o dialogismo entre o currÍculo e os livros...
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O DIALOGISMO ENTRE O CURRÍCULO E OS LIVROS DIDÁTICOS: POR UM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA MENOS EMPAREDADOR DAS
IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS
Isabela Bastos de Carvalho
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro
Rio de Janeiro
Abril de 2016
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ
C331 Carvalho, Isabela Bastos de O dialogismo entre o currículo e os livros didáticos : por um
ensino de língua portuguesa menos emparedador das identidades étnico-raciais / Isabela Bastos de Carvalho.—2016.
155f. : il. (algumas color.) , tab. ; enc. Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2016. Bibliografia : f. 147-155 Orientador : Alexandre de Carvalho Castro 1. Racismo – Brasil. 2. Livros didáticos. 3. Língua portuguesa
(Ensino médio) – Estudo e ensino. 4. Dialogismo (Análise literária). 5. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975. I. Castro, Alexandre de Carvalho (Orient.). II. Título.
CDD 305.800981
O DIALOGISMO ENTRE O CURRÍCULO E OS LIVROS DIDÁTICOS:
POR UM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA MENOS EMPAREDADOR DAS
IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre.
Isabela Bastos de Carvalho
Banca examinadora:
_____________________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro – CEFET/RJ (orientador)
_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Carlos da Silva Borges – CEFET/RJ
_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Luiz Teixeira de Almeida – UFF
_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Bruno Rego Deusdará Rodrigues – UERJ
Suplente
_____________________________________________________________________ Prof. Dra. Maria Cristina Giorgi – CEFET/RJ
Rio de Janeiro Abril de 2016
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação ao meu aluno Théo Dias
Arueira da Silva, representando todos os alunos e
alunas que por minha vida passaram e passarão.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, ao meu marido e amigo Diogo, que foi a pessoa mais
presente, paciente, compreensiva, amorosa e ouvinte durante todo o processo do meu
mestrado. Obrigada por ter cuidado da nossa filha, Marina, razão de toda minha
existência. E obrigada, filha, por ter me motivado a conseguir tudo o que conquistei. Foi
tudo por você, para você! Agradeço, de igual forma, a meus pais, Gilciléa Regina e José
Alberto, a minha sogra, Dejani, e a minhas irmãs, Maria Beatriz e Gisele, por terem me
dado suporte nos momentos em que precisei estudar e elaborar minha dissertação. Sem
o amor e a amizade de vocês nada disso seria possível. Obrigada, família!
Nessa dura jornada, que começou na preparação do projeto e nos estudos dos
textos do edital, e culminará na defesa do mestrado, não posso deixar de mencionar a
professora Dra. Maria José Maia de Miranda. Obrigada por ter me ajudado tanto!
Obrigada por ter me dado as mãos nos primeiros passos do meu caminhar acadêmico.
Obrigada por me ensinar o gênero da escrita acadêmica. Obrigada por me ensinar a dar
aulas melhores. Obrigada por ter me acompanhado no II Congresso Nacional
Africanidades e Brasilidades, na Universidade Federal do Espírito Santo, e por ter me
dado o livro que ganhou no sorteio, sobre Cruz e Sousa, que inspirou toda a minha
dissertação. Jamais conseguirei agradecer por tanta generosidade. Muito obrigada!
Também preciso agradecer a minha segunda mãe e tia, Dra. Gilcélia Cristina de
Magalhães Bastos, quem me incentivou, nos anos 2000, a cursar Letras, e que, desde
então, me acolheu como filha e acompanhou de perto todo o meu crescimento pessoal e
profissional, sempre com sua doçura e demonstração de amor. Além disso, apresentou-
me à Maria José e ao professor Dr. Maurício da Silva. Ele enxergou em mim grande
potencial, me ajudou a recuperar minha autoestima, sem hífen, e me ensinou que a
autoconfiança é fundamental para atingir altos patamares. Obrigada, Maurício, por ter
me ensinado a voar.
Agradeço, ainda, à professora Ms. Renata Ribeiro Guimarães, pela companhia
nos congressos, pelos debates e pela amizade que construímos desde os tempos em que
fui professora substituta no IFRJ (antes CEFET Química). Perceber nosso crescimento é
muito satisfatório, mas não mais que imaginar os vindouros. Obrigada por estar sempre
por perto, tão solícita e amável.
Deixo também registrado meu agradecimento aos colegas da COLINCO, equipe
da qual faço parte como docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Fluminense, campus Campos-Centro. Graças a esta equipe, consegui, durante o segundo
ano de mestrado, redução de carga horária, para que pudesse me dedicar mais aos
estudos. Em especial, agradeço ao colega Ronaldo Adriano, que colaborou para meu
crescimento acadêmico com indicações de livros, com ideias, e a com a permissão da
leitura de sua dissertação, antes mesmo de ser publicada. Também agradeço, Ronaldo,
por ter me apresentado ao professor e pesquisador Carlos Fabiano de Souza, que hoje é
um grande amigo, muito presente em minha vida nos últimos anos, com quem fiz
diversas reflexões que certamente mudaram meu olhar sobre o ensino de línguas. Ainda
em relação à instituição onde trabalho, destaco o importante apoio de Pedro de Azevedo
Castelo Branco, diretor de pesquisa e pós-graduação, que autorizou o financiamento das
minhas viagens para congressos e apostou em minha pesquisa. Obrigada, Pedro!
Agradeço também a todos os amigos que fiz no IFF, que me acolheram como
família na cidade de Campos dos Goytacazes/RJ, bem distante da minha residência, e
onde trabalho desde minha posse em 2012. Destaco o professor Carlos dos Santos
Pacheco Júnior e, por extensão, Rafael Nóbrega da Silva. Esse casal me abrigou e me
cedeu um quarto da casa, com o maior conforto do mundo, para que eu pudesse
descansar e, claro, escrever esta dissertação. Os dois sempre me trataram com muito
amor, e estiveram comigo nos meus bons e maus momentos durante todo o mestrado.
Realço ainda a importância dos professores Thiago Freitas, Sérgio Risso e Marcos
Giusti, que me proporcionaram momentos de descontração, fundamentais também para
arejar a mente e prosseguir na árdua tarefa de escrever. E obrigada, amiga e professora
Ms. Priscila Mattos Monken, por também fazer parte da minha vida nesses últimos
anos, por ter sido ouvinte presente, por ter me acolhido, por ter dividido comigo tantos
momentos!
Não posso deixar de registrar um agradecimento a todos os meus alunos e
alunas, que muito me ensinaram nesses anos e, acredito, continuarão a ensinar. Muito
obrigada!
Ressalto a contribuição de professores do meu programa de mestrado. Começo
com o professor Dr. Antônio Ferreira da Silva Júnior, que ministrou a primeira
disciplina que cursei no mestrado. Com ele, aprendi a valorizar minha trajetória como
docente e enriqueci imensamente meus conhecimentos sobre relações étnico-raciais no
ensino de línguas. Além dele, cito a professora Dra. Maria Cristina Giorgi. Muito mais
que professora, hoje é uma grande amiga. Foi ela quem suportou meus insuportáveis
desabafos de desespero ao longo da escrita da dissertação. Obrigada por estar comigo
em tantos momentos, inclusive em minha defesa, e por ter me dado dicas de leituras e
ensinamentos sobre Análise do Discurso, junto ao professor Dr. Fabio Sampaio, por
quem também tenho enorme gratidão. Em algumas dessas leituras, conheci um pouco
do trabalho do professor e pesquisador Dr. Bruno Rego Deusdará Rodrigues, o qual
aceitou prontamente a participar da minha banca de defesa. Obrigada, professor Bruno,
pelas contribuições que acredito que poderá me dar.
O Colégio Aconchego, na Tijuca, também merece destaque nesses meus
sinceros e profundos agradecimentos. Durante parte do meu curso, minha filha estudou
lá em período integral, o que me deixou muito tranquila, pela confiança mútua que
construímos. Obrigada, equipe do Aconchego, por cuidar da Marina com tanto amor e
dedicação.
Agradeço aos amigos que fiz no curso do mestrado, pelas reflexões coletivas e
também pelos momentos não acadêmicos que nos permitiram respirar e nos deram
forças para continuar. Natasha Mendes, Ana Paula Carvalho, André de Sant’Anna e
todas as outras pessoas que marcaram minha vida nesse curto período de tempo: deixo
aqui meu muito obrigada!
Minha dissertação, além de todas as contribuições já mencionadas, atingiu o
objetivo principal devido às modificações e sugestões que recebi em meu exame de
qualificação. Obrigada, membros da banca, por terem lido tão atentamente meu
trabalho, e por terem participado desse processo. A estes professores, Dr. Roberto
Borges e Dr. Ricardo Teixeira, gratidão eterna! E aproveito, ainda, para agradecer o
convite que aceitaram de fazer parte também da minha banca de defesa. Tenho certeza
de que novas contribuições enriquecerão meu trabalho final.
Por fim, o maior agradecimento de todos: ao meu orientador, o professor Dr.
Alexandre de Carvalho Castro. Muito além do diálogo, orientou-me dialogicamente,
sempre levando em consideração as minhas palavras, as minhas ideias, as relações que
eu fazia. Ouviu-me sempre atenciosamente, acreditou na minha pesquisa, encorajou-me
a desenvolvê-la, e contribuiu imensamente para que ela se concretizasse. Demoliu
comigo todas as paredes que surgiam a minha volta, as quais tentavam impedir meu
caminhar. Construiu comigo todos os caminhos que me levaram a boas colheitas, e me
levam, agora, ao título de mestre. E eu, que cheguei a pensar que não conseguiria, hoje
me vejo desemparedada do meu sonho.
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
(Manuel Bandeira)
RESUMO
À luz da perspectiva teórico-metodológica proposta por Mikhail Bakhtin, esta
pesquisa teve por objetivo analisar as relações dialógicas entre os documentos oficiais
que norteiam o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio e as coleções de livros
didáticos desse componente curricular, adotadas no âmbito dos campi do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em relação a questões
étnico-raciais. Primeiramente, foram selecionados os principais norteadores do ensino
de língua portuguesa e das relações étnico-raciais, incluindo parâmetros curriculares,
diretrizes, legislações. Em seguida, foram verificadas as relações dialógicas desses
documentos oficiais em relação aos livros didáticos. Os resultados da análise
evidenciaram que, em relação ao currículo, representado por vários documentos oficiais
e também pelas tendências do ENEM, há propostas inovadoras em relação ao ensino de
Língua Portuguesa e a relações étnico-raciais. Esses documentos, contudo, não foram
suficientes para mudar o quadro do ensino de português, tendo sido verificado que as
prescrições curriculares dificilmente chegam à sala de aula e aos livros didáticos, os
quais contribuem pouco para a formação discente reflexiva, e quase não estimulam a
construção de identidades étnico-raciais diversificadas. O ensino continua priorizando o
saber enciclopédico e a gramática tradicional, sem propor reflexões aprofundadas aos
discentes. Em atitude responsiva à análise e seus respectivos resultados, foi proposto um
produto educacional para o ensino de língua portuguesa no Ensino Médio, cuja
finalidade é contribuir para a promoção da igualdade racial, a partir do trabalho com os
gêneros do discurso e de temas relacionados a relações étnico-raciais.
Palavras-chave: ensino de língua portuguesa, livro didático, dialogismo, relações
étnico-raciais.
ABSTRACT
In the light of the theoretical and methodological approach proposed by Mikhail
Bakhtin, this study aimed at analyzing the dialogical relations between the official
documents used as guidelines for the Portuguese language teaching in high school and
the textbooks of this subject in relation to ethnic and racial issues. Those books were
adopted by the teachers from the Fluminense Federal Institute of Education, Science
and Technology (IFF). First, we selected the main guiding documents related to the
Portuguese language teaching and ethnic and racial relations, which included curricular
parameters, guidelines and laws. Then, the dialogical relations between these documents
and those textbooks were checked. The results of analysis showed that, considering the
curriculum represented by several official documents and also by the ENEM, there are
innovative proposals regarding the teaching of the Portuguese language and ethnic and
racial relations. However, these documents were not enough to change the picture of the
Portuguese language teaching. It was observed that the curricular prescriptions rarely
get to the classrooms and textbooks, which has little contribution to the formation of
reflective students and hardly stimulate the building of diverse ethnic and racial
identities. Teaching still prioritizes encyclopedic knowledge and traditional grammar,
without proposing in-depth discussion to students. As a responsive attitude to the
analysis and its results, we introduced an educational product for the teaching of the
Portuguese language in high school, the purpose which is to contribute to the promotion
of racial equality, by working with genres and topics related to ethnic and racial
relations.
Keywords: Portuguese language teaching, textbook, dialogism, ethnic and racial
relations.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13
1.1 A pesquisa narrativa: minha trajetória docente ............................................ 14
1.2 Como e quando o livro didático entra em cena ............................................ 17
1.3 Relações étnico-raciais no Brasil e seu atravessamento em meu percurso ........ 20
1.4 A metáfora do “Emparedado”: outras reflexões sobre relações étnico-raciais .......... 22
1.5 O objetivo da pesquisa e as partes que a compõem ..................................... 25
2 Mikhail Bakhtin como referencial teórico-metodológico ............................ 27
2.1 O enunciado ................................................................................................... 28
2.2 Os gêneros do discurso .................................................................................. 29
2.3 O dialogismo .................................................................................................. 31
2.4 A língua .......................................................................................................... 31
2.5 A rememoração, os sentidos e a alteridade .................................................. 32
2.6 A apropriação não essencializada dos conceitos ao longo dos capítulos seguintes .... 33
3 Os documentos oficiais: as prescrições do currículo ................................... 35
3.1 Prescrições curriculares: panorama do campo de estudos sobre o currículo
e o ensino de Língua Portuguesa e Literatura (LP) ............................................................. 40
3.2 Prescrições curriculares frente à LDBEN e às leis 10.639/03 e 11.645/08 ............... 42
3.3 Prescrições curriculares frente aos PCNEM ................................................ 46
3.4 Prescrições curriculares frente às NDCNEB ............................................... 48
3.5 Prescrições curriculares frente às OCEM ..................................................... 52
3.6 Prescrições curriculares frente à BNCC ....................................................... 54
3.7 Prescrições curriculares frente à tradição e as induções do ENEM ............ 55
3.8 Reflexões desemparedadoras ........................................................................ 57
3.9 Estratégias desemparedadoras....................................................................... 60
4 As relações étnico-raciais e os livros didáticos de Língua Portuguesa ........ 63
4.1 Procedimentos metodológicos ...................................................................... 64
4.2 Análise dialógica ............................................................................................ 68
4.2.1 O gênero “Exercício” ...................................................................... 68
4.2.2 O gênero “Anúncio” ........................................................................ 71
4.2.3 O gênero “Reportagem” .................................................................. 73
4.2.4 O gênero “Romance” ...................................................................... 76
4.2.5 O gênero “Exposição dos conteúdos” ............................................. 78
4.2.6 O gênero “Pintura” .......................................................................... 80
4.2.7 O gênero “Ilustração” ...................................................................... 81
4.2.8 O gênero “Cartum” ......................................................................... 83
4.2.9 O gênero “Fotografia” ..................................................................... 84
4.3 Considerações sobre os livros didáticos de Língua Portuguesa.................. 85
5 Derrubando paredes: por um novo ensino de língua portuguesa ................. 87
5.1 O livro em seus elementos introdutórios ...................................................... 88
5.1.1 Apresentação ................................................................................... 88
5.1.2 Um recadinho para estudantes ........................................................ 89
5.1.3 Recado para docentes ...................................................................... 90
5.2 Os capítulos do livro ...................................................................................... 92
5.2.1 O gênero BIOGRAFIA ................................................................... 92
5.2.2 O gênero PESQUISA ...................................................................... 97
5.2.3 O gênero CONTO ......................................................................... 101
5.2.4 O gênero ROMANCE ................................................................... 110
5.2.5 O gênero TEXTOS LITERÁRIOS ............................................... 114
5.2.6 O gênero POESIA ......................................................................... 125
5.2.7 O gênero ILUSTRAÇÃO .............................................................. 130
5.2.8 O gênero LEI ................................................................................. 133
5.2.9 O gênero RECEITA ...................................................................... 137
5.2.10 O gênero MEME ......................................................................... 141
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 144
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 147
13
1 INTRODUÇÃO
Desde que concluí o curso de Licenciatura Plena em Letras, iniciei minhas
atividades como profissional da educação: professora de Língua Portuguesa. Transitei
como professora substituta pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio de Janeiro (IFRJ) por dois anos, e também por escolas da rede particular da mesma
cidade durante quatro anos. Há quase quatro anos, todavia, atuo como docente no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), campus
Campos-Centro, em regime de dedicação exclusiva. É desse lugar que falo. E foi a
minha trajetória que motivou esta pesquisa. Pretendo utilizar uma linguagem clara, pois
escrevo não só como pesquisadora, mas como uma professora que deseja ser lida pelos
pares, e que deseja, com eles, construir novas propostas para o ensino de Língua
Portuguesa e Literatura Brasileira (LP). Evidencio, ainda, que não foi possível utilizar a
terceira pessoa do singular nesta dissertação, visto que a todo tempo minha pesquisa
está relacionada à minha prática docente. Como constitutivo de mim, o percurso que
trilhei não poderia estar distanciado; pelo contrário, foi ele que me trouxe até aqui.
Já nas primeiras experiências docentes, percebi que o aprendizado no curso de
licenciatura em Letras não dava conta das demandas da sala de aula. O estudo
preliminar dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) me fez perceber que esse e
outros documentos oficiais estavam longe de ser identificados nos livros didáticos
adotados nas escolas e, mais longe ainda, das práticas docentes. Isso causou em mim
uma inquietação e, ao mesmo tempo, um sentimento de impotência, mas que não foram
suficientes para me paralisar. Comecei a fazer algumas leituras sobre as teorias do
currículo, e, nesta dissertação, pretendo analisar se o currículo vigente, hoje
teoricamente representado por vários documentos oficiais que prescrevem o ensino de
língua portuguesa, está em relação dialógica com os livros didáticos. A ideia é
investigar se esses livros estão contribuindo para formação discente reflexiva e se
estimulam a construção de identidades étnico-raciais diversificadas. É bem possível,
contudo, que a diversidade étnico-racial brasileira esteja sofrendo uma tentativa de ser
silenciada, e os alunos, pouco participantes do processo escolar, podem, se isso for
realmente verificado, perder, aos poucos, a possibilidade de emancipação.
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1.1 A pesquisa narrativa: minha trajetória docente
Inicio, então, este tópico, com um breve relato autobiográfico. Esse tipo de
relato tem sido amplamente investigado na área de Pesquisa Narrativa, que reconhece as
contribuições da experiência docente para as pesquisas acadêmicas. Ao narrar sua
trajetória, o docente passa a compor sentidos sobre ela, refletindo sobre suas práticas e
identidade pedagógica. Nesse movimento, começa a perceber que suas práticas podem
ser modificadas, aprimoradas. Considero essa percepção fundamental: o professor deve
ser um pesquisador e um ser aprendente, que processualmente (re)pensa e (re)constrói
sua identidade. Por ser ampla a forma de se fazer pesquisa narrativa, considero relevante
explicitar que a perspectiva mencionada aqui é a de Mello (2010), que se ancora na
perspectiva canadense de Clandinin e Connelly.
“[...] a narrativa é ao mesmo tempo o fenômeno estudado e o método
de pesquisa. Ao narrar uma experiência, tenho a experiência narrada
como fenômeno estudado e é ao narrar que reflito sobre esse
fenômeno e componho sentidos sobre o mesmo. O narrar, portanto, é
o meio para ter a experiência (o fenômeno) como foco/objeto de
estudo e é, também, o método investigativo para interpretá-la.”
(MELLO, 2010, p.173)
O professor nunca está pronto, acabado. Enquanto aprendentes que somos,
precisamos conscientizar-nos de que não existe completude, e que as lacunas são
essenciais para produzirmos conhecimentos, transformá-los e ressignificá-los. O
professor necessita ter conhecimento de si, e a pesquisa narrativa contribui para esse
processo de reconhecimento e construção da identidade.
Percebo que, ao assenhorar-me dessas considerações, adquiro mais segurança
para escolher caminhos alternativos rumo a uma ação educativa mais crítica, mais
libertadora de todo tipo de preconceito, educação mais cogitadora do outro, enfim, mais
amorosa. Situar-me face à compreensão do currículo me permite escolha consciente de
minha filiação ideológica. Em outras palavras, qual o projeto político-pedagógico que
escolho para atuar com firmeza, sem que escorregue pela “pinguela” dos conteúdos
disciplinares fechados, demarcados como universais e, por isso, considerados tão
necessários, quando, na verdade, estão ligados à padronização e à anulação de outras
culturas.
15
Graças a reflexões que pude fazer em minha trajetória docente, além do diálogo
com outros professores e pesquisadores, tenho conseguido dar nova amplitude às
minhas aulas. Tenho trabalhado com temas (em outras palavras, universos semânticos,
tomados na perspectiva disciplinar) que, anteriormente, não achava pertinentes à
disciplina que leciono. Trabalhar um texto sobre o racismo, por exemplo, significava
abordar os mecanismos de organização estrutural e o sentido mais superficial da
informação. Agora, percebo com mais clareza que significa também examinar o texto
como um pronunciamento histórico-social que expressa um dito. Antes não punha em
pauta, na discussão com meus alunos, que todo dito se opõe a outro (ORLANDI, 1997).
Que todos os pronunciamentos possuem filiações ideológicas. Que um texto não é a
expressão pura de uma informação. Que a neutralidade não existe. Que a voz que o
pronuncia traduz uma visão de mundo. Enfim, que os textos são construções
discursivas, cujos pronunciamentos e valores de verdade estão ligados a relações de
poder.
No âmbito da investigação das relações étnico-raciais, as leituras
sociointeracionistas que já vinha fazendo – por colocar no centro os estudos da
linguagem enquanto atividade discursiva – foram suporte para inserir o tema racismo no
currículo de LP na perspectiva transdisciplinar, disciplinar e interdisciplinar, à
proporção que cogitam saberes de áreas afins, como Sociologia, Filosofia e História.
Na etapa profissional em que me situo, consigo visualizar a transformação pela
qual alguns de meus alunos têm passado. Consigo enxergar uma “luz no fim do túnel”
da educação, apesar de, a cada dia, movimentos reacionários surgirem no cenário
brasileiro1. Enquanto docente reflexiva que tenho me tornado, enquanto aprendente,
posso refletir sobre minha prática e transformá-la constantemente, aprimorando meus
conhecimentos, compartilhando meus saberes. Percebo o quão pouco a escola é
democrática, mas também percebo que esse é o espaço do contraditório: se é ali que o
engessamento pode ser construído, é neste mesmo espaço que o engessamento pode ser
desconstruído. Percebo a escola como espaço de contradição, de relações de poder. Por
1 Um exemplo disso é o movimento “Escola sem Partido” (http://www.escolasempartido.org/), que
defende um tipo de educação sem doutrinação, isento de ideologia, como se fosse possível a neutralidade
do professor nas aulas, ignorando o fato de o docente ser, como todo ser humano, um sujeito atravessado
por diferentes discursos, necessariamente ideológicos.
16
isso, as narrativas metaposicionadas (o professor enquanto pesquisador de si, e
reconhecedor de seu lugar de fala) são tão importantes, na medida em que trazem à
consciência a ideologia que nos faz falar. Esse metaposicionamento permite a reflexão e
o redirecionamento ideológico com que desejo me alinhar.
Com base nas considerações que aqui exponho sobre a minha constituição
docente em processo, entendo que sou atuante, militante da educação, e que tenho um
poder. Por esse motivo, não posso e não quero silenciar meus alunos, mas, pelo
contrário, quero, com eles, construir um novo cenário para uma formação não tecnicista,
mas humana integral. Desta forma, já na escola, meus alunos deixam de ser meros
espectadores sociais para serem atores, cidadãos interativos, coautores do conhecimento
produzido no espaço escolar. Passam a ser sujeitos proativos, capazes de se transformar
e melhorar o nosso país.
E quando, frequentemente, sou levada a responder por que, enquanto “branca”,
oriunda de uma família cristã de classe média, interesso-me a estudar o racismo no
Brasil, preciso dizer que a luta deve ser de toda a população brasileira, e professores
podem ser fundamentais nessa luta, quando levam seus alunos a refletirem sobre as
questões étnico-raciais, tão silenciadas no Brasil. Concordo com as palavras proferidas
por Milton Santos em uma palestra:
Creio que as contribuições teóricas que por ventura tenha elaborado
para o entendimento da sociedade possa ser de alguma valia no
tratamento da questão do negro no Brasil; que não será resolvido se os
negros forem sozinhos na luta. A luta dos negros só pode ter eficácia
se envolver todos os brasileiros, inclusive os negros, mas não só os
negros. Não cabe aos negros, aliás, fazer essa luta. Essa luta tem que
ser feita sobretudo por todos. (SANTOS, 2016)
Assim, acredito na contribuição que eu e todos os docentes podemos dar, indo
muito além de ensinar um componente curricular, mas somando a isso reflexões que se
fazem necessárias para a construção de uma nova nação brasileira, liberta dos grilhões
das desigualdades, sobretudo do racismo.
17
1.2 – Como e quando o livro didático entra em cena
O fato de estar desde 2008 atuando como professora do Ensino Básico (segundo
segmento do Ensino Fundamental e Ensino Médio) trouxe-me algumas reflexões que
considero importantes de serem registradas nesta dissertação. Ao longo dos anos,
percebi a importância atribuída aos livros didáticos de Língua Portuguesa (LD) e ao seu
uso em sala de aula. E aos poucos comecei a observar que esses importantes
instrumentos contribuíam no reforço de certos estereótipos de identidades étnico-raciais,
e apagamento de outras, sobre o que voltarei a escrever posteriormente. Percebi que os
LD não davam conta de todas as demandas da sala de aula, e esse desconforto me
impulsionou a refletir sobre minhas ações nas escolas. Observei, também, que o uso
exclusivo dos LD em sala permitia pouca ou nenhuma interação, forçando uma relação
autoritária, proporcionando raros momentos de reflexão discente.
Na rede particular de ensino, o uso intensivo dos LD se justifica(va) pelo alto
valor pago pelos pais na compra do material. Os pais, portanto, costumam pressionar a
direção da escola a “obrigar” que o professor utilize totalmente os livros. E quando o
professor não os utiliza, é muitas vezes acusado de “não estar dando aula”. Na rede
pública de ensino, onde hoje atuo, a cobrança pelo uso do livro também existe: há muito
dinheiro público sendo investido na compra desse material. E ainda: o material é
pesado! O aluno não pode ficar carregando peso se os LD não serão usados em sala.
Assim, os LD vão historicamente ganhando “valor de verdade”: o material existe, é
caro, é pesado, e contém “todos os conteúdos” que o aluno deve aprender – numa
perspectiva de valorização do saber enciclopédico. O docente, assim, vai perdendo sua
autonomia e criatividade ao ministrar as aulas para poder, então, cumprir o papel
profissional que lhe é atribuído – não de mediador na construção dos saberes, mas de
instrutor do material que é imposto.
É interessante pensar ainda no “livro de professor”, um anexo disponibilizado ao
docente, que dá “todo o suporte” para que “não erre” – tudo está minuciosamente
descrito: como proceder nas atividades, quais são as respostas “corretas”, que atividades
complementares podem ser feitas, inibindo a reflexão docente. Por outro lado, ainda há
escolas que não oferecem outra possibilidade de recurso didático que não seja os LD. Se
não há como tirar cópias de outros materiais para os alunos, e/ou se a escola não possui
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computadores e internet, ou aparelhos de multimídia, som e/ou TV, só resta ao
professor a utilização de LD. E há, também, o fato de muitos alunos não possuírem
outros livros em casa, e os LD passam a ser a única possibilidade de leitura à disposição
desses alunos (SILVA, 2008).
Além das questões já comentadas, há uma relação dialógica, e também
ideológica, entre os LD hoje utilizados e seu contexto histórico de produção. No Brasil,
já se utilizavam materiais didáticos, mas somente durante a ditadura militar, momento
de maior autoritarismo na história do nosso país, é que os LD começaram a ser
amplamente utilizados nas escolas. Há, em 1966, o estabelecimento da Comissão do
Livro Técnico e Livro Didático (COLTED), e, em 1971, a criação do Programa do
Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF), que se transformaram, em 1985,
no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – programa específico para avaliar,
comprar e distribuir livros didáticos para os alunos matriculados no Ensino
Fundamental e Médio em todo o território nacional. Nesse período da ditadura, o
governo passou a ser o maior comprador de livros, o que passou a demandar cada vez
maiores tiragens, bem como o crescimento e fortalecimento da indústria editorial
(BASTOS, L. 2013)
O problema é que os livros produzidos eram duramente criticados por
movimentos sociais, principalmente pelo Movimento Negro Unificado (MNU), tendo
em vista que o negro era sempre representado de modo estereotipado e inferior,
relacionado, muitas vezes, à escravidão. Nos anos 80, com a criação do PNLD, há uma
preocupação em produzir livros com melhor qualidade – na forma e no conteúdo. E,
assim, representantes desses movimentos sociais são chamados pelo governo para
colaborar. Na avaliação do PNLD de 1993, temas como racismo e sexismo entram
como critério de avaliação dos livros, fruto das lutas dos movimentos sociais. A partir
de 1990, surgem os editais do PNLD, que com o passar dos anos vão sendo cada vez
mais explícitos quanto à necessidade de se valorizar, nos LD, a diversidade e os grupos
étnico-raciais considerados como minorias (SILVA, 2014).
Há, no entanto, muitas pesquisas recentes mostrando que, mesmo com os filtros /
critérios de avaliação rigorosos impostos pelos editais, há uma contradição: poucas
foram as mudanças ocorridas, de fato, nos LD (FREITAS, 2009; JÚNIA, 2010;
PACÍFICO, 2011). Isso nos leva a pensar que há alguma representação das minorias
19
étnico-raciais nos LD, mas não há representatividade. Essa representação, estereotipada
e inferiorizada, ou mesmo apagada, como acontece, por exemplo, em relação aos povos
indígenas, não leva os alunos ao desejo de uma pertença étnico-racial que seja diferente
de quem se autodeclara branco. É necessária a representatividade, a visibilidade dessas
minorias (incluindo a visibilidade de aspectos culturais, como religião, literatura,
música etc.) nos LD, para que os discentes não rejeitem seu grupo étnico-racial e
tenham sua autoestima preservada (SILVA, 2008).
Não creio que o livro didático deva ser abolido, mas um cenário de ruptura
precisa surgir. Além disso, os docentes precisam de formação específica e continuada
para aprender a lidar com as situações de discriminação: tanto as que surgem em sala de
aula, como as que porventura aparecem nos LD (TÍLIO, 2008). Nesse segundo caso,
com a devida formação, o professor será capaz de mostrar aos alunos o quanto os LD
ainda são racistas, para, assim, promover um despertar crítico nos alunos, que
conseguirão enxergar o racismo dos livros e da sociedade. Esse racismo muitas vezes é
velado, outras vezes explícito, mas, de tão naturalizado, costuma passar “despercebido”.
Sendo assim, analisar os LD ainda é uma tarefa necessária, pois, ao explicitar tantos
problemas que ainda ocorrem no tão contraditório2 ensino de Língua Portuguesa,
acredito que reflexões podem surgir, e ações podem ser transformadas em busca da
promoção da igualdade racial. É interessante transcrever, na íntegra, um dos critérios
eliminatórios do edital do PNLD 2012, o mais recente voltado para o Ensino Médio:
Serão excluídas do PNLD 2012 as obras didáticas que: 1. veicularem
estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico-racial,
de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim
como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de
direitos (BRASIL, 2011, p.85)
2 O ensino de Língua Portuguesa é paradoxal porque a língua é fluidez e, ao mesmo tempo, padrão, e o
ensino pode ser libertação e, ao mesmo tempo, reprodução. Assim, o docente desse componente
curricular sente-se dividido entre a tradição do ensino e suas possíveis inovações. O trabalho de mestrado
defendido em dezembro de 2015 no Instituto de Letras da UFF, por Ronaldo Adriano de Freitas,
intitulado “Língua e Ensino – objetos paradoxais: a contradição no ensino de língua portuguesa”,
aprofunda essas discussões, tendo, portanto, grande contribuição nesta pesquisa.
20
Não precisamos de uma educação de controle, que tira o protagonismo do aluno.
É preciso ressignificar os processos de ensino, as práticas docentes e os livros didáticos
para atender a novas demandas sociais.
1.3 Relações étnico-raciais no Brasil e seu atravessamento em meu percurso
Desde criança, sempre me sensibilizei com as pessoas discriminadas e
marginalizadas. Não conseguia compreender o fato de as pessoas serem “classificadas”
pela sociedade como “mais bonitas”, “melhores”, apenas pela distinção de traços físicos
e situação financeira. Esse incômodo se acentuou quando me tornei docente. Em sala de
aula, não sabia como lidar com as situações de discriminação entre os alunos, e nem
mesmo com as situações pelas quais passei durante a vida. Essa sensibilização
despertou meu interesse em estudar as minorias, tanto para compreender o que sentia e
passava, como também para saber agir em sala de aula.
Nesses estudos, comecei a entender que o maior tipo de discriminação no Brasil
está relacionado a questões étnico-raciais. Lendo textos da professora Aparecida de
Jesus Ferreira, pude compreender que o racismo está acima de qualquer forma de
discriminação ou preconceito pelo grande potencial de excluir as pessoas da sociedade
(FERREIRA, 2006).
Também tive acesso ao Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil –
2009/2010 (PAIXÃO, M. et al, 2010), que me evidenciou que as desigualdades raciais
estão presentes na educação, na saúde, na segurança, nas questões previdenciárias e em
tantas outras. E diferente do que algumas pessoas ainda pensam, o racismo existe sim, e
não é coincidência o fato de a população negra compor a base da pirâmide social, e a
população branca, o topo. O texto esclarece que
os culpados pelas diferenças existentes seriam justamente as vítimas
do racismo, visto serem consideradas inferiores em múltiplos sentidos.
A ideologia racista, portanto, atua no sentido de justificar moralmente
o preconceito, a discriminação e as situações crônicas de desigualdade
verificadas entre as pessoas fenotípica e culturalmente diferentes. Ou
seja, a ideologia racista adestra os olhos e a mente de toda a sociedade
para a aceitação acrítica da coincidência verificada entre as hierarquias
de classe e as hierarquias étnicas e raciais (PAIXÃO et al, 2010, p.
21),
21
Comecei, então, a aprofundar meus estudos sobre as questões étnico-raciais.
Verifiquei que as lutas dos movimentos negros por igualdade racial são muito antigas, e
que por meio delas temos conseguido muitos avanços no Brasil. O atravessamento das
reflexões sobre o racismo, a trajetória individual e pessoal, portanto, decorreu dessa
compreensão crítica do cenário brasileiro.
Nesse cenário, aliás, merece destaque Abdias do Nascimento, líder negro e
deputado federal nos anos de 1980. Ele criou projetos de leis com propostas concretas
para a verdadeira inserção da população negra na sociedade brasileira, que, mesmo após
mais de um século da lei áurea, ainda sofre com o emparedamento social.
Outro fato que fortaleceu a luta em prol da igualdade racial foi a “Marcha Zumbi
dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida”, ocorrida em 1995, em Brasília,
e que reuniu mais de trinta mil pessoas. Nessa marcha, os movimentos negros
reivindicaram o fim do racismo por meio da implementação de políticas públicas para a
população negra. Além disso, deram visibilidade a propostas já existentes. Apesar disso,
o então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, não deu forte apoio a essa
causa, vetando, por exemplo, o projeto de lei de Benedita da Silva, então senadora
(PT/RJ), que instituía cotas de 10% de vagas para negros nas instituições de ensino
superior. Foi, todavia, esse mesmo presidente que assumiu publicamente, pela primeira
vez na história do país, que o Brasil é racista, o que contribuiu para o debate étnico-
racial na pauta governamental (SANTOS, 2014).
Em 2003, com a entrada de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da
República, avanços mais concretos são alcançados. É promulgada a lei 10.639/2003,
que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tornou obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira na educação básica. Essa lei, na verdade,
havia sido criada muito tempo antes, mas as paredes do racismo não permitiram que
fosse publicada em outro momento. Além disso, ainda em 2003, é criada a SEPPIR
(Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), por pressão dos
movimentos sociais negros, abrindo espaço para efetivar as ações propostas. Em 2015,
já no governo de Dilma Rousseff, a SEPPIR foi incorporada ao Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que também começou a se
encarregar das questões sobre as mulheres e os direitos humanos. Essa presidenta deu
continuidade às ações afirmativas relativas à questão racial iniciadas no governo Lula,
22
somando a elas outras ações, como a publicação da lei 12.711/2012, que tornou
obrigatório o sistema de cotas no ensino superior e no ensino técnico de nível médio das
instituições federais.
Mesmo com alguns avanços, as desigualdades raciais precisam ser combatidas, e
não só pelos governantes do país. A escola pode e deve contribuir para erradicar o
racismo no Brasil: o racismo propriamente dito, o racismo à brasileira, o racismo
institucional, e toda forma de racismo que existir.
1.4 A metáfora do “Emparedado”: outras reflexões sobre relações étnico-raciais
A partir dessas reflexões, afirmo que o ensino precisa ser cada vez menos
“emparedador” das identidades étnico-raciais, para que os discentes possam
protagonizar o espaço escolar. Quando falo em um ensino “emparedador”, aproprio-me
aqui da metáfora3 do “Emparedado”, uma metáfora pouco conhecida, de Cruz e Sousa.
Trata-se de um poeta negro, descendente direto de africanos, nascido no Brasil,
no final do século XIX. Adotado por uma família branca, consegue a oportunidade de
estudar e se dedicar à literatura. Utilizando-se da mais elaborada estética do colonizador
– o Simbolismo – que estava sendo elaborado na França por poetas como Baudelaire,
Cruz e Sousa introduz esse estilo no Brasil, incorporando a ele muito de sua brasilidade.
Por ser negro e reconhecer as barreiras étnico-raciais que o separavam da sociedade,
escreveu, por meio de símbolos, sobre suas dores e embates sociais. Posteriormente, foi
reconhecido na França como o maior poeta simbolista do mundo ocidental, tamanha a
riqueza artístico-literária de sua obra (ALVES, 2008).
Em um de seus textos, intitulado “Emparedado”, Cruz e Sousa, em forma de
“poesia em prosa” (gênero introduzido no Brasil por ele), escreve sobre o sentimento de
estar emparedado em uma sociedade que não permite a participação do negro. É um
desabafo do poeta que demonstra sua indignação e inconformismo devido ao racismo
existente, e, ao mesmo tempo, a sua impotência para desconstruir ou modificar essa
3 Há de se destacar, como ressalva, que, numa perspectiva bakhtiniana, a metáfora aqui aludida remete
aos dialogismos possíveis, distinguindo-se, portanto, da noção de “metáfora conceitual”, de viés
cognitivista, marcada pelos estudos de George Lakoff e Mark Johnson.
23
crueldade que muitos seres humanos eram (e ainda são) obrigados a encarar. Vale
ressaltar que o castigo do emparedamento realmente existiu no Brasil escravista: o
escravo que era considerado “merecedor de tortura” era emparedado vivo, ou seja,
ficava preso entre paredes até morrer de asfixia, fome e sede (FERTIG, A e MARTINS,
J. T, 2008).
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa
parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos!
Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas,
mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto!
Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e
Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se
caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,
fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade
e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas,
mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e
fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as
estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de
subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para
sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu
Sonho...(CRUZ E SOUSA, 2000)
Sendo assim, essa metáfora — a condição de estar emparedado — pode ser
considerada válida ainda hoje? A resposta para essa pergunta pode não ser evidente para
todos, pois em alguns contextos sócio-culturais ainda se acredita que há, no Brasil, uma
democracia racial, e que as condições para a ascensão social são iguais para todos.
Contudo, em conformidade com diversos pesquisadores da área de relações étnico-
raciais (GOMES, 2008; COSTA, 2012), discordo desse posicionamento que reifica tal
democracia racial, pois é possível ver que o negro, em nossa sociedade, encontra-se
emparedado: preso às paredes da cor de sua pele, é excluído de certos espaços, inclusive
da escola (MUNANGA, 2008). A evasão escolar do alunado negro é muito maior que
do alunado branco, o que evidencia o racismo e a desigualdade racial construída
historicamente. (OLIVEIRA, 1999; IBASE, 2008).
A população negra, portanto, continua sendo excluída da sociedade brasileira. A
campanha “Jovem Negro Vivo”, da Anistia Internacional, apresenta dados alarmantes
em relação ao Brasil: “Dos 30.000 jovens vítimas de homicídios por ano, 77% são
24
negros”4. Isso nos mostra que as paredes a que Cruz e Sousa se referia ainda existem, e
novos tijolos são colocados sobre elas a cada dia. O racismo à brasileira – quase
imperceptível – contribui para um emparedamento total: do jovem negro, que é excluído
da escola e da sociedade e não consegue romper com essa condição; do currículo, que
continua etnocentrado e excludente da diversidade que nos é característica; e até do
ensino de LP, que ainda valoriza a estética e a língua do colonizador5.
Desta forma, aproprio-me, aqui, das metáforas em torno da palavra
“Emparedado” de forma ampla e polifônica, aplicando-a à realidade do ensino. Aplico,
também, a muitos docentes de LP. Assim como o poeta Cruz e Sousa via-se
emparedado e sem perspectivas para transformar a realidade que lhe era imposta, a
formação do docente do componente curricular supramencionado coloca-o entre
paredes. Nos cursos de licenciatura em Letras, não é difícil observar o engessamento e a
manutenção de certas práticas sociais, discursivas, porque repletas de ideologias
conservadoras que as atravessam. O professor, tendendo a reproduzir o modelo dos
professores que teve quando aluno, despreparado e com lacunas em sua formação
(OLIVEIRA, 2006), acaba não se dando conta de que a escola é atravessada por
discursos, assim como o livro didático. Sem o poder de refletir criticamente sobre o
ensino e sem tempo para tal atividade, ou até mesmo para se inserir em um processo de
formação continuada, visto que no Brasil a maioria dos docentes tem uma grande carga
horária de trabalho, esses profissionais contribuem, até sem ter essa intenção, para um
ensino excludente, que prioriza apenas o ensino da língua enquanto código fechado,
cuja norma culta parece ser a única possibilidade para uma comunicação eficiente.
Assim, fica evidente a necessidade de “desemparedar” o jovem negro, o ensino,
o currículo escolar, os livros e até o professor de LP. Que a autonomia seja possível
4 A campanha da Anistia usa os números do Mapa da Violência, estudo que pretende analisar a evolução
da violência letal dirigida a jovens e adolescentes, assim como a incidência de fatores como o sexo, cor e
idades das vítimas. A investigação, realizada por Julio Jacobo Weiselfisz, Coordenador da Área de
Estudos sobre Violência da FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) tem como base
os dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, e possui uma versão
mais recente disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/>. A campanha da Anistia Internacional
se baseia em informações referentes ao ano de 2012 e está disponível em
<https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>. 5 O linguista Marcos Bagno defende que a língua em uso no Brasil não é a mesma de Portugal por
diversas questões, sobretudo políticas. Ele defende uma língua brasileira, e propõe, inclusive, uma
Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (BAGNO, 2011).
25
como forma de o professor se emancipar das velhas práticas para propor, na escola,
aulas que acompanhem as demandas sociais e ressignifiquem o ensino de LP. Que o
aluno não seja mais um dentro das paredes que sufocam, excluem e mantém a escola
estagnada, mas que, com o professor, possa derrubar as paredes antigas e construir um
novo projeto educacional, em que seja valorizada a diversidade étnico-racial brasileira.
1.5 – O objetivo da pesquisa e as partes que a compõem
O objetivo desta pesquisa é analisar as relações dialógicas entre os documentos
oficiais que norteiam o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio e as coleções de
livros didáticos desse componente curricular, adotadas no âmbito dos campi do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em relação a questões
étnico-raciais, a fim de propor um produto didático que vise à promoção da igualdade
racial. Esse recorte foi necessário em virtude de um cenário brasileiro tão amplo e
diversificado, e também em função da necessidade de delimitação implícita a um
projeto de pesquisa. A escolha de um determinado Instituto, portanto, incorporou
critérios de relevância e de viabilidade.
No capítulo seguinte, serão apresentadas reflexões sobre o referencial teórico
escolhido, que tem como base os estudos de Mikhail Bakhtin. Essa opção teórica se deu
tendo em vista que esse autor reflete sobre o ensino de línguas e embasa alguns
documentos oficiais no que tange à concepção de linguagem e à proposta de um ensino
com base em gêneros do discurso, assuntos relacionados ao ensino de LP. Assim,
muitos elementos da teoria bakhtiniana serão importantes para que o objetivo
mencionado seja atingido.
O capítulo 3 partirá da análise de documentos oficiais: Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, Novas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, as Orientações Curriculares para
o Ensino Médio, e até a Base Nacional Comum Curricular (ainda em trâmite). O foco da
análise não se restringe às prescrições para o ensino de LP, mas também para o ensino
de relações étnico-raciais.
O capítulo 4, por sua vez, busca perceber as relações dialógicas entre as
prescrições curriculares apresentadas no capítulo 3 e nos livros didáticos adotados pelos
26
campi do IFF, especificamente em alguns gêneros do discurso, evidenciando algumas
lacunas.
Em seguida, levando em consideração os resultados encontrados e as conclusões
desses capítulos, será proposto um material paradidático, no capítulo 5, que pretende ser
efetivamente dialógico em relação às prescrições curriculares, que partem do trabalho
com os gêneros discursivos e enfatizam a necessidade de se discutir questões étnico-
raciais.
Vale ressaltar, contudo, que não há um parâmetro ou regras a seguir quando são
feitas as análises sob a perspectiva bakhtiniana. Não pretendo, aqui, buscar um
enunciado predeterminado, ou reduzir os resultados das análises a uma verdade
absoluta, mas, a partir dessa pesquisa, fazer reflexões que contribuam para a minha
transformação enquanto docente, e, ainda, uma possível transformação dos meus pares.
Assim, poderão perceber o livro didático e os documentos oficiais a partir de um novo
viés, detectando neles o dialogismo, bem como suas condições de produção e as
ideologias que os atravessam (CASTRO et al., 2011).
Sendo assim, só nos resta pensar, portanto, que não há como estudar Bakhtin e
não agir bakhtinianamente. Diante de uma sociedade que a todo tempo se transforma,
pouco se vê mudanças nas escolas, porque elas estão emparedadas em outros contextos
e ideologias. O docente, porém, que se deixa desemparedar, ou seja, que se emancipa
das velhas práticas discursivas, torna-se, também, um desemparedador, e ressignifica o
ensino. Consegue, ainda, aproximar língua e vida, levando para a sala de aula os temas
que a sociedade demanda. Não é totalmente transgressor do currículo, mas insere nele
novas perspectivas.
27
2 MIKHAIL BAKHTIN COMO REFERENCIAL TEÓRICO-
METODOLÓGICO
Uma investigação de mestrado, como esta, pressupõe um referencial teórico que
dê base para análise e interpretação dos dados obtidos. Como visto no capítulo anterior,
os procedimentos metodológicos adotados incluem o levantamento e leitura dos
documentos acerca do currículo de Língua Portuguesa (temática apresentada do capítulo
3) e a avaliação dos Livros Didáticos usados no Instituto Federal Fluminense (temática
desenvolvida do capítulo 4), ações que remetem à indagação: Como analisar todo esse
material? Diante de tal pergunta, cabe ressaltar, a resposta a ser dada talvez não seja
muito consensual no âmbito dos estudos da linguagem, em decorrência do dia a dia
verificado em sala de aula.
É quase impossível desvincular língua e vida. Alguns professores de língua
portuguesa, apegados a antigas práticas, porém, tendem a conceber a língua como uma
estrutura formal, fechada em si mesma, levando muito pouco em consideração o
dinamismo que lhe é característico. A partir de uma tradição já consolidada, o ensino de
língua portuguesa tem sido, muitas vezes, descontextualizado e preso à estrutura
linguística, sem propor muita reflexão aos discentes, já que o conteúdo de algumas aulas
tende a ser a gramática pura6. Muitos alunos, assim, veem-se obrigados a decorar regras
e a dominar uma gramática que, ao longo do tempo, sem fazer conexões entre língua e
vida, acaba sendo esquecida. Esses professores desconsideram, portanto, a importância
da língua em funcionamento, valorizando apenas a língua prescrita nas gramáticas
normativas.
6 Tal tradicionalismo não é exclusivo do ensino da Língua Portuguesa. Crítica semelhante foi feita por
Bakhtin (2013, p.23) em relação ao ensino de língua russa. E algo parecido também fora dito por
Certeau em relação ao ensino do idioma francês, quando da ampla contestação realizada, naquele país,
em maio de 1968, seguido de reformas na educação. Ele apontou que muito viam riscos em “modificar
a relação do ensino com uma tradição autorizada, aceita entre nós, ligada aos ancestrais e aos valores
nobres [...] o bom francês estaria gravado nos livros de outrora. A unidade é o tesouro encerrado no
passado e no escrito, do qual os mestres são os guardiões” (CERTEAU, 2014, p.123).
28
Assim, nesse cenário, a contribuição teórico-metodológica de Mikhail Bakhtin,
teórico russo que começa a escrever na década de 20 do século passado, precisa ser
enfatizada. Isso porque a alteridade e o dialogismo adotados por esse filósofo da
linguagem levam-no a desenvolver um olhar compreensivo e abrangente dos processos
históricos. Aspecto sobremodo distintivo nesta pesquisa que, a partir, então, de tal
referencial, busca conceber a produção discursiva — sejam os currículos, sejam os
livros didáticos — como um conjunto de interações orientadas sócio-historicamente
(CASTRO et al, 2011).
Desse modo, convém indicar que conceitos bakhtinianos constituem, de fato, o
referencial teórico metodológico aqui adotado. Razão pela qual o propósito deste
capítulo é o de analisar os elementos da obra de Bakhtin que foram efetivamente
utilizados na pesquisa. Tal delineamento, portanto, visa deixar claro que o objetivo
proposto não é o de empreender uma biografia de Mikhail Bakhtin, nem tampouco
realizar uma síntese de seu pensamento, mas apenas o de considerar os conceitos que
deram base às análises realizadas nos capítulos seguintes.7
2.1 O enunciado
Bakhtin (1997b) dá especial atenção à questão do “enunciado”, que emerge no
contexto social imediato. Mais do que pela gramática, o enunciado concreto é marcado
pela vida. Vale ressaltar que a comunicação eficaz deve ter início, meio e fim, e só pode
acontecer porque os enunciados são relativamente estáveis – de modo muito
semelhante, em situações semelhantes, repetem-se. Se a cada atividade humana um
novo padrão de comunicação precisasse ser criado, talvez não houvesse comunicação
verbal. O enunciado é, portanto, concreto, único, e é a própria materialização do
pensamento, geralmente inserido em discursos, independentemente de aparecer em
forma de uma oração, de uma composição de várias orações, de uma frase nominal, de
7 Dados biográficos acerca de Bakhtin podem ser obtidos em Clark e Holquist (1998), obra exaustiva que
inclusive trata das discussões sobre disputas autorais que envolvem outros autores do círculo de Bakhtin,
debate que extrapola o interesse desta dissertação.
29
um período ou mesmo de um texto complexo, desde que, em determinada situação
enunciativa, tenha um sentido completo.
Para Bakhtin (1997b), portanto, o discurso contém enunciados, e cada enunciado
possui sentido completo. Por exemplo, quando um professor de língua portuguesa diz
em sala que “A aula hoje será sobre verbos”, e o aluno X responde com um grunhido,
entendemos que esse grunhido é uma “unidade real da comunicação verbal”, que
viabiliza o contato verbal entre os seres humanos. Esse grunhido é um enunciado, pois
deixa claro que o aluno X não quer aprender sobre verbos, assunto recorrente em quase
todos os anos em que estuda Língua Portuguesa na escola, e que, mesmo assim, não faz
dele um “entendedor de verbos”. Para o aluno X, não interessa o domínio do assunto
“verbos”, porque, do jeito que lhe é ensinado, não faz conexão com a vida. E se língua e
vida não se conectam, perdem-se todos os motivos para aprender a língua. Assim,
quando o aluno emite o grunhido, ele deixa clara a sua insatisfação. É também um
enunciado porque, em situações semelhantes, outros alunos produziriam o mesmo
grunhido.
É com o enunciado que língua e vida se conectam – “A língua penetra na vida
através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados
concretos que a vida penetra na língua.” (BAKHTIN, 1997a, p.282). O enunciado é
formado a partir de signos que, diferente da concepção dos tradicionalistas, podem
sempre ser ressignificados, de acordo com a situação de enunciação. O sentido das
palavras, portanto, é muito menos aquele dicionarizado, e muito mais aquele
compartilhado pelos envolvidos em um determinado contexto comunicativo. E esse
sentido é sempre construído historicamente na sociedade, seja em grandes grupos, ou
mesmo no interior de pequenos grupos sociais para uso em determinadas situações, o
que evidencia o dinamismo da língua portuguesa (e, na verdade, de qualquer língua),
que assume diferentes formas, em diferentes épocas.
2.2 – Os gêneros do discurso
Como acontecem no âmbito das atividades sociais, os enunciados estão
intimamente relacionados às suas condições de produção. Essas condições são bem
diferentes se compararmos os gêneros do discurso primários e os secundários. Tal
30
distinção é proposta por Bakhtin em um texto fragmentário escrito originalmente em
1952 / 1953, não revisto pelo autor, em que ele discute o que são enunciados, o que é
discurso, e o que são os gêneros do discurso.
Vale dizer que, em relação aos gêneros do discurso, os primários são muito mais
simples e dinâmicos – em um diálogo, por exemplo, os participantes ouvem e falam e
reelaboram o ouvido e o falado – as respostas são quase imediatas e, mesmo que não
sejam faladas, são pensadas e podem ser percebidas. Esse tipo de gênero, no entanto,
pode ser incorporado a gêneros mais complexos, os secundários (pode haver um diálogo
em um romance, por exemplo). Nesse caso, o gênero primário perde sua interação
envolta na realidade para a realidade específica do gênero secundário.
Assim, todo enunciado está – mesmo que isso não seja percebido
conscientemente pelos usuários da língua – inserido em um gênero do discurso. Isto
significa dizer que há uma certa performance que já é esperada nos atos comunicativos,
nas atividades sociais, e essa performance é estabelecida pela especificidade de cada
gênero do discurso, dotado de uma perceptível estabilidade.
É interessante perceber que apesar de muitos gêneros do discurso, primários e
secundários, já existirem, não existem em número limitado, pois novos gêneros podem
ser criados e cristalizados socialmente devido às mudanças sociais que ocorrem
constantemente. De igual forma, certos gêneros também podem deixar de ser
produzidos com o passar do tempo, como as cartas pessoais, que perdem sua força a
cada dia. Além disso, segundo Bakhtin, os gêneros secundários são elaborados
processualmente em um contexto sócio-histórico. Vale lembrar que todos os gêneros do
discurso demandam uma compreensão responsiva ativa. Isso significa dizer que para
todo enunciado haverá uma resposta, e mesmo que ela não seja conhecida por quem o
produziu, o leitor/ouvinte certamente terá uma resposta, uma opinião, imediata ou não
(quando não é imediata é uma compreensão responsiva de ação retardada, que
geralmente ocorre a partir de gêneros secundários).
No processo de comunicação, todos os envolvidos participam ativamente, seja
produzindo enunciados ou respondendo a eles, mesmo que seja em silêncio. E essa
compreensão responsiva vai variar de acordo com o leitor/ouvinte: suas leituras, suas
vivências, o contexto sócio-histórico em que está inserido etc. Assim, a linguagem é
31
sempre dialógica: os discursos são sempre compostos por muitas vozes, pois o discurso
alheio permeia sempre o nosso discurso.
2.3 – O dialogismo
Um dos principais conceitos que sustentam este trabalho é o dialogismo. As
relações dialógicas sempre irão existir, não nos elementos puramente linguísticos do
texto, mas nos extralinguísticos, nas relações de sentidos com os outros enunciados em
uma determinada realidade. Esses outros enunciados são oriundos de muitas vozes. A
própria noção de autoria deve sempre ser problematizada. Nenhum discurso é neutro e
autoral – é sempre perpassado por ideologias e discursos de outrem. Os enunciados
sempre possuem muitos discursos, muitas vozes, que se entrecruzam e formam o
discurso interior de alguém, que, a partir de outrem, materializa-o em forma de um
texto. Que não se confunda, aqui, a noção de diálogo com dialogismo. O diálogo, além
da comunicação em voz alta entre duas ou mais pessoas, é também toda comunicação
verbal, já que mesmo um texto escrito provoca em seu leitor críticas, comentários e
reflexões, em um discurso interior. O dialogismo, por sua vez, não depende da
materialidade textual. Pelo contrário, está no imaterial, nos sentidos possíveis. E é por
isso que a palavra “dialogismo” aparece no título desta dissertação, já que as análises
feitas não ficarão no plano linguístico puramente, mas nos sentidos que têm sido
atribuídos – tanto em relação aos documentos oficiais, quanto em relação aos livros
didáticos.
2.4 – A língua
Outra ideia bakhtiniana que dá suporte a esta pesquisa é o que se pensa a
respeito de “língua”. O dinamismo e a vivacidade que Bakhtin confere à língua podem
ser percebidos quando ele apresenta a metáfora da combustão. O meio social é o que
permite a “combustão linguística”. Assim, se a sociedade muda, a língua muda, em um
processo linguístico interminável de mutações. Não há completude nem mesmo em
relação às línguas: estão sempre inacabadas. Sem sociedade, não há língua, e isso
32
porque os falantes não têm consciência dos elementos estruturais da língua:
simplesmente a utilizam como todos a sua volta a utilizam. Isso também está ligado aos
gêneros do discurso. Cada situação social exige um determinado padrão de enunciado,
uma determinada prática discursiva, que podemos chamar de gêneros do discurso. Esses
gêneros também surgem e deixam de existir de acordo com as transformações sociais.
Possuem um determinado padrão, relativamente estável, que permitem a eficácia da
comunicação. Para cada situação específica, deve-se utilizar um gênero do discurso, seja
ele oral ou escrito.
Essa reflexão também é importante quando a relacionamos ao ensino de língua
portuguesa (e outras línguas) hodiernamente. Se queremos lutar pelo fim das
desigualdades, isso deve incluir também a desigualdade linguística e o fim do
preconceito linguístico. Não se pode menosprezar um aluno porque ele não tem pleno
domínio do que chamam “norma culta”, ou “variedade padrão”. É preciso ensiná-lo a
refletir sobre a língua, a entender que cada situação social exige um gênero do discurso
diferente, e que ele pode aprender a utilizar diversos gêneros, utilizando suas
competências linguísticas de diferentes formas. E é por isso que muitos documentos
oficiais vão priorizar o ensino de língua portuguesa por meio dos gêneros do discurso,
como será visto no próximo capítulo desta dissertação.
Ainda em relação ao ensino de línguas, Bakhtin, por não aceitar a ideia de uma
língua estática e por compreender o valor ideológico das palavras, afirma que para se
ensinar uma língua, qualquer que seja, é necessário apresentar ao aprendiz o contexto
em que as formas linguísticas aparecem, partindo sempre de situações concretas. Desta
forma, os alunos, sujeitos falantes, que não têm e nem terão consciência de um sistema
linguístico abstrato, perceberão que a língua é concreta, flexível, mutável. Uma palavra
isolada é neutra, mas tem um sentido ideológico quando empregada em um enunciado:
“A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
vivencial.” (BAKHTIN, 1997b, p. 95).
2.5 – A rememoração, os sentidos e a alteridade
A propósito da metodologia adotada nesta pesquisa, foram utilizados, além dos
outros conceitos já abordados neste capítulo, alguns critérios igualmente pautados em
33
Bakhtin. Um deles foi a rememoração. A rememoração, conforme Bakhtin (1997a),
busca uma compreensão do contexto de um passado ainda inacabado. Desta forma, ao
dissertar sobre os documentos oficiais e os livros didáticos, também trarei o contexto
que envolve e envolveu a criação deles. Outro critério de análise adotado foi a busca
pelos sentidos, no momento das análises de textos, pois mesmo sabendo que os sentidos
são e sempre serão incompletos e relativos, e extrapolam os limites dos textos, é
necessário levar em conta as realidades extratextuais. A ideia da alteridade também é
relevante nesta pesquisa: ao analisar o livro didático, também foi considerada a maneira
como “o outro” poderia interagir com o texto em análise. Esse outro, aqui, são os alunos
do Ensino Médio, que podem se sentir “emparedados” pela raça, ou confiantes e
seguros de si a ponto de “desemparedar” a sociedade. Diferente dos que levavam em
consideração apenas o sujeito pesquisador, acredito que outras vozes devem falar, ouvir
e serem ouvidas.
2.6 A apropriação não essencializada dos conceitos ao longo dos capítulos
seguintes
Para Bakhtin, os estudos em Ciências Humanas — como é o caso desta
dissertação — sempre partem de textos, que extrapolam as fronteiras linguísticas, já
que, ao serem lidos, estão sempre em relação dialógica com o contexto social e histórico
dos sujeitos que os leem e interpretam, e por isso os sentidos não são fixos – sempre
dependerão dos sujeitos. Em cada época, podem ser esquecidos, rememorados,
ressignificados, pois “não há limites para o contexto dialógico” (BAKHTIN, 1997a,
p.413). Nesta pesquisa, alguns textos, tanto de documentos oficiais relacionados à
educação no Brasil, como de livros didáticos aprovados pelo PNLD de 2012, são
analisados sob a lente das questões étnico-raciais. Essas questões, no Brasil, estão
intimamente ligadas a um contexto social e histórico, que sempre envolve conflitos,
tensos e ininterruptos, e interferem fortemente nos sentidos que podem ser atribuídos
quando lemos e interpretamos esses textos da análise. E se os textos nunca estão
acabados, porque dependem dos sujeitos e do contexto, a sensação de completude deixa
de existir. Esta pesquisa, portanto, trará a minha própria interpretação dos textos,
34
limitada, incompleta, recortada pelo meu próprio olhar de professora e pesquisadora,
inserida em tempo e espaço definidos.
Também por não haver completude, esta pesquisa não visa a se apropriar dos
conceitos apresentados neste capítulo de forma essencializada, visto que uma
(de)limitação jamais dará conta dos sentidos de determinadas ideias. São discutidas as
questões suscitadas nos levantamentos de documentos e Livros Didáticos, todavia,
sempre a partir das teorias que Bakhtin propôs e que constituem a base teórico-
metodológica para toda esta pesquisa. De acordo com esse teórico, “Toda vez que
procuramos delimitar o objeto de pesquisa, remetê-lo a um complexo objetivo, material,
compacto, bem definido e observável, nós perdemos a própria essência do objeto
estudado, sua natureza semiótica e ideológica.” (BAKHTIN, 1997b, p.70)
Em suma, a apropriação de conceitos e critérios bakhtinianos, nesta pesquisa,
não emerge a priori como pressuposto essencial, mas visa a atender às necessidades de
análise do material colhido na pesquisa de campo: os documentos curriculares e os
livros didáticos identificados, conforme considerações apresentadas nos capítulos a
seguir.
35
3 OS DOCUMENTOS OFICIAIS: AS PRESCRIÇÕES DO
CURRÍCULO
O objetivo deste capítulo é analisar os elementos curriculares prescritos em
documentos oficiais e verificar em que medida podem contribuir para desemparedar o
ensino de Língua Portuguesa no que diz respeito às relações étnico-raciais no Ensino
Médio. As questões raciais ainda são pouco discutidas na escola, mesmo com a
promulgação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que alteraram a lei 9.394/1996 (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN), e que tornam obrigatório o
estudo de questões históricas que colaboraram para a construção do racismo, tipo de
discriminação existente até hoje no Brasil. Além disso, a própria Constituição da
República Federativa do Brasil, de 1988, em seu artigo 3º, afirma que
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
(BRASIL, 1998)
Este capítulo, portanto, pretende, a partir dos comentários sobre os documentos
oficiais que trazem prescrições curriculares para o Ensino Médio, contribuir para uma
reflexão que leve a uma ação: possibilitar a desconstrução do racismo presente nas
escolas brasileiras.
É importante destacar que as prescrições são subjetivas e, embora muitas vezes
indutoras de ações emancipadoras, não refletem exatamente as ações docentes. De
acordo com estudos da Ergologia8, o trabalho prescrito (tarefa) se articula com o
8 A Ergologia, campo de estudo sensível aos aportes bakhtinianos, surgiu a partir dos esforços de Yves
Schwartz, Daniel Faïta e Bernard Vuillon que, em 1983-1984, fundaram, na França, um dispositivo
chamado de “Análise Pluridisciplinar de Situações de Trabalho”, a fim de pesquisar as relações entre o
mundo da saúde, da educação e do trabalho.
36
trabalho real (atividade), mas essas são faces diferentes do trabalho (BRITO, 2006). Em
outras palavras, a prescrição em si não reproduz o trabalho que será desenvolvido em
sala de aula, nem mesmo oferece, necessariamente, meios e objetivos para que possa ser
realizado. Essa defasagem entre a tarefa e a atividade provoca uma tensão, que coloca o
professor entre sua própria subjetividade, sua experiência docente, os documentos
oficiais e os livros didáticos, tendo que, a todo o momento, buscar formação continuada
para que consiga lidar com esse conflito (FARIA, 2006). Quando essa busca não ocorre,
geralmente o professor se fecha em um modelo de ensino tradicional, hermético,
emparedado e emparedador, que costuma excluir de sua pauta, dentre outras questões, o
letramento racial e a educação linguística. Nas Novas Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Básica (p.79), também está explícito que os projetos políticos pedagógicos
das instituições de ensino devem incluir programas de formação continuada para todos
os profissionais da educação, não bastando apenas a formação em cursos de
licenciatura.
De toda forma, o docente deve ser um protagonista do ensino consciente de suas
responsabilidades, as quais envolvem o conhecimento das prescrições contidas nos
documentos oficiais. A partir desse conhecimento, tendo ou não a formação necessária
para realizar suas atividades, deve buscar meios para atingir o trabalho prescrito, ou até
não realizá-lo, caso não concorde com ele, mas portando argumentos consistentes que
embasem sua opinião. Assim, contribuirá na formação de discentes também autônomos
e protagonistas.
Neste capítulo, portanto, discutiremos questões curriculares prescritas. Do ponto
de vista bakhtiniano, contudo, há de se perceber o dialogismo implicado no termo
“currículo”. No dia a dia, na fala de alunos e professores, o termo alude a “conteúdos
obrigatórios”, a “saberes necessários e indispensáveis”, a “o que está no livro”, e até a
“o que cai no ENEM”. A questão, entretanto, vai muito além. Currículo são as ementas
prescritas por cada instituição, é o que está prescrito nos documentos oficiais, como a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Básica (NDCNEB), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio
(OCEM), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, ainda em trâmite). Currículo é,
ainda, o que está nos livros didáticos, o que tem sido avaliado pelo Exame Nacional do
37
Ensino Médio (ENEM). É, também, o que o professor ensina, o que a escola ensina. São
as experiências que discentes adquirem na vida escolar. É o que está claramente exposto
como sendo “o currículo”, e, sobretudo, o que se aprende silenciosamente, a partir da
captação do que sequer é dito, mas pode ser absorvido pelos discentes.
Do ponto de vista do referencial teórico desta análise, contudo, o fundamental é
considerar o currículo de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras como um enunciado
inserido em um gênero do discurso secundário, ou seja, que incorpora enunciados de
outrem (BAKHTIN, 1997b). Em função disso, cabe a problematização dos sentidos da
palavra “currículo”, de origem latina, pois curriculum inicialmente era um substantivo
derivado do verbo currere (correr), o que acenava para a ideia de mobilidade. Tal
compreensão — em Roma, curriculum designava “lugar onde se corre” (Saraiva, 2000)
— relacionada ao termo em questão, foi apagada ao longo do tempo, em decorrência de
os sentidos serem sempre sócio-historicamente construídos (BAKHTIN, 1997a). A atual
noção de currículo, entretanto, é justamente o oposto. Alude à falta de mobilidade, ou
seja, constitui um conceito que deixou de correr livremente por espaços sociais abertos
para, em outra direção, restringir e aprisionar determinados saberes.
Verifica-se, portanto, que, em se tratando de um gênero do discurso secundário,
a metodologia da pesquisa deve inquirir acerca dos processos históricos em que tais
proposições curriculares foram constituídas. Deve-se buscar as ocasiões e circunstâncias
em que dados enunciados foram incorporados por outros enunciados, e
extemporaneamente passaram a ser citados em discursos posteriores. Frente à produção
de prescrições curriculares, o indispensável é trazer à tona “quem produz”, “para quem
produz”, “o que produz”, e “o que se quer quando produz”. Ou ainda, em outras
palavras, apontar claramente as relações de poder que estabelecem os conteúdos
tomados como válidos, assim como o conhecimento a ser valorizado e ensinado, nas
escolas, como verdadeiro. Afinal de contas, é necessário problematizar a realidade, pois
as supostas verdades são discursivamente construídas, assim como a própria história, e
estão intimamente relacionadas ao poder (PORTOCARRERO, 1994).
Historicamente falando, o currículo, emparedado e emparedador, vem
priorizando formar identidades sociais que atendam aos interesses do mercado, e não
trabalhadores/ cidadãos questionadores, capazes de interferir na sociedade em que
vivem. Isso é um problema, pois o currículo não deveria ser visto simplesmente como
38
um espaço de transmissão de conteúdos, ou, segundo incontáveis versões do mesmo
argumento, saberes necessários ao mundo do trabalho (SILVA, 2006). Esta concepção
se sustenta na não mobilidade dos conhecimentos e, porque validados por sua
perenidade, traduzem uma concepção que gera um sentido de verdade objetiva. Silva
(2006) contesta essa visão e afirma que o currículo é seleção, feita em virtude de um
determinado projeto político, de uma cidadania desejada. O currículo marca as disputas
por predomínio cultural, e os saberes que são valorizados são sempre os da cultura
dominante. Isso pode ser verificado até mesmo nos livros didáticos, que muitas vezes
não trazem à tona a representação de minorias étnico-raciais, sociais, culturais.
E se o currículo se faz a partir das relações sociais – desiguais –, envolverá
relações de poder. Vale indagar, por conseguinte, àqueles que defendem um currículo
de conteúdos sacralizados: como toda relação de poder, o indivíduo que defende esse
currículo tem claro, para si próprio, que o que permeia esse currículo é sempre uma
ideologia, representante de interesses restritos? É importante registrar que em qualquer
concepção de currículo, haverá, sempre, uma ideologia atravessando o objeto. A
questão é estar ciente dos fundamentos ideológicos da organização curricular e que
opção se tem ao escolher determinado currículo. Não existe, na escolha de qualquer
conteúdo, portanto, a neutralidade, já que “No acontecimento singular e único da
existência, é impossível ser neutro” (BAKHTIN, 1997a, p.143).
Ressalto a importância de conhecer o objeto com que lido, aqui especificamente
o currículo, a fim de saber que ele é produto de uma criação, produzido em um tempo
específico, para atender a interesses daquele momento. Acredito que assim deva ser
visto o currículo, como um texto, que, como tal, sustenta um discurso.
Olhando o currículo na perspectiva bakhtiniana, é possível verificar que o
gênero currículo tende ao discurso relativamente estável, já que está subjugado a forças
decorrentes do poder. Nas relações assimétricas, mantém-se aquele que mais poder tem
para se impor. A consciência desse processo é essencial para que se possa voltar à ideia
original da mobilidade, do currere. É importante registrar que a relativa estabilidade não
é exclusiva do currículo clássico – aquele a que chamamos engessado / emparedado –,
mas das lutas que envolvem as relações de poder. A relativa estabilidade é, portanto,
uma consequência. Corre esse mesmo perigo, caso não estejamos sensíveis ao jogo do
39
poder, qualquer outro currículo que venha substituir o clássico. O currículo como
discurso é prática, é negociação, é atualização.
O que se vê, contudo, em algumas instituições brasileiras de ensino, são
currículos estagnados, produtores de cidadãos estagnados, que não contribuem para as
transformações sociais que se fazem necessárias. É necessário dizer, mais uma vez, que
a lente das prescrições curriculares não será usada por todos os docentes, mas podem
impulsionar transformações e contribuir para a formação humana integral dos discentes,
mais voltada para a cidadania que para o saber enciclopédico.
O currículo, então, pode ser entendido como um discurso que foi socialmente
construído, com fins políticos e ideológicos. Mesmo assim, pode ser desconstruído,
reconstruído. Vale lembrar, ainda, que o currículo envolve o não dito. À medida que se
escolhem determinados conteúdos para serem ensinados, outros são necessariamente
silenciados (ORLANDI, 1997). O currículo pode ser grade, prisão, parede, mas pode ser
liberdade. É preciso, então, escolher que currículo seguir, ou que currículo construir, e,
mais importante, como construir: com silêncio ou com negociação?
É importante enfatizar que a noção de currículo a que me refiro a todo tempo é
dialógica. Aqui, portanto, currículo, PCNEM, DCNEM, LDBEN... não são sinônimos,
apesar de estarem interligados. Daí a utilização, neste capítulo, do termo prescrições
curriculares, para mostrar que, sob o uso generalizado da palavra currículo, há
dinâmicas que não são homogêneas, mas, por vezes, contraditórias e tensionadas.
Também vale a pena mencionar aqui que em 2014 foi aprovado pelo Ministério
da Educação (MEC) o Plano Nacional da Educação (PNE), vigente até 2024. São
palavras do MEC:
O Plano Nacional de Educação (PNE) determina diretrizes, metas e
estratégias para a política educacional dos próximos dez anos. O
primeiro grupo são metas estruturantes para a garantia do direito a
educação básica com qualidade, e que assim promovam a garantia do
acesso, à universalização do ensino obrigatório, e à ampliação das
oportunidades educacionais. Um segundo grupo de metas diz respeito
especificamente à redução das desigualdades e à valorização da
diversidade, caminhos imprescindíveis para a equidade. O terceiro
bloco de metas trata da valorização dos profissionais da educação,
considerada estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas, e
o quarto grupo de metas refere-se ao ensino superior.
(Disponível em <http://pne.mec.gov.br/?pagina=conhecendo_pne>
Acesso em 08 nov. 2015.)
40
Esse plano, o qual é chamado pelo MEC de “um projeto de nação”, pretende
viabilizar as metas das prescrições curriculares, sendo, portanto, um importante
instrumento para promover políticas que resultem em educação pública de qualidade.
Assim sendo, ao longo do capítulo, serão analisados aspectos relacionados às
questões étnico-raciais que permeiam tudo o que chamamos aqui de “currículo”, de
acordo com a metodologia adotada, a qual analisou as prescrições dos documentos
oficiais e realizou um levantamento bibliográfico sobre essas prescrições e o ensino de
Língua Portuguesa.
3.1 Prescrições curriculares: panorama do campo de estudos sobre o currículo e
o ensino de Língua Portuguesa e Literatura (LP)
No campo de pesquisa sobre o currículo de LP, há vários estudos que traçam um
panorama histórico extenso do ensino da língua ou do currículo de LP desde tempos
idos até a atualidade (RODRIGUES, 2007; SILVA, 2008; CUSTÓDIO, 2010).
Algumas abordagens, contudo, apresentam interessantes singularidades de décadas mais
recentes, que permitem a configuração de cenários de continuidades e rupturas.
Na década de 1950, a escola configura-se como um espaço regulador, onde
ensinar língua significava ensinar gramática, mas, por outro lado, foi também o
momento inicial em que contribuições da Linguística começavam a ressignificar o
conceito de língua. Nessa época, a variedade culta da língua era tida como superior, o
que transparecia um prestígio do uso linguístico da elite, evidenciando que o conceito
de língua era influenciado por fatores sócio-históricos e ideológicos (SCHNEIDERS,
2011).
Assim, nos anos de 1950 e 1960 ainda se priorizava um ensino focado na
gramática tradicional e na concepção de língua como sistema, mesmo tendo a escola se
aberto para a entrada de pessoas das camadas populares. A disciplina chamava-se
“Língua Portuguesa” (SILVA, 2008).
Na década de 70, sob influência da ditadura civil-militar, a língua passa a ser
vista como mero instrumento de comunicação, e a disciplina de Língua Portuguesa
passa a se chamar “Comunicação e Expressão” e “Comunicação em Língua
41
Portuguesa”, no então 1º grau (hoje, Ensino Fundamental), e “Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira”, no então 2º grau (hoje, Ensino Médio) (SILVA, 2008).
Existem autores que também situam sua análise na década de 1970, mas
utilizando o arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa, mais
especificamente aquela em que se situa Dominique Maingueneau, a fim de enfatizar que
esse período ensejou uma reordenação discursiva com efeitos sobre a constituição da
organização curricular oficial para o ensino de oito anos, tal como estabelecido pela Lei
5.692/71 (DE PIETRI, 2013).
Nos anos 1980, a Linguística ganha mais espaço na escola, e há uma proposição
mais interacionista para se ensinar língua materna nos documentos oficiais, mesmo que
isso não chegasse às práticas docentes nas escolas. Nesse período, a disciplina volta a se
chamar “Português” / “Língua Portuguesa” em todos os segmentos. Em relação aos
anos de 1990, alguns acontecimentos merecem destaque: a promulgação da Lei nº 9394
(LDBEN) em 1996, que passa a defender um ensino de LP mais voltado à diversidade e
à cidadania, e a publicação dos primeiros PCN, em 1998, que desde então aludiam à
importância de se ensinar LP utilizando a concepção de língua e de gêneros do discurso
propostos por Bakhtin. Essas mudanças, contudo, faziam parte das discussões
acadêmicas, mas continuavam longe das escolas (CUSTÓDIO, 2010).
Os recortes que privilegiam desenvolvimentos situados geograficamente também
são recorrentes no campo de pesquisa sobre ensino de LP, oferecendo problematizações
frente aos documentos oficiais do currículo de LP específicos para determinados estados
e municípios — como no caso de estudos situados nos estados do Paraná (ATHAYDE
JÚNIOR, 2006), Rio de Janeiro (SILVA, 2008 e 2012), São Paulo (CUSTÓDIO, 2010)
e Santa Catarina (DORNELLES, 2008; RODRIGUES, 2009) — ou, ainda, análises do
discurso de documentos oficiais sobre o currículo de LP, conforme investigação feita no
município de São Bernardo do Campo, São Paulo (FAVARETTO, 2013).
Para os objetivos deste capítulo, os estudos sobre Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) também são importantes nesse quadro geral, sobretudo os que,
pautados numa perspectiva dialógica, não reduzem a análise à especificidade dos PCN,
mas o fazem na relação com as práticas e os livros didáticos dessa disciplina
(ALMEIDA e SOUZA, 2011). O que se verifica, porém, é que a concepção de
linguagem dos documentos oficiais não dialoga com o que prescrevem os livros
42
didáticos (SILVA, 2008; SILVA, 2012; SILVA e CYRANKA, 2009), ou seja,
apresentam contribuições que não chegam realmente às escolas (RODRIGUES, 2007),
o que se percebe claramente não só pelos próprios documentos, mas também através de
entrevistas feitas com professores (RODRIGUES, 2011). Daí a constatação da
dicotomia currículo formal versus currículo real, questão problematizada mediante uma
contextualização histórica dos PCN no que se refere às prescrições dos discursos
oficiais e às determinações dos currículos de LP (MARINHO, 2007).
É importante mencionar, ainda, que vários dos estudos citados partem de
reflexões sobre as teorias do currículo e utilizam em suas referências bibliográficas
autores como Silva (2006, 2011) e Moreira (2001), os quais traçam um histórico dessas
teorias para apontar que outras mudanças precisam surgir no contexto educacional
brasileiro contemporâneo.
A questão discutida neste capítulo, portanto, está inserida nesse cenário denso de
debates, que envolve o ensino e o currículo de LP, apresentado anteriormente. Pretende-
se verificar em que medida as questões étnico-raciais começam a se integrar ao
currículo de LP, passando por comentários sobre as LDBEN, em que se incluem as leis
10.639/2003 e 11.645/2008; os PCNEM; as NDCNEB; as OCEM; e a BNCC (ainda em
trâmite), e, ainda, passando por uma análise das avaliações propostas pelo ENEM, que
acabam por influenciar o currículo das disciplinas escolares.
3.2 – Prescrições curriculares frente à LDBEN e às leis 10.639/03 e 11.645/08
Aos problemas elencados no levantamento do estado da questão — como a
percepção de que, na maioria das vezes, o que é prescrito nos documentos oficiais não é
efetivado nos currículos e, consequentemente, nas escolas — há de se acrescentar o
tema central desta dissertação: a problemática étnico-racial. Isso porque a pesquisa no
Portal CAPES com os descritores “Bakhtin and currículo and relações étnico-raciais” e
"racismo and ensino de língua portuguesa" não apresentou nenhum resultado específico,
fator que, sem dúvida, mostra mais uma lacuna no horizonte do campo de estudos. O
intuito dessa pesquisa, portanto, é, também e principalmente, dar uma contribuição
específica, sobretudo no campo da aplicação das leis 10639/03 e 11645/08, que ainda se
43
mantém distante das pesquisas sobre o currículo, os PCN, o ensino e os livros didáticos
de LP, pelo menos em uma perspectiva bakhtiniana.
Para compreender o processo histórico de criação de leis para regulamentar o
ensino no Brasil, é interessante ressaltar que, desde a chegada dos padres jesuítas, em
1549, há disputas por uma unificação curricular no Brasil. Como o objetivo aqui não é
aprofundar os estudos sobre a história da educação no Brasil, falaremos especificamente
sobre a LDBEN. A primeira foi aprovada em 1961 (Lei nº 4.024), e logo interrompida
devido ao golpe militar de 1964, que, em seguida, promulgou as Leis nº 5.540/68 e nº
5.692/71 para um novo modelo educacional, mais voltado para o mercado de trabalho.
Somente em 1996 foi promulgada a LDBEN vigente hoje, que foi regulamentada em
1998 pelas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN). Nessa proposta, todos têm direito a cursar o ensino
médio, mais voltado para a cidadania. Descreve, ainda, propostas para além da educação
básica (ensino fundamental e ensino médio), como a educação superior e a educação
profissional (com três níveis de ensino: o básico, o técnico e o tecnológico) (GARCIA,
2011).
Mesmo com a tentativa de uma unificação curricular regida por leis, muitas
delas continuam a ser silenciadas, o que ressalta a viabilidade e a relevância da presente
pesquisa. A lei 10.639/2003, ao alterar a LDBEN (9.394/1996), obriga que a Instituição
Escolar introduza, no currículo de todos os níveis de educação formal, o ensino sobre
História e Culturas Afro-brasileira e Africanas. Além disso, inclui no calendário escolar
o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Essa lei, primeira lei relacionada à educação que realmente apresentou forte
enfrentamento ao racismo, é resultado de um longo processo histórico de lutas dos
movimentos negros, que reivindicavam igualdade de direitos na sociedade desde o fim
do século XIX, com a abolição. Esses movimentos se fortaleceram ao longo do tempo,
principalmente a partir da criação da Frente Negra Brasileira, em 1931. Desde então,
outros grupos de resistência foram sendo criados, fortalecidos e passaram, cada vez
mais, a buscar equidade social e racial. A lei 10.639/2003, portanto, possui evidente
dialogismo como todas essas vozes que carrega consigo, as quais, há muito tempo,
valorizavam a população negra e a cultura e memória de seus ancestrais (CAETANO,
2013). Também não se pode deixar de dizer que essa lei e todos os outros documentos
44
oficiais analisados no presente capítulo entraram em vigência a partir dos anos 90 do
século XX, quando o neoliberalismo passou a ser uma ideologia dominante na política
brasileira. Isso, contudo, não desvalida a lei e as outras prescrições, que, apesar das
críticas, contribuem para uma educação antirracista9.
O fragmento transcrito abaixo, da Resolução nº 1 de 17 de junho de 2004, feita a
partir do Parecer CNE/ CP nº 03 de 10 de março de 2004, declara que tal introdução no
currículo deve se operar por meio de disciplinas específicas. Em relação aos professores
de Língua Portuguesa, o viés que a resolução vislumbra é a literatura, ramo do ensino da
referida disciplina.
Art. 1° - A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem
observadas pelas instituições de ensino de Educação Básica, nos
níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação Média,
Educação de Jovens e Adultos, bem como na Educação Superior, em
especial no que se refere à formação inicial e continuada de
professores, necessariamente quanto à Educação das Relações Étnico-
Raciais; e por aquelas de Educação Básica, nos termos da Lei
9394/96, reformulada por forma da Lei 10639/2003, no que diz
respeito ao ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, em especial em conteúdos de Educação Artística, Literatura
e História do Brasil. (BRASIL, 2004)
Em 2008, foi promulgada a lei 11.645, que altera a 10.639/2003, incorporando a
ela a história e a cultura dos povos indígenas. Também é importante mencionar, sobre a
trajetória dos povos indígenas na escola, o que diz a LDBEN em seus artigos 78 e 79:
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das
agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios,
desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta
de educação escolar bilingüe e intercultural aos povos indígenas, com
os seguintes objetivos:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação
de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades
étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
9 Entende-se educação antirracista como uma prática social que procura democratizar o processo de
ensino através da incorporação e valorização de aspectos dos vários grupos socioculturais presentes no
mundo escolar e enfrentar ações e ideias racistas (Caetano, 2013).
45
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às
informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade
nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de
ensino no provimento da educação intercultural às comunidades
indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
§ 1º Os programas serão planejados com audiência das comunidades
indígenas.
§ 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos
Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:
I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada
comunidade indígena;
II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado
à educação escolar nas comunidades indígenas;
III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo
os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;
IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico
e diferenciado.
§ 3o No que se refere à educação superior, sem prejuízo de outras
ações, o atendimento aos povos indígenas efetivar-se-á, nas
universidades públicas e privadas, mediante a oferta de ensino e de
assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e
desenvolvimento de programas especiais. (Incluído pela Lei nº 12.416,
de 2011) (BRASIL, 1996)
Ainda sobre a questão indígena, a Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988, em seu artigo 210, afirma que “§2º O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL,
1988). Isso permite entendermos que há, de fato, uma tentativa de preservação das
línguas indígenas, bem como de suas culturas, o que, na prática, não se pode observar,
principalmente quando vêm à tona as lutas por demarcação das terras indígenas, o
genocídio dos povos indígenas, e, consequentemente, o desaparecimento de diversas
línguas, o que pode ser encontrado, dentre outras fontes, no Relatório Figueiredo10
.
Em relação ao conjunto de leis que formam a LDBEN, vale destacar, ainda, que,
de acordo com o Art. 3º, o ensino deve ser ministrado com base em diversos princípios,
e um deles é a “consideração com a diversidade étnico-racial” (item XII, incluído pela
Lei nº 12.796, de 2013). Apesar de haver a determinação do Estado e do pleito de
10 Trata-se de um documento com cerca de sete mil páginas, “redescoberto” em 2013 no Museu
do Índio, que relata as atrocidades cometidas contra populações indígenas, entre os anos 40 e 60.
(Disponível em <http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/9197> Acesso em 10 nov.2015).
46
segmentos considerados minoritários, que desejam um lugar de igualdade (entenda-se
também de poder) na sociedade, há, no momento presente, um grande descompasso
entre as determinações governamentais, os livros didáticos, a ação docente e a formação
docente, inclusive aquela efetivada pelas universidades públicas, já que nem sempre
contam com um corpo docente preparado, por exemplo, para discutir questões étnico-
raciais e implementar as leis.
Esse cenário, brevemente referido, constitui, a meu ver, um movimento de
resistência do aparelho ideológico do próprio Estado: a Escola (ALTHUSSER, 1992).
Não que a escola seja um aparelho ideológico no sentido de estar totalmente estagnada e
não permitir transformações, contudo muitas instituições de ensino que deveriam ir ao
encontro de uma política equilibrada – mais justa –, em função de uma presença
massiva de intelectuais conservadores, vão justamente de encontro a essa política.
Então, é possível perceber que a LDBEN oferece alguns mecanismos para a
promoção da equidade racial e social, todavia, como já foi dito, as atividades realizadas
não refletem as prescrições.
3.3 Prescrições curriculares frente aos PCNEM
Nesta seção pretendo comentar sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa do Ensino Médio (PCNEM), já que são importantes instrumentos
que compõem o currículo e cujo estudo faz parte de ementas de disciplinas obrigatórias
nos cursos de licenciaturas. Assim, é necessário verificar se o conteúdo desses
documentos oficiais contribui para manter o emparedamento do currículo, ou se são
inovadores, mas talvez não sejam efetivamente implementados.
Os primeiros Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) tiveram sua versão
preliminar em 1995, e foram lançados em 1998, em formato de livro, dois anos depois
da promulgação da LDBEN. O texto fora escrito com a participação de professores
brasileiros e estrangeiros, especialistas e instituições governamentais e não
governamentais (SARAIVA, 2012). Esse documento do Ministério da Educação já
apresentava sugestões para um novo modelo educacional no Ensino Fundamental. Os
PCN, além dessas considerações, podem ser entendidos como o resultado de uma
tentativa de o MEC implementar o artigo 210 da Constituição da República Federativa
47
do Brasil, de 1988, segundo o qual “serão fixados os conteúdos mínimos para o ensino
fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais.”.
Também é relevante dizer que os PCN foram criados para facilitar e atender ao
que é dito no artigo 9º, inciso IV, da LDBEN, que afirma que a União incumbir-se-á de
estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o
ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e
seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica
comum; (BRASIL, 1996)
De acordo com Araújo (2001), há três problemas envolvidos nos PCN de 1998,
em relação à disciplina LP: não esclarecer a fundamentação teórica que norteia o
documento, não estabelecer claramente seu interlocutor (parece ter sido escrito para
linguistas, e não para professores) e pretender ser um documento norteador em um
momento em que se quer valorizar a pluralidade e a diferença. Vale, realmente, indagar
se essa “formação básica comum” respeita(va) as especificidades locais, e não apenas as
globais.
Como o foco deste trabalho é o Ensino Médio, analisaremos especificamente os
PCNEM, primeiramente publicados em 2000, e depois reformulados como PCN+ em
200211
. Uma das mudanças significativas que os PCN, de modo geral, apresentaram foi
a ideia de os discentes desenvolverem competências e habilidades. Outra mudança foi a
organização do Ensino Médio em três áreas, “Ciências da Natureza e Matemática”,
“Ciências Humanas”, e “Linguagens e Códigos”, as quais deve(ria)m organizar e
interligar disciplinas. Ainda é preciso destacar que os PCN, PCNEM e PCN+ são
parâmetros, paradigmas, logo induzem a uma prática, mas não são obrigatórios
(FARIA, 2006).
Em relação ao ensino de Língua Portuguesa, nos PCNEM de 2000, há um
discurso aberto às questões sociais, na parte em que se afirma que “o estudo de língua
materna na escola aponta para uma reflexão sobre o uso da língua na vida e na
sociedade” (p.15). A abordagem desse documento é, inclusive, bastante bakhtiniana
11 Não foi encontrada, no site do MEC, a data de publicação dos PCN+. Há, contudo, vários estudos que
indicam que os PCN+ foram publicados em 2002 (Saraiva, 2012; Faria, 2006)
48
(Bakhtin é indicado explicitamente na bibliografia do documento), por induzir a um
ensino mais linguístico que puramente gramatical, menos autoritário, destacando, ainda,
a importância de se contextualizar sócio-culturalmente as questões que envolvem o
ensino de língua materna e as relações dialógicas que se estabelecem nela e na
linguagem de modo geral. Ressalta, ainda, que o docente deve refletir sobre sua prática,
o que é bastante pertinente e fundamental. Não há, contudo, na seção “Conhecimentos
de Língua Portuguesa”, nada que atente diretamente para a necessidade de se discutir
especificamente nessa disciplina questões étnico-raciais. O que se pode encontrar são
menções às noções de identidades e às construções sociais dos discursos.
Os PCN+ de 2002, por sua vez, configuram um documento mais didático,
contando, inclusive, com um item “Sobre a formação do professor”, em que é referida a
necessidade da luta contra “os preconceitos e as discriminações – sexuais, étnicas e
sociais” (p.89). As seções são muito mais detalhadas e específicas. Nesse documento, o
ENEM foi mencionado, o que demonstra a importância que esse exame ganhou como
eixo orientador da construção curricular. As discussões sobre questões étnico-raciais,
porém, continuaram parecendo de certa forma optativas para os docentes de LP (a
palavra “negro” só apareceu no componente curricular de Educação Física, e a palavra
“indígena”, em Artes).
Assim, pesquisas recentes apontam que, em relação ao Ensino Médio, poucos
professores realmente debruçam-se no estudo desses documentos, e sua efetivação
raramente acontece nas escolas brasileiras e nos livros didáticos (SANTOS, 2009;
LIMA, 2012).
3.4 Prescrições curriculares frente às NDCNEB
As primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais foram criadas na década de 1990,
e desde então têm sofrido mudanças (MACHADO & LOCKMANN, 2014). As Novas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (NDCNEB) estão disponíveis
para acesso e download no site do MEC, contando com 562 páginas, publicadas em
2013. São novas porque foram atualizadas, levando em consideração as mudanças
ocorridas nos últimos anos, que ampliaram o direito de crianças e adolescentes em
relação à educação. Foram formuladas com embasamento no que dizem os PCN, a
49
LDBEN e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dentre outras leis e
prescrições. Servem para sistematizar os princípios da educação básica, estimular
reflexões e orientar cursos de profissionais, bem como sistemas de ensino. Trata-se de
um documento completo, que
além das Diretrizes Gerais para Educação Básica e das suas
respectivas etapas, quais sejam, a Educação Infantil, Fundamental e
Média, também integram a obra as diretrizes e respectivas resoluções
para a Educação no Campo, a Educação Indígena, a Quilombola, para
a Educação Especial, para Jovens e Adultos em Situação de Privação
de Liberdade nos estabelecimentos penais e para a Educação
Profissional Técnica de Nível Médio. Além disso, aqui estão presentes
as diretrizes curriculares nacionais para a Educação de Jovens e
Adultos, a Educação Ambiental, a Educação em Direitos Humanos e
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro- Brasileira e Africana (BRASIL, 2013, p.4).
Assim, essas diretrizes destacam a importância, ou melhor, cobrança, de se
valorizar a diversidade cultural. Segundo Nilma Lino Gomes, hoje ministra no
Ministério da Cidadania, essa cobrança surge da percepção de certos grupos, antes
considerados diferentes, de que suas identidades devem ser respeitadas, o que pode ser
alcançado com um tratamento justo e igualitário em um processo de desconstrução da
inferioridade construída, dentro de um campo político de disputas por poder. A autora
também afirma que esses grupos repudiam o poder uniformizador da escola, e têm
questionado os currículos e interferido até mesmo na construção de leis e das diretrizes
curriculares nacionais (GOMES, 2007).
Além disso, não se pode deixar de trazer à baila as reflexões que as NDCNEB
apresentam logo na página 14, em que menciona que muitos docentes consideram os
PCN e as diretrizes como “meros papéis”. Como resposta, a NDCNEB diz que
a educação para todos não é viabilizada por decreto, resolução,
portaria ou similar, ou seja, não se efetiva tão somente por meio de
prescrição de atividades de ensino ou de estabelecimento de
parâmetros ou diretrizes curriculares: a educação de qualidade social é
conquista e, como conquista da sociedade brasileira, é manifestada
pelos movimentos sociais, pois é direito de todos. (BRASIL, 2013)
Há de se destacar, contudo, que, no contexto político-contemporâneo da inclusão
de diferenças, muitos docentes chegam à atividade profissional com lacunas na
formação, responsáveis por paralisá-los nas vezes em que se defrontam, em sala de aula,
50
com as questões de discriminação, especialmente as étnico-raciais. E esse fato tem
ocorrido com muitos educadores, às vezes por falta de preparo ou até mesmo por
preconceitos que carregam consigo. Não percebem que o momento da discriminação é
propício para se debater muitas questões, promovendo a conscientização da diversidade
como riqueza e contribuindo para que o aluno discriminado tenha orgulho de sua
diferença (MUNANGA, 2008). Isso ajudaria a aumentar a autoestima de todo o corpo
discente, o que elevaria o desempenho da turma.
O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Culturas
Afrobrasileira e Africana reforça que
[...] é na escola onde as diferentes presenças se encontram e é nas
discussões sobre currículo onde estão os debates sobre os
conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações
sociais, os valores e as identidades dos alunos e alunas. [...] que a
educação deve concorrer para a formação de cidadãos orgulhosos de
seu pertencimento etnicorracial, qualquer que seja este, cujos direitos
devem ser garantidos e cujas identidades devem ser valorizadas
(BRASIL, 2014, p.10).
Merece destaque também o fato de muitos professores estarem se sensibilizando
para as questões étnico-raciais, promovendo debates em sala e ações coletivas para
descontruir as desigualdades. De certa forma, os instrumentos legais podem respaldar os
professores que desejam contribuir para o desemparedamento do ensino, mesmo que
não tenham o apoio de sua equipe de trabalho, ou até da gestão escolar12
.
As questões étnico-raciais permeiam todas as diretrizes que formam as
NDCNEB, inclusive são destacadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, que fazem parte das NDCNEB. Ressalto, contudo, que aquelas
diretrizes enfatizam a luta dos negros, relegando, de certa forma, a luta dos povos
indígenas – os quais têm desaparecido do cenário brasileiro –, e de outros grupos étnico-
raciais que constituem a população brasileira. Mesmo assim, o fato de se encontrar a
12 Nos últimos anos, diversas notícias sobre casos de professores e diretores de escolas que
impediam e impedem a aplicação da lei 10.639/03, principalmente por motivos religiosos, foram
publicadas em jornais e revistas online.
51
problematização de questões étnico-raciais em diretrizes como a NDCNEB já pode ser
considerado um enorme avanço no quadro político-educacional brasileiro.
As NDCNEB, portanto, são diretrizes, ou seja, esboçam planos e metas, sem o
objetivo de promover ações uniformes. Não trazem os conteúdos específicos que cada
disciplina deve trabalhar, porque não valorizam um ensino conteudista. Procuram, sim,
nortear os envolvidos nos processos educacionais, sobretudo em relação a como agir de
maneira a atender interesses sociais plurais e a como transformar a escola em um espaço
de formação cidadã.
Além disso, as diretrizes têm força de lei e podem, de fato, colaborar na
reparação de desigualdades histórico-sociais, e o ensino em um país como o Brasil não
pode silenciar o racismo e o “racismo à brasileira”13
, velado. Outra questão positiva das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana é o aparecimento do conceito de
raça não tão essencializado como nos outros documentos, pela ênfase de que, no Brasil,
a raça é uma construção social e histórica, e não deve ser limitada aos fenótipos
individuais. O texto dessas diretrizes desafiam os docentes a pensarem sobre o que é
raça e como lidar com múltiplas identidades que emergem na sala de aula, já que
vivemos em constantes processos de intercâmbios culturais (MATTOS & ABREU,
2008).
É importante mencionar, ainda, que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana foram publicadas em 2004, e desde então muitas pesquisas já
foram realizadas nesses últimos onze anos, inclusive em nível de pós-graduação. O
Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288), por exemplo, foi promulgado em 2010, e
colaborou e colabora para a construção de uma sociedade antirracista, já que trouxe
definições do que são: discriminação racial ou étnico-racial, desigualdade racial,
desigualdade de gênero e raça, população negra, políticas públicas, e ações afirmativas.
O estatuto assegura à população negra os mesmos direitos de todos os cidadãos (como
13 Muitos teóricos que estudam relações étnico-raciais utilizam esse termo (cf. Schwarcz, L.M. Quase
pretos, quase brancos. Entrevista. PESQUISA FAPESP 134 / ABRIL DE 2007. Disponível em
<http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2007/04/10-15-schwarcs-134.pdf?cffa13> Acesso
em 11 nov. 2015.
52
direito à saúde, à educação, à cultura, ao lazer, ao esporte, à liberdade de consciência e
de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos, bem como o acesso à terra e à
moradia, ao trabalho, aos meios de comunicação, à segurança, à justiça). Tudo isso,
efetivamente, não acontecia de maneira uniforme com toda a população (e muitas vezes
ainda não acontece), tendo a população “branca” adquirido certos privilégios ao longo
da história do Brasil. Ainda sobre o estatuto, destacamos a criação do Sistema Nacional
de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR) para colaborar na implementação do
conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas
brasileiras. O estatuto também prevê financiamento para iniciativas de promoção da
igualdade racial.
Refaço, aqui, a mesma crítica feita as NDCNEB no que diz respeito
principalmente aos povos indígenas. Um Estatuto da Igualdade Racial que nem sequer
menciona os povos indígenas deve ser repensado para que a luta pela igualdade racial
no Brasil ganhe mais força. Esses povos são, há séculos, massacrados, e ainda hoje são
silenciados, seja pelas mídias ou até pelos documentos oficiais, o que deve ter
reparação. Se, por um lado, isso mostra a força dos Movimentos Negros, por outro,
reforça o apagamento, o esquecimento dos povos indígenas.
3.5 – Prescrições curriculares frente às OCEM
Nesta seção, serão feitos comentários sobre as Orientações Curriculares para o
Ensino Médio. Essas orientações são divididas por áreas de conhecimento, em três
volumes. O volume 1 é o que será comentado, da área de “Linguagens, códigos e suas
tecnologias”, em que se situa a disciplina de LP. De acordo com o site do MEC, essas
orientações, publicadas em 2006, elaboradas por professores, alunos e acadêmicos, bem
como por equipes técnicas dos Sistemas Estaduais de Educação, objetivam “contribuir
para o diálogo entre professor e escola sobre a prática docente”. Visa, ainda, a melhorar
a qualidade da escola e estimular reflexões, e afirma que “o desafio de oferecer uma
educação básica de qualidade para a inserção do aluno, o desenvolvimento do país e a
consolidação da cidadania é tarefa de todos”.
Especificamente no capítulo 1, “Conhecimentos de Língua Portuguesa”, ganha
um destaque a importância de se refinar, no Ensino Médio, as habilidades de leitura e de
53
escrita, de fala e de escuta, esclarecendo a opção teórica, fundamentada na Linguística e
na Linguística Aplicada. Em seguida, traça um breve histórico do ensino desse
componente curricular, para se chegar a uma abordagem interacionista, trazendo
reflexões sobre língua e linguagem. O texto deixa claro que o novo tipo de ensino de LP
proposto não se restringe à língua escrita e nem está ligado aos padrões de língua sócio-
culturalmente hegemônicos, defendendo, portanto, a abordagem do letramento.
As OCEM não se mostram autoritárias na definição dos conteúdos. Pelo
contrário, dizem que “cabe à escola, junto com os professores, precisar os conteúdos a
serem transformados em objetos de ensino e de aprendizagem bem como os
procedimentos por meio dos quais se efetivará sua operacionalização.” (p.35). Estimula,
ainda, o trabalho com os gêneros discursivos (Bakhtin é explicitado na bibliografia do
capítulo). Em seguida, são apresentados quadros com eixos organizadores de atividades,
didaticamente, para exemplificar o que fora comentado anteriormente, com vários
exemplos ilustrativos.
No capítulo 2, “Conhecimentos de Literatura”, logo em sua introdução,
apresenta uma crítica aos PCN+, que fundiu literatura e língua portuguesa em uma
única disciplina. Nas OCEM, LP e Literatura aparecem como disciplinas autônomas, o
que demonstra uma tensão nessa “arena de discursos”, cujos lutadores deveriam
pertencer à mesma equipe, que por vezes se choca entre si. Várias outras críticas aos
PCN+ aparecem ao longo de todo o capítulo, que defende, portanto, a literatura no
Ensino Médio como uma forma de se obter conhecimentos culturais, autonomia
intelectual e pensamento crítico, sugerindo, portanto, o letramento literário. O professor,
nesse processo, ganha o papel de mediador na formação dos leitores.
Outro destaque interessante sobre esse capítulo é a problematização da ideia de
uma literatura canônica, que exclui da escola grandes autores e autoras da literatura.
Nessa parte, entra, ainda, uma crítica aos livros didáticos, que geralmente colaboram
para a manutenção dessa literatura excludente. Bakhtin também aparece como um dos
autores da bibliografia do capítulo.
É possível perceber, até o que foi aqui comentado, que há um excesso de
prescrições – nem sempre compatíveis, apesar de serem dialógicas – e que elas nem
sempre são concretizadas nas ações docentes, os quais se veem despreparados para lidar
com tantas demandas prescritas, e ainda com as ementas que as instituições de ensino
54
autonomamente elaboram. As assimetrias de discursos presentes em cada um desses
documentos tencionam ainda mais o conflito de um professor eventualmente
interessado em adotá-los, pois teria dúvidas do que seguir diante desse cenário ambíguo.
3.6 – Prescrições curriculares frente à BNCC
Como se não bastassem todas as prescrições já mencionadas, está em trâmite a
Base Nacional Comum Curricular, que ficou disponível para consulta pública no site do
MEC e aberta para sugestões e críticas de toda a sociedade. Todos os outros
documentos oficiais supramencionados, em algum momento, falam sobre uma base
curricular comum14
, que, aos poucos, vai se concretizando na forma da BNCC. Na
realidade, desde a Constituição Federal de 1988 já se previa a criação de uma base
curricular comum. As NDCNEB enfatizam que “é proposta do CNE o estabelecimento
de uma Base Nacional Comum que terá como um dos objetivos nortear as avaliações e a
elaboração de livros didáticos e de outros documentos pedagógicos” (p.13). Se isso
ocorrer, será um grande avanço, pois ainda não temos visto todas essas prescrições
chegarem, de fato, aos livros didáticos que, mesmo com o filtro do Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), estão inseridos em um mercado editorial muito poderoso.
Na BNCC, as disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura aparecem fundidas
em uma só: Língua Portuguesa; organizada em cinco eixos. Uma diferença entre a
BNCC e os outros documentos oficiais é a divisão, por série do Ensino Médio, dos
assuntos que devem ser trabalhados. Valoriza o trabalho por gêneros discursivos, a
literatura contemporânea, e a diversidade, como a memória indígena e africana, sempre
no confronto com o contexto social e histórico da produção. A ideia de uma educação
linguística, com menos ênfase na gramática, contudo, tem sido amplamente criticada na
grande mídia.
14 Constituição Federal de 1988: Art. 210: Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental,
de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais. LDBEN de 1996: Art. 26: Os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do
Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em
cada estabelecimento escolar.
55
A BNCC parece ser inovadora e indutora de ações emancipadoras, colocando o
discente, pela primeira vez, numa posição um pouco mais autônoma. Ainda não é
possível, contudo, avaliar profundamente a BNCC, visto que seu texto está sendo
revisto constantemente. Havia uma versão disponível em setembro de 2015, e outra um
mês depois, com mudanças significativas. Em março de 2016, foi encerrada a consulta
pública, com mais de doze milhões de contribuições propostas15
.
Também não se pode deixar de mencionar que recentes estudos percebem a
BNCC de modo negativo, entendendo que “o alargamento da escola e o deslocamento
das funções da docência são verdades que estão se naturalizando no interior de uma
racionalidade política neoliberal.” (MACHADO & LOCKMANN, 2014)
3.7 – Prescrições curriculares frente à tradição e as induções do ENEM
Estudos de psicologia acerca da execução de atividades profissionais indicam
que o trabalho efetivamente realizado não corresponde exatamente às normatizações
antecedentes, sendo distinto do planejado, razão pela qual o trabalho real não representa
a tarefa prescrita (BRITO, 2006). As premissas dessa abordagem psicológica, que
considera o trabalho humano segundo o ponto de vista da atividade, são que sempre há
uma assimetria entre as normas e prescrições, por um lado; e o labor real, cotidiano, por
outro.
No caso da atividade do professor de Língua Portuguesa, o mesmo acontece. O
trabalho realizado em sala de aula difere da diretriz norteadora. Assim, se o exame de
documentos oficiais permite a verificação de muitos avanços, o que se vê na prática é o
ensino formal da norma culta da língua. Parâmetros, normas, e orientações progressistas
nem sempre têm vez frente à tradição. E quando não há espaço para a negociação, a
tradição docente no ensino de LP não necessariamente reproduz o que está prescrito nos
documentos mais emancipadores. Realmente, estudos recentes mostram que as práticas
docentes e os materiais didáticos não estão em efetiva relação dialógica com os
documentos oficiais (CUSTÓDIO, 2010), e indicam também que há pouquíssima
15 De acordo com o site do MEC. Disponível em <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio>
Acesso em 17 mar. 2016.
56
interação entre os livros didáticos de LP e os PCN (MONTEIRO, 2008). Desse modo,
fica nítido que o ensino perpetua-se de forma bastante tradicional.
Além disso, muitos professores ainda valorizam demasiadamente a literatura
canônica, e esquecem que o conceito de cânon deve sempre ser problematizado, pois no
momento em que determinadas obras passam a habitar o cânon, outras vozes são
silenciadas e excluídas. O acesso a diversos gêneros discursivos realmente poderia
contribuir para que os alunos percebessem o dinamismo da LP, numa tentativa de não
reforçar os estereótipos discriminatórios (REIS, 1992). O problema é que, mesmo
frente às várias mudanças que os documentos oficiais prescrevem e/ou sugerem, muitas
escolas ainda se mantêm apegadas ao ensino tradicional, pela valorização apenas da
norma culta da língua. E isso sem falar dos aspectos que geralmente costumam
hierarquizar dirigentes, docentes e discentes, em um processo silenciador de
reivindicações e mudanças.
Mesmo assim, vale lembrar que algumas instituições de ensino, sobretudo as
privadas, que tinham a tradição de desconsiderar prescrições curriculares para
atenderem ao pragmatismo imposto pelos exames vestibulares, passam a lidar, hoje em
dia, com novas expectativas. Elas começam a se transformar para atender às demandas
do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), já que ele também é usado, hoje, para
avaliar o desempenho escolar. Esse exame foi criado em 1998 e reformulado em 2008
com o objetivo de substituir o velho modelo de vestibular. E como o ENEM pretende
ser mais voltado para a realidade dos alunos, com caráter menos conteudista e mais
reflexivo, poderia configurar-se como uma indução curricular contrária à tradição.
Uma recente dissertação de mestrado fez um levantamento de 17 provas do
ENEM, de 1998 a 2013 (uma prova foi anulada, mas entrou na análise), somando 918
itens avaliados. Desses, somente 31 contemplavam a população negra, sendo 23
abordados pejorativamente, e 8 valorizando aspectos culturais, sendo 7 desses 8
posteriores a 2011 (MOREIRA, 2015). Isso pode demonstrar uma tendência, ainda que
tímida, de a lei 10.639/03 começar a ser incorporada no ENEM, o que certamente
influenciará nas escolas que optarem por seguir esse modelo como parâmetro de ensino.
Não foram encontradas pesquisas que fizessem semelhante levantamento em relação às
questões que envolveram os povos indígenas.
57
3.8 Reflexões desemparedadoras
Numa perspectiva bakhtiniana, é possível dizer, portanto, que o currículo
efetivamente praticado, pensado em um momento histórico distante, muitas vezes não
leva em consideração a vida de hoje, da sociedade brasileira do século XXI. Como
consequência disso, vê-se um país ainda com baixa qualidade no ensino. E uma possível
resposta para isso pode ser pensada ao perceber que, diante de um currículo emparedado
– não somente o de Língua Portuguesa, mas de todos os componentes curriculares –
encontram-se alunos pouco ativos, pouco responsivos. A resposta dos alunos até existe,
mas é uma resposta que aparece em forma de reação, resistência, descaso, desinteresse.
Sendo assim, o currículo escolar deve ser repensado, atualizado, de modo que
todos os envolvidos no processo educacional, discentes e docentes, possam ter uma
maior compreensão responsiva ativa, produtiva, interativa. Levando em conta um
cenário educacional com muitos problemas, já que a escola nem sempre tem formado
para o pleno exercício da cidadania e para o mercado de trabalho, ou mesmo para os
enfrentamentos cotidianos da vida, novas propostas devem ser elaboradas: outros
enunciados são possíveis.
Se é, portanto, necessário ressignificar o ensino de Língua Portuguesa, é preciso,
então, perceber que a prática docente e o currículo dessa disciplina são como são porque
foram discursivamente construídos enquanto práticas sociais. E se essa construção é
discursiva, é preciso dizer o que entendo por “discurso”. Não existe transmissão de
ideias fora do corpo da linguagem. Também posso afirmar que tudo que expressamos
traduz um ponto de vista, o que nos leva a compreender que, no exercício da linguagem,
está afastada a ideia de neutralidade, e, por isso, o discurso é sempre ideológico. Fiorin
(1998), para discutir a constituição de formação discursiva, parte da noção de formação
ideológica, que representa uma determinada visão de mundo, acreditada por uma
determinada classe social. Essa visão de mundo é traduzida por meio da linguagem,
correspondendo, desta forma, a uma formação discursiva.
As práticas docentes, incluindo o currículo, estão necessariamente inseridas em
uma formação ideológica/ discursiva. Isso porque implica defesa de um ponto de vista
em detrimento de outras disputas na “arena dos conflitos” (FIORIN, 1998). Nesse
ponto, cabe indagar a formação discursiva a que estão filiadas as instituições de ensino.
58
Se entendemos que a escola é uma instituição do Estado, entendemos também que é
uma instituição inserida em relações de poder, necessariamente assimétricas. Assim, o
discurso que vigora na escola é o discurso do poder dominante, que é o da classe
dominante. A manutenção dos valores de verdade dessa classe não é pacífica: ela se dá,
entre outros, pela imposição dos aparelhos ideológicos (ALTHUSSER, 1992). Não que,
por ser aparelho ideológico, mudanças sejam impossíveis. Pelo contrário, justamente
por isso, os docentes devem se preocupar na concretização das mudanças.
As estratégias de naturalização de valores da classe dominante determinam as
práticas sociais que irão ser recorrentes. Elas serão um sustentáculo e um alicerce das
práticas discursivas em termos das verdades do currículo, do conhecimento, do ensino e
das relações interpessoais. É nesse sentido que se pode dizer que as práticas discursivas
estão relacionadas a práticas sociais, que produzem sentidos no cotidiano por meio da
linguagem. Em outras palavras, mesmo as relações cotidianas mais triviais envolvem
relações de poder (SPINK, 2010).
Na escola, portanto, como instituição organizada, essas relações são muito mais
estruturadas e aparecem sob formas fixas de enunciados para resguardar os interesses do
currículo: “Literatura africana não cabe em nossa grade”, “História da África foge ao
tempo disponibilizado para ministrar os conteúdos curriculares”, “Questões de gênero
dizem respeito à educação familiar”, “A literatura indígena é primitiva”. Esses e outros
discursos mantém o currículo emparedado. O grande desafio é a negociação das práticas
discursivas que permitam a fragilização das estruturas dessas paredes. No que tange ao
ensino de línguas, o texto é o limite, melhor dizendo, não há limite, já que para Bakhtin
um texto está sempre em relação dialógica com outros textos. A transversalidade de
temas favorece.
Por outro lado, a formação docente e discente, no Brasil, segue uma perspectiva
ainda muito conteudista, cujo saber enciclopédico é supervalorizado. As instituições de
ensino se propõem a formar pessoas preparadas para o mercado de trabalho e para
concursos, e pouco se preocupam com a formação de cidadãos proativos. A reflexão
nem sempre é estimulada, e os saberes apresentados, numerosos, parecem prontos e
acabados. Os conteúdos apreendidos são muitos, mas desconectados entre si e
desconectados do contexto sócio-histórico, e, por conseguinte, da vida. Tal desconexão
interfere no aprendizado e traz uma sensação de frustração aos estudantes, que muitas
59
vezes não conseguem deter totalmente o que é apresentado como sendo de suma
importância para sua formação e para sua vida.
Esses estudantes são clivados de sua autoestima e de sua autoconfiança. É um
dado da prática discursiva que atinge um aspecto psicológico necessário ao
investimento da aprendizagem. Muitas vezes, ficam assujeitados à estrutura filosófica
escolar, à estrutura curricular, a determinadas metodologias, a determinados processos
avaliativos, não percebem que estão presos à armadilha da ideologia dominante, que é
suporte para validar o sucesso ou o insucesso dos estudantes e os discursos que o
legitimam (POSSENTI, 2004).
Essa realidade, que se pode chamar, também, de prática discursiva, tem-se
transformado muito pouco ao longo dos anos. A educação brasileira, consequentemente,
vem apresentando resultados muito negativos, até mesmo nos exames para os quais a
escola diz se propor a formar.
Além disso, a escola, como um aparelho ideológico, teria que contribuir de
forma relevante para a formação cidadã, mas pouco se vê o exercício da cidadania nas
cidades do Brasil. De modo geral, há pessoas que jogam lixo no chão, não respeitam o
próximo, abandonam crianças e animais, não entendem a importância de recorrer à
justiça, mesmo quando em situações em que são vítimas... Seria possível enumerar
muitas outras ações que podem exemplificar o não exercício da cidadania. E pessoas
com essas atitudes, muitas vezes, passaram mais de dez anos na escola.
Aqui ficam alguns outros questionamentos, que entendemos ser problemas de
responsabilidade que poderiam ter sido problematizados na escola: que atenção é dada
àquele papel amassado que passa despercebido no canto da sala de aula? Que atenção é
dada à ação do estudante que distraidamente rabisca a carteira escolar no decurso da
aula? A discussão que se poderia travar com o aluno, entre outras, poria em relevância a
noção de público X privado, chamando a atenção para o fato de o público ainda nos
pertencer. Nossas indagações nos permitem concluir que se faz necessário refletir qual
tem sido o papel da escola no cenário atual.
Mais do que oferecer um diploma ou preparar para concursos ou para uma boa
vaga no mercado de trabalho, é preciso que o currículo seja repensado para proporcionar
uma formação humana integral. Esse tipo de formação prioriza a ética e a cidadania.
Prioriza o letramento, sobretudo o letramento racial, a fim de se construir uma educação
60
e uma sociedade antirracista e democrática. Não há como se propor uma formação
humana integral sem propor a transversalidade de temas nas aulas, para ser possível que
a cultura científica esteja em diálogo com a cultura humanística. O currículo, portanto, e
os saberes escolares estariam articulados aos conteúdos da vida. Essa religação
proporcionaria a formação de sujeitos proativos, preparados para enfrentar os desafios
de seu tempo com ética e solidariedade que os temas requisitam.
Podemos dizer, então, que as práticas curriculares vigentes não dão conta das
demandas sociais. Essa percepção tende a nos deixar perplexos, pois a sua negação, ou
subtração, pode nos colocar no vazio não só pedagógico, mas também político. Essa
lacuna só pode ser resolvida se olharmos para um outro currículo. Os estudos sobre
currículo nos fornecem uma concepção de currículo relacionada a práticas discursivas
que envolvem relações de poder, comprometidas com formações discursivas. Tais
práticas, dialógicas, defendem interesses em confronto. Só com o confronto, o professor
poderá decidir a qual formação discursiva se filiará para não estar assujeitado a um
currículo que trabalha, inclusive, contra os interesses de classe, a qual ele próprio pode
pertencer. Afinal, todos nós conhecemos as condições sociais nas quais a maioria dos
docentes está inserida.
Entender currículo como prática discursiva, que se insere em formações
discursivas, é fundamental para que não sejamos falados por interesses que não nos
interessam. Currículo é seleção, é tomada de posição. O argumento do conteúdo para
deixarmos de fazer determinadas aventuras cidadãs deixa de valer. Em outras palavras,
as mudanças do currículo só ocorrerão a partir do entendimento de suas engrenagens de
produção e de poder. O currículo não pode ser emparedado, nem emparedador.
3.9 Estratégias desemparedadoras
Os problemas, desafios e embates que surgem a partir da relação entre as
prescrições curriculares devem ser problematizadas, fundamentalmente porque supostos
avanços nos cursos de formação e nos documentos oficiais não devem ser concebidos
como se eles, por si só, fossem capazes de transformar práticas pedagógicas.
É nesse quadro de constatação da necessidade de processos “desemparedadores”
que vejo a possibilidade de propor um material didático, a ser apresentado no capítulo 5,
61
que dialogue com as leis vinculadas à educação das relações étnico-raciais e com os
outros documentos oficiais pensados para o Ensino Médio, sobretudo para o ensino de
LP. As prescrições já existem, e não são poucas, mas por si só não são capazes de
erradicar preconceitos, desconstruir ou desfazer ideologias e provocar mudanças nas
práticas sociais. É preciso fazer com que essas prescrições curriculares sejam efetivadas.
A sala de aula, até o presente momento, quase sempre desatenta a questões de
discriminação das diversas humanidades pelo contingente de sujeitos que abriga, é
espaço privilegiado de redemocratização e de construção de identidades cidadãs mais
amorosas, porque respeitosas das diferenças.
Isso nos faz confiar que estratégias desemparedadoras podem ser criadas a fim
de se conseguir um ensino de LP associado à formação humana integral (para o
exercício pleno da cidadania) e ao letramento racial. Como parte dessa dissertação,
haverá a proposição de um material didático que pode colaborar com os professores de
LP do Ensino Médio, não só pela possibilidade de utilizar o material que será
apresentado, mas também por estimular a produção de outros materiais.
Esse material partirá do ensino por gêneros discursivos. Dentro de cada unidade,
haverá temas norteadores para o trabalho com gêneros. Todos os temas a serem
discutidos partiram dos seguintes princípios, extraídos dos documentos oficiais
comentados neste capítulo da dissertação:
A) Direitos humanos como princípio norteador.
B) O princípio de igualdade.
C) O reconhecimento do direito étnico.
D) O orgulho do pertencimento étnico-racial.
E) A importância de não se desconsiderar as desigualdades seculares que a estrutura
social hierárquica cria, com prejuízos para os negros e os indígenas.
F) A superação da indiferença, injustiça e desqualificação contra os negros e
indígenas.
G) O conceito de raça como construção social, não biológica.
H) A dominação étnico-racial e a exclusão dos povos indígenas
62
A partir desse material e de outros que têm sido criados, pretendemos promover
o encontro da academia com a escola, sempre necessário, tantas vezes de difícil acesso.
Com a pesquisa associada à ação docente, mesmo em um cenário neoliberal, em que a
acumulação do capital é tida como essencial, e que é interessante política e
economicamente inserir mais indivíduos na sociedade – de consumo – , acreditamos ser
possível a construção de uma nova nação, mais justa, democrática e igualitária. E isso
pode, certamente, ser alcançado por meio da educação, quando formamos sujeitos
autônomos, orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial, capazes de refletir
criticamente sobre sua realidade e de lutar para transformá-la.
63
4 AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E OS LIVROS DIDÁTICOS
DE LÍNGUA PORTUGUESA
Como verificado no capítulo 3, os documentos oficiais que norteiam a educação
no Brasil (LDBEN, PCNs, NDCNEB, OCEM, leis 10.639/2003 e 11.645/2008 e
outros), e em especial o ensino de LP, induzem a um ensino emancipador, valorizador
das diferenças étnico-raciais. Contudo, verificou-se que, em que pese tal tendência
emancipatória, a realidade em sala de aula permanece segundo o viés tradicional.
Dessa forma, vale ressaltar, paralelamente às prescrições documentais, o
protagonismo que o livro didático assume no âmbito do ensino de LP. Quais são as
relações que podem ser identificadas entre o uso de determinados livros didáticos e a
consciência, ou alienação, frente às questões étnico-raciais? Os livros atendem,
efetivamente, aos propósitos preconizados pelas políticas de igualdade racial? Tais
questionamentos, sem dúvida, são fundamentais frente ao objetivo central desta
pesquisa.
Sendo assim, o propósito deste capítulo é analisar as relações dialógicas
(BAKHTIN, 1997b) entre as proposições de enfrentamento ao racismo (oriundas dos
documentos oficiais, conforme apresentadas no capítulo 3) e os livros didáticos de
Língua Portuguesa (LD), tendo como foco específico os gêneros do discurso
identificados em livros adotados pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Fluminense (IFF).
Tal objetivo se justifica por algumas razões. Como não seria possível, tendo em
vista as limitações de tempo implicadas nesta pesquisa, analisar todos os livros didáticos
aprovados no último Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – cujo edital foi
divulgado em 2012 – foi necessário fazer um recorte específico.
Portanto, dentre os vários livros didáticos aprovados pelo PNLD 2012, os livros
analisados serão circunscritos aos adotados no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Fluminense (IFF), instituição onde atuo desde 2012. Serão livros do Ensino
Médio, segmento em que atuo, de Língua Portuguesa e Literatura, disciplina que
ministro, com foco nas questões étnico-raciais que emergem dos livros.
64
A opção pelos gêneros do discurso também decorreu das contingências
limitadoras da pesquisa. Como não seria possível apresentar aqui, em totalidade, o
resultado da análise de todos os livros adotados em todos os campi do IFF, levou-se em
consideração o fato de que os documentos oficiais prescrevem que o ensino de língua
materna priorize o trabalho com os gêneros do discurso. Por isso, tendo como ênfase, no
que diz respeito às relações étnico-raciais e o ensino de Língua Portuguesa, o “gênero
do discurso”, foram selecionados nove exemplos representativos, sendo cada um desses
exemplos correspondente a um gênero do discurso diferente.
4.1 Procedimentos metodológicos
A metodologia utilizada para a análise seguiu uma série de procedimentos. A
delimitação e identificação dos livros adotados pelo IFF demandou uma pesquisa de
campo, porque cada um dos quatorze campi desse instituto tem autonomia para escolher
a coleção a ser adotada. Aspecto que, inclusive, explicita a variedade de livros
encontrada. No caso específico deste levantamento, vale mencionar que a escolha feita
em 2014, pela equipe de Língua Portuguesa de cada campus, definiu os livros a serem
adotados de 2015 a 2017.
As informações foram obtidas mediante consulta ao portal do IFF
(www.iff.edu.br) e via telefone, por meio de ligações para a diretoria de ensino de cada
campus, que colaborou com a presente pesquisa. A tabela 1, portanto, apresenta todos
os campi do instituto, com as respectivas coleções escolhidas e já em uso, ou, no caso
de novos campi, sem adoção de livros.
Campus – IFF Coleção de livro
didático adotada,
com título, editora
e autor(es)
Observações
65
Bom Jesus de
Itabapoana
Português:
contexto,
interlocução e
sentido. Moderna.
Maria Luiza M.
Abaurre, Maria
Bernadete M.
Abaurre e Marcela
Pontara
---
Cabo Frio Português:
contexto,
interlocução e
sentido. Moderna.
Maria Luiza M.
Abaurre, Maria
Bernadete M.
Abaurre e Marcela
Pontara.
---
Cambuci ---- Não possui cursos
de nível médio.
Campos – Centro Português:
contexto,
interlocução e
sentido. Moderna.
Maria Luiza M.
Abaurre, Maria
Bernadete M.
Abaurre e Marcela
Pontara.
Professores
informaram que
nem todos utilizam
a coleção. Alguns
professores
produzem o próprio
material.
Campos – Guarus Novas Palavras.
FTD. Emília
Amaral, Mauro
Ferreira, Ricardo
Leite e Severino
Antônio.
---
Centro de
Referência
---- Não possui cursos
de nível médio.
Itaboraí ---- O campus não está
em funcionamento.
Itaperuna Português:
contexto,
interlocução e
sentido. Moderna.
Maria Luiza M.
Abaurre, Maria
Bernadete M.
Abaurre e Marcela
Pontara.
---
66
Macaé Ser protagonista.
Edições SM. Obra
coletiva.
Professores
informaram que
nem todos utilizam
a coleção. Alguns
professores
produzem o próprio
material.
Maricá ---- Não possui livro
didático. Campus
inaugurado no
início de 2015, após
o período de
escolha.
Quissamã Língua Portuguesa.
Positivo. Roberta
Hernandes e Vima
Lia Martin
---
Rio Paraíba do Sul ---- Não possui cursos
de nível médio.
São João da Barra ---- Não possui livro
didático. Campus
inaugurado no
início de 2015, após
o período de
escolha.
Santo Antônio de
Pádua
----- Campus inaugurado
em outubro de
2015. Não possui
livro didático. Tabela 1: Livros adotados pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF)
Verifica-se, portanto, que, no âmbito do IFF, há quatro coleções de livros
didáticos diferentes a serem analisadas (vide tabela 2). Cada coleção é composta por três
volumes, cada um correspondendo a um ano do Ensino Médio, com cerca de 400
páginas por volume. Então, ao todo, doze livros serão analisados. Vale a pena dizer
ainda que todas essas coleções encontram-se no ranking disponibilizado no site do MEC
entre as coleções mais solicitadas em todo o Brasil.
Título da coleção Quantidade distribuída da coleção
Português: contexto, interlocução e
sentido.
1.107.291
Novas Palavras 924.597
Ser protagonista 608.356
Língua Portuguesa – Editora Positivo 235.628
67
Tabela 2: Ranking das quatro coleções de livros didáticos adotadas no IFF. Fonte: Site do FNDE. Disponível em
<http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/guias-do-pnld/item/2988-guia-pnld-2012-ensino-m%C3%A9dio>.
Acesso em 22 dez. 2015.
Após a etapa de levantamento dos livros do IFF, seguiu-se outra, na qual uma
leitura panorâmica das coleções identificou os gêneros do discurso que seriam
efetivamente analisados. Nessa seleção, conforme referenciado no capítulo 2, levou-se
em consideração a proposição bakhtiniana (BAKHTIN, 1997), de que o trabalho, a
partir dos gêneros do discurso, proporciona maior aproximação da língua com a vida, já
que no momento em que o aluno percebe certos aspectos do gênero, consegue utilizá-lo
no cotidiano de maneira eficiente. O ensino da língua por um viés discursivo, e não
puramente gramatical, permite reflexões por parte dos discentes, que passam a não mais
decorar regras e nomenclaturas que muitas vezes costumam ser esquecidas.
Sendo assim, foram elencados nove gêneros discursivos retirados dos doze livros
adotados no IFF. E já que o próprio livro didático pode ser considerado um gênero do
discurso secundário (BAKHTIN, 1997a), composto por outros gêneros, é conveniente
retomar alguns elementos conceituais apresentados anteriormente. Principalmente
porque a análise apresentada neste capítulo pressupõe o fato que há enunciados que
estão inseridos em um dado gênero do discurso. Gêneros do discurso esses, aliás, que
são elaborados processualmente em um determinado contexto sócio-histórico. O que
implica dizer ainda que cada gênero em estudo, ao utilizar o livro didático como
suporte, comporta-se de maneira diferenciada, já que esse tipo de material, na
contemporaneidade, é multimodal16
, o que interfere na estabilidade do gênero, sempre
relativa.
A tabela 3 sistematiza o material submetido à análise dialógica, tendo sido
selecionados os seguintes gêneros: exercício, anúncio, reportagem, romance, exposição
dos conteúdos, pintura, ilustração, cartum e fotografia.
16 Multimodal está sendo empregado aqui como sendo o material que une vários elementos semióticos,
verbais e não-verbais, muito frequente nos LD hoje, já que na contemporaneidade o uso maciço de
imagens ganha cada vez mais espaço. Assim, os LD procuram conectar imagens e textos verbais para
tentar explorar mais os sentidos que podem ser atribuídos aos textos, aproximando-se, assim, da
linguagem cibernética com a qual os discentes estão acostumados.
68
Gênero Coleção de LD selecionada
Exercício Português: contexto, interlocução e
sentido.
Anúncio Português: contexto, interlocução e
sentido.
Reportagem Português: contexto, interlocução e
sentido.
Romance Português: contexto, interlocução e
sentido.
Exposição de conteúdos Ser protagonista
Pintura Ser Protagonista
Ilustração Português: contexto, interlocução e
sentido.
Cartum Novas Palavras
Fotografia Português: contexto, interlocução e
sentido. Tabela 3: Sistematização dos gêneros selecionados e das respectivas coleções didáticas de onde foram retirados.
4.2 - Análise dialógica
Primeiramente, serão feitos comentários descritivos sobre cada gênero. Depois,
será apresentada uma amostra exemplificando o gênero, retirada de algum dos livros, e,
por fim, será feita a análise17
.
4.2.1 O gênero “Exercício”
Frequente em todos os livros didáticos de todos os componentes curriculares, o
gênero exercício é um instrumento usado para avaliar os discentes em relação aos
assuntos abordados. A palavra exercício é relacionada a exercitar, treinar, o que reforça
a importância do saber enciclopédico, tão valorizado no ensino tradicional. Os
exercícios propostos pelos livros de LP geralmente são compostos por perguntas que
17 Alguns dos gêneros aqui apresentados foram discutidos no laboratório dialógico da disciplina
Identidades étnico-raciais, práticas discursivas e dialogismo, oferecida no terceiro trimestre do ano de
2015, pelo prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro. Essa disciplina compõe o quadro de disciplinas
oferecidas pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. Nesta
experiência, atuei em estágio docente, e contei com a participação dos seguintes discentes: Aleksandra
Stambowisky, Eneida de Oliveira, Enivan Gomes, Geovani Barbosa, João Paulo Carneiro, Mirian Alves,
Monique Ferreira, Samantha de Oliveira, Tatiana Rosa e Tulani Pereira.
69
levam os alunos a localizarem determinadas informações nos textos, ou então testam se
o aluno memorizou determinados conceitos e se consegue aplicá-los. As questões
geralmente não estão relacionadas ao cotidiano do aluno e propõem pouca ou nenhuma
reflexão. Quando propõem reflexões, são muitas vezes superficiais.
O exemplo abaixo, extraído da coleção Português: contexto, interlocução e
sentido, volume 1, capítulo 3 – Literatura é gênero I: o épico e o lírico, serve para
exemplificar o gênero exercício.
70
Primeiramente, o aluno deve ler e analisar o texto proposto, para em seguida
responder às questões. No exemplo acima, o poema de Maya Angelou não é
apresentado na íntegra – mesmo não sendo tão longo, trechos foram suprimidos. É uma
tradução, o que empobrece os sentidos primeiramente atribuídos em outro idioma, o que
deve ser levado em conta em se tratando do ensino de língua portuguesa. O livro
71
didático já menciona o assunto do texto em forma de subtítulo – o preconceito racial –,
impedindo que o aluno chegue a essa conclusão sozinho.
É interessante o fato de o livro trazer a foto da autora, uma mulher negra e
reconhecida, no entanto é uma autora americana, o que pode levar o aluno a pensar que
ela só conseguiu o reconhecimento por ser americana, promovendo um esvaziamento do
debate racial no Brasil. Se fosse um poema de autoria de uma mulher negra brasileira
talvez a aproximação dos alunos fosse maior. O texto, sem dúvidas, é muito rico para se
problematizar questões raciais, mas caso o professor se restrinja aos exercícios, a
discussão será rasa ou até mesmo nula.
Pelo que se pode observar, as questões propostas levam o aluno a produzir
respostas limitadas ao universo do eu-lírico e ao texto verbal, em uma perspectiva
frasal, mecanicista. O universo do aluno e da sociedade que o rodeia, elementos tão
caros ao aporte bakhtiniano, não consta da reflexão proposta.
Outro problema identificado é o fato de se trabalhar com fragmentos do texto em
algumas questões, e não com a totalidade do sentido, o que pode levar a distorções.
Desta maneira, é possível perceber que a amostra em análise do gênero exercício pouco
contribui na emancipação do aluno, não leva em consideração sua bagagem histórica /
suas vivências e induz o aluno a responder às questões sem precisar de muita reflexão,
mesmo tendo o texto motivador grande potencial para isso.
O aluno poderia refletir sobre o negro na sociedade brasileira, e poderia também
ser convidado a contar sobre suas experiências, compartilhando saberes com os colegas
de classe e com o professor. Assim, poderia se identificar, se reconhecer e compreender
seu próprio discurso e o de outrem, para que toda a turma, coletivamente, entendesse a
questão do preconceito racial e colaborasse para a desconstrução desse problema.
4.2.2 O gênero “Anúncio”
No sistema capitalista, o anúncio é um importante instrumento para promover
maior venda de produtos e serviços. Esse gênero também é usado para dar mais
visibilidade a campanhas publicitárias, e geralmente é encontrado em jornais e revistas.
Possui um tom persuasivo, utiliza linguagem coloquial, clara, concisa e direta, e tenta se
aproximar de seu público, muitas vezes em forma de diálogo.
72
Como os PCN e outros documentos oficiais prescrevem o trabalho com
diferentes gêneros discursivos no componente curricular de LP, os livros didáticos têm
se adaptado a isso. O gênero anúncio costuma mesclar textos verbais e não-verbais, e às
vezes agrega em si outros gêneros, podendo contribuir para o letramento visual, em que
o aluno passa a produzir sentido não só por meio dos textos verbais.
Abaixo, há um exemplo de um anúncio que agregou um outdoor em sua
composição. Está na coleção Português: contexto, interlocução e sentido, volume 1, e
faz parte do capítulo 15 – A construção do sentido. Esse capítulo tenta mostrar que os
sentidos só podem ser produzidos de acordo com o contexto. Observe.
À primeira vista, o anúncio pode parecer comprometido com causas político-
sociais, mostrando que a maior preocupação deveria ser cuidar dos moradores de rua, e
não eliminar os outdoors. Há, contudo, para um leitor pouco crítico, a construção de um
sentido que atravessa uma naturalização da posição do negro (no caso, da mulher negra)
na condição de morador de rua. Dessa forma, o alunado negro deixa de reconhecer
73
positivamente sua identidade, associando o negro ao sujo, ao pobre, ao digno de pena,
passando a valorizar ainda mais a ideologia do branqueamento.
Continua sendo raro encontrar nos LD a imagem do negro relacionada à
felicidade, à beleza, à riqueza, o que mostra que a falta de representatividade do negro
continua existindo, mesmo com a lei 10.639/03 e as prescrições dos documentos oficiais
e do PNLD.
4.2.3 O gênero “Reportagem”
Gênero tipicamente jornalístico, a reportagem é comumente encontrada em
jornais, revistas e sites informativos. Seu principal objetivo é informar, e por isso
desempenha uma função social específica. Traz a assinatura de um jornalista, que por
vezes pode expressar seu ponto de vista. Possui uma relação dialógica com a notícia,
mas é um gênero independente, já que não se prende somente a acontecimentos
recentes, mas a temas de todas as épocas.
A reportagem a seguir foi retirada da coleção Português: contexto, interlocução e
sentido, volume 1, capítulo 23 – A interlocução e o contexto.
74
75
Para muitos alunos do Ensino Médio, o que mais chamará a atenção nas páginas
do livro expostas acima serão as imagens, que representam negros de forma exótica. O
texto verbal reforça a ideia de que as pessoas das tribos da Etiópia são passivas e
76
atrasadas, estigma que comumente é atribuído a tudo que é relacionado ao continente
africano.
Expressões como “práticas culturais inusitadas”, “tribos primitivas”, “grupos
indígenas”, “populações nativas”, “tribos de tradição pastoril” podem ser perigosas na
leitura do público de “leitores universais”, que pode ridicularizar e generalizar a
população da África, continente que ainda é percebido como se fosse um país. Tudo isso
mostra o caráter manipulador dos meios de comunicação, que comumente induzem ao
pensamento racista e excludente.
A reportagem, portanto, parece ter sido escolhida para cumprir a lei 10.639/03: o
texto fala sobre a África. O que incomoda, contudo, é a sempre limitada reafirmação do
exótico e supervalorização da concepção de mundo ocidental como parâmetro. Isso
mostra que, em vez de desconstruir o racismo, a reportagem pode contribuir para a
permanência dele, já que, mais uma vez, o aluno não quer se reconhecer como os negros
das imagens, ou com a passividade e o primitivismo dos negros da reportagem,
reafirmados na cena do documentário da BBC indicado.
4.2.4 O gênero “Romance”
O gênero romance caracteriza-se por ser uma narrativa densa, complexa,
composta geralmente por todos os elementos narrativos, como narrador, personagens,
momento(s) histórico(s), cenário(s), foco narrativo. Por sua extensão, geralmente longa,
quando abordado no livro didático, o romance aparece fragmentado. Ao mesmo tempo
em que tem seu sentido fragmentado, pode despertar (ou não) nos alunos o interesse
pela obra, buscando-a na internet ou na biblioteca escolar para a leitura na íntegra. Cabe
ao professor a colaboração para esse despertar do letramento literário, importante na
formação discente.
Abaixo há um exemplo de como o gênero romance aparece em um livro
didático, especificamente na coleção Português: contexto, interlocução e sentido,
volume 1, capítulo 13 – Oralidade e escrita.
77
É surpreendente encontrar Carolina Maria de Jesus em um dos livros mais
adotados nas escolas brasileiras, já que antes não se via nos LD autoras como ela:
mulher, negra, favelada, marginalizada. Pode-se considerar isso, inicialmente, um
grande avanço, pois, como já foi dito em outro capítulo, o cânon literário é excludente e
composto em grande parte por homens, brancos, heterossexuais, cristãos.
A foto da autora escrevendo no box com sua biografia, repleta de histórias de
superação, também é bonito de se ver, contudo, ao analisarmos a maneira como o
romance é trabalhado no livro, a decepção emerge. O fato de a autora exteriorizar seu
mundo de privações, representando a voz de uma multidão sem voz, é irrelevante nesse
exemplo. O fragmento apresentado tem apenas dois parágrafos, e três questões
propostas, dentre as quatro, reforçam os “erros” gramaticais cometidos pela autora. Não
há discussão alguma sobre as questões raciais, nenhuma problematização sobre o que é
ser mulher, negra e favelada no Brasil, sobre o lugar de fala da autora, nem mesmo
estímulo algum para que o aluno leia a obra na íntegra. Pelo contrário, o aluno, após
78
fazer os exercícios, poderá ridicularizar a autora e reforçar o racismo que já está em si
introjetado, pensando que a autora “não sabe escrever”, “é burra”, “é uma coitada”, e
“tinha que ser preta”.
O que se vê, portanto, é a reafirmação de valores eurocêntricos sobre a língua
portuguesa, sobre a ideia de cânon, e ainda uma abordagem que sistematiza
preconceitos de modo dissimulado em conteúdos supostamente educativos e
responsivos à lei 10.639/03. Mais uma vez, o exemplo mostra que os LD representam,
ainda, um cenário de continuidade do discurso racista, e não de ruptura.
4.2.5 O gênero “Exposição dos conteúdos”
O gênero “exposição de conteúdos” aparece em todos os livros didáticos. Para se
abordar qualquer assunto, os autores do livro introduzem o assunto, contextualizam-no,
explicam-no e costumam apresentar exemplos, ilustrações e exercícios.
O exemplo abaixo foi encontrado na coleção Ser Protagonista, volume 2,
capítulo 20 – O Simbolismo no Brasil.
79
O título do tópico, como se pode observar acima, é “Cruz e Sousa: a tragédia da
existência”. Não fica evidente para o aluno, ao final da leitura da página, e até do
capítulo, por que “tragédia da existência”. Como foi mencionado na apresentação dessa
dissertação, Cruz e Sousa era um poeta negro, que se sentia “emparedado” devido a
80
tudo que o negro sempre enfrentou em nossa sociedade. Lutou pela causa abolicionista,
o que também não é mencionado. Fala-se muito pouco da vida do poeta, tão rica e
importante para compreender sua obra. O livro apenas menciona que sofria preconceito
racial.
Apesar de o poeta ter várias poesias que problematizam as questões raciais,
aparecem, ao longo do capítulo, apenas duas de suas poesias, sobre sofrimento – uma
comentada (Braços), e a outra (O assinalado) com questões propostas para os alunos.
Tais questões são superficiais e descontextualizadas, o que parece menosprezar a
capacidade do aluno diante da complexidade dos textos simbolistas, além de evidenciar
que o capítulo explora mais os recursos estilísticos dos poemas. Além de tudo isso,
aparece na página acima uma pintura de pessoas brancas, de um artista alemão, que
nada tem a ver com Cruz e Sousa. Vale mencionar ainda que, no fim da página, há um
longo glossário, reforçando que o poeta “escrevia difícil”, e trazendo ao aluno a ideia de
que o verdadeiro sentido do texto encontra-se no sentido dicionarizado das palavras
isoladas.
Voltando à questão racial, um aluno negro, por exemplo, em vez de se sentir
autoconfiante por termos na nossa literatura um poeta negro de tanto destaque, pode se
sentir menosprezado, pois um dos únicos autores negros que compõe o cânon
apresentado no livro ganha o título já exposto acima – tragédia da existência.
4.2.6 O gênero “Pintura”
Em cada época, a pintura desempenhou funções diferentes. Como manifestação
artístico-cultural, sua presença nos livros didáticos é muito importante para que o aluno
possa se abrir ao mundo das artes. Além disso, a pintura pode ilustrar e contextualizar
os conteúdos que são abordados nos livros.
Um problema que é facilmente identificado nos livros é o fato de os pintores
selecionados para contribuir nas coleções didáticas serem maciçamente europeus18
, o
18 Verificar que isso também ocorre no exemplo do item 4.2.5.
81
que demostra o apego pela cultura europeia e o desprezo por outras, como a africana por
exemplo.
Abaixo há um recorte de uma pintura (e sua legenda) retirada da coleção Ser
protagonista, Volume 2, Capítulo 3 – O Romantismo no Brasil.
A pintura O jantar no Brasil, do francês Jean-Baptiste Debret, representa bem o
mito da democracia racial – brancos e negros convivendo pacificamente à mesa do
jantar. A obra transmite uma ideia de harmonia e passividade, mas, por outro lado, é
possível observar as crianças negras, nuas, pegando restos de comida, como se fossem
animais domésticos (ABRAMOWICZ et al, 2011).
Em um período em que havia uma preocupação com a formação de uma
identidade nacional, a divulgação dessas imagens colaborava com a ideia de “civilizar”
o negro escravizado e mostrar a “superioridade” da raça branca. Hoje, a presença desse
tipo de pintura nos livros didáticos continua naturalizando tanto o mito da democracia
racial como também a superioridade dos padrões europeus. O capítulo do livro não traz
o assunto para o cotidiano do aluno, não problematiza as questões raciais, e mais uma
vez o aluno negro se vê representado no livro como um ser inferior.
4.2.7 O gênero “Ilustração”
A ilustração é um recurso muito atrativo para alunos, que acostumados com as
novas tecnologias, prendem-se mais às imagens que aos textos verbais. A ilustração
82
pode complementar o sentido do texto verbal, dizê-lo de uma forma mais lúdica, ou
pode servir apenas para compor harmonicamente a página do livro.
O exemplo abaixo foi extraído de Português: contexto, interlocução e sentido,
volume 1, capítulo 17 – Recursos estilísticos: figuras de linguagem.
Como se vê, há uma ilustração de Eloar Guazzelli que deveria estar relacionada
ao trecho da poesia Vozes d’África, de Castro Alves. Ao observarmos, contudo, essa
ilustração, é possível perceber que a imagem não dialoga de fato com o texto, e é
meramente ilustrativa, talvez para compor um espaço ocioso na diagramação do livro.
Enquanto o poema fala da dor e da indignação do africano escravizado, a imagem
mostra um homem branco de classe média, com roupas contemporâneas, em uma
posição comumente usada para adoração ao Deus cristão em igrejas neopentecostais.
Nesse exemplo, pode-se ver a preocupação do livro em ensinar e sistematizar o
conteúdo “Apóstrofe”, e o texto de Castro Alves também é meramente ilustrativo. A
capacidade leitora do aluno não é acionada, nem em relação ao texto verbal, nem
relação ao não verbal, o que reforça um ensino tradicional / conteudista da língua
materna.
83
4.2.8 O gênero “Cartum”
O cartum é um gênero humorístico, que costuma aparecer em jornais impressos
ou online. Surge depois da charge e, como ela, é uma derivação da caricatura. Tem por
objetivo estabelecer uma crítica, com caráter atemporal (ROCHA, 2011). Costuma usar
a linguagem não verbal combinada com a verbal. Seus personagens costumam ser
pessoas comuns.
O exemplo abaixo foi extraído da coleção Novas Palavras, volume 2, capítulo 8
– Sintaxe da oração: termos associados a nomes; vocativo.
Esse exemplo, inserido na parte do capítulo que explica o termo da oração
“Vocativo”, mostra, mais uma vez, a preocupação conteudista do ensino de LP. Abaixo
da imagem, há a explicação do termo “tia”, que no cartum funciona como vocativo.
Novamente, é possível ver a imagem do negro de modo inferiorizado. O menino da
imagem, que quer ser cidadão, é negro, pobre, e está descalço, marcando sua posição
social. A imagem é estereotipada, caricatural: o menino tem lábios grandes e vermelhos,
a cabeça é desproporcional em relação ao corpo.
Tudo isso corrobora o racismo e naturaliza-o, em vez de desconstrui-lo. O aluno
negro não se vê na mídia; no livro, é sempre inferiorizado; logo não quer ser negro, pois
não consegue construir uma identidade negra positiva sobre si mesmo. Como já foi dito,
a representatividade é muito importante para a autoestima e a autoconfiança do alunado
negro.
84
4.2.9 O gênero “Fotografia”
O gênero fotografia é muito comum nos livros didáticos. Mais que os outros
gêneros ilustrativos (como ilustração, pintura, cartum etc), possui um grande valor de
verdade, já que a fotografia representa um recorte de uma realidade que aconteceu em
tempo e espaço reais. O exemplo abaixo foi extraído da coleção Português: contexto,
interlocução e sentido, volume 2, capítulo 8 – Realismo.
Esta fotografia está inserida na página 139, em que se fala sobre Machado de
Assis e o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Nessa página, aparece um
trecho do romance em que o protagonista conta um episódio de sua infância, quando,
muito travesso e com apenas seis anos de idade, maltratava os escravos de sua casa. Ao
ler o trecho, o leitor fica indignado com o que e menino fazia, afinal, Machado de Assis
tinha um estilo peculiar, irônico, sarcástico, que inseria o leitor na narrativa. Esse autor,
contrariamente ao que alguns dizem, criticava o sistema escravista, o racismo e as
desigualdades sociais.
No livro didático, contudo, quando colocam uma fotografia como esta ao lado
do texto machadiano, esvaziam-se os sentidos do texto verbal e naturalizam a posição
social inferior do negro. Na legenda, lê-se “[...] muito pouco havia mudado na sociedade
brasileira”. E hoje? Será que muita coisa mudou? Ou será que, na hora da aula, ao ver
85
esta fotografia, a babá da foto será ridicularizada e comparada às meninas negras da sala
de aula?
4.3 Considerações sobre os livros didáticos de Língua Portuguesa
O objetivo deste capítulo foi o de analisar as relações dialógicas entre as
proposições educacionais dos documentos oficiais sobre enfrentamento ao racismo e os
livros didáticos de Língua Portuguesa adotados pelo Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), aprovados pelo último PNLD, de 2012.
Dentre as quatro coleções analisadas, a que teve mais exemplos selecionados foi
“Português: contexto, interlocução e sentido”. Isso se justifica porque, além de ser a
coleção utilizada por mais alunos matriculados no IFF, escolhida pelos campi com mais
alunos, é a coleção que, dentro dos critérios relacionados à questão étnico-racial, mais
precisa de mudanças. Ainda haveria muitos outros exemplos que poderiam ter sido aqui
expostos e analisados, o que não foi feito pelas limitações de tempo para a realização
desta pesquisa.
Nas coleções “Novas palavras” e “Ser Protagonista” também foram encontrados
diversos exemplos que reforçam e / ou naturalizam o racismo, mas, por serem menos
numerosos que na coleção “Português: contexto, interlocução e sentido”, foram também
menos expostos aqui. A coleção “Língua Portuguesa”, da editora Positivo, adotada
exclusivamente no campus Quissamã, não apresentou, no entanto, exemplos de
reificação do racismo. Essa coleção é, sem dúvida, dentre as coleções analisadas, a que
mais atende às demandas dos documentos oficiais e das leis 10.639/03 e 11.645/08.
O que se verificou, com foco específico em gêneros do discurso, foi que as
identidades étnico-raciais são representadas de forma inadequada em muitos materiais
para o Ensino Médio. Os gêneros aludidos neste capítulo permitiram evidenciar um
racismo naturalizado, estruturado de modo estereotipado e caricatural. Tal constatação,
por sua vez, indica a relevância de análises como esta, razão pela qual a realização de
outros estudos similares permitirá o adensamento de uma crítica que implique, de fato,
numa mudança de escopo dos livros didáticos e adesão real e efetiva às proposições
educacionais de enfrentamento ao racismo.
86
Outra questão que também não pode ser silenciada é o fato de nenhum exemplo
selecionado estar relacionado a questões indígenas. Infelizmente, praticamente nada se
encontra nos livros didáticos sobre as mais de duzentas línguas indígenas que são
faladas no Brasil contemporâneo. Pouquíssimo se fala sobre as constantes lutas que as
mais de trezentas etnias indígenas enfrentam a cada dia. A literatura indígena também
não tem destaque. Nos livros, os indígenas geralmente aparecem em gravuras do século
XIX, no capítulo do Romantismo no Brasil. Sempre integrados à natureza, é reservada
ao indígena uma identidade fixa e presa ao passado. É como se as populações indígenas
não existissem, e isso porque no Brasil há quase um milhão de indígenas19
. Ser indígena
no Brasil, de acordo com o que se vê nos LD, é estar nu passeando na floresta. Para o
aluno do Ensino Médio, não se pode imaginar que, no Brasil, muitas vezes nem tão
distante dele, há indígenas de todas as idades, que, como ele, muitas vezes utilizam
computador e celular, e estão conectados às redes sociais. São seres humanos como
todos os seres humanos.
E apesar de um cenário tão preocupante, não se pode deixar de acreditar que
mudanças são possíveis, sim. O edital do PNLD 2018, por exemplo, já se encontra
disponível na internet20
. Assim como o edital de 2012, exige respeito à legislação, e
inclui todas as leis e pareceres sobre a educação das relações étnico-raciais. Mesmo com
todos os avanços, nos próprios livros, no PNLD e nos documentos oficiais, é possível
observar que, nos livros didáticos de Língua Portuguesa, ainda há reforço de
estereótipos, racismo e predomínio da cultura hegemônica e da população branca em
situação privilegiada. Mesmo assim, a partir dos novos estudos sobre os livros didáticos
e as relações étnico-raciais, é possível ter esperança de que novos materiais serão
produzidos para dar um novo rumo à educação, que certamente renderá como frutos
cidadãos conscientes e respeitadores do pertencimento étnico-racial, de si e da
sociedade que os cerca.
19 As informações do parágrafo foram encontradas no site da FUNAI. Disponível em
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao> Acesso em 18 fev. 2016. 20
http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-editais/item/7932-pnld-2018
87
5 DERRUBANDO PAREDES: POR UM NOVO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA
O objetivo deste capítulo consiste em propor um livro paradidático que
corresponda tanto às demandas das leis e documentos analisados no capítulo 3, quanto à
superação dos problemas identificados na análise dos livros didáticos feita no capítulo
4. Nesse sentido, não se trata apenas de propor um texto genérico para a elaboração de
um livro paradidático, mas pretende-se fazê-lo em consonância com os resultados das
análises acadêmicas apresentadas até agora.
Sendo assim, o material proposto neste capítulo mantém aderência efetiva com
as conclusões da pesquisa empreendida como cumprimento das exigências do programa
de mestrado e, além disso, busca configurar um produto didático engajado ao
enfrentamento do racismo no Brasil. O título do livro, portanto, é o mesmo deste
capítulo, já que também deriva dessa pesquisa.
Quanto à forma, é importante ressaltar que os tópicos a seguir seguem a
normatização exigida para uma dissertação, mas a numeração dos sub-tópicos do
capítulo receberá outro tratamento quando da edição do texto em formato de livro. No
que diz respeito à linguagem usada, vale lembrar, os tópicos do capítulo guardam
semelhança com o tom informal empregado em livros paradidáticos voltados para o
Ensino Médio. Ou seja, busca-se a interlocução direta com o aluno-leitor.
88
5.1 O livro em seus elementos introdutórios
Imagem da capa. Ilustração de Letícia Soares.
5.1.1 Apresentação
Este livro surgiu a partir da minha pesquisa de mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Relações Étnico-raciais, no CEFET/RJ, que se iniciou em maio de 2014.
Nesse mesmo ano, apresentei o trabalho “Caminhos a serem entrosados: a lei 10639/03,
o livro didático de literatura e a prática pedagógica” na Universidade Federal do
Espírito Santo, no II Congresso Nacional Africanidades e Brasilidades. Esse trabalho foi
publicado em forma de artigo em 2015, e parte dele inspirou os capítulos deste livro que
tratam dos gêneros pesquisa, conto e romance. O capítulo que trata do gênero receita
também teve uma inspiração peculiar: partiu de um capítulo do livro “Com o Machado
na mão”, ainda não publicado, que escrevi em coautoria com meu orientador, Alexandre
de Carvalho Castro.
Em minha pesquisa, verifiquei que muitos livros didáticos aprovados pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que seleciona as obras que podem ser
adotadas nas escolas, não dão conta de superar um ensino tradicional de língua
89
portuguesa. Além disso, não atendem totalmente às prescrições dos documentos oficiais
que norteiam a educação no Brasil, os quais incentivam a educação cidadã, a formação
de leitores críticos e escritores competentes, e, sobretudo, pretendem promover a
desconstrução do racismo e das desigualdades sociais. Assim, o objetivo deste material
didático é propor um novo tipo de ensino de língua portuguesa, que parte dos gêneros
do discurso e pretende trazer reflexões sobre as relações étnico-raciais.
O livro foi escrito em uma linguagem coloquial, pensando nos alunos de Ensino
Médio, para atingir alunos e alunas e formá-los para o letramento racial. A ideia é
incentivar a leitura e a escrita, passando pelo trabalho com gêneros. Trarei muitos textos
na íntegra, não para “cansar” os discentes, mas para mostrá-los que ler pode ser
prazeroso. Além disso, acredito que a leitura de fragmentos geralmente prejudica a
compreensão dos sentidos possíveis que os textos podem oferecer. No Ensino Médio, o
mais importante é que o aluno leia criticamente e escreva bem, e assim defendemos a
educação linguística e cidadã.
5.1.2 Um recadinho para estudantes
Caros alunos e alunas, este livro poderá ajudá-los a perceber que a língua
portuguesa é viva e dinâmica, e que existem muitas formas de utilizá-la: de maneira
formal ou informal, por exemplo, de acordo com o gênero do discurso que é exigido
pelo contexto. Por falar nisso, vocês sabem o que são gêneros do discurso?
Quando falamos, devemos sempre adaptar nossa linguagem. Se falamos em uma
entrevista de emprego, precisamos ser mais formais e evitar as gírias. Se conversamos
com amigos em uma festa de aniversário, as gírias são bem-vindas. Isso significa dizer
que cada contexto exige um nível de formalidade no uso da língua, e até mesmo da
linguagem como um todo, como a linguagem corporal, que envolve a nossa postura
perante as pessoas que nos cercam e o nosso comportamento com elas. No caso dos
textos escritos, isso também ocorre. Um texto enviado por aplicativos de celular que
enviam mensagens de modo instantâneo não exigem formalidade na escrita, diferente de
um texto de uma lei, que utiliza linguagem específica e formal.
Os gêneros do discurso, portanto, são essas modalidades da fala e da escrita,
cheios de especificidades. Cada gênero conta com certos elementos que fazem dele um
90
gênero! Hoje em dia, muitos estudos apontam que o ensino de língua portuguesa deve
partir do ensino dos gêneros. Sendo assim, neste livro, serão apresentados a vocês
alguns deles. Espera-se que compreendam os gêneros e saibam utilizá-los da melhor
maneira possível. Nada é tão simples, mas, se vocês se dedicarem, conseguirão superar
algumas dificuldades que a escrita nos impõe, muitas vezes pelo desconhecimento do
gênero que deve ser escrito. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), por
exemplo, exige uma linguagem formal na redação, e se você se esquecer disso pode ter
problemas com quem irá corrigir seu material.
Além de tudo isso, é importante dizer que todo este livro terá uma mesma
temática, que envolve questões étnico-raciais. Esse tema foi escolhido a partir da
percepção de que os livros didáticos de língua portuguesa omitem o fato de o Brasil ser
um país racista, e, contrariamente do que deveriam ensinar, não incentivam o combate
ao racismo e a construção de uma sociedade que tenha igualdade racial. Em nosso país,
ainda vemos que a maioria dos cargos profissionais mais bem remunerados não são
ocupados por negros e indígenas, e não é porque eles não querem, não! É porque há
paredes sociais que os impedem de chegar lá. Discutiremos mais sobre isso nas páginas
a seguir, e depois vocês poderão aprofundar a reflexão sobre esse assunto.
Para terminar este recadinho, é preciso lembrar que escrever é prática. Derrubem
as paredes que os bloqueiam na hora de escrever e, principalmente, na hora de pensar!
Vamos praticar?
5.1.3 Recado para docentes
Este livro poderá ser usado em sala de aula de modo a complementar o livro
didático. Essa complementação se faz necessária visto que, ao serem analisados livros
didáticos de língua portuguesa (LD) para Ensino Médio, foi possível perceber que eles
não contemplam adequadamente as proposições das leis 10639/03 e 11645/08, que
alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Também não
contemplam, ou contemplam superficialmente, as recomendações de outros documentos
oficiais – o Plano Nacional da Educação, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio, as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, as
91
Orientações Curriculares para o Ensino Médio e até a Base Nacional Comum Curricular
(ainda em trâmite, na época da pesquisa original).
Todos esses documentos oficiais estimulam um ensino voltado para a cidadania,
e defendem a valorização da diversidade e o combate ao racismo e às desigualdades
sociais. Além disso, preconizam o ensino de língua portuguesa por meio dos gêneros do
discurso. Nos livros didáticos analisados, contudo, predomina, ainda, um ensino
tradicional da gramática, muitas vezes descontextualizado. Esses livros não valorizam
as culturas afro-brasileiras e indígenas, provocando um apagamento de identidades
étnico-raciais, ou reforçando estereótipos.
Como resposta às lacunas identificadas nas análises dos LD, este livro propõe
um ensino mais emancipador, que pretende colaborar na desconstrução do racismo e,
ainda, propor um ensino de língua portuguesa por meio do estudo dos gêneros do
discurso. Este material pretende estimular a leitura e a produção textual. Os docentes
que se dispuserem a utilizar este livro poderão auxiliar os discentes a cumprir as tarefas
propostas, acompanhando-os, avaliando-os, aprofundando as reflexões propostas pelos
textos e mediando o trabalho que eles desenvolverem.
A avaliação consiste em verificar se os discentes produziram os textos de acordo
com o que foi pedido, cumprindo todas as exigências que o gênero impõe – o nível de
formalidade da língua, as peculiaridades do gênero e a proposta de enfrentamento ao
racismo. Caso o aluno ou a aluna deixe lacunas na atividade realizada, o docente poderá
mostrar quais foram e pedir que o trabalho seja refeito. É recomendável pedir que as
atividades sejam feitas em um caderno ou em folhas à parte, para que o livro possa ser
reutilizado por outros estudantes.
Gostaria de explicar, ainda, que a palavra “pesquisa” pode designar tanto o
processo de pesquisar como o produto textual da pesquisa, o texto propriamente dito.
No capítulo em que trabalhamos a pesquisa, estamos pedindo aos discentes a produção
de um texto, o produto da pesquisa que terão feito, o que é pertinente para o Ensino
Médio. Consideramos esse texto final como um gênero do discurso pelas
especificidades que serão exigidas.
Em relação ao que chamamos neste livro de “Gênero Textos Literários”, vale
ressaltar que esse assunto merece destaque nas aulas deste segmento educacional, pois a
noção do que é texto literário ou não é importante para os estudantes do Ensino Médio,
92
que ainda estão dando seus primeiros passos nos estudos de Literatura. Não é uma
noção rígida, que não possa ser flexibilizada posteriormente, mas acreditamos que esse
capítulo do livro pode contribuir para uma sistematização dessa noção.
Com este livro, espero ser uma das contribuições para uma nova era do ensino
de língua portuguesa – que acompanhe as transformações sociais, que combata o
racismo, que valorize a diversidade, que forme cidadãos proativos. E que, somado a
tudo isso, o ensino de língua portuguesa possa estimular a reflexão, formar leitores
críticos e escritores competentes.
5.2 Os capítulos do livro
5.2.1 O gênero BIOGRAFIA
Ilustração de Letícia Soares
93
Que gênero é esse?
A palavra BIO-GRAFIA quer dizer “escrita da vida”. Sendo assim, a biografia
conta a história de alguém. Os textos biográficos podem ser curtos ou longos, de acordo
com o desejo de quem os escreve ou com o número de informações que se tem sobre o
biografado. O fato é que toda essa história de biografia hoje em dia gera a maior
polêmica, porque tem gente escrevendo sobre a vida de outras pessoas sem a
autorização delas, ou, quando já morreram, sem a autorização da família. Sem falar que
as biografias nem sempre são tão verídicas, e isso dá “pano pra manga”!
Há, contudo, pesquisas muito sérias que investigam a fundo sobre a vida de
personalidades importantes. Isso é muito legal, porque lendo a biografia de algumas
pessoas podemos entender aspectos históricos que perpassaram a vida delas e
influenciaram a sociedade de uma determinada época.
Os elementos básicos que encontramos nas biografias são: o nome completo do
biografado, a cidade onde nasceu e morreu (para o caso de biografados mortos), a
trajetória de vida (pessoal e/ ou profissional), e todos os outros fatos relevantes que
ocorreram na vida pessoa.
João da Cruz e Sousa, por exemplo, é muito pesquisado por estudiosos da
literatura, da história e das relações étnico-raciais. Ele foi um poeta negro do século
XIX que brilhantemente lutou pelo fim da escravidão e pela igualdade racial. Muito
esperto e estrategista, aprendeu a estética Simbolista, que na época era “coisa de gente
branca”, e por meio dos textos simbolistas que passou a escrever denunciava o racismo
que sofria na pele. E ele só conseguiu isso porque uma família branca deu a ele a
oportunidade de estudar, o que evidencia que não é só o esforço que nos permite
alcançar certas vitórias, mas também as oportunidades que nos são dadas! (Aproveite a
oportunidade de estar com esse livro em suas mãos!).
E aí o Cruz e Sousa estudou, e escreveu muitos textos que são faróis para
enxergarmos o racismo, que muitas vezes parece que não existe. Inclusive ele escreveu
um livro chamado “Faróis”, publicado somente depois de sua morte, cheio de poesias
bonitas que valorizavam a cultura negra, como em seus versos decassílabos da poesia
“Cabelos”: “Cabelos! Quantas sensações ao vê-los! / [...]/ Auréola negra, majestosa,
94
ondeada[...]”. Quanta ignorância quem diz que cabelo crespo é ruim! Ruim é o
preconceito!
Vale a pena se dedicar na leitura dos poemas de Cruz e Sousa, depois de ler
sobre sua vida. Vai ser bem mais fácil de entender! Ele foi um poeta que se sentia
emparedado por ser negro, como ele mesmo disse em seu poema “Emparedado”, em
uma sociedade em que o negro não tinha vez, não tinha voz. Ainda bem que podemos
estudar e colaborar para desconstruir essa ideia, que inacreditavelmente ainda existe em
pleno século XXI. Infelizmente, a maioria dos livros didáticos de língua portuguesa e
literatura do Ensino Médio não falam nada disso sobre esse poeta tão singular, que nos
deixou um enorme legado, e só apresentam textos dele muito difíceis, que afastam os
alunos e alunas da leitura. Será que isso é uma estratégia para não valorizar esse autor
negro e contribuir para a manutenção do racismo? É bom ganhar uns minutos pensando
nisso...
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do
Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando,
acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro
emparedado de uma raça.
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede
horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a
esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te
mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede,
feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto!
Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo,
fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio
espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras,
mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades...
Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras,
terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para
sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho... (Fragmento de “Emparedado”, de Cruz e Sousa. Disponível em
<http://manoelneves.com/2011/02/13/emparedado-de-cruz-e-sousa/#.VsJGGfkrLIU> Acesso em 15 fev. 2016)
Um exemplo de biografia
João da Cruz e Sousa, que tinha o apelido de Dante Negro e Cisne Negro, foi um
dos principais precursores do simbolismo no Brasil. Ele nasceu na cidade de
Florianópolis (que naquela época se chamava “Nossa Senhora do Desterro”), em 24 de
novembro de 1861.
95
Esse poeta brasileiro era filho dos negros alforriados Guilherme da Cruz, mestre-
pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, mas conseguiu ascender socialmente porque
desde pequeno recebeu a tutela e uma educação refinada de seu ex-senhor, o Marechal
Guilherme Xavier de Sousa – de quem adotou o nome de família, Sousa. A esposa de
Guilherme Xavier de Sousa, Dona Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, não tinha filhos,
e passou a proteger e cuidar da educação de João. Assim, o filho de escravos aprendeu
francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão Fritz Müller, com quem
aprendeu Matemática e Ciências Naturais.
Em 1881, dirigiu o Jornal Tribuna Popular, no qual combateu a escravidão e o
preconceito racial. Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em
1885 lançou o primeiro livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea.
Cinco anos depois foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada
de Ferro Central do Brasil, colaborando também com o jornal Folha Popular. Em
fevereiro de 1893, publica Missal (prosa poética baudelairiana) e em agosto, Broquéis
(poesia), dando início ao Simbolismo no Brasil que se estende até 1922. Em novembro
desse mesmo ano casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, com quem teve
quatro filhos, todos mortos prematuramente por tuberculose, fator que, segundo alguns
intérpretes, levou-o à loucura.
Cruz e Sousa faleceu a 19 de março de 1898 no município mineiro de Antônio
Carlos, num povoado chamado Estação do Sítio, para onde fora transportado às pressas
vencido pela tuberculose. Teve o seu corpo transportado para o Rio de Janeiro em um
vagão destinado ao transporte de cavalos. Ao chegar, foi sepultado no Cemitério de São
Francisco Xavier por seus amigos, dentre eles José do Patrocínio, onde permaneceu até
2007, quando seus restos mortais foram então acolhidos no Museu Histórico de Santa
Catarina - Palácio Cruz e Sousa, no centro de Florianópolis.
Cruz e Sousa é um dos patronos da Academia Catarinense de Letras,
representando a cadeira número 15. Há no município de Florianópolis, onde ele nasceu,
uma casa antiga ao lado da praça XV de Novembro, chamada de palácio Cruz e Sousa,
onde encontram-se seus restos mortais. Além disso, vários municípios o homenageiam
usando seu nome para nomear ruas e avenidas, como é o caso do Rio de Janeiro, onde a
rua Cruz e Sousa fica localizada no bairro de Encantado. (Biografia adaptada a partir do site de um colégio, em Florianópolis, que leva o nome desse autor.
Disponível em <http://www.colegiocruzesousa.com.br/nossa-escola/sobre-o-cruz-e-sousa.html>)
96
Atividade 1:
Escreva sobre a sua própria história, ou seja, a sua biografia (que podemos
chamar de autobiografia, quando o biografado é o próprio autor da biografia). Que fatos
da sua vida são/ foram mais relevantes? Que dificuldades podem ter contribuído para o
seu crescimento pessoal? O que você tem feito para construir seu futuro? Como você
deseja que ele seja? Você pretende deixar um legado? Qual? Como?
Atividade 2:
Busque na internet ou em uma biblioteca o poema “Emparedado” na íntegra.
Depois de ler, compare-o à biografia de Cruz e Sousa. O fato de o autor ter consciência
do racismo existente no Brasil influenciou sua escrita?
Atividade 3:
Pesquise sobre alguma personalidade brasileira negra ou indígena que tenha sido
silenciada e emparedada pela sociedade. Em seguida, escreva a biografia dessa pessoa.
É só um exercício. Vale a pena tentar!
97
5.2.2 O gênero PESQUISA
Ilustração de Letícia Soares.
Que gênero é esse?
A pesquisa é um gênero do discurso, pois tem suas peculiaridades. Desde muito
cedo, nas escolas, é exigido que os alunos e alunas façam muitas pesquisas. E o nível de
exigência dessas pesquisas vai ficando cada vez maior. As pesquisas são importantes
ferramentas no âmbito escolar. Isso porque, com elas, aprendemos a estudar sozinhos,
conquistamos autonomia e fazemos descobertas que podem ser muito interessantes.
Agora, pense um pouco. Existe algum assunto sobre o qual você gostaria de
conhecer um pouco mais? As pesquisas são muito variadas porque as pessoas realmente
têm curiosidades diferentes. Sobre o racismo, por exemplo, há quem goste de pesquisar
letras de músicas, outros pesquisam programas da televisão, e existem ainda os que
investigam religiões, tipos de moda, histórias em quadrinhos, esportes, cotas escolares,
tribos indígenas e muito mais. O importante é não esquecer: as pesquisas são filhas da
curiosidade!
Uma pesquisa feita por um aluno de Ensino Médio, por exemplo, exige que ele
leia sobre o seu objeto de pesquisa em várias fontes: pode ser em sites, em livros que
98
tenha em casa, na biblioteca da escola ou em outras. Quanto mais leitura, melhor será a
pesquisa. Sendo assim, ao fazer sua pesquisa, compare o dizem as fontes e chegue a
suas próprias conclusões. Depois que construiu seu conhecimento, coloque no papel:
elabore um texto, com suas palavras, sobre o que pesquisou. Não vale “copiar e colar”,
como muita gente faz. Isso se chama plágio, e é um crime previsto na Lei 9610/98.
É muito comum que as pesquisas realizadas no Ensino Médio sejam feitas em
grupo. Nesse caso, depois de pesquisar individualmente, reúna-se com os colegas do seu
grupo para discutir sobre o assunto. Em seguida, construam um texto coletivo sobre o
que julgaram mais relevante. Caso queiram copiar algum trecho na íntegra, façam a
citação corretamente, pois copiar sem citar também é crime, previsto nas leis
9.610/1998 e 12.853/2013 (lei também é um gênero do discurso, sobre o qual falaremos
depois). Por isso, toda pesquisa, por menor que seja, deve apresentar as referências
bibliográficas, mencionando quais foram os sites e livros pesquisados.
Para cumprir as formalidades acadêmicas quanto à formatação do trabalho no
editor de texto do seu computador, a pesquisa deve seguir as normas da ABNT
(Associação Brasileira de Normas Técnicas). Pode parecer complicado inicialmente, por
isso pesquise na internet e peça ajuda a um professor, mas na segunda ou terceira
pesquisa você já conseguirá fazer sozinho. Treinando desde o Ensino Médio, você terá
uma preocupação a menos quando estiver na faculdade.
Como um gênero, a pesquisa segue um padrão. Depois de fazer uma capa com o
cabeçalho da instituição onde você estuda, o nome do professor, seu nome (ou dos
integrantes do grupo) e data, inicie seu texto, que deverá ser dissertativo (você falará
sobre um tema, e não contará uma história). Escreva um pequeno texto de introdução.
Nesta seção, o objeto de pesquisa é apresentado, e você irá esclarecer ao leitor sobre o
que é a temática. Depois, desenvolva o texto da pesquisa. Por fim, escreva um pequeno
texto com os resultados da pesquisa, ou com as conclusões a que chegou. Em outra
página, insira as referências bibliográficas, isto é, a relação de livros, sites e revistas que
você consultou.
Vale dizer ainda que pesquisas em nível de graduação ou pós-graduação têm
algumas outras peculiaridades, mas vamos começar do começo!
Roteiro para se fazer uma pesquisa (em nível de Ensino Médio):
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Pesquisar sobre o tema em diversas fontes (livros e sites), até dominar bem o
assunto.
Escrever o texto da pesquisa. Cada uma das partes descritas abaixo deverá estar
em uma folha diferente. Siga o roteiro abaixo.
2.1) Elaborar a capa e a folha de rosto, conforme figura 1, seguindo as normas
da ABNT.
Figura 1. Disponível em <http://www.dicasrecentes.com.br/wp-content/uploads/2015/02/CAPA-DE-
TRABALHO-ABNT-%E2%80%93-MODELOS-PARA-TRABALHOS-ESCOLARES-3.jpg> Acesso em 16 fev.
2016.
2.2) Escrever a introdução do trabalho. Aqui, é necessário apresentar o assunto
do trabalho e os objetivos da pesquisa. Se a pesquisa for mais extensa, você poderá
mencionar o modo como o trabalho está estruturado (por exemplo, no capítulo 1 o
assunto X será apresentado da forma Y, no capítulo 2....). Em seguida, diga que
metodologia usou para realizar a pesquisa (pesquisa bibliográfica? Pesquisa na internet?
Entrevista? Busca de dados estatísticos? Busca de dados empíricos?)
2.3) Escrever o texto propriamente dito, a pesquisa em si. É necessário
especificar e desenvolver tudo o que foi dito na introdução. Você pode organizar a
pesquisa em partes ou capítulos. Se desejar, pode incluir mapas, gráficos e figuras
pertinentes à pesquisa para ilustrar o que está sendo dito. Se a pesquisa tiver resultados
específicos, descreva-os ao final do texto.
2.4) Escrever a conclusão do trabalho. Apresente uma síntese do que foi feito.
Inclua sua opinião sobre o que pesquisou e interprete os dados que obteve. Diga se
todos os objetivos iniciais foram alcançados. Caso não tenha sido, explique o motivo. É
possível dizer ainda a importância do trabalho para o seu crescimento pessoal.
2.5) Escrever as referências bibliográficas, de acordo com as normas
bibliográficas. Coloque todos os livros que pesquisou, todos os sites! O sobrenome dos
autores deve vir em ordem alfabética, como exemplificado abaixo:
100
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal,1992.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
MUNANGA, K. (org) Superando o racismo na escola. Brasília: MEC. Secad, 2008. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4575.pdf>Acesso em 20 fev. 2014
Atividade 1:
Abaixo, algumas questões foram listadas. Pesquise sobre elas e construa um
texto único, que englobe as respostas para elas. Lembre-se de seguir todos os passos da
pesquisa: da leitura de textos à formatação das referências bibliográficas. Se possível,
faça essa atividade em grupo, para poder discutir com seus colegas sobre a pesquisa
realizada. É importante dizer que a pesquisa que está sendo solicitada ajudará na
compreensão dos próximos capítulos deste livro.
a) Qual foi o contexto sócio-político em que a estética do Naturalismo se desenvolveu
na Europa e no Brasil?
b) Quais os principais pensadores e cientistas que contribuíram para as ideias que
nortearão a construção discursiva da literatura dessa época?
c) Quais as teorias que esses cientistas defenderam e quais os argumentos que essas
teorias apresentavam?
d) Como se pode conceituar “nação”? Relacione esse conceito ao momento histórico do
Naturalismo no Brasil.
e) Comente sobre as teorias raciológicas da época e o projeto de branqueamento, e quais
as consequências desses pensamentos, considerados, na época, científicos, para a
101
sociedade de hoje. Esse assunto pode parecer complicado, mas vai lhe ajudar a entender
os próximos capítulos.
f) Como era o conceito de raça no século XIX? E hoje?
Atividade 2:
Faça uma pesquisa no livro didático de Língua Portuguesa que você está usando
em sua escola. Esse livro contribui para desconstruir o racismo? De que forma? Caso
não contribua, seu livro reforça estereótipos de negros e indígenas? Depois de pesquisar,
escreva um texto dissertativo com uma análise do seu livro. Dê exemplos.
5.2.3 O gênero CONTO
Ilustração de Letícia Soares.
Que gênero é esse?
O gênero conto é narrativo, ou seja, conta uma história. Sua extensão é
relativamente pequena. Não há um número de páginas delimitado, mas geralmente
lemos contos de 1 a 20 páginas, podendo até ser maiores. O que caracteriza o conto é o
fato de ter um número reduzido de personagens, de cenários etc. O enredo não é tão
complexo, e a história é logo resolvida.
O texto que leremos a seguir é um conto. Toda narrativa tem um narrador que
conta a história em primeira ou em terceira pessoa, por isso,
a) observe em que pessoa o texto foi narrado;
b) diga se o narrador, tal como foi construído, conhece toda a história ou se esse
conhecimento só ocorre à medida que os fatos se apresentam para ele e o leitor.
102
Para aguçar suas reflexões ao longo da leitura, propomos algumas outras
questões para serem observadas.
1) O texto pode ser dividido em duas partes: uma em que se apresenta o contexto
histórico e a outra em que aparece a narrativa em si. Tente separar essas partes.
2) O texto é de Machado de Assis, escritor considerado Realista, que o publicou em
1906, na coletânea “Relíquias de Casa Velha”. Machado de Assis ficou
conhecido por ser muito irônico. Sua ironia, contudo, nem sempre está tão “na
cara”. Procure algumas ironias de Machado no conto que lerá.
3) Reflita sobre a prática escravocrata do século XIX, e, depois, reflita sobre o
racismo no Brasil de hoje. Veja como as coisas estão interligadas!
4) Ao final do texto, Machado mostra como o ser humano muitas vezes cria
justificativas para o que não pode ser justificado. Observe.
Pai contra mãe
(Machado de Assis)
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a
outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício.
Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-
de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a
boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da
cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque
geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí
ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal
máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma
vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não
cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira
grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e
fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.
Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco
era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos
gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de
casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas
103
comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que
seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito
físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não
vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", – ou "receberá uma
boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de
preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com
todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por
ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra
nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por
desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros
trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via,
davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, – em família, Candinho,– é a pessoa a quem se liga a história de uma
fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um
defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;
é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo
que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas
estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao
Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de
obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que
poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas
para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas
lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal.
Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para
cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou
muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia,
Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os
namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às
tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a
costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia
desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como
lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de
longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e
ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este
o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi–
para lembrar o primeiro ofício do namorado, – tal foi a página inicial daquele livro, que
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e
foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que
104
por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,
nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em
demasia a patuscadas.
–Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. –Não,
defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles
se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só,
embora viesse agravar a necessidade.
–Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
–Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes
feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela
era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes
eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que
rir, e o riso digeria-se sem esforço.
Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha
emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo
específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a
criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada
ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
–Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do
dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez
que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À
força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção
era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
–Vocês verão a triste vida, suspirava ela. –Mas as outras crianças não nascem
também? perguntou Clara. –Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer,
ainda que pouco... –Certa como? –Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas
em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não
áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia
deixara de comer. –A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo
quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... –Bem sei,
mas somos três. – Seremos quatro. –Não é a mesma cousa. – Que quer então que eu
faça, além do que faço? – Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o
homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não
fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga.
Você passa semanas sem vintém. – Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até
de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase
nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria,
e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros
muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não
obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e
um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e
105
saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo
fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era
muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas
remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem
era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do
vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação
nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam,
mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como
dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como
o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos
jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um
competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem
aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se
difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos
aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a
necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando
ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez,
à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em
escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez
capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros
que lhe deram os parentes do homem.
–É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir
narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida,
outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas
por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O
pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer.
Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono,
cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser
mais amargos.
–Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa
escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o
conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia
haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para
beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como?
Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A
mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara
interveio. –Titia não fala por mal, Candinho. –Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou
por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo;
a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há
de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura,
os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será
bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não
106
se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à
míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-
se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com
tal franqueza e calor,– crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a
amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz
baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
–Quem é? perguntou o marido. –Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa
ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
–Não é preciso... –Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria
algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar
mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para
regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o
que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma
inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
–Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero,
contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais,
recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde
muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias,
não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não
alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes
emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de
alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu
emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.
Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no
desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio
seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,
sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a
casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que
cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias
depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica
insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à
Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a
levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo.
Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda
na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela
maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém,
subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de
vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do
negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a
vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande
esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do
107
Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um
farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga,
três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar
como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros
fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si
mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai,
não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o
que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos
de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que
vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação
do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem
recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao
filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai
pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos
certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do
sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
–Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita
ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que
ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na
direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida.
Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade
real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a
poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou,
achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria
buscá-la sem falta.
–Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua,
até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua,
quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era
a mulata fujona. –Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço
de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir.
Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia
que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que
de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então
que a soltasse pelo amor de Deus.
–Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho,
peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que
quiser. Me solte, meu senhor moço! – Siga! repetiu Cândido Neves. –Me solte! –Não
quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem
passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não
acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria
com açoutes,–cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza,
ele lhe mandaria dar açoutes.
108
–Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? Perguntou
Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à
espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a
escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na
esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço,
inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá
chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali
ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
–Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. – É ela mesma. –Meu senhor! –Anda,
entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou
os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil
réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia,
levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe
e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia
que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez
sem querer conhecer as conseqüências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara.
Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá
dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com
que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.
Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para
a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida
a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é
verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga.
Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se
lhe dava do aborto.
– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdf> Acesso em 16 fev.
2016.
109
Atividade 1:
Individualmente ou em grupo, produza um conto nos moldes do conto lido, ou
seja:
a) com foco narrativo em 3ª pessoa;
b) com narrador onisciente;
c) com a utilização da variedade padrão / norma culta da língua
portuguesa.
Faça, contudo, que o final seja diferente: que o personagem principal reflita
sobre as questões raciais no Brasil e lute para modificá-las. Você pode iniciar sua
história assim: “José Sousa era um adolescente negro que sofria muito preconceito
racial. Um dia, ele...”.
Observação: Há contos que não utilizam a norma culta da língua portuguesa,
mas como essa variedade é exigida no ENEM, por exemplo, é bom treinar!
110
5.2.4 O gênero ROMANCE
Ilustração de Letícia Soares.
Que gênero é esse?
Tem gente que pensa que romance é sempre romântico, uma linda história de
amor. Não é nada disso! Narrativa extensa e complexa, o romance geralmente apresenta
muitos personagens, tramas, muitos núcleos narrativos, independente de seu tema. Pode
ser uma história de amor, sim, mas não necessariamente. Pode ser uma história policial,
uma história sobre um mistério, uma história baseada em fatos reais, ou até uma história
que se passa em outra galáxia, fruto da imaginação do autor. A história contada
geralmente só é entendida, em sua totalidade, ao final da obra, devido à complexidade
do enredo.
Por conter muitas páginas, não será possível transcrever aqui um romance
inteiro, mas escolhemos uma obra para discutir. Já que falamos anteriormente sobre o
Naturalismo, iremos estudar “O cortiço”, romance dessa época (século XIX). Muitas
obras da literatura brasileira estão em domínio público. Isso significa dizer que você
111
pode fazer o download da obra gratuitamente na internet. Basta acessar o site
http://www.dominiopublico.gov.br/. O cortiço está lá, em PDF. Você já pode baixar aí!
Se não tiver internet, é bom provável que na biblioteca da sua escola tenha esse
romance.
Para se ambientar ao que irá ler, pesquise sobre a vida e a obra de Aluísio de
Azevedo (lembra o que vimos sobre biografias?) e procure resumos da obra O cortiço
em sites de busca (lembra o que vimos sobre pesquisas?). O enredo é muito
interessante, e geralmente os adolescentes adoram. Tente convencer alguns amigos a
lerem a obra também. Vocês podem criar um grupo no celular, em um aplicativo de
mensagens instantâneas, apenas para discutir sobre a obra. Como meta, podem discutir
um ou dois capítulos por semana. Isso pode ser divertido. Se não tiverem celular, podem
marcar um encontro semanal, e ao final, aproveitar para colocar o papo em dia!
Para aguçar suas reflexões ao longo da leitura, propomos algumas questões para
serem observadas.
1) “Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em
meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria
sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua”. A
partir dessa passagem, retome as pesquisas que fez anteriormente, buscando dar
resposta à seguinte questão: o que, em termos de instinto, segundo concepções
raciológicas, uma afirmação desse tipo busca “solucionar”?
No capítulo 2, pesquisamos sobre essas “concepções raciológicas”. Só para
relembrar, vale dizer que, no Brasil do séc. XIX, difundiu-se que o negro era um ser
inferior e pouco evoluído. Esse discurso raciológico, porque relativo à raça, foi, segundo
a suposição da época, “comprovado cientificamente” e teve apoio até do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Claro que esse discurso foi defendido,
porque havia interesses em manter a escravidão e manter os nobres brancos no poder.
Para isso, utilizaram de todos os artifícios (imorais e antiéticos) para “provar” que negro
só servia para ser escravo! Acreditavam que os indígenas até poderiam ser “civilizados”
(como se a civilização que propuseram fosse realmente boa), mas os negros não tinham
jeito mesmo! A partir disso, passaram a defender um projeto de branqueamento no
Brasil: com o fim da escravidão, passaram a trazer muitos imigrantes europeus, que
ajudariam a clarear a pele da população, que ficaria, então, mais “evoluída”. Hoje
sabemos que, biologicamente, não há diferença alguma entre negros, brancos e
indígenas, mas, infelizmente, esses discursos ainda pairam nos ares brasileiros, e as
oportunidades dadas às pessoas ainda têm a ver, muitas vezes, com a cor da pele que
possuem.
112
2) “O discurso raciológico estava tão presente na sociedade brasileira no período
em que a obra foi escrita, que na descrição dos personagens de O Cortiço, há
recorrentemente uma referência à negritude do personagem.” Ao longo de sua leitura,
destaque passagens que façam esse tipo de referência.
3) Como se pode interpretar a recorrência desse destaque à cor da pele na obra
de Aluísio de Azevedo? Ou seja, por que será que o autor descrevia as personagens a
partir do critério racial, destacando as características físicas de cada personagem?
4) Esse tipo de descrição ainda é feito atualmente? O sentido ainda é o mesmo?
5) Há figuras de linguagem que estão relacionadas a esse procedimento
descritivo. Quando alguém enuncia a frase: “A comida arranjava-lhe, mediante
quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona
[...]”, que figura de linguagem está empregando? Metáfora? Metonímia? Hipérbole?
Eufemismo? Pense como vai apresentar suas razões da escolha feita.
6) No capítulo VII de O Cortiço, atente ao seguinte parágrafo: “Naquela mulata
estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela
era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda;(...), uma
larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e
espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca”. A imagem que é construída da
Rita, ao longo do livro, mais especificamente nesse capítulo, e, ainda, nesse parágrafo,
leva em conta aspectos de sua intelectualidade ou aspectos físicos? A que podemos
atribuir o privilégio de um aspecto sobre o outro? Que relações podem ser feitas se
levarmos em conta a imagem criada da Rita e aquilo que foi pesquisado sobre o ideal de
branqueamento?
7) A construção discursiva que o narrador faz da Rita está ainda presente na
sociedade atual em relação à construção da imagem da mulher brasileira? E em relação
à população negra, de modo geral? Por que esse tipo de descrição pode ser considerada
negativa?
8) Em relação às músicas populares da contemporaneidade, ainda há a
continuidade do discurso raciológico do século XIX em relação ao imaginário da terra,
do povo, e da mulher? Pense em exemplos de músicas que discriminam o negro ou a
mulher negra.
113
9) Assista ao filme “O cortiço”, de 1978, e compare-o ao livro. Que
características são peculiares ao gênero romance? E ao gênero filme? O efeito de
sentido produzido é o mesmo independente do gênero de suporte, ou seja, os efeitos são
os mesmos no livro e no filme?
Atividade 1:
Sabe aqueles filmes que passam em nossa imaginação? Que tal tentar
transformar suas “viagens mentais” em um romance? Não é uma tarefa nada fácil, mas
se você se unir aos seus colegas poderão construir uma história interessante e complexa.
Se preferirem, podem também criar um vídeo, uma espécie de novela de TV, com uma
narrativa. Nossa sugestão é que o enredo, diferente da obra “O cortiço”, possa
“desemparedar” os personagens, ou seja, deixá-los livres para seguirem suas vidas, sem
a prisão racial imposta pelo racismo que atravessa os séculos. Afinal, ninguém deveria
ter o futuro pré-determinado por sua raça ou meio social em que vive, e todas as
pessoas – indígenas, negros, pardos, asiáticos, brancos – podem lutar para ter a
profissão que desejam, ser quem desejam ser, e alcançar patamares inimagináveis!
114
5.2.5 O gênero TEXTOS LITERÁRIOS
Ilustração de Letícia Soares
Que gênero é esse?
Nos livros didáticos, os conteúdos abordados são explicados de modo que o
aluno, ao ler o capítulo, entenda sobre o que se fala. O problema é que às vezes não há
muitos exemplos ilustrativos, e as dúvidas aparecem. Um assunto que os alunos
confundem bastante, logo no início do Ensino Médio, é a diferença entre o texto
literário e o não literário. Dentro do que estamos chamando de gênero TEXTOS
LITERÁRIOS, há muitos outros gêneros, como o conto, a crônica, o romance, a poesia.
Para entender melhor, podemos pensar em uma tela em branco. Há artistas que
se dedicam horas, dias e até mesmo anos para pintar uma tela, pois há uma preocupação
com o efeito visual que quer atingir. Por outro lado, há máquinas, hoje em dia, que
imprimem pinturas em telas, de modo bem simples e mecânico.
Com as palavras, é mais ou menos assim: o texto literário corresponde àquela
pintura elaborada, e o não literário se preocupa mais em passar informações de modo
direto. O texto literário é como se passasse pelas mãos de um artesão, e o não literário,
por máquinas.
115
Atividade 1:
A partir dos muitos exemplos abaixo, tente descobrir quais textos são literários e
quais são não literários. Se possível, discuta sobre os textos com seus colegas e
professores. Você pode, ainda, dizer o gênero específico de cada texto. Aproveite este
momento de leitura e veja como ler é delicioso!
Exemplo 1:
TUPI – GUARANI
Que palavras em tupi eu sei?
Que palavras em tupi sei falar?
Que palavras sei falar em tupi?
Em tupi-guarani
Eu sei, sei, sei, sei, sei sei...
Sei falar guaraná
Sei falar tororó
Canoa, capim, marimbondo, bambu
Caipira, sabiá, tamanduá, urubu
Maranhão, Ipanema, Ingá, Iguaçú
Niterói, Icaraí , Paraty e Xingu
Oré Icoeté Oripaba
Oré Icoé Oriba
Xará, goiaba, cacau, tatuí
Cipó, mauá, taí, colibri
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Toca, jacarandá, Paquetá
Cama, maracujá, Geribá
Paçoca, sarará, saci pererê
Pipoca, Igarapé, siri, Tietê
Sapeca, jabuti, pitanga, caju
Peteca, samambaia, uirapuru
Arara, carioca, papagaio
Tucunaré e curumim
Pindaíba, jatobá, jabuticaba
Pindorama, cururu, piriri, piriri
Itacoatiara, jaca, jararaca,
Butantã, abacaxi
Ipiranga, mocotó
Carayba, paraná
Itamarati
Disponível em <http://www.glorinhaerenato.com/giramundo.html> Acesso em 04 set. 2014.
Exemplo 2:
Marabá
Eu vivo sozinha, ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá!
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:
— "Tu és", me responde,
"Tu és Marabá!"
— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado,
— As cores imitam das vagas do mar!
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
"Teus olhos são garços",
Responde anojado, "mas és Marabá;
Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
Uns olhos fulgentes,
Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"
— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
— Da cor das areias batidas do mar;
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.
117
Se ainda me escuta meus agros delírios:
— "És alva de lírios",
Sorrindo responde, "mas és Marabá:
Quero antes um rosto de jambo corado,
Um rosto crestado
Do sol do deserto, não flor de cajá."
— Meu colo de leve se encurva engraçado,
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
— Como um soluçado suspiro de amor!
"Eu amo a estatura flexível, ligeira,
Qual duma palmeira",
Então me respondem; "tu és Marabá:
Quero antes o colo da ema orgulhosa,
Que pisa vaidosa,
Que as flóreas campinas governa, onde está."
— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram
— De os ver tão formosos como um beija-flor!
Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
São loiros, são belos,
Mas são anelados; tu és Marabá:
Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
Cabelos compridos,
Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá,"
————
E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d'acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:
Jamais um guerreiro da minha arazóia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá! DIAS, Gonçalves. Marabá. Disponível em <http://www.revista.agulha.nom.br/gdias02.html> Acesso em 04
set. 2014
Exemplo 3:
118
O roubo do fogo
(Povo Guarani. Mito Guarani)
Em tempos antigos os guaranis não sabiam acender o fogo. Na verdade, eles
apenas sabiam que existia o fogo, mas comiam alimentos crus, pois o fogo estava em
poder dos urubus.
O fogo estava com estas aves porque foram elas que primeiro descobriram um
jeito de se apossarem das brasas da grande fogueira do sol. Numa ocasião, quando o sol
estava bem fraquinho, e o dia não estava muito claro, os urubus foram até lá e retiraram
algumas rasas das quais tomavam conta com muito cuidado e zelo. É por isso que
somente estas aves comiam seu alimento assado ou cozido e nenhum outro ser da
floresta tinha este privilégio.
É claro que todos os urubus tomavam conta das brasas como se fosse um tesouro
precioso e não permitiam que ninguém delas se aproximasse. Os homens e os outros
animais viviam irritados com isso. Todos queriam roubar o fogo dos urubus, mas
ninguém se atrevia a desafiá-los.
Um dia, o grande herói Apopocuva retornou de uma longa viagem que fizera.
Seu nome era Nhanderequeí. Guerreiro respeitado por todo o povo, decidiu que iria
roubar o fogo dos urubus. Reuniu todos os animais, aves e homens da floresta e contou
o plano que tinha para enfrentar os temidos urubus, guardiões do fogo. Até mesmo o
pequeno cururu, que não fora convidado, compareceu dizendo que também ele tinha
muito interesse no fogo.
Todos já reunidos, Nhanderequeí expôs seu plano:
– Todos vocês sabem que os urubus usam fogo para cozinhar. Eles não sabem
comer alimento cru. Por isso vou me fingir de morto bem debaixo do ninho deles.
Todos vocês devem ficar escondidos e quando eu der uma ordem, avancem para cima
deles e os espantem daqui. Dessa forma, poderemos pegar o fogo para nós.
Todos concordaram e procuraram um lugar para se esconder. Não sabiam por
quanto tempo iriam esperar. Nhanderequei deitou-se. Permaneceu imóvel por um dia
inteiro.
Os urubus, lá do alto das árvores, observaram com desconfiança. Será que
aquele homem estava morto mesmo ou estava apenas querendo enganá-los? Por via das
dúvidas preferiram aguardar mais um pouco.
O herói permaneceu o segundo dia do mesmo jeito. Sequer respirava direito para
não criar desconfiança nos urubus que continuavam rodeando seu corpo. Foi no fim do
terceiro dia, no entanto, que as aves baixaram as guardas. Ficavam imaginando que não
era possível uma pessoa fingir-se de morta por tanto tempo. Ficavam confabulando
entre si:
– Olhem, meus parentes urubus – dizia o chefe urubu – nenhum homem pode
fingir-se de morto assim. Já decidi: vamos comê-lo. Podem trazer as brasas para
fazermos a fogueira.
Um grande alarido se ouviu. Os urubus aprovavam a decisão de seu chefe, e por
isso imediatamente partiram para buscar as brasas. Trouxeram e acenderam uma
fogueira bonita e vistosa.
O chefe dos urubus ordenou, então, que trouxessem a comida para ser assada.
Um verdadeiro batalhão foi até a presa e a trouxe em seus bicos e garras. Eles acharam
119
o corpo do herói um pouco pesado, mas isso consideraram até muito bom, assim daria
para todos os urubus.
Eles colocaram Nhanderequeí sobre o fogo, mas graças a uma resina que ele
passara pelo corpo, o fogo não o queimava. Num certo momento, o herói se levantou do
meio das brasas dando um grande susto nos urubus que, atônitos, voaram todos.
Nhanderequeí aproveitou-se da surpresa e gritou a todos os amigos que estavam
escondidos para que atacassem os urubus e salvassem algumas daquelas brasas ardentes.
Os urubus, vendo que se tratava de uma armadilha, se esforçaram ao máximo
para apagar as brasas, engoli-las e não permitirem que aqueles seres tomassem posse
delas. Foi uma correria geral. Acontece, no entanto, que na pressa de salvar o fogo,
quase todas as brasas se apagaram por terem sido pisoteadas.
Quando tudo se acalmou, Nhanderequeí chamou a todos e perguntou quantas
brasas haviam conseguido. Uns olhavam para os outros na tentativa de saber quem
havia salvado alguma brasinha, mas qual não foi a tristeza geral ao se depararem com a
realidade: ninguém havia salvado uma pedrinha sequer.
− Só temos carvão e cinzas – disse alguém no meio da multidão.
− E para que nos há de servir isso? – falou Nhanderequeí. – Nossa batalha contra
os urubus de nada valeu!
Acontece que, por trás de todos, saiu o pequeno cururu, dizendo:
− Durante a luta os urubus se preocuparam apenas com os animais grandes e não
notaram que eu peguei uma brasinha e coloquei em minha boca. Espero que ainda esteja
acesa. Mas pode ser que...
− Depressa. Pare de falar, meu caro cururu. Não podemos perder tempo. Dê-me
esta brasa imediatamente – disse Nhanderequeí, tomando a brasa em suas mãos e a
assoprando levemente.
Todos os animais ficaram atentos às ações do herói que tratava com muito
cuidado aquele pequeno luzeiro. Pegou-o na mão e colocou um pouquinho de palha e o
assoprou novamente. Com isso ele conseguiu um pequeno riozinho de fumaça. Isso foi
o bastante para incomodar os animais, que logo disseram:
− Se o fogo sempre faz fumaça, não será bom para nós. Nós não suportamos
fumaça.
Dizendo isso, os bichos foram embora, deixando o fogo com os homens e com
as aves.
Nhanderequeí soprou de novo. Ele o fazia com todo o cuidado, com todo o jeito.
Logo em seguida à fumaça, aconteceu um cheiro de queimado. Isso foi o bastante para
que as aves se incomodassem e dissessem:
− Nós não gostamos desse cheiro que sai do fogo. Isso não é bom para as aves.
Fiquem vocês com este fogo.
Dizendo isso, bateram as asas e se foram deixando apenas os homens tomando
conta do fogo.
Enquanto isso, Nhanderequeí soprou ainda mais forte e, finalmente, as chamas
apareceram no meio da palha e do carvão que sustentaram o fogo aceso para sempre.
Percebendo que tudo estava sob controle, o herói ordenou que seus parentes
encontrassem as madeiras canelinha, criciúma, cacho-de-coqueiro e cipó-de-sapo e as
usassem sempre, toda vez que quisessem acender e conservar o fogo. Além disso, o
corajoso herói ensinou os Apopocuva a fazer um pilãozinho para guardar as brasas e
assim conservar o fogo para sempre.
120
Dizem os velhos desse povo que até os dias de hoje os Apopocuva guardam o
pilãozinho e aquelas madeiras.
(MUNDUKURU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2005)
Glossário:
Apopocúva-Guarani – O grande povo Guarani está localizado em oito estados brasileiros. Sua língua,
subdividida em Nhandeva, M’Bia e Kaiowá, pertence ao tronco linguístico Tupi. Sua população é a segunda maior do
Brasil. Segundo dados oficiais, chega a 35 mil pessoas. Os Guarani estão presentes ainda em diversos países que
fazem fronteira com o Brasil.
Nhanderequeí – Herói civilizador entre os Guarani. Aquele que cria e ensina este povo a manipular seus
bens culturais. Nesta história, ele é o herói que ajuda o povo a roubar o fogo e ensina a conservá-lo.
Cururu – Nome genérico dos sapos, em Tupi.
Exemplo 4:
ARAORI
YMÉ BOYÁ
TAYGOARA ASSÉ
OPACATU, RAYRA , CY, GUBA
YMÉ BOYÁ
TAYGOARA ARAORI
APÓ, POTIÁ
TETIMÃ, POTIÁ
Me escravizar ninguém pode não
Nasci assim e livre vou ficar
Meu pai e mãe
Minha irmã e meu irmão
Índio é livre
Para viver
Índio é livre
Para livre ser
Assim eu sou
Não, não mudo não
Bato no peito
Boto os pés no chão
A Terra é grande
Dá pra dividir
Não precisa me matar
Nem me ferir
Disponível em <http://www.glorinhaerenato.com/giramundo.html> Acesso em 04 ago. 2014.
Exemplo 5:
DO MUNDO DO CENTRO DA TERRA AO MUNDO DE CIMA
121
(Povo Munduruku – Mito Tupi)
No antigo tempo da criação do mundo com toda sua beleza, os Munduruku
viviam dispersos, sem unidade e guerreando entre si. Esta era uma situação muito ruim
que tornava a vida mais difícil e indócil. Foi aí que ressurgiu Karú-Sakaibê, o Grande
Criador, que já havia realizado tantas coisas boas para este povo.
Contam os velhos que foi ele quem criara as montanhas e as rochas soprando em
penas fincadas no chão. Eram também criações dele os rios, as árvores, os animais, as
aves do céu e os peixes que habitam todos os rios e igarapés.
Karú-Sakaibê, tendo percebido que o povo que ele criara não estava unido,
decidiu voltar para unificá-lo e lembrá-lo como havia sido trazido do fundo da terra
quando ele decidiu enfeitar a terra com gente que pudesse cuidar da obra que criara.
Assim contam os velhos sobre a vinda dos Munduruku ao mundo de cima:
Karú-Sakaibê andava pelo mundo sempre em companhia de seu fiel amigo
Rairu, que embora fosse muito poderoso, gostava de brincar e se divertir. Um dia, Rairu
fez uma figura de tatu juntando folhas, gravetos e cipós. Era uma imitação perfeita. Tão
perfeita que o jovem brincalhão resolveu colá-lo com resina feita com cera de mel de
abelha para que seu desenho nunca desaparecesse. Para secar a resina Rairu enterrou seu
"tatu" embaixo da terra deixando apenas o rabo para fora. Porém, quando ele tentou,
depois de algum tempo, retirar sua mão do rabo não conseguiu, pois a resina havia
secado e ele ficara grudado no rabo do tatu.
Como Rairu tinha um grande poder, deu vida ao desenho e este, em vez de
querer sair do buraco, foi adentrando-se cada vez mais, carregando consigo o pobre
rapaz preso ao seu rabo. Por mais que tentasse se soltar não conseguia. O tatu-desenho
foi cada vez mais fundo e quando chegou ao centro da terra, Rairu encontrou muita
gente que por lá morava. Tinha gente de todo jeito: algumas eram bonitas, outras eram
feias; algumas eram boas e outras eram más e preguiçosas.
Rairu ficou tão impressionado com aquilo que decidiu sair rapidamente do
buraco para contar a Karú-Sakaibê, que já devia estar preocupado com sua demora. E
estava mesmo. Karú irritou-se tanto com seu companheiro que decidiu castigá-lo,
batendo nele com um pedaço de pau. Para se defender o jovem contou sua aventura ao
centro da terra e como ele havia encontrado gente lá. Estas palavras chamaram a
atenção de Karú, que decidiu trazer toda esta gente para o mundo decima.
Rairu ainda perguntou como poderiam fazer isso se eles estavam tão longe. O
herói criador nem sequer deu ouvido ao jovem. Começou a fazer uma pelota e enrolá-la
na mão. Em seguida jogou a pelota no chão e imediatamente nasceu um pé de algodão.
Colheu, então, o algodão e com suas fibras fez uma corda que passou na cintura de
Rairu e ordenou que fosse ao centro da terra buscar as pessoas que ele vira.
Rairu desceu pelo mesmo buraco do tatu. Quando chegou reuniu todo mundo e
falou das maravilhas que havia no mundo de cima e que queria que todos subissem pela
corda para conhecer este novo mundo. Os primeiros a subir foram os feios e os
preguiçosos, porque estes imaginavam que iam encontrar alimento com muita facilidade
nunca mais precisariam trabalhar. Depois subiram os bonitos e formosos. No entanto,
quando estes últimos já estavam quase alcançando o topo, a corda arrebentou e um
grande número de gente bonita caiu no buraco e permaneceu vivendo no fundo da terra.
Como eram muitos, Karú- Sakaibê quis diferenciá-los uns dos outros. Para que
uns fossem Munduruku, outros Mura, arara, Mawé, Panamá, Kaiapó e assim por diante.
Cada um seria de um povo diferente. Fez isso pintando uns de verde, outros de
122
vermelho, outros de amarelo e outros de preto. No entanto, enquanto Karú pintava um
por um, os que eram feios e preguiçosos adormeceram.
Esta atitude das pessoas feias irritou profundamente o herói criador. Como
castigo por sua preguiça, Karú-Sakaibê os transformou em passarinhos, porcos-
do0mato, borboletas e em outros bichos que passaram a habitar a floresta.
No entanto, àqueles que não eram preguiçosos ele disse:
- Vocês serão o começo, o princípio de novos tempos e seus filhos e os filhos de
seus filhos serão valentes e fortes.
E para presenteá-los por sua lealdade, o grande herói preparou o campo, semeou
e mandou chuva para regá-lo. e tão logo a chuva caiu nasceram a mandioca, o milho, o
cará, a batata-doce, o algodão, as plantas medicinais e muitas outras que servem, até os
dias de hoje, de alimento para esta gente. Ainda os ensinou a construir os fornos para
preparar a farinha.
Contam nossos avós que foi assim que Karú-Sakaibê transformou a grande
nação Munduruku num povo forte, valente e poderoso...
(MUNDUKURU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2005)
Glossário:
Munduruku – Significa Formigas Gigantes ou Compridas por ser conhecido como um povo guerreiro e
poderoso. Está presente nos estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso, totalizando aproximadamente 12 mil pessoas.
Seu contato com a cidade já é de 250 anos e, apesar deste contato antigo, mantém sua cultura e tradição através de
rituais e de sua língua. (Usam a língua Munduruku, do tronco Tupi)
Karú-Sakaibê – É dessa forma que o povo Munduruku denomina seu herói criador e civilizador.
Rairu – Era o fiel companheiro de Karú-Sakaibê, uma espécie de assistente na obra da criação.
Igarapé – Significa pequeno córrego. São braços de um grande rio, onde normalmente estão localizadas as
aldeias Munduruku.
Mura, Mawé, Arara, Panamá, Kaiapó – Denominação de alguns povos indígenas que são vizinhos dos
Munduruku.
Exemplo 6:
Desde 1500 até a década de 1970 a população indígena brasileira decresceu
acentuadamente e muitos povos foram extintos. O desaparecimento dos povos indígenas
passou a ser visto como uma contingência histórica, algo a ser lamentado, porém
inevitável. No entanto, este quadro começou a dar sinais de mudança nas últimas
décadas do século passado. A partir de 1991, o IBGE incluiu os indígenas no censo
demográfico nacional. O contingente de brasileiros que se considerava indígena cresceu
150% na década de 90. O ritmo de crescimento foi quase seis vezes maior que o da
população em geral. O percentual de indígenas em relação à população total brasileira
saltou de 0,2% em 1991 para 0,4% em 2000, totalizando 734 mil pessoas. Houve um
aumento anual de 10,8% da população, a maior taxa de crescimento dentre todas as
categorias, quando a média total de crescimento foi de 1,6%.
Um dado importante foi o aumento da proporção de indígenas urbanizados. A
atual população indígena brasileira, segundo resultados preliminares do Censo
Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, é de 817.963 indígenas, dos quais 502.783
vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. Este Censo revelou
que em todos os Estados da Federação, inclusive do Distrito Federal, há populações
indígenas. A Funai também registra 69 referências de índios ainda não contatados, além
de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena
123
junto ao órgão federal indigenista [...] o censo demonstrou que cerca de 17,5% da
população indígena não fala a língua portuguesa.
Esta população, em sua grande maioria, vem enfrentando uma acelerada e
complexa transformação social, necessitando buscar novas respostas para a sua
sobrevivência física e cultural e garantir às próximas gerações melhor qualidade de
vida. As comunidades indígenas vêm enfrentando problemas concretos, tais como
invasões e degradações territoriais e ambientais, exploração sexual, aliciamento e uso de
drogas, exploração de trabalho, inclusive infantil, mendicância, êxodo desordenado
causando grande concentração de indígenas nas cidades.
Hoje, segundo dados do censo do IBGE realizado em 2010, a população
brasileira soma 190.755.799 milhões de pessoas. Ainda segundo o censo, 817.963 mil
são indígenas, representando 305 diferentes etnias. Foram registradas no país 274
línguas indígenas.
Os Povos Indígenas estão presentes nas cinco regiões do Brasil, sendo que
a região Norte é aquela que concentra o maior número de indivíduos, 305.873 mil, sendo
aproximadamente 37,4% do total. [...] Disponível em <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao> Acesso em 04 set. 2014.
Exemplo 7:
A demarcação de uma Terra Indígena tem por objetivo garantir o direito
indígena à terra. Ela deve estabelecer a real extensão da posse indígena, assegurando a
proteção dos limites demarcados e impedindo a ocupação por terceiros.
Desde a aprovação do Estatuto do Índio, em 1973, esse reconhecimento formal
passou a obedecer a um procedimento administrativo, previsto no artigo 19 daquela lei.
Tal procedimento, que estipula as etapas do longo processo de demarcação, é regulado
por decreto do Executivo e, no decorrer dos anos, sofreu seguidas modificações. A
última modificação importante ocorreu com o decreto 1.775, de janeiro de 1996.
[...] O Brasil tem uma extensão territorial de 851.196.500 hectares, ou seja,
8.511.965 km2. As terras indígenas (TIs) somam 691 áreas, ocupando uma extensão
total de 113.190.570 hectares (1.131.906 km2). Assim, 13.3% das terras do país são
reservados aos povos indígenas.
A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia Legal: são 422 áreas,
111.401.207 hectares, representando 22,25% do território amazônico e 98.42% da
extensão de todas as TIs do país. O restante, 1.58% , espalha-se pelas regiões Nordeste,
Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do Sul.
Essa situação de flagrante contraste pode ser explicada pelo fato de a
colonização do Brasil ter sido iniciada pelo litoral, o que levou a embates diretos contra
as populações indígenas que aí viviam, causando enorme depopulação e desocupação
das terras, que hoje estão em mãos da propriedade privada. Aos índios restaram terras
diminutas, conquistadas a duras penas. Por exemplo, em São Paulo, a terra Guarani
Aldeia Jaraguá tem apenas dois hectares de extensão, o que impossibilita que vivam da
terra.
Há vozes dissonantes em relação ao tamanho das TIs na Amazônia, alegando
que haveria "muita terra para poucos índios". Esses críticos se esquecem de que os
índios têm que tirar todo seu sustento da terra. Muitas vezes, as TIs têm grandes partes
não agricultáveis, e sofrem ou sofreram diversos tipos de impactos.
124
Disponível em <http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/introducao>. Acesso em
04 set. 2014.
Exemplo 8:
Daniel Munduruku
Escritor indígena com 45 livros publicados, graduado em Filosofia, tem
licenciatura em História e Psicologia. Doutor em Educação pela USP. É pós-doutor em
Literatura pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Título obtido sob a
orientação da Profa. Dra. Maria Silvia Cintra Martins. Diretor presidente do Instituto
UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Comendador da Ordem do Mérito Cultural da
Presidência da República desde 2008. Em 2013 recebeu a mesma honraria na categoria
da Grã-Cruz, a mais importante honraria oficial a um cidadão brasileiro na área da
cultura. Membro Fundador da Academia de Letras de Lorena.
Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior, entre eles o Prêmio Jabuti,
Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado
pelo CNPq); Prêmio Tolerância (outorgado pela UNESCO). Muitos de seus livros
receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil (FNLIJ). Disponível em <http://www.danielmunduruku.com.br/p/daniel-munduruku.html> Acesso em 04 set. 2014.
Resposta da atividade 1: os textos não literários são os três últimos exemplos (6,
7 e 8). Todos os outros são textos literários.
Atividade 2:
Agora que você já percebeu que o texto não literário se preocupa mais com o
que se diz e o não literário com o como se diz, escreva um texto não literário e um
literário sobre a situação dos indígenas no Brasil de hoje. Para isso, pesquise sobre as
várias línguas faladas no Brasil, sobre especificidades da cultura indígena e também
sobre a situação dos indígenas que vivem em meio urbano, que, como todo cidadão,
utilizam internet (até para preservar suas culturas), têm celular, e nem por isso deixam
de ser indígenas, mas acabam sofrendo preconceito porque ainda são vistos como “não
civilizados”. Dá pra acreditar?!
125
5.2.6 O gênero POESIA
Ilustração de Letícia Soares
Que gênero é esse?
A poesia é um texto literário, uma verdadeira criação artística. Nela, há um eu-
lírico, uma voz que fala no poema, que pode ser inventada, ou pode ser a expressão da
própria voz do autor do texto. Alguns escritores se preocupam mais com o rigor da
forma da poesia: elaboram rimas, métrica e ritmo regulares. Outros escrevem versos
livres, mais preocupados com o tema do texto. Há, ainda, os que elaboram textos ricos
em forma e conteúdo. Tudo isso depende do estilo do autor, da época em que está
inserido, e de muitos outros fatores. O mais importante é entendermos que a poesia
pode ser uma importante ferramenta para se expressar. Mergulhe no mundo da poesia!
A poesia abaixo (tradução de Still I Rise feita por Mauro Catopodis) foi feita por
Maya Angelou, uma mulher negra norte-americana.
Ainda assim, eu me levanto
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
126
Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.
Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.
Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minh’alma enfraquecida pela solidão?
Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.
Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.
Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Por que eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?
Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto. Disponível em <http://lugardemulher.com.br/adeus-pra-musa-maya-angelou/> Acesso em 12 jan. 2016.
Agora, leia a poesia abaixo, de Cristiane Sobral, autora negra brasileira
contemporânea.
Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito
Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
127
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito
Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros
Ah
Esqueci de dizer
Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere. Você nem me chame
Não vou
De tudo o que jamais li
De tudo o que jamais entendi
Você foi o que passou
Passou do limite
Passou da medida
Passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos
Aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
128
Minha tela da sua moldura
Sendo assim
Não lavo mais nada
e olho a sujeira no fundo do copo
Sempre chega o momento
De sacudir
De investir
De traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18
Espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata
Cozinhas de luxo
E jóias de ouro
Legítimas
Está decretada a lei áurea.
Disponível em <http://cristianesobral.blogspot.com.br/2012/04/nao-vou-mais-lavar-os-pratos-poesia-de.html>
Acesso em 12 jan. 2016.
Esta outra poesia é de Alzira Rufino, também autora negra brasileira
contemporânea.
RESISTO
De onde vem este medo?
sou
sem mistério existo
busco gestos
de parecer
atando os feitos
que me contam
grito
de onde vem
esta vergonha
sobre mim?
Eu, mulher, negra,
RESISTO. Disponível em <http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/RevistaEixo/article/view/129> Acesso em 12 jan.
2016.
129
Agora reflita:
1- O que os textos têm em comum?
2- Como cada eu-lírico, de cada um dos textos, reage frente à situação-problema
enfrentada?
3- O que representa o fato de as autoras das poesias serem mulheres negras?
4- Como a mulher negra é geralmente representada na mídia: na TV, na internet,
nos filmes, nas revistas e nos livros didáticos? Você já observou? Por que isso
acontece?
5- Você sofre algum tipo de preconceito? Como você reage ou reagiria?
6- Por que existe tanto racismo no Brasil?
7- De que maneiras podemos colaborar para exterminar o racismo no Brasil?
8- Você já presenciou uma cena de racismo em sua escola ou no seu bairro? O que
você fez ou poderia fazer para evitar que aquilo acontecesse?
Atividade 1:
Agora é hora de praticar. Se você nunca escreveu uma poesia, está na hora de
começar. Extravase seus sentimentos. Fale sobre suas conquistas, suas experiências de
vida, seus desejos. Poetize-se!
130
5.2.7 O gênero ILUSTRAÇÃO
Ilustração de Letícia Soares
Que gênero é esse?
O gênero ilustração é muito usado, não só em livros didáticos, mas em revistas,
jornais, blogs. É uma maneira de dizer de outro jeito – com uma imagem – o que o texto
verbal diz.
Veja esta ilustração:
Ilustração de Jéssica Sanz
131
Você acha que ela serviria para ilustrar qual texto?
Agora veja o fragmento de texto abaixo:
“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?... [...]”
Disponível em <http://www.jornaldepoesia.jor.br/calves02.html>. Acesso em 13 jan. 2016.
Sabendo que o texto lido acima é a primeira estrofe do poema “Vozes d’África”,
de Castro Alves, um poeta do século XIX que lutava pelo fim da escravidão, e que o
poema faz referência aos negros escravizados que estavam inconformados com sua
situação, você acha que a ilustração mostrada acima ilustra bem o fragmento de texto?
Observe bem.
A ilustração traz a imagem de um homem branco, com roupas que não
representam as que eram usadas pelos africanos que foram aqui escravizados. Vale dizer
que esses africanos eram guerreiros, e humanos como todos os humanos, queriam viver
como humanos, e não como seres inferiores. Por isso, lutaram bravamente para mudar
sua situação, e ainda lutam, pois, por causa desse passado, muita gente ainda é racista!
Agora, pense comigo. Se alguém usar uma ilustração de um homem branco para
ilustrar um poema sobre o sofrimento do negro na África estará contribuindo para o
enfrentamento ao racismo? Ou, por outro lado, estará ajudando a desviar a atenção
sobre a opressão histórica contra os negros?
Precisamos ficar atentos, pois já que existe uma lei que torna obrigatório o
estudo sobre a África, pode ser que alguém coloque textos sobre o tema em livros
didáticos para cumprir superficialmente a lei, ilustrando-os de forma inadequada. E uma
ilustração imprópria, às vezes, pode ser encontrada em um livro didático de Português
para o Ensino Médio, e ser vista em muitas escolas brasileiras!
Podemos ver que quase não há imagens de negros nos livros, que o “falar sobre
África” geralmente é superficial ou equivocado, que os negros e os indígenas quase
nunca aparecem de modo positivo, na posição de médicos ou engenheiros, e profissões
com os melhores salários em geral. Isso precisa mudar! Precisamos construir um Brasil
diferente!
132
Atividade 1:
Como vimos, a imagem de um homem branco não ilustrou bem o texto a que
deveria estar relacionada. Sendo assim, imagine que você é o ilustrador do livro e
proponha outra ilustração mais adequada para o fragmento da poesia de Castro Alves.
Não tenha timidez, pois o que vale não é o profissionalismo do desenho, mas a
qualidade da ideia. Pegue um papel e mãos à obra. Mas, caso não saiba mesmo
desenhar, procure na internet uma ilustração que realmente sirva para ilustrar o texto em
questão: o poema “Vozes d’África”.
Atividade 2:
Observe as ilustrações que aparecem ao longo do livro. Quase todas foram feitas
por Letícia Soares de Freitas, que foi minha aluna no primeiro ano do Ensino Médio, em
2012, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, campus Campos-Centro.
Era uma menina ainda, muito tímida, sempre atenta às aulas, mas com lápis e papel na
mão, fazendo desenhos incríveis enquanto me ouvia. Um dia, quis ver seus desenhos, e
não entendia como tirava notas tão altas em língua portuguesa, mesmo desenhando na
hora das explicações. Um talento à parte! Hoje em dia, está matriculada, na mesma
instituição, no curso superior de Design Gráfico, e acredito muito em seu potencial.
133
Essa ex-aluna está dando uma importante contribuição para este livro. Dentre as
ilustrações que fez, de qual você gostou mais?21
5.2.8 O gênero LEI
Ilustração de Letícia Soares
Que gênero é esse?
No item 5.2.7 (O gênero ILUSTRAÇÃO), foi mencionado que há uma lei que
obriga estudarmos sobre África... É verdade! Mas antes de falarmos sobre essa lei, é
preciso saber um pouco como é que as coisas funcionam no Brasil.
Aqui, como em quase todos os Estados da atualidade, há uma Constituição, um
conjunto de leis soberanas, que valem em todo território brasileiro. A primeira
constituição vigente foi a Constituição Luso-Brasileira, de 1822. Ela passou por várias
reformas, até chegar à Constituição de 1988, vigente hoje em dia. Não é um texto fácil
de ler, porque não foi feito para ser fácil. É importante, todavia, conhecermos um pouco
das nossas leis, pois é a partir delas que conhecemos nossos direitos e deveres.
21 Uma atual aluna minha do terceiro ano do Ensino Médio do IFF, Jéssica Sanz Gomes Leal, também
colaborou com uma ilustração para este livro. Além do talento de desenhar, produz ótimos textos, e
acabou de escrever seu primeiro romance! Sou muito grata pela colaboração dessas brilhantes alunas,
Jéssica e Letícia, já mencionada, e de tantos outros alunos e alunas, que igualmente abrilhantam minhas
aulas e minha vida! Há ainda uma ilustração que foi feita por Diogo Reis, bacharel em Desenho
Industrial, que editou e diagramou todo este livro, e ainda ajustou todas as ilustrações.
134
O texto da Constituição é estruturado em várias partes: preâmbulo, declaração
inicial, títulos, capítulos, artigos, parágrafos, incisos... Mas não precisamos dominar
toda essa estrutura. Mais importante é saber o conteúdo das leis, e pesquisas por assunto
na internet podem nos ajudar bastante. A própria sociedade pode contribuir na criação
de leis, criando projetos de leis. Isso não é tão simples, mas é possível. De modo geral,
as leis são criadas por representantes eleitos pelo povo: os vereadores, deputados e
senadores. A constituição, portanto, está constantemente sendo reformada, e sempre se
amplia e recebe novas leis (emendas constitucionais).
Além da constituição, há diversos outros documentos legislativos: decretos,
estatutos, leis complementares, leis ordinárias, códigos... Em relação à educação no
Brasil, o que vale é a lei 9.394, de 1996, conhecida como LDB ou LDBEN (Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Essa lei, contudo, sofreu várias alterações
nesses últimos 20 anos. Se a sociedade muda, as leis tendem a mudar também.
Alguns movimentos sociais, por exemplo, lutam por igualdade social, e
conquistam mudanças importantes. Em 2003, depois de muitas décadas de lutas, o
movimento negro conseguiu a promulgação da lei 10.639, que alterou a LDBEN e
tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira na educação básica. Em
2008, incluiu-se também as questões indígenas, na lei 11.645. Tudo isso porque negros
e indígenas sempre foram excluídos de nossa sociedade, e precisaram promulgar leis
para que a escola se atentasse para as questões étnico-raciais, tão evidentes e, ao mesmo
tempo, tão silenciadas. Mas o fato de ter lei não significa mudança imediata, não! Às
vezes demora muito tempo até que as leis sejam postas em prática. Nós, que lutamos
por uma sociedade mais justa, nos preocupamos com isso, e por isso estamos aqui, para
refletir sobre essas questões.
Infelizmente, muitas escolas, professores e livros didáticos, mesmo com essas
leis, continuam valorizando mais a população branca, como se isso fosse um traço de
superioridade. Parece que é mentira, de tão absurdo, mas é o que apontam várias
pesquisas sérias, de mestrado e doutorado.
LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.
Altera a Lei n
o 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as
135
diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá
outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei n
o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar
acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia
Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115
o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm> Acesso em 16 fev. 2016).
LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei
no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira
e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o O art. 26-A da Lei n
o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar
com a seguinte redação:
136
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e
indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a
partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos
africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena
brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120
o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad
Atividade 1:
Agora que você já sabe o que é uma lei, escreva uma lei para ser usada em sua
sala de aula com a finalidade de proibir que atos discriminatórios aconteçam na sua
turma. Se ficar bom, você poderá pedir a autorização da professora ou do professor e
confeccionar um cartaz para ser colado na sala!
137
5.2.9 O gênero RECEITA
Ilustração de Letícia Soares
Que gênero é esse
Há textos que são narrativos (contam uma história) e outros que são dissertativos
(que abordam um tema). Há, ainda, textos que são injuntivos. Os textos injuntivos são
aqueles que transmitem instruções, explicam como fazer alguma coisa. Os manuais de
instruções e as bulas de remédios, por exemplo, são textos injuntivos.
Outro exemplo de texto injuntivo é a receita. Mesmo se você não souber
cozinhar muito bem, se seguir fielmente uma receita, a comida ficará boa. É claro que
na receita não diz que é preciso ter cuidado com as queimaduras, e por isso as crianças
devem ficar longe do fogão!
Seria possível dar o exemplo de receitas de comidas as mais variadas, mas como
o propósito é enfatizar questões étnico-raciais, será privilegiada a receita da feijoada,
que, mesmo com a ressalva de alguns historiadores, está culturalmente associada à
contribuição de negros para a culinária brasileira.
Veja o exemplo a seguir:
Receita de feijoada
(Tempo de preparo: 2h 20min / Rendimento: 20 porções)
INGREDIENTES
138
1 Kg de feijão preto
100 g de carne seca
70 g de orelha de porco
70 g de rabo de porco
70 g de pé de porco
100 g de costelinha de porco
50 g de lombo de porco
100 g de paio
150 g de linguiça portuguesa
Tempero:
2 cebolas grandes picadinhas
1 maço de cebolinha verde picadinha
3 folhas de louro
6 dentes de alho
Pimenta do reino a gosto
1 ou 2 laranjas
40 ml de de pinga
Sal se precisar
MODO DE PREPARO
Coloque as carnes de molho por 36 horas ou mais, vá trocando a água várias
vezes, se for ambiente quente ou verão, coloque gelo por cima ou em camadas frias.
Coloque para cozinhar passo a passo: as carnes duras, em seguida as carnes moles.
Quando estiver mole coloque o feijão, e retire as carnes. Finalmente tempere o feijão.
Disponível em <http://www.tudogostoso.com.br/receita/2998-feijoada.html> Acesso em 12 jan. 2016.
Deu até fome! O gênero receita sempre mostra os ingredientes que serão
utilizados, e em seguida o modo de preparo. É um texto não literário, porém alguns
artistas mais criativos construíram e constroem outros tipos de receitas, brincando com
as palavras, em forma de texto literário mesmo. O artista contemporâneo Chico
Buarque, que comumente escreve músicas sobre o cotidiano, fez uma receita de
feijoada, em forma de música. Leia o texto abaixo e, se der, ouça também a música.
Feijoada Completa
Mulher, você vai gostar
To levando uns amigos para conversar
Eles vão com uma fome que nem me contem
139
Eles vão com uma sede de anteontem
Salta cerveja estupidamente gelada para um batalhão
E vamos botar água no feijão.
Mulher, não vá se afobar
Não tem que pôr a mesa e nem dar lugar
Ponha os pratos no chão e o chão ta posto
E prepare as linguiças pro tira-gosto
Uca, açúcar, cumbuca de gelo e limão
E vamos botar água no feijão
Mulher, você vai fritar
Um montão de torresmo pra acompanhar
Arroz branco, farofa e a malagueta
A laranja-bahia ou da seleta
Joga o paio, carne seca, toucinho no caldeirão
E vamos botar água no feijão
Aliás, depois de salgar
Faça um bom refogado que é pra engrossar
Aproveite a gordura da frigideira
Pra melhor temperar a couve mineira
Diz que ta dura, pendura a fatura no nosso irmão
E vamos botar água no feijão
Disponível em <http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/feijoada-completa.html#ixzz3x4fOO0yw> Acesso em
12 jan. 2016.
Por falar em feijoada, você sabia por que a feijoada se mistura com a história do
Brasil? É que, no imaginário social, dizem que os nobres portugueses comiam somente
as partes nobres do porco, e jogam fora partes como os pés, as orelhas e o rabo. Os
africanos escravizados, que eram muito inteligentes, logo misturaram aquilo no feijão
preto que comiam e inventaram esse prato delicioso. Há várias outras versões em
disputa sobre a origem da feijoada, mas não se pode negar que hoje é considerada uma
comida tipicamente brasileira, famosa até em outros países, porque quase ninguém
resiste a uma boa feijoada!
E por aí a gente vai vendo que os africanos, assim como os indígenas, não são
coitadinhos dignos de pena. Foram e são pessoas que construíram e constroem nosso
país: nossas comidas, nossos gostos, nossa cultura!
140
Atividade 1:
Para praticar, você irá criar uma receita diferente, mas seguindo o modelo do
gênero receita. Pense bem e escreva uma receita de como acabar com as desigualdades
raciais, que até hoje existem no Brasil. De que maneira as populações indígenas e negra
poderiam alcançar os mesmos direitos e oportunidades da população branca? É claro
que, na prática, não há como existir uma simples receita para isso, mas há algumas
medidas que podem, sim, colaborar para uma sociedade mais justa. Reflita e... mãos na
massa!
141
5.2.10 O gênero MEME
Ilustração de Diogo Reis
Que gênero é esse?
Você já ouviu falar em memética? Não? E em meme? Ah! Em meme sim! Isso
porque os adolescentes de hoje adoram criar memes e compartilhar nas redes sociais, e
em pouco tempo tem um monte de gente curtindo, comentando e compartilhando. Pois
é. A memética é a ciência que estuda formalmente os memes. A moda dos memes é tão
grande que utilizamos um meme em todos os capítulos desse material! E agora vamos
juntos refletir sobre a força dos memes, que geralmente apresentam uma imagem e um
pequeno texto (geralmente uma única frase, em linguagem informal).
Para ser realmente um meme, a imagem articulada ao texto tem que ganhar uma
proporção muito grande, ser compartilhada nas redes milhares ou até milhões de vezes.
142
A imagem abaixo chama-se “L’Amour Désarmé” (O Amor Desarmado), do francês
William-Adolphe Bouguereau.
Dizem que foi um artista brasileiro que transformou a pintura e criou o meme
com o etezinho, ganhando as redes sociais! Até o Ministério do Turismo já usou esse
meme para divulgar as praias brasileiras!
Atividade 1:
Você já criou algum meme? Que tal praticar? Tente criar um meme colocando
um negro ou uma negra não na posição de empregado ou escravo, como costumamos
143
ver nas novelas, livros, revistas e filmes, mas como uma pessoa capacitada para ser
quem desejar ser. Há vários aplicativos gratuitos que ajudam a criar memes. Crie o seu e
compartilhe nas redes sociais. Vamos colaborar para que nossa sociedade seja mais
justa e igualitária? De repente seu meme pode ganhar o mundo!
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta pesquisa foi analisar as relações dialógicas entre os documentos
oficiais que norteiam o ensino de Língua Portuguesa (LP) no Ensino Médio e as
coleções de livros didáticos desse componente curricular, adotadas no âmbito dos campi
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em relação a
questões étnico-raciais, para, em seguida, propor um produto didático que vise à
promoção da igualdade racial.
Para se alcançar esse objetivo, foi feita a análise, na perspectiva bakhtiniana, dos
principais documentos oficiais curriculares relacionados ao ensino de Língua
Portuguesa e a relações étnico-raciais. Em seguida, um levantamento dos livros
didáticos de Língua Portuguesa adotados em todos os campi do IFF foi feito, para,
depois, serem também analisados. Algumas dificuldades surgiram nesse percurso, como
a demora na resposta de alguns campi do IFF sobre a coleção de livros adotada e o fato
de não ter conseguido imediatamente ter em mãos a coleção adotada pelo campus
Quissamã (Língua Portuguesa, da editora Positivo). Essa coleção foi a última a ser
analisada, e a análise só foi possível depois de descobrir que ela é também a coleção
adotada no CEFET/RJ, campus Maracanã, onde curso o mestrado.
Ao longo da pesquisa, resultados parciais foram sendo obtidos e apresentados
em congressos. Questões relacionadas ao currículo de LP foram apresentadas na
Universidade Federal do Espírito Santo (agosto de 2014), no Instituto Federal
Fluminense (dezembro de 2014), na Universidade Nova de Lisboa/Portugal (fevereiro
de 2015) e na Universidade de Pernambuco (maio de 2015). Questões relacionadas aos
livros didáticos de LP foram apresentadas na Pontifícia Universidade Católica –
PUC/RJ (julho de 2015), no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca – CEFET/RJ (outubro de 2015) e na Universidade Federal de Ouro Preto
(outubro de 2015). Todos esses textos aparecem listados nas referências bibliográficas,
assim como meu artigo, baseado na dissertação, publicado na Revista Diálogos (Revista
de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade – Qualis B5 em
Filosofia). Além desse, há um artigo já com aceite para ser publicado na revista Vértices
(Qualis B4 na área interdisciplinar).
145
Tais trabalhos são aqui elencados porque foram parte constitutiva da
investigação. A elaboração desses resumos para congressos e artigos para periódicos
permitiram um adensamento maior das conclusões desta pesquisa, ainda que a partir de
dados, então, parciais, por conta da própria dinâmica dialógica implicada nos debates
que aconteceram. Ao longo das apresentações e perguntas, nas idas e vindas dos eventos
e simpósios, as reflexões foram gradativamente aprofundadas.
Os resultados evidenciaram que, em relação ao currículo, representado por
vários documentos oficiais e também pelas tendências do ENEM, há propostas
inovadoras em relação ao ensino de Língua Portuguesa e a relações étnico-raciais. Esses
documentos, contudo, não foram suficientes para mudar o quadro do ensino de
português, tendo sido verificado que as prescrições curriculares dificilmente chegam à
sala de aula, e até mesmo aos livros didáticos.
E em relação aos livros didáticos que foram aqui analisados, conforme
detalhamento apresentado no capítulo 4, pode-se dizer que realmente não acompanham
as transformações prescritas, e ainda priorizam, na maior parte das vezes, o ensino
abstrato da língua, conteudista e tradicional, mais valorizador da língua e da literatura
da elite, silenciador das vozes representadas por minorias étnicas. Esses livros, portanto,
contribuem pouco para a formação discente reflexiva, e quase não estimulam a
construção de identidades étnico-raciais diversificadas.
Consequentemente, como resposta a essas lacunas, foi proposto um produto
educacional. A ideia foi trabalhar o ensino de LP por meio dos gêneros do discurso,
utilizando como tema norteador de debates as relações étnico-raciais. Não se trata de um
material definitivo, mas com ele acredito que professores de LP possam ter outras
ideias, para trabalhar com outros gêneros, e contribuir também para a construção da
igualdade racial.
A título de recomendação de estudos futuros, esta dissertação pretende apontar a
importância renovada de outras investigações na área, principalmente visando
acompanhar próximos lançamentos de livros didáticos, nos anos que se seguirão. A
avaliação da temática deve ser permanente, uma vez que esta contribuição se limita a
um domínio sincrônico. Repensar o ensino de LP e seu currículo, sobretudo sob o viés
das relações étnico-raciais, possui grande relevância social, já que o tema envolve
muitas disputas, que estão sempre em cena e que tendem a se agravar futuramente,
146
conforme indícios que hoje se verificam na grande mídia. No Jornal O Globo, no
caderno País do dia 07 de janeiro de 2016, é dito, por exemplo, que falta gramática no
currículo proposto pela Base Nacional Comum Curricular, ainda em trâmite, o que
demonstra um forte apego ao ensino da gramática. Duras críticas a um novo modelo de
ensino de História também foram feitas na mesma reportagem, pois alegam que há uma
diminuição da História europeia e uma supervalorização da História africana, afro-
brasileira e indígena. Em uma outra reportagem do mesmo jornal, no mesmo caderno,
publicado dia 06 de janeiro de 2016 (um dia antes), críticas semelhantes também
haviam sido feitas. Tudo isso mostra que há reação sistemática, bancada
intencionalmente pela imprensa, quanto às mudanças emancipadoras que são propostas
para veiculação de temas de igualdade racial nos livros didáticos.
Desta forma, acredito ser necessário um mapeamento constante das discussões
sobre currículo, envolvendo tanto o ensino de LP como as relações étnico-raciais. A
dissertação aqui apresentada procurou mostrar o estado da questão: como o currículo e
os livros didáticos de LP estão sendo produzidos nos dias de hoje, e como é encarada a
questão étnico-racial nesses materiais. Acredito, contudo, que cenários de continuidades
e/ou rupturas poderão mudar, o que renderão possíveis investigações em anos
vindouros.
147
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