as faces da figuratividade nas fábulas de esopo_ enunciação, dialogismo e polifonia _ quinelato _...

Upload: claudio-hara

Post on 14-Oct-2015

14 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    105

    Revista de Educao

    Vol. 13, N. 15, Ano 2010

    Eliane Quinelato

    Faculdade Anhanguera de Limeira

    [email protected]

    AS FACES DA FIGURATIVIDADE NAS FBULASDE ESOPO: ENUNCIAO, DIALOGISMO EPOLIFONIA

    RESUMO

    A constatao de que as fbulas gregas so discursospredominantemente figurativos nos levou a propor um estudo que temcomo objetivo indicar as formas de produo de sentido desse discurso,sobretudo no que diz respeito constituio de significados por meiode figuras. Ao concretizar seu discurso o enunciador pretende que eleseja monofnico, ou seja, que apenas a voz da ideologia dominante sefaa ouvir. No entanto, a prpria construo narrativa e riquezafigurativa acabam por revelar a polifonia subjacente s narrativasfabulares, principalmente nos textos que tematizam o trabalho, j queessas narrativas expressam duas vozes, com ideologias distintas.

    Palavras-Chave: fbula; figuratividade; enunciao; dialogismo; polifonia.

    ABSTRACT

    The certainty that the Greek fables are predominantly figurative

    speeches led us proposing a study that aims to indicate the ways ofmeaning production of this speech, specially, in what concerns to theconstitution of meanings through figures. In delivering his speech, theenunciator intends that it is monophonic, in other hands, that only thedominant ideology voice be heard. However, the narrative constructionitself and the richness figurative reveal an underlying polyphony to thenarrative fables, especially in texts that the subject is work, since thesenarratives express two voices with different ideologies.

    Keywords: fable; figuration; enunciation; polyphony; dialogism.

    Anhanguera Educacional Ltda.

    Correspondncia/ContatoAlameda Maria Tereza, 2000Valinhos, So PauloCEP [email protected]

    CoordenaoInstituto de Pesquisas Aplicadas eDesenvolvimento Educacional - IPADE

    Artigo OriginalRecebido em: 22/10/2009

    Avaliado em: 3/4/2011

    Publicao: 15 de outubro de 2011

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    106 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    1. INTRODUO

    A viso grega de trabalho , at hoje, objeto de estudo e reflexes entre os estudiosos

    devido ao fato de este tema aparecer retratado em vrios gneros literrios e oscilar no

    que se refere aos aspectos positivos e negativos que se faz dele.

    Na Antiguidade, o trabalho aparece sempre sob duas vertentes uma positiva e

    outra negativa e vrios so os estudos que apontam essa dualidade. A viso positiva

    aparece, na maioria das vezes, associada ao trabalho agrcola, enquanto a viso negativa

    est atrelada ao trabalho tcnico. Trabalhar para outra pessoa tambm implica rejeio,

    pois um tipo de trabalho que se assemelha ao trabalho escravo. O ideal para os gregos

    era que o homem possusse muitos escravos trabalhando em suas terras e fazendo crescer

    o seu patrimnio, enquanto ele, o senhor, ia s assemblias tratar dos assuntos polticos de

    sua comunidade.

    Essa viso bem difundida nos estudos crticos e alguns aspectos dessa postura

    podem ser observados, tambm, na literatura. Homero descreve muitas cenas de trabalho

    em suas epopias, que podem ser observadas nos momentos em que o poeta coloca seus

    mais caros heris realizando atividades de trabalho ou referindo-se a certos trabalhadores

    com simpatia. Nos poemas homricos no encontramos hostilidade nas referncias ao

    trabalho. Isso at compreensvel, uma vez que a preocupao do poeta retratar o lado

    nobre de seus heris aristocratas e no a vida cotidiana dos gregos pobres. J o poeta

    Hesodo, caracteriza o trabalho, sobretudo o agrcola, ora como essencial para que o

    homem esteja em comunho com os deuses, ora como um castigo divino.

    Entretanto, essa dualidade no uma regra fixa em outros gneros literrios.

    Encontramos, nas fbulas espicas, rejeies at mesmo em relao ao trabalho com a

    terra, que, culturalmente, estava ligado s questes de carter religioso. Nas fbulas em

    que h duas ou mais personagens, por exemplo, ao menos uma delas movida pela

    paixo da insatisfao e tenta libertar-se do trabalho, seja domstico, agrcola ou tcnico.

    Os que se mostram disciplinados e conscientes da necessidade do trabalho para a

    sobrevivncia, geralmente so em nmero bem reduzido e esse grupo composto por

    aqueles que lidam com a terra, normalmente trabalhando em lavouras prprias.

    Pode-se afirmar, seguramente, que todas as personagens fabulsticas desejam

    livrarem-se do trabalho. Algumas, vendo-se impossibilitadas de livrar-se da labuta devido

    presena vigilante de um opressor, questionam o fato de as demais personagens que

    compem o mesmo espao narrativo no trabalharem em igual proporo, mas receberem

    a comida, vista sempre como recompensa pelo trabalho. H ainda as que julgam o fazer

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 107

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    alheio desprovido de utilidade e consideram as suas atividades mais importantes e

    merecedoras de recompensa.

    Acreditamos que o arranjo figurativo possa denunciar as condies de trabalho a

    que estas personagens esto submetidas e, consequentemente, desvendar os motivos que

    levam a maioria delas a rejeit-lo e uma minoria a enaltec-lo. Por este motivo,independentemente de o discurso moral condenar ou aprovar as atitudes desses

    trabalhadores, analisaremos apenas o discurso figurativo de cada fbula, pois acreditamos

    que atravs do exame dessa poro de texto que desvelaremos a razo da averso das

    personagens ao trabalho.

    Quanto metodologia, embora no sejamos semioticistas, sempre vimos com

    bons olhos a teoria semitica greimasiana por ser um arcabouo terico que abre amplo

    leque de possibilidades ao analista, permitindo sua aplicao a uma variada gama detextos: verbais, no-verbais, literrios, pictricos, etc. Estamos conscientes, entretanto, da

    complexidade da teoria e de todas as dificuldades que permeiam a assimilao de seus

    conceitos. Ainda assim, faremos uso de parte de seu complexo terico como apoio

    anlise da construo do sentido dos textos, sobretudo no que diz respeito ao nvel

    discursivo, local privilegiado para o desvelamento da posio ideolgica do sujeito da

    enunciao.

    A partir dessas constataes, propomos examinar a representao do trabalho

    nas fbulas espicas por meio da anlise de um corpus constitudo por 17 textos.1 No

    entanto, para este trabalho, destacaremos apenas as fbulas que se fizerem necessrias s

    nossas exemplificaes.

    2. ENUNCIAO E FBULA

    De acordo com Bertrand (2003, p. 80), a incorporao do sujeito da enunciao no modelo

    semitico se deu com a expulso da noo de subjetividade do sujeito falante e a

    concretizao de um modelo que objetivasse o texto, pois os semiticos temiam um

    retorno s anlises psicolgicas e ontolgicas sobre o sujeito enunciador, que, at ento,

    permeavam os estudos literrios.

    Assim, a incluso necessria de um sujeito enunciador tornou-se possvel a partir

    do momento em que a semitica considerou a enunciao como instncia logicamente

    pressuposta pelo enunciado. Diz Bertrand:

    1Todas as fbulas foram extradas da edio bilngue de Manuel Aveleza de Souza. As fbulas de Esopo. Rio de Janeiro:Thex, 1999.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    108 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    O sujeito pressuposto pela manifestao do discurso, reconstituvel a partir dos traosque deixa nele, acessvel por meio de numerosas instncias de delegao que simulamsua presena no interior do texto (o narrador, o observador, os interlocutores),localizvel por operaes enunciativas (debreagem e embreagem, focalizao, ponto devista e perspectiva) e reconhecido como agente da textualizao, mas semprecuidadosamente mantido dentro dos limites de pertinncia que a teoria fixou.(BERTRAND, 2003, p. 30)

    Como mostra o excerto, para a semitica, possvel reconstruir o sujeito daenunciao a partir de pistas que o enunciador projeta no enunciado, tais como as

    projees de pessoa, tempo e espao, sempre presentes no discurso. A identificao do

    sujeito enunciador se d atravs de certos mecanismos lingusticos, operaes

    enunciativas denominadas debreageme embreagem. So esses mecanismos que instalam, no

    texto, a presena do sujeito da fala.

    A partir de tais pressupostos podemos afirmar que, se h um sujeito enunciador

    que deixa pistas de sua presena no texto, estas pistas s podem ser recuperveis nopatamar das estruturas superficiais da construo do sentido, que o nvel discursivo. Da

    a importncia da figurativizao. por meio da converso dos temas em figuras que o

    sujeito enunciador torna-se o mediador da comunicao estabelecida no texto: ao fazer a

    correspondncia entre as figuras semnticas fixadas no discurso e as figuras que

    representam o mundo na linguagem, o leitor constri o sentido do texto, aceitando ou no

    a ideologia ali sedimentada atravs das palavras.

    A fbula possui a particularidade de manifestar, em sua estrutura, um tipo delinguagem biplana: num primeiro plano, temos um discurso figurativo que nos conta uma

    histria de animais. Esta histria est atrelada a um segundo plano o discurso da

    moralidade, que pode ser considerado o plano de leitura orientado por um enunciador,

    mas que deve ser lida e interpretada como uma histria de homens. Esse fenmeno

    singular da fbula faz com que tenhamos de apreender o parecer do sentido,

    semioticamente falando, para podermos relacionar o discurso figurativo ao temtico,

    proposto pela moralidade.

    Assim, a enunciao responsvel pela comunicao dos valores que subjazem

    ao discurso torna-se elemento fundamental de desvelamento do sentido e requer

    ateno especial, sobretudo porque, muitas vezes, possvel observar discrepncias entre

    a mensagem veiculada no discurso figurativo, e a retomada temtica feita pelo enunciador

    no discurso da moralidade.

    O discurso figurativo est concretizado de forma a veicular uma mensagem

    abstrata, mas que adota um suporte concreto de linguagem: delineia-se a imagem domundo atravs de situaes que poderiam ser reais e instalam-se, no discurso, tempo,

    espao, objetos e personagens que comunicam os valores arquitetados pelo enunciador.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 109

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    Normalmente, as fbulas projetam um narrador em terceira pessoa com a finalidade de

    ocultar o enunciador e criar a iluso de objetividade. Consequentemente, obtemos um

    efeito de distanciamento da enunciao, pois os fatos acontecem no tempo do ento e

    no espao do l. A semitica d a esse mecanismo o nome de debreagem enunciva,

    procedimento lingustico em que o sujeito, o tempo e o espao do enunciado so

    diferentes do sujeito, do tempo e do espao da enunciao (FIORIN, 2001, p. 40-41). Alm

    desse processo, o enunciador pode instalar interlocutores em seu discurso, fazendo uso de

    uma debreagem interna a fim de obter um efeito de realidade, que pode ser observado

    quando se introduz um discurso direto, relatando a fala da prpria personagem.

    A ttulo de exemplo, retomaremos a conhecida fbula espica A cigarra e as

    formigase apontaremos apenas os aspectos da sintaxe discursiva:

    Era inverno, e as formigas secavam o trigo molhado. Uma cigarra, com fome, pediu-lhes

    um pouco de comida. Ento as formigas lhe disseram: Por qu, durante o vero, noajuntaste provises tambm tu? Ao que a cigarra respondeu: No tive tempo, poiscantava melodiosamente. E as formigas, rindo, replicaram: Pois se no veroflauteavas, no inverno dana!

    Esta fbula mostra que, em todo e qualquer assunto, ningum deve ser negligente, a fimde no sofrer desgostos nem correr perigos. (ESOPO apudSOUSA, 1999, p.73)

    A narrativa possui um narrador em terceira pessoa que temporaliza seu discurso

    atravs da estao do inverno, e insere os atores formigas e cigarra - para comunicar

    seus valores. A fim de conferir credibilidade ao seu discurso, ele faz uso da debreagem

    interna, transmitindo ao leitor o dilogo entre os atores, como podemos observar atravs

    da fala das formigas: Por qu, durante o vero, no ajuntaste provises tambm tu?, e

    da resposta da cigarra: No tive tempo, pois cantava melodiosamente.

    Os valores manipulados pelo enunciador aparecem, sobretudo, atravs da

    punio da cigarra cantora no discurso figurativo. Tal punio reafirmada na

    moralidade, pois o enunciador comunica os valores favorveis ao trabalho das formigas e

    desfavorveis aos da cigarra, uma vez que ele v o ato de cantar como negligente.

    Das dezessete narrativas analisadas, a saber - Hermes e a Terra, O lavrador e seus

    filhos, A formiga e o escaravelho, A cigarra e as formigas, A novilha e o boi, O jumento e o

    jardineiro, Os menagurtes, Os jumentos recorrem a Zeus, O jumento que transportava sal, A

    mulher e suas criadas, Os dois ces, O jumento e o mulo transportando a mesma carga, O ferreiro e

    seu cozinho, A cabra e o jumento, O cavalo e o soldado, O cavalo e o palafreneiro e O jumento

    selvagem e o jumento domstico, apenas trs Os jumentos recorrem a Zeus, O jumento e o mulo

    transportando a mesma carga e A mulher e suas criadas, no apresentam dilogo em sua

    estrutura. Por outro lado, todas elas apresentam marcas da enunciao no enunciado.Essas marcas podem ser exemplificadas por meio de projees actoriais, como por

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    110 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    exemplo, o uso dos termos certo lavrador, uma formiga, certos menagurtes, etc.;

    temporais, como o uso de era inverno, na estao do vero; ou ainda marcas

    espaciais, como l, aqui etc. O uso constante dos verbos no pretrito, como por

    exemplo, ordenou, replicou, atravessava, escorregou, etc., tambm pode ser

    considerado marca enunciativa, pois confirma a presena de um narrador observador, que

    narra em terceira pessoa.

    Nesse sentido, possvel afirmar que h uma regularidade na sintaxe discursiva

    das fbulas no que concerne s projees enunciativas e recorrncia de debreagens

    internas no discurso figurativo. O uso de tais recursos no ingnuo: o enunciador projeta

    um narrador que observa os fatos e os relata tal como eles aconteceram, alm de fazer uso

    de debreagens internaspara garantir a veracidade do discurso que pronuncia.

    Com efeito, no h dvida de que, em todo ato de comunicao oral ou escrito,cientfico ou ficcional, a inteno do enunciador manipular e convencer seu enunciatrio

    sobre a verdade do discurso que profere, fazendo-o crer que aquilo que se diz

    verdadeiro.

    Entretanto, essa verdade tencionada pelo enunciador aparece de uma forma

    muito peculiar nas fbulas espicas, sobretudo no que se refere s diferentes posies

    enunciativas observadas, em alguns textos, quando comparamos o discurso figurativo

    com o discurso moral.

    O discurso narrativo/figurativo oriundo da tradio e no havia o discurso

    moral, que aparece atrelado narrativa das fbulas. Inicialmente, a fbula era utilizada

    como prtica discursiva2, uma forma alternativa de algum estruturar seu discurso. O

    locutor poderia utilizar-se de um discurso ficcional ou de uma histria verdica para

    concretizar seu argumento.

    Para citar um exemplo de argumento sustentado por um discurso ficcional,

    podemos nos reportar conhecida fbula O rouxinol e o falco, parte integrante do poemaOs trabalhos e os dias, do poeta didtico Hesodo, dois sculos antes da poca em que

    vivera Esopo. A histria que o poeta conta uma fbula em que a lei do mais forte

    prevalece e governa a vida, pois um falco, ao segurar um rouxinol que implora para no

    ser devorado, no se condoesse dele, dizendo-lhe, perante suas splicas, que, por ser mais

    forte, agir como lhe apraz. O pssaro deve manter-se calado, pois somente os iguais

    devem discutir, enquanto os inferiores devem permanecer quietos para que no sejam

    humilhados. De acordo com a narrativa, desta maneira que se deve ler esta fbula.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 111

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    Entretanto, inserida num contexto de desavena fraternal, esta fbula proferida

    por Hesodo ao seu irmo Perses, acusado de escamotear a diviso de uma herana

    deixada pelo pai. Na realidade o poeta constri sua prpria moralidade e d outra

    finalidade a esta narrativa: ele a profere com a inteno de aconselhar seu irmo Perses a

    no agir como o falco da fbula.

    Confirma-se, assim, que nas narrativas da tradio, o discurso figurativo servia

    de ilustrao para censurar ou aprovar determinadas atitudes comuns aos seres humanos,

    e isso dependia do contexto e da inteno daquele que proferia a fbula. No havia,

    inicialmente, o discurso moral, que aparece atrelado narrativa das fbulas, j que a

    moralidade era extrada do prprio contexto enunciativo.

    Com isso, pode-se afirmar que, nas narrativas da tradio, o discurso figurativo

    servia de ilustrao para censurar ou aprovar determinada atitude, e isso dependia docontexto e da inteno daquele que proferia a fbula no momento em que ela era dita.

    Inserida em colees, a moral desta fbula Assim tambm, entre os homens,

    so insensatos aqueles que, na esperana de bens maiores, deixam escapar os que tm nas

    mos (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 333). Alm de a moralidade retomar o discurso

    figurativo e concordar com a atitude do falco, ela aparece descontextualizada e a

    narrativa deve ser interpretada como um jogo de poder em que a opinio do mais forte

    prevalece. Como se pode notar, o discurso figurativo permite que se faa mais de uma

    leitura, possibilitando ao enunciador a construo de outra moralidade relacionada,

    certamente, posio ideolgica que ele quer afirmar.

    De acordo com as informaes de Fiorin (1999, p. 102), h textos que podem ser

    interpretados sob outro plano de leitura, mas a recorrncia de traos semnticos que

    estabelece a leitura que deve ser feita do texto. O exame da moralidade de algumas

    narrativas do nosso corpuschamou a ateno para esse aspecto, pois notamos que havia

    certa polifonia em relao posio ideolgica do enunciador no que diz respeito aos dois

    discursos o figurativo e o temtico.

    Em algumas fbulas h um enunciador que se posiciona favoravelmente ao

    trabalho, fato confirmado por meio da figurativizao escolhida por ele. Nesse conjunto

    de textos, a moralidade preserva a mesma posio ideolgica do discurso figurativo, pois

    aquele que no trabalha condenado pelo enunciador. A ttulo de exemplo podemos citar

    a fbula A formiga e o escaravelho (ESOPO apud SOUSA, p. 115), em que o enunciador

    figurativiza o trabalho da formiga por meio de vrios termos que remetem ao trabalho

    2 DEZOTTI, Maria Celeste C. A fbula grega: da prtica discursiva ao gnero literrio. Organon(UFRGS), v.13, n. 27, p.137-

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    112 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    agrcola, como por exemplo os termos rondar pelo campo, apanhar gros de trigo,

    armazenar etc.

    Nessa narrativa, a formiga tematiza o homem trabalhador que se previne para o

    futuro quando armazena os alimentos que recolhe no vero para sustentar-se no inverno.

    O escaravelho, por no trabalhar como ela e posicionar-se como admirador de seutrabalho, tematiza o homem imprudente, que no possui reservas para o futuro, j que,

    quando chega o mau tempo, recorre a ela para solicitar o alimento. O enunciador da

    moralidade parece compactuar com as atitudes da formiga quando diz: Igualmente

    aqueles que, nos tempos de fartura, no se previnem para o futuro, caem em misria

    extrema quando as circunstncias mudam (ESOPO apudSOUSA, 1999, p.115). Ao negar

    o alimento ao escaravelho, a formiga apoiada pelo enunciador da moralidade, pois este

    critica o fato de ele no ter se prevenido durante o bom tempo.

    Entretanto, possvel observar, em alguns textos, duas posies enunciativas

    distintas. O enunciador do discurso figurativo parece denunciar um tipo de trabalho

    penoso, em que os atores, tematizados pelos trabalhadores sofrem pelo excesso de

    trabalho, falta de comida e de lazer, entre outras queixas.

    Assim, julgamos pertinente pensar que, num primeiro plano de leitura, o

    discurso desse grupo de narrativas denuncia os maus tratos e o trabalho humilhante a que

    esses atores esto submetidos. Dessa forma, poder-se-ia esperar uma moralidade que

    condenasse a atitude dos opressores, j que a principal funo da fbula aconselhar os

    homens a terem uma boa conduta. Mas, ao contrrio do que seria esperado, o enunciador

    da moralidade parece julgar natural a situao lamentvel dos trabalhadores, pois os

    condena por tentarem mudar sua condio. Nesse sentido, a moralidade parece

    problematizar o discurso figurativo, possibilitando planos de leitura distintos, como

    podemos observar na fbula Os jumentos recorrem a Zeus.

    Certo dia os jumentos, acabrunhados por causa de ininterruptamente carregarem fardos

    e suportarem fadigas, enviaram emissrios a Zeus, rogando-lhe o fim de seus penosostrabalhos. Ento Zeus, querendo mostrar-lhes que isso era impossvel, disse-lhes queeles seriam liberados do seu sofrimento logo que, urinando, formassem um rio. E osjumentos, julgando que Zeus falava a srio, desde ento at hoje, sempre que enxergamurina de algum deles em algum lugar, param ao redor e, tambm eles, urinam l.

    Esta fbula mostra que inaltervel o decretado para o destino de cada um. (ESOPOapudSOUSA, 1999, p. 177)

    A narrativa conta a histria dos jumentos que recorrem a Zeus para que ele

    coloque fim aos penosos trabalhos que eles vm sofrendo, pois se queixam de carregarem

    fardos e suportarem fadigas, ininterruptamente. Zeus, apesar de conceder mudanas na

    146, 1999.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 113

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    vida dos jumentos, acaba por dar-lhes outro trabalho: urinar at que se formasse um rio.

    Ainda que a figurativizao privilegie termos que denotem trabalho pesado, o enunciador

    da moralidade diz: Esta fbula mostra que inaltervel o decretado pelo destino para

    cada um. Nesse sentido, discurso narrativo e moral parecem estabelecer diferentes vozes,

    j que uma denuncia o trabalho penoso e a outra afirma que se deve conformar com ele.

    O discurso figurativo das fbulas que tematizam o trabalho, em linhas gerais,

    ilustra as diferentes queixas dos trabalhadores, tais como as oposies entre as atividades

    e a quantidade de alimento recebido como recompensa, a falta do alimento aps a

    realizao do trabalho, etc. Contudo, o enunciador da moralidade mantm a postura de

    um observador que apia aquele que trabalha mais, julgando-o digno de maior

    quantidade de alimentos, ou ainda, condena o opressor que nega o alimento queles que

    trabalham. possvel notar que esse enunciador no polemiza com o do discurso

    figurativo, o que nos permite ver discurso figurativo e temtico sob o mesmo plano.

    Isso pode ser observado atravs da fbula O jumento e o mulo transportando a

    mesma carga (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 167), em que um jumento fica indignado

    quando percebe que o mulo, seu companheiro de jornada, recebe rao dupla, enquanto

    ele recebe menos comida, mas trabalha em igual proporo. Entretanto, tendo percorrido

    um pequeno trecho da viagem, ambos carregados com a mesma carga, o arrieiro percebe

    que o jumento est fadigado e o alivia de parte da carga, passando-a para o mulo.

    Percebendo, novamente, a fadiga do jumento em outro trecho do caminho, o arrieiro o

    alivia de toda a carga, colocando tudo sobre o mulo, que termina a viagem carregando a

    carga toda sozinho.

    O desfecho da narrativa justifica o fato de o mulo receber maior quantidade de

    alimento e a prpria voz da personagem deixa transparecer a posio ideolgica do

    enunciador, pois ele parece julgar merecido contemplar com mais alimento aquele que

    trabalha mais: E agora, meu camarada, no te parece justo que me distingam com uma

    rao dupla? (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 167). O enunciador da moralidade

    compactua da mesma posio ideolgica, pois reafirma que no devemos julgar pelo

    comeo, mas pelo resultado, o merecimento de cada um.

    Uma exceo pode ser observada na fbula O jumento selvagem e o jumento

    domstico(ESOPO apudSOUSA, 1999, p. 175). O discurso figurativo mostra que o jumento

    domstico apanha com um basto para realizar o trabalho de carregar fardos, o que

    denota um trabalho rduo. Aqui, o enunciador do discurso moral julga esse trabalho

    perigoso e sofrvel, diferenciando-se, portanto, do enunciador do segundo grupo, que

    apoiava o trabalho rduo.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    114 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    3. SEMNTICA E SINTAXE DISCURSIVA DAS FBULAS

    de suma importncia a contribuio que Lima (1984) prestou aos estudos sobre a

    enunciao. Suas reflexes encontram-se explicitadas em um artigo intitulado A forma da

    fbula,onde o autor lana questes complexas e pertinentes a quem desejar aprofundar-se

    no estudo do gnero.

    No plano semntico, Lima (1984, p. 66-68) d nfase actorializao, afirmando

    que, na histria, temos a presena de atores no-humanos, ainda que antropomorfizados,

    que respondem por aes no-humanas; no discurso moral, temos o contrrio, atores

    humanos que respondem por aes humanas.

    Para o autor, a fbula aponta a oposio - antropomorfo vs humano em relao

    aos atores da histria, ainda que, nessas histrias, atuem animais. O efeito de sentido

    oriundo dessa oposio denominado pelo autor desumanizao. De fato, mesmo que

    os atores sejam animais, eles trazem traos humanos quer seja nas aes, quer seja em

    certas adjetivaes que recebem do enunciador, como por exemplo, os adjetivos

    invejoso, orgulhoso, negligente, possveis de serem encontrados, na maioria das

    fbulas, como um dos fatores responsveis pelas aes das personagens. Outras fbulas

    possuem o sema humano no prprio ttulo, caracterizando, muitas vezes, algumas

    profisses, como por exemplo, O jumento e o jardineiro, O homem e o co, O co e o aougueiro,

    etc.

    Para exemplificar, vejamos a fbula Os menagurtes:

    Alguns menagurtes tinham um jumento que eles costumavam carregar com suasbagagens sempre que viajavam. Ora, certo dia, tendo o jumento morrido de fadiga, eleso esfolaram e fizeram da sua pele alguns tamborins, que utilizavam bastante. Entooutros menagurtes, encontrando-se com eles, perguntaram-lhes onde estava o jumento,ao que eles responderam: Morreu, mas recebe tanta pancada, como jamais apanhouenquanto viveu.

    Assim tambm alguns servos, mesmo quando liberados da escravido, no se livramdos encargos da servido. (ESOPO apudSOUZA, 1999, p. 243)

    Na histria, atuam os menagurtes, que so sacerdotes da deusa Cibele e,

    portanto, so atores humanos, e o jumento, ator no-humano. Nesta narrativa, o jumento

    no age de forma humana, pois carrega as bagagens dos sacerdotes, atividade comum a

    este tipo de animal. Tambm no h referncia, no plano figurativo, s queixas,

    reclamaes ou qualquer atitude que permita atribuir ao jumento o trao humano.

    Contudo, podemos recuperar o trao humano do jumento, na moralidade, por

    meio da palavra servos. O enunciador associa o jumento aos servos, fazendo uma

    analogia, pois o jumento libertou-se da escravido de carregar os fardos, mas continuou

    servindo aos menagurtes como instrumento musical. O exemplo acima torna mais claro os

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 115

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    dizeres de Lima (1984) e fortalece as reflexes que fizemos sobre o fato de a

    figurativizao apontar um trabalho penoso e rduo.

    Quanto sintaxe discursiva, o professor chama a ateno para o fato de os

    dicionrios conceituarem a fbula apenas como uma narrativa alegrica, imaginria,

    esquecendo-se de que, acima de tudo, ela um procedimento discursivo dissimulado nafala. O autor foi o primeiro a resgatar a idia de fbula como sinnimo de fala, afirmando

    que este tipo de narrativa possui um terceiro elemento, alm do texto narrativo e da

    moralidade, que ele denomina discurso metalingustico.

    necessrio que se leve em conta este terceiro elemento para que o trabalho de

    anlise do discurso seja completo, tanto em sua expresso quanto em seu contedo, pois a

    compreenso desse carter metalingstico da fbula s ter efeito se partirmos do estudo

    da enunciao, pressuposta no enunciado, uma vez que esse discurso que introduz amoral das fbulas, uma das marcas da enunciao, e a prpria presena da palavra

    moral, denuncia que existe um narrador projetado no texto. Como exemplo, vejamos a

    aplicao desses conceitos em uma fbula de nosso corpus:

    O jumento que julgava feliz o cavalo

    Certo jumento considerava feliz um cavalo que era alimentado fartamente e tratado commuito cuidado, enquanto ele prprio no tinha sequer palha suficiente e era submetido anumerosos trabalhos. Entretanto sobreveio uma poca de guerra, e um soldado, armadodos ps cabea, montou no cavalo e impeliu-o por toda a parte, lanando-o at mesmo

    no meio dos inimigos, onde o cavalo, ferido, caiu por terra. Ento, ao ver aquilo, ojumento mudou de opinio e lamentou o cavalo.

    Esta fbula mostra que no se deve invejar os chefes nem os ricos, mas pensar nasrivalidades e nos perigos que os cercam, e resignar-se com a pobreza.(ESOPO apudSOUSA, 1999, p. 171, grifo nosso)

    Uma caracterstica pertinente ao campo semntico a associao do cavalo (ator

    no-humano) figura dos chefes e ricos (atores humanos). O enunciador pretende

    mostrar que, embora seja tratado com fartura, o cavalo que tomar a linha de frente nos

    combates, enquanto o jumento, associado figura do homem pobre, no necessita de

    alimentao farta, pois no adentrar em confrontos blicos.

    Em termos sintticos, como em todas as fbulas espicas, temos um texto

    narrativo seguido por um texto moral que uma interpretao da narrativa. O narrador

    faz uso da debreagem enunciva, que apaga as marcas da enunciao no enunciado com a

    finalidade de criar a iluso de objetividade e imparcialidade.

    O terceiro elemento, que Lima (1984) denomina discurso metalingustico, a

    parte destacada em negrito, uma poro de texto que encontramos acoplada no incio do

    discurso moral. Pode ser representado, em lngua portuguesa, pelos termos: a fbula

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    116 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    adapta-se, a fbula mostra, a fbula ensina; ou, ainda, pelo prprio tom de voz para

    mais baixo ou para mais alto, que se d na leitura de uma fbula.

    Importa, pois, reconhecer a importncia deste fragmento enquanto elemento

    constitutivo da fbula. Diz o autor:

    [...] qualquer que seja a maneira pela qual manifeste o discurso representado, o discursometalingstico exterior tanto histria quanto moral. Sem o recurso aos conceitospostos disposio pela teoria da enunciao, no h nenhuma possibilidade deexplicao metodolgica desse discurso na economia de uma fbula. (LIMA, 1984, p. 63-64)

    Esse fragmento pressupe que temos um locutor que se utiliza de uma narrativa

    para demonstrar, censurar, elogiar, aconselhar, reprovar, etc., e consequentemente, que

    temos um alocutrio. O enunciador quer que o enunciatrio decodifique o que foi relatado

    no discurso anterior e podemos dizer que por meio desse discurso moral que o locutor

    faz um recorte da mensagem ilustrada na narrativa e condiciona a interpretao do leitor.

    Para Lima (1984, p. 65), o analista da fbula que pretende dar conta de um estudo

    completo, deve levar em conta os trs elementos, deve atentar para os conceitos de

    debreageme embreagem, pois pela primeira, cria-se o efeito de referencialidade, mediante o

    apagamento de marcas da enunciao; pela segunda, o efeito de sentido enunciao,

    graas instalao no discurso dos termos categoriais apropriados que podem ser

    sintetizados em eu-aqui-agora.

    Assim, a fbula faz uso das duas categorias enunciativas propostas pela teoria

    semitica. A primeira quando apaga as marcas da enunciao por meio de um relato em

    terceira pessoa, que esbanja objetividade, e a segunda, quando faz uma espcie de retorno

    instncia enunciativa, explicitando essas marcas por meio do discurso metalingstico,

    pois temos a impresso de que algum est nos apontando o que deve ou no deve ser

    feito.

    Julgamos, assim, que esse retorno instncia da enunciao pode ser um dos

    articuladores da polifonia existente nas fbulas, j que parece ser o prprio enunciador arecortar a mensagem que ele deseja transmitir. Nessa embreagem h uma iluso de

    identidade, ou seja, como se no fragmento de texto A fbula mostra houvesse um eu

    oculto, disfarado nessa poro de texto, dizendo: eu afirmo isso.

    Esse mecanismo revela que o enunciador parece no incomodar-se com o fato de

    as personagens que tipificam os trabalhadores serem maltratadas ou realizarem um

    trabalho rduo que, muitas vezes, podem lev-las morte, mas ele se preocupa em

    destacar que toda atitude tomada contra o trabalho (e deve) ser punida.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 117

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    O trabalho de Lima (1984) contribuiu para que, ao levarmos em conta este

    terceiro elemento o discurso metalingustico -, pudssemos confirmar a presena de um

    enunciador cujos interesses so contrrios aos interesses daqueles que tematizam os

    trabalhadores. por este motivo que a moralidade no pune os responsveis pelo

    sofrimento dos que executam o trabalho rduo: a voz privilegiada da moralidade das

    fbulas do corpus a desse enunciador, que compactua com valores de outra classe social,

    que no a dos trabalhadores.

    4. ENUNCIAO E POLIFONIA

    Impossvel falarmos em polifonia sem nos referirmos a Mikhail Bakhtin. As reflexes do

    semioticista russo esto disseminadas sob diferentes perspectivas tericas e estenderam-se

    para os estudos lingusticos e semiticos atuais.

    Embora seja verdade que as obras de Bakhtin tratam de uma complexidade de

    temas, tais como o dialogismo, a polifonia, a intertextualidade, a enunciao, a

    carnavalizao, etc., devemos levar em conta que esses conceitos so desdobramentos de

    um nico tema que perpassa todo seu pensamento o dialogismo.

    De acordo com as informaes de Barros (1999, p.2), Bakhtin concebe o

    dialogismo como princpio constitutivo da linguagem e a condio de sentido do

    discurso. Nesse sentido, quando discursamos, estamos sempre recuperando outros

    discursos que fazem parte de nossa cultura, assimilando-os mesmo que

    involuntariamente. O outro ocupa espao privilegiado na constituio do sentido do

    texto porque nenhuma palavra nossa, mas traz em si a perspectiva de outra voz.

    Dos desdobramentos do dialogismo bakhtiniano, interessa-nos os conceitos de

    enunciao, polifonia e a relao entre a linguagem e o contexto scio-histrico. De fato, o

    exame da enunciao ocupa espao privilegiado nas reflexes de Bakhtin, mas sempre

    partindo do pressuposto de que se assentam no discurso outras vozes, que contribuem

    para a construo de um discurso que tem apenas a aparncia de ser individual. Na viso

    do autor, no h discursos monofnicos. O que ocorre que a polifonia pode estar, muitas

    vezes, mascarada, dando-nos a impresso de se ter uma nica voz. So de Barros (1999, p.

    6) as palavras que resumem o pensamento do autor:

    H textos polifnicos e monofnicos segundo as estratgias discursivas acionadas. Noprimeiro caso, o dos textos polifnicos, as vozes se mostram; no segundo, o dosmonofnicos, elas se ocultam sob a aparncia de uma nica voz. Monofonia e polifoniade um discurso so, dessa forma, efeitos de sentido decorrentes de procedimentosdiscursivos que se utilizam em textos, por definio, dialgicos. Os textos so dialgicosporque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitosde polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia,quando o dilogo mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (BARROS, 1999, p.6)

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    118 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    Nesse sentido, na viso bakthiniana, a polifonia no pode ser confundida com o

    dialogismo, uma vez que este o princpio constitutivo de todo discurso, enquanto a

    polifonia se caracteriza por apresentar vozes polmicas, contrrias e independentes no

    discurso (apud BARROS, 1999), como pudemos constatar na anlise das fbulas em

    questo.

    Na esteira de Bakhtin, a teoria semitica greimasiana procura reconstruir a

    ideologia dos discursos individuais sem desprezar a relao entre a linguagem e o

    contexto scio-histrico, que sempre permeada por discursos dialticos e antagnicos.

    De acordo com Barros (1999, p. 8) as classes sociais utilizam a lngua de acordo com seus

    valores e antagonismos. Os discursos escolhem seus valores e procuram mascarar o

    dialogismo constitutivo da lngua e suas contradies internas.

    o que pretendemos ilustrar atravs da fbula O jumento e o jardineiro:Certo jumento estava ao servio de um jardineiro. E, como comia pouco e trabalhavamuito, implorou a Zeus livr-lo do jardineiro e fazer com que ele fosse vendido a umoutro senhor. Ento Zeus atendeu-o, e fez com que ele fosse vendido a um oleiro.Contudo, novamente ele ficou descontente, porque o sobrecarregavam ainda mais doque anteriormente, fazendo-o transportar argila e os vasos de loua. Portanto, mais umavez ele suplicou mudar de dono, e foi vendido a um curtidor de peles. Assim ele caiusob o domnio de um dono pior do que os anteriores. E, olhando para os produtos dotrabalho dele, o jumento disse gemendo: Ai de mim, como sou desgraado! Teria sidomelhor para mim ter ficado com os meus primeiros donos; pois este, pelo que estouvendo, acabar curtindo tambm a minha pele!

    Esta fbula mostra que os servidores tm saudades dos primeiros donos, principalmente

    depois que experimentam os posteriores. (ESOPO apudSOUSA, 1999, p. 165)

    primeira vista parece tratar-se de um discurso monofnico, j que a

    moralidade recorta do discurso figurativo apenas o fato de o jumento ter-se dado mal com

    a troca de patres. Esse enunciador usa a fbula para ilustrar o que ocorre com algum

    que age como o jumento, mostrando-se simpatizante com o trabalho bem realizado e sem

    reclamaes.

    No entanto, a figurativizao aponta um contexto de explorao vivido pelo

    jumento no transporte das cargas, j que no primeiro trabalho ele comia pouco e

    trabalhava muito e, no segundo, ele era sobrecarregado com cargas mais pesadas. Esse

    trabalhador solicita uma mudana que ele tem direito de almejar, mas acaba relegado a

    funes cada vez piores, o que passa a impresso de que cada mudana uma punio.

    Esta a voz daquele que trabalha e que clama por condies melhores de trabalho,

    contudo, sem ser ouvido.

    Podemos afirmar, seguramente, que h duas vozes polemizando no discurso:

    uma assegura que cada qual deve manter-se na posio em que se encontra a fim de evitar

    danos maiores, e a outra deseja mudar sua condio devido insatisfao com as

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 119

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    condies de trabalho a que determinado sujeito est submetido. Esta fbula pode ilustrar

    o que ocorre com os demais textos analisados no que se refere dialtica interna

    instaurada no discurso. So vozes inconciliveis porque produzem discursos

    ideologicamente opostos, ainda que passem a impresso de serem monofnicos.

    Por este motivo afirmamos que o estudo da moralidade no se faz essencial parao propsito desta anlise. O enunciador da moralidade exterior ao discurso narrativo

    estabelece uma relao contratual com a moralidade interna a esse discurso, ou seja, o

    castigo recebido pelo jumento na histria retomado na moralidade porque esse

    enunciador quer fazer com que o leitor creia que a mudana de patro ou atividade no

    deve ser concretizada. O prprio discurso metalingustico apontado por Lima (1984) - A

    fbula mostra -, pode ser considerado um dos recursos utilizados pelo enunciador para

    reafirmar a sua voz, que pretende ser incontestvel, j que forja um discurso nico,

    aparentemente monofnico.

    No estudo intitulado Lucha de clases e ideologia: introduccin al estdio de la fbula

    espica como fuente histrica,de Juan Cascajero (1991), o autor tambm reflete sobre o fato

    de outras vozes estarem subjacentes ao discurso figurativo das fbulas gregas, mas

    encontrarem-se abafadas porque nem sempre condizem com a ideologia dominante, que

    pretende educar moralmente a comunidade.

    De fato, por serem oriundas de uma tradio oral, as fbulas cumpriam a funo

    de propagar valores e educar. Obviamente, era o enunciador da fbula quem decidia o

    valor que desejava transmitir e escolhia o tipo de narrativa que melhor se encaixasse em

    suas intenes enunciativas.

    Assim, essa transmisso oral pressupunha a aceitao pelo coletivo e estava

    interligada aos interesses axiolgicos das pessoas que promoviam, dirigiam ou

    orientavam o sentido dos valores transmitidos. Diz Cascajero:

    preciso deixar claro desde o princpio que, dentro de uma tradio oral, necessriodistinguir entre a cultura oral, os valores, a sensibilidade, os interesses em suma, daspessoas comuns, e a cultura oral para as pessoas comuns, proporcionadas por outraspessoas, com propsitos especficos e respostas a seus interesses particulares.(CASCAJERO, 1991, p.15)

    Parece claro que esses interesses particulares acabaram sendo sedimentados

    nos textos escritos que chegaram at ns, denotando concepes ideolgicas condizentes

    com a poca e a finalidade com que esses discursos foram proferidos.

    De acordo com Cascajero (1991, p.25), na maioria das vezes, as obras escritas so

    de produes intelectuais reservadas classe dominante, que se mantinha sempre numaposio privilegiada graas colaborao, consciente ou inconsciente, dos historiadores,

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    120 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    que contribuam para a permanncia dos pontos de vista e interesses de determinado

    grupo social. No caso das fbulas, diz o autor:

    A fbula diz, em primeiro lugar, como a sociedade humana e no deixa de aconselhar,mas, em segundo lugar, diz como h de comportar-se se se quer sobreviver neste mundoviolento e implacvel. Geralmente, atravs do mundo animal, ela reflete um conflitopermanente, abandonado a si mesmo, sem a proteo da justia divina ou humana, sem

    crer na histria, nem no progresso, porque a vrtebra da sociedade s se articula emtorno do mais violento antagonismo baseado no interesse. A vida humana, nessecontexto, no outra coisa seno luta e combate, onde no existem outras possibilidadesque as de vencer e ser vencido. Mas, em um segundo nvel, atravs do desenvolvimentoda ao e margem do grau de coerncia de promtios e epimtios, tambm aconselhacomo se deve adapatar-se a essa sociedade em que o forte oprime e destri o mais fraco,oferecendo a esses alguns recursos de sobrevivncia, cuja inobservncia implicar,inexoravelmente em sua runa (zombaria, expulso ou morte) como reconhecimento desua inaptido para viver em uma sociedade, desconhecendo suas leis. (CASCAJERO,1991, p.36)

    Pode-se pensar, ento, que o enunciador privilegia um tipo de discurso que est

    em harmonia com os interesses da classe dominante, ou seja, o discurso destinado s

    pessoas comuns como forma de advertncia e intimidao. Da a prudncia constante

    explcita na moralidade das fbulas, especialmente nas que se referem capacidade de

    reconhecer os prprios limites, tanto os fsicos quanto os ditados pelo poder econmico e

    poltico.

    Do mesmo modo, no caso das fbulas que tematizam o trabalho, a violncia

    aparece matizada nas formas de explorao que as personagens sofrem, no

    desenvolvimento narrativo ou moral, que incita os mais humildes resignao,

    mostrando que o inconformismo atrair apenas desgraas.

    Para o autor, a moralidade que expressa os interesses contrrios de diferentes

    grupos e denota uma tenso entre a fbula e a moral. no enfrentamento entre a fbula

    do povo e a fbula para o povo que surgem moralidades dspares, segundo diferentes

    verses da mesma fbula, acarretando na inadequao de epimtios3 forados

    (CASCAJERO, 1991, p. 42).

    Obviamente, a inteno do enunciador da moralidade predicar o conformismo,a resignao e a submisso, pois nada impede a um redator que tenha coligido e

    divulgado as fbulas, imprimir sua sensibilidade individual, compactuada com os valores

    da classe dominante. Nesse sentido, seu discurso favorece aqueles que se beneficiam, de

    alguma forma, dessa estabilidade que apregoam. Porm, mudando o ponto de vista da

    anlise, possvel encontrar, nas fbulas, outros valores e ideologias instauradas no

    mesmo discurso. Esses valores ideolgicos so condizentes com a representao que os

    3Epimtio a moralidade inserida no final da narrativa, comum nas fbulas atribudas a Esopo.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 121

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    animais fazem dos trabalhadores e das pessoas comuns, como as mulheres, os escravos,

    os servos, grupos urbanos pobres e pequenos proprietrios rurais.

    Concordamos com o autor que, despida da moralidade, pode-se conceber a

    fbula como um campo em que se desenvolve o conflito ideolgico de classes. A voz da

    classe social menos abastada, que necessita trabalhar para sobreviver, no se faz ouvirpela moralidade porque est subjacente ao discurso figurativo e no conveniente ao

    enunciador da fbula ressalt-la. Contudo, a prpria habilidade discursiva desse

    enunciador o trai, pois na medida em que ele enriquece figurativamente seu discurso,

    acaba por matizar as condies de trabalho penosas das personagens, explicando a

    averso que elas sentem pelo trabalho.

    5. A PRXIS ENUNCIATIVAAs diferentes vozes observadas nos textos das fbulas podem estar associadas s

    enunciaes coletivas e noo de uso - inicialmente apontada por Greimas, em Semntica

    Estrutural - e retomada com muita propriedade por Bertrand (2003, p. 84-85).

    O uso pode ser entendido como o conjunto dos hbitos lingusticos de uma

    dada sociedade, resultantes da prxis enunciativa coletiva (BERTRAND, 2003, p. 431-

    432). Para o autor, muito do que est contido no interior da atividade enunciativa

    individual est arraigado no que vem da prxis social e cultural e que est sedimentada

    na linguagem.

    Dessa forma, ainda que parea individual, a enunciao cerceada por prticas

    lingsticas sedimentadas ao longo da histria. Diz o autor:

    O discurso social tecido por configuraes j prontas, blocos pr-moldados e prontospara serem utilizados, produtos do uso que se depositam, na qualidade de primitivos,no sistema da lngua. portanto a utilizao da estrutura de significao que define ouso. Quer esta definio seja vista positivamente como o conjunto das escolhasefetuadas quer negativamente a partir das coeres e incompatibilidades semnticas

    impostas em qualquer dos casos o uso designa a estrutura fechada pela histria. assim que seus produtos resultam da prxis enunciativa. (BERTRAND, 2003, p. 86-87)

    Compreende-se, ento, que todo ato de linguagem permeado pelas enunciaes

    coletivas que a antecederam e a liberdade do enunciador reside apenas no fato de ele

    poder reatualizar, recusar ou transformar seu discurso, embora no se desvincule das

    enunciaes j sedimentadas.

    A ttulo de exemplo, tomaremos o discurso figurativo da fbula Hermes e a Terra

    com a finalidade de verificar em que medida o enunciador compactua da mesma posioideolgica observada em outros textos da cultura.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    122 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    Hermes e a Terra

    Depois de plasmar o homem e a mulher, Zeus ordenou a Hermes conduzi-los para aTerra e mostrar-lhes o lugar onde, escavando, conseguiriam o seu prprio sustento.Tendo ele cumprido a ordem, a Terra, a princpio, ops-se. Todavia, como Hermesinsistisse, alegando tratar-se de uma ordem emanada de Zeus, ela replicou: Ento, queeles escavem quanto quiserem, mas pagaro tudo isso gemendo e chorando. (ESOPOapudSOUSA, 1999, p. 137)

    Nesta narrativa h vrios elementos que recuperam enunciaes j sedimentadas

    pela cultura. A ttulo de exemplo, podemos citar a criao da mulher que, de acordo com

    o mito Prometeu e Pandora, documentado pelo poeta Hesodo, foi plasmada por vrios

    deuses, enviada a Terra por Hermes, o deus mensageiro, e acolhida por Epimeteu, irmo

    de Prometeu.

    Como explanamos anteriormente, o castigo enviado por Zeus aos homens por

    conta da astcia de Prometeu foi o trabalho e a mulher, pois, a partir da insero do sexo

    feminino na terra, o homem estaria fadado ao trabalho, sobretudo ao trabalho agrcola,

    para poder sustentar a si e prole que, inevitavelmente, a mulher traria consigo. Nesse

    sentido, o trabalho surge como um mal e podemos pensar que, no texto citado, o fato de a

    Terra dizer que o homem escavar gemendo e chorando remete ao trabalho rduo do

    agricultor, que trabalha de sol a sol para fazer brotar o alimento.

    Outra fbula em que pode ser observada uma situao semelhante O lavrador e

    seus filhos, em que um lavrador, estando beira da morte e querendo que seus filhos se

    conscientizem da importncia da agricultura para a sobrevivncia, faz com que eles

    revolvam a terra em busca de um tesouro que na verdade no existia, pois era a prpria

    terra que, sendo revolvida, estaria preparada para fazer brotar o alimento. Nesta narrativa

    a oposio de valores ntida, pois enquanto os filhos do lavrador valorizam o tesouro

    material, o pai valoriza o trabalho com a terra, pois sabe que apenas atravs dele que os

    filhos obtero o sustento.

    Nesse sentido, podemos afirmar que as fbulas citadas so reatualizaes de

    ideologias j sedimentadas na cultura atravs de outras linguagens, como o mito, a poesia

    didtica de Hesodo e os tratados de Xenofonte, por exemplo.

    Nota-se que posies ideolgicas distintas sobre o trabalho agrcola podem ser

    atualizadas na mesma narrativa. Ao mesmo tempo que o trabalho figurativizado como

    rduo por aqueles que o realizam, a lio que extramos das narrativas conserva uma

    posio ideolgica favorvel realizao desse tipo de trabalho, em qualquer

    circunstncia.

    Excetuando a agricultura, vimos que os demais tipos de trabalho sempre

    aparecem figurativizados como rduos e, normalmente, so rejeitados pelos que os

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 123

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    praticam. por meio da figurativizao que podemos constatar novas ideologias sobre o

    tema. Numa explanao mais ampla, diz Barros que:

    A figurativizao assinala, com os temas, a determinao scio-histrica e ideolgica dosdiscursos; d aos discursos temtico-figurativos coerncia semntica; participa, nosdiscursos temticos, das estratgias de persuaso argumentativa, com figuras ocasionaise esparsas; concretiza os temas abstratos e produz efeitos de realidade; cria efeitos de

    concretizao sensorial e d corporalidade ao discurso e s relaes entre enunciador eenunciatrio; contribui para a produo de efeitos de novidade e criatividade esttica,para dar prazer esttico ao destinatrio e para que enunciador e enunciatrio partilheminstantes de perfeio. (BARROS, 2004, p. 11)

    Essa determinao scio-histrica e ideolgica citada por Barros emana da

    superfcie do texto. Temas como liberdade, igualdade, justia social, etc., emergem

    das figuras discursivas e, facilmente, se detecta a ideologia, muito embora essa ideologia

    j esteja arraigada no texto, desde o nvel fundamental.

    Para Fiorin (1988, p. 21) [...] no nvel superficial, isto , na concretizao dos

    elementos da estrutura profunda, que se revelam, com plenitude, as determinaes

    ideolgicas. O autor fala em formaes ideolgicas inseparveis de formaes

    discursivas. Define a primeira como a viso de mundo de uma determinada classe

    social, isto , um conjunto de representaes, de idias que revelam a compreenso que

    uma dada sociedade tem do mundo, e a segunda, como um conjunto de temas e figuras

    que materializa uma dada viso de mundo (FIORIN, 1988, p.32).

    Para ele, essa viso de mundo est vinculada linguagem, j que esta um

    instrumento de comunicao: o homem, atravs da aprendizagem lingstica adquirida na

    sociedade qual pertence, adquire uma formao discursiva que ser, inevitavelmente,

    concretizada quando ele convocar os discursos apreendidos e os reatualizar, produzindo

    o prprio discurso. nesse sentido que a cada formao ideolgica corresponde uma

    formao discursiva, simplesmente porque no h sujeito, nem discurso desprovido de

    ideologia.

    Em nosso corpus, a ideologia da classe trabalhadora pode ser recuperada por

    meio das fbulas que denunciam a explorao sofrida pelos trabalhadores, como podemos

    constatar na fbulaA mulher e as suas criadas:

    Uma viva trabalhadeira tinha criadas muito jovens, que ela costumava despertar demadrugada, com o canto do galo, para os trabalhos domsticos. Ento as criadas,permanentemente extenuadas pelo trabalho, acharam ser necessrio matar o galo dacasa, pois acreditavam ser ele a causa dos seus males, ao despertar a patroa durante anoite. Ora ocorreu que, aps terem elas executado esse seu intento, a situao tornou-seainda mais penosa para elas: que a patroa, desconhecendo a hora dos galos, as fazialevantarem-se ainda mais cedo para trabalhar.Da mesma forma, para muitas pessoas, as suas prprias resolues tornam-se a causa deseus infortnios. (ESOPO apudSOUSA, 1999, p. 257)

    Esta fbula retrata duas posies ideolgicas distintas, pr-estabelecidas j no

    nvel fundamental de significao. A viva, embora seja caracterizada como

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    124 As faces da figuratividade nas fbulas de Esopo: enunciao, dialogismo e polifonia

    Revista de EducaoVol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    trabalhadeira, no o actante do fazer, ou seja, ela no realiza o trabalho domstico, mas

    possui criadas para faz-lo. J as criadas, que so as verdadeiras trabalhadoras, atribuem

    valores disfricos ao trabalho, pois chegam a atitudes extremas matam o galo para

    livrarem-se de suas atividades.

    cultural o fato de o trabalho servil ou escravo ser rejeitado pelos gregos devidoao fato de ser um trabalho penoso, que privava o homem de todo o tipo de lazer. Nesta

    fbula o lazer de que as criadas se privam aparece figurativizado pelo dormir, pois elas

    eram despertadas muito cedo para executar as atividades domsticas. Nesse sentido, o

    enunciador da fbula parece reatualizar um discurso que mostra o quo indesejvel era

    trabalhar como servidor do outro.

    6. CONSIDERAES FINAISEsperamos ter mostrado que o embate entre diferentes vozes est presente no discurso

    das fbulas que tematizam o trabalho e aponta ideologias distintas na construo do

    discurso. Basta que o analista desconfie da aparente monofonia de que se reveste o

    discurso, procurando extrair elementos latentes que podem auxiliar no desvelamento da

    ideologia.

    As fbulas citadas foram escolhidas para demonstrar que, ao reatualizar

    enunciaes pr-estabelecidas pela cultura, o enunciador estabelece com esses discursos

    relaes contratuais ou polmicas. Acreditamos que, ao opor valores distintos na mesma

    narrativa, o enunciador polemiza com ideologias j sedimentadas, algumas favorveis e

    outras desfavorveis ao trabalho. As fbulas recuperam tanto os valores positivos quanto

    os negativos do trabalho, mas o que faz toda a diferena a focalizao que o enunciador

    dos textos ficcionais privilegia em seu arranjo discursivo.

    No que toca ao corpus analisado, notamos que os aspectos negativos so bem

    evidentes nos textos das fbulas, ainda que mascarados por uma focalizao favorvel ao

    trabalho. nesse momento que a figuratividade mostra suas diferentes faces: ao mesmo

    tempo que o enunciador enriquece o discurso com figuras caracterizadoras de diversos

    tipos de trabalho, ele tambm ressalta as condies precrias de trabalho vividas pelas

    personagens.

    REFERNCIAS

    BARROS, Diana L.P. Teoria Semitica do Texto.So Paulo: tica, 2001.

    ______. Teoria do Discurso. So Paulo: Humanitas, 2001.

  • 5/24/2018 As Faces Da Figuratividade Nas F bulas de Esopo_ Enuncia o, Dialogismo e Pol...

    http:///reader/full/as-faces-da-figuratividade-nas-fabulas-de-esopo-enunciacao-

    Eliane Quinelato 125

    Revista de Educao Vol. 13, N. 15, Ano 2010 p. 105-125

    BARROS, Diana L.P.; FIORIN, Jos Luiz. Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade: em torno deBaktin. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo: 1999.

    CASCAJERO, Juan. Lucha de clases e ideologa: introduccin al estudio de la fbula espica comofuente histrica. In: Gerin 9, 1991, p. 11-58.

    DEZOTTI, Maria Celeste Consolin. A fbula grega: da prtica discursiva ao gnero literrio.Organon (UFRGS), v.13, n. 27, p. 137-146, 1999.

    ESOPO. As fbulas de Esopo. Trad. Manuel Aveleza de Souza. Rio de Janeiro: tica, 1999.FIORIN, Jos Luiz. Linguagem e ideologia. So Paulo: tica, 1998.

    ______. Elementos de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2001.

    HESODO. Os trabalhos e os dias.Traduo de Mary de C. N. Lafer. So Paulo: Iluminuras, 1990.

    HOMERO. Ilada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

    LIMA, Alceu D. A forma da fbula. Significao, v.4, p.60-69, 1984.

    Eliane Quinelato

    Doutora e Mestre em Estudos Literrios pelaUNESP de Araraquara. Atualmente Coordenadora do Curso de Letras das FaculdadesAnhanguera de Limeira e Santa Brbara d'Oeste,alm de atuar como professora no curso deGraduao em Letras e Publicidade e Propagandae nos cursos de Ps-Graduao.