iniciamos um lento movimento de vai e vem. Atingi o clmax com uma sensao forte, como se tivesse recebido uma descarga eltrica.

    S fui saber o que realmente aconteceu quando passou o efeito do ch. Foi o velho Henry quem me contou.

    - Shit, man. Voc tirou a roupa e fucked minha

    geladeira! 11 - Transe mstico Eu havia acabado de tomar um choque de 220 volts

    numa das regies mais sensveis do corpo mas, sob o

  • 22

    efeito do transe mstico, no senti qualquer desconforto. S me recordo de ter visto centenas de pequenos eltrons girando diante dos meus olhos enquanto era envolvido por uma leve dormncia.

    Agora eu estava num imenso deserto vermelho. Uma pequena nuvem de poeira surgiu no horizonte e veio crescendo, em minha direo. Aos poucos fui distinguindo as formas de pequenos e grandes animais, milhes deles. Minha primeira reao foi tentar fugir. Mas para onde? Estava s, num infinito descampado e os seres se aproximavam de mim numa velocidade inacreditvel. Resolvi esperar e enfrentar, fossem o que fossem. Sabia que estava numa misteriosa dimenso do universo, onde muitos poucos homens haviam estado, e que deveria extrair o mximo que cada experincia pudesse me proporcionar.

    No tive muito tempo para pensar. Agora os

    animais me cercavam, cobrindo o cho vermelho do deserto at onde minhas vistas alcanavam. Eram vacas, touros e porcos. Mas no como os da Terra. Eles tinham vos no lugar dos olhos e seus corpos no eram slidos como o meu. Possuiam uma semitransparncia de um azul levemente embaado.

    - Q-quem s-so vocs? O medo era tanto que mal consegui pronunciar

    estas trs mseras palavras. - Somos as almas de todos os animais que voc

    comeu nesta vida - respondeu uma grande vaca mocha. Fui tomado por um desespero indescritvel. Deus!

    O ch do velho Henry havia me levado para a arena do acerto final entre eu e todas as inocentes criaturas que

    foram mortas para saciar meus instintos carnvoros. "Pode ser apenas uma alucinao", pensei,

    percorrendo o cenrio macabro com os olhos, na esperana de encontrar algum sinal que desse validade teoria. Mas qual no foi a minha decepo ao observar,

  • 23

    aos meus ps, aquele nico tatu que eu comi, quando tinha dezesseis anos, numa pescaria.

    - E-e-espera a - disse, apontando para um dos animais -, t-tem um cavalo a-ali no meio. E-eu nunca c-

    comi c-cavalo. O equino fantasmagrico se aproximou e

    retrucou, com segurana. - Eu estava naquele hamburguer que voc

    comprou na sada do show do Caetano. Voc pode bem imaginar como eu me senti

    naquele momento agoniante. O impacto foi tanto que desde o dia da experincia com o ch, h pouco mais de treze anos, nunca mais coloquei um nico pedao de carne na boca. Para minha sorte, o batalho de seres espectrais no queria vingana, um sentimento por demais humano.

    Passado todo este tempo, entendo que aquelas

    pobres almas s tinham por inteno me alertar sobre o barbarismo contido no simples ato de comer um bife. Hoje, vegetariano convicto, me sinto muito mais saudvel do que antes, exceo das duas vezes em que tive anemia. Mas confesso que ainda tenho pesadelos sobre aqueles difceis minutos no deserto vermelho.

    - Sei que voc nunca matou uma mosca - me disse, naquele dia, um boi zebu de voz grave -, mas se tornou cmplice da morte de cada um de ns quando ingeriu um pedao, ainda que mnimo, de nossas carnes.

    Eu sabia que meu crime no tinha justificativas. J aos dezenove anos havia lido uma infinidade de livros defendendo o vegetarianismo, e eu prprio havia tentado adot-lo inmeras vezes. S continuava comendo carne

    animal por causa da minha vergonhosa fraqueza. Mesmo assim esbocei uma defesa, embora mal fundamentada:

    - A-admito m-minha c-culpa. E justifiquei meu pssimo hbito explicando que,

    desde criana, mame misturava carne na papinha.

  • 24

    Depois falei do meu esforo no sentido de me tornar vegetariano.

    - T-tanto v-verdade q-que tem q-quatro meses que eu s-s c-como frango...

    - Ah! Ento voc? Gritou uma voz vinda do alto, segundos antes de eu ser atacado por um exrcito de galinceos voadores.

    12 - Viagem pelo arco-ris Os bicos de milhares de aves me espetavam, como

    pequenos punhais, enquanto eu corria numa fuga cega. J no estava mais no deserto vermelho. O

    cenrio foi subitamente tomado por uma vegetao de um verde vvido e um imenso e imponente arco-ris brotava do cho e cruzava o cu.

    Me aproximei do colorido feixe de luz e pude

    perceber que ele era slido. Quando pisei numa das faixas do arco-ris, os frangos voadores pararam no ar, interrompendo a perseguio. Subi com dificuldade a primeira metade do arco, at atingir o cume, para em seguida deslizar a segunda metade, rumo ao cho. Em alta velocidade, mergulhei numa superfcie lquida, ao trmino da trajetria. Lutei para voltar tona, mas no conseguia. Exausto e sem flego, perdi completamente os sentidos.

    Era o trmino de minha viagem. Quando abri os olhos a primeira coisa que vi foi o

    lindo rosto de Bia, me observando com uma expresso aflita enquanto acariciava meu rosto. Tentei me levantar, mas meus msculos pareciam moles demais para

    sustentar o peso do corpo. Senti uma dor aguda na cabea e uma nusea

    insuportvel. Estava vestido com uma cala que no era minha, beira do riacho.Velho Henry sorria, ao lado de Bia, como se estivesse diante de um garoto travesso.

  • 25

    - Oh, boy! Que viagem... Voc escorregou pela cachoeira e teria se afogado, se Bia e eu no estivssemos ao seu lado.

    Voltei cabana, amparado por Henry e Bia. No

    caminho eles me revelaram que passei dois dias completos sob o efeito do ch. Fui envolto num cobertor aconchegante. Minha amada contou que ficou apenas doze horas fora de si, embora tivesse tomado a mesma dose de ch que eu.

    - que voc no bebe, no fuma, nem nada... Sou mais forte.

    Bia disse isso, sorrindo e foi at a cozinha improvisada no fundo da cabana preparar um lanche para mim. Aproveitei sua rpida ausncia e perguntei a Henry se eu tinha feito alguma coisa de condenvel. O velho me contou o caso da geladeira, mas me tranquilizou, dizendo que nesta etapa do transe Bia

    tambm estava desacordada e ele teve tempo de me vestir antes que ela notasse qualquer coisa de estranho.

    - Depois voc dormiu e s foi acordar hoje. Foi quando voc saiu correndo mata adentro e Bia e eu fomos atrs. Perguntei se tudo o que se passou comigo foi real ou apenas uma alucinao.

    - Foi tudo real - disse o velho -, no tenha dvidas. S que esta realidade se processou numa outra dimenso, muito alm desta onde vivem nossos perecveis corpos materiais.

    Meu corao disparou de felicidade. "Ento eu realmente fiz amor com Bia", pensei, eufrico. E a geladeira s existiu aqui, no mundo grosseiro, onde o maya, a grande iluso, impera e obstrui nossos sentidos.

    Bia voltou, com po e leite quente. O velho Henry saiu, para se ocupar de suas atividades dirias. Devorei a comida, enquanto minha companheira apenas me observava, com um sorriso maternal. Envolvi suas duas mos com as minhas. Tomado por uma coragem que nem eu mesmo reconhecia em mim, perguntei se ela se

  • 26

    recordava de alguma coisa especial que tivesse acontecido durante sua viagem.

    "Sim", ela me respondeu, com um suspiro profundo e um sorriso tmido, como se estivesse

    visualizando mentalmente a experincia. Depois completou, num tom solene:

    - Fiquei doze horas assistindo a um show do Led Zeppelin!

    13 - Viagem para So Paulo Estava com a cabea apoiada em uma das mos,

    enquanto, com a outra, fazia o canudinho percorrer todo o copo de suco de laranja em movimentos giratrios.

    - No est com fome? - perguntou Bia. Esbocei um sorriso forado e respondi que no.

    Ela voltou a se preocupar com seu enorme sanduiche,

    sem perceber que eu, o companheiro de viagem sentado ao seu lado naquele posto de gasolina perto de Uberaba, estava com o corao em frangalhos.

    Em rpidos minutos analisei toda a minha histria com Bia. Pensava na desagradvel cena da priso, culpando-a, como que para diminuir um pouco do impacto positivo que ela me causava. Mas no conseguia me enganar. Estava decepcionado por Bia no se lembrar de nosso encontro no plano sutil, quando fizemos amor, e isto era tudo.

    Me sentia pequeno, frgil demais para ousar possuir o amor daquela bela mulher, muito mais evoluda e pura do que eu. E o pior que, por algum motivo, sabia no meu ntimo que aqueles bons tempos ao seu lado no

    seriam eternos. S no imaginava que iramos nos despedir to cedo.

    O velho Henry havia sido fantstico em todos os momentos de nossa estadia em sua casa. Lavou nossas roupas enquanto viajvamos sob o efeito do ch,

  • 27

    preparou um belo almoo de despedida e nos levou em seu jeep at a cidade mais prxima de sua cabana.

    Bia e eu pegamos carona em um caminho, at o

    posto. Depois do lanche, nos aproximamos das bombas de abastecimento e ela me revelou seu plano.

    - Vamos tentar conseguir um carro que nos leve at So Paulo de uma vez, assim a gente ganha tempo.

    Ento ela passou a abordar, com um sorriso largo, todos os motoristas que paravam no posto, sempre contando uma histria parecida:

    - Oi! O carro em que eu viajava com meu irmo estragou e tivemos que deix-lo em Uberaba. Agora a gente est tentando dar um jeito de chegar rpido a So Paulo, porque amanh cedo acontece a missa de stimo dia da vov... "Sem dvida Bia uma atriz", pensei. Minutos depois estvamos num belo carro do ano,

    dirigido por um senhor de meia-idade ridiculamente vestido com tnis e camisetas de adolescente. Ele mascava chiclete de boca aberta e escondia os olhos por trs de um enorme culos espelhado. Me antipatizei de imediato com o homem. Principalmente porque, enquanto eu permanecia a viagem inteira no banco traseiro, recolhido mudez imposta pela vergonha da gagueira, Bia gargalhava e conversava sem parar, ao lado dele.

    Ele era diretor artstico da maior emissora de televiso do Pas. Esteve checando cenrios para as locaes de um seriado, no norte de Minas. Agora faria uma rpida passagem por So Paulo, para tratar de negcios, e seguiria no dia seguinte para o Rio. Os olhos de Bia se iluminavam a medida que ela ouvia o homem.

    - Que coincidncia... Eu sou atriz! - No brinca! E onde voc j atuou? - Bem, fiz pouca coisa... alguns trabalhos na

    faculdade, bem amadores. Recentemente participei de uma montagem experimental reunindo textos de Kafka e Monteiro Lobato.

  • 28

    A conversa continuou, num nimo proporcionalmente inverso ao meu. Mais ou menos quando passamos por Limeira, Bia e o diretor j estavam, inclusive, trocando piadas. Ela aproveitou o clima de

    intimidade para desmentir a histria da missa de stimo dia.

    Confessou que no ramos irmos e ainda teve coragem de contar detalhes sobre a nossa trajetria, de Alto Paraso at aquele momento.

    - Pxa... Voc atriz mesmo... - disse ele, e ambos riram muito. Mas eu ainda mantinha o auto-controle, mesmo encharcado de cimes e inveja. Repetia um mantra tranquilizante, mentalmente, procurando no ouvir o que a dupla dizia. Teria conseguido me abstrair daquela situao dolorosa, se o dramtico desfecho no tivesse vindo to rpido.

    - Voc muito bonita, desinibida... No quer aproveitar a carona e ir at o Rio comigo, pra fazer uns testes?

    - Uau! Claro! - gritou Bia, dando pulinhos no banco do carro e batendo palmas, enquanto eu desmaiava.

    14 - Chegamos! - Ei! Acorda! Chegamos! Abri os olhos e percebi, para meu terror, que

    tudo o que eu vi e ouvi antes de perder os sentidos era realidade. Estava ainda no banco traseiro do carro, que se encontrava estacionado bem na porta da minha casa.

    Depois de me acordar Bia sorriu e brincou comigo. - Que carona, hein? Na portinha! - Minha amada

    estava radiante. Me contou que, enquanto eu dormia, ela havia recebido um convite irresistvel, que poderia transformar sua vida. - Mas agora eu tenho que correr. Preciso arrumar um monte de coisas, porque viajo

  • 29

    amanh para o Rio com o Ismael. Assim que eu voltar te ligo. Te cuida, t? - disse, me acariciando o rosto.

    Desci do carro sem pronunciar uma s palavra. Acenei, montando a expresso facial mais agradvel que

    me foi possvel. Ainda ouvi o diretor fazendo comentrios com Bia sobre o quanto eu era calado, antes do veculo desaparecer, virando a esquina.

    Papai e mame me cercaram, to logo perceberam a porta se abrindo. Era uma manh de domingo. Ouvi os sermes de praxe, sobre meu distanciamento da famlia, meu desinteresse pelos estudos, meu envolvimento com gurus esquisitos e bobagens paranormais.

    Papai repetiu que trabalhou toda a sua vida para deixar alguma coisa para mim e minha nica irm. Lamentou que ela tivesse se casado com um rapaz sem ambies e disse que se eu no me preparasse para

    assumir o patrimnio da famlia provavelmente ningum o faria. Prestei ateno, me esforando para parecer interessado nestas pequenas questes terrenas. Fiz as promessas apaziguadoras de sempre e me tranquei no quarto, desejando como nunca ser uma alma livre.

    Sem corpo. Sem dor. Sem a priso do amor carnal.

    Dias depois Bia me ligou, do Rio. Disse que tinha passado no teste, que estrearia na televiso com um pequeno papel na prxima novela das seis. Mergulhei como nunca na leitura esotrica e na prtica da ioga.

    Frequentei os primeiros meses do curso sobre elementais, na escola de gnose. Mas no conseguia me concentrar, j que tudo l me lembrava Bia. Abandonei

    as aulas. O vestibular da USP chegou, mas eu no tinha estudado. Tentei fazer as provas sob inspirao de espritos de luz, confiante de que eles iriam me ajudar a marcar as respostas corretas. "Por certo a aprovao no fazia parte do plano krmico traado para minha vida", pensei, quando vi que meu nome no estava na lista.

  • 30

    Era uma tarde cinzenta, dois dias depois da divulgao dos aprovados no vestibular. Estava sentado numa praa pblica, perto de casa, pensando no fracasso completo desta minha encarnao nestes seus primeiros

    vinte anos. Sofria pela falta de Bia e pelas decepes que vinha proporcionando aos meus pais. Mas sofria, principalmente, pelo vazio espiritual. Pelo insucesso de minhas buscas sinceras, pelo fato de que quanto mais eu avanava em meus estudos esotricos mais me sentia ignorante e distante de Deus.

    Orei com fervor sincero, pedindo um sinal, uma estrela que guiasse meu caminho, como a de Belm. Nem bem havia terminado, um rapaz pouco mais velho do que eu se aproximou e me ofereceu um livro.

    - Boa tarde. Eu sou estudante de teologia. Comprando este livro voc ajuda na manuteno de minha escola. Paguei o moo, com uma nota maior que o

    valor pedido, e dispensei o troco. Ele se afastou agradecido, enquanto eu lia o ttulo da obra: "Voc Pode Ganhar Uma Vida Nova".

    Meu Deus, era tudo o que eu queria... 15 - Domingo na chcara As lgrimas desciam pelo meu rosto at ensopar a

    gola da camisa quando terminei de ler a ltima pgina daquela bela obra. Jamais meus olhos haviam pousado sobre palavras mais sensveis, mais sinceras e mais profundas, reunidas num s volume.

    Fechei o livro, confortado. No me sentia to bem desde os bons tempos com Bia. Precisava conhecer mais

    sobre aquela maravilhosa maneira de entender o mundo e as coisas, compilada na pequena publicao, por um homem que se identificava singelamente como Bispo Mateus. Na contracapa, uma pequena nota dizia: "Este livro foi editado nas grficas do Centro Evanglico Radical. Se voc quiser conhecer um pouco mais sobre

  • 31

    nossos trabalhos, visite-nos aos domingos, a partir das nove horas da manh. Cantaremos juntos, leremos e refletiremos sobre o pensamento do Bispo Mateus e terminaremos a manh com uma deliciosa refeio

    vegetariana". s sete e trinta de domingo eu j estava sentado

    diante da entrada principal da chcara onde funcionava o Centro, esperando ansiosamente a abertura dos portes.

    - Voc enlouqueceu de vez! A voz do meu pai era um misto de susto e raiva

    quando eu lhe comuniquei, j de mala na mo, que estava partindo para viver no Centro Evanglico Radical. Mame apenas chorava baixinho, sentada no sof. Eu me sentia constrangido, mas no fundo estava feliz. Disse a eles que estava partindo em busca de minha verdadeira realizao, e que no havia qualquer motivo para sofrimento. Expliquei carinhosamente que alguns

    homens nascem com uma misso transcendental. Que eu, por exemplo, jamais me adaptaria a uma vida comum, voltada para os pequenos problemas mundanos. Estava embriagado pela torrente de amor e paz celestial contida em cada simples palavra nas interpretaes bblicas de Bispo Mateus. Tinha certeza de que seria ele, finalmente, o meu lder espiritual, o homem que me guiaria aos braos de Deus. Me agarrei a seus ensinamentos como um nufrago a uma tbua (Ih, falei de novo...).

    O domingo na chcara foi ainda melhor do que eu esperava. Um clima de alegria fraternal tomava conta daqueles pouco mais de cem rapazes. Era como se eles estivessem sugando cada mnima poro do prazer

    proporcionado pelo dom da vida. Aprendi lindas canes de louvor e, claro, conheci os ideais e o sistema de funcionamento da pequena irmandade. No precisei de mais que dois dias para tomar a deciso de me juntar, definitivamente, a eles. E em breve j estava plenamente adaptado rotina no Centro.

  • 32

    Entrei no grupo como "Discpulo Z", que correspondia ao mais baixo grau na hierarquia da comunidade. Acordava s cinco horas, fazia trinta minutos de leituras, lavava os banheiros e as oito da

    manh um carro me levava at o centro da cidade, onde eu ficava vendendo livros at o entardecer. s seis da tarde, j de volta chcara, participvamos todos de um culto. Em seguida o coordenador do Centro nos dava aulas de teologia, dentro da viso muito pessoal desenvolvida pelo Bispo Mateus a respeito das escrituras.

    Depois das aulas, enquanto os discpulos hierarquicamente mais adiantados iam dormir, eu e mais dois ou trs rapazes recm admitidos ainda amos para a cozinha, adiantar o preparo das refeies que seriam servidas no dia seguinte. s vinte e trs horas, mais ou menos, desmaiava no andar de baixo de um beliche, para repetir tudo no dia seguinte.

    A nica variao acontecia aos domingos, quando recebamos visitas. Neste dia dormamos at as sete, no tnhamos que vender nada nem fazer faxina. No toa que passvamos aos visitantes aquela impresso de uma infinita alegria fraternal. Aos domingos sugvamos cada mnima poro do prazer proporcionado pelo dom da vida.

    16 - Os problemas comearam a aparecer Estava morando h duas semanas no Centro

    quando os primeiros problemas comearam a aparecer. Muito acertadamente, a comunidade adotava o princpio de que cada discpulo tinha que pagar o seu po com o

    suor do prprio rosto. Um trabalho que se constituia nas tarefas internas e, claro, na venda de livros, que garantia a compra dos gneros alimentcios e sustentava financeiramente os grandes projetos evanglicos e sociais de nosso mentor e lder supremo, o Bispo Mateus.

  • 33

    Nunca me faltou perseverana, humildade e disposio para os trabalhos internos. Tanto que era eu, sem dvida, quem arcava com a parte mais pesada das tarefas. Mas, em contrapartida, como vendedor minha

    performance era um fracasso. Jamais a gagueira e minha natural timidez se mostraram inimigos to ferozes de minha busca pela iluminao.

    Passava oito horas, diariamente, plantado numa das esquinas da avenida Ipiranga, tentando, em vo, prender a ateno dos transeuntes e dos motoristas que paravam no sinal fechado. - M-m-mo... Dizia, eu. E antes que completasse a palavra "moo", ou "por favor" ou "senhorita", o cliente em potencial j estava dois ou trs quarteires frente. Em quinze dias s havia conseguido vender um livro. E assim mesmo para uma senhora apressada, que pensou estar ajudando uma clnica de fonoterapia.

    Comecei a perceber a crescente impacincia de nosso coordenador de assuntos financeiros, pastor Lucas, a cada dia que eu voltava, estafado, mas sem nenhum tosto no bolso e com os mesmos exemplares do livro debaixo do brao.

    - Lamento muito, discpulo... Mas se voc no cumprir a cota de trinta exemplares, at dia 30, sua permanncia entre ns no ser possvel - me disse Lucas um dia.

    Depois, para meu desespero, contou que o Bispo Mateus, em pessoa, estaria no Centro no final do ms para conferir o desempenho dos alunos, conversar com eles e conferir promoes na escala hierrquica.

    - Ele um homem justo e bom. No pode

    permitir que voc viva entre ns custa do trabalho de seus colegas. A voz de Lucas era grave, acusatria. Tentei rebater seus argumentos, com dificuldade, afirmando que compensaria meu pssimo desempenho nas vendas com o dobro de trabalho interno, na chcara do Centro Evanglico Radical.

  • 34

    - No posso fazer nada - respondeu o pastor - v se queixar para o Bispo.

    Era uma sexta-feira, ltimo dia de vendas antes do acerto mensal com o Bispo Mateus. E eu s havia

    vendido mais um nico livro, para um senhor que comprou porque queria encurtar a conversa com medo de perder seu nibus. Fatalmente seria expulso da comunidade. Perderia o nico alento para minha alma atormentada. Decepcionaria meu mestre j no meu primeiro contato pessoal com ele.

    ramos todos pequenas peas num todo. O trabalho de cada um garantia ao Bispo o dinheiro necessrio para a manuteno de nossa suntuosa matriz na avenida Paulista. Permitia que ele comprasse estaes de rdio e televiso com o objetivo nico de divulgar a palavra de Deus e as prprias idias do genial Bispo. No, eu no poderia voltar ao Centro e decepcion-lo.

    Sob um sol causticante, ao meio-dia, meditei sobre o meu fracasso em absolutamente todas as correntes religiosas que havia seguido. Percebi que, sem dvidas, o Criador no queria que eu O conhecesse, que desvendasse os vus do mistrio que separam Terra e Paraso.

    Senti que uma casca de dura pedra envolvia meu corao. Revoltei-me contra a indiferena do Cristo, e de Buda, e de Krishna, e do meu prprio anjo da guarda, diante da dor causada pelo insucesso de minha busca sincera. "Serei o mais materialista dos mortais", jurei. "Voltarei casa de meu pai, como um filho prdigo que esbanjou toda a riqueza de seu prprio esprito. Vou faculdade, vou me tornar um homem de negcios."

    Havia perdido Bia, meu nico amor. Havia perdido a f. Agora iria conquistar o mundo terreno.

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    17 - Passei no vestibular Desembarquei em So Paulo, voltando da viagem

    mstica ao Himalaia, narrada no incio deste relato, e vi o

    belo sorriso de Bia estampado na capa de uma revista de fofocas. A publicao estava displiscentemente enfiada num carrinho de bagagem, arrastado pelo passageiro que seguia minha frente.

    Durante o curto espao de tempo entre a retirada das malas e a caminhada at a porta do aeroporto, o sorriso de papel me acompanhou, esttico, com aqueles olhos que eu tanto conhecia fixos em mim.

    "Beatriz Christianna a estrela de "Cruel Traio"", dizia a manchete. Aos 35 anos, Bia era um dos grandes nomes do teatro e da televiso. E no havia perdido nem um milsimo de sua beleza. Estava ainda mais atraente, madura, com qualquer eventual marca do

    tempo estrategicamente apagada pela computao grfica e uma maquiagem generosa.

    Meu motorista me esperava, e veio ao meu encontro pouco antes que eu atingisse a calada, tirando as malas de minhas mos. Pareceu sinceramente preocupado quando perguntou porque eu estava mancando. Poderia ter lhe explicado que eram as bolhas adquiridas durante a escalada do monte, mas preferi dizer que foi uma topada.

    J em minha bela casa em Pinheiros, tomei um banho relaxante, vesti uma tnica branca e me coloquei em posio de ltus, sob a pirmide de cristal instalada no jardim de inverno. Minha mente viajou no tempo e me levou queles anos cruciais que sucederam a sada do

    Centro Evanglico Radical. claro que a inteno de abandonar minha

    busca espiritual era fruto de uma grave crise existencial. Mas durou apenas o tempo suficiente para que eu completasse meus estudos acadmicos e me tornasse financeiramente muito bem-sucedido. Hoje, cerca de doze

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    anos depois, jamais pensaria em deixar de me dedicar aos exerccios dirios de meditao e aos rgidos hbitos que, fatalmente, me conduziro iluminao.

    No bebo, no fumo, no como carne. S fao

    sexo por amor, pratico a caridade e s no medito mais porque a posio de ltus, durante perodos prolongados, me d uma cibra insuportvel na perna esquerda.

    Aos vinte anos eu podia no ter atingido o almejado estado de iluminao espiritual, mas materialmente a vida se tornou um mar de rosas. Passei no vestibular de Administrao pela Favaga, Faculdade Vasco da Gama. Papai se mostrou to grato por minha volta ao lar e sbita dedicao aos estudos que me premiou com um belo automvel do ano. A vida mais telrica e regrada tambm operou transformaes em meu porte fsico. Engordei alguns quilinhos e j no era mais o vara-pau de outros tempos. As espinhas da

    adolescncia finalmente desabitaram meu rosto e s deixaram umas poucas cicatrizes. Nada que no pudesse ser compensado por um guarda-roupa adequado e um corte de cabelo moderno.

    No, eu no era bonito. Mas aos vinte e dois, vinte e trs anos, comecei a recuperar a auto-estima. Na faculdade conheci muita gente legal, embora espiritualmente vazia. Saamos juntos, aprendi a beber chope. Uma vez, com os sentidos levemente entorpecidos pela bebida, cheguei a beijar uma mulher, rompendo um dos muitos tabus que eu ainda guardava com relao ao sexo oposto.

    " fcil beijar na boca", pensei. E no parei mais. Frequentava boates, "ficava" com muitas garotas. S no

    havia reunido, ainda, coragem suficiente para fazer sexo. "Isto eu s farei por amor", jurei para mim mesmo. E, infelizmente, meu amor ainda era Bia.

    Tirando o vazio que sentia no escuro do meu quarto, quando os dias excessivamente mundanos terminavam e a imagem de Bia ocupava todos os meus

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    sentidos, poderia me considerar uma pessoa feliz. Talvez fosse mais fcil esquec-la, se sua voz, seu rosto e seu corpo no estivessem, diariamente, nas novelas de TV.

    Ou se eu no tivesse comprado a "Playboy" que

    publicou um ensaio fotogrfico com ela. Mas eu era forte o bastante para no permitir que

    a desiluso amorosa fizesse de mim uma pessoa amarga e arredia. Era sobre isso que eu estava conversando com um antigo colega da escola de gnose, que reencontrei na Faculdade.

    - meu, voc mudou pacas. T outro cara. - disse ele - Acho que no sobrou mais nada em voc daquele garoto magrelo, cheio de espinhas, tmido e gago que eu conheci no passado.

    - M-m-ma-mais ou m-menos - respondi, sem falsa modstia.

    18 - Baile de formatura Durante os primeiros anos de faculdade ainda

    mantive contato com Bia. Ela me ligava, contando as novidades sobre sua ascenso profissional, ou quando chegava o Natal ou o meu aniversrio. Fui deixando de responder s cartas e me mostrando mais frio medida que lia nas revistas detalhes sobre suas muitas conquistas amorosas.

    O cime me matava. Ela percebeu meu distanciamento mas nunca

    soube a causa. "Vivemos mundos diferentes", pensava. Ela uma estrela. E eu? apenas um estudante gago, que no conseguiu sequer realizar seu mais nobre sonho: a

    revelao espiritual. Naquele dia que antecedia o meu baile de

    formatura pensava mais uma vez em Bia e me lembrava do fato de que, h pelo menos um ano, no mantnhamos mais qualquer tipo de contato. Liguei a televiso, sem

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    sono. Sintonizei um programa noturno de entrevistas. - m-m-merda - gritei. A entrevistada era Bia.

    - Meu grande amor? Por um instante o sorriso natural da atriz Beatriz

    Cristiana desapareceu, para dar lugar a um outro, mantido graas tcnica de sua profisso.

    - Bem, eu amei muito um cara, quando estava apenas comeando minha carreira, no teatro amador. Era a criatura mais pura e mais sincera que eu j conheci. Fiquei gelado. Com os olhos vidrados encarando a tela colorida, rezando para que a apresentadora se aprofundasse no assunto. Numa das raras respostas divinas s minhas preces, ela perguntou:

    - E quem esse homem to especial, que conquistou o corao de uma das mulheres mais cobiadas do pas?

    - Obrigada pelo elogio... - disse Bia, num sorriso

    sem graa - Bom, tem um tempinho que a gente no se fala. Nem sei o que ele anda fazendo. Acho que se formou em Administrao, e ajuda o pai a cuidar de uma rede de supermercados. Era s um garoto, quando a gente se conheceu. Mas tinha uma beleza interior que eu nunca v em mais ningum.

    Uma lgrima solitria comeou a percorrer os sulcos das velhas espinhas em minha face esquerda, enquanto meu nico e grande amor prosseguia.

    - Nunca chegamos a namorar, nem nada. Bem que eu dava bola, mas ele parecia muito acima desse amor carnal, de homem e mulher. Era um esprito de luz encarnado...

    - Ou ento era muito bobo, n? - ironizou a

    apresentadora, arrancado risos da platia. Bia apenas sorriu, sem graa, antes de

    continuar. - Mas isso passado. J estou noutra,

    namorando um cara super legal, me dedicando

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    carreira... Inclusive estamos ensaiando uma pea genial, sobre um texto de Beckett que...

    Enquanto Bia mudava de assunto eu era tomado por um desespero pattico, dramtico, como aqueles das

    peras. "Vai ser azarado assim no inferno", pensei, enquanto a imagem do Pato Donald vermelhinho que eu havia visto durante a experincia com ch, na cabana do velho Henry, gargalhava em meu delrio de dor, com as mos na cintura, repetindo sarcasticamente:

    - No falei? No falei? 19 - A vida continua Eu podia at entender que Deus tivesse seus

    motivos para se afastar de mim. Mas passou a ser inaceitvel o fato de que ele tenha me separado de Bia, meu nico e genuno grande amor.

    Era sobre isto que eu pensava, comodamente

    instalado em meu belo escritrio, dois anos depois da formatura. Havia me agarrado ao trabalho como um nufrago a uma tbua (lamento, mas no consegui imaginar uma frase melhor), e graas s minhas boas idias e talento administrativo papai havia me dado a coordenao de todo o brao norte-nordeste de nossa rede de supermercados.

    Havia me tornado um homem amargo, materialista.

    Minha slida base crist no permitia, claro, que eu chegasse ao exagero de explorar os funcionrios, roubar os clientes ou fraudar o imposto de renda. Mas

    cheguei a praticar atos vergonhosos. Escondi mercadoria em poca de congelamento de preos. Forneci saquinhos plsticos baratos, cujas alas sempre arrebentavam antes do cliente guardar as compras no carro. Escrevi "oferta!" em cima de produtos que estavam com o preo de mercado.

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    Mas mesmo durante esta fase de minha vida, a mais vazia espiritualmente, minha vasta bagagem esotrica acabava se manifestando nos pequenos atos cotidianos. Estava magoado com Deus, mas nunca deixei

    de am-lo. Tanto verdade que continuei no comendo carne, interrompi meu flerte de estudante com as bebidas alcolicas e cortei relacionamentos superficiais com as garotas da faculdade.

    Para completar, apliquei muito de minha experincia mstica na prpria atividade profissional: todos os dias, de manh, os empregados entoavam por quinze minutos o "Aum", o verbo primordial da criao, para que o trabalho flusse harmoniosamente.

    Substitu a carne no refeitrio por bifes de soja e troquei o vermelho do uniforme adotado pela empresa pelo branco, cor mais apropriada para se captar energia csmica. Os sindicatos protestaram, especialmente pelo

    corte da carne. Mas no me importei. Um dia, no supremo acerto de contas, eles iriam

    me agradecer. Costumo dizer que a espiritualidade como o gs

    preso a um bujo. Se bem canalizada, ela pode alimentar a chama da iluminao. Se sofre vazamentos, pode empestear o ambiente e at matar. Se permanece apenas trancada, sob presso, dentro do bujo-corpo, um dia o recipiente enferruja, apodrece, e o precioso contedo se esvai sem servir ao propsito ao qual se destinava.

    Minha espiritualidade era gs compacto, sob presso, dentro do corpo. A vontade de manifest-la era to grande que cheguei a pensar que iria enlouquecer. Precisava retomar minha busca, encontrar o laxante que

    iria curar a priso de ventre de minha alma. Um dia, sozinho no meu quarto, chorei muito.

    Reconheci minha impotncia diante dos mistrios do universo. Pedi perdo a Deus por ter me afastado dele, por pensar que apenas o trabalho e o mundo material seriam suficientes para me dar alento. Senti uma suave

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    energia acariciando minha cabea, como um afago divino. Estava disposto a recomear a busca, mesmo sem saber bem por onde.

    A resposta viria apenas uma semana depois, em

    Recife, para onde havia viajado com o propsito de participar de uma reunio com gerentes. Almoando com alguns deles, depois da exibio de grficos demonstrativos e cansativos balanos, o gerente da loja de Macei, Antnio Carlos, puxou conversa comigo.

    - Respeito profundamente a dieta e os exerccios esotricos introduzidos na empresa pelo senhor. - disse, com um desagradvel sibilo nos esses em funo de um aparelho ortodentrio - Eu prprio sou um iniciado.

    Respondi que, embora acreditasse na validade das medidas adotadas, estava muito distante de minha busca, em funo de decepes pessoais.

    - A-a-acho q-que pre-preciso de um mi-milagre -

    desabafei. - Acho que eu posso lhe mostrar um - afirmou,

    franzindo a testa. Na mesma tarde estvamos apertando a

    campainha da bela casa do mstico George Valentino, em Olinda. Um homem que vinha despertando a curiosidade de cientistas e esotricos do mundo todo, por sua capacidade de entortar metais e transubstanciar a matria.

    20 - Consulta com o mstico Tivemos que pagar uma quantia considervel pela

    consulta com o mstico. Ele nos recebeu em um escritrio

    ricamente decorado com antiguidades e me impressionou por seu porte altivo, cavanhaque longo e pela estranha protuberncia - como um galo - na regio do terceiro olho.

    - Tenho um dom. - disse ele, comeando a conversa - Embora nem eu mesmo o entenda, um dom

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    um dom e precisa ser usado. Em meu lugar, outro poderia ter se tornado um grande lder religioso. Eu prefiro vender milagres. Convencer as pessoas sobre a existncia de um universo, paralelo e desconhecido, que

    desafia a cincia, com o exemplo vivo do meu poder. Os argumentos do homem me pareceram lgicos. - Recebo cientistas e curiosos de todo o mundo -

    continuou - sempre cobro, e caro, pelas demonstraes de minha fora csmica. Se o mundo tem a tendncia de transformar em atrao circense tudo o que acontece de mgico e misterioso sobre a Terra, que seja eu o dono do meu circo!

    Mal ele disse isto, os objetos em cima de sua mesa comearam a vibrar e pular, numa coreografia ordenada. Fui momentaneamente tomado pelo pnico e me agarrei fortemente cadeira, enquanto George apenas sorria e parecia reger os movimentos macabros dos

    artigos de escritrio, com as mos levantadas. Passados alguns angustiantes segundos, tudo se

    aquietou. O poderoso mstico pediu uma moeda a Antnio Carlos.

    - Serve uma ficha telefnica? Agora s se usa carto mesmo... - perguntou meu assustado companheiro, com seu desagradvel sibilar.

    George pegou a ficha e fechou a mo, escondendo-a. - O homem ainda no aprendeu que o orgnico e o inorgnico, uma pedra e um homem, a gua e uma planta, enfim, tudo o que existe sobre a terra pura energia. Ele abriu subitamente a mo, e uma borboleta amarela saiu voando em crculos, enquanto observvamos que a ficha telefnica havia desaparecido.

    Visivelmente desequilibrado, Antnio Carlos, que j havia ouvido falar muito sobre George, mas no o conhecia pessoalmente, comeou a rezar suando frio, como se estivesse frente a frente com o demnio. O mstico parecia se divertir com a reao do gerente. Mas

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    sabia que seu "show" no estaria terminado enquanto ele tambm no me convencesse.

    Em anos de busca, conhecia j naquela poca inmeros charlates e ilusionistas que exploravam a boa

    f dos incautos com o propsito de enriquecer. Ningum, mais do que eu, queria se convencer da veracidade das demonstraes de George. Seria um sinal inequvoco da existncia de outros formas ocultas de cincia. Seria a prova de que a metafsica e a parapsicologia podem se manifestar no mundo material de forma concreta e inquestionvel. Alis, sequer duvidava da existncia deste outro mundo, paralelo. Eu podia senti-lo, dentro do corao, mesmo durante os sete anos que passei afastado da iluminao, dedicando-me apenas a tarefas mundadas. Mas sabia o quanto a comprovao de um milagre seria impoirtante para nutrir minhas foras, para seguir com minha busca, e temia ser ludibriado pelo

    mstico. Por isso lhe solicitei mais uma demonstrao de seus poderes.

    - Q-q-quero ver v-voc entortar u-uma pea d-de metal s-sem toc-la...

    - Saco. Tem sempre um engraadinho pra me pedir isso.- respondeu George, dizendo que o feito exigia grande concentrao. Ele fechou os olhos e passou a respirar ritmada e profundamente. Depois comeou a gritar, repetidamente, o que me pareceu uma palavra mgica.

    - I! I! I! O corpo do mstico se contorcia. Ele batia

    repetidamente a testa na mesa, mas nenhum dos objetos metlicos na sala mudava sua forma original.

    "Agora entendo o galo na regio do terceiro olho", pensei, prestando ateno em cada gesto de George.

    Foi quando Antnio Carlos soltou um berro de dor, alto e agoniado. Pude ver seus dentes se deslocando na arcada, pressionados pelo aparelho ortodentrio de

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    metal que se contorcia, freneticamente, no interior da boca.

    21 - Volta para Recife

    Voltei de Recife com um entusiasmo que no sentia

    desde a adolescncia. A comprovao, em pessoa, dos feitos maravilhosos de George Valentino serviu para me lembrar de que existe, sim, muito mais entre o cu e a Terra do que sonha a nossa v filosofia, como bem escreveu Shakespeare.

    Sentia ainda o vazio da falta de Bia. Mas olhava para dentro de mim e pensava: "Deus, eu sou um homem jovem, saudvel, profissionalmente bem sucedido. Estou transformando minha vida em alguma coisa de til, gerando empregos, difundindo conhecimentos esotricos ancestrais no ambiente de trabalho. Que bela vida, eu

    tenho!" Estava disposto a mudar completamente minha

    atitude interna. Percorrer novos caminhos - so tantos! - que me levassem ao autoconhecimento e percepo da Divindade Suprema. Perder a virgindade, por exemplo, porque j estava matando cachorro a grito. Esquecer Bia, repetia para mim mesmo, embora no muito convicto.

    Me sentia de volta mesma encruzilhada em que me encontrava no comeo de minha busca espiritual. Agora, dez anos mais velho, muito mais apto a fazer a escolha de um caminho melhor. Mas so tantas as estradas..."Quem dera eu tivesse um mapa rodovirio que me conduzisse ao paraso", meditei.

    - E-e-espe-pera a... - Falei para mim mesmo,

    colocando a mo na testa numa bela manh em meu escritrio. "A experincia milenar de todos os homens santos que pisaram a Terra est nos livros. Tudo o que eu preciso retomar minhas leituras e descobrir, entre tantas correntes, aquela que falar mais alto ao meu corao."

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    Pensei em reler as obras do Bispo Mateus, mas elas iriam invocar um tempo muito triste de minha vida. Alm do mais, o que eu precisava era de textos novos, que exercessem sobre mim algum impacto revelador. Em

    casa, durante o banho, fiquei imaginando onde poderia encontrar uma biblioteca esotrica rica o bastante para saciar minha alma sedenta de novos conhecimentos. Repentinamente a imagem de velhos volumes de capa dura, em lnguas diversas, comeou a se formar no fundo da memria. "Sim, eu j vi esta biblioteca. Ela existe. Mas onde?", pensava. A resposta veio rpido:

    - cl-claro! N-na c-cabana do velho Henry! Eu estava mesmo precisando de umas frias

    quando resolvi voltar ao stio onde Henry vivia e passar alguns dias pesquisando seus livros. Rezava para que ele ainda estivesse vivo e no tivesse se mudado. Afinal, oito anos haviam se passado desde o nosso encontro.

    Meus temores se dissiparam quando o carro entrou na propriedade do velho e pude v-lo rachando lenha ao lado da cabana, que continuava exatamente como eu me lembrava.

    Henry largou o machado e veio em minha direo, apertando os olhos cansados. Desci do veculo e caminhei ao seu encontro, reparando que seus cabelos e sua barba se tingiram de um branco ainda mais vivo. Ele estava mais magro, seus passos eram curtos e o tempo havia esculpido novas rugas no seu rosto.

    - Quem voc? - perguntou, a pouco mais de trinta centmetros de mim. "Como fui tolo", pensei." claro que o velho no vai se lembrar de algum que ele s viu durante dois dias, anos atrs. Henry est cansado e

    eu mudei muito fisicamente". Mesmo assim, tentaria reavivar sua memria.

    No cogitava a possibilidade de voltar sem ter acesso sua incrvel biblioteca.

    - E-e-eu s-sou...

  • 46

    - Yeah! O amigo gago da Bia! - gritou, me envolvendo num abrao quente.

  • 47

    22 - Visita ao velho Henry O velho Henry se mostrou to receptivo quanto

    durante minha primeira visita. Disse que aperfeioou a

    frmula do ch, que condensou os elementos alucingenos num p sem gosto nem cor, que poderia ser adicionado a um copo de gua sem deixar qualquer sinal visvel.

    Notei que ele, provavelmente, j beirava os oitenta anos, e que estava muito mais fraco do que antes. Mesmo assim, seus olhinhos azuis brilhavam e ele se enchia de energia quando narrava suas pesquisas em magia e alquimia. Expliquei-lhe a razo de minha visita. Henry colocou sua biblioteca minha disposio. A conversa, como no poderia deixar de ser, acabou caindo em Bia.

    - Ela me visita sempre, at hoje. - disse o velho. -

    E sempre fala muito sobre voc. Baixei os olhos, sem graa, e mudei de assunto,

    pedindo informaes sobre um dos exemplares mais belos em sua estante: uma edio alem, do comeo do sculo, sobre fadas e gnomos.

    - Os elementais existem, man. - afirmou Henry - Eles so pequenos seres luminosos, profundamente ligados terra, s plantas e aos animais.

    - A-a g-gente p-pode v-v-los? - Yeah! claro! Mas para isso preciso querer e

    saber olhar as fadas e gnomos. Fiquei fascinado pela possibilidade de que eu

    prprio pudesse ver um elemental. Perguntei a Henry sobre a tcnica necessria.

    - Well, a primeira coisa que voc precisa se lembrar que eles no so seres encarnados como ns. Os elementais so puros e podem ver o amor no corao dos homens. Eles nunca aparecem para quem no ama a natureza.

    - E-eles n-no t-tm c-corpos?

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    - No um corpo como o nosso. Fadas e gnomos podem se materializar, se relacionar com pessoas, plantas e animais, para depois voltarem sua forma original, etrea e invisvel.

    Estava encantado com aquelas revelaes, e francamente arrependido por no ter prestado mais ateno s aulas sobre elementais que assisti na escola de gnose. Fazia tantas perguntas e demonstrava tanto interesse que o velho e bom Henry se impacientou.

    - Shit, boy. Se voc quer saber tanto sobre os gnomos vamos at o bosque que eu vou lhe mostrar um! Pulei da cadeira num nico impulso, como que se empurrado por uma enorme mola.

    Estvamos caminhando h trinta minutos, a esmo, no meio do bosque que circundava o riacho e a cachoeira. Henry me pediu silncio, pensamentos positivos e um estado mental evocativo com relao aos

    pequeninos seres. Para mim era difcil ver o riacho sem me lembrar do deslumbrante corpo nu de Bia, se banhando naquelas mesmas guas, no esplendor de seus vinte e poucos anos. Mas minha vontade sincera de ver um elemental dava foras para afastar os pensamentos libidinosos.

    "Fadas e gnomos, apaream", repetia mentalmente, concentrado, enquanto andvamos, pisando leve e afastando com cuidado os galhos do caminho. Num rompante o velho Henry me deteve, com sua mo no meu peito. Fechou os olhos, respirou fundo e me disse, baixinho.

    - Eles esto aqui, j se materializaram - disse ele -, posso senti-los.

    Meu corao disparou. O velho continuou andando, e eu tambm, fazendo menos barulho ainda. S ouvamos o farfalhar das folhas sob nossos sapatos. Eu observava atentamente o cu, na esperana de ver uma fada voadora. Foi quando ouvi, sob o meu p, um

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    gritinho agudo e o estampido seco de ossos se quebrando.

    - Ih... p-pisei num gnomo! - gritei, apavorado.

    23 - Decepo S no me senti mais decepcionado com o desfecho

    de nosso passeio pelo bosque porque o fracasso, em se tratando de minhas aventuras esotricas, no era nenhuma novidade.

    Senti o corpinho macio ainda se contraindo com vida, sob meu p esquerdo. Dei um passo para trs, devagar, sem coragem de olhar para baixo. Velho Henry se ajoelhou, enfiou as mos no mato e, para meu alvio, esclareceu que eu havia pisado num pequeno roedor do cerrado.

    - Shit, no era um gnomo, graas a Deus. Mas

    voc, sem querer, matou um animalzinho do bosque e os elementais devem ter ficado muito irritados. Acho melhor voltarmos para a cabana.

    Passamos toda a tarde conversando, Henry e eu. Estava cada vez mais fascinado com o ilimitado conhecimento esotrico do velho. Ele me falava sobre o lado oculto das coisas, o mistrio que existe por trs de cada objeto, ato ou ser vivo, por menores que sejam.

    - A riqueza espiritual no um tesouro enterrado em algum lugar, a ser descoberto de uma nica vez. Ela est escondida em cada pequena manifestao do Criador na Terra. Eu ouvia, encantado.

    - Existem nove milhes de toneladas de ouro dissolvido nas guas dos oceanos. mais do que o

    homem j retirou das minas em toda a histria. No entanto a gua do mar no custa nada e os banhistas mijam nela. - disse, Henry com uma expresso severa.

    Ele era um mago, me confessou. Dotado de poderes que os homens comuns no tm, conquistados custa de muita disciplina e estudos.

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    - V-voc s-sabe f-fazer ventar? - perguntei. - Well, s quando eu tomo sopa de repolho -

    brincou, me desconcertando. Depois completou, srio: - Cada homem tem o dom de influir, com sua

    energia interior, no desenrolar do drama terrestre. O poder da magia nada mais do que o domnio sobre essa energia.

    Ento Henry me disse que qualquer um pode transformar seus sonhos em realidade, com um pouco de concentrao e uma dose generosa de amor sincero. No mesmo instante pensei em Bia e no terrvel desencontro que separou nossas vidas.

    "Se verdade o que o velho est me dizendo, como seria maravilhoso poder voltar no tempo. Poder dizer a Bia, s margens do riacho, que ela a nica mulher que amei e amarei em toda a minha vida."

    Balancei a cabea, espantando os pensamentos.

    Sabia que nenhum mortal jamais poderia voltar no tempo e refazer seu caminho, apagando os erros." com a queda que se aprende a levantar. com a perda que se aprende a valorizar cada conquista", disse para mim mesmo, como se estivesse lendo um livro kardecista. "Mas no seria demais desejar que Bia entrasse agora por aquela porta", pensei. Se minha vida merecesse ser iluminada por um mnimo toque de magia, seria bastante poder reencontrar meu nico amor e ter a oportunidade de realizar, enfim, aquele belo romance que o destino no quis ver consumado.

    Mal havia terminado estas reflexes quando algum bateu palmas, trs vezes, do lado de fora da cabana. A claridade do dia revelou a silhueta de um anjo

    de beleza, em contraste com o azul cintilante do cu, assim que o velho Henry abriu a porta. Sorri, tomado pela maior emoo de minha vida, com os olhos marejados de lgrimas e o corao transbordante de agradecimento e devoo ao meu maravilhoso e insondvel Deus.

  • 51

  • 52

    24 - Reencontro com Bia A bolsa de Bia escorregou de seus dedos e se

    escancarou ao tocar o solo, esparramando pela sala uma

    infinidade de pequenos objetos femininos. Ela abriu a boca, de queixo cado, com uma cara de surpresa to expressiva quanto a minha, talvez ainda mais.

    - Cara, mas voc est lindo! - disse, num exagero perdovel: a ltima vez que me viu, meu rosto estava salpicado de pequenas bolhas de pus, qual um cu estrelado. Minhas pernas e braos descarnados eram to sensuais quanto uma antena de televiso. Meu cabelo se dividia de forma aleatria em cachos assimtricos, cada qual apontando para uma direo diferente.

    Era possvel entender a reao de Bia. Quanto a mim, senti o mesmo deslumbramento adolescente que sempre senti diante dela. Aos trinta anos Bia era uma

    mulher no auge de sua beleza. Seu corpo, quase todo visvel sob o vestido curto e apertado, estava ainda mais escultural. Era claro que ela vinha dedicando s suas formas o cuidado que se espera de uma estrela nacionalmente conhecida.

    "Sim, ela uma estrela", pensei, me sentindo um reles micrbio diante de tamanha grandeza. Lamentei minha insignificncia, minha timidez. Depois de orar tanto por aquele encontro acidental, estava quase colocando tudo a perder por pura covardia, puro medo da rejeio. Fiquei plantado na cadeira, sem conseguir me mover.

    "Isso passado. J estou noutra, namorando um cara super legal." As palavras ditas na entrevista de tev,

    h cerca de dois anos, ecoavam na minha cabea como se tivessem sido pronunciadas naquele momento.

    - Ei! No mereo um abrao? - murmurou Bia, com a voz visivelmente embargada pela emoo do encontro. Me atirei em seus braos, estilhaando com os

  • 53

    ps uma embalagem plstica de batom e chutando para o canto da parede as chaves de seu automvel.

    Permanecemos assim por uns trinta segundos, chorando, os dois, convulsivamente.

    - Well, vou l fora mudar a forma das nuvens com o poder da mente. - disse, Henry, mais britnico do que nunca, visivelmente inventando uma desculpa para nos deixar a ss.

    Passamos o resto daquela tarde ensolarada conversando beira do riacho, Bia e eu. Contei-lhe da faculdade, da minha realizao profissional, de minha necessidade recente de retomar meus estudos esotricos, omitindo os aspectos relativos aos meus sentimentos por ela.

    Ao mesmo tempo Bia ia me contando de seus trabalhos, da barra pesada que preciso se enfrentar at atingir a fama. Disse que agora s fazia os papis que

    queria e que comeava a ficar conhecida no exterior graas s telenovelas. Esgotamos os assuntos superficiais em umas poucas horas.

    Ficamos em silncio, olhando a gua, tomados por sbita melancolia.

    - E-eu v-vi a en-entrevista em q-que v-voc falou d-de mim - disse.

    - , realmente eu falei algumas vezes. Bia estava visivelmente sem graa. Depois

    comeou a se justificar. - Sabe, eu pensei que nunca mais ia te ver. Sei

    que no tinha nada a ver falar aquilo, me desculpe. Voc era meu melhor amigo e eu devia ter mantido segredo sobre o que eu realmente sentia mas...

    Toquei-lhe os lbios, suavemente, com as pontas dos dedos, interrompendo-a.

    - E-eu t-tambm t-te a-amava e ainda t-te... t-te...

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    O suor frio outra vez. O tremor. Os sentidos embotados pelo pnico e a lngua enrolada em caracol, como nos meus tempos de adolescente.

    Mas no precisei completar a frase. Uma lgrima

    solitria escorreu pelo olho direito de Bia, antes que ela desenrolasse minha lngua com a sua.

    25 - Fazer amor carnal pela primeira vez A intensidade das carcias foi aumentando, depois

    de nosso primeiro beijo. Um novo calafrio percorreu minha espinha: embora fosse um conhecedor terico profundo sobre o assunto, no tinha qualquer experincia em matria de sexo.

    Achei melhor abrir o jogo com Bia, confessar a ela que havia me guardado, casto e puro na medida do possvel, para o momento mgico que comeava a

    acontecer, ali, na beira do riacho, a poucos metros da casa do velho Henry. Ela se mostrou profundamente lisonjeada e agradecida.

    - Jura? Voc continuou virgem, todo esse tempo... por mim?

    Respondi que sim, com a cabea, encarando as pedras - cada vez menos visveis medida que a noite caa - por vergonha de seus olhos. Ela me envolveu num abrao maternal e comeou a desabotoar, lentamente, a minha camisa.

    - Eu no vou te decepcionar. Ah, no vou no...- murmurou, com os lbios molhados tocando a minha orelha, enquanto aquele meu velho desejo selvagem comeava a crescer.

    Fazer amor carnal pela primeira vez acabou se revelando uma gratificante experincia mstica. No senti descargas eltricas e nem vi luzes envolvendo nossos corpos, como naquela vez em que fiz sexo csmico com Bia sob o efeito do ch. Foi tudo por demais humano, telrico. Muito diferente do que eu imaginava. Descobri

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    que o gostoso no ato era a troca, o rito, o dar e receber prazer. "Claro", me lembrei. "O velho H