o diagnóstico diferencial na clinica das toxicomanias
TRANSCRIPT
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
1/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
1
Opo Lacaniana online nova srieAno 2 Nmero 5 Julho 2011 ISSN 2177-2673
O diagnstico diferencial na clnica das
toxicomaniasJulia Reis
Os descompassos da psiquiatria
O DSM Manual Diagnstico e Estatstico de
Transtornos Mentais foi elaborado pela Associao
Psiquitrica Americana ao longo da dcada de 60 para
classificar as doenas mentais em categorias diagnsticas.
Podemos localizar os antecedentes desse manual nasformulaes sobre o diagnstico pela psiquiatria clssica,
baseado na observao e descrio das caractersticas
fenomenolgicas das patologias, na localizao dos sintomas
por meio de exames, e por fim na determinao do agente
patolgico externo causador da doena1.
A psiquiatria de orientao classificatria se
consolidou na passagem do sculo XIX para o sculo XX a
partir de sua organizao como cincia das condutas
anormais. O modelo adotado pela psiquiatria dessa poca se
baseava nas categorias de hereditariedade e degenerescncia
que reduzem as categorias diagnsticas, e a distino entre
tipos e estruturas.
Freud2, na conferncia O sentido dos sintomas, se
contraps classificao de degenerados utilizada pela
psiquiatria para aqueles que sofrem de sintomas como a
obsesso. De modo que elaborou uma distino diagnstica
entre neurose e psicose com base nos mecanismos de negao
na neurose, Verdrngung, e de negao na psicose,
Verwerfung, em outras palavras, do recalque na neurose e da
foracluso na psicose. Assim, ele demonstrou que a
psicanlise oferece uma compreenso do sentido e da
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
2/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
2
inteno do sintoma neurtico, e que estes podem ser
tratados a partir do mtodo psicanaltico.
Porm, a partir de 1950 o modelo biolgico centrado na
hereditariedade e na degenerescncia comeou a ser
substitudo pela ascenso do modelo bioqumico e pela
produo das primeiras medicaes antipsicticas e
antidepressivas. Com isso surgiu uma alternativa
medicamentosa em relao ao tratamento psiquitrico
anteriormente oferecido aos doentes mentais, que era
exclusivamente moral e hospitalocntrico.
O DSM-III, publicado na dcada de 80, deu continuidade
a essa orientao e tornou-se um marco da psiquiatria
moderna, pois a partir dele foi elaborada uma taxonomia
pluralizada das psicopatologias organizadas atravs de um
modelo geral de regulao bioqumica do comportamento.
At o DSM-III, a classificao diagnstica sofreu a
influncia do modelo psicodinmico e, consequentemente, se
ancorou em classificaes como neurose e psicose. Esse
manual no incluiu o conceito de comorbidade, noo que
desconhece a distino diagnstica entre neurose e psicose,por definir que uma patologia no tem necessariamente
relao com outra: se refere ocorrncia conjunta de dois
ou mais transtornos mentais entre si e/ou com outras
condies mdicas3.
A partir desse manual houve um aumento progressivo das
categorias diagnsticas como, por exemplo, a subdiviso da
neurose de angstia em transtorno de pnico com e sem
agorafobia, e transtorno de ansiedade generalizada. Sobre
isso, ric Laurent comenta que:
O efeito paradoxal do retorno da psiquiatria medicina (...) e o avano da biologia, precisamente este: longe de reintegrar simplesmentea doena mental na cincia e solucionar o problema,esse retorno torna manifesta a fabricao de novasformas para o patolgico (...) Vemos aparecer uma
classificao estranha por sua extenso4
.
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
3/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
3
Na mesma dcada da publicao do DSM-III, Jacques-
Alain Miller5escreveu um texto em que analisou a relao
entre a psicanlise e a psiquiatria. Ele assinalou que,
apesar de ambas oferecerem um tratamento para o sofrimento
do qual os sujeito se queixam, havia uma antinomia entre a
posio do psiquiatra e a do psicanalista. A demanda com a
qual se confrontam no tem a mesma estrutura, pois enquanto
a demanda com a qual a psicanlise se depara parte de uma
exigncia do ideal do prprio paciente, a demanda ao
psiquiatra social, e muitas vezes no parte do paciente,
e sim da famlia, do poder pblico etc. O mesmo acontece em
relao ao sintoma: se a psiquiatria considera o sintoma no
campo do fenmeno quer seja pela sua observao,
descrio ou classificao , a psicanlise considera que o
sintoma se produz no discurso, dentro do dispositivo
analtico6. Todavia, a psicanlise no contra a
psiquiatria, e sim contra a diluio, na psiquiatria
contempornea, dos sintomas em transtornos e das estruturas
clnicas em fenmenos.
Com a publicao da verso atual do manual diagnsticoda psiquiatria na dcada de 90, o DSM-IV, o desaparecimento
das estruturas clnicas e a converso dos sintomas em
fenmenos consolidaram-se: a classificao de histeria no
se encontra nesse manual, a neurose obsessiva se converteu
em transtorno obsessivo-compulsivo, e a psicose manaco-
depressiva passou a ser denominada transtorno do humor
bipolar, com ou sem sintomas psicticos. Essa organizao
evidenciou a dissoluo da distino entre neurose e
psicose e a proliferao da classificao diagnstica em
transtornos.
Andrs Borderas7 assinalou que o diagnstico
psiquitrico uma das possibilidades de diagnosticar um
paciente, porm os diagnsticos podem ser variados, de
acordo com diferentes sistemas de classificao. O autor
pontuou que para dar conta das novas entidades clnicas que
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
4/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
4
diagnosticam mais de um fenmeno apresentado, a
psiquiatria se utiliza do conceito de patologia dual, que
deriva do diagnstico dual tipo caracterstico da
nosologia epidemiolgica , sendo seguido do conceito de
comorbidade. Esse um modo encontrado para definir a
concomitncia de duas patologias, como o consumo de drogas
e um transtorno psiquitrico. A classificao psiquitrica
atual, e mesmo algumas terapias psicolgicas que seguem a
orientao mdico-psiquitrica, incluem a concomitncia do
uso de drogas e do transtorno psiquitrico nos transtornos
de personalidade, tambm conhecidos como borderlines.
Segundo Borderas: Desta maneira se pretendeu reabsorver
os efeitos segregativos gerados pela especializao
monossintomtica surgida na dcada de 70, com o surgimento
dos dispositivos especializados no tratamento dos novos
sintomas: violncia, adies, anorexia etc.8.
Enquanto a psiquiatria busca classificar as patologias
contemporneas atravs da formulao do DSM-V, a
psicanlise de orientao lacaniana apresentou desde 1996,
atravs do Concibulo de Angers intitulado Efeitos desurpresa na psicose, um acrscimo teoria diante da nova
apresentao sintomtica dos sujeitos na atualidade9. Nas
discusses seguintes, A Conversao de Arcachon e A
Conveno de Antibes, constatou-se o quanto a psicose pode
ser mais frequente do que nos fazia supor o diagnstico
categorial que a define pela ausncia do significante Nome-
do-Pai. Dessa forma, formulou-se a noo de psicose
ordinria, para dar conta de uma psicose no-desencadeada e
de uma clnica continusta pautada nas amarraes que cada
um faz de acordo com sua estrutura.
O diagnstico diferencial na clnica das toxicomanias
Diante da quantidade cada vez maior de pessoas que
fazem uso de drogas apesar de uma demanda reduzida desses
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
5/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
5
pacientes, tanto ao consultrio particular quanto nas
instituies de tratamento , o analista deve estar atento
a determinadas particularidades da clnica das
toxicomanias.
Caso se baseie nos fenmenos, o profissional de sade
pode classificar um usurio de drogas na categoria
diagnstica do transtorno bipolar do humor devido
euforia, irritabilidade, e mesmo agressividade causada
pelo uso da cocana, e por outro lado, pela depresso
decorrente do uso de maconha. Do mesmo modo, pode at mesmo
fazer um diagnstico precipitado de psicose a partir dos
fenmenos alucingenos decorrentes da intoxicao. Desse
modo, depreendemos que as toxicomanias so fenmenos, ou
seja, so modos de gozar que velam a estrutura que comporta
o sintoma.
Assim, a direo de tratamento aponta para a
localizao da funo que o objeto-droga tem para cada
sujeito, ou seja o objeto sintetizado pela cincia, na
medida em que a droga pode funcionar como uma inveno para
se desembaraar da castrao, e como suplncia diante dafalncia do significante Nome-do-Pai.
Nossa prtica clnica com o usurio de substncias
revela que a intoxicao mascara as estruturas clnicas e
pode, desse modo, dificultar o diagnstico diferencial. Por
isso, a distino entre fenmeno e estrutura fundamental
porque direciona o manejo clnico. A partir de A negativa
de Freud10, e com os devidos acrscimos tericos
introduzidos por Lacan, o diagnstico se pauta na distino
entre a neurose e a psicose: enquanto que na primeira a
Bejahung, a afirmao primordial promove o acesso ao
simblico, pois afirma a existncia do ser castrado, na
segunda a Verwerfungmarca a rejeio ou foracluso desse
registro, na medida em que o sujeito no reconhece um
significante responsvel pela ordem flica.
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
6/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
6
Carolina Zaffore11, em seu artigo intitulado
Diagnstico de psicose e consumo de drogas, apresentou
alguns pontos que podem nos orientar no diagnstico
diferencial. Segundo ela, o primeiro ponto consiste em
localizar os limites de certas psicoterapias para que
possamos propor uma perspectiva distinta. Diferente de uma
psicoterapia de apoio cujo tratamento se caracteriza pela
indiferena em relao ao diagnstico na direo do
tratamento , o psicanalista orienta sua prtica clnica a
partir da pergunta acerca da funo especfica da droga
para cada sujeito. A partir da considerao de que a
toxicomania no uma estrutura, o mtodo analtico promove
a escuta do que leva cada sujeito a recorrer droga e
quais so as marcas singulares da histria de um sujeito
que sero imprescindveis para chegar a um diagnstico sob
transferncia12.
Na neurose, o recurso droga promove uma ruptura com
o gozo flico, sem, contudo, haver foracluso do Nome-do-
Pai13. O toxicmano, ao se fixar no objeto-droga recusa o
saber do inconsciente e a inexistncia da relao sexual,de modo que se torna difcil a inveno de um semblante que
o proteja da compulso a se drogar e do real que da advm.
Isso caracteriza a monotonia do gozo apresentada por esses
sujeitos.
Na psicose, a foracluso do Nome-do-Pai e a no-
inscrio do significante flico tm como efeito a escassez
de recursos simblicos para tratar o real, que se torna
invasivo. O objeto-droga se coloca, ento, como
possibilidade de um tratamento do real. Supostamente a
droga pode ter para o psictico a funo de amarrao,
ainda que frgil, dos trs anis R, S, I, evitando que eles
se soltem. Apesar de no ser um n borromeano do tipo
clssico ou seja, a amarrao que encontramos mais
frequentemente na neurose a partir do significante Nome-do-
Pai , o objeto-droga possibilita uma forma de
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
7/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
7
estabilizao atravs da identificao ao significante
sou toxicmano, e permite um lao social, ainda que
precrio, com o Outro14. E dizemosprecrioporque deixa o
sujeito no limite da passagem ao ato na direo do
tratamento, e tambm porque essa identificao com o
significante toxicmano que dever ser trabalhada, ou
melhor, substituda pelo que, do sintoma, poder servir
como amarrao.
A orientao do diagnstico em psicanlise no se
baseia nos efeitos que a substncia txica tem sobre o
quadro clnico do paciente conforme sugere a
classificao psiquitrica de transtorno por uso de
substncia , e sim na clnica que evidencia a presena de
um real irredutvel ao simblico. Dessa forma, diferente do
tratamento do real pelo objeto da cincia, a psicanlise
proporciona um tratamento do real pela fala. A psicanlise
prope como direo de tratamento a oferta de um espao
onde a partir da fala o sujeito pode se descolar do
significante social que o nomeia como toxicmano.
Um ponto fundamental na direo de tratamento depsicticos que fazem uso de drogas a questo do manejo
transferencial, que cria a possibilidade de construo de
novos laos sociais e novas amarraes. um trabalho
cuidadoso na medida em que no se trata de exigir a
abstinncia do uso de drogas, que pode levar a um surto
psictico. Trata-se de partir da pergunta sobre a funo da
droga para cada sujeito, de modo a possibilitar um trabalho
a fim de reconstruir sua histria, sua envoltura narcsica
e seus laos sociais.
A complexidade da clnica das toxicomanias evidencia,
ento, que pelo vis da singularidade, do cada caso um
caso, que se pode tratar o toxicmano e buscar colocar um
limite deriva sem fim do gozo, possibilitando ainda a
construo de um lao que faa alguma amarrao alternativa
quela obtida com a droga.
-
7/24/2019 O diagnstico diferencial na clinica das toxicomanias
8/8
"#$%& '()(*+(*( "*,+*- " .+(/*012+)& .+3-4-*)+(,
8
1 Henschel de Lima, C. (2010). Diagnstico diferencial edireo do tratamento na atualidade: do DSM-IV psicanlise.In Arquivos Brasileiros de Psicologia, 1 (62). Disponvel em:http://146.164.3.26/seer/lab19/ojs2/index.php/ojs2/article/viewArticle/557. Acesso em: 10 de maro de 2010.2Freud, S. (1996[1916-1917]). Conferncias introdutrias sobrepsicanlise. In Edio standard brasileira das obraspsicolgicas completas de Sigmund Freud, v. XVI. Rio de Janeiro:Imago Editora, p. 268.3 Matos, E. (2005). A importncia e as limitaes do uso doDSM-IV na prtica clnica. In Revista Psiquiatria, 27 (3).Disponvel em:. Acesso em:25 de maro de 2010.4 Laurent, E. (2000). Psicoanlisis y salud mental. BuenosAires: Trs Haches, pp. 8-9.5 Miller, J-A. (1997[1981]). Lacan elucidado. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, p. 121.6Idem. Ibidem, pp. 122-124.7 Borderas, A. (2005). Clases, etiquetas, nominaciones:contribuicin al debate sobre patologa dual. In Pharmacon(10). Belo Horizonte: TyA e Instituto de Psicanlise e SadeMental de Minas Gerais, pp. 173-176.8Idem. Ibidem, p. 177.9 Laia, S. (2009). A psicose ordinria como programa deinvestigao. In Arquivos na biblioteca (6). Rio de Janeiro:Escola Brasileira de Psicanlise, p. 135.10 Freud, S. (1996[1925]). A negativa. Em Edio standardbrasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud, v.
XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora.11 Zaffore, C. (2005). Diagnstico de psicose e consumo dedrogas. In Pharmacon (10). Belo Horizonte: TyA e Instituto dePsicanlise e Sade Mental de Minas Gerais, pp. 38-42.12Idem. Ibidem, p. 39.13Naparstek, F. (2005). Toxicomana y el diagnstico actual.In Pharmacon (10). Belo Horizonte: TyA e Instituto dePsicanlise e Sade Mental de Minas Gerais, p. 10.14Idem. Ibidem, p. 11.