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O DIALOGISMO ENTRE O CURRÍCULO E OS LIVROS DIDÁTICOS: POR UM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA MENOS EMPAREDADOR DAS IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS Isabela Bastos de Carvalho Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre. Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro Rio de Janeiro Abril de 2016

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O DIALOGISMO ENTRE O CURRÍCULO E OS LIVROS DIDÁTICOS: POR UM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA MENOS EMPAREDADOR DAS

IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS

Isabela Bastos de Carvalho

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro

Rio de Janeiro

Abril de 2016

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ

C331 Carvalho, Isabela Bastos de O dialogismo entre o currículo e os livros didáticos : por um

ensino de língua portuguesa menos emparedador das identidades étnico-raciais / Isabela Bastos de Carvalho.—2016.

155f. : il. (algumas color.) , tab. ; enc. Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação

Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2016. Bibliografia : f. 147-155 Orientador : Alexandre de Carvalho Castro 1. Racismo – Brasil. 2. Livros didáticos. 3. Língua portuguesa

(Ensino médio) – Estudo e ensino. 4. Dialogismo (Análise literária). 5. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975. I. Castro, Alexandre de Carvalho (Orient.). II. Título.

CDD 305.800981

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O DIALOGISMO ENTRE O CURRÍCULO E OS LIVROS DIDÁTICOS:

POR UM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA MENOS EMPAREDADOR DAS

IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre.

Isabela Bastos de Carvalho

Banca examinadora:

_____________________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro – CEFET/RJ (orientador)

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Carlos da Silva Borges – CEFET/RJ

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Luiz Teixeira de Almeida – UFF

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Bruno Rego Deusdará Rodrigues – UERJ

Suplente

_____________________________________________________________________ Prof. Dra. Maria Cristina Giorgi – CEFET/RJ

Rio de Janeiro Abril de 2016

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DEDICATÓRIA

Dedico esta dissertação ao meu aluno Théo Dias

Arueira da Silva, representando todos os alunos e

alunas que por minha vida passaram e passarão.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao meu marido e amigo Diogo, que foi a pessoa mais

presente, paciente, compreensiva, amorosa e ouvinte durante todo o processo do meu

mestrado. Obrigada por ter cuidado da nossa filha, Marina, razão de toda minha

existência. E obrigada, filha, por ter me motivado a conseguir tudo o que conquistei. Foi

tudo por você, para você! Agradeço, de igual forma, a meus pais, Gilciléa Regina e José

Alberto, a minha sogra, Dejani, e a minhas irmãs, Maria Beatriz e Gisele, por terem me

dado suporte nos momentos em que precisei estudar e elaborar minha dissertação. Sem

o amor e a amizade de vocês nada disso seria possível. Obrigada, família!

Nessa dura jornada, que começou na preparação do projeto e nos estudos dos

textos do edital, e culminará na defesa do mestrado, não posso deixar de mencionar a

professora Dra. Maria José Maia de Miranda. Obrigada por ter me ajudado tanto!

Obrigada por ter me dado as mãos nos primeiros passos do meu caminhar acadêmico.

Obrigada por me ensinar o gênero da escrita acadêmica. Obrigada por me ensinar a dar

aulas melhores. Obrigada por ter me acompanhado no II Congresso Nacional

Africanidades e Brasilidades, na Universidade Federal do Espírito Santo, e por ter me

dado o livro que ganhou no sorteio, sobre Cruz e Sousa, que inspirou toda a minha

dissertação. Jamais conseguirei agradecer por tanta generosidade. Muito obrigada!

Também preciso agradecer a minha segunda mãe e tia, Dra. Gilcélia Cristina de

Magalhães Bastos, quem me incentivou, nos anos 2000, a cursar Letras, e que, desde

então, me acolheu como filha e acompanhou de perto todo o meu crescimento pessoal e

profissional, sempre com sua doçura e demonstração de amor. Além disso, apresentou-

me à Maria José e ao professor Dr. Maurício da Silva. Ele enxergou em mim grande

potencial, me ajudou a recuperar minha autoestima, sem hífen, e me ensinou que a

autoconfiança é fundamental para atingir altos patamares. Obrigada, Maurício, por ter

me ensinado a voar.

Agradeço, ainda, à professora Ms. Renata Ribeiro Guimarães, pela companhia

nos congressos, pelos debates e pela amizade que construímos desde os tempos em que

fui professora substituta no IFRJ (antes CEFET Química). Perceber nosso crescimento é

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muito satisfatório, mas não mais que imaginar os vindouros. Obrigada por estar sempre

por perto, tão solícita e amável.

Deixo também registrado meu agradecimento aos colegas da COLINCO, equipe

da qual faço parte como docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

Fluminense, campus Campos-Centro. Graças a esta equipe, consegui, durante o segundo

ano de mestrado, redução de carga horária, para que pudesse me dedicar mais aos

estudos. Em especial, agradeço ao colega Ronaldo Adriano, que colaborou para meu

crescimento acadêmico com indicações de livros, com ideias, e a com a permissão da

leitura de sua dissertação, antes mesmo de ser publicada. Também agradeço, Ronaldo,

por ter me apresentado ao professor e pesquisador Carlos Fabiano de Souza, que hoje é

um grande amigo, muito presente em minha vida nos últimos anos, com quem fiz

diversas reflexões que certamente mudaram meu olhar sobre o ensino de línguas. Ainda

em relação à instituição onde trabalho, destaco o importante apoio de Pedro de Azevedo

Castelo Branco, diretor de pesquisa e pós-graduação, que autorizou o financiamento das

minhas viagens para congressos e apostou em minha pesquisa. Obrigada, Pedro!

Agradeço também a todos os amigos que fiz no IFF, que me acolheram como

família na cidade de Campos dos Goytacazes/RJ, bem distante da minha residência, e

onde trabalho desde minha posse em 2012. Destaco o professor Carlos dos Santos

Pacheco Júnior e, por extensão, Rafael Nóbrega da Silva. Esse casal me abrigou e me

cedeu um quarto da casa, com o maior conforto do mundo, para que eu pudesse

descansar e, claro, escrever esta dissertação. Os dois sempre me trataram com muito

amor, e estiveram comigo nos meus bons e maus momentos durante todo o mestrado.

Realço ainda a importância dos professores Thiago Freitas, Sérgio Risso e Marcos

Giusti, que me proporcionaram momentos de descontração, fundamentais também para

arejar a mente e prosseguir na árdua tarefa de escrever. E obrigada, amiga e professora

Ms. Priscila Mattos Monken, por também fazer parte da minha vida nesses últimos

anos, por ter sido ouvinte presente, por ter me acolhido, por ter dividido comigo tantos

momentos!

Não posso deixar de registrar um agradecimento a todos os meus alunos e

alunas, que muito me ensinaram nesses anos e, acredito, continuarão a ensinar. Muito

obrigada!

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Ressalto a contribuição de professores do meu programa de mestrado. Começo

com o professor Dr. Antônio Ferreira da Silva Júnior, que ministrou a primeira

disciplina que cursei no mestrado. Com ele, aprendi a valorizar minha trajetória como

docente e enriqueci imensamente meus conhecimentos sobre relações étnico-raciais no

ensino de línguas. Além dele, cito a professora Dra. Maria Cristina Giorgi. Muito mais

que professora, hoje é uma grande amiga. Foi ela quem suportou meus insuportáveis

desabafos de desespero ao longo da escrita da dissertação. Obrigada por estar comigo

em tantos momentos, inclusive em minha defesa, e por ter me dado dicas de leituras e

ensinamentos sobre Análise do Discurso, junto ao professor Dr. Fabio Sampaio, por

quem também tenho enorme gratidão. Em algumas dessas leituras, conheci um pouco

do trabalho do professor e pesquisador Dr. Bruno Rego Deusdará Rodrigues, o qual

aceitou prontamente a participar da minha banca de defesa. Obrigada, professor Bruno,

pelas contribuições que acredito que poderá me dar.

O Colégio Aconchego, na Tijuca, também merece destaque nesses meus

sinceros e profundos agradecimentos. Durante parte do meu curso, minha filha estudou

lá em período integral, o que me deixou muito tranquila, pela confiança mútua que

construímos. Obrigada, equipe do Aconchego, por cuidar da Marina com tanto amor e

dedicação.

Agradeço aos amigos que fiz no curso do mestrado, pelas reflexões coletivas e

também pelos momentos não acadêmicos que nos permitiram respirar e nos deram

forças para continuar. Natasha Mendes, Ana Paula Carvalho, André de Sant’Anna e

todas as outras pessoas que marcaram minha vida nesse curto período de tempo: deixo

aqui meu muito obrigada!

Minha dissertação, além de todas as contribuições já mencionadas, atingiu o

objetivo principal devido às modificações e sugestões que recebi em meu exame de

qualificação. Obrigada, membros da banca, por terem lido tão atentamente meu

trabalho, e por terem participado desse processo. A estes professores, Dr. Roberto

Borges e Dr. Ricardo Teixeira, gratidão eterna! E aproveito, ainda, para agradecer o

convite que aceitaram de fazer parte também da minha banca de defesa. Tenho certeza

de que novas contribuições enriquecerão meu trabalho final.

Por fim, o maior agradecimento de todos: ao meu orientador, o professor Dr.

Alexandre de Carvalho Castro. Muito além do diálogo, orientou-me dialogicamente,

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sempre levando em consideração as minhas palavras, as minhas ideias, as relações que

eu fazia. Ouviu-me sempre atenciosamente, acreditou na minha pesquisa, encorajou-me

a desenvolvê-la, e contribuiu imensamente para que ela se concretizasse. Demoliu

comigo todas as paredes que surgiam a minha volta, as quais tentavam impedir meu

caminhar. Construiu comigo todos os caminhos que me levaram a boas colheitas, e me

levam, agora, ao título de mestre. E eu, que cheguei a pensar que não conseguiria, hoje

me vejo desemparedada do meu sonho.

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Poética

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário

o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja

fora de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante

exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes

maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

(Manuel Bandeira)

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RESUMO

À luz da perspectiva teórico-metodológica proposta por Mikhail Bakhtin, esta

pesquisa teve por objetivo analisar as relações dialógicas entre os documentos oficiais

que norteiam o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio e as coleções de livros

didáticos desse componente curricular, adotadas no âmbito dos campi do Instituto

Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em relação a questões

étnico-raciais. Primeiramente, foram selecionados os principais norteadores do ensino

de língua portuguesa e das relações étnico-raciais, incluindo parâmetros curriculares,

diretrizes, legislações. Em seguida, foram verificadas as relações dialógicas desses

documentos oficiais em relação aos livros didáticos. Os resultados da análise

evidenciaram que, em relação ao currículo, representado por vários documentos oficiais

e também pelas tendências do ENEM, há propostas inovadoras em relação ao ensino de

Língua Portuguesa e a relações étnico-raciais. Esses documentos, contudo, não foram

suficientes para mudar o quadro do ensino de português, tendo sido verificado que as

prescrições curriculares dificilmente chegam à sala de aula e aos livros didáticos, os

quais contribuem pouco para a formação discente reflexiva, e quase não estimulam a

construção de identidades étnico-raciais diversificadas. O ensino continua priorizando o

saber enciclopédico e a gramática tradicional, sem propor reflexões aprofundadas aos

discentes. Em atitude responsiva à análise e seus respectivos resultados, foi proposto um

produto educacional para o ensino de língua portuguesa no Ensino Médio, cuja

finalidade é contribuir para a promoção da igualdade racial, a partir do trabalho com os

gêneros do discurso e de temas relacionados a relações étnico-raciais.

Palavras-chave: ensino de língua portuguesa, livro didático, dialogismo, relações

étnico-raciais.

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ABSTRACT

In the light of the theoretical and methodological approach proposed by Mikhail

Bakhtin, this study aimed at analyzing the dialogical relations between the official

documents used as guidelines for the Portuguese language teaching in high school and

the textbooks of this subject in relation to ethnic and racial issues. Those books were

adopted by the teachers from the Fluminense Federal Institute of Education, Science

and Technology (IFF). First, we selected the main guiding documents related to the

Portuguese language teaching and ethnic and racial relations, which included curricular

parameters, guidelines and laws. Then, the dialogical relations between these documents

and those textbooks were checked. The results of analysis showed that, considering the

curriculum represented by several official documents and also by the ENEM, there are

innovative proposals regarding the teaching of the Portuguese language and ethnic and

racial relations. However, these documents were not enough to change the picture of the

Portuguese language teaching. It was observed that the curricular prescriptions rarely

get to the classrooms and textbooks, which has little contribution to the formation of

reflective students and hardly stimulate the building of diverse ethnic and racial

identities. Teaching still prioritizes encyclopedic knowledge and traditional grammar,

without proposing in-depth discussion to students. As a responsive attitude to the

analysis and its results, we introduced an educational product for the teaching of the

Portuguese language in high school, the purpose which is to contribute to the promotion

of racial equality, by working with genres and topics related to ethnic and racial

relations.

Keywords: Portuguese language teaching, textbook, dialogism, ethnic and racial

relations.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13

1.1 A pesquisa narrativa: minha trajetória docente ............................................ 14

1.2 Como e quando o livro didático entra em cena ............................................ 17

1.3 Relações étnico-raciais no Brasil e seu atravessamento em meu percurso ........ 20

1.4 A metáfora do “Emparedado”: outras reflexões sobre relações étnico-raciais .......... 22

1.5 O objetivo da pesquisa e as partes que a compõem ..................................... 25

2 Mikhail Bakhtin como referencial teórico-metodológico ............................ 27

2.1 O enunciado ................................................................................................... 28

2.2 Os gêneros do discurso .................................................................................. 29

2.3 O dialogismo .................................................................................................. 31

2.4 A língua .......................................................................................................... 31

2.5 A rememoração, os sentidos e a alteridade .................................................. 32

2.6 A apropriação não essencializada dos conceitos ao longo dos capítulos seguintes .... 33

3 Os documentos oficiais: as prescrições do currículo ................................... 35

3.1 Prescrições curriculares: panorama do campo de estudos sobre o currículo

e o ensino de Língua Portuguesa e Literatura (LP) ............................................................. 40

3.2 Prescrições curriculares frente à LDBEN e às leis 10.639/03 e 11.645/08 ............... 42

3.3 Prescrições curriculares frente aos PCNEM ................................................ 46

3.4 Prescrições curriculares frente às NDCNEB ............................................... 48

3.5 Prescrições curriculares frente às OCEM ..................................................... 52

3.6 Prescrições curriculares frente à BNCC ....................................................... 54

3.7 Prescrições curriculares frente à tradição e as induções do ENEM ............ 55

3.8 Reflexões desemparedadoras ........................................................................ 57

3.9 Estratégias desemparedadoras....................................................................... 60

4 As relações étnico-raciais e os livros didáticos de Língua Portuguesa ........ 63

4.1 Procedimentos metodológicos ...................................................................... 64

4.2 Análise dialógica ............................................................................................ 68

4.2.1 O gênero “Exercício” ...................................................................... 68

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4.2.2 O gênero “Anúncio” ........................................................................ 71

4.2.3 O gênero “Reportagem” .................................................................. 73

4.2.4 O gênero “Romance” ...................................................................... 76

4.2.5 O gênero “Exposição dos conteúdos” ............................................. 78

4.2.6 O gênero “Pintura” .......................................................................... 80

4.2.7 O gênero “Ilustração” ...................................................................... 81

4.2.8 O gênero “Cartum” ......................................................................... 83

4.2.9 O gênero “Fotografia” ..................................................................... 84

4.3 Considerações sobre os livros didáticos de Língua Portuguesa.................. 85

5 Derrubando paredes: por um novo ensino de língua portuguesa ................. 87

5.1 O livro em seus elementos introdutórios ...................................................... 88

5.1.1 Apresentação ................................................................................... 88

5.1.2 Um recadinho para estudantes ........................................................ 89

5.1.3 Recado para docentes ...................................................................... 90

5.2 Os capítulos do livro ...................................................................................... 92

5.2.1 O gênero BIOGRAFIA ................................................................... 92

5.2.2 O gênero PESQUISA ...................................................................... 97

5.2.3 O gênero CONTO ......................................................................... 101

5.2.4 O gênero ROMANCE ................................................................... 110

5.2.5 O gênero TEXTOS LITERÁRIOS ............................................... 114

5.2.6 O gênero POESIA ......................................................................... 125

5.2.7 O gênero ILUSTRAÇÃO .............................................................. 130

5.2.8 O gênero LEI ................................................................................. 133

5.2.9 O gênero RECEITA ...................................................................... 137

5.2.10 O gênero MEME ......................................................................... 141

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 144

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 147

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1 INTRODUÇÃO

Desde que concluí o curso de Licenciatura Plena em Letras, iniciei minhas

atividades como profissional da educação: professora de Língua Portuguesa. Transitei

como professora substituta pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do

Rio de Janeiro (IFRJ) por dois anos, e também por escolas da rede particular da mesma

cidade durante quatro anos. Há quase quatro anos, todavia, atuo como docente no

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), campus

Campos-Centro, em regime de dedicação exclusiva. É desse lugar que falo. E foi a

minha trajetória que motivou esta pesquisa. Pretendo utilizar uma linguagem clara, pois

escrevo não só como pesquisadora, mas como uma professora que deseja ser lida pelos

pares, e que deseja, com eles, construir novas propostas para o ensino de Língua

Portuguesa e Literatura Brasileira (LP). Evidencio, ainda, que não foi possível utilizar a

terceira pessoa do singular nesta dissertação, visto que a todo tempo minha pesquisa

está relacionada à minha prática docente. Como constitutivo de mim, o percurso que

trilhei não poderia estar distanciado; pelo contrário, foi ele que me trouxe até aqui.

Já nas primeiras experiências docentes, percebi que o aprendizado no curso de

licenciatura em Letras não dava conta das demandas da sala de aula. O estudo

preliminar dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) me fez perceber que esse e

outros documentos oficiais estavam longe de ser identificados nos livros didáticos

adotados nas escolas e, mais longe ainda, das práticas docentes. Isso causou em mim

uma inquietação e, ao mesmo tempo, um sentimento de impotência, mas que não foram

suficientes para me paralisar. Comecei a fazer algumas leituras sobre as teorias do

currículo, e, nesta dissertação, pretendo analisar se o currículo vigente, hoje

teoricamente representado por vários documentos oficiais que prescrevem o ensino de

língua portuguesa, está em relação dialógica com os livros didáticos. A ideia é

investigar se esses livros estão contribuindo para formação discente reflexiva e se

estimulam a construção de identidades étnico-raciais diversificadas. É bem possível,

contudo, que a diversidade étnico-racial brasileira esteja sofrendo uma tentativa de ser

silenciada, e os alunos, pouco participantes do processo escolar, podem, se isso for

realmente verificado, perder, aos poucos, a possibilidade de emancipação.

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1.1 A pesquisa narrativa: minha trajetória docente

Inicio, então, este tópico, com um breve relato autobiográfico. Esse tipo de

relato tem sido amplamente investigado na área de Pesquisa Narrativa, que reconhece as

contribuições da experiência docente para as pesquisas acadêmicas. Ao narrar sua

trajetória, o docente passa a compor sentidos sobre ela, refletindo sobre suas práticas e

identidade pedagógica. Nesse movimento, começa a perceber que suas práticas podem

ser modificadas, aprimoradas. Considero essa percepção fundamental: o professor deve

ser um pesquisador e um ser aprendente, que processualmente (re)pensa e (re)constrói

sua identidade. Por ser ampla a forma de se fazer pesquisa narrativa, considero relevante

explicitar que a perspectiva mencionada aqui é a de Mello (2010), que se ancora na

perspectiva canadense de Clandinin e Connelly.

“[...] a narrativa é ao mesmo tempo o fenômeno estudado e o método

de pesquisa. Ao narrar uma experiência, tenho a experiência narrada

como fenômeno estudado e é ao narrar que reflito sobre esse

fenômeno e componho sentidos sobre o mesmo. O narrar, portanto, é

o meio para ter a experiência (o fenômeno) como foco/objeto de

estudo e é, também, o método investigativo para interpretá-la.”

(MELLO, 2010, p.173)

O professor nunca está pronto, acabado. Enquanto aprendentes que somos,

precisamos conscientizar-nos de que não existe completude, e que as lacunas são

essenciais para produzirmos conhecimentos, transformá-los e ressignificá-los. O

professor necessita ter conhecimento de si, e a pesquisa narrativa contribui para esse

processo de reconhecimento e construção da identidade.

Percebo que, ao assenhorar-me dessas considerações, adquiro mais segurança

para escolher caminhos alternativos rumo a uma ação educativa mais crítica, mais

libertadora de todo tipo de preconceito, educação mais cogitadora do outro, enfim, mais

amorosa. Situar-me face à compreensão do currículo me permite escolha consciente de

minha filiação ideológica. Em outras palavras, qual o projeto político-pedagógico que

escolho para atuar com firmeza, sem que escorregue pela “pinguela” dos conteúdos

disciplinares fechados, demarcados como universais e, por isso, considerados tão

necessários, quando, na verdade, estão ligados à padronização e à anulação de outras

culturas.

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Graças a reflexões que pude fazer em minha trajetória docente, além do diálogo

com outros professores e pesquisadores, tenho conseguido dar nova amplitude às

minhas aulas. Tenho trabalhado com temas (em outras palavras, universos semânticos,

tomados na perspectiva disciplinar) que, anteriormente, não achava pertinentes à

disciplina que leciono. Trabalhar um texto sobre o racismo, por exemplo, significava

abordar os mecanismos de organização estrutural e o sentido mais superficial da

informação. Agora, percebo com mais clareza que significa também examinar o texto

como um pronunciamento histórico-social que expressa um dito. Antes não punha em

pauta, na discussão com meus alunos, que todo dito se opõe a outro (ORLANDI, 1997).

Que todos os pronunciamentos possuem filiações ideológicas. Que um texto não é a

expressão pura de uma informação. Que a neutralidade não existe. Que a voz que o

pronuncia traduz uma visão de mundo. Enfim, que os textos são construções

discursivas, cujos pronunciamentos e valores de verdade estão ligados a relações de

poder.

No âmbito da investigação das relações étnico-raciais, as leituras

sociointeracionistas que já vinha fazendo – por colocar no centro os estudos da

linguagem enquanto atividade discursiva – foram suporte para inserir o tema racismo no

currículo de LP na perspectiva transdisciplinar, disciplinar e interdisciplinar, à

proporção que cogitam saberes de áreas afins, como Sociologia, Filosofia e História.

Na etapa profissional em que me situo, consigo visualizar a transformação pela

qual alguns de meus alunos têm passado. Consigo enxergar uma “luz no fim do túnel”

da educação, apesar de, a cada dia, movimentos reacionários surgirem no cenário

brasileiro1. Enquanto docente reflexiva que tenho me tornado, enquanto aprendente,

posso refletir sobre minha prática e transformá-la constantemente, aprimorando meus

conhecimentos, compartilhando meus saberes. Percebo o quão pouco a escola é

democrática, mas também percebo que esse é o espaço do contraditório: se é ali que o

engessamento pode ser construído, é neste mesmo espaço que o engessamento pode ser

desconstruído. Percebo a escola como espaço de contradição, de relações de poder. Por

1 Um exemplo disso é o movimento “Escola sem Partido” (http://www.escolasempartido.org/), que

defende um tipo de educação sem doutrinação, isento de ideologia, como se fosse possível a neutralidade

do professor nas aulas, ignorando o fato de o docente ser, como todo ser humano, um sujeito atravessado

por diferentes discursos, necessariamente ideológicos.

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isso, as narrativas metaposicionadas (o professor enquanto pesquisador de si, e

reconhecedor de seu lugar de fala) são tão importantes, na medida em que trazem à

consciência a ideologia que nos faz falar. Esse metaposicionamento permite a reflexão e

o redirecionamento ideológico com que desejo me alinhar.

Com base nas considerações que aqui exponho sobre a minha constituição

docente em processo, entendo que sou atuante, militante da educação, e que tenho um

poder. Por esse motivo, não posso e não quero silenciar meus alunos, mas, pelo

contrário, quero, com eles, construir um novo cenário para uma formação não tecnicista,

mas humana integral. Desta forma, já na escola, meus alunos deixam de ser meros

espectadores sociais para serem atores, cidadãos interativos, coautores do conhecimento

produzido no espaço escolar. Passam a ser sujeitos proativos, capazes de se transformar

e melhorar o nosso país.

E quando, frequentemente, sou levada a responder por que, enquanto “branca”,

oriunda de uma família cristã de classe média, interesso-me a estudar o racismo no

Brasil, preciso dizer que a luta deve ser de toda a população brasileira, e professores

podem ser fundamentais nessa luta, quando levam seus alunos a refletirem sobre as

questões étnico-raciais, tão silenciadas no Brasil. Concordo com as palavras proferidas

por Milton Santos em uma palestra:

Creio que as contribuições teóricas que por ventura tenha elaborado

para o entendimento da sociedade possa ser de alguma valia no

tratamento da questão do negro no Brasil; que não será resolvido se os

negros forem sozinhos na luta. A luta dos negros só pode ter eficácia

se envolver todos os brasileiros, inclusive os negros, mas não só os

negros. Não cabe aos negros, aliás, fazer essa luta. Essa luta tem que

ser feita sobretudo por todos. (SANTOS, 2016)

Assim, acredito na contribuição que eu e todos os docentes podemos dar, indo

muito além de ensinar um componente curricular, mas somando a isso reflexões que se

fazem necessárias para a construção de uma nova nação brasileira, liberta dos grilhões

das desigualdades, sobretudo do racismo.

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1.2 – Como e quando o livro didático entra em cena

O fato de estar desde 2008 atuando como professora do Ensino Básico (segundo

segmento do Ensino Fundamental e Ensino Médio) trouxe-me algumas reflexões que

considero importantes de serem registradas nesta dissertação. Ao longo dos anos,

percebi a importância atribuída aos livros didáticos de Língua Portuguesa (LD) e ao seu

uso em sala de aula. E aos poucos comecei a observar que esses importantes

instrumentos contribuíam no reforço de certos estereótipos de identidades étnico-raciais,

e apagamento de outras, sobre o que voltarei a escrever posteriormente. Percebi que os

LD não davam conta de todas as demandas da sala de aula, e esse desconforto me

impulsionou a refletir sobre minhas ações nas escolas. Observei, também, que o uso

exclusivo dos LD em sala permitia pouca ou nenhuma interação, forçando uma relação

autoritária, proporcionando raros momentos de reflexão discente.

Na rede particular de ensino, o uso intensivo dos LD se justifica(va) pelo alto

valor pago pelos pais na compra do material. Os pais, portanto, costumam pressionar a

direção da escola a “obrigar” que o professor utilize totalmente os livros. E quando o

professor não os utiliza, é muitas vezes acusado de “não estar dando aula”. Na rede

pública de ensino, onde hoje atuo, a cobrança pelo uso do livro também existe: há muito

dinheiro público sendo investido na compra desse material. E ainda: o material é

pesado! O aluno não pode ficar carregando peso se os LD não serão usados em sala.

Assim, os LD vão historicamente ganhando “valor de verdade”: o material existe, é

caro, é pesado, e contém “todos os conteúdos” que o aluno deve aprender – numa

perspectiva de valorização do saber enciclopédico. O docente, assim, vai perdendo sua

autonomia e criatividade ao ministrar as aulas para poder, então, cumprir o papel

profissional que lhe é atribuído – não de mediador na construção dos saberes, mas de

instrutor do material que é imposto.

É interessante pensar ainda no “livro de professor”, um anexo disponibilizado ao

docente, que dá “todo o suporte” para que “não erre” – tudo está minuciosamente

descrito: como proceder nas atividades, quais são as respostas “corretas”, que atividades

complementares podem ser feitas, inibindo a reflexão docente. Por outro lado, ainda há

escolas que não oferecem outra possibilidade de recurso didático que não seja os LD. Se

não há como tirar cópias de outros materiais para os alunos, e/ou se a escola não possui

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computadores e internet, ou aparelhos de multimídia, som e/ou TV, só resta ao

professor a utilização de LD. E há, também, o fato de muitos alunos não possuírem

outros livros em casa, e os LD passam a ser a única possibilidade de leitura à disposição

desses alunos (SILVA, 2008).

Além das questões já comentadas, há uma relação dialógica, e também

ideológica, entre os LD hoje utilizados e seu contexto histórico de produção. No Brasil,

já se utilizavam materiais didáticos, mas somente durante a ditadura militar, momento

de maior autoritarismo na história do nosso país, é que os LD começaram a ser

amplamente utilizados nas escolas. Há, em 1966, o estabelecimento da Comissão do

Livro Técnico e Livro Didático (COLTED), e, em 1971, a criação do Programa do

Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF), que se transformaram, em 1985,

no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – programa específico para avaliar,

comprar e distribuir livros didáticos para os alunos matriculados no Ensino

Fundamental e Médio em todo o território nacional. Nesse período da ditadura, o

governo passou a ser o maior comprador de livros, o que passou a demandar cada vez

maiores tiragens, bem como o crescimento e fortalecimento da indústria editorial

(BASTOS, L. 2013)

O problema é que os livros produzidos eram duramente criticados por

movimentos sociais, principalmente pelo Movimento Negro Unificado (MNU), tendo

em vista que o negro era sempre representado de modo estereotipado e inferior,

relacionado, muitas vezes, à escravidão. Nos anos 80, com a criação do PNLD, há uma

preocupação em produzir livros com melhor qualidade – na forma e no conteúdo. E,

assim, representantes desses movimentos sociais são chamados pelo governo para

colaborar. Na avaliação do PNLD de 1993, temas como racismo e sexismo entram

como critério de avaliação dos livros, fruto das lutas dos movimentos sociais. A partir

de 1990, surgem os editais do PNLD, que com o passar dos anos vão sendo cada vez

mais explícitos quanto à necessidade de se valorizar, nos LD, a diversidade e os grupos

étnico-raciais considerados como minorias (SILVA, 2014).

Há, no entanto, muitas pesquisas recentes mostrando que, mesmo com os filtros /

critérios de avaliação rigorosos impostos pelos editais, há uma contradição: poucas

foram as mudanças ocorridas, de fato, nos LD (FREITAS, 2009; JÚNIA, 2010;

PACÍFICO, 2011). Isso nos leva a pensar que há alguma representação das minorias

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étnico-raciais nos LD, mas não há representatividade. Essa representação, estereotipada

e inferiorizada, ou mesmo apagada, como acontece, por exemplo, em relação aos povos

indígenas, não leva os alunos ao desejo de uma pertença étnico-racial que seja diferente

de quem se autodeclara branco. É necessária a representatividade, a visibilidade dessas

minorias (incluindo a visibilidade de aspectos culturais, como religião, literatura,

música etc.) nos LD, para que os discentes não rejeitem seu grupo étnico-racial e

tenham sua autoestima preservada (SILVA, 2008).

Não creio que o livro didático deva ser abolido, mas um cenário de ruptura

precisa surgir. Além disso, os docentes precisam de formação específica e continuada

para aprender a lidar com as situações de discriminação: tanto as que surgem em sala de

aula, como as que porventura aparecem nos LD (TÍLIO, 2008). Nesse segundo caso,

com a devida formação, o professor será capaz de mostrar aos alunos o quanto os LD

ainda são racistas, para, assim, promover um despertar crítico nos alunos, que

conseguirão enxergar o racismo dos livros e da sociedade. Esse racismo muitas vezes é

velado, outras vezes explícito, mas, de tão naturalizado, costuma passar “despercebido”.

Sendo assim, analisar os LD ainda é uma tarefa necessária, pois, ao explicitar tantos

problemas que ainda ocorrem no tão contraditório2 ensino de Língua Portuguesa,

acredito que reflexões podem surgir, e ações podem ser transformadas em busca da

promoção da igualdade racial. É interessante transcrever, na íntegra, um dos critérios

eliminatórios do edital do PNLD 2012, o mais recente voltado para o Ensino Médio:

Serão excluídas do PNLD 2012 as obras didáticas que: 1. veicularem

estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico-racial,

de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim

como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de

direitos (BRASIL, 2011, p.85)

2 O ensino de Língua Portuguesa é paradoxal porque a língua é fluidez e, ao mesmo tempo, padrão, e o

ensino pode ser libertação e, ao mesmo tempo, reprodução. Assim, o docente desse componente

curricular sente-se dividido entre a tradição do ensino e suas possíveis inovações. O trabalho de mestrado

defendido em dezembro de 2015 no Instituto de Letras da UFF, por Ronaldo Adriano de Freitas,

intitulado “Língua e Ensino – objetos paradoxais: a contradição no ensino de língua portuguesa”,

aprofunda essas discussões, tendo, portanto, grande contribuição nesta pesquisa.

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Não precisamos de uma educação de controle, que tira o protagonismo do aluno.

É preciso ressignificar os processos de ensino, as práticas docentes e os livros didáticos

para atender a novas demandas sociais.

1.3 Relações étnico-raciais no Brasil e seu atravessamento em meu percurso

Desde criança, sempre me sensibilizei com as pessoas discriminadas e

marginalizadas. Não conseguia compreender o fato de as pessoas serem “classificadas”

pela sociedade como “mais bonitas”, “melhores”, apenas pela distinção de traços físicos

e situação financeira. Esse incômodo se acentuou quando me tornei docente. Em sala de

aula, não sabia como lidar com as situações de discriminação entre os alunos, e nem

mesmo com as situações pelas quais passei durante a vida. Essa sensibilização

despertou meu interesse em estudar as minorias, tanto para compreender o que sentia e

passava, como também para saber agir em sala de aula.

Nesses estudos, comecei a entender que o maior tipo de discriminação no Brasil

está relacionado a questões étnico-raciais. Lendo textos da professora Aparecida de

Jesus Ferreira, pude compreender que o racismo está acima de qualquer forma de

discriminação ou preconceito pelo grande potencial de excluir as pessoas da sociedade

(FERREIRA, 2006).

Também tive acesso ao Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil –

2009/2010 (PAIXÃO, M. et al, 2010), que me evidenciou que as desigualdades raciais

estão presentes na educação, na saúde, na segurança, nas questões previdenciárias e em

tantas outras. E diferente do que algumas pessoas ainda pensam, o racismo existe sim, e

não é coincidência o fato de a população negra compor a base da pirâmide social, e a

população branca, o topo. O texto esclarece que

os culpados pelas diferenças existentes seriam justamente as vítimas

do racismo, visto serem consideradas inferiores em múltiplos sentidos.

A ideologia racista, portanto, atua no sentido de justificar moralmente

o preconceito, a discriminação e as situações crônicas de desigualdade

verificadas entre as pessoas fenotípica e culturalmente diferentes. Ou

seja, a ideologia racista adestra os olhos e a mente de toda a sociedade

para a aceitação acrítica da coincidência verificada entre as hierarquias

de classe e as hierarquias étnicas e raciais (PAIXÃO et al, 2010, p.

21),

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Comecei, então, a aprofundar meus estudos sobre as questões étnico-raciais.

Verifiquei que as lutas dos movimentos negros por igualdade racial são muito antigas, e

que por meio delas temos conseguido muitos avanços no Brasil. O atravessamento das

reflexões sobre o racismo, a trajetória individual e pessoal, portanto, decorreu dessa

compreensão crítica do cenário brasileiro.

Nesse cenário, aliás, merece destaque Abdias do Nascimento, líder negro e

deputado federal nos anos de 1980. Ele criou projetos de leis com propostas concretas

para a verdadeira inserção da população negra na sociedade brasileira, que, mesmo após

mais de um século da lei áurea, ainda sofre com o emparedamento social.

Outro fato que fortaleceu a luta em prol da igualdade racial foi a “Marcha Zumbi

dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida”, ocorrida em 1995, em Brasília,

e que reuniu mais de trinta mil pessoas. Nessa marcha, os movimentos negros

reivindicaram o fim do racismo por meio da implementação de políticas públicas para a

população negra. Além disso, deram visibilidade a propostas já existentes. Apesar disso,

o então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, não deu forte apoio a essa

causa, vetando, por exemplo, o projeto de lei de Benedita da Silva, então senadora

(PT/RJ), que instituía cotas de 10% de vagas para negros nas instituições de ensino

superior. Foi, todavia, esse mesmo presidente que assumiu publicamente, pela primeira

vez na história do país, que o Brasil é racista, o que contribuiu para o debate étnico-

racial na pauta governamental (SANTOS, 2014).

Em 2003, com a entrada de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da

República, avanços mais concretos são alcançados. É promulgada a lei 10.639/2003,

que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tornou obrigatório o

ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira na educação básica. Essa lei, na verdade,

havia sido criada muito tempo antes, mas as paredes do racismo não permitiram que

fosse publicada em outro momento. Além disso, ainda em 2003, é criada a SEPPIR

(Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), por pressão dos

movimentos sociais negros, abrindo espaço para efetivar as ações propostas. Em 2015,

já no governo de Dilma Rousseff, a SEPPIR foi incorporada ao Ministério das

Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que também começou a se

encarregar das questões sobre as mulheres e os direitos humanos. Essa presidenta deu

continuidade às ações afirmativas relativas à questão racial iniciadas no governo Lula,

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somando a elas outras ações, como a publicação da lei 12.711/2012, que tornou

obrigatório o sistema de cotas no ensino superior e no ensino técnico de nível médio das

instituições federais.

Mesmo com alguns avanços, as desigualdades raciais precisam ser combatidas, e

não só pelos governantes do país. A escola pode e deve contribuir para erradicar o

racismo no Brasil: o racismo propriamente dito, o racismo à brasileira, o racismo

institucional, e toda forma de racismo que existir.

1.4 A metáfora do “Emparedado”: outras reflexões sobre relações étnico-raciais

A partir dessas reflexões, afirmo que o ensino precisa ser cada vez menos

“emparedador” das identidades étnico-raciais, para que os discentes possam

protagonizar o espaço escolar. Quando falo em um ensino “emparedador”, aproprio-me

aqui da metáfora3 do “Emparedado”, uma metáfora pouco conhecida, de Cruz e Sousa.

Trata-se de um poeta negro, descendente direto de africanos, nascido no Brasil,

no final do século XIX. Adotado por uma família branca, consegue a oportunidade de

estudar e se dedicar à literatura. Utilizando-se da mais elaborada estética do colonizador

– o Simbolismo – que estava sendo elaborado na França por poetas como Baudelaire,

Cruz e Sousa introduz esse estilo no Brasil, incorporando a ele muito de sua brasilidade.

Por ser negro e reconhecer as barreiras étnico-raciais que o separavam da sociedade,

escreveu, por meio de símbolos, sobre suas dores e embates sociais. Posteriormente, foi

reconhecido na França como o maior poeta simbolista do mundo ocidental, tamanha a

riqueza artístico-literária de sua obra (ALVES, 2008).

Em um de seus textos, intitulado “Emparedado”, Cruz e Sousa, em forma de

“poesia em prosa” (gênero introduzido no Brasil por ele), escreve sobre o sentimento de

estar emparedado em uma sociedade que não permite a participação do negro. É um

desabafo do poeta que demonstra sua indignação e inconformismo devido ao racismo

existente, e, ao mesmo tempo, a sua impotência para desconstruir ou modificar essa

3 Há de se destacar, como ressalva, que, numa perspectiva bakhtiniana, a metáfora aqui aludida remete

aos dialogismos possíveis, distinguindo-se, portanto, da noção de “metáfora conceitual”, de viés

cognitivista, marcada pelos estudos de George Lakoff e Mark Johnson.

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crueldade que muitos seres humanos eram (e ainda são) obrigados a encarar. Vale

ressaltar que o castigo do emparedamento realmente existiu no Brasil escravista: o

escravo que era considerado “merecedor de tortura” era emparedado vivo, ou seja,

ficava preso entre paredes até morrer de asfixia, fome e sede (FERTIG, A e MARTINS,

J. T, 2008).

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa

parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos!

Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas,

mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto!

Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e

Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se

caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,

fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade

e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas,

mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e

fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as

estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de

subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para

sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu

Sonho...(CRUZ E SOUSA, 2000)

Sendo assim, essa metáfora — a condição de estar emparedado — pode ser

considerada válida ainda hoje? A resposta para essa pergunta pode não ser evidente para

todos, pois em alguns contextos sócio-culturais ainda se acredita que há, no Brasil, uma

democracia racial, e que as condições para a ascensão social são iguais para todos.

Contudo, em conformidade com diversos pesquisadores da área de relações étnico-

raciais (GOMES, 2008; COSTA, 2012), discordo desse posicionamento que reifica tal

democracia racial, pois é possível ver que o negro, em nossa sociedade, encontra-se

emparedado: preso às paredes da cor de sua pele, é excluído de certos espaços, inclusive

da escola (MUNANGA, 2008). A evasão escolar do alunado negro é muito maior que

do alunado branco, o que evidencia o racismo e a desigualdade racial construída

historicamente. (OLIVEIRA, 1999; IBASE, 2008).

A população negra, portanto, continua sendo excluída da sociedade brasileira. A

campanha “Jovem Negro Vivo”, da Anistia Internacional, apresenta dados alarmantes

em relação ao Brasil: “Dos 30.000 jovens vítimas de homicídios por ano, 77% são

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negros”4. Isso nos mostra que as paredes a que Cruz e Sousa se referia ainda existem, e

novos tijolos são colocados sobre elas a cada dia. O racismo à brasileira – quase

imperceptível – contribui para um emparedamento total: do jovem negro, que é excluído

da escola e da sociedade e não consegue romper com essa condição; do currículo, que

continua etnocentrado e excludente da diversidade que nos é característica; e até do

ensino de LP, que ainda valoriza a estética e a língua do colonizador5.

Desta forma, aproprio-me, aqui, das metáforas em torno da palavra

“Emparedado” de forma ampla e polifônica, aplicando-a à realidade do ensino. Aplico,

também, a muitos docentes de LP. Assim como o poeta Cruz e Sousa via-se

emparedado e sem perspectivas para transformar a realidade que lhe era imposta, a

formação do docente do componente curricular supramencionado coloca-o entre

paredes. Nos cursos de licenciatura em Letras, não é difícil observar o engessamento e a

manutenção de certas práticas sociais, discursivas, porque repletas de ideologias

conservadoras que as atravessam. O professor, tendendo a reproduzir o modelo dos

professores que teve quando aluno, despreparado e com lacunas em sua formação

(OLIVEIRA, 2006), acaba não se dando conta de que a escola é atravessada por

discursos, assim como o livro didático. Sem o poder de refletir criticamente sobre o

ensino e sem tempo para tal atividade, ou até mesmo para se inserir em um processo de

formação continuada, visto que no Brasil a maioria dos docentes tem uma grande carga

horária de trabalho, esses profissionais contribuem, até sem ter essa intenção, para um

ensino excludente, que prioriza apenas o ensino da língua enquanto código fechado,

cuja norma culta parece ser a única possibilidade para uma comunicação eficiente.

Assim, fica evidente a necessidade de “desemparedar” o jovem negro, o ensino,

o currículo escolar, os livros e até o professor de LP. Que a autonomia seja possível

4 A campanha da Anistia usa os números do Mapa da Violência, estudo que pretende analisar a evolução

da violência letal dirigida a jovens e adolescentes, assim como a incidência de fatores como o sexo, cor e

idades das vítimas. A investigação, realizada por Julio Jacobo Weiselfisz, Coordenador da Área de

Estudos sobre Violência da FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) tem como base

os dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, e possui uma versão

mais recente disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/>. A campanha da Anistia Internacional

se baseia em informações referentes ao ano de 2012 e está disponível em

<https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>. 5 O linguista Marcos Bagno defende que a língua em uso no Brasil não é a mesma de Portugal por

diversas questões, sobretudo políticas. Ele defende uma língua brasileira, e propõe, inclusive, uma

Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (BAGNO, 2011).

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como forma de o professor se emancipar das velhas práticas para propor, na escola,

aulas que acompanhem as demandas sociais e ressignifiquem o ensino de LP. Que o

aluno não seja mais um dentro das paredes que sufocam, excluem e mantém a escola

estagnada, mas que, com o professor, possa derrubar as paredes antigas e construir um

novo projeto educacional, em que seja valorizada a diversidade étnico-racial brasileira.

1.5 – O objetivo da pesquisa e as partes que a compõem

O objetivo desta pesquisa é analisar as relações dialógicas entre os documentos

oficiais que norteiam o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio e as coleções de

livros didáticos desse componente curricular, adotadas no âmbito dos campi do Instituto

Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em relação a questões

étnico-raciais, a fim de propor um produto didático que vise à promoção da igualdade

racial. Esse recorte foi necessário em virtude de um cenário brasileiro tão amplo e

diversificado, e também em função da necessidade de delimitação implícita a um

projeto de pesquisa. A escolha de um determinado Instituto, portanto, incorporou

critérios de relevância e de viabilidade.

No capítulo seguinte, serão apresentadas reflexões sobre o referencial teórico

escolhido, que tem como base os estudos de Mikhail Bakhtin. Essa opção teórica se deu

tendo em vista que esse autor reflete sobre o ensino de línguas e embasa alguns

documentos oficiais no que tange à concepção de linguagem e à proposta de um ensino

com base em gêneros do discurso, assuntos relacionados ao ensino de LP. Assim,

muitos elementos da teoria bakhtiniana serão importantes para que o objetivo

mencionado seja atingido.

O capítulo 3 partirá da análise de documentos oficiais: Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional, Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, Novas

Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, as Orientações Curriculares para

o Ensino Médio, e até a Base Nacional Comum Curricular (ainda em trâmite). O foco da

análise não se restringe às prescrições para o ensino de LP, mas também para o ensino

de relações étnico-raciais.

O capítulo 4, por sua vez, busca perceber as relações dialógicas entre as

prescrições curriculares apresentadas no capítulo 3 e nos livros didáticos adotados pelos

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campi do IFF, especificamente em alguns gêneros do discurso, evidenciando algumas

lacunas.

Em seguida, levando em consideração os resultados encontrados e as conclusões

desses capítulos, será proposto um material paradidático, no capítulo 5, que pretende ser

efetivamente dialógico em relação às prescrições curriculares, que partem do trabalho

com os gêneros discursivos e enfatizam a necessidade de se discutir questões étnico-

raciais.

Vale ressaltar, contudo, que não há um parâmetro ou regras a seguir quando são

feitas as análises sob a perspectiva bakhtiniana. Não pretendo, aqui, buscar um

enunciado predeterminado, ou reduzir os resultados das análises a uma verdade

absoluta, mas, a partir dessa pesquisa, fazer reflexões que contribuam para a minha

transformação enquanto docente, e, ainda, uma possível transformação dos meus pares.

Assim, poderão perceber o livro didático e os documentos oficiais a partir de um novo

viés, detectando neles o dialogismo, bem como suas condições de produção e as

ideologias que os atravessam (CASTRO et al., 2011).

Sendo assim, só nos resta pensar, portanto, que não há como estudar Bakhtin e

não agir bakhtinianamente. Diante de uma sociedade que a todo tempo se transforma,

pouco se vê mudanças nas escolas, porque elas estão emparedadas em outros contextos

e ideologias. O docente, porém, que se deixa desemparedar, ou seja, que se emancipa

das velhas práticas discursivas, torna-se, também, um desemparedador, e ressignifica o

ensino. Consegue, ainda, aproximar língua e vida, levando para a sala de aula os temas

que a sociedade demanda. Não é totalmente transgressor do currículo, mas insere nele

novas perspectivas.

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2 MIKHAIL BAKHTIN COMO REFERENCIAL TEÓRICO-

METODOLÓGICO

Uma investigação de mestrado, como esta, pressupõe um referencial teórico que

dê base para análise e interpretação dos dados obtidos. Como visto no capítulo anterior,

os procedimentos metodológicos adotados incluem o levantamento e leitura dos

documentos acerca do currículo de Língua Portuguesa (temática apresentada do capítulo

3) e a avaliação dos Livros Didáticos usados no Instituto Federal Fluminense (temática

desenvolvida do capítulo 4), ações que remetem à indagação: Como analisar todo esse

material? Diante de tal pergunta, cabe ressaltar, a resposta a ser dada talvez não seja

muito consensual no âmbito dos estudos da linguagem, em decorrência do dia a dia

verificado em sala de aula.

É quase impossível desvincular língua e vida. Alguns professores de língua

portuguesa, apegados a antigas práticas, porém, tendem a conceber a língua como uma

estrutura formal, fechada em si mesma, levando muito pouco em consideração o

dinamismo que lhe é característico. A partir de uma tradição já consolidada, o ensino de

língua portuguesa tem sido, muitas vezes, descontextualizado e preso à estrutura

linguística, sem propor muita reflexão aos discentes, já que o conteúdo de algumas aulas

tende a ser a gramática pura6. Muitos alunos, assim, veem-se obrigados a decorar regras

e a dominar uma gramática que, ao longo do tempo, sem fazer conexões entre língua e

vida, acaba sendo esquecida. Esses professores desconsideram, portanto, a importância

da língua em funcionamento, valorizando apenas a língua prescrita nas gramáticas

normativas.

6 Tal tradicionalismo não é exclusivo do ensino da Língua Portuguesa. Crítica semelhante foi feita por

Bakhtin (2013, p.23) em relação ao ensino de língua russa. E algo parecido também fora dito por

Certeau em relação ao ensino do idioma francês, quando da ampla contestação realizada, naquele país,

em maio de 1968, seguido de reformas na educação. Ele apontou que muito viam riscos em “modificar

a relação do ensino com uma tradição autorizada, aceita entre nós, ligada aos ancestrais e aos valores

nobres [...] o bom francês estaria gravado nos livros de outrora. A unidade é o tesouro encerrado no

passado e no escrito, do qual os mestres são os guardiões” (CERTEAU, 2014, p.123).

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Assim, nesse cenário, a contribuição teórico-metodológica de Mikhail Bakhtin,

teórico russo que começa a escrever na década de 20 do século passado, precisa ser

enfatizada. Isso porque a alteridade e o dialogismo adotados por esse filósofo da

linguagem levam-no a desenvolver um olhar compreensivo e abrangente dos processos

históricos. Aspecto sobremodo distintivo nesta pesquisa que, a partir, então, de tal

referencial, busca conceber a produção discursiva — sejam os currículos, sejam os

livros didáticos — como um conjunto de interações orientadas sócio-historicamente

(CASTRO et al, 2011).

Desse modo, convém indicar que conceitos bakhtinianos constituem, de fato, o

referencial teórico metodológico aqui adotado. Razão pela qual o propósito deste

capítulo é o de analisar os elementos da obra de Bakhtin que foram efetivamente

utilizados na pesquisa. Tal delineamento, portanto, visa deixar claro que o objetivo

proposto não é o de empreender uma biografia de Mikhail Bakhtin, nem tampouco

realizar uma síntese de seu pensamento, mas apenas o de considerar os conceitos que

deram base às análises realizadas nos capítulos seguintes.7

2.1 O enunciado

Bakhtin (1997b) dá especial atenção à questão do “enunciado”, que emerge no

contexto social imediato. Mais do que pela gramática, o enunciado concreto é marcado

pela vida. Vale ressaltar que a comunicação eficaz deve ter início, meio e fim, e só pode

acontecer porque os enunciados são relativamente estáveis – de modo muito

semelhante, em situações semelhantes, repetem-se. Se a cada atividade humana um

novo padrão de comunicação precisasse ser criado, talvez não houvesse comunicação

verbal. O enunciado é, portanto, concreto, único, e é a própria materialização do

pensamento, geralmente inserido em discursos, independentemente de aparecer em

forma de uma oração, de uma composição de várias orações, de uma frase nominal, de

7 Dados biográficos acerca de Bakhtin podem ser obtidos em Clark e Holquist (1998), obra exaustiva que

inclusive trata das discussões sobre disputas autorais que envolvem outros autores do círculo de Bakhtin,

debate que extrapola o interesse desta dissertação.

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um período ou mesmo de um texto complexo, desde que, em determinada situação

enunciativa, tenha um sentido completo.

Para Bakhtin (1997b), portanto, o discurso contém enunciados, e cada enunciado

possui sentido completo. Por exemplo, quando um professor de língua portuguesa diz

em sala que “A aula hoje será sobre verbos”, e o aluno X responde com um grunhido,

entendemos que esse grunhido é uma “unidade real da comunicação verbal”, que

viabiliza o contato verbal entre os seres humanos. Esse grunhido é um enunciado, pois

deixa claro que o aluno X não quer aprender sobre verbos, assunto recorrente em quase

todos os anos em que estuda Língua Portuguesa na escola, e que, mesmo assim, não faz

dele um “entendedor de verbos”. Para o aluno X, não interessa o domínio do assunto

“verbos”, porque, do jeito que lhe é ensinado, não faz conexão com a vida. E se língua e

vida não se conectam, perdem-se todos os motivos para aprender a língua. Assim,

quando o aluno emite o grunhido, ele deixa clara a sua insatisfação. É também um

enunciado porque, em situações semelhantes, outros alunos produziriam o mesmo

grunhido.

É com o enunciado que língua e vida se conectam – “A língua penetra na vida

através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados

concretos que a vida penetra na língua.” (BAKHTIN, 1997a, p.282). O enunciado é

formado a partir de signos que, diferente da concepção dos tradicionalistas, podem

sempre ser ressignificados, de acordo com a situação de enunciação. O sentido das

palavras, portanto, é muito menos aquele dicionarizado, e muito mais aquele

compartilhado pelos envolvidos em um determinado contexto comunicativo. E esse

sentido é sempre construído historicamente na sociedade, seja em grandes grupos, ou

mesmo no interior de pequenos grupos sociais para uso em determinadas situações, o

que evidencia o dinamismo da língua portuguesa (e, na verdade, de qualquer língua),

que assume diferentes formas, em diferentes épocas.

2.2 – Os gêneros do discurso

Como acontecem no âmbito das atividades sociais, os enunciados estão

intimamente relacionados às suas condições de produção. Essas condições são bem

diferentes se compararmos os gêneros do discurso primários e os secundários. Tal

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distinção é proposta por Bakhtin em um texto fragmentário escrito originalmente em

1952 / 1953, não revisto pelo autor, em que ele discute o que são enunciados, o que é

discurso, e o que são os gêneros do discurso.

Vale dizer que, em relação aos gêneros do discurso, os primários são muito mais

simples e dinâmicos – em um diálogo, por exemplo, os participantes ouvem e falam e

reelaboram o ouvido e o falado – as respostas são quase imediatas e, mesmo que não

sejam faladas, são pensadas e podem ser percebidas. Esse tipo de gênero, no entanto,

pode ser incorporado a gêneros mais complexos, os secundários (pode haver um diálogo

em um romance, por exemplo). Nesse caso, o gênero primário perde sua interação

envolta na realidade para a realidade específica do gênero secundário.

Assim, todo enunciado está – mesmo que isso não seja percebido

conscientemente pelos usuários da língua – inserido em um gênero do discurso. Isto

significa dizer que há uma certa performance que já é esperada nos atos comunicativos,

nas atividades sociais, e essa performance é estabelecida pela especificidade de cada

gênero do discurso, dotado de uma perceptível estabilidade.

É interessante perceber que apesar de muitos gêneros do discurso, primários e

secundários, já existirem, não existem em número limitado, pois novos gêneros podem

ser criados e cristalizados socialmente devido às mudanças sociais que ocorrem

constantemente. De igual forma, certos gêneros também podem deixar de ser

produzidos com o passar do tempo, como as cartas pessoais, que perdem sua força a

cada dia. Além disso, segundo Bakhtin, os gêneros secundários são elaborados

processualmente em um contexto sócio-histórico. Vale lembrar que todos os gêneros do

discurso demandam uma compreensão responsiva ativa. Isso significa dizer que para

todo enunciado haverá uma resposta, e mesmo que ela não seja conhecida por quem o

produziu, o leitor/ouvinte certamente terá uma resposta, uma opinião, imediata ou não

(quando não é imediata é uma compreensão responsiva de ação retardada, que

geralmente ocorre a partir de gêneros secundários).

No processo de comunicação, todos os envolvidos participam ativamente, seja

produzindo enunciados ou respondendo a eles, mesmo que seja em silêncio. E essa

compreensão responsiva vai variar de acordo com o leitor/ouvinte: suas leituras, suas

vivências, o contexto sócio-histórico em que está inserido etc. Assim, a linguagem é

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sempre dialógica: os discursos são sempre compostos por muitas vozes, pois o discurso

alheio permeia sempre o nosso discurso.

2.3 – O dialogismo

Um dos principais conceitos que sustentam este trabalho é o dialogismo. As

relações dialógicas sempre irão existir, não nos elementos puramente linguísticos do

texto, mas nos extralinguísticos, nas relações de sentidos com os outros enunciados em

uma determinada realidade. Esses outros enunciados são oriundos de muitas vozes. A

própria noção de autoria deve sempre ser problematizada. Nenhum discurso é neutro e

autoral – é sempre perpassado por ideologias e discursos de outrem. Os enunciados

sempre possuem muitos discursos, muitas vozes, que se entrecruzam e formam o

discurso interior de alguém, que, a partir de outrem, materializa-o em forma de um

texto. Que não se confunda, aqui, a noção de diálogo com dialogismo. O diálogo, além

da comunicação em voz alta entre duas ou mais pessoas, é também toda comunicação

verbal, já que mesmo um texto escrito provoca em seu leitor críticas, comentários e

reflexões, em um discurso interior. O dialogismo, por sua vez, não depende da

materialidade textual. Pelo contrário, está no imaterial, nos sentidos possíveis. E é por

isso que a palavra “dialogismo” aparece no título desta dissertação, já que as análises

feitas não ficarão no plano linguístico puramente, mas nos sentidos que têm sido

atribuídos – tanto em relação aos documentos oficiais, quanto em relação aos livros

didáticos.

2.4 – A língua

Outra ideia bakhtiniana que dá suporte a esta pesquisa é o que se pensa a

respeito de “língua”. O dinamismo e a vivacidade que Bakhtin confere à língua podem

ser percebidos quando ele apresenta a metáfora da combustão. O meio social é o que

permite a “combustão linguística”. Assim, se a sociedade muda, a língua muda, em um

processo linguístico interminável de mutações. Não há completude nem mesmo em

relação às línguas: estão sempre inacabadas. Sem sociedade, não há língua, e isso

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porque os falantes não têm consciência dos elementos estruturais da língua:

simplesmente a utilizam como todos a sua volta a utilizam. Isso também está ligado aos

gêneros do discurso. Cada situação social exige um determinado padrão de enunciado,

uma determinada prática discursiva, que podemos chamar de gêneros do discurso. Esses

gêneros também surgem e deixam de existir de acordo com as transformações sociais.

Possuem um determinado padrão, relativamente estável, que permitem a eficácia da

comunicação. Para cada situação específica, deve-se utilizar um gênero do discurso, seja

ele oral ou escrito.

Essa reflexão também é importante quando a relacionamos ao ensino de língua

portuguesa (e outras línguas) hodiernamente. Se queremos lutar pelo fim das

desigualdades, isso deve incluir também a desigualdade linguística e o fim do

preconceito linguístico. Não se pode menosprezar um aluno porque ele não tem pleno

domínio do que chamam “norma culta”, ou “variedade padrão”. É preciso ensiná-lo a

refletir sobre a língua, a entender que cada situação social exige um gênero do discurso

diferente, e que ele pode aprender a utilizar diversos gêneros, utilizando suas

competências linguísticas de diferentes formas. E é por isso que muitos documentos

oficiais vão priorizar o ensino de língua portuguesa por meio dos gêneros do discurso,

como será visto no próximo capítulo desta dissertação.

Ainda em relação ao ensino de línguas, Bakhtin, por não aceitar a ideia de uma

língua estática e por compreender o valor ideológico das palavras, afirma que para se

ensinar uma língua, qualquer que seja, é necessário apresentar ao aprendiz o contexto

em que as formas linguísticas aparecem, partindo sempre de situações concretas. Desta

forma, os alunos, sujeitos falantes, que não têm e nem terão consciência de um sistema

linguístico abstrato, perceberão que a língua é concreta, flexível, mutável. Uma palavra

isolada é neutra, mas tem um sentido ideológico quando empregada em um enunciado:

“A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou

vivencial.” (BAKHTIN, 1997b, p. 95).

2.5 – A rememoração, os sentidos e a alteridade

A propósito da metodologia adotada nesta pesquisa, foram utilizados, além dos

outros conceitos já abordados neste capítulo, alguns critérios igualmente pautados em

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Bakhtin. Um deles foi a rememoração. A rememoração, conforme Bakhtin (1997a),

busca uma compreensão do contexto de um passado ainda inacabado. Desta forma, ao

dissertar sobre os documentos oficiais e os livros didáticos, também trarei o contexto

que envolve e envolveu a criação deles. Outro critério de análise adotado foi a busca

pelos sentidos, no momento das análises de textos, pois mesmo sabendo que os sentidos

são e sempre serão incompletos e relativos, e extrapolam os limites dos textos, é

necessário levar em conta as realidades extratextuais. A ideia da alteridade também é

relevante nesta pesquisa: ao analisar o livro didático, também foi considerada a maneira

como “o outro” poderia interagir com o texto em análise. Esse outro, aqui, são os alunos

do Ensino Médio, que podem se sentir “emparedados” pela raça, ou confiantes e

seguros de si a ponto de “desemparedar” a sociedade. Diferente dos que levavam em

consideração apenas o sujeito pesquisador, acredito que outras vozes devem falar, ouvir

e serem ouvidas.

2.6 A apropriação não essencializada dos conceitos ao longo dos capítulos

seguintes

Para Bakhtin, os estudos em Ciências Humanas — como é o caso desta

dissertação — sempre partem de textos, que extrapolam as fronteiras linguísticas, já

que, ao serem lidos, estão sempre em relação dialógica com o contexto social e histórico

dos sujeitos que os leem e interpretam, e por isso os sentidos não são fixos – sempre

dependerão dos sujeitos. Em cada época, podem ser esquecidos, rememorados,

ressignificados, pois “não há limites para o contexto dialógico” (BAKHTIN, 1997a,

p.413). Nesta pesquisa, alguns textos, tanto de documentos oficiais relacionados à

educação no Brasil, como de livros didáticos aprovados pelo PNLD de 2012, são

analisados sob a lente das questões étnico-raciais. Essas questões, no Brasil, estão

intimamente ligadas a um contexto social e histórico, que sempre envolve conflitos,

tensos e ininterruptos, e interferem fortemente nos sentidos que podem ser atribuídos

quando lemos e interpretamos esses textos da análise. E se os textos nunca estão

acabados, porque dependem dos sujeitos e do contexto, a sensação de completude deixa

de existir. Esta pesquisa, portanto, trará a minha própria interpretação dos textos,

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limitada, incompleta, recortada pelo meu próprio olhar de professora e pesquisadora,

inserida em tempo e espaço definidos.

Também por não haver completude, esta pesquisa não visa a se apropriar dos

conceitos apresentados neste capítulo de forma essencializada, visto que uma

(de)limitação jamais dará conta dos sentidos de determinadas ideias. São discutidas as

questões suscitadas nos levantamentos de documentos e Livros Didáticos, todavia,

sempre a partir das teorias que Bakhtin propôs e que constituem a base teórico-

metodológica para toda esta pesquisa. De acordo com esse teórico, “Toda vez que

procuramos delimitar o objeto de pesquisa, remetê-lo a um complexo objetivo, material,

compacto, bem definido e observável, nós perdemos a própria essência do objeto

estudado, sua natureza semiótica e ideológica.” (BAKHTIN, 1997b, p.70)

Em suma, a apropriação de conceitos e critérios bakhtinianos, nesta pesquisa,

não emerge a priori como pressuposto essencial, mas visa a atender às necessidades de

análise do material colhido na pesquisa de campo: os documentos curriculares e os

livros didáticos identificados, conforme considerações apresentadas nos capítulos a

seguir.

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3 OS DOCUMENTOS OFICIAIS: AS PRESCRIÇÕES DO

CURRÍCULO

O objetivo deste capítulo é analisar os elementos curriculares prescritos em

documentos oficiais e verificar em que medida podem contribuir para desemparedar o

ensino de Língua Portuguesa no que diz respeito às relações étnico-raciais no Ensino

Médio. As questões raciais ainda são pouco discutidas na escola, mesmo com a

promulgação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que alteraram a lei 9.394/1996 (Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN), e que tornam obrigatório o

estudo de questões históricas que colaboraram para a construção do racismo, tipo de

discriminação existente até hoje no Brasil. Além disso, a própria Constituição da

República Federativa do Brasil, de 1988, em seu artigo 3º, afirma que

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

(BRASIL, 1998)

Este capítulo, portanto, pretende, a partir dos comentários sobre os documentos

oficiais que trazem prescrições curriculares para o Ensino Médio, contribuir para uma

reflexão que leve a uma ação: possibilitar a desconstrução do racismo presente nas

escolas brasileiras.

É importante destacar que as prescrições são subjetivas e, embora muitas vezes

indutoras de ações emancipadoras, não refletem exatamente as ações docentes. De

acordo com estudos da Ergologia8, o trabalho prescrito (tarefa) se articula com o

8 A Ergologia, campo de estudo sensível aos aportes bakhtinianos, surgiu a partir dos esforços de Yves

Schwartz, Daniel Faïta e Bernard Vuillon que, em 1983-1984, fundaram, na França, um dispositivo

chamado de “Análise Pluridisciplinar de Situações de Trabalho”, a fim de pesquisar as relações entre o

mundo da saúde, da educação e do trabalho.

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trabalho real (atividade), mas essas são faces diferentes do trabalho (BRITO, 2006). Em

outras palavras, a prescrição em si não reproduz o trabalho que será desenvolvido em

sala de aula, nem mesmo oferece, necessariamente, meios e objetivos para que possa ser

realizado. Essa defasagem entre a tarefa e a atividade provoca uma tensão, que coloca o

professor entre sua própria subjetividade, sua experiência docente, os documentos

oficiais e os livros didáticos, tendo que, a todo o momento, buscar formação continuada

para que consiga lidar com esse conflito (FARIA, 2006). Quando essa busca não ocorre,

geralmente o professor se fecha em um modelo de ensino tradicional, hermético,

emparedado e emparedador, que costuma excluir de sua pauta, dentre outras questões, o

letramento racial e a educação linguística. Nas Novas Diretrizes Curriculares Nacionais

da Educação Básica (p.79), também está explícito que os projetos políticos pedagógicos

das instituições de ensino devem incluir programas de formação continuada para todos

os profissionais da educação, não bastando apenas a formação em cursos de

licenciatura.

De toda forma, o docente deve ser um protagonista do ensino consciente de suas

responsabilidades, as quais envolvem o conhecimento das prescrições contidas nos

documentos oficiais. A partir desse conhecimento, tendo ou não a formação necessária

para realizar suas atividades, deve buscar meios para atingir o trabalho prescrito, ou até

não realizá-lo, caso não concorde com ele, mas portando argumentos consistentes que

embasem sua opinião. Assim, contribuirá na formação de discentes também autônomos

e protagonistas.

Neste capítulo, portanto, discutiremos questões curriculares prescritas. Do ponto

de vista bakhtiniano, contudo, há de se perceber o dialogismo implicado no termo

“currículo”. No dia a dia, na fala de alunos e professores, o termo alude a “conteúdos

obrigatórios”, a “saberes necessários e indispensáveis”, a “o que está no livro”, e até a

“o que cai no ENEM”. A questão, entretanto, vai muito além. Currículo são as ementas

prescritas por cada instituição, é o que está prescrito nos documentos oficiais, como a

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), os Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais

da Educação Básica (NDCNEB), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio

(OCEM), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, ainda em trâmite). Currículo é,

ainda, o que está nos livros didáticos, o que tem sido avaliado pelo Exame Nacional do

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Ensino Médio (ENEM). É, também, o que o professor ensina, o que a escola ensina. São

as experiências que discentes adquirem na vida escolar. É o que está claramente exposto

como sendo “o currículo”, e, sobretudo, o que se aprende silenciosamente, a partir da

captação do que sequer é dito, mas pode ser absorvido pelos discentes.

Do ponto de vista do referencial teórico desta análise, contudo, o fundamental é

considerar o currículo de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras como um enunciado

inserido em um gênero do discurso secundário, ou seja, que incorpora enunciados de

outrem (BAKHTIN, 1997b). Em função disso, cabe a problematização dos sentidos da

palavra “currículo”, de origem latina, pois curriculum inicialmente era um substantivo

derivado do verbo currere (correr), o que acenava para a ideia de mobilidade. Tal

compreensão — em Roma, curriculum designava “lugar onde se corre” (Saraiva, 2000)

— relacionada ao termo em questão, foi apagada ao longo do tempo, em decorrência de

os sentidos serem sempre sócio-historicamente construídos (BAKHTIN, 1997a). A atual

noção de currículo, entretanto, é justamente o oposto. Alude à falta de mobilidade, ou

seja, constitui um conceito que deixou de correr livremente por espaços sociais abertos

para, em outra direção, restringir e aprisionar determinados saberes.

Verifica-se, portanto, que, em se tratando de um gênero do discurso secundário,

a metodologia da pesquisa deve inquirir acerca dos processos históricos em que tais

proposições curriculares foram constituídas. Deve-se buscar as ocasiões e circunstâncias

em que dados enunciados foram incorporados por outros enunciados, e

extemporaneamente passaram a ser citados em discursos posteriores. Frente à produção

de prescrições curriculares, o indispensável é trazer à tona “quem produz”, “para quem

produz”, “o que produz”, e “o que se quer quando produz”. Ou ainda, em outras

palavras, apontar claramente as relações de poder que estabelecem os conteúdos

tomados como válidos, assim como o conhecimento a ser valorizado e ensinado, nas

escolas, como verdadeiro. Afinal de contas, é necessário problematizar a realidade, pois

as supostas verdades são discursivamente construídas, assim como a própria história, e

estão intimamente relacionadas ao poder (PORTOCARRERO, 1994).

Historicamente falando, o currículo, emparedado e emparedador, vem

priorizando formar identidades sociais que atendam aos interesses do mercado, e não

trabalhadores/ cidadãos questionadores, capazes de interferir na sociedade em que

vivem. Isso é um problema, pois o currículo não deveria ser visto simplesmente como

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um espaço de transmissão de conteúdos, ou, segundo incontáveis versões do mesmo

argumento, saberes necessários ao mundo do trabalho (SILVA, 2006). Esta concepção

se sustenta na não mobilidade dos conhecimentos e, porque validados por sua

perenidade, traduzem uma concepção que gera um sentido de verdade objetiva. Silva

(2006) contesta essa visão e afirma que o currículo é seleção, feita em virtude de um

determinado projeto político, de uma cidadania desejada. O currículo marca as disputas

por predomínio cultural, e os saberes que são valorizados são sempre os da cultura

dominante. Isso pode ser verificado até mesmo nos livros didáticos, que muitas vezes

não trazem à tona a representação de minorias étnico-raciais, sociais, culturais.

E se o currículo se faz a partir das relações sociais – desiguais –, envolverá

relações de poder. Vale indagar, por conseguinte, àqueles que defendem um currículo

de conteúdos sacralizados: como toda relação de poder, o indivíduo que defende esse

currículo tem claro, para si próprio, que o que permeia esse currículo é sempre uma

ideologia, representante de interesses restritos? É importante registrar que em qualquer

concepção de currículo, haverá, sempre, uma ideologia atravessando o objeto. A

questão é estar ciente dos fundamentos ideológicos da organização curricular e que

opção se tem ao escolher determinado currículo. Não existe, na escolha de qualquer

conteúdo, portanto, a neutralidade, já que “No acontecimento singular e único da

existência, é impossível ser neutro” (BAKHTIN, 1997a, p.143).

Ressalto a importância de conhecer o objeto com que lido, aqui especificamente

o currículo, a fim de saber que ele é produto de uma criação, produzido em um tempo

específico, para atender a interesses daquele momento. Acredito que assim deva ser

visto o currículo, como um texto, que, como tal, sustenta um discurso.

Olhando o currículo na perspectiva bakhtiniana, é possível verificar que o

gênero currículo tende ao discurso relativamente estável, já que está subjugado a forças

decorrentes do poder. Nas relações assimétricas, mantém-se aquele que mais poder tem

para se impor. A consciência desse processo é essencial para que se possa voltar à ideia

original da mobilidade, do currere. É importante registrar que a relativa estabilidade não

é exclusiva do currículo clássico – aquele a que chamamos engessado / emparedado –,

mas das lutas que envolvem as relações de poder. A relativa estabilidade é, portanto,

uma consequência. Corre esse mesmo perigo, caso não estejamos sensíveis ao jogo do

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poder, qualquer outro currículo que venha substituir o clássico. O currículo como

discurso é prática, é negociação, é atualização.

O que se vê, contudo, em algumas instituições brasileiras de ensino, são

currículos estagnados, produtores de cidadãos estagnados, que não contribuem para as

transformações sociais que se fazem necessárias. É necessário dizer, mais uma vez, que

a lente das prescrições curriculares não será usada por todos os docentes, mas podem

impulsionar transformações e contribuir para a formação humana integral dos discentes,

mais voltada para a cidadania que para o saber enciclopédico.

O currículo, então, pode ser entendido como um discurso que foi socialmente

construído, com fins políticos e ideológicos. Mesmo assim, pode ser desconstruído,

reconstruído. Vale lembrar, ainda, que o currículo envolve o não dito. À medida que se

escolhem determinados conteúdos para serem ensinados, outros são necessariamente

silenciados (ORLANDI, 1997). O currículo pode ser grade, prisão, parede, mas pode ser

liberdade. É preciso, então, escolher que currículo seguir, ou que currículo construir, e,

mais importante, como construir: com silêncio ou com negociação?

É importante enfatizar que a noção de currículo a que me refiro a todo tempo é

dialógica. Aqui, portanto, currículo, PCNEM, DCNEM, LDBEN... não são sinônimos,

apesar de estarem interligados. Daí a utilização, neste capítulo, do termo prescrições

curriculares, para mostrar que, sob o uso generalizado da palavra currículo, há

dinâmicas que não são homogêneas, mas, por vezes, contraditórias e tensionadas.

Também vale a pena mencionar aqui que em 2014 foi aprovado pelo Ministério

da Educação (MEC) o Plano Nacional da Educação (PNE), vigente até 2024. São

palavras do MEC:

O Plano Nacional de Educação (PNE) determina diretrizes, metas e

estratégias para a política educacional dos próximos dez anos. O

primeiro grupo são metas estruturantes para a garantia do direito a

educação básica com qualidade, e que assim promovam a garantia do

acesso, à universalização do ensino obrigatório, e à ampliação das

oportunidades educacionais. Um segundo grupo de metas diz respeito

especificamente à redução das desigualdades e à valorização da

diversidade, caminhos imprescindíveis para a equidade. O terceiro

bloco de metas trata da valorização dos profissionais da educação,

considerada estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas, e

o quarto grupo de metas refere-se ao ensino superior.

(Disponível em <http://pne.mec.gov.br/?pagina=conhecendo_pne>

Acesso em 08 nov. 2015.)

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Esse plano, o qual é chamado pelo MEC de “um projeto de nação”, pretende

viabilizar as metas das prescrições curriculares, sendo, portanto, um importante

instrumento para promover políticas que resultem em educação pública de qualidade.

Assim sendo, ao longo do capítulo, serão analisados aspectos relacionados às

questões étnico-raciais que permeiam tudo o que chamamos aqui de “currículo”, de

acordo com a metodologia adotada, a qual analisou as prescrições dos documentos

oficiais e realizou um levantamento bibliográfico sobre essas prescrições e o ensino de

Língua Portuguesa.

3.1 Prescrições curriculares: panorama do campo de estudos sobre o currículo e

o ensino de Língua Portuguesa e Literatura (LP)

No campo de pesquisa sobre o currículo de LP, há vários estudos que traçam um

panorama histórico extenso do ensino da língua ou do currículo de LP desde tempos

idos até a atualidade (RODRIGUES, 2007; SILVA, 2008; CUSTÓDIO, 2010).

Algumas abordagens, contudo, apresentam interessantes singularidades de décadas mais

recentes, que permitem a configuração de cenários de continuidades e rupturas.

Na década de 1950, a escola configura-se como um espaço regulador, onde

ensinar língua significava ensinar gramática, mas, por outro lado, foi também o

momento inicial em que contribuições da Linguística começavam a ressignificar o

conceito de língua. Nessa época, a variedade culta da língua era tida como superior, o

que transparecia um prestígio do uso linguístico da elite, evidenciando que o conceito

de língua era influenciado por fatores sócio-históricos e ideológicos (SCHNEIDERS,

2011).

Assim, nos anos de 1950 e 1960 ainda se priorizava um ensino focado na

gramática tradicional e na concepção de língua como sistema, mesmo tendo a escola se

aberto para a entrada de pessoas das camadas populares. A disciplina chamava-se

“Língua Portuguesa” (SILVA, 2008).

Na década de 70, sob influência da ditadura civil-militar, a língua passa a ser

vista como mero instrumento de comunicação, e a disciplina de Língua Portuguesa

passa a se chamar “Comunicação e Expressão” e “Comunicação em Língua

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Portuguesa”, no então 1º grau (hoje, Ensino Fundamental), e “Língua Portuguesa e

Literatura Brasileira”, no então 2º grau (hoje, Ensino Médio) (SILVA, 2008).

Existem autores que também situam sua análise na década de 1970, mas

utilizando o arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa, mais

especificamente aquela em que se situa Dominique Maingueneau, a fim de enfatizar que

esse período ensejou uma reordenação discursiva com efeitos sobre a constituição da

organização curricular oficial para o ensino de oito anos, tal como estabelecido pela Lei

5.692/71 (DE PIETRI, 2013).

Nos anos 1980, a Linguística ganha mais espaço na escola, e há uma proposição

mais interacionista para se ensinar língua materna nos documentos oficiais, mesmo que

isso não chegasse às práticas docentes nas escolas. Nesse período, a disciplina volta a se

chamar “Português” / “Língua Portuguesa” em todos os segmentos. Em relação aos

anos de 1990, alguns acontecimentos merecem destaque: a promulgação da Lei nº 9394

(LDBEN) em 1996, que passa a defender um ensino de LP mais voltado à diversidade e

à cidadania, e a publicação dos primeiros PCN, em 1998, que desde então aludiam à

importância de se ensinar LP utilizando a concepção de língua e de gêneros do discurso

propostos por Bakhtin. Essas mudanças, contudo, faziam parte das discussões

acadêmicas, mas continuavam longe das escolas (CUSTÓDIO, 2010).

Os recortes que privilegiam desenvolvimentos situados geograficamente também

são recorrentes no campo de pesquisa sobre ensino de LP, oferecendo problematizações

frente aos documentos oficiais do currículo de LP específicos para determinados estados

e municípios — como no caso de estudos situados nos estados do Paraná (ATHAYDE

JÚNIOR, 2006), Rio de Janeiro (SILVA, 2008 e 2012), São Paulo (CUSTÓDIO, 2010)

e Santa Catarina (DORNELLES, 2008; RODRIGUES, 2009) — ou, ainda, análises do

discurso de documentos oficiais sobre o currículo de LP, conforme investigação feita no

município de São Bernardo do Campo, São Paulo (FAVARETTO, 2013).

Para os objetivos deste capítulo, os estudos sobre Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCN) também são importantes nesse quadro geral, sobretudo os que,

pautados numa perspectiva dialógica, não reduzem a análise à especificidade dos PCN,

mas o fazem na relação com as práticas e os livros didáticos dessa disciplina

(ALMEIDA e SOUZA, 2011). O que se verifica, porém, é que a concepção de

linguagem dos documentos oficiais não dialoga com o que prescrevem os livros

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didáticos (SILVA, 2008; SILVA, 2012; SILVA e CYRANKA, 2009), ou seja,

apresentam contribuições que não chegam realmente às escolas (RODRIGUES, 2007),

o que se percebe claramente não só pelos próprios documentos, mas também através de

entrevistas feitas com professores (RODRIGUES, 2011). Daí a constatação da

dicotomia currículo formal versus currículo real, questão problematizada mediante uma

contextualização histórica dos PCN no que se refere às prescrições dos discursos

oficiais e às determinações dos currículos de LP (MARINHO, 2007).

É importante mencionar, ainda, que vários dos estudos citados partem de

reflexões sobre as teorias do currículo e utilizam em suas referências bibliográficas

autores como Silva (2006, 2011) e Moreira (2001), os quais traçam um histórico dessas

teorias para apontar que outras mudanças precisam surgir no contexto educacional

brasileiro contemporâneo.

A questão discutida neste capítulo, portanto, está inserida nesse cenário denso de

debates, que envolve o ensino e o currículo de LP, apresentado anteriormente. Pretende-

se verificar em que medida as questões étnico-raciais começam a se integrar ao

currículo de LP, passando por comentários sobre as LDBEN, em que se incluem as leis

10.639/2003 e 11.645/2008; os PCNEM; as NDCNEB; as OCEM; e a BNCC (ainda em

trâmite), e, ainda, passando por uma análise das avaliações propostas pelo ENEM, que

acabam por influenciar o currículo das disciplinas escolares.

3.2 – Prescrições curriculares frente à LDBEN e às leis 10.639/03 e 11.645/08

Aos problemas elencados no levantamento do estado da questão — como a

percepção de que, na maioria das vezes, o que é prescrito nos documentos oficiais não é

efetivado nos currículos e, consequentemente, nas escolas — há de se acrescentar o

tema central desta dissertação: a problemática étnico-racial. Isso porque a pesquisa no

Portal CAPES com os descritores “Bakhtin and currículo and relações étnico-raciais” e

"racismo and ensino de língua portuguesa" não apresentou nenhum resultado específico,

fator que, sem dúvida, mostra mais uma lacuna no horizonte do campo de estudos. O

intuito dessa pesquisa, portanto, é, também e principalmente, dar uma contribuição

específica, sobretudo no campo da aplicação das leis 10639/03 e 11645/08, que ainda se

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mantém distante das pesquisas sobre o currículo, os PCN, o ensino e os livros didáticos

de LP, pelo menos em uma perspectiva bakhtiniana.

Para compreender o processo histórico de criação de leis para regulamentar o

ensino no Brasil, é interessante ressaltar que, desde a chegada dos padres jesuítas, em

1549, há disputas por uma unificação curricular no Brasil. Como o objetivo aqui não é

aprofundar os estudos sobre a história da educação no Brasil, falaremos especificamente

sobre a LDBEN. A primeira foi aprovada em 1961 (Lei nº 4.024), e logo interrompida

devido ao golpe militar de 1964, que, em seguida, promulgou as Leis nº 5.540/68 e nº

5.692/71 para um novo modelo educacional, mais voltado para o mercado de trabalho.

Somente em 1996 foi promulgada a LDBEN vigente hoje, que foi regulamentada em

1998 pelas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN). Nessa proposta, todos têm direito a cursar o ensino

médio, mais voltado para a cidadania. Descreve, ainda, propostas para além da educação

básica (ensino fundamental e ensino médio), como a educação superior e a educação

profissional (com três níveis de ensino: o básico, o técnico e o tecnológico) (GARCIA,

2011).

Mesmo com a tentativa de uma unificação curricular regida por leis, muitas

delas continuam a ser silenciadas, o que ressalta a viabilidade e a relevância da presente

pesquisa. A lei 10.639/2003, ao alterar a LDBEN (9.394/1996), obriga que a Instituição

Escolar introduza, no currículo de todos os níveis de educação formal, o ensino sobre

História e Culturas Afro-brasileira e Africanas. Além disso, inclui no calendário escolar

o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

Essa lei, primeira lei relacionada à educação que realmente apresentou forte

enfrentamento ao racismo, é resultado de um longo processo histórico de lutas dos

movimentos negros, que reivindicavam igualdade de direitos na sociedade desde o fim

do século XIX, com a abolição. Esses movimentos se fortaleceram ao longo do tempo,

principalmente a partir da criação da Frente Negra Brasileira, em 1931. Desde então,

outros grupos de resistência foram sendo criados, fortalecidos e passaram, cada vez

mais, a buscar equidade social e racial. A lei 10.639/2003, portanto, possui evidente

dialogismo como todas essas vozes que carrega consigo, as quais, há muito tempo,

valorizavam a população negra e a cultura e memória de seus ancestrais (CAETANO,

2013). Também não se pode deixar de dizer que essa lei e todos os outros documentos

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oficiais analisados no presente capítulo entraram em vigência a partir dos anos 90 do

século XX, quando o neoliberalismo passou a ser uma ideologia dominante na política

brasileira. Isso, contudo, não desvalida a lei e as outras prescrições, que, apesar das

críticas, contribuem para uma educação antirracista9.

O fragmento transcrito abaixo, da Resolução nº 1 de 17 de junho de 2004, feita a

partir do Parecer CNE/ CP nº 03 de 10 de março de 2004, declara que tal introdução no

currículo deve se operar por meio de disciplinas específicas. Em relação aos professores

de Língua Portuguesa, o viés que a resolução vislumbra é a literatura, ramo do ensino da

referida disciplina.

Art. 1° - A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem

observadas pelas instituições de ensino de Educação Básica, nos

níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação Média,

Educação de Jovens e Adultos, bem como na Educação Superior, em

especial no que se refere à formação inicial e continuada de

professores, necessariamente quanto à Educação das Relações Étnico-

Raciais; e por aquelas de Educação Básica, nos termos da Lei

9394/96, reformulada por forma da Lei 10639/2003, no que diz

respeito ao ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana, em especial em conteúdos de Educação Artística, Literatura

e História do Brasil. (BRASIL, 2004)

Em 2008, foi promulgada a lei 11.645, que altera a 10.639/2003, incorporando a

ela a história e a cultura dos povos indígenas. Também é importante mencionar, sobre a

trajetória dos povos indígenas na escola, o que diz a LDBEN em seus artigos 78 e 79:

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das

agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios,

desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta

de educação escolar bilingüe e intercultural aos povos indígenas, com

os seguintes objetivos:

I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação

de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades

étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

9 Entende-se educação antirracista como uma prática social que procura democratizar o processo de

ensino através da incorporação e valorização de aspectos dos vários grupos socioculturais presentes no

mundo escolar e enfrentar ações e ideias racistas (Caetano, 2013).

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II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às

informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade

nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de

ensino no provimento da educação intercultural às comunidades

indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1º Os programas serão planejados com audiência das comunidades

indígenas.

§ 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos

Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:

I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada

comunidade indígena;

II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado

à educação escolar nas comunidades indígenas;

III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo

os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;

IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico

e diferenciado.

§ 3o No que se refere à educação superior, sem prejuízo de outras

ações, o atendimento aos povos indígenas efetivar-se-á, nas

universidades públicas e privadas, mediante a oferta de ensino e de

assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e

desenvolvimento de programas especiais. (Incluído pela Lei nº 12.416,

de 2011) (BRASIL, 1996)

Ainda sobre a questão indígena, a Constituição da República Federativa do

Brasil, de 1988, em seu artigo 210, afirma que “§2º O ensino fundamental regular será

ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a

utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL,

1988). Isso permite entendermos que há, de fato, uma tentativa de preservação das

línguas indígenas, bem como de suas culturas, o que, na prática, não se pode observar,

principalmente quando vêm à tona as lutas por demarcação das terras indígenas, o

genocídio dos povos indígenas, e, consequentemente, o desaparecimento de diversas

línguas, o que pode ser encontrado, dentre outras fontes, no Relatório Figueiredo10

.

Em relação ao conjunto de leis que formam a LDBEN, vale destacar, ainda, que,

de acordo com o Art. 3º, o ensino deve ser ministrado com base em diversos princípios,

e um deles é a “consideração com a diversidade étnico-racial” (item XII, incluído pela

Lei nº 12.796, de 2013). Apesar de haver a determinação do Estado e do pleito de

10 Trata-se de um documento com cerca de sete mil páginas, “redescoberto” em 2013 no Museu

do Índio, que relata as atrocidades cometidas contra populações indígenas, entre os anos 40 e 60.

(Disponível em <http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/9197> Acesso em 10 nov.2015).

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segmentos considerados minoritários, que desejam um lugar de igualdade (entenda-se

também de poder) na sociedade, há, no momento presente, um grande descompasso

entre as determinações governamentais, os livros didáticos, a ação docente e a formação

docente, inclusive aquela efetivada pelas universidades públicas, já que nem sempre

contam com um corpo docente preparado, por exemplo, para discutir questões étnico-

raciais e implementar as leis.

Esse cenário, brevemente referido, constitui, a meu ver, um movimento de

resistência do aparelho ideológico do próprio Estado: a Escola (ALTHUSSER, 1992).

Não que a escola seja um aparelho ideológico no sentido de estar totalmente estagnada e

não permitir transformações, contudo muitas instituições de ensino que deveriam ir ao

encontro de uma política equilibrada – mais justa –, em função de uma presença

massiva de intelectuais conservadores, vão justamente de encontro a essa política.

Então, é possível perceber que a LDBEN oferece alguns mecanismos para a

promoção da equidade racial e social, todavia, como já foi dito, as atividades realizadas

não refletem as prescrições.

3.3 Prescrições curriculares frente aos PCNEM

Nesta seção pretendo comentar sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais de

Língua Portuguesa do Ensino Médio (PCNEM), já que são importantes instrumentos

que compõem o currículo e cujo estudo faz parte de ementas de disciplinas obrigatórias

nos cursos de licenciaturas. Assim, é necessário verificar se o conteúdo desses

documentos oficiais contribui para manter o emparedamento do currículo, ou se são

inovadores, mas talvez não sejam efetivamente implementados.

Os primeiros Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) tiveram sua versão

preliminar em 1995, e foram lançados em 1998, em formato de livro, dois anos depois

da promulgação da LDBEN. O texto fora escrito com a participação de professores

brasileiros e estrangeiros, especialistas e instituições governamentais e não

governamentais (SARAIVA, 2012). Esse documento do Ministério da Educação já

apresentava sugestões para um novo modelo educacional no Ensino Fundamental. Os

PCN, além dessas considerações, podem ser entendidos como o resultado de uma

tentativa de o MEC implementar o artigo 210 da Constituição da República Federativa

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do Brasil, de 1988, segundo o qual “serão fixados os conteúdos mínimos para o ensino

fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores

culturais e artísticos, nacionais e regionais.”.

Também é relevante dizer que os PCN foram criados para facilitar e atender ao

que é dito no artigo 9º, inciso IV, da LDBEN, que afirma que a União incumbir-se-á de

estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o

ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e

seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica

comum; (BRASIL, 1996)

De acordo com Araújo (2001), há três problemas envolvidos nos PCN de 1998,

em relação à disciplina LP: não esclarecer a fundamentação teórica que norteia o

documento, não estabelecer claramente seu interlocutor (parece ter sido escrito para

linguistas, e não para professores) e pretender ser um documento norteador em um

momento em que se quer valorizar a pluralidade e a diferença. Vale, realmente, indagar

se essa “formação básica comum” respeita(va) as especificidades locais, e não apenas as

globais.

Como o foco deste trabalho é o Ensino Médio, analisaremos especificamente os

PCNEM, primeiramente publicados em 2000, e depois reformulados como PCN+ em

200211

. Uma das mudanças significativas que os PCN, de modo geral, apresentaram foi

a ideia de os discentes desenvolverem competências e habilidades. Outra mudança foi a

organização do Ensino Médio em três áreas, “Ciências da Natureza e Matemática”,

“Ciências Humanas”, e “Linguagens e Códigos”, as quais deve(ria)m organizar e

interligar disciplinas. Ainda é preciso destacar que os PCN, PCNEM e PCN+ são

parâmetros, paradigmas, logo induzem a uma prática, mas não são obrigatórios

(FARIA, 2006).

Em relação ao ensino de Língua Portuguesa, nos PCNEM de 2000, há um

discurso aberto às questões sociais, na parte em que se afirma que “o estudo de língua

materna na escola aponta para uma reflexão sobre o uso da língua na vida e na

sociedade” (p.15). A abordagem desse documento é, inclusive, bastante bakhtiniana

11 Não foi encontrada, no site do MEC, a data de publicação dos PCN+. Há, contudo, vários estudos que

indicam que os PCN+ foram publicados em 2002 (Saraiva, 2012; Faria, 2006)

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(Bakhtin é indicado explicitamente na bibliografia do documento), por induzir a um

ensino mais linguístico que puramente gramatical, menos autoritário, destacando, ainda,

a importância de se contextualizar sócio-culturalmente as questões que envolvem o

ensino de língua materna e as relações dialógicas que se estabelecem nela e na

linguagem de modo geral. Ressalta, ainda, que o docente deve refletir sobre sua prática,

o que é bastante pertinente e fundamental. Não há, contudo, na seção “Conhecimentos

de Língua Portuguesa”, nada que atente diretamente para a necessidade de se discutir

especificamente nessa disciplina questões étnico-raciais. O que se pode encontrar são

menções às noções de identidades e às construções sociais dos discursos.

Os PCN+ de 2002, por sua vez, configuram um documento mais didático,

contando, inclusive, com um item “Sobre a formação do professor”, em que é referida a

necessidade da luta contra “os preconceitos e as discriminações – sexuais, étnicas e

sociais” (p.89). As seções são muito mais detalhadas e específicas. Nesse documento, o

ENEM foi mencionado, o que demonstra a importância que esse exame ganhou como

eixo orientador da construção curricular. As discussões sobre questões étnico-raciais,

porém, continuaram parecendo de certa forma optativas para os docentes de LP (a

palavra “negro” só apareceu no componente curricular de Educação Física, e a palavra

“indígena”, em Artes).

Assim, pesquisas recentes apontam que, em relação ao Ensino Médio, poucos

professores realmente debruçam-se no estudo desses documentos, e sua efetivação

raramente acontece nas escolas brasileiras e nos livros didáticos (SANTOS, 2009;

LIMA, 2012).

3.4 Prescrições curriculares frente às NDCNEB

As primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais foram criadas na década de 1990,

e desde então têm sofrido mudanças (MACHADO & LOCKMANN, 2014). As Novas

Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (NDCNEB) estão disponíveis

para acesso e download no site do MEC, contando com 562 páginas, publicadas em

2013. São novas porque foram atualizadas, levando em consideração as mudanças

ocorridas nos últimos anos, que ampliaram o direito de crianças e adolescentes em

relação à educação. Foram formuladas com embasamento no que dizem os PCN, a

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LDBEN e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dentre outras leis e

prescrições. Servem para sistematizar os princípios da educação básica, estimular

reflexões e orientar cursos de profissionais, bem como sistemas de ensino. Trata-se de

um documento completo, que

além das Diretrizes Gerais para Educação Básica e das suas

respectivas etapas, quais sejam, a Educação Infantil, Fundamental e

Média, também integram a obra as diretrizes e respectivas resoluções

para a Educação no Campo, a Educação Indígena, a Quilombola, para

a Educação Especial, para Jovens e Adultos em Situação de Privação

de Liberdade nos estabelecimentos penais e para a Educação

Profissional Técnica de Nível Médio. Além disso, aqui estão presentes

as diretrizes curriculares nacionais para a Educação de Jovens e

Adultos, a Educação Ambiental, a Educação em Direitos Humanos e

para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro- Brasileira e Africana (BRASIL, 2013, p.4).

Assim, essas diretrizes destacam a importância, ou melhor, cobrança, de se

valorizar a diversidade cultural. Segundo Nilma Lino Gomes, hoje ministra no

Ministério da Cidadania, essa cobrança surge da percepção de certos grupos, antes

considerados diferentes, de que suas identidades devem ser respeitadas, o que pode ser

alcançado com um tratamento justo e igualitário em um processo de desconstrução da

inferioridade construída, dentro de um campo político de disputas por poder. A autora

também afirma que esses grupos repudiam o poder uniformizador da escola, e têm

questionado os currículos e interferido até mesmo na construção de leis e das diretrizes

curriculares nacionais (GOMES, 2007).

Além disso, não se pode deixar de trazer à baila as reflexões que as NDCNEB

apresentam logo na página 14, em que menciona que muitos docentes consideram os

PCN e as diretrizes como “meros papéis”. Como resposta, a NDCNEB diz que

a educação para todos não é viabilizada por decreto, resolução,

portaria ou similar, ou seja, não se efetiva tão somente por meio de

prescrição de atividades de ensino ou de estabelecimento de

parâmetros ou diretrizes curriculares: a educação de qualidade social é

conquista e, como conquista da sociedade brasileira, é manifestada

pelos movimentos sociais, pois é direito de todos. (BRASIL, 2013)

Há de se destacar, contudo, que, no contexto político-contemporâneo da inclusão

de diferenças, muitos docentes chegam à atividade profissional com lacunas na

formação, responsáveis por paralisá-los nas vezes em que se defrontam, em sala de aula,

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com as questões de discriminação, especialmente as étnico-raciais. E esse fato tem

ocorrido com muitos educadores, às vezes por falta de preparo ou até mesmo por

preconceitos que carregam consigo. Não percebem que o momento da discriminação é

propício para se debater muitas questões, promovendo a conscientização da diversidade

como riqueza e contribuindo para que o aluno discriminado tenha orgulho de sua

diferença (MUNANGA, 2008). Isso ajudaria a aumentar a autoestima de todo o corpo

discente, o que elevaria o desempenho da turma.

O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Culturas

Afrobrasileira e Africana reforça que

[...] é na escola onde as diferentes presenças se encontram e é nas

discussões sobre currículo onde estão os debates sobre os

conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações

sociais, os valores e as identidades dos alunos e alunas. [...] que a

educação deve concorrer para a formação de cidadãos orgulhosos de

seu pertencimento etnicorracial, qualquer que seja este, cujos direitos

devem ser garantidos e cujas identidades devem ser valorizadas

(BRASIL, 2014, p.10).

Merece destaque também o fato de muitos professores estarem se sensibilizando

para as questões étnico-raciais, promovendo debates em sala e ações coletivas para

descontruir as desigualdades. De certa forma, os instrumentos legais podem respaldar os

professores que desejam contribuir para o desemparedamento do ensino, mesmo que

não tenham o apoio de sua equipe de trabalho, ou até da gestão escolar12

.

As questões étnico-raciais permeiam todas as diretrizes que formam as

NDCNEB, inclusive são destacadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana, que fazem parte das NDCNEB. Ressalto, contudo, que aquelas

diretrizes enfatizam a luta dos negros, relegando, de certa forma, a luta dos povos

indígenas – os quais têm desaparecido do cenário brasileiro –, e de outros grupos étnico-

raciais que constituem a população brasileira. Mesmo assim, o fato de se encontrar a

12 Nos últimos anos, diversas notícias sobre casos de professores e diretores de escolas que

impediam e impedem a aplicação da lei 10.639/03, principalmente por motivos religiosos, foram

publicadas em jornais e revistas online.

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problematização de questões étnico-raciais em diretrizes como a NDCNEB já pode ser

considerado um enorme avanço no quadro político-educacional brasileiro.

As NDCNEB, portanto, são diretrizes, ou seja, esboçam planos e metas, sem o

objetivo de promover ações uniformes. Não trazem os conteúdos específicos que cada

disciplina deve trabalhar, porque não valorizam um ensino conteudista. Procuram, sim,

nortear os envolvidos nos processos educacionais, sobretudo em relação a como agir de

maneira a atender interesses sociais plurais e a como transformar a escola em um espaço

de formação cidadã.

Além disso, as diretrizes têm força de lei e podem, de fato, colaborar na

reparação de desigualdades histórico-sociais, e o ensino em um país como o Brasil não

pode silenciar o racismo e o “racismo à brasileira”13

, velado. Outra questão positiva das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana é o aparecimento do conceito de

raça não tão essencializado como nos outros documentos, pela ênfase de que, no Brasil,

a raça é uma construção social e histórica, e não deve ser limitada aos fenótipos

individuais. O texto dessas diretrizes desafiam os docentes a pensarem sobre o que é

raça e como lidar com múltiplas identidades que emergem na sala de aula, já que

vivemos em constantes processos de intercâmbios culturais (MATTOS & ABREU,

2008).

É importante mencionar, ainda, que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana foram publicadas em 2004, e desde então muitas pesquisas já

foram realizadas nesses últimos onze anos, inclusive em nível de pós-graduação. O

Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288), por exemplo, foi promulgado em 2010, e

colaborou e colabora para a construção de uma sociedade antirracista, já que trouxe

definições do que são: discriminação racial ou étnico-racial, desigualdade racial,

desigualdade de gênero e raça, população negra, políticas públicas, e ações afirmativas.

O estatuto assegura à população negra os mesmos direitos de todos os cidadãos (como

13 Muitos teóricos que estudam relações étnico-raciais utilizam esse termo (cf. Schwarcz, L.M. Quase

pretos, quase brancos. Entrevista. PESQUISA FAPESP 134 / ABRIL DE 2007. Disponível em

<http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2007/04/10-15-schwarcs-134.pdf?cffa13> Acesso

em 11 nov. 2015.

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direito à saúde, à educação, à cultura, ao lazer, ao esporte, à liberdade de consciência e

de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos, bem como o acesso à terra e à

moradia, ao trabalho, aos meios de comunicação, à segurança, à justiça). Tudo isso,

efetivamente, não acontecia de maneira uniforme com toda a população (e muitas vezes

ainda não acontece), tendo a população “branca” adquirido certos privilégios ao longo

da história do Brasil. Ainda sobre o estatuto, destacamos a criação do Sistema Nacional

de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR) para colaborar na implementação do

conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas

brasileiras. O estatuto também prevê financiamento para iniciativas de promoção da

igualdade racial.

Refaço, aqui, a mesma crítica feita as NDCNEB no que diz respeito

principalmente aos povos indígenas. Um Estatuto da Igualdade Racial que nem sequer

menciona os povos indígenas deve ser repensado para que a luta pela igualdade racial

no Brasil ganhe mais força. Esses povos são, há séculos, massacrados, e ainda hoje são

silenciados, seja pelas mídias ou até pelos documentos oficiais, o que deve ter

reparação. Se, por um lado, isso mostra a força dos Movimentos Negros, por outro,

reforça o apagamento, o esquecimento dos povos indígenas.

3.5 – Prescrições curriculares frente às OCEM

Nesta seção, serão feitos comentários sobre as Orientações Curriculares para o

Ensino Médio. Essas orientações são divididas por áreas de conhecimento, em três

volumes. O volume 1 é o que será comentado, da área de “Linguagens, códigos e suas

tecnologias”, em que se situa a disciplina de LP. De acordo com o site do MEC, essas

orientações, publicadas em 2006, elaboradas por professores, alunos e acadêmicos, bem

como por equipes técnicas dos Sistemas Estaduais de Educação, objetivam “contribuir

para o diálogo entre professor e escola sobre a prática docente”. Visa, ainda, a melhorar

a qualidade da escola e estimular reflexões, e afirma que “o desafio de oferecer uma

educação básica de qualidade para a inserção do aluno, o desenvolvimento do país e a

consolidação da cidadania é tarefa de todos”.

Especificamente no capítulo 1, “Conhecimentos de Língua Portuguesa”, ganha

um destaque a importância de se refinar, no Ensino Médio, as habilidades de leitura e de

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escrita, de fala e de escuta, esclarecendo a opção teórica, fundamentada na Linguística e

na Linguística Aplicada. Em seguida, traça um breve histórico do ensino desse

componente curricular, para se chegar a uma abordagem interacionista, trazendo

reflexões sobre língua e linguagem. O texto deixa claro que o novo tipo de ensino de LP

proposto não se restringe à língua escrita e nem está ligado aos padrões de língua sócio-

culturalmente hegemônicos, defendendo, portanto, a abordagem do letramento.

As OCEM não se mostram autoritárias na definição dos conteúdos. Pelo

contrário, dizem que “cabe à escola, junto com os professores, precisar os conteúdos a

serem transformados em objetos de ensino e de aprendizagem bem como os

procedimentos por meio dos quais se efetivará sua operacionalização.” (p.35). Estimula,

ainda, o trabalho com os gêneros discursivos (Bakhtin é explicitado na bibliografia do

capítulo). Em seguida, são apresentados quadros com eixos organizadores de atividades,

didaticamente, para exemplificar o que fora comentado anteriormente, com vários

exemplos ilustrativos.

No capítulo 2, “Conhecimentos de Literatura”, logo em sua introdução,

apresenta uma crítica aos PCN+, que fundiu literatura e língua portuguesa em uma

única disciplina. Nas OCEM, LP e Literatura aparecem como disciplinas autônomas, o

que demonstra uma tensão nessa “arena de discursos”, cujos lutadores deveriam

pertencer à mesma equipe, que por vezes se choca entre si. Várias outras críticas aos

PCN+ aparecem ao longo de todo o capítulo, que defende, portanto, a literatura no

Ensino Médio como uma forma de se obter conhecimentos culturais, autonomia

intelectual e pensamento crítico, sugerindo, portanto, o letramento literário. O professor,

nesse processo, ganha o papel de mediador na formação dos leitores.

Outro destaque interessante sobre esse capítulo é a problematização da ideia de

uma literatura canônica, que exclui da escola grandes autores e autoras da literatura.

Nessa parte, entra, ainda, uma crítica aos livros didáticos, que geralmente colaboram

para a manutenção dessa literatura excludente. Bakhtin também aparece como um dos

autores da bibliografia do capítulo.

É possível perceber, até o que foi aqui comentado, que há um excesso de

prescrições – nem sempre compatíveis, apesar de serem dialógicas – e que elas nem

sempre são concretizadas nas ações docentes, os quais se veem despreparados para lidar

com tantas demandas prescritas, e ainda com as ementas que as instituições de ensino

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autonomamente elaboram. As assimetrias de discursos presentes em cada um desses

documentos tencionam ainda mais o conflito de um professor eventualmente

interessado em adotá-los, pois teria dúvidas do que seguir diante desse cenário ambíguo.

3.6 – Prescrições curriculares frente à BNCC

Como se não bastassem todas as prescrições já mencionadas, está em trâmite a

Base Nacional Comum Curricular, que ficou disponível para consulta pública no site do

MEC e aberta para sugestões e críticas de toda a sociedade. Todos os outros

documentos oficiais supramencionados, em algum momento, falam sobre uma base

curricular comum14

, que, aos poucos, vai se concretizando na forma da BNCC. Na

realidade, desde a Constituição Federal de 1988 já se previa a criação de uma base

curricular comum. As NDCNEB enfatizam que “é proposta do CNE o estabelecimento

de uma Base Nacional Comum que terá como um dos objetivos nortear as avaliações e a

elaboração de livros didáticos e de outros documentos pedagógicos” (p.13). Se isso

ocorrer, será um grande avanço, pois ainda não temos visto todas essas prescrições

chegarem, de fato, aos livros didáticos que, mesmo com o filtro do Programa Nacional

do Livro Didático (PNLD), estão inseridos em um mercado editorial muito poderoso.

Na BNCC, as disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura aparecem fundidas

em uma só: Língua Portuguesa; organizada em cinco eixos. Uma diferença entre a

BNCC e os outros documentos oficiais é a divisão, por série do Ensino Médio, dos

assuntos que devem ser trabalhados. Valoriza o trabalho por gêneros discursivos, a

literatura contemporânea, e a diversidade, como a memória indígena e africana, sempre

no confronto com o contexto social e histórico da produção. A ideia de uma educação

linguística, com menos ênfase na gramática, contudo, tem sido amplamente criticada na

grande mídia.

14 Constituição Federal de 1988: Art. 210: Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental,

de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e

regionais. LDBEN de 1996: Art. 26: Os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do

Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em

cada estabelecimento escolar.

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A BNCC parece ser inovadora e indutora de ações emancipadoras, colocando o

discente, pela primeira vez, numa posição um pouco mais autônoma. Ainda não é

possível, contudo, avaliar profundamente a BNCC, visto que seu texto está sendo

revisto constantemente. Havia uma versão disponível em setembro de 2015, e outra um

mês depois, com mudanças significativas. Em março de 2016, foi encerrada a consulta

pública, com mais de doze milhões de contribuições propostas15

.

Também não se pode deixar de mencionar que recentes estudos percebem a

BNCC de modo negativo, entendendo que “o alargamento da escola e o deslocamento

das funções da docência são verdades que estão se naturalizando no interior de uma

racionalidade política neoliberal.” (MACHADO & LOCKMANN, 2014)

3.7 – Prescrições curriculares frente à tradição e as induções do ENEM

Estudos de psicologia acerca da execução de atividades profissionais indicam

que o trabalho efetivamente realizado não corresponde exatamente às normatizações

antecedentes, sendo distinto do planejado, razão pela qual o trabalho real não representa

a tarefa prescrita (BRITO, 2006). As premissas dessa abordagem psicológica, que

considera o trabalho humano segundo o ponto de vista da atividade, são que sempre há

uma assimetria entre as normas e prescrições, por um lado; e o labor real, cotidiano, por

outro.

No caso da atividade do professor de Língua Portuguesa, o mesmo acontece. O

trabalho realizado em sala de aula difere da diretriz norteadora. Assim, se o exame de

documentos oficiais permite a verificação de muitos avanços, o que se vê na prática é o

ensino formal da norma culta da língua. Parâmetros, normas, e orientações progressistas

nem sempre têm vez frente à tradição. E quando não há espaço para a negociação, a

tradição docente no ensino de LP não necessariamente reproduz o que está prescrito nos

documentos mais emancipadores. Realmente, estudos recentes mostram que as práticas

docentes e os materiais didáticos não estão em efetiva relação dialógica com os

documentos oficiais (CUSTÓDIO, 2010), e indicam também que há pouquíssima

15 De acordo com o site do MEC. Disponível em <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio>

Acesso em 17 mar. 2016.

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interação entre os livros didáticos de LP e os PCN (MONTEIRO, 2008). Desse modo,

fica nítido que o ensino perpetua-se de forma bastante tradicional.

Além disso, muitos professores ainda valorizam demasiadamente a literatura

canônica, e esquecem que o conceito de cânon deve sempre ser problematizado, pois no

momento em que determinadas obras passam a habitar o cânon, outras vozes são

silenciadas e excluídas. O acesso a diversos gêneros discursivos realmente poderia

contribuir para que os alunos percebessem o dinamismo da LP, numa tentativa de não

reforçar os estereótipos discriminatórios (REIS, 1992). O problema é que, mesmo

frente às várias mudanças que os documentos oficiais prescrevem e/ou sugerem, muitas

escolas ainda se mantêm apegadas ao ensino tradicional, pela valorização apenas da

norma culta da língua. E isso sem falar dos aspectos que geralmente costumam

hierarquizar dirigentes, docentes e discentes, em um processo silenciador de

reivindicações e mudanças.

Mesmo assim, vale lembrar que algumas instituições de ensino, sobretudo as

privadas, que tinham a tradição de desconsiderar prescrições curriculares para

atenderem ao pragmatismo imposto pelos exames vestibulares, passam a lidar, hoje em

dia, com novas expectativas. Elas começam a se transformar para atender às demandas

do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), já que ele também é usado, hoje, para

avaliar o desempenho escolar. Esse exame foi criado em 1998 e reformulado em 2008

com o objetivo de substituir o velho modelo de vestibular. E como o ENEM pretende

ser mais voltado para a realidade dos alunos, com caráter menos conteudista e mais

reflexivo, poderia configurar-se como uma indução curricular contrária à tradição.

Uma recente dissertação de mestrado fez um levantamento de 17 provas do

ENEM, de 1998 a 2013 (uma prova foi anulada, mas entrou na análise), somando 918

itens avaliados. Desses, somente 31 contemplavam a população negra, sendo 23

abordados pejorativamente, e 8 valorizando aspectos culturais, sendo 7 desses 8

posteriores a 2011 (MOREIRA, 2015). Isso pode demonstrar uma tendência, ainda que

tímida, de a lei 10.639/03 começar a ser incorporada no ENEM, o que certamente

influenciará nas escolas que optarem por seguir esse modelo como parâmetro de ensino.

Não foram encontradas pesquisas que fizessem semelhante levantamento em relação às

questões que envolveram os povos indígenas.

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3.8 Reflexões desemparedadoras

Numa perspectiva bakhtiniana, é possível dizer, portanto, que o currículo

efetivamente praticado, pensado em um momento histórico distante, muitas vezes não

leva em consideração a vida de hoje, da sociedade brasileira do século XXI. Como

consequência disso, vê-se um país ainda com baixa qualidade no ensino. E uma possível

resposta para isso pode ser pensada ao perceber que, diante de um currículo emparedado

– não somente o de Língua Portuguesa, mas de todos os componentes curriculares –

encontram-se alunos pouco ativos, pouco responsivos. A resposta dos alunos até existe,

mas é uma resposta que aparece em forma de reação, resistência, descaso, desinteresse.

Sendo assim, o currículo escolar deve ser repensado, atualizado, de modo que

todos os envolvidos no processo educacional, discentes e docentes, possam ter uma

maior compreensão responsiva ativa, produtiva, interativa. Levando em conta um

cenário educacional com muitos problemas, já que a escola nem sempre tem formado

para o pleno exercício da cidadania e para o mercado de trabalho, ou mesmo para os

enfrentamentos cotidianos da vida, novas propostas devem ser elaboradas: outros

enunciados são possíveis.

Se é, portanto, necessário ressignificar o ensino de Língua Portuguesa, é preciso,

então, perceber que a prática docente e o currículo dessa disciplina são como são porque

foram discursivamente construídos enquanto práticas sociais. E se essa construção é

discursiva, é preciso dizer o que entendo por “discurso”. Não existe transmissão de

ideias fora do corpo da linguagem. Também posso afirmar que tudo que expressamos

traduz um ponto de vista, o que nos leva a compreender que, no exercício da linguagem,

está afastada a ideia de neutralidade, e, por isso, o discurso é sempre ideológico. Fiorin

(1998), para discutir a constituição de formação discursiva, parte da noção de formação

ideológica, que representa uma determinada visão de mundo, acreditada por uma

determinada classe social. Essa visão de mundo é traduzida por meio da linguagem,

correspondendo, desta forma, a uma formação discursiva.

As práticas docentes, incluindo o currículo, estão necessariamente inseridas em

uma formação ideológica/ discursiva. Isso porque implica defesa de um ponto de vista

em detrimento de outras disputas na “arena dos conflitos” (FIORIN, 1998). Nesse

ponto, cabe indagar a formação discursiva a que estão filiadas as instituições de ensino.

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Se entendemos que a escola é uma instituição do Estado, entendemos também que é

uma instituição inserida em relações de poder, necessariamente assimétricas. Assim, o

discurso que vigora na escola é o discurso do poder dominante, que é o da classe

dominante. A manutenção dos valores de verdade dessa classe não é pacífica: ela se dá,

entre outros, pela imposição dos aparelhos ideológicos (ALTHUSSER, 1992). Não que,

por ser aparelho ideológico, mudanças sejam impossíveis. Pelo contrário, justamente

por isso, os docentes devem se preocupar na concretização das mudanças.

As estratégias de naturalização de valores da classe dominante determinam as

práticas sociais que irão ser recorrentes. Elas serão um sustentáculo e um alicerce das

práticas discursivas em termos das verdades do currículo, do conhecimento, do ensino e

das relações interpessoais. É nesse sentido que se pode dizer que as práticas discursivas

estão relacionadas a práticas sociais, que produzem sentidos no cotidiano por meio da

linguagem. Em outras palavras, mesmo as relações cotidianas mais triviais envolvem

relações de poder (SPINK, 2010).

Na escola, portanto, como instituição organizada, essas relações são muito mais

estruturadas e aparecem sob formas fixas de enunciados para resguardar os interesses do

currículo: “Literatura africana não cabe em nossa grade”, “História da África foge ao

tempo disponibilizado para ministrar os conteúdos curriculares”, “Questões de gênero

dizem respeito à educação familiar”, “A literatura indígena é primitiva”. Esses e outros

discursos mantém o currículo emparedado. O grande desafio é a negociação das práticas

discursivas que permitam a fragilização das estruturas dessas paredes. No que tange ao

ensino de línguas, o texto é o limite, melhor dizendo, não há limite, já que para Bakhtin

um texto está sempre em relação dialógica com outros textos. A transversalidade de

temas favorece.

Por outro lado, a formação docente e discente, no Brasil, segue uma perspectiva

ainda muito conteudista, cujo saber enciclopédico é supervalorizado. As instituições de

ensino se propõem a formar pessoas preparadas para o mercado de trabalho e para

concursos, e pouco se preocupam com a formação de cidadãos proativos. A reflexão

nem sempre é estimulada, e os saberes apresentados, numerosos, parecem prontos e

acabados. Os conteúdos apreendidos são muitos, mas desconectados entre si e

desconectados do contexto sócio-histórico, e, por conseguinte, da vida. Tal desconexão

interfere no aprendizado e traz uma sensação de frustração aos estudantes, que muitas

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vezes não conseguem deter totalmente o que é apresentado como sendo de suma

importância para sua formação e para sua vida.

Esses estudantes são clivados de sua autoestima e de sua autoconfiança. É um

dado da prática discursiva que atinge um aspecto psicológico necessário ao

investimento da aprendizagem. Muitas vezes, ficam assujeitados à estrutura filosófica

escolar, à estrutura curricular, a determinadas metodologias, a determinados processos

avaliativos, não percebem que estão presos à armadilha da ideologia dominante, que é

suporte para validar o sucesso ou o insucesso dos estudantes e os discursos que o

legitimam (POSSENTI, 2004).

Essa realidade, que se pode chamar, também, de prática discursiva, tem-se

transformado muito pouco ao longo dos anos. A educação brasileira, consequentemente,

vem apresentando resultados muito negativos, até mesmo nos exames para os quais a

escola diz se propor a formar.

Além disso, a escola, como um aparelho ideológico, teria que contribuir de

forma relevante para a formação cidadã, mas pouco se vê o exercício da cidadania nas

cidades do Brasil. De modo geral, há pessoas que jogam lixo no chão, não respeitam o

próximo, abandonam crianças e animais, não entendem a importância de recorrer à

justiça, mesmo quando em situações em que são vítimas... Seria possível enumerar

muitas outras ações que podem exemplificar o não exercício da cidadania. E pessoas

com essas atitudes, muitas vezes, passaram mais de dez anos na escola.

Aqui ficam alguns outros questionamentos, que entendemos ser problemas de

responsabilidade que poderiam ter sido problematizados na escola: que atenção é dada

àquele papel amassado que passa despercebido no canto da sala de aula? Que atenção é

dada à ação do estudante que distraidamente rabisca a carteira escolar no decurso da

aula? A discussão que se poderia travar com o aluno, entre outras, poria em relevância a

noção de público X privado, chamando a atenção para o fato de o público ainda nos

pertencer. Nossas indagações nos permitem concluir que se faz necessário refletir qual

tem sido o papel da escola no cenário atual.

Mais do que oferecer um diploma ou preparar para concursos ou para uma boa

vaga no mercado de trabalho, é preciso que o currículo seja repensado para proporcionar

uma formação humana integral. Esse tipo de formação prioriza a ética e a cidadania.

Prioriza o letramento, sobretudo o letramento racial, a fim de se construir uma educação

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e uma sociedade antirracista e democrática. Não há como se propor uma formação

humana integral sem propor a transversalidade de temas nas aulas, para ser possível que

a cultura científica esteja em diálogo com a cultura humanística. O currículo, portanto, e

os saberes escolares estariam articulados aos conteúdos da vida. Essa religação

proporcionaria a formação de sujeitos proativos, preparados para enfrentar os desafios

de seu tempo com ética e solidariedade que os temas requisitam.

Podemos dizer, então, que as práticas curriculares vigentes não dão conta das

demandas sociais. Essa percepção tende a nos deixar perplexos, pois a sua negação, ou

subtração, pode nos colocar no vazio não só pedagógico, mas também político. Essa

lacuna só pode ser resolvida se olharmos para um outro currículo. Os estudos sobre

currículo nos fornecem uma concepção de currículo relacionada a práticas discursivas

que envolvem relações de poder, comprometidas com formações discursivas. Tais

práticas, dialógicas, defendem interesses em confronto. Só com o confronto, o professor

poderá decidir a qual formação discursiva se filiará para não estar assujeitado a um

currículo que trabalha, inclusive, contra os interesses de classe, a qual ele próprio pode

pertencer. Afinal, todos nós conhecemos as condições sociais nas quais a maioria dos

docentes está inserida.

Entender currículo como prática discursiva, que se insere em formações

discursivas, é fundamental para que não sejamos falados por interesses que não nos

interessam. Currículo é seleção, é tomada de posição. O argumento do conteúdo para

deixarmos de fazer determinadas aventuras cidadãs deixa de valer. Em outras palavras,

as mudanças do currículo só ocorrerão a partir do entendimento de suas engrenagens de

produção e de poder. O currículo não pode ser emparedado, nem emparedador.

3.9 Estratégias desemparedadoras

Os problemas, desafios e embates que surgem a partir da relação entre as

prescrições curriculares devem ser problematizadas, fundamentalmente porque supostos

avanços nos cursos de formação e nos documentos oficiais não devem ser concebidos

como se eles, por si só, fossem capazes de transformar práticas pedagógicas.

É nesse quadro de constatação da necessidade de processos “desemparedadores”

que vejo a possibilidade de propor um material didático, a ser apresentado no capítulo 5,

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que dialogue com as leis vinculadas à educação das relações étnico-raciais e com os

outros documentos oficiais pensados para o Ensino Médio, sobretudo para o ensino de

LP. As prescrições já existem, e não são poucas, mas por si só não são capazes de

erradicar preconceitos, desconstruir ou desfazer ideologias e provocar mudanças nas

práticas sociais. É preciso fazer com que essas prescrições curriculares sejam efetivadas.

A sala de aula, até o presente momento, quase sempre desatenta a questões de

discriminação das diversas humanidades pelo contingente de sujeitos que abriga, é

espaço privilegiado de redemocratização e de construção de identidades cidadãs mais

amorosas, porque respeitosas das diferenças.

Isso nos faz confiar que estratégias desemparedadoras podem ser criadas a fim

de se conseguir um ensino de LP associado à formação humana integral (para o

exercício pleno da cidadania) e ao letramento racial. Como parte dessa dissertação,

haverá a proposição de um material didático que pode colaborar com os professores de

LP do Ensino Médio, não só pela possibilidade de utilizar o material que será

apresentado, mas também por estimular a produção de outros materiais.

Esse material partirá do ensino por gêneros discursivos. Dentro de cada unidade,

haverá temas norteadores para o trabalho com gêneros. Todos os temas a serem

discutidos partiram dos seguintes princípios, extraídos dos documentos oficiais

comentados neste capítulo da dissertação:

A) Direitos humanos como princípio norteador.

B) O princípio de igualdade.

C) O reconhecimento do direito étnico.

D) O orgulho do pertencimento étnico-racial.

E) A importância de não se desconsiderar as desigualdades seculares que a estrutura

social hierárquica cria, com prejuízos para os negros e os indígenas.

F) A superação da indiferença, injustiça e desqualificação contra os negros e

indígenas.

G) O conceito de raça como construção social, não biológica.

H) A dominação étnico-racial e a exclusão dos povos indígenas

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A partir desse material e de outros que têm sido criados, pretendemos promover

o encontro da academia com a escola, sempre necessário, tantas vezes de difícil acesso.

Com a pesquisa associada à ação docente, mesmo em um cenário neoliberal, em que a

acumulação do capital é tida como essencial, e que é interessante política e

economicamente inserir mais indivíduos na sociedade – de consumo – , acreditamos ser

possível a construção de uma nova nação, mais justa, democrática e igualitária. E isso

pode, certamente, ser alcançado por meio da educação, quando formamos sujeitos

autônomos, orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial, capazes de refletir

criticamente sobre sua realidade e de lutar para transformá-la.

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4 AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E OS LIVROS DIDÁTICOS

DE LÍNGUA PORTUGUESA

Como verificado no capítulo 3, os documentos oficiais que norteiam a educação

no Brasil (LDBEN, PCNs, NDCNEB, OCEM, leis 10.639/2003 e 11.645/2008 e

outros), e em especial o ensino de LP, induzem a um ensino emancipador, valorizador

das diferenças étnico-raciais. Contudo, verificou-se que, em que pese tal tendência

emancipatória, a realidade em sala de aula permanece segundo o viés tradicional.

Dessa forma, vale ressaltar, paralelamente às prescrições documentais, o

protagonismo que o livro didático assume no âmbito do ensino de LP. Quais são as

relações que podem ser identificadas entre o uso de determinados livros didáticos e a

consciência, ou alienação, frente às questões étnico-raciais? Os livros atendem,

efetivamente, aos propósitos preconizados pelas políticas de igualdade racial? Tais

questionamentos, sem dúvida, são fundamentais frente ao objetivo central desta

pesquisa.

Sendo assim, o propósito deste capítulo é analisar as relações dialógicas

(BAKHTIN, 1997b) entre as proposições de enfrentamento ao racismo (oriundas dos

documentos oficiais, conforme apresentadas no capítulo 3) e os livros didáticos de

Língua Portuguesa (LD), tendo como foco específico os gêneros do discurso

identificados em livros adotados pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia Fluminense (IFF).

Tal objetivo se justifica por algumas razões. Como não seria possível, tendo em

vista as limitações de tempo implicadas nesta pesquisa, analisar todos os livros didáticos

aprovados no último Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – cujo edital foi

divulgado em 2012 – foi necessário fazer um recorte específico.

Portanto, dentre os vários livros didáticos aprovados pelo PNLD 2012, os livros

analisados serão circunscritos aos adotados no Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia Fluminense (IFF), instituição onde atuo desde 2012. Serão livros do Ensino

Médio, segmento em que atuo, de Língua Portuguesa e Literatura, disciplina que

ministro, com foco nas questões étnico-raciais que emergem dos livros.

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A opção pelos gêneros do discurso também decorreu das contingências

limitadoras da pesquisa. Como não seria possível apresentar aqui, em totalidade, o

resultado da análise de todos os livros adotados em todos os campi do IFF, levou-se em

consideração o fato de que os documentos oficiais prescrevem que o ensino de língua

materna priorize o trabalho com os gêneros do discurso. Por isso, tendo como ênfase, no

que diz respeito às relações étnico-raciais e o ensino de Língua Portuguesa, o “gênero

do discurso”, foram selecionados nove exemplos representativos, sendo cada um desses

exemplos correspondente a um gênero do discurso diferente.

4.1 Procedimentos metodológicos

A metodologia utilizada para a análise seguiu uma série de procedimentos. A

delimitação e identificação dos livros adotados pelo IFF demandou uma pesquisa de

campo, porque cada um dos quatorze campi desse instituto tem autonomia para escolher

a coleção a ser adotada. Aspecto que, inclusive, explicita a variedade de livros

encontrada. No caso específico deste levantamento, vale mencionar que a escolha feita

em 2014, pela equipe de Língua Portuguesa de cada campus, definiu os livros a serem

adotados de 2015 a 2017.

As informações foram obtidas mediante consulta ao portal do IFF

(www.iff.edu.br) e via telefone, por meio de ligações para a diretoria de ensino de cada

campus, que colaborou com a presente pesquisa. A tabela 1, portanto, apresenta todos

os campi do instituto, com as respectivas coleções escolhidas e já em uso, ou, no caso

de novos campi, sem adoção de livros.

Campus – IFF Coleção de livro

didático adotada,

com título, editora

e autor(es)

Observações

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Bom Jesus de

Itabapoana

Português:

contexto,

interlocução e

sentido. Moderna.

Maria Luiza M.

Abaurre, Maria

Bernadete M.

Abaurre e Marcela

Pontara

---

Cabo Frio Português:

contexto,

interlocução e

sentido. Moderna.

Maria Luiza M.

Abaurre, Maria

Bernadete M.

Abaurre e Marcela

Pontara.

---

Cambuci ---- Não possui cursos

de nível médio.

Campos – Centro Português:

contexto,

interlocução e

sentido. Moderna.

Maria Luiza M.

Abaurre, Maria

Bernadete M.

Abaurre e Marcela

Pontara.

Professores

informaram que

nem todos utilizam

a coleção. Alguns

professores

produzem o próprio

material.

Campos – Guarus Novas Palavras.

FTD. Emília

Amaral, Mauro

Ferreira, Ricardo

Leite e Severino

Antônio.

---

Centro de

Referência

---- Não possui cursos

de nível médio.

Itaboraí ---- O campus não está

em funcionamento.

Itaperuna Português:

contexto,

interlocução e

sentido. Moderna.

Maria Luiza M.

Abaurre, Maria

Bernadete M.

Abaurre e Marcela

Pontara.

---

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Macaé Ser protagonista.

Edições SM. Obra

coletiva.

Professores

informaram que

nem todos utilizam

a coleção. Alguns

professores

produzem o próprio

material.

Maricá ---- Não possui livro

didático. Campus

inaugurado no

início de 2015, após

o período de

escolha.

Quissamã Língua Portuguesa.

Positivo. Roberta

Hernandes e Vima

Lia Martin

---

Rio Paraíba do Sul ---- Não possui cursos

de nível médio.

São João da Barra ---- Não possui livro

didático. Campus

inaugurado no

início de 2015, após

o período de

escolha.

Santo Antônio de

Pádua

----- Campus inaugurado

em outubro de

2015. Não possui

livro didático. Tabela 1: Livros adotados pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF)

Verifica-se, portanto, que, no âmbito do IFF, há quatro coleções de livros

didáticos diferentes a serem analisadas (vide tabela 2). Cada coleção é composta por três

volumes, cada um correspondendo a um ano do Ensino Médio, com cerca de 400

páginas por volume. Então, ao todo, doze livros serão analisados. Vale a pena dizer

ainda que todas essas coleções encontram-se no ranking disponibilizado no site do MEC

entre as coleções mais solicitadas em todo o Brasil.

Título da coleção Quantidade distribuída da coleção

Português: contexto, interlocução e

sentido.

1.107.291

Novas Palavras 924.597

Ser protagonista 608.356

Língua Portuguesa – Editora Positivo 235.628

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Tabela 2: Ranking das quatro coleções de livros didáticos adotadas no IFF. Fonte: Site do FNDE. Disponível em

<http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/guias-do-pnld/item/2988-guia-pnld-2012-ensino-m%C3%A9dio>.

Acesso em 22 dez. 2015.

Após a etapa de levantamento dos livros do IFF, seguiu-se outra, na qual uma

leitura panorâmica das coleções identificou os gêneros do discurso que seriam

efetivamente analisados. Nessa seleção, conforme referenciado no capítulo 2, levou-se

em consideração a proposição bakhtiniana (BAKHTIN, 1997), de que o trabalho, a

partir dos gêneros do discurso, proporciona maior aproximação da língua com a vida, já

que no momento em que o aluno percebe certos aspectos do gênero, consegue utilizá-lo

no cotidiano de maneira eficiente. O ensino da língua por um viés discursivo, e não

puramente gramatical, permite reflexões por parte dos discentes, que passam a não mais

decorar regras e nomenclaturas que muitas vezes costumam ser esquecidas.

Sendo assim, foram elencados nove gêneros discursivos retirados dos doze livros

adotados no IFF. E já que o próprio livro didático pode ser considerado um gênero do

discurso secundário (BAKHTIN, 1997a), composto por outros gêneros, é conveniente

retomar alguns elementos conceituais apresentados anteriormente. Principalmente

porque a análise apresentada neste capítulo pressupõe o fato que há enunciados que

estão inseridos em um dado gênero do discurso. Gêneros do discurso esses, aliás, que

são elaborados processualmente em um determinado contexto sócio-histórico. O que

implica dizer ainda que cada gênero em estudo, ao utilizar o livro didático como

suporte, comporta-se de maneira diferenciada, já que esse tipo de material, na

contemporaneidade, é multimodal16

, o que interfere na estabilidade do gênero, sempre

relativa.

A tabela 3 sistematiza o material submetido à análise dialógica, tendo sido

selecionados os seguintes gêneros: exercício, anúncio, reportagem, romance, exposição

dos conteúdos, pintura, ilustração, cartum e fotografia.

16 Multimodal está sendo empregado aqui como sendo o material que une vários elementos semióticos,

verbais e não-verbais, muito frequente nos LD hoje, já que na contemporaneidade o uso maciço de

imagens ganha cada vez mais espaço. Assim, os LD procuram conectar imagens e textos verbais para

tentar explorar mais os sentidos que podem ser atribuídos aos textos, aproximando-se, assim, da

linguagem cibernética com a qual os discentes estão acostumados.

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Gênero Coleção de LD selecionada

Exercício Português: contexto, interlocução e

sentido.

Anúncio Português: contexto, interlocução e

sentido.

Reportagem Português: contexto, interlocução e

sentido.

Romance Português: contexto, interlocução e

sentido.

Exposição de conteúdos Ser protagonista

Pintura Ser Protagonista

Ilustração Português: contexto, interlocução e

sentido.

Cartum Novas Palavras

Fotografia Português: contexto, interlocução e

sentido. Tabela 3: Sistematização dos gêneros selecionados e das respectivas coleções didáticas de onde foram retirados.

4.2 - Análise dialógica

Primeiramente, serão feitos comentários descritivos sobre cada gênero. Depois,

será apresentada uma amostra exemplificando o gênero, retirada de algum dos livros, e,

por fim, será feita a análise17

.

4.2.1 O gênero “Exercício”

Frequente em todos os livros didáticos de todos os componentes curriculares, o

gênero exercício é um instrumento usado para avaliar os discentes em relação aos

assuntos abordados. A palavra exercício é relacionada a exercitar, treinar, o que reforça

a importância do saber enciclopédico, tão valorizado no ensino tradicional. Os

exercícios propostos pelos livros de LP geralmente são compostos por perguntas que

17 Alguns dos gêneros aqui apresentados foram discutidos no laboratório dialógico da disciplina

Identidades étnico-raciais, práticas discursivas e dialogismo, oferecida no terceiro trimestre do ano de

2015, pelo prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro. Essa disciplina compõe o quadro de disciplinas

oferecidas pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. Nesta

experiência, atuei em estágio docente, e contei com a participação dos seguintes discentes: Aleksandra

Stambowisky, Eneida de Oliveira, Enivan Gomes, Geovani Barbosa, João Paulo Carneiro, Mirian Alves,

Monique Ferreira, Samantha de Oliveira, Tatiana Rosa e Tulani Pereira.

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levam os alunos a localizarem determinadas informações nos textos, ou então testam se

o aluno memorizou determinados conceitos e se consegue aplicá-los. As questões

geralmente não estão relacionadas ao cotidiano do aluno e propõem pouca ou nenhuma

reflexão. Quando propõem reflexões, são muitas vezes superficiais.

O exemplo abaixo, extraído da coleção Português: contexto, interlocução e

sentido, volume 1, capítulo 3 – Literatura é gênero I: o épico e o lírico, serve para

exemplificar o gênero exercício.

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Primeiramente, o aluno deve ler e analisar o texto proposto, para em seguida

responder às questões. No exemplo acima, o poema de Maya Angelou não é

apresentado na íntegra – mesmo não sendo tão longo, trechos foram suprimidos. É uma

tradução, o que empobrece os sentidos primeiramente atribuídos em outro idioma, o que

deve ser levado em conta em se tratando do ensino de língua portuguesa. O livro

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didático já menciona o assunto do texto em forma de subtítulo – o preconceito racial –,

impedindo que o aluno chegue a essa conclusão sozinho.

É interessante o fato de o livro trazer a foto da autora, uma mulher negra e

reconhecida, no entanto é uma autora americana, o que pode levar o aluno a pensar que

ela só conseguiu o reconhecimento por ser americana, promovendo um esvaziamento do

debate racial no Brasil. Se fosse um poema de autoria de uma mulher negra brasileira

talvez a aproximação dos alunos fosse maior. O texto, sem dúvidas, é muito rico para se

problematizar questões raciais, mas caso o professor se restrinja aos exercícios, a

discussão será rasa ou até mesmo nula.

Pelo que se pode observar, as questões propostas levam o aluno a produzir

respostas limitadas ao universo do eu-lírico e ao texto verbal, em uma perspectiva

frasal, mecanicista. O universo do aluno e da sociedade que o rodeia, elementos tão

caros ao aporte bakhtiniano, não consta da reflexão proposta.

Outro problema identificado é o fato de se trabalhar com fragmentos do texto em

algumas questões, e não com a totalidade do sentido, o que pode levar a distorções.

Desta maneira, é possível perceber que a amostra em análise do gênero exercício pouco

contribui na emancipação do aluno, não leva em consideração sua bagagem histórica /

suas vivências e induz o aluno a responder às questões sem precisar de muita reflexão,

mesmo tendo o texto motivador grande potencial para isso.

O aluno poderia refletir sobre o negro na sociedade brasileira, e poderia também

ser convidado a contar sobre suas experiências, compartilhando saberes com os colegas

de classe e com o professor. Assim, poderia se identificar, se reconhecer e compreender

seu próprio discurso e o de outrem, para que toda a turma, coletivamente, entendesse a

questão do preconceito racial e colaborasse para a desconstrução desse problema.

4.2.2 O gênero “Anúncio”

No sistema capitalista, o anúncio é um importante instrumento para promover

maior venda de produtos e serviços. Esse gênero também é usado para dar mais

visibilidade a campanhas publicitárias, e geralmente é encontrado em jornais e revistas.

Possui um tom persuasivo, utiliza linguagem coloquial, clara, concisa e direta, e tenta se

aproximar de seu público, muitas vezes em forma de diálogo.

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Como os PCN e outros documentos oficiais prescrevem o trabalho com

diferentes gêneros discursivos no componente curricular de LP, os livros didáticos têm

se adaptado a isso. O gênero anúncio costuma mesclar textos verbais e não-verbais, e às

vezes agrega em si outros gêneros, podendo contribuir para o letramento visual, em que

o aluno passa a produzir sentido não só por meio dos textos verbais.

Abaixo, há um exemplo de um anúncio que agregou um outdoor em sua

composição. Está na coleção Português: contexto, interlocução e sentido, volume 1, e

faz parte do capítulo 15 – A construção do sentido. Esse capítulo tenta mostrar que os

sentidos só podem ser produzidos de acordo com o contexto. Observe.

À primeira vista, o anúncio pode parecer comprometido com causas político-

sociais, mostrando que a maior preocupação deveria ser cuidar dos moradores de rua, e

não eliminar os outdoors. Há, contudo, para um leitor pouco crítico, a construção de um

sentido que atravessa uma naturalização da posição do negro (no caso, da mulher negra)

na condição de morador de rua. Dessa forma, o alunado negro deixa de reconhecer

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positivamente sua identidade, associando o negro ao sujo, ao pobre, ao digno de pena,

passando a valorizar ainda mais a ideologia do branqueamento.

Continua sendo raro encontrar nos LD a imagem do negro relacionada à

felicidade, à beleza, à riqueza, o que mostra que a falta de representatividade do negro

continua existindo, mesmo com a lei 10.639/03 e as prescrições dos documentos oficiais

e do PNLD.

4.2.3 O gênero “Reportagem”

Gênero tipicamente jornalístico, a reportagem é comumente encontrada em

jornais, revistas e sites informativos. Seu principal objetivo é informar, e por isso

desempenha uma função social específica. Traz a assinatura de um jornalista, que por

vezes pode expressar seu ponto de vista. Possui uma relação dialógica com a notícia,

mas é um gênero independente, já que não se prende somente a acontecimentos

recentes, mas a temas de todas as épocas.

A reportagem a seguir foi retirada da coleção Português: contexto, interlocução e

sentido, volume 1, capítulo 23 – A interlocução e o contexto.

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Para muitos alunos do Ensino Médio, o que mais chamará a atenção nas páginas

do livro expostas acima serão as imagens, que representam negros de forma exótica. O

texto verbal reforça a ideia de que as pessoas das tribos da Etiópia são passivas e

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atrasadas, estigma que comumente é atribuído a tudo que é relacionado ao continente

africano.

Expressões como “práticas culturais inusitadas”, “tribos primitivas”, “grupos

indígenas”, “populações nativas”, “tribos de tradição pastoril” podem ser perigosas na

leitura do público de “leitores universais”, que pode ridicularizar e generalizar a

população da África, continente que ainda é percebido como se fosse um país. Tudo isso

mostra o caráter manipulador dos meios de comunicação, que comumente induzem ao

pensamento racista e excludente.

A reportagem, portanto, parece ter sido escolhida para cumprir a lei 10.639/03: o

texto fala sobre a África. O que incomoda, contudo, é a sempre limitada reafirmação do

exótico e supervalorização da concepção de mundo ocidental como parâmetro. Isso

mostra que, em vez de desconstruir o racismo, a reportagem pode contribuir para a

permanência dele, já que, mais uma vez, o aluno não quer se reconhecer como os negros

das imagens, ou com a passividade e o primitivismo dos negros da reportagem,

reafirmados na cena do documentário da BBC indicado.

4.2.4 O gênero “Romance”

O gênero romance caracteriza-se por ser uma narrativa densa, complexa,

composta geralmente por todos os elementos narrativos, como narrador, personagens,

momento(s) histórico(s), cenário(s), foco narrativo. Por sua extensão, geralmente longa,

quando abordado no livro didático, o romance aparece fragmentado. Ao mesmo tempo

em que tem seu sentido fragmentado, pode despertar (ou não) nos alunos o interesse

pela obra, buscando-a na internet ou na biblioteca escolar para a leitura na íntegra. Cabe

ao professor a colaboração para esse despertar do letramento literário, importante na

formação discente.

Abaixo há um exemplo de como o gênero romance aparece em um livro

didático, especificamente na coleção Português: contexto, interlocução e sentido,

volume 1, capítulo 13 – Oralidade e escrita.

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É surpreendente encontrar Carolina Maria de Jesus em um dos livros mais

adotados nas escolas brasileiras, já que antes não se via nos LD autoras como ela:

mulher, negra, favelada, marginalizada. Pode-se considerar isso, inicialmente, um

grande avanço, pois, como já foi dito em outro capítulo, o cânon literário é excludente e

composto em grande parte por homens, brancos, heterossexuais, cristãos.

A foto da autora escrevendo no box com sua biografia, repleta de histórias de

superação, também é bonito de se ver, contudo, ao analisarmos a maneira como o

romance é trabalhado no livro, a decepção emerge. O fato de a autora exteriorizar seu

mundo de privações, representando a voz de uma multidão sem voz, é irrelevante nesse

exemplo. O fragmento apresentado tem apenas dois parágrafos, e três questões

propostas, dentre as quatro, reforçam os “erros” gramaticais cometidos pela autora. Não

há discussão alguma sobre as questões raciais, nenhuma problematização sobre o que é

ser mulher, negra e favelada no Brasil, sobre o lugar de fala da autora, nem mesmo

estímulo algum para que o aluno leia a obra na íntegra. Pelo contrário, o aluno, após

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fazer os exercícios, poderá ridicularizar a autora e reforçar o racismo que já está em si

introjetado, pensando que a autora “não sabe escrever”, “é burra”, “é uma coitada”, e

“tinha que ser preta”.

O que se vê, portanto, é a reafirmação de valores eurocêntricos sobre a língua

portuguesa, sobre a ideia de cânon, e ainda uma abordagem que sistematiza

preconceitos de modo dissimulado em conteúdos supostamente educativos e

responsivos à lei 10.639/03. Mais uma vez, o exemplo mostra que os LD representam,

ainda, um cenário de continuidade do discurso racista, e não de ruptura.

4.2.5 O gênero “Exposição dos conteúdos”

O gênero “exposição de conteúdos” aparece em todos os livros didáticos. Para se

abordar qualquer assunto, os autores do livro introduzem o assunto, contextualizam-no,

explicam-no e costumam apresentar exemplos, ilustrações e exercícios.

O exemplo abaixo foi encontrado na coleção Ser Protagonista, volume 2,

capítulo 20 – O Simbolismo no Brasil.

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O título do tópico, como se pode observar acima, é “Cruz e Sousa: a tragédia da

existência”. Não fica evidente para o aluno, ao final da leitura da página, e até do

capítulo, por que “tragédia da existência”. Como foi mencionado na apresentação dessa

dissertação, Cruz e Sousa era um poeta negro, que se sentia “emparedado” devido a

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tudo que o negro sempre enfrentou em nossa sociedade. Lutou pela causa abolicionista,

o que também não é mencionado. Fala-se muito pouco da vida do poeta, tão rica e

importante para compreender sua obra. O livro apenas menciona que sofria preconceito

racial.

Apesar de o poeta ter várias poesias que problematizam as questões raciais,

aparecem, ao longo do capítulo, apenas duas de suas poesias, sobre sofrimento – uma

comentada (Braços), e a outra (O assinalado) com questões propostas para os alunos.

Tais questões são superficiais e descontextualizadas, o que parece menosprezar a

capacidade do aluno diante da complexidade dos textos simbolistas, além de evidenciar

que o capítulo explora mais os recursos estilísticos dos poemas. Além de tudo isso,

aparece na página acima uma pintura de pessoas brancas, de um artista alemão, que

nada tem a ver com Cruz e Sousa. Vale mencionar ainda que, no fim da página, há um

longo glossário, reforçando que o poeta “escrevia difícil”, e trazendo ao aluno a ideia de

que o verdadeiro sentido do texto encontra-se no sentido dicionarizado das palavras

isoladas.

Voltando à questão racial, um aluno negro, por exemplo, em vez de se sentir

autoconfiante por termos na nossa literatura um poeta negro de tanto destaque, pode se

sentir menosprezado, pois um dos únicos autores negros que compõe o cânon

apresentado no livro ganha o título já exposto acima – tragédia da existência.

4.2.6 O gênero “Pintura”

Em cada época, a pintura desempenhou funções diferentes. Como manifestação

artístico-cultural, sua presença nos livros didáticos é muito importante para que o aluno

possa se abrir ao mundo das artes. Além disso, a pintura pode ilustrar e contextualizar

os conteúdos que são abordados nos livros.

Um problema que é facilmente identificado nos livros é o fato de os pintores

selecionados para contribuir nas coleções didáticas serem maciçamente europeus18

, o

18 Verificar que isso também ocorre no exemplo do item 4.2.5.

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que demostra o apego pela cultura europeia e o desprezo por outras, como a africana por

exemplo.

Abaixo há um recorte de uma pintura (e sua legenda) retirada da coleção Ser

protagonista, Volume 2, Capítulo 3 – O Romantismo no Brasil.

A pintura O jantar no Brasil, do francês Jean-Baptiste Debret, representa bem o

mito da democracia racial – brancos e negros convivendo pacificamente à mesa do

jantar. A obra transmite uma ideia de harmonia e passividade, mas, por outro lado, é

possível observar as crianças negras, nuas, pegando restos de comida, como se fossem

animais domésticos (ABRAMOWICZ et al, 2011).

Em um período em que havia uma preocupação com a formação de uma

identidade nacional, a divulgação dessas imagens colaborava com a ideia de “civilizar”

o negro escravizado e mostrar a “superioridade” da raça branca. Hoje, a presença desse

tipo de pintura nos livros didáticos continua naturalizando tanto o mito da democracia

racial como também a superioridade dos padrões europeus. O capítulo do livro não traz

o assunto para o cotidiano do aluno, não problematiza as questões raciais, e mais uma

vez o aluno negro se vê representado no livro como um ser inferior.

4.2.7 O gênero “Ilustração”

A ilustração é um recurso muito atrativo para alunos, que acostumados com as

novas tecnologias, prendem-se mais às imagens que aos textos verbais. A ilustração

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pode complementar o sentido do texto verbal, dizê-lo de uma forma mais lúdica, ou

pode servir apenas para compor harmonicamente a página do livro.

O exemplo abaixo foi extraído de Português: contexto, interlocução e sentido,

volume 1, capítulo 17 – Recursos estilísticos: figuras de linguagem.

Como se vê, há uma ilustração de Eloar Guazzelli que deveria estar relacionada

ao trecho da poesia Vozes d’África, de Castro Alves. Ao observarmos, contudo, essa

ilustração, é possível perceber que a imagem não dialoga de fato com o texto, e é

meramente ilustrativa, talvez para compor um espaço ocioso na diagramação do livro.

Enquanto o poema fala da dor e da indignação do africano escravizado, a imagem

mostra um homem branco de classe média, com roupas contemporâneas, em uma

posição comumente usada para adoração ao Deus cristão em igrejas neopentecostais.

Nesse exemplo, pode-se ver a preocupação do livro em ensinar e sistematizar o

conteúdo “Apóstrofe”, e o texto de Castro Alves também é meramente ilustrativo. A

capacidade leitora do aluno não é acionada, nem em relação ao texto verbal, nem

relação ao não verbal, o que reforça um ensino tradicional / conteudista da língua

materna.

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4.2.8 O gênero “Cartum”

O cartum é um gênero humorístico, que costuma aparecer em jornais impressos

ou online. Surge depois da charge e, como ela, é uma derivação da caricatura. Tem por

objetivo estabelecer uma crítica, com caráter atemporal (ROCHA, 2011). Costuma usar

a linguagem não verbal combinada com a verbal. Seus personagens costumam ser

pessoas comuns.

O exemplo abaixo foi extraído da coleção Novas Palavras, volume 2, capítulo 8

– Sintaxe da oração: termos associados a nomes; vocativo.

Esse exemplo, inserido na parte do capítulo que explica o termo da oração

“Vocativo”, mostra, mais uma vez, a preocupação conteudista do ensino de LP. Abaixo

da imagem, há a explicação do termo “tia”, que no cartum funciona como vocativo.

Novamente, é possível ver a imagem do negro de modo inferiorizado. O menino da

imagem, que quer ser cidadão, é negro, pobre, e está descalço, marcando sua posição

social. A imagem é estereotipada, caricatural: o menino tem lábios grandes e vermelhos,

a cabeça é desproporcional em relação ao corpo.

Tudo isso corrobora o racismo e naturaliza-o, em vez de desconstrui-lo. O aluno

negro não se vê na mídia; no livro, é sempre inferiorizado; logo não quer ser negro, pois

não consegue construir uma identidade negra positiva sobre si mesmo. Como já foi dito,

a representatividade é muito importante para a autoestima e a autoconfiança do alunado

negro.

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4.2.9 O gênero “Fotografia”

O gênero fotografia é muito comum nos livros didáticos. Mais que os outros

gêneros ilustrativos (como ilustração, pintura, cartum etc), possui um grande valor de

verdade, já que a fotografia representa um recorte de uma realidade que aconteceu em

tempo e espaço reais. O exemplo abaixo foi extraído da coleção Português: contexto,

interlocução e sentido, volume 2, capítulo 8 – Realismo.

Esta fotografia está inserida na página 139, em que se fala sobre Machado de

Assis e o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Nessa página, aparece um

trecho do romance em que o protagonista conta um episódio de sua infância, quando,

muito travesso e com apenas seis anos de idade, maltratava os escravos de sua casa. Ao

ler o trecho, o leitor fica indignado com o que e menino fazia, afinal, Machado de Assis

tinha um estilo peculiar, irônico, sarcástico, que inseria o leitor na narrativa. Esse autor,

contrariamente ao que alguns dizem, criticava o sistema escravista, o racismo e as

desigualdades sociais.

No livro didático, contudo, quando colocam uma fotografia como esta ao lado

do texto machadiano, esvaziam-se os sentidos do texto verbal e naturalizam a posição

social inferior do negro. Na legenda, lê-se “[...] muito pouco havia mudado na sociedade

brasileira”. E hoje? Será que muita coisa mudou? Ou será que, na hora da aula, ao ver

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esta fotografia, a babá da foto será ridicularizada e comparada às meninas negras da sala

de aula?

4.3 Considerações sobre os livros didáticos de Língua Portuguesa

O objetivo deste capítulo foi o de analisar as relações dialógicas entre as

proposições educacionais dos documentos oficiais sobre enfrentamento ao racismo e os

livros didáticos de Língua Portuguesa adotados pelo Instituto Federal de Educação,

Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), aprovados pelo último PNLD, de 2012.

Dentre as quatro coleções analisadas, a que teve mais exemplos selecionados foi

“Português: contexto, interlocução e sentido”. Isso se justifica porque, além de ser a

coleção utilizada por mais alunos matriculados no IFF, escolhida pelos campi com mais

alunos, é a coleção que, dentro dos critérios relacionados à questão étnico-racial, mais

precisa de mudanças. Ainda haveria muitos outros exemplos que poderiam ter sido aqui

expostos e analisados, o que não foi feito pelas limitações de tempo para a realização

desta pesquisa.

Nas coleções “Novas palavras” e “Ser Protagonista” também foram encontrados

diversos exemplos que reforçam e / ou naturalizam o racismo, mas, por serem menos

numerosos que na coleção “Português: contexto, interlocução e sentido”, foram também

menos expostos aqui. A coleção “Língua Portuguesa”, da editora Positivo, adotada

exclusivamente no campus Quissamã, não apresentou, no entanto, exemplos de

reificação do racismo. Essa coleção é, sem dúvida, dentre as coleções analisadas, a que

mais atende às demandas dos documentos oficiais e das leis 10.639/03 e 11.645/08.

O que se verificou, com foco específico em gêneros do discurso, foi que as

identidades étnico-raciais são representadas de forma inadequada em muitos materiais

para o Ensino Médio. Os gêneros aludidos neste capítulo permitiram evidenciar um

racismo naturalizado, estruturado de modo estereotipado e caricatural. Tal constatação,

por sua vez, indica a relevância de análises como esta, razão pela qual a realização de

outros estudos similares permitirá o adensamento de uma crítica que implique, de fato,

numa mudança de escopo dos livros didáticos e adesão real e efetiva às proposições

educacionais de enfrentamento ao racismo.

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Outra questão que também não pode ser silenciada é o fato de nenhum exemplo

selecionado estar relacionado a questões indígenas. Infelizmente, praticamente nada se

encontra nos livros didáticos sobre as mais de duzentas línguas indígenas que são

faladas no Brasil contemporâneo. Pouquíssimo se fala sobre as constantes lutas que as

mais de trezentas etnias indígenas enfrentam a cada dia. A literatura indígena também

não tem destaque. Nos livros, os indígenas geralmente aparecem em gravuras do século

XIX, no capítulo do Romantismo no Brasil. Sempre integrados à natureza, é reservada

ao indígena uma identidade fixa e presa ao passado. É como se as populações indígenas

não existissem, e isso porque no Brasil há quase um milhão de indígenas19

. Ser indígena

no Brasil, de acordo com o que se vê nos LD, é estar nu passeando na floresta. Para o

aluno do Ensino Médio, não se pode imaginar que, no Brasil, muitas vezes nem tão

distante dele, há indígenas de todas as idades, que, como ele, muitas vezes utilizam

computador e celular, e estão conectados às redes sociais. São seres humanos como

todos os seres humanos.

E apesar de um cenário tão preocupante, não se pode deixar de acreditar que

mudanças são possíveis, sim. O edital do PNLD 2018, por exemplo, já se encontra

disponível na internet20

. Assim como o edital de 2012, exige respeito à legislação, e

inclui todas as leis e pareceres sobre a educação das relações étnico-raciais. Mesmo com

todos os avanços, nos próprios livros, no PNLD e nos documentos oficiais, é possível

observar que, nos livros didáticos de Língua Portuguesa, ainda há reforço de

estereótipos, racismo e predomínio da cultura hegemônica e da população branca em

situação privilegiada. Mesmo assim, a partir dos novos estudos sobre os livros didáticos

e as relações étnico-raciais, é possível ter esperança de que novos materiais serão

produzidos para dar um novo rumo à educação, que certamente renderá como frutos

cidadãos conscientes e respeitadores do pertencimento étnico-racial, de si e da

sociedade que os cerca.

19 As informações do parágrafo foram encontradas no site da FUNAI. Disponível em

http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao> Acesso em 18 fev. 2016. 20

http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-editais/item/7932-pnld-2018

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5 DERRUBANDO PAREDES: POR UM NOVO ENSINO DE

LÍNGUA PORTUGUESA

O objetivo deste capítulo consiste em propor um livro paradidático que

corresponda tanto às demandas das leis e documentos analisados no capítulo 3, quanto à

superação dos problemas identificados na análise dos livros didáticos feita no capítulo

4. Nesse sentido, não se trata apenas de propor um texto genérico para a elaboração de

um livro paradidático, mas pretende-se fazê-lo em consonância com os resultados das

análises acadêmicas apresentadas até agora.

Sendo assim, o material proposto neste capítulo mantém aderência efetiva com

as conclusões da pesquisa empreendida como cumprimento das exigências do programa

de mestrado e, além disso, busca configurar um produto didático engajado ao

enfrentamento do racismo no Brasil. O título do livro, portanto, é o mesmo deste

capítulo, já que também deriva dessa pesquisa.

Quanto à forma, é importante ressaltar que os tópicos a seguir seguem a

normatização exigida para uma dissertação, mas a numeração dos sub-tópicos do

capítulo receberá outro tratamento quando da edição do texto em formato de livro. No

que diz respeito à linguagem usada, vale lembrar, os tópicos do capítulo guardam

semelhança com o tom informal empregado em livros paradidáticos voltados para o

Ensino Médio. Ou seja, busca-se a interlocução direta com o aluno-leitor.

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5.1 O livro em seus elementos introdutórios

Imagem da capa. Ilustração de Letícia Soares.

5.1.1 Apresentação

Este livro surgiu a partir da minha pesquisa de mestrado no Programa de Pós-

Graduação em Relações Étnico-raciais, no CEFET/RJ, que se iniciou em maio de 2014.

Nesse mesmo ano, apresentei o trabalho “Caminhos a serem entrosados: a lei 10639/03,

o livro didático de literatura e a prática pedagógica” na Universidade Federal do

Espírito Santo, no II Congresso Nacional Africanidades e Brasilidades. Esse trabalho foi

publicado em forma de artigo em 2015, e parte dele inspirou os capítulos deste livro que

tratam dos gêneros pesquisa, conto e romance. O capítulo que trata do gênero receita

também teve uma inspiração peculiar: partiu de um capítulo do livro “Com o Machado

na mão”, ainda não publicado, que escrevi em coautoria com meu orientador, Alexandre

de Carvalho Castro.

Em minha pesquisa, verifiquei que muitos livros didáticos aprovados pelo

Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que seleciona as obras que podem ser

adotadas nas escolas, não dão conta de superar um ensino tradicional de língua

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portuguesa. Além disso, não atendem totalmente às prescrições dos documentos oficiais

que norteiam a educação no Brasil, os quais incentivam a educação cidadã, a formação

de leitores críticos e escritores competentes, e, sobretudo, pretendem promover a

desconstrução do racismo e das desigualdades sociais. Assim, o objetivo deste material

didático é propor um novo tipo de ensino de língua portuguesa, que parte dos gêneros

do discurso e pretende trazer reflexões sobre as relações étnico-raciais.

O livro foi escrito em uma linguagem coloquial, pensando nos alunos de Ensino

Médio, para atingir alunos e alunas e formá-los para o letramento racial. A ideia é

incentivar a leitura e a escrita, passando pelo trabalho com gêneros. Trarei muitos textos

na íntegra, não para “cansar” os discentes, mas para mostrá-los que ler pode ser

prazeroso. Além disso, acredito que a leitura de fragmentos geralmente prejudica a

compreensão dos sentidos possíveis que os textos podem oferecer. No Ensino Médio, o

mais importante é que o aluno leia criticamente e escreva bem, e assim defendemos a

educação linguística e cidadã.

5.1.2 Um recadinho para estudantes

Caros alunos e alunas, este livro poderá ajudá-los a perceber que a língua

portuguesa é viva e dinâmica, e que existem muitas formas de utilizá-la: de maneira

formal ou informal, por exemplo, de acordo com o gênero do discurso que é exigido

pelo contexto. Por falar nisso, vocês sabem o que são gêneros do discurso?

Quando falamos, devemos sempre adaptar nossa linguagem. Se falamos em uma

entrevista de emprego, precisamos ser mais formais e evitar as gírias. Se conversamos

com amigos em uma festa de aniversário, as gírias são bem-vindas. Isso significa dizer

que cada contexto exige um nível de formalidade no uso da língua, e até mesmo da

linguagem como um todo, como a linguagem corporal, que envolve a nossa postura

perante as pessoas que nos cercam e o nosso comportamento com elas. No caso dos

textos escritos, isso também ocorre. Um texto enviado por aplicativos de celular que

enviam mensagens de modo instantâneo não exigem formalidade na escrita, diferente de

um texto de uma lei, que utiliza linguagem específica e formal.

Os gêneros do discurso, portanto, são essas modalidades da fala e da escrita,

cheios de especificidades. Cada gênero conta com certos elementos que fazem dele um

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gênero! Hoje em dia, muitos estudos apontam que o ensino de língua portuguesa deve

partir do ensino dos gêneros. Sendo assim, neste livro, serão apresentados a vocês

alguns deles. Espera-se que compreendam os gêneros e saibam utilizá-los da melhor

maneira possível. Nada é tão simples, mas, se vocês se dedicarem, conseguirão superar

algumas dificuldades que a escrita nos impõe, muitas vezes pelo desconhecimento do

gênero que deve ser escrito. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), por

exemplo, exige uma linguagem formal na redação, e se você se esquecer disso pode ter

problemas com quem irá corrigir seu material.

Além de tudo isso, é importante dizer que todo este livro terá uma mesma

temática, que envolve questões étnico-raciais. Esse tema foi escolhido a partir da

percepção de que os livros didáticos de língua portuguesa omitem o fato de o Brasil ser

um país racista, e, contrariamente do que deveriam ensinar, não incentivam o combate

ao racismo e a construção de uma sociedade que tenha igualdade racial. Em nosso país,

ainda vemos que a maioria dos cargos profissionais mais bem remunerados não são

ocupados por negros e indígenas, e não é porque eles não querem, não! É porque há

paredes sociais que os impedem de chegar lá. Discutiremos mais sobre isso nas páginas

a seguir, e depois vocês poderão aprofundar a reflexão sobre esse assunto.

Para terminar este recadinho, é preciso lembrar que escrever é prática. Derrubem

as paredes que os bloqueiam na hora de escrever e, principalmente, na hora de pensar!

Vamos praticar?

5.1.3 Recado para docentes

Este livro poderá ser usado em sala de aula de modo a complementar o livro

didático. Essa complementação se faz necessária visto que, ao serem analisados livros

didáticos de língua portuguesa (LD) para Ensino Médio, foi possível perceber que eles

não contemplam adequadamente as proposições das leis 10639/03 e 11645/08, que

alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Também não

contemplam, ou contemplam superficialmente, as recomendações de outros documentos

oficiais – o Plano Nacional da Educação, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio, as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, as

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Orientações Curriculares para o Ensino Médio e até a Base Nacional Comum Curricular

(ainda em trâmite, na época da pesquisa original).

Todos esses documentos oficiais estimulam um ensino voltado para a cidadania,

e defendem a valorização da diversidade e o combate ao racismo e às desigualdades

sociais. Além disso, preconizam o ensino de língua portuguesa por meio dos gêneros do

discurso. Nos livros didáticos analisados, contudo, predomina, ainda, um ensino

tradicional da gramática, muitas vezes descontextualizado. Esses livros não valorizam

as culturas afro-brasileiras e indígenas, provocando um apagamento de identidades

étnico-raciais, ou reforçando estereótipos.

Como resposta às lacunas identificadas nas análises dos LD, este livro propõe

um ensino mais emancipador, que pretende colaborar na desconstrução do racismo e,

ainda, propor um ensino de língua portuguesa por meio do estudo dos gêneros do

discurso. Este material pretende estimular a leitura e a produção textual. Os docentes

que se dispuserem a utilizar este livro poderão auxiliar os discentes a cumprir as tarefas

propostas, acompanhando-os, avaliando-os, aprofundando as reflexões propostas pelos

textos e mediando o trabalho que eles desenvolverem.

A avaliação consiste em verificar se os discentes produziram os textos de acordo

com o que foi pedido, cumprindo todas as exigências que o gênero impõe – o nível de

formalidade da língua, as peculiaridades do gênero e a proposta de enfrentamento ao

racismo. Caso o aluno ou a aluna deixe lacunas na atividade realizada, o docente poderá

mostrar quais foram e pedir que o trabalho seja refeito. É recomendável pedir que as

atividades sejam feitas em um caderno ou em folhas à parte, para que o livro possa ser

reutilizado por outros estudantes.

Gostaria de explicar, ainda, que a palavra “pesquisa” pode designar tanto o

processo de pesquisar como o produto textual da pesquisa, o texto propriamente dito.

No capítulo em que trabalhamos a pesquisa, estamos pedindo aos discentes a produção

de um texto, o produto da pesquisa que terão feito, o que é pertinente para o Ensino

Médio. Consideramos esse texto final como um gênero do discurso pelas

especificidades que serão exigidas.

Em relação ao que chamamos neste livro de “Gênero Textos Literários”, vale

ressaltar que esse assunto merece destaque nas aulas deste segmento educacional, pois a

noção do que é texto literário ou não é importante para os estudantes do Ensino Médio,

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que ainda estão dando seus primeiros passos nos estudos de Literatura. Não é uma

noção rígida, que não possa ser flexibilizada posteriormente, mas acreditamos que esse

capítulo do livro pode contribuir para uma sistematização dessa noção.

Com este livro, espero ser uma das contribuições para uma nova era do ensino

de língua portuguesa – que acompanhe as transformações sociais, que combata o

racismo, que valorize a diversidade, que forme cidadãos proativos. E que, somado a

tudo isso, o ensino de língua portuguesa possa estimular a reflexão, formar leitores

críticos e escritores competentes.

5.2 Os capítulos do livro

5.2.1 O gênero BIOGRAFIA

Ilustração de Letícia Soares

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Que gênero é esse?

A palavra BIO-GRAFIA quer dizer “escrita da vida”. Sendo assim, a biografia

conta a história de alguém. Os textos biográficos podem ser curtos ou longos, de acordo

com o desejo de quem os escreve ou com o número de informações que se tem sobre o

biografado. O fato é que toda essa história de biografia hoje em dia gera a maior

polêmica, porque tem gente escrevendo sobre a vida de outras pessoas sem a

autorização delas, ou, quando já morreram, sem a autorização da família. Sem falar que

as biografias nem sempre são tão verídicas, e isso dá “pano pra manga”!

Há, contudo, pesquisas muito sérias que investigam a fundo sobre a vida de

personalidades importantes. Isso é muito legal, porque lendo a biografia de algumas

pessoas podemos entender aspectos históricos que perpassaram a vida delas e

influenciaram a sociedade de uma determinada época.

Os elementos básicos que encontramos nas biografias são: o nome completo do

biografado, a cidade onde nasceu e morreu (para o caso de biografados mortos), a

trajetória de vida (pessoal e/ ou profissional), e todos os outros fatos relevantes que

ocorreram na vida pessoa.

João da Cruz e Sousa, por exemplo, é muito pesquisado por estudiosos da

literatura, da história e das relações étnico-raciais. Ele foi um poeta negro do século

XIX que brilhantemente lutou pelo fim da escravidão e pela igualdade racial. Muito

esperto e estrategista, aprendeu a estética Simbolista, que na época era “coisa de gente

branca”, e por meio dos textos simbolistas que passou a escrever denunciava o racismo

que sofria na pele. E ele só conseguiu isso porque uma família branca deu a ele a

oportunidade de estudar, o que evidencia que não é só o esforço que nos permite

alcançar certas vitórias, mas também as oportunidades que nos são dadas! (Aproveite a

oportunidade de estar com esse livro em suas mãos!).

E aí o Cruz e Sousa estudou, e escreveu muitos textos que são faróis para

enxergarmos o racismo, que muitas vezes parece que não existe. Inclusive ele escreveu

um livro chamado “Faróis”, publicado somente depois de sua morte, cheio de poesias

bonitas que valorizavam a cultura negra, como em seus versos decassílabos da poesia

“Cabelos”: “Cabelos! Quantas sensações ao vê-los! / [...]/ Auréola negra, majestosa,

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ondeada[...]”. Quanta ignorância quem diz que cabelo crespo é ruim! Ruim é o

preconceito!

Vale a pena se dedicar na leitura dos poemas de Cruz e Sousa, depois de ler

sobre sua vida. Vai ser bem mais fácil de entender! Ele foi um poeta que se sentia

emparedado por ser negro, como ele mesmo disse em seu poema “Emparedado”, em

uma sociedade em que o negro não tinha vez, não tinha voz. Ainda bem que podemos

estudar e colaborar para desconstruir essa ideia, que inacreditavelmente ainda existe em

pleno século XXI. Infelizmente, a maioria dos livros didáticos de língua portuguesa e

literatura do Ensino Médio não falam nada disso sobre esse poeta tão singular, que nos

deixou um enorme legado, e só apresentam textos dele muito difíceis, que afastam os

alunos e alunas da leitura. Será que isso é uma estratégia para não valorizar esse autor

negro e contribuir para a manutenção do racismo? É bom ganhar uns minutos pensando

nisso...

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do

Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando,

acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro

emparedado de uma raça.

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede

horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a

esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te

mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede,

feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto!

Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo,

fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio

espasmo de terror absoluto...

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras,

mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades...

Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras,

terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para

sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho... (Fragmento de “Emparedado”, de Cruz e Sousa. Disponível em

<http://manoelneves.com/2011/02/13/emparedado-de-cruz-e-sousa/#.VsJGGfkrLIU> Acesso em 15 fev. 2016)

Um exemplo de biografia

João da Cruz e Sousa, que tinha o apelido de Dante Negro e Cisne Negro, foi um

dos principais precursores do simbolismo no Brasil. Ele nasceu na cidade de

Florianópolis (que naquela época se chamava “Nossa Senhora do Desterro”), em 24 de

novembro de 1861.

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Esse poeta brasileiro era filho dos negros alforriados Guilherme da Cruz, mestre-

pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, mas conseguiu ascender socialmente porque

desde pequeno recebeu a tutela e uma educação refinada de seu ex-senhor, o Marechal

Guilherme Xavier de Sousa – de quem adotou o nome de família, Sousa. A esposa de

Guilherme Xavier de Sousa, Dona Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, não tinha filhos,

e passou a proteger e cuidar da educação de João. Assim, o filho de escravos aprendeu

francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão Fritz Müller, com quem

aprendeu Matemática e Ciências Naturais.

Em 1881, dirigiu o Jornal Tribuna Popular, no qual combateu a escravidão e o

preconceito racial. Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em

1885 lançou o primeiro livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea.

Cinco anos depois foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada

de Ferro Central do Brasil, colaborando também com o jornal Folha Popular. Em

fevereiro de 1893, publica Missal (prosa poética baudelairiana) e em agosto, Broquéis

(poesia), dando início ao Simbolismo no Brasil que se estende até 1922. Em novembro

desse mesmo ano casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, com quem teve

quatro filhos, todos mortos prematuramente por tuberculose, fator que, segundo alguns

intérpretes, levou-o à loucura.

Cruz e Sousa faleceu a 19 de março de 1898 no município mineiro de Antônio

Carlos, num povoado chamado Estação do Sítio, para onde fora transportado às pressas

vencido pela tuberculose. Teve o seu corpo transportado para o Rio de Janeiro em um

vagão destinado ao transporte de cavalos. Ao chegar, foi sepultado no Cemitério de São

Francisco Xavier por seus amigos, dentre eles José do Patrocínio, onde permaneceu até

2007, quando seus restos mortais foram então acolhidos no Museu Histórico de Santa

Catarina - Palácio Cruz e Sousa, no centro de Florianópolis.

Cruz e Sousa é um dos patronos da Academia Catarinense de Letras,

representando a cadeira número 15. Há no município de Florianópolis, onde ele nasceu,

uma casa antiga ao lado da praça XV de Novembro, chamada de palácio Cruz e Sousa,

onde encontram-se seus restos mortais. Além disso, vários municípios o homenageiam

usando seu nome para nomear ruas e avenidas, como é o caso do Rio de Janeiro, onde a

rua Cruz e Sousa fica localizada no bairro de Encantado. (Biografia adaptada a partir do site de um colégio, em Florianópolis, que leva o nome desse autor.

Disponível em <http://www.colegiocruzesousa.com.br/nossa-escola/sobre-o-cruz-e-sousa.html>)

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Atividade 1:

Escreva sobre a sua própria história, ou seja, a sua biografia (que podemos

chamar de autobiografia, quando o biografado é o próprio autor da biografia). Que fatos

da sua vida são/ foram mais relevantes? Que dificuldades podem ter contribuído para o

seu crescimento pessoal? O que você tem feito para construir seu futuro? Como você

deseja que ele seja? Você pretende deixar um legado? Qual? Como?

Atividade 2:

Busque na internet ou em uma biblioteca o poema “Emparedado” na íntegra.

Depois de ler, compare-o à biografia de Cruz e Sousa. O fato de o autor ter consciência

do racismo existente no Brasil influenciou sua escrita?

Atividade 3:

Pesquise sobre alguma personalidade brasileira negra ou indígena que tenha sido

silenciada e emparedada pela sociedade. Em seguida, escreva a biografia dessa pessoa.

É só um exercício. Vale a pena tentar!

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5.2.2 O gênero PESQUISA

Ilustração de Letícia Soares.

Que gênero é esse?

A pesquisa é um gênero do discurso, pois tem suas peculiaridades. Desde muito

cedo, nas escolas, é exigido que os alunos e alunas façam muitas pesquisas. E o nível de

exigência dessas pesquisas vai ficando cada vez maior. As pesquisas são importantes

ferramentas no âmbito escolar. Isso porque, com elas, aprendemos a estudar sozinhos,

conquistamos autonomia e fazemos descobertas que podem ser muito interessantes.

Agora, pense um pouco. Existe algum assunto sobre o qual você gostaria de

conhecer um pouco mais? As pesquisas são muito variadas porque as pessoas realmente

têm curiosidades diferentes. Sobre o racismo, por exemplo, há quem goste de pesquisar

letras de músicas, outros pesquisam programas da televisão, e existem ainda os que

investigam religiões, tipos de moda, histórias em quadrinhos, esportes, cotas escolares,

tribos indígenas e muito mais. O importante é não esquecer: as pesquisas são filhas da

curiosidade!

Uma pesquisa feita por um aluno de Ensino Médio, por exemplo, exige que ele

leia sobre o seu objeto de pesquisa em várias fontes: pode ser em sites, em livros que

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tenha em casa, na biblioteca da escola ou em outras. Quanto mais leitura, melhor será a

pesquisa. Sendo assim, ao fazer sua pesquisa, compare o dizem as fontes e chegue a

suas próprias conclusões. Depois que construiu seu conhecimento, coloque no papel:

elabore um texto, com suas palavras, sobre o que pesquisou. Não vale “copiar e colar”,

como muita gente faz. Isso se chama plágio, e é um crime previsto na Lei 9610/98.

É muito comum que as pesquisas realizadas no Ensino Médio sejam feitas em

grupo. Nesse caso, depois de pesquisar individualmente, reúna-se com os colegas do seu

grupo para discutir sobre o assunto. Em seguida, construam um texto coletivo sobre o

que julgaram mais relevante. Caso queiram copiar algum trecho na íntegra, façam a

citação corretamente, pois copiar sem citar também é crime, previsto nas leis

9.610/1998 e 12.853/2013 (lei também é um gênero do discurso, sobre o qual falaremos

depois). Por isso, toda pesquisa, por menor que seja, deve apresentar as referências

bibliográficas, mencionando quais foram os sites e livros pesquisados.

Para cumprir as formalidades acadêmicas quanto à formatação do trabalho no

editor de texto do seu computador, a pesquisa deve seguir as normas da ABNT

(Associação Brasileira de Normas Técnicas). Pode parecer complicado inicialmente, por

isso pesquise na internet e peça ajuda a um professor, mas na segunda ou terceira

pesquisa você já conseguirá fazer sozinho. Treinando desde o Ensino Médio, você terá

uma preocupação a menos quando estiver na faculdade.

Como um gênero, a pesquisa segue um padrão. Depois de fazer uma capa com o

cabeçalho da instituição onde você estuda, o nome do professor, seu nome (ou dos

integrantes do grupo) e data, inicie seu texto, que deverá ser dissertativo (você falará

sobre um tema, e não contará uma história). Escreva um pequeno texto de introdução.

Nesta seção, o objeto de pesquisa é apresentado, e você irá esclarecer ao leitor sobre o

que é a temática. Depois, desenvolva o texto da pesquisa. Por fim, escreva um pequeno

texto com os resultados da pesquisa, ou com as conclusões a que chegou. Em outra

página, insira as referências bibliográficas, isto é, a relação de livros, sites e revistas que

você consultou.

Vale dizer ainda que pesquisas em nível de graduação ou pós-graduação têm

algumas outras peculiaridades, mas vamos começar do começo!

Roteiro para se fazer uma pesquisa (em nível de Ensino Médio):

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Pesquisar sobre o tema em diversas fontes (livros e sites), até dominar bem o

assunto.

Escrever o texto da pesquisa. Cada uma das partes descritas abaixo deverá estar

em uma folha diferente. Siga o roteiro abaixo.

2.1) Elaborar a capa e a folha de rosto, conforme figura 1, seguindo as normas

da ABNT.

Figura 1. Disponível em <http://www.dicasrecentes.com.br/wp-content/uploads/2015/02/CAPA-DE-

TRABALHO-ABNT-%E2%80%93-MODELOS-PARA-TRABALHOS-ESCOLARES-3.jpg> Acesso em 16 fev.

2016.

2.2) Escrever a introdução do trabalho. Aqui, é necessário apresentar o assunto

do trabalho e os objetivos da pesquisa. Se a pesquisa for mais extensa, você poderá

mencionar o modo como o trabalho está estruturado (por exemplo, no capítulo 1 o

assunto X será apresentado da forma Y, no capítulo 2....). Em seguida, diga que

metodologia usou para realizar a pesquisa (pesquisa bibliográfica? Pesquisa na internet?

Entrevista? Busca de dados estatísticos? Busca de dados empíricos?)

2.3) Escrever o texto propriamente dito, a pesquisa em si. É necessário

especificar e desenvolver tudo o que foi dito na introdução. Você pode organizar a

pesquisa em partes ou capítulos. Se desejar, pode incluir mapas, gráficos e figuras

pertinentes à pesquisa para ilustrar o que está sendo dito. Se a pesquisa tiver resultados

específicos, descreva-os ao final do texto.

2.4) Escrever a conclusão do trabalho. Apresente uma síntese do que foi feito.

Inclua sua opinião sobre o que pesquisou e interprete os dados que obteve. Diga se

todos os objetivos iniciais foram alcançados. Caso não tenha sido, explique o motivo. É

possível dizer ainda a importância do trabalho para o seu crescimento pessoal.

2.5) Escrever as referências bibliográficas, de acordo com as normas

bibliográficas. Coloque todos os livros que pesquisou, todos os sites! O sobrenome dos

autores deve vir em ordem alfabética, como exemplificado abaixo:

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ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal,1992.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,

1997.

MUNANGA, K. (org) Superando o racismo na escola. Brasília: MEC. Secad, 2008. Disponível em

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4575.pdf>Acesso em 20 fev. 2014

Atividade 1:

Abaixo, algumas questões foram listadas. Pesquise sobre elas e construa um

texto único, que englobe as respostas para elas. Lembre-se de seguir todos os passos da

pesquisa: da leitura de textos à formatação das referências bibliográficas. Se possível,

faça essa atividade em grupo, para poder discutir com seus colegas sobre a pesquisa

realizada. É importante dizer que a pesquisa que está sendo solicitada ajudará na

compreensão dos próximos capítulos deste livro.

a) Qual foi o contexto sócio-político em que a estética do Naturalismo se desenvolveu

na Europa e no Brasil?

b) Quais os principais pensadores e cientistas que contribuíram para as ideias que

nortearão a construção discursiva da literatura dessa época?

c) Quais as teorias que esses cientistas defenderam e quais os argumentos que essas

teorias apresentavam?

d) Como se pode conceituar “nação”? Relacione esse conceito ao momento histórico do

Naturalismo no Brasil.

e) Comente sobre as teorias raciológicas da época e o projeto de branqueamento, e quais

as consequências desses pensamentos, considerados, na época, científicos, para a

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sociedade de hoje. Esse assunto pode parecer complicado, mas vai lhe ajudar a entender

os próximos capítulos.

f) Como era o conceito de raça no século XIX? E hoje?

Atividade 2:

Faça uma pesquisa no livro didático de Língua Portuguesa que você está usando

em sua escola. Esse livro contribui para desconstruir o racismo? De que forma? Caso

não contribua, seu livro reforça estereótipos de negros e indígenas? Depois de pesquisar,

escreva um texto dissertativo com uma análise do seu livro. Dê exemplos.

5.2.3 O gênero CONTO

Ilustração de Letícia Soares.

Que gênero é esse?

O gênero conto é narrativo, ou seja, conta uma história. Sua extensão é

relativamente pequena. Não há um número de páginas delimitado, mas geralmente

lemos contos de 1 a 20 páginas, podendo até ser maiores. O que caracteriza o conto é o

fato de ter um número reduzido de personagens, de cenários etc. O enredo não é tão

complexo, e a história é logo resolvida.

O texto que leremos a seguir é um conto. Toda narrativa tem um narrador que

conta a história em primeira ou em terceira pessoa, por isso,

a) observe em que pessoa o texto foi narrado;

b) diga se o narrador, tal como foi construído, conhece toda a história ou se esse

conhecimento só ocorre à medida que os fatos se apresentam para ele e o leitor.

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Para aguçar suas reflexões ao longo da leitura, propomos algumas outras

questões para serem observadas.

1) O texto pode ser dividido em duas partes: uma em que se apresenta o contexto

histórico e a outra em que aparece a narrativa em si. Tente separar essas partes.

2) O texto é de Machado de Assis, escritor considerado Realista, que o publicou em

1906, na coletânea “Relíquias de Casa Velha”. Machado de Assis ficou

conhecido por ser muito irônico. Sua ironia, contudo, nem sempre está tão “na

cara”. Procure algumas ironias de Machado no conto que lerá.

3) Reflita sobre a prática escravocrata do século XIX, e, depois, reflita sobre o

racismo no Brasil de hoje. Veja como as coisas estão interligadas!

4) Ao final do texto, Machado mostra como o ser humano muitas vezes cria

justificativas para o que não pode ser justificado. Observe.

Pai contra mãe

(Machado de Assis)

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a

outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício.

Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-

de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a

boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da

cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque

geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí

ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal

máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma

vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não

cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira

grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e

fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.

Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco

era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos

gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos

gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de

casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da

propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,

entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas

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comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que

seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse

aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.

Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito

físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não

vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", – ou "receberá uma

boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de

preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com

todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por

ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra

nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por

desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros

trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via,

davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves, – em família, Candinho,– é a pessoa a quem se liga a história de uma

fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um

defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;

é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo

que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o

bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira

boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de

atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas

estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao

Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de

obtidos.

Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que

poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas

para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas

lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal.

Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para

cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou

muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia,

Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os

namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às

tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a

costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia

desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como

lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de

longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e

ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este

o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi–

para lembrar o primeiro ofício do namorado, – tal foi a página inicial daquele livro, que

tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e

foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que

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por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,

nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em

demasia a patuscadas.

–Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. –Não,

defunto não; mas é que...

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles

se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só,

embora viesse agravar a necessidade.

–Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

–Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes

feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela

era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes

eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que

rir, e o riso digeria-se sem esforço.

Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha

emprego certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo

específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a

criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada

ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

–Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do

dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez

que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À

força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção

era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

–Vocês verão a triste vida, suspirava ela. –Mas as outras crianças não nascem

também? perguntou Clara. –Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer,

ainda que pouco... –Certa como? –Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas

em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não

áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia

deixara de comer. –A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo

quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... –Bem sei,

mas somos três. – Seremos quatro. –Não é a mesma cousa. – Que quer então que eu

faça, além do que faço? – Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o

homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não

fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga.

Você passa semanas sem vintém. – Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até

de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase

nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria,

e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros

muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não

obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e

um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e

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saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo

fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era

muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas

remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem

era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do

vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação

nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam,

mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como

dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como

o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos

jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um

competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem

aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se

difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos

aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a

necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando

ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez,

à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em

escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez

capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros

que lhe deram os parentes do homem.

–É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir

narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida,

outro emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas

por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O

pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer.

Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono,

cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser

mais amargos.

–Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa

escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o

conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia

haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para

beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como?

Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A

mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara

interveio. –Titia não fala por mal, Candinho. –Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou

por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo;

a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há

de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura,

os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será

bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não

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se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à

míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-

se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com

tal franqueza e calor,– crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a

amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz

baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

–Quem é? perguntou o marido. –Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa

ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

–Não é preciso... –Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria

algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar

mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para

regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o

que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma

inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

–Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero,

contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais,

recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde

muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias,

não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não

alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes

emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de

alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu

emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.

Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no

desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio

seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,

sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a

casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que

cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias

depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica

insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à

Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a

levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo.

Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda

na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela

maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém,

subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de

vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do

negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a

vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande

esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do

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Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um

farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga,

três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar

como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros

fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si

mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai,

não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o

que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos

de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que

vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação

do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem

recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao

filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai

pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos

certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do

sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.

–Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita

ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que

ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na

direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida.

Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade

real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a

poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou,

achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria

buscá-la sem falta.

–Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua,

até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua,

quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era

a mulata fujona. –Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço

de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir.

Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia

que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que

de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então

que a soltasse pelo amor de Deus.

–Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho,

peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que

quiser. Me solte, meu senhor moço! – Siga! repetiu Cândido Neves. –Me solte! –Não

quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem

passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não

acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria

com açoutes,–cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza,

ele lhe mandaria dar açoutes.

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–Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? Perguntou

Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à

espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a

escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na

esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço,

inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá

chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali

ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

–Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. – É ela mesma. –Meu senhor! –Anda,

entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou

os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil

réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia,

levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe

e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia

que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez

sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara.

Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá

dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com

que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.

Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para

a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida

a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é

verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga.

Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se

lhe dava do aborto.

– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000245.pdf> Acesso em 16 fev.

2016.

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Atividade 1:

Individualmente ou em grupo, produza um conto nos moldes do conto lido, ou

seja:

a) com foco narrativo em 3ª pessoa;

b) com narrador onisciente;

c) com a utilização da variedade padrão / norma culta da língua

portuguesa.

Faça, contudo, que o final seja diferente: que o personagem principal reflita

sobre as questões raciais no Brasil e lute para modificá-las. Você pode iniciar sua

história assim: “José Sousa era um adolescente negro que sofria muito preconceito

racial. Um dia, ele...”.

Observação: Há contos que não utilizam a norma culta da língua portuguesa,

mas como essa variedade é exigida no ENEM, por exemplo, é bom treinar!

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5.2.4 O gênero ROMANCE

Ilustração de Letícia Soares.

Que gênero é esse?

Tem gente que pensa que romance é sempre romântico, uma linda história de

amor. Não é nada disso! Narrativa extensa e complexa, o romance geralmente apresenta

muitos personagens, tramas, muitos núcleos narrativos, independente de seu tema. Pode

ser uma história de amor, sim, mas não necessariamente. Pode ser uma história policial,

uma história sobre um mistério, uma história baseada em fatos reais, ou até uma história

que se passa em outra galáxia, fruto da imaginação do autor. A história contada

geralmente só é entendida, em sua totalidade, ao final da obra, devido à complexidade

do enredo.

Por conter muitas páginas, não será possível transcrever aqui um romance

inteiro, mas escolhemos uma obra para discutir. Já que falamos anteriormente sobre o

Naturalismo, iremos estudar “O cortiço”, romance dessa época (século XIX). Muitas

obras da literatura brasileira estão em domínio público. Isso significa dizer que você

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pode fazer o download da obra gratuitamente na internet. Basta acessar o site

http://www.dominiopublico.gov.br/. O cortiço está lá, em PDF. Você já pode baixar aí!

Se não tiver internet, é bom provável que na biblioteca da sua escola tenha esse

romance.

Para se ambientar ao que irá ler, pesquise sobre a vida e a obra de Aluísio de

Azevedo (lembra o que vimos sobre biografias?) e procure resumos da obra O cortiço

em sites de busca (lembra o que vimos sobre pesquisas?). O enredo é muito

interessante, e geralmente os adolescentes adoram. Tente convencer alguns amigos a

lerem a obra também. Vocês podem criar um grupo no celular, em um aplicativo de

mensagens instantâneas, apenas para discutir sobre a obra. Como meta, podem discutir

um ou dois capítulos por semana. Isso pode ser divertido. Se não tiverem celular, podem

marcar um encontro semanal, e ao final, aproveitar para colocar o papo em dia!

Para aguçar suas reflexões ao longo da leitura, propomos algumas questões para

serem observadas.

1) “Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em

meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria

sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua”. A

partir dessa passagem, retome as pesquisas que fez anteriormente, buscando dar

resposta à seguinte questão: o que, em termos de instinto, segundo concepções

raciológicas, uma afirmação desse tipo busca “solucionar”?

No capítulo 2, pesquisamos sobre essas “concepções raciológicas”. Só para

relembrar, vale dizer que, no Brasil do séc. XIX, difundiu-se que o negro era um ser

inferior e pouco evoluído. Esse discurso raciológico, porque relativo à raça, foi, segundo

a suposição da época, “comprovado cientificamente” e teve apoio até do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Claro que esse discurso foi defendido,

porque havia interesses em manter a escravidão e manter os nobres brancos no poder.

Para isso, utilizaram de todos os artifícios (imorais e antiéticos) para “provar” que negro

só servia para ser escravo! Acreditavam que os indígenas até poderiam ser “civilizados”

(como se a civilização que propuseram fosse realmente boa), mas os negros não tinham

jeito mesmo! A partir disso, passaram a defender um projeto de branqueamento no

Brasil: com o fim da escravidão, passaram a trazer muitos imigrantes europeus, que

ajudariam a clarear a pele da população, que ficaria, então, mais “evoluída”. Hoje

sabemos que, biologicamente, não há diferença alguma entre negros, brancos e

indígenas, mas, infelizmente, esses discursos ainda pairam nos ares brasileiros, e as

oportunidades dadas às pessoas ainda têm a ver, muitas vezes, com a cor da pele que

possuem.

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2) “O discurso raciológico estava tão presente na sociedade brasileira no período

em que a obra foi escrita, que na descrição dos personagens de O Cortiço, há

recorrentemente uma referência à negritude do personagem.” Ao longo de sua leitura,

destaque passagens que façam esse tipo de referência.

3) Como se pode interpretar a recorrência desse destaque à cor da pele na obra

de Aluísio de Azevedo? Ou seja, por que será que o autor descrevia as personagens a

partir do critério racial, destacando as características físicas de cada personagem?

4) Esse tipo de descrição ainda é feito atualmente? O sentido ainda é o mesmo?

5) Há figuras de linguagem que estão relacionadas a esse procedimento

descritivo. Quando alguém enuncia a frase: “A comida arranjava-lhe, mediante

quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona

[...]”, que figura de linguagem está empregando? Metáfora? Metonímia? Hipérbole?

Eufemismo? Pense como vai apresentar suas razões da escolha feita.

6) No capítulo VII de O Cortiço, atente ao seguinte parágrafo: “Naquela mulata

estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela

era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda;(...), uma

larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e

espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca”. A imagem que é construída da

Rita, ao longo do livro, mais especificamente nesse capítulo, e, ainda, nesse parágrafo,

leva em conta aspectos de sua intelectualidade ou aspectos físicos? A que podemos

atribuir o privilégio de um aspecto sobre o outro? Que relações podem ser feitas se

levarmos em conta a imagem criada da Rita e aquilo que foi pesquisado sobre o ideal de

branqueamento?

7) A construção discursiva que o narrador faz da Rita está ainda presente na

sociedade atual em relação à construção da imagem da mulher brasileira? E em relação

à população negra, de modo geral? Por que esse tipo de descrição pode ser considerada

negativa?

8) Em relação às músicas populares da contemporaneidade, ainda há a

continuidade do discurso raciológico do século XIX em relação ao imaginário da terra,

do povo, e da mulher? Pense em exemplos de músicas que discriminam o negro ou a

mulher negra.

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9) Assista ao filme “O cortiço”, de 1978, e compare-o ao livro. Que

características são peculiares ao gênero romance? E ao gênero filme? O efeito de

sentido produzido é o mesmo independente do gênero de suporte, ou seja, os efeitos são

os mesmos no livro e no filme?

Atividade 1:

Sabe aqueles filmes que passam em nossa imaginação? Que tal tentar

transformar suas “viagens mentais” em um romance? Não é uma tarefa nada fácil, mas

se você se unir aos seus colegas poderão construir uma história interessante e complexa.

Se preferirem, podem também criar um vídeo, uma espécie de novela de TV, com uma

narrativa. Nossa sugestão é que o enredo, diferente da obra “O cortiço”, possa

“desemparedar” os personagens, ou seja, deixá-los livres para seguirem suas vidas, sem

a prisão racial imposta pelo racismo que atravessa os séculos. Afinal, ninguém deveria

ter o futuro pré-determinado por sua raça ou meio social em que vive, e todas as

pessoas – indígenas, negros, pardos, asiáticos, brancos – podem lutar para ter a

profissão que desejam, ser quem desejam ser, e alcançar patamares inimagináveis!

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5.2.5 O gênero TEXTOS LITERÁRIOS

Ilustração de Letícia Soares

Que gênero é esse?

Nos livros didáticos, os conteúdos abordados são explicados de modo que o

aluno, ao ler o capítulo, entenda sobre o que se fala. O problema é que às vezes não há

muitos exemplos ilustrativos, e as dúvidas aparecem. Um assunto que os alunos

confundem bastante, logo no início do Ensino Médio, é a diferença entre o texto

literário e o não literário. Dentro do que estamos chamando de gênero TEXTOS

LITERÁRIOS, há muitos outros gêneros, como o conto, a crônica, o romance, a poesia.

Para entender melhor, podemos pensar em uma tela em branco. Há artistas que

se dedicam horas, dias e até mesmo anos para pintar uma tela, pois há uma preocupação

com o efeito visual que quer atingir. Por outro lado, há máquinas, hoje em dia, que

imprimem pinturas em telas, de modo bem simples e mecânico.

Com as palavras, é mais ou menos assim: o texto literário corresponde àquela

pintura elaborada, e o não literário se preocupa mais em passar informações de modo

direto. O texto literário é como se passasse pelas mãos de um artesão, e o não literário,

por máquinas.

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Atividade 1:

A partir dos muitos exemplos abaixo, tente descobrir quais textos são literários e

quais são não literários. Se possível, discuta sobre os textos com seus colegas e

professores. Você pode, ainda, dizer o gênero específico de cada texto. Aproveite este

momento de leitura e veja como ler é delicioso!

Exemplo 1:

TUPI – GUARANI

Que palavras em tupi eu sei?

Que palavras em tupi sei falar?

Que palavras sei falar em tupi?

Em tupi-guarani

Eu sei, sei, sei, sei, sei sei...

Sei falar guaraná

Sei falar tororó

Canoa, capim, marimbondo, bambu

Caipira, sabiá, tamanduá, urubu

Maranhão, Ipanema, Ingá, Iguaçú

Niterói, Icaraí , Paraty e Xingu

Oré Icoeté Oripaba

Oré Icoé Oriba

Xará, goiaba, cacau, tatuí

Cipó, mauá, taí, colibri

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Toca, jacarandá, Paquetá

Cama, maracujá, Geribá

Paçoca, sarará, saci pererê

Pipoca, Igarapé, siri, Tietê

Sapeca, jabuti, pitanga, caju

Peteca, samambaia, uirapuru

Arara, carioca, papagaio

Tucunaré e curumim

Pindaíba, jatobá, jabuticaba

Pindorama, cururu, piriri, piriri

Itacoatiara, jaca, jararaca,

Butantã, abacaxi

Ipiranga, mocotó

Carayba, paraná

Itamarati

Disponível em <http://www.glorinhaerenato.com/giramundo.html> Acesso em 04 set. 2014.

Exemplo 2:

Marabá

Eu vivo sozinha, ninguém me procura!

Acaso feitura

Não sou de Tupá!

Se algum dentre os homens de mim não se esconde:

— "Tu és", me responde,

"Tu és Marabá!"

— Meus olhos são garços, são cor das safiras,

— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;

— Imitam as nuvens de um céu anilado,

— As cores imitam das vagas do mar!

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:

"Teus olhos são garços",

Responde anojado, "mas és Marabá;

Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,

Uns olhos fulgentes,

Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"

— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,

— Da cor das areias batidas do mar;

— As aves mais brancas, as conchas mais puras

— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.

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Se ainda me escuta meus agros delírios:

— "És alva de lírios",

Sorrindo responde, "mas és Marabá:

Quero antes um rosto de jambo corado,

Um rosto crestado

Do sol do deserto, não flor de cajá."

— Meu colo de leve se encurva engraçado,

— Como hástea pendente do cáctus em flor;

— Mimosa, indolente, resvalo no prado,

— Como um soluçado suspiro de amor!

"Eu amo a estatura flexível, ligeira,

Qual duma palmeira",

Então me respondem; "tu és Marabá:

Quero antes o colo da ema orgulhosa,

Que pisa vaidosa,

Que as flóreas campinas governa, onde está."

— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,

— O oiro mais puro não tem seu fulgor;

— As brisas nos bosques de os ver se enamoram

— De os ver tão formosos como um beija-flor!

Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,

São loiros, são belos,

Mas são anelados; tu és Marabá:

Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,

Cabelos compridos,

Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá,"

————

E as doces palavras que eu tinha cá dentro

A quem nas direi?

O ramo d'acácia na fronte de um homem

Jamais cingirei:

Jamais um guerreiro da minha arazóia

Me desprenderá:

Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,

Que sou Marabá! DIAS, Gonçalves. Marabá. Disponível em <http://www.revista.agulha.nom.br/gdias02.html> Acesso em 04

set. 2014

Exemplo 3:

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O roubo do fogo

(Povo Guarani. Mito Guarani)

Em tempos antigos os guaranis não sabiam acender o fogo. Na verdade, eles

apenas sabiam que existia o fogo, mas comiam alimentos crus, pois o fogo estava em

poder dos urubus.

O fogo estava com estas aves porque foram elas que primeiro descobriram um

jeito de se apossarem das brasas da grande fogueira do sol. Numa ocasião, quando o sol

estava bem fraquinho, e o dia não estava muito claro, os urubus foram até lá e retiraram

algumas rasas das quais tomavam conta com muito cuidado e zelo. É por isso que

somente estas aves comiam seu alimento assado ou cozido e nenhum outro ser da

floresta tinha este privilégio.

É claro que todos os urubus tomavam conta das brasas como se fosse um tesouro

precioso e não permitiam que ninguém delas se aproximasse. Os homens e os outros

animais viviam irritados com isso. Todos queriam roubar o fogo dos urubus, mas

ninguém se atrevia a desafiá-los.

Um dia, o grande herói Apopocuva retornou de uma longa viagem que fizera.

Seu nome era Nhanderequeí. Guerreiro respeitado por todo o povo, decidiu que iria

roubar o fogo dos urubus. Reuniu todos os animais, aves e homens da floresta e contou

o plano que tinha para enfrentar os temidos urubus, guardiões do fogo. Até mesmo o

pequeno cururu, que não fora convidado, compareceu dizendo que também ele tinha

muito interesse no fogo.

Todos já reunidos, Nhanderequeí expôs seu plano:

– Todos vocês sabem que os urubus usam fogo para cozinhar. Eles não sabem

comer alimento cru. Por isso vou me fingir de morto bem debaixo do ninho deles.

Todos vocês devem ficar escondidos e quando eu der uma ordem, avancem para cima

deles e os espantem daqui. Dessa forma, poderemos pegar o fogo para nós.

Todos concordaram e procuraram um lugar para se esconder. Não sabiam por

quanto tempo iriam esperar. Nhanderequei deitou-se. Permaneceu imóvel por um dia

inteiro.

Os urubus, lá do alto das árvores, observaram com desconfiança. Será que

aquele homem estava morto mesmo ou estava apenas querendo enganá-los? Por via das

dúvidas preferiram aguardar mais um pouco.

O herói permaneceu o segundo dia do mesmo jeito. Sequer respirava direito para

não criar desconfiança nos urubus que continuavam rodeando seu corpo. Foi no fim do

terceiro dia, no entanto, que as aves baixaram as guardas. Ficavam imaginando que não

era possível uma pessoa fingir-se de morta por tanto tempo. Ficavam confabulando

entre si:

– Olhem, meus parentes urubus – dizia o chefe urubu – nenhum homem pode

fingir-se de morto assim. Já decidi: vamos comê-lo. Podem trazer as brasas para

fazermos a fogueira.

Um grande alarido se ouviu. Os urubus aprovavam a decisão de seu chefe, e por

isso imediatamente partiram para buscar as brasas. Trouxeram e acenderam uma

fogueira bonita e vistosa.

O chefe dos urubus ordenou, então, que trouxessem a comida para ser assada.

Um verdadeiro batalhão foi até a presa e a trouxe em seus bicos e garras. Eles acharam

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o corpo do herói um pouco pesado, mas isso consideraram até muito bom, assim daria

para todos os urubus.

Eles colocaram Nhanderequeí sobre o fogo, mas graças a uma resina que ele

passara pelo corpo, o fogo não o queimava. Num certo momento, o herói se levantou do

meio das brasas dando um grande susto nos urubus que, atônitos, voaram todos.

Nhanderequeí aproveitou-se da surpresa e gritou a todos os amigos que estavam

escondidos para que atacassem os urubus e salvassem algumas daquelas brasas ardentes.

Os urubus, vendo que se tratava de uma armadilha, se esforçaram ao máximo

para apagar as brasas, engoli-las e não permitirem que aqueles seres tomassem posse

delas. Foi uma correria geral. Acontece, no entanto, que na pressa de salvar o fogo,

quase todas as brasas se apagaram por terem sido pisoteadas.

Quando tudo se acalmou, Nhanderequeí chamou a todos e perguntou quantas

brasas haviam conseguido. Uns olhavam para os outros na tentativa de saber quem

havia salvado alguma brasinha, mas qual não foi a tristeza geral ao se depararem com a

realidade: ninguém havia salvado uma pedrinha sequer.

− Só temos carvão e cinzas – disse alguém no meio da multidão.

− E para que nos há de servir isso? – falou Nhanderequeí. – Nossa batalha contra

os urubus de nada valeu!

Acontece que, por trás de todos, saiu o pequeno cururu, dizendo:

− Durante a luta os urubus se preocuparam apenas com os animais grandes e não

notaram que eu peguei uma brasinha e coloquei em minha boca. Espero que ainda esteja

acesa. Mas pode ser que...

− Depressa. Pare de falar, meu caro cururu. Não podemos perder tempo. Dê-me

esta brasa imediatamente – disse Nhanderequeí, tomando a brasa em suas mãos e a

assoprando levemente.

Todos os animais ficaram atentos às ações do herói que tratava com muito

cuidado aquele pequeno luzeiro. Pegou-o na mão e colocou um pouquinho de palha e o

assoprou novamente. Com isso ele conseguiu um pequeno riozinho de fumaça. Isso foi

o bastante para incomodar os animais, que logo disseram:

− Se o fogo sempre faz fumaça, não será bom para nós. Nós não suportamos

fumaça.

Dizendo isso, os bichos foram embora, deixando o fogo com os homens e com

as aves.

Nhanderequeí soprou de novo. Ele o fazia com todo o cuidado, com todo o jeito.

Logo em seguida à fumaça, aconteceu um cheiro de queimado. Isso foi o bastante para

que as aves se incomodassem e dissessem:

− Nós não gostamos desse cheiro que sai do fogo. Isso não é bom para as aves.

Fiquem vocês com este fogo.

Dizendo isso, bateram as asas e se foram deixando apenas os homens tomando

conta do fogo.

Enquanto isso, Nhanderequeí soprou ainda mais forte e, finalmente, as chamas

apareceram no meio da palha e do carvão que sustentaram o fogo aceso para sempre.

Percebendo que tudo estava sob controle, o herói ordenou que seus parentes

encontrassem as madeiras canelinha, criciúma, cacho-de-coqueiro e cipó-de-sapo e as

usassem sempre, toda vez que quisessem acender e conservar o fogo. Além disso, o

corajoso herói ensinou os Apopocuva a fazer um pilãozinho para guardar as brasas e

assim conservar o fogo para sempre.

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Dizem os velhos desse povo que até os dias de hoje os Apopocuva guardam o

pilãozinho e aquelas madeiras.

(MUNDUKURU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2005)

Glossário:

Apopocúva-Guarani – O grande povo Guarani está localizado em oito estados brasileiros. Sua língua,

subdividida em Nhandeva, M’Bia e Kaiowá, pertence ao tronco linguístico Tupi. Sua população é a segunda maior do

Brasil. Segundo dados oficiais, chega a 35 mil pessoas. Os Guarani estão presentes ainda em diversos países que

fazem fronteira com o Brasil.

Nhanderequeí – Herói civilizador entre os Guarani. Aquele que cria e ensina este povo a manipular seus

bens culturais. Nesta história, ele é o herói que ajuda o povo a roubar o fogo e ensina a conservá-lo.

Cururu – Nome genérico dos sapos, em Tupi.

Exemplo 4:

ARAORI

YMÉ BOYÁ

TAYGOARA ASSÉ

OPACATU, RAYRA , CY, GUBA

YMÉ BOYÁ

TAYGOARA ARAORI

APÓ, POTIÁ

TETIMÃ, POTIÁ

Me escravizar ninguém pode não

Nasci assim e livre vou ficar

Meu pai e mãe

Minha irmã e meu irmão

Índio é livre

Para viver

Índio é livre

Para livre ser

Assim eu sou

Não, não mudo não

Bato no peito

Boto os pés no chão

A Terra é grande

Dá pra dividir

Não precisa me matar

Nem me ferir

Disponível em <http://www.glorinhaerenato.com/giramundo.html> Acesso em 04 ago. 2014.

Exemplo 5:

DO MUNDO DO CENTRO DA TERRA AO MUNDO DE CIMA

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(Povo Munduruku – Mito Tupi)

No antigo tempo da criação do mundo com toda sua beleza, os Munduruku

viviam dispersos, sem unidade e guerreando entre si. Esta era uma situação muito ruim

que tornava a vida mais difícil e indócil. Foi aí que ressurgiu Karú-Sakaibê, o Grande

Criador, que já havia realizado tantas coisas boas para este povo.

Contam os velhos que foi ele quem criara as montanhas e as rochas soprando em

penas fincadas no chão. Eram também criações dele os rios, as árvores, os animais, as

aves do céu e os peixes que habitam todos os rios e igarapés.

Karú-Sakaibê, tendo percebido que o povo que ele criara não estava unido,

decidiu voltar para unificá-lo e lembrá-lo como havia sido trazido do fundo da terra

quando ele decidiu enfeitar a terra com gente que pudesse cuidar da obra que criara.

Assim contam os velhos sobre a vinda dos Munduruku ao mundo de cima:

Karú-Sakaibê andava pelo mundo sempre em companhia de seu fiel amigo

Rairu, que embora fosse muito poderoso, gostava de brincar e se divertir. Um dia, Rairu

fez uma figura de tatu juntando folhas, gravetos e cipós. Era uma imitação perfeita. Tão

perfeita que o jovem brincalhão resolveu colá-lo com resina feita com cera de mel de

abelha para que seu desenho nunca desaparecesse. Para secar a resina Rairu enterrou seu

"tatu" embaixo da terra deixando apenas o rabo para fora. Porém, quando ele tentou,

depois de algum tempo, retirar sua mão do rabo não conseguiu, pois a resina havia

secado e ele ficara grudado no rabo do tatu.

Como Rairu tinha um grande poder, deu vida ao desenho e este, em vez de

querer sair do buraco, foi adentrando-se cada vez mais, carregando consigo o pobre

rapaz preso ao seu rabo. Por mais que tentasse se soltar não conseguia. O tatu-desenho

foi cada vez mais fundo e quando chegou ao centro da terra, Rairu encontrou muita

gente que por lá morava. Tinha gente de todo jeito: algumas eram bonitas, outras eram

feias; algumas eram boas e outras eram más e preguiçosas.

Rairu ficou tão impressionado com aquilo que decidiu sair rapidamente do

buraco para contar a Karú-Sakaibê, que já devia estar preocupado com sua demora. E

estava mesmo. Karú irritou-se tanto com seu companheiro que decidiu castigá-lo,

batendo nele com um pedaço de pau. Para se defender o jovem contou sua aventura ao

centro da terra e como ele havia encontrado gente lá. Estas palavras chamaram a

atenção de Karú, que decidiu trazer toda esta gente para o mundo decima.

Rairu ainda perguntou como poderiam fazer isso se eles estavam tão longe. O

herói criador nem sequer deu ouvido ao jovem. Começou a fazer uma pelota e enrolá-la

na mão. Em seguida jogou a pelota no chão e imediatamente nasceu um pé de algodão.

Colheu, então, o algodão e com suas fibras fez uma corda que passou na cintura de

Rairu e ordenou que fosse ao centro da terra buscar as pessoas que ele vira.

Rairu desceu pelo mesmo buraco do tatu. Quando chegou reuniu todo mundo e

falou das maravilhas que havia no mundo de cima e que queria que todos subissem pela

corda para conhecer este novo mundo. Os primeiros a subir foram os feios e os

preguiçosos, porque estes imaginavam que iam encontrar alimento com muita facilidade

nunca mais precisariam trabalhar. Depois subiram os bonitos e formosos. No entanto,

quando estes últimos já estavam quase alcançando o topo, a corda arrebentou e um

grande número de gente bonita caiu no buraco e permaneceu vivendo no fundo da terra.

Como eram muitos, Karú- Sakaibê quis diferenciá-los uns dos outros. Para que

uns fossem Munduruku, outros Mura, arara, Mawé, Panamá, Kaiapó e assim por diante.

Cada um seria de um povo diferente. Fez isso pintando uns de verde, outros de

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vermelho, outros de amarelo e outros de preto. No entanto, enquanto Karú pintava um

por um, os que eram feios e preguiçosos adormeceram.

Esta atitude das pessoas feias irritou profundamente o herói criador. Como

castigo por sua preguiça, Karú-Sakaibê os transformou em passarinhos, porcos-

do0mato, borboletas e em outros bichos que passaram a habitar a floresta.

No entanto, àqueles que não eram preguiçosos ele disse:

- Vocês serão o começo, o princípio de novos tempos e seus filhos e os filhos de

seus filhos serão valentes e fortes.

E para presenteá-los por sua lealdade, o grande herói preparou o campo, semeou

e mandou chuva para regá-lo. e tão logo a chuva caiu nasceram a mandioca, o milho, o

cará, a batata-doce, o algodão, as plantas medicinais e muitas outras que servem, até os

dias de hoje, de alimento para esta gente. Ainda os ensinou a construir os fornos para

preparar a farinha.

Contam nossos avós que foi assim que Karú-Sakaibê transformou a grande

nação Munduruku num povo forte, valente e poderoso...

(MUNDUKURU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2005)

Glossário:

Munduruku – Significa Formigas Gigantes ou Compridas por ser conhecido como um povo guerreiro e

poderoso. Está presente nos estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso, totalizando aproximadamente 12 mil pessoas.

Seu contato com a cidade já é de 250 anos e, apesar deste contato antigo, mantém sua cultura e tradição através de

rituais e de sua língua. (Usam a língua Munduruku, do tronco Tupi)

Karú-Sakaibê – É dessa forma que o povo Munduruku denomina seu herói criador e civilizador.

Rairu – Era o fiel companheiro de Karú-Sakaibê, uma espécie de assistente na obra da criação.

Igarapé – Significa pequeno córrego. São braços de um grande rio, onde normalmente estão localizadas as

aldeias Munduruku.

Mura, Mawé, Arara, Panamá, Kaiapó – Denominação de alguns povos indígenas que são vizinhos dos

Munduruku.

Exemplo 6:

Desde 1500 até a década de 1970 a população indígena brasileira decresceu

acentuadamente e muitos povos foram extintos. O desaparecimento dos povos indígenas

passou a ser visto como uma contingência histórica, algo a ser lamentado, porém

inevitável. No entanto, este quadro começou a dar sinais de mudança nas últimas

décadas do século passado. A partir de 1991, o IBGE incluiu os indígenas no censo

demográfico nacional. O contingente de brasileiros que se considerava indígena cresceu

150% na década de 90. O ritmo de crescimento foi quase seis vezes maior que o da

população em geral. O percentual de indígenas em relação à população total brasileira

saltou de 0,2% em 1991 para 0,4% em 2000, totalizando 734 mil pessoas. Houve um

aumento anual de 10,8% da população, a maior taxa de crescimento dentre todas as

categorias, quando a média total de crescimento foi de 1,6%.

Um dado importante foi o aumento da proporção de indígenas urbanizados. A

atual população indígena brasileira, segundo resultados preliminares do Censo

Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, é de 817.963 indígenas, dos quais 502.783

vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. Este Censo revelou

que em todos os Estados da Federação, inclusive do Distrito Federal, há populações

indígenas. A Funai também registra 69 referências de índios ainda não contatados, além

de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena

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junto ao órgão federal indigenista [...] o censo demonstrou que cerca de 17,5% da

população indígena não fala a língua portuguesa.

Esta população, em sua grande maioria, vem enfrentando uma acelerada e

complexa transformação social, necessitando buscar novas respostas para a sua

sobrevivência física e cultural e garantir às próximas gerações melhor qualidade de

vida. As comunidades indígenas vêm enfrentando problemas concretos, tais como

invasões e degradações territoriais e ambientais, exploração sexual, aliciamento e uso de

drogas, exploração de trabalho, inclusive infantil, mendicância, êxodo desordenado

causando grande concentração de indígenas nas cidades.

Hoje, segundo dados do censo do IBGE realizado em 2010, a população

brasileira soma 190.755.799 milhões de pessoas. Ainda segundo o censo, 817.963 mil

são indígenas, representando 305 diferentes etnias. Foram registradas no país 274

línguas indígenas.

Os Povos Indígenas estão presentes nas cinco regiões do Brasil, sendo que

a região Norte é aquela que concentra o maior número de indivíduos, 305.873 mil, sendo

aproximadamente 37,4% do total. [...] Disponível em <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao> Acesso em 04 set. 2014.

Exemplo 7:

A demarcação de uma Terra Indígena tem por objetivo garantir o direito

indígena à terra. Ela deve estabelecer a real extensão da posse indígena, assegurando a

proteção dos limites demarcados e impedindo a ocupação por terceiros.

Desde a aprovação do Estatuto do Índio, em 1973, esse reconhecimento formal

passou a obedecer a um procedimento administrativo, previsto no artigo 19 daquela lei.

Tal procedimento, que estipula as etapas do longo processo de demarcação, é regulado

por decreto do Executivo e, no decorrer dos anos, sofreu seguidas modificações. A

última modificação importante ocorreu com o decreto 1.775, de janeiro de 1996.

[...] O Brasil tem uma extensão territorial de 851.196.500 hectares, ou seja,

8.511.965 km2. As terras indígenas (TIs) somam 691 áreas, ocupando uma extensão

total de 113.190.570 hectares (1.131.906 km2). Assim, 13.3% das terras do país são

reservados aos povos indígenas.

A maior parte das TIs concentra-se na Amazônia Legal: são 422 áreas,

111.401.207 hectares, representando 22,25% do território amazônico e 98.42% da

extensão de todas as TIs do país. O restante, 1.58% , espalha-se pelas regiões Nordeste,

Sudeste, Sul e estado do Mato Grosso do Sul.

Essa situação de flagrante contraste pode ser explicada pelo fato de a

colonização do Brasil ter sido iniciada pelo litoral, o que levou a embates diretos contra

as populações indígenas que aí viviam, causando enorme depopulação e desocupação

das terras, que hoje estão em mãos da propriedade privada. Aos índios restaram terras

diminutas, conquistadas a duras penas. Por exemplo, em São Paulo, a terra Guarani

Aldeia Jaraguá tem apenas dois hectares de extensão, o que impossibilita que vivam da

terra.

Há vozes dissonantes em relação ao tamanho das TIs na Amazônia, alegando

que haveria "muita terra para poucos índios". Esses críticos se esquecem de que os

índios têm que tirar todo seu sustento da terra. Muitas vezes, as TIs têm grandes partes

não agricultáveis, e sofrem ou sofreram diversos tipos de impactos.

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Disponível em <http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/introducao>. Acesso em

04 set. 2014.

Exemplo 8:

Daniel Munduruku

Escritor indígena com 45 livros publicados, graduado em Filosofia, tem

licenciatura em História e Psicologia. Doutor em Educação pela USP. É pós-doutor em

Literatura pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Título obtido sob a

orientação da Profa. Dra. Maria Silvia Cintra Martins. Diretor presidente do Instituto

UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Comendador da Ordem do Mérito Cultural da

Presidência da República desde 2008. Em 2013 recebeu a mesma honraria na categoria

da Grã-Cruz, a mais importante honraria oficial a um cidadão brasileiro na área da

cultura. Membro Fundador da Academia de Letras de Lorena.

Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior, entre eles o Prêmio Jabuti,

Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado

pelo CNPq); Prêmio Tolerância (outorgado pela UNESCO). Muitos de seus livros

receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro

Infantil e Juvenil (FNLIJ). Disponível em <http://www.danielmunduruku.com.br/p/daniel-munduruku.html> Acesso em 04 set. 2014.

Resposta da atividade 1: os textos não literários são os três últimos exemplos (6,

7 e 8). Todos os outros são textos literários.

Atividade 2:

Agora que você já percebeu que o texto não literário se preocupa mais com o

que se diz e o não literário com o como se diz, escreva um texto não literário e um

literário sobre a situação dos indígenas no Brasil de hoje. Para isso, pesquise sobre as

várias línguas faladas no Brasil, sobre especificidades da cultura indígena e também

sobre a situação dos indígenas que vivem em meio urbano, que, como todo cidadão,

utilizam internet (até para preservar suas culturas), têm celular, e nem por isso deixam

de ser indígenas, mas acabam sofrendo preconceito porque ainda são vistos como “não

civilizados”. Dá pra acreditar?!

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5.2.6 O gênero POESIA

Ilustração de Letícia Soares

Que gênero é esse?

A poesia é um texto literário, uma verdadeira criação artística. Nela, há um eu-

lírico, uma voz que fala no poema, que pode ser inventada, ou pode ser a expressão da

própria voz do autor do texto. Alguns escritores se preocupam mais com o rigor da

forma da poesia: elaboram rimas, métrica e ritmo regulares. Outros escrevem versos

livres, mais preocupados com o tema do texto. Há, ainda, os que elaboram textos ricos

em forma e conteúdo. Tudo isso depende do estilo do autor, da época em que está

inserido, e de muitos outros fatores. O mais importante é entendermos que a poesia

pode ser uma importante ferramenta para se expressar. Mergulhe no mundo da poesia!

A poesia abaixo (tradução de Still I Rise feita por Mauro Catopodis) foi feita por

Maya Angelou, uma mulher negra norte-americana.

Ainda assim, eu me levanto

Você pode me riscar da História

Com mentiras lançadas ao ar.

Pode me jogar contra o chão de terra,

Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

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Minha presença o incomoda?

Por que meu brilho o intimida?

Porque eu caminho como quem possui

Riquezas dignas do grego Midas.

Como a lua e como o sol no céu,

Com a certeza da onda no mar,

Como a esperança emergindo na desgraça,

Assim eu vou me levantar.

Você não queria me ver quebrada?

Cabeça curvada e olhos para o chão?

Ombros caídos como as lágrimas,

Minh’alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?

Tenho certeza que sim

Porque eu rio como quem possui

Ouros escondidos em mim.

Pode me atirar palavras afiadas,

Dilacerar-me com seu olhar,

Você pode me matar em nome do ódio,

Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade incomoda?

Será que você se pergunta

Por que eu danço como se tivesse

Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor

Eu me levanto

De um passado enraizado na dor

Eu me levanto

Sou um oceano negro, profundo na fé,

Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidade

Eu me levanto

Em direção a um novo dia de intensa claridade

Eu me levanto

Trazendo comigo o dom de meus antepassados,

Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.

E assim, eu me levanto

Eu me levanto

Eu me levanto. Disponível em <http://lugardemulher.com.br/adeus-pra-musa-maya-angelou/> Acesso em 12 jan. 2016.

Agora, leia a poesia abaixo, de Cristiane Sobral, autora negra brasileira

contemporânea.

Não vou mais lavar os pratos

Nem vou limpar a poeira dos móveis

Sinto muito

Comecei a ler

Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi

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Não levo mais o lixo para a lixeira

Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal

Sinto muito

Depois de ler percebi a estética dos pratos

a estética dos traços, a ética

A estática

Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros

mãos bem mais macias que antes

e sinto que posso começar a ser a todo instante

Sinto

Qualquer coisa

Não vou mais lavar

Nem levar

Seus tapetes para lavar a seco

Tenho os olhos rasos d’água

Sinto muito

Agora que comecei a ler, quero entender

O porquê, por quê? E o porquê

Existem coisas

Eu li, e li, e li

Eu até sorri

E deixei o feijão queimar

Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto

Considere que os tempos agora são outros

Ah

Esqueci de dizer

Não vou mais

Resolvi ficar um tempo comigo

Resolvi ler sobre o que se passa conosco

Você nem me espere. Você nem me chame

Não vou

De tudo o que jamais li

De tudo o que jamais entendi

Você foi o que passou

Passou do limite

Passou da medida

Passou do alfabeto

Desalfabetizou

Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira

Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá

Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis

Não tocarei no álcool

Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler

Depois de tanto tempo juntos

Aprendi a separar

Meu tênis do seu sapato

Minha gaveta das suas gravatas

Meu perfume do seu cheiro

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Minha tela da sua moldura

Sendo assim

Não lavo mais nada

e olho a sujeira no fundo do copo

Sempre chega o momento

De sacudir

De investir

De traduzir

Não lavo mais pratos

Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo

Em letras tamanho 18

Espaço duplo

Aboli

Não lavo mais os pratos

Quero travessas de prata

Cozinhas de luxo

E jóias de ouro

Legítimas

Está decretada a lei áurea.

Disponível em <http://cristianesobral.blogspot.com.br/2012/04/nao-vou-mais-lavar-os-pratos-poesia-de.html>

Acesso em 12 jan. 2016.

Esta outra poesia é de Alzira Rufino, também autora negra brasileira

contemporânea.

RESISTO

De onde vem este medo?

sou

sem mistério existo

busco gestos

de parecer

atando os feitos

que me contam

grito

de onde vem

esta vergonha

sobre mim?

Eu, mulher, negra,

RESISTO. Disponível em <http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/RevistaEixo/article/view/129> Acesso em 12 jan.

2016.

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Agora reflita:

1- O que os textos têm em comum?

2- Como cada eu-lírico, de cada um dos textos, reage frente à situação-problema

enfrentada?

3- O que representa o fato de as autoras das poesias serem mulheres negras?

4- Como a mulher negra é geralmente representada na mídia: na TV, na internet,

nos filmes, nas revistas e nos livros didáticos? Você já observou? Por que isso

acontece?

5- Você sofre algum tipo de preconceito? Como você reage ou reagiria?

6- Por que existe tanto racismo no Brasil?

7- De que maneiras podemos colaborar para exterminar o racismo no Brasil?

8- Você já presenciou uma cena de racismo em sua escola ou no seu bairro? O que

você fez ou poderia fazer para evitar que aquilo acontecesse?

Atividade 1:

Agora é hora de praticar. Se você nunca escreveu uma poesia, está na hora de

começar. Extravase seus sentimentos. Fale sobre suas conquistas, suas experiências de

vida, seus desejos. Poetize-se!

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5.2.7 O gênero ILUSTRAÇÃO

Ilustração de Letícia Soares

Que gênero é esse?

O gênero ilustração é muito usado, não só em livros didáticos, mas em revistas,

jornais, blogs. É uma maneira de dizer de outro jeito – com uma imagem – o que o texto

verbal diz.

Veja esta ilustração:

Ilustração de Jéssica Sanz

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Você acha que ela serviria para ilustrar qual texto?

Agora veja o fragmento de texto abaixo:

“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?

Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes

Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Que embalde desde então corre o infinito...

Onde estás, Senhor Deus?... [...]”

Disponível em <http://www.jornaldepoesia.jor.br/calves02.html>. Acesso em 13 jan. 2016.

Sabendo que o texto lido acima é a primeira estrofe do poema “Vozes d’África”,

de Castro Alves, um poeta do século XIX que lutava pelo fim da escravidão, e que o

poema faz referência aos negros escravizados que estavam inconformados com sua

situação, você acha que a ilustração mostrada acima ilustra bem o fragmento de texto?

Observe bem.

A ilustração traz a imagem de um homem branco, com roupas que não

representam as que eram usadas pelos africanos que foram aqui escravizados. Vale dizer

que esses africanos eram guerreiros, e humanos como todos os humanos, queriam viver

como humanos, e não como seres inferiores. Por isso, lutaram bravamente para mudar

sua situação, e ainda lutam, pois, por causa desse passado, muita gente ainda é racista!

Agora, pense comigo. Se alguém usar uma ilustração de um homem branco para

ilustrar um poema sobre o sofrimento do negro na África estará contribuindo para o

enfrentamento ao racismo? Ou, por outro lado, estará ajudando a desviar a atenção

sobre a opressão histórica contra os negros?

Precisamos ficar atentos, pois já que existe uma lei que torna obrigatório o

estudo sobre a África, pode ser que alguém coloque textos sobre o tema em livros

didáticos para cumprir superficialmente a lei, ilustrando-os de forma inadequada. E uma

ilustração imprópria, às vezes, pode ser encontrada em um livro didático de Português

para o Ensino Médio, e ser vista em muitas escolas brasileiras!

Podemos ver que quase não há imagens de negros nos livros, que o “falar sobre

África” geralmente é superficial ou equivocado, que os negros e os indígenas quase

nunca aparecem de modo positivo, na posição de médicos ou engenheiros, e profissões

com os melhores salários em geral. Isso precisa mudar! Precisamos construir um Brasil

diferente!

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Atividade 1:

Como vimos, a imagem de um homem branco não ilustrou bem o texto a que

deveria estar relacionada. Sendo assim, imagine que você é o ilustrador do livro e

proponha outra ilustração mais adequada para o fragmento da poesia de Castro Alves.

Não tenha timidez, pois o que vale não é o profissionalismo do desenho, mas a

qualidade da ideia. Pegue um papel e mãos à obra. Mas, caso não saiba mesmo

desenhar, procure na internet uma ilustração que realmente sirva para ilustrar o texto em

questão: o poema “Vozes d’África”.

Atividade 2:

Observe as ilustrações que aparecem ao longo do livro. Quase todas foram feitas

por Letícia Soares de Freitas, que foi minha aluna no primeiro ano do Ensino Médio, em

2012, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, campus Campos-Centro.

Era uma menina ainda, muito tímida, sempre atenta às aulas, mas com lápis e papel na

mão, fazendo desenhos incríveis enquanto me ouvia. Um dia, quis ver seus desenhos, e

não entendia como tirava notas tão altas em língua portuguesa, mesmo desenhando na

hora das explicações. Um talento à parte! Hoje em dia, está matriculada, na mesma

instituição, no curso superior de Design Gráfico, e acredito muito em seu potencial.

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Essa ex-aluna está dando uma importante contribuição para este livro. Dentre as

ilustrações que fez, de qual você gostou mais?21

5.2.8 O gênero LEI

Ilustração de Letícia Soares

Que gênero é esse?

No item 5.2.7 (O gênero ILUSTRAÇÃO), foi mencionado que há uma lei que

obriga estudarmos sobre África... É verdade! Mas antes de falarmos sobre essa lei, é

preciso saber um pouco como é que as coisas funcionam no Brasil.

Aqui, como em quase todos os Estados da atualidade, há uma Constituição, um

conjunto de leis soberanas, que valem em todo território brasileiro. A primeira

constituição vigente foi a Constituição Luso-Brasileira, de 1822. Ela passou por várias

reformas, até chegar à Constituição de 1988, vigente hoje em dia. Não é um texto fácil

de ler, porque não foi feito para ser fácil. É importante, todavia, conhecermos um pouco

das nossas leis, pois é a partir delas que conhecemos nossos direitos e deveres.

21 Uma atual aluna minha do terceiro ano do Ensino Médio do IFF, Jéssica Sanz Gomes Leal, também

colaborou com uma ilustração para este livro. Além do talento de desenhar, produz ótimos textos, e

acabou de escrever seu primeiro romance! Sou muito grata pela colaboração dessas brilhantes alunas,

Jéssica e Letícia, já mencionada, e de tantos outros alunos e alunas, que igualmente abrilhantam minhas

aulas e minha vida! Há ainda uma ilustração que foi feita por Diogo Reis, bacharel em Desenho

Industrial, que editou e diagramou todo este livro, e ainda ajustou todas as ilustrações.

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O texto da Constituição é estruturado em várias partes: preâmbulo, declaração

inicial, títulos, capítulos, artigos, parágrafos, incisos... Mas não precisamos dominar

toda essa estrutura. Mais importante é saber o conteúdo das leis, e pesquisas por assunto

na internet podem nos ajudar bastante. A própria sociedade pode contribuir na criação

de leis, criando projetos de leis. Isso não é tão simples, mas é possível. De modo geral,

as leis são criadas por representantes eleitos pelo povo: os vereadores, deputados e

senadores. A constituição, portanto, está constantemente sendo reformada, e sempre se

amplia e recebe novas leis (emendas constitucionais).

Além da constituição, há diversos outros documentos legislativos: decretos,

estatutos, leis complementares, leis ordinárias, códigos... Em relação à educação no

Brasil, o que vale é a lei 9.394, de 1996, conhecida como LDB ou LDBEN (Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Essa lei, contudo, sofreu várias alterações

nesses últimos 20 anos. Se a sociedade muda, as leis tendem a mudar também.

Alguns movimentos sociais, por exemplo, lutam por igualdade social, e

conquistam mudanças importantes. Em 2003, depois de muitas décadas de lutas, o

movimento negro conseguiu a promulgação da lei 10.639, que alterou a LDBEN e

tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira na educação básica. Em

2008, incluiu-se também as questões indígenas, na lei 11.645. Tudo isso porque negros

e indígenas sempre foram excluídos de nossa sociedade, e precisaram promulgar leis

para que a escola se atentasse para as questões étnico-raciais, tão evidentes e, ao mesmo

tempo, tão silenciadas. Mas o fato de ter lei não significa mudança imediata, não! Às

vezes demora muito tempo até que as leis sejam postas em prática. Nós, que lutamos

por uma sociedade mais justa, nos preocupamos com isso, e por isso estamos aqui, para

refletir sobre essas questões.

Infelizmente, muitas escolas, professores e livros didáticos, mesmo com essas

leis, continuam valorizando mais a população branca, como se isso fosse um traço de

superioridade. Parece que é mentira, de tão absurdo, mas é o que apontam várias

pesquisas sérias, de mestrado e doutorado.

LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Altera a Lei n

o 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, que estabelece as

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diretrizes e bases da educação nacional,

para incluir no currículo oficial da Rede de

Ensino a obrigatoriedade da temática

"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá

outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso

Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei n

o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar

acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e

particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o

estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra

brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do

povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão

ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação

Artística e de Literatura e História Brasileiras.

§ 3o (VETADO)"

"Art. 79-A. (VETADO)"

"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia

Nacional da Consciência Negra’."

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115

o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm> Acesso em 16 fev. 2016).

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.

Altera a Lei no 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, modificada pela Lei

no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que

estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional, para incluir no currículo oficial da

rede de ensino a obrigatoriedade da

temática “História e Cultura Afro-Brasileira

e Indígena”.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional

decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o O art. 26-A da Lei n

o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar

com a seguinte redação:

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136

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,

públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e

indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a

partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos

africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena

brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas

contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos

indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em

especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120

o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Fernando Haddad

Atividade 1:

Agora que você já sabe o que é uma lei, escreva uma lei para ser usada em sua

sala de aula com a finalidade de proibir que atos discriminatórios aconteçam na sua

turma. Se ficar bom, você poderá pedir a autorização da professora ou do professor e

confeccionar um cartaz para ser colado na sala!

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5.2.9 O gênero RECEITA

Ilustração de Letícia Soares

Que gênero é esse

Há textos que são narrativos (contam uma história) e outros que são dissertativos

(que abordam um tema). Há, ainda, textos que são injuntivos. Os textos injuntivos são

aqueles que transmitem instruções, explicam como fazer alguma coisa. Os manuais de

instruções e as bulas de remédios, por exemplo, são textos injuntivos.

Outro exemplo de texto injuntivo é a receita. Mesmo se você não souber

cozinhar muito bem, se seguir fielmente uma receita, a comida ficará boa. É claro que

na receita não diz que é preciso ter cuidado com as queimaduras, e por isso as crianças

devem ficar longe do fogão!

Seria possível dar o exemplo de receitas de comidas as mais variadas, mas como

o propósito é enfatizar questões étnico-raciais, será privilegiada a receita da feijoada,

que, mesmo com a ressalva de alguns historiadores, está culturalmente associada à

contribuição de negros para a culinária brasileira.

Veja o exemplo a seguir:

Receita de feijoada

(Tempo de preparo: 2h 20min / Rendimento: 20 porções)

INGREDIENTES

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1 Kg de feijão preto

100 g de carne seca

70 g de orelha de porco

70 g de rabo de porco

70 g de pé de porco

100 g de costelinha de porco

50 g de lombo de porco

100 g de paio

150 g de linguiça portuguesa

Tempero:

2 cebolas grandes picadinhas

1 maço de cebolinha verde picadinha

3 folhas de louro

6 dentes de alho

Pimenta do reino a gosto

1 ou 2 laranjas

40 ml de de pinga

Sal se precisar

MODO DE PREPARO

Coloque as carnes de molho por 36 horas ou mais, vá trocando a água várias

vezes, se for ambiente quente ou verão, coloque gelo por cima ou em camadas frias.

Coloque para cozinhar passo a passo: as carnes duras, em seguida as carnes moles.

Quando estiver mole coloque o feijão, e retire as carnes. Finalmente tempere o feijão.

Disponível em <http://www.tudogostoso.com.br/receita/2998-feijoada.html> Acesso em 12 jan. 2016.

Deu até fome! O gênero receita sempre mostra os ingredientes que serão

utilizados, e em seguida o modo de preparo. É um texto não literário, porém alguns

artistas mais criativos construíram e constroem outros tipos de receitas, brincando com

as palavras, em forma de texto literário mesmo. O artista contemporâneo Chico

Buarque, que comumente escreve músicas sobre o cotidiano, fez uma receita de

feijoada, em forma de música. Leia o texto abaixo e, se der, ouça também a música.

Feijoada Completa

Mulher, você vai gostar

To levando uns amigos para conversar

Eles vão com uma fome que nem me contem

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Eles vão com uma sede de anteontem

Salta cerveja estupidamente gelada para um batalhão

E vamos botar água no feijão.

Mulher, não vá se afobar

Não tem que pôr a mesa e nem dar lugar

Ponha os pratos no chão e o chão ta posto

E prepare as linguiças pro tira-gosto

Uca, açúcar, cumbuca de gelo e limão

E vamos botar água no feijão

Mulher, você vai fritar

Um montão de torresmo pra acompanhar

Arroz branco, farofa e a malagueta

A laranja-bahia ou da seleta

Joga o paio, carne seca, toucinho no caldeirão

E vamos botar água no feijão

Aliás, depois de salgar

Faça um bom refogado que é pra engrossar

Aproveite a gordura da frigideira

Pra melhor temperar a couve mineira

Diz que ta dura, pendura a fatura no nosso irmão

E vamos botar água no feijão

Disponível em <http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/feijoada-completa.html#ixzz3x4fOO0yw> Acesso em

12 jan. 2016.

Por falar em feijoada, você sabia por que a feijoada se mistura com a história do

Brasil? É que, no imaginário social, dizem que os nobres portugueses comiam somente

as partes nobres do porco, e jogam fora partes como os pés, as orelhas e o rabo. Os

africanos escravizados, que eram muito inteligentes, logo misturaram aquilo no feijão

preto que comiam e inventaram esse prato delicioso. Há várias outras versões em

disputa sobre a origem da feijoada, mas não se pode negar que hoje é considerada uma

comida tipicamente brasileira, famosa até em outros países, porque quase ninguém

resiste a uma boa feijoada!

E por aí a gente vai vendo que os africanos, assim como os indígenas, não são

coitadinhos dignos de pena. Foram e são pessoas que construíram e constroem nosso

país: nossas comidas, nossos gostos, nossa cultura!

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Atividade 1:

Para praticar, você irá criar uma receita diferente, mas seguindo o modelo do

gênero receita. Pense bem e escreva uma receita de como acabar com as desigualdades

raciais, que até hoje existem no Brasil. De que maneira as populações indígenas e negra

poderiam alcançar os mesmos direitos e oportunidades da população branca? É claro

que, na prática, não há como existir uma simples receita para isso, mas há algumas

medidas que podem, sim, colaborar para uma sociedade mais justa. Reflita e... mãos na

massa!

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5.2.10 O gênero MEME

Ilustração de Diogo Reis

Que gênero é esse?

Você já ouviu falar em memética? Não? E em meme? Ah! Em meme sim! Isso

porque os adolescentes de hoje adoram criar memes e compartilhar nas redes sociais, e

em pouco tempo tem um monte de gente curtindo, comentando e compartilhando. Pois

é. A memética é a ciência que estuda formalmente os memes. A moda dos memes é tão

grande que utilizamos um meme em todos os capítulos desse material! E agora vamos

juntos refletir sobre a força dos memes, que geralmente apresentam uma imagem e um

pequeno texto (geralmente uma única frase, em linguagem informal).

Para ser realmente um meme, a imagem articulada ao texto tem que ganhar uma

proporção muito grande, ser compartilhada nas redes milhares ou até milhões de vezes.

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A imagem abaixo chama-se “L’Amour Désarmé” (O Amor Desarmado), do francês

William-Adolphe Bouguereau.

Dizem que foi um artista brasileiro que transformou a pintura e criou o meme

com o etezinho, ganhando as redes sociais! Até o Ministério do Turismo já usou esse

meme para divulgar as praias brasileiras!

Atividade 1:

Você já criou algum meme? Que tal praticar? Tente criar um meme colocando

um negro ou uma negra não na posição de empregado ou escravo, como costumamos

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ver nas novelas, livros, revistas e filmes, mas como uma pessoa capacitada para ser

quem desejar ser. Há vários aplicativos gratuitos que ajudam a criar memes. Crie o seu e

compartilhe nas redes sociais. Vamos colaborar para que nossa sociedade seja mais

justa e igualitária? De repente seu meme pode ganhar o mundo!

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi analisar as relações dialógicas entre os documentos

oficiais que norteiam o ensino de Língua Portuguesa (LP) no Ensino Médio e as

coleções de livros didáticos desse componente curricular, adotadas no âmbito dos campi

do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em relação a

questões étnico-raciais, para, em seguida, propor um produto didático que vise à

promoção da igualdade racial.

Para se alcançar esse objetivo, foi feita a análise, na perspectiva bakhtiniana, dos

principais documentos oficiais curriculares relacionados ao ensino de Língua

Portuguesa e a relações étnico-raciais. Em seguida, um levantamento dos livros

didáticos de Língua Portuguesa adotados em todos os campi do IFF foi feito, para,

depois, serem também analisados. Algumas dificuldades surgiram nesse percurso, como

a demora na resposta de alguns campi do IFF sobre a coleção de livros adotada e o fato

de não ter conseguido imediatamente ter em mãos a coleção adotada pelo campus

Quissamã (Língua Portuguesa, da editora Positivo). Essa coleção foi a última a ser

analisada, e a análise só foi possível depois de descobrir que ela é também a coleção

adotada no CEFET/RJ, campus Maracanã, onde curso o mestrado.

Ao longo da pesquisa, resultados parciais foram sendo obtidos e apresentados

em congressos. Questões relacionadas ao currículo de LP foram apresentadas na

Universidade Federal do Espírito Santo (agosto de 2014), no Instituto Federal

Fluminense (dezembro de 2014), na Universidade Nova de Lisboa/Portugal (fevereiro

de 2015) e na Universidade de Pernambuco (maio de 2015). Questões relacionadas aos

livros didáticos de LP foram apresentadas na Pontifícia Universidade Católica –

PUC/RJ (julho de 2015), no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da

Fonseca – CEFET/RJ (outubro de 2015) e na Universidade Federal de Ouro Preto

(outubro de 2015). Todos esses textos aparecem listados nas referências bibliográficas,

assim como meu artigo, baseado na dissertação, publicado na Revista Diálogos (Revista

de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade – Qualis B5 em

Filosofia). Além desse, há um artigo já com aceite para ser publicado na revista Vértices

(Qualis B4 na área interdisciplinar).

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Tais trabalhos são aqui elencados porque foram parte constitutiva da

investigação. A elaboração desses resumos para congressos e artigos para periódicos

permitiram um adensamento maior das conclusões desta pesquisa, ainda que a partir de

dados, então, parciais, por conta da própria dinâmica dialógica implicada nos debates

que aconteceram. Ao longo das apresentações e perguntas, nas idas e vindas dos eventos

e simpósios, as reflexões foram gradativamente aprofundadas.

Os resultados evidenciaram que, em relação ao currículo, representado por

vários documentos oficiais e também pelas tendências do ENEM, há propostas

inovadoras em relação ao ensino de Língua Portuguesa e a relações étnico-raciais. Esses

documentos, contudo, não foram suficientes para mudar o quadro do ensino de

português, tendo sido verificado que as prescrições curriculares dificilmente chegam à

sala de aula, e até mesmo aos livros didáticos.

E em relação aos livros didáticos que foram aqui analisados, conforme

detalhamento apresentado no capítulo 4, pode-se dizer que realmente não acompanham

as transformações prescritas, e ainda priorizam, na maior parte das vezes, o ensino

abstrato da língua, conteudista e tradicional, mais valorizador da língua e da literatura

da elite, silenciador das vozes representadas por minorias étnicas. Esses livros, portanto,

contribuem pouco para a formação discente reflexiva, e quase não estimulam a

construção de identidades étnico-raciais diversificadas.

Consequentemente, como resposta a essas lacunas, foi proposto um produto

educacional. A ideia foi trabalhar o ensino de LP por meio dos gêneros do discurso,

utilizando como tema norteador de debates as relações étnico-raciais. Não se trata de um

material definitivo, mas com ele acredito que professores de LP possam ter outras

ideias, para trabalhar com outros gêneros, e contribuir também para a construção da

igualdade racial.

A título de recomendação de estudos futuros, esta dissertação pretende apontar a

importância renovada de outras investigações na área, principalmente visando

acompanhar próximos lançamentos de livros didáticos, nos anos que se seguirão. A

avaliação da temática deve ser permanente, uma vez que esta contribuição se limita a

um domínio sincrônico. Repensar o ensino de LP e seu currículo, sobretudo sob o viés

das relações étnico-raciais, possui grande relevância social, já que o tema envolve

muitas disputas, que estão sempre em cena e que tendem a se agravar futuramente,

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conforme indícios que hoje se verificam na grande mídia. No Jornal O Globo, no

caderno País do dia 07 de janeiro de 2016, é dito, por exemplo, que falta gramática no

currículo proposto pela Base Nacional Comum Curricular, ainda em trâmite, o que

demonstra um forte apego ao ensino da gramática. Duras críticas a um novo modelo de

ensino de História também foram feitas na mesma reportagem, pois alegam que há uma

diminuição da História europeia e uma supervalorização da História africana, afro-

brasileira e indígena. Em uma outra reportagem do mesmo jornal, no mesmo caderno,

publicado dia 06 de janeiro de 2016 (um dia antes), críticas semelhantes também

haviam sido feitas. Tudo isso mostra que há reação sistemática, bancada

intencionalmente pela imprensa, quanto às mudanças emancipadoras que são propostas

para veiculação de temas de igualdade racial nos livros didáticos.

Desta forma, acredito ser necessário um mapeamento constante das discussões

sobre currículo, envolvendo tanto o ensino de LP como as relações étnico-raciais. A

dissertação aqui apresentada procurou mostrar o estado da questão: como o currículo e

os livros didáticos de LP estão sendo produzidos nos dias de hoje, e como é encarada a

questão étnico-racial nesses materiais. Acredito, contudo, que cenários de continuidades

e/ou rupturas poderão mudar, o que renderão possíveis investigações em anos

vindouros.

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