o diagnóstico diferencial na clinica das toxicomanias

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    Opo Lacaniana online nova srieAno 2 Nmero 5 Julho 2011 ISSN 2177-2673

    O diagnstico diferencial na clnica das

    toxicomaniasJulia Reis

    Os descompassos da psiquiatria

    O DSM Manual Diagnstico e Estatstico de

    Transtornos Mentais foi elaborado pela Associao

    Psiquitrica Americana ao longo da dcada de 60 para

    classificar as doenas mentais em categorias diagnsticas.

    Podemos localizar os antecedentes desse manual nasformulaes sobre o diagnstico pela psiquiatria clssica,

    baseado na observao e descrio das caractersticas

    fenomenolgicas das patologias, na localizao dos sintomas

    por meio de exames, e por fim na determinao do agente

    patolgico externo causador da doena1.

    A psiquiatria de orientao classificatria se

    consolidou na passagem do sculo XIX para o sculo XX a

    partir de sua organizao como cincia das condutas

    anormais. O modelo adotado pela psiquiatria dessa poca se

    baseava nas categorias de hereditariedade e degenerescncia

    que reduzem as categorias diagnsticas, e a distino entre

    tipos e estruturas.

    Freud2, na conferncia O sentido dos sintomas, se

    contraps classificao de degenerados utilizada pela

    psiquiatria para aqueles que sofrem de sintomas como a

    obsesso. De modo que elaborou uma distino diagnstica

    entre neurose e psicose com base nos mecanismos de negao

    na neurose, Verdrngung, e de negao na psicose,

    Verwerfung, em outras palavras, do recalque na neurose e da

    foracluso na psicose. Assim, ele demonstrou que a

    psicanlise oferece uma compreenso do sentido e da

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    inteno do sintoma neurtico, e que estes podem ser

    tratados a partir do mtodo psicanaltico.

    Porm, a partir de 1950 o modelo biolgico centrado na

    hereditariedade e na degenerescncia comeou a ser

    substitudo pela ascenso do modelo bioqumico e pela

    produo das primeiras medicaes antipsicticas e

    antidepressivas. Com isso surgiu uma alternativa

    medicamentosa em relao ao tratamento psiquitrico

    anteriormente oferecido aos doentes mentais, que era

    exclusivamente moral e hospitalocntrico.

    O DSM-III, publicado na dcada de 80, deu continuidade

    a essa orientao e tornou-se um marco da psiquiatria

    moderna, pois a partir dele foi elaborada uma taxonomia

    pluralizada das psicopatologias organizadas atravs de um

    modelo geral de regulao bioqumica do comportamento.

    At o DSM-III, a classificao diagnstica sofreu a

    influncia do modelo psicodinmico e, consequentemente, se

    ancorou em classificaes como neurose e psicose. Esse

    manual no incluiu o conceito de comorbidade, noo que

    desconhece a distino diagnstica entre neurose e psicose,por definir que uma patologia no tem necessariamente

    relao com outra: se refere ocorrncia conjunta de dois

    ou mais transtornos mentais entre si e/ou com outras

    condies mdicas3.

    A partir desse manual houve um aumento progressivo das

    categorias diagnsticas como, por exemplo, a subdiviso da

    neurose de angstia em transtorno de pnico com e sem

    agorafobia, e transtorno de ansiedade generalizada. Sobre

    isso, ric Laurent comenta que:

    O efeito paradoxal do retorno da psiquiatria medicina (...) e o avano da biologia, precisamente este: longe de reintegrar simplesmentea doena mental na cincia e solucionar o problema,esse retorno torna manifesta a fabricao de novasformas para o patolgico (...) Vemos aparecer uma

    classificao estranha por sua extenso4

    .

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    Na mesma dcada da publicao do DSM-III, Jacques-

    Alain Miller5escreveu um texto em que analisou a relao

    entre a psicanlise e a psiquiatria. Ele assinalou que,

    apesar de ambas oferecerem um tratamento para o sofrimento

    do qual os sujeito se queixam, havia uma antinomia entre a

    posio do psiquiatra e a do psicanalista. A demanda com a

    qual se confrontam no tem a mesma estrutura, pois enquanto

    a demanda com a qual a psicanlise se depara parte de uma

    exigncia do ideal do prprio paciente, a demanda ao

    psiquiatra social, e muitas vezes no parte do paciente,

    e sim da famlia, do poder pblico etc. O mesmo acontece em

    relao ao sintoma: se a psiquiatria considera o sintoma no

    campo do fenmeno quer seja pela sua observao,

    descrio ou classificao , a psicanlise considera que o

    sintoma se produz no discurso, dentro do dispositivo

    analtico6. Todavia, a psicanlise no contra a

    psiquiatria, e sim contra a diluio, na psiquiatria

    contempornea, dos sintomas em transtornos e das estruturas

    clnicas em fenmenos.

    Com a publicao da verso atual do manual diagnsticoda psiquiatria na dcada de 90, o DSM-IV, o desaparecimento

    das estruturas clnicas e a converso dos sintomas em

    fenmenos consolidaram-se: a classificao de histeria no

    se encontra nesse manual, a neurose obsessiva se converteu

    em transtorno obsessivo-compulsivo, e a psicose manaco-

    depressiva passou a ser denominada transtorno do humor

    bipolar, com ou sem sintomas psicticos. Essa organizao

    evidenciou a dissoluo da distino entre neurose e

    psicose e a proliferao da classificao diagnstica em

    transtornos.

    Andrs Borderas7 assinalou que o diagnstico

    psiquitrico uma das possibilidades de diagnosticar um

    paciente, porm os diagnsticos podem ser variados, de

    acordo com diferentes sistemas de classificao. O autor

    pontuou que para dar conta das novas entidades clnicas que

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    diagnosticam mais de um fenmeno apresentado, a

    psiquiatria se utiliza do conceito de patologia dual, que

    deriva do diagnstico dual tipo caracterstico da

    nosologia epidemiolgica , sendo seguido do conceito de

    comorbidade. Esse um modo encontrado para definir a

    concomitncia de duas patologias, como o consumo de drogas

    e um transtorno psiquitrico. A classificao psiquitrica

    atual, e mesmo algumas terapias psicolgicas que seguem a

    orientao mdico-psiquitrica, incluem a concomitncia do

    uso de drogas e do transtorno psiquitrico nos transtornos

    de personalidade, tambm conhecidos como borderlines.

    Segundo Borderas: Desta maneira se pretendeu reabsorver

    os efeitos segregativos gerados pela especializao

    monossintomtica surgida na dcada de 70, com o surgimento

    dos dispositivos especializados no tratamento dos novos

    sintomas: violncia, adies, anorexia etc.8.

    Enquanto a psiquiatria busca classificar as patologias

    contemporneas atravs da formulao do DSM-V, a

    psicanlise de orientao lacaniana apresentou desde 1996,

    atravs do Concibulo de Angers intitulado Efeitos desurpresa na psicose, um acrscimo teoria diante da nova

    apresentao sintomtica dos sujeitos na atualidade9. Nas

    discusses seguintes, A Conversao de Arcachon e A

    Conveno de Antibes, constatou-se o quanto a psicose pode

    ser mais frequente do que nos fazia supor o diagnstico

    categorial que a define pela ausncia do significante Nome-

    do-Pai. Dessa forma, formulou-se a noo de psicose

    ordinria, para dar conta de uma psicose no-desencadeada e

    de uma clnica continusta pautada nas amarraes que cada

    um faz de acordo com sua estrutura.

    O diagnstico diferencial na clnica das toxicomanias

    Diante da quantidade cada vez maior de pessoas que

    fazem uso de drogas apesar de uma demanda reduzida desses

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    pacientes, tanto ao consultrio particular quanto nas

    instituies de tratamento , o analista deve estar atento

    a determinadas particularidades da clnica das

    toxicomanias.

    Caso se baseie nos fenmenos, o profissional de sade

    pode classificar um usurio de drogas na categoria

    diagnstica do transtorno bipolar do humor devido

    euforia, irritabilidade, e mesmo agressividade causada

    pelo uso da cocana, e por outro lado, pela depresso

    decorrente do uso de maconha. Do mesmo modo, pode at mesmo

    fazer um diagnstico precipitado de psicose a partir dos

    fenmenos alucingenos decorrentes da intoxicao. Desse

    modo, depreendemos que as toxicomanias so fenmenos, ou

    seja, so modos de gozar que velam a estrutura que comporta

    o sintoma.

    Assim, a direo de tratamento aponta para a

    localizao da funo que o objeto-droga tem para cada

    sujeito, ou seja o objeto sintetizado pela cincia, na

    medida em que a droga pode funcionar como uma inveno para

    se desembaraar da castrao, e como suplncia diante dafalncia do significante Nome-do-Pai.

    Nossa prtica clnica com o usurio de substncias

    revela que a intoxicao mascara as estruturas clnicas e

    pode, desse modo, dificultar o diagnstico diferencial. Por

    isso, a distino entre fenmeno e estrutura fundamental

    porque direciona o manejo clnico. A partir de A negativa

    de Freud10, e com os devidos acrscimos tericos

    introduzidos por Lacan, o diagnstico se pauta na distino

    entre a neurose e a psicose: enquanto que na primeira a

    Bejahung, a afirmao primordial promove o acesso ao

    simblico, pois afirma a existncia do ser castrado, na

    segunda a Verwerfungmarca a rejeio ou foracluso desse

    registro, na medida em que o sujeito no reconhece um

    significante responsvel pela ordem flica.

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    Carolina Zaffore11, em seu artigo intitulado

    Diagnstico de psicose e consumo de drogas, apresentou

    alguns pontos que podem nos orientar no diagnstico

    diferencial. Segundo ela, o primeiro ponto consiste em

    localizar os limites de certas psicoterapias para que

    possamos propor uma perspectiva distinta. Diferente de uma

    psicoterapia de apoio cujo tratamento se caracteriza pela

    indiferena em relao ao diagnstico na direo do

    tratamento , o psicanalista orienta sua prtica clnica a

    partir da pergunta acerca da funo especfica da droga

    para cada sujeito. A partir da considerao de que a

    toxicomania no uma estrutura, o mtodo analtico promove

    a escuta do que leva cada sujeito a recorrer droga e

    quais so as marcas singulares da histria de um sujeito

    que sero imprescindveis para chegar a um diagnstico sob

    transferncia12.

    Na neurose, o recurso droga promove uma ruptura com

    o gozo flico, sem, contudo, haver foracluso do Nome-do-

    Pai13. O toxicmano, ao se fixar no objeto-droga recusa o

    saber do inconsciente e a inexistncia da relao sexual,de modo que se torna difcil a inveno de um semblante que

    o proteja da compulso a se drogar e do real que da advm.

    Isso caracteriza a monotonia do gozo apresentada por esses

    sujeitos.

    Na psicose, a foracluso do Nome-do-Pai e a no-

    inscrio do significante flico tm como efeito a escassez

    de recursos simblicos para tratar o real, que se torna

    invasivo. O objeto-droga se coloca, ento, como

    possibilidade de um tratamento do real. Supostamente a

    droga pode ter para o psictico a funo de amarrao,

    ainda que frgil, dos trs anis R, S, I, evitando que eles

    se soltem. Apesar de no ser um n borromeano do tipo

    clssico ou seja, a amarrao que encontramos mais

    frequentemente na neurose a partir do significante Nome-do-

    Pai , o objeto-droga possibilita uma forma de

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    estabilizao atravs da identificao ao significante

    sou toxicmano, e permite um lao social, ainda que

    precrio, com o Outro14. E dizemosprecrioporque deixa o

    sujeito no limite da passagem ao ato na direo do

    tratamento, e tambm porque essa identificao com o

    significante toxicmano que dever ser trabalhada, ou

    melhor, substituda pelo que, do sintoma, poder servir

    como amarrao.

    A orientao do diagnstico em psicanlise no se

    baseia nos efeitos que a substncia txica tem sobre o

    quadro clnico do paciente conforme sugere a

    classificao psiquitrica de transtorno por uso de

    substncia , e sim na clnica que evidencia a presena de

    um real irredutvel ao simblico. Dessa forma, diferente do

    tratamento do real pelo objeto da cincia, a psicanlise

    proporciona um tratamento do real pela fala. A psicanlise

    prope como direo de tratamento a oferta de um espao

    onde a partir da fala o sujeito pode se descolar do

    significante social que o nomeia como toxicmano.

    Um ponto fundamental na direo de tratamento depsicticos que fazem uso de drogas a questo do manejo

    transferencial, que cria a possibilidade de construo de

    novos laos sociais e novas amarraes. um trabalho

    cuidadoso na medida em que no se trata de exigir a

    abstinncia do uso de drogas, que pode levar a um surto

    psictico. Trata-se de partir da pergunta sobre a funo da

    droga para cada sujeito, de modo a possibilitar um trabalho

    a fim de reconstruir sua histria, sua envoltura narcsica

    e seus laos sociais.

    A complexidade da clnica das toxicomanias evidencia,

    ento, que pelo vis da singularidade, do cada caso um

    caso, que se pode tratar o toxicmano e buscar colocar um

    limite deriva sem fim do gozo, possibilitando ainda a

    construo de um lao que faa alguma amarrao alternativa

    quela obtida com a droga.

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    1 Henschel de Lima, C. (2010). Diagnstico diferencial edireo do tratamento na atualidade: do DSM-IV psicanlise.In Arquivos Brasileiros de Psicologia, 1 (62). Disponvel em:http://146.164.3.26/seer/lab19/ojs2/index.php/ojs2/article/viewArticle/557. Acesso em: 10 de maro de 2010.2Freud, S. (1996[1916-1917]). Conferncias introdutrias sobrepsicanlise. In Edio standard brasileira das obraspsicolgicas completas de Sigmund Freud, v. XVI. Rio de Janeiro:Imago Editora, p. 268.3 Matos, E. (2005). A importncia e as limitaes do uso doDSM-IV na prtica clnica. In Revista Psiquiatria, 27 (3).Disponvel em:. Acesso em:25 de maro de 2010.4 Laurent, E. (2000). Psicoanlisis y salud mental. BuenosAires: Trs Haches, pp. 8-9.5 Miller, J-A. (1997[1981]). Lacan elucidado. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar Editor, p. 121.6Idem. Ibidem, pp. 122-124.7 Borderas, A. (2005). Clases, etiquetas, nominaciones:contribuicin al debate sobre patologa dual. In Pharmacon(10). Belo Horizonte: TyA e Instituto de Psicanlise e SadeMental de Minas Gerais, pp. 173-176.8Idem. Ibidem, p. 177.9 Laia, S. (2009). A psicose ordinria como programa deinvestigao. In Arquivos na biblioteca (6). Rio de Janeiro:Escola Brasileira de Psicanlise, p. 135.10 Freud, S. (1996[1925]). A negativa. Em Edio standardbrasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud, v.

    XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora.11 Zaffore, C. (2005). Diagnstico de psicose e consumo dedrogas. In Pharmacon (10). Belo Horizonte: TyA e Instituto dePsicanlise e Sade Mental de Minas Gerais, pp. 38-42.12Idem. Ibidem, p. 39.13Naparstek, F. (2005). Toxicomana y el diagnstico actual.In Pharmacon (10). Belo Horizonte: TyA e Instituto dePsicanlise e Sade Mental de Minas Gerais, p. 10.14Idem. Ibidem, p. 11.