o dia de quem trabalha À noite: reflexões sobre o cotidiano

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O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano de profissionais de enfermagem de um hospital público no Rio de Janeiro FLAVIANY RIBEIRO DA SILVA ORIENTAÇÃO: Prof Dra ANNA PAULA UZIEL (IP-UERJ) CO-ORIENTAÇÃO: Dra LÚCIA ROTENBERG (FIOCRUZ) Professores Participantes da Banca: Anna Paula Uziel Denize Oliveira Milthon Athayde

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Page 1: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE:

Reflexões sobre o cotidiano de profissionais de enfermagem de um hospital público no Rio de Janeiro

FLAVIANY RIBEIRO DA SILVA

ORIENTAÇÃO: Prof Dra ANNA PAULA UZIEL (IP-UERJ) CO-ORIENTAÇÃO: Dra LÚCIA ROTENBERG (FIOCRUZ)

Professores Participantes da Banca: Anna Paula Uziel Denize Oliveira

Milthon Athayde

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O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano de profissionais de enfermagem de um hospital

público no Rio de Janeiro

Resumo

A presente monografia abordará a questão “tempo” fazendo alusão a um conceito construído socialmente, onde cada indivíduo deposita suas significações. É o que podemos chamar de “tempo subjetivo”, que nos pertence e desta forma tendemos a negociá-lo e administrá-lo de acordo com nossas expectativas. O objetivo deste trabalho é pesquisar como profissionais de enfermagem do turno noturno de um hospital público do Rio de Janeiro percebem, vivenciam e organizam o que avaliam como sendo seu “tempo”, abordando as vivencias e práticas em relação à troca do dia pela noite. Tal tema se torna relevante, ao considerar que em nossa sociedade, algumas profissões estão fadadas a trabalhar em horários diferentes da sociedade em geral, e desta forma, o grupo das profissionais de enfermagem se torna interessante para ser estudado, por se tratar de trabalhadoras submetidas ao regime de plantões, sendo uma semana diferente da outra e por apresentarem plantões noturnos. Com vistas a atingir o objetivo proposto, foram realizadas entrevistas com enfermeiras e técnicas de enfermagem de um hospital público do Rio de Janeiro durante o mês de março/2006. Os depoimentos das trabalhadoras foram evidenciadores das percepções destas quanto ao universo de trabalho profissional e sócio-familiar ao qual estão inseridas, apresentando queixas quanto à escassez de tempo para executar tudo o que pretendem, queixas quanto a dessincronização do seu dia-a-dia com o de seus entes queridos e aspectos relacionados especificamente ao que consideram como vantagens e problemas decorrentes do trabalho noturno.

Palavras-chaves: Tempo - Mulher - trabalho em plantões

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PARECER DO PROFESSOR ORIENTADOR RECOMENDANDO O TRABALHO O trabalho de conclusão de curso intitulado “O dia de quem trabalha à noite: reflexões sobre o cotidiano”, de Flaviany Ribeiro da Silva, é bastante inovador. Faz uma análise sobre outra categoria profissional, a enfermagem, utilizando, em sua fundamentação teórica, um campo de estudos que enriquece a abordagem do tema, qual seja, dos estudos de gênero. A partir da análise do uso do tempo, a autora aborda com originalidade particularidades da vida da mulher urbana que trabalha em horários não convencionais. A partir de entrevistas com essas mulheres enfermeiras, entende a forma de organização da vida cotidiana, vantagens e dificuldades da nem sempre opção de trocar o dia pela noite. Este trabalho contribui para o fortalecimento da presença da Psicologia nos estudos de gênero e para a perspectiva de análise da realidade a qual este campo de saber é capaz de promover. Além disso, favorece um intercâmbio entre os saberes, a partir da interação entre os profissionais entrevistados e a pesquisadora. Este TCC se destaca em termos de qualidade e riqueza, além de ter se constituído através de pesquisa de campo, ainda vista como ousada neste nível da formação.

Anna Paula Uziel

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................1 1. CONTEXTUALIZANDO OS TEMPOS DE TRABALHO.............................................. 3

2. UMA PSICÓLOGA FAZENDO PESQUISA EM UM HOSPITAL................................11

3. ESCASSEZ, SINCRONIZAÇÃO E PRATICIDADE......................................................14

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................33

ANEXO.................................................................................................................................35

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INTRODUÇÃO

Minha trajetória enquanto aluna de graduação em psicologia foi, em parte,

construída no sentido de realizar pesquisa com grupos de pessoas quanto a suas percepções

sobre o tempo. Esta experiência ocorreu a partir do segundo período da graduação

(setembro de 2002) quando, como estagiária de Iniciação Científica, ingressei como

bolsista FAPERJ no Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (LEAS), na Fundação

Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Neste Laboratório há um grupo que desenvolve uma linha de

pesquisa de cunho interdisciplinar na área da saúde do trabalhador com especial interesse

em questões relativas aos horários de trabalho.

Como afiliada a tal grupo tive oportunidade de desenvolver trabalhos diversos de

cunho quantitativo e qualitativo voltados para o enfoque do impacto do trabalho em

plantões à saúde de profissionais de enfermagem de hospitais públicos do Rio de Janeiro.

Inicialmente colaborei na confecção de materiais para devolução dos resultados prévios da

pesquisa para os participantes, participei da elaboração, padronização e aplicação de

instrumentos de coleta de informações sobre condições de trabalho e saúde dos

profissionais de enfermagem1, realizei trabalho de campo com vistas a aplicar instrumento

relativo ao chamado “uso do tempo”, que analisa o tempo que as pessoas dedicam às

diversas atividades que compõem seu cotidiano e realizei entrevistas sobre o uso do tempo

com alguns destes trabalhadores.

1 Esta etapa da pesquisa consistia na aplicação de um questionário sobre o horário de trabalho, a presença de mais de um emprego, trabalho doméstico, sono, doenças, hábitos relacionados à saúde (consumo de bebida alcoólica, fumo, atividade física), fatores psicossociais relacionados ao estresse no trabalho, entre outros aspectos.

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Nesta monografia apresento análises que realizei com base em entrevistas que fiz

com as profissionais de enfermagem do turno noturno de um hospital público do Rio de

Janeiro, onde estas relatam como percebem, vivenciam e organizam o que avaliam como o

seu “tempo”. Este "tempo” ao qual me refiro faz alusão a um conceito construído

socialmente, onde cada indivíduo deposita suas significações. É o que podemos chamar de

“tempo subjetivo”, que nos pertence, e desta forma tendemos a negociá-lo e administrá-lo

de acordo com nossas expectativas.

O presente trabalho foi estruturado em 3 capítulos. No primeiro, denominado

Contextualizando os tempos de trabalho, apresento experiências diversas quanto à forma de

observar o tempo em diferentes momentos da História e em diferentes locais, com intuito

de discutir que as formas de organizar os tempos de trabalho são contextuais. Destaco que

na sociedade capitalista o relógio e as horas têm a função de demarcar os tempos, o que se

pode vislumbrar a partir da observação do que seja a instituição das jornadas de trabalho.

Chamo, ainda, atenção para o fato de que o tempo de trabalho dos profissionais de

enfermagem, e de outros trabalhadores que se dedicam ao regime de turnos, difere daquele

que é hegemônico na sociedade, sendo esta uma situação privilegiada para estudar

convenções sobre os tempos. No capítulo 2 – Uma psicóloga fazendo pesquisa em um

hospital – descrevo o local e a forma como abordei as entrevistadas, discorrendo sobre o

objetivo que tinha e relato minha inserção e escolhas no campo. No terceiro capítulo,

denominado Escassez, sincronização e praticidade, apresento três vertentes que surgiram a

partir das análises dos relatos das trabalhadoras: a escassez de tempo, a sincronização dos

horários de trabalho com a família e a vida social e aspectos relacionados especificamente

ao que consideram como vantagens e problemas decorrentes do trabalho noturno.

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1. CONTEXTUALIZANDO OS TEMPOS DE TRABALHO

“O que medem os relógios?” Com esta indagação, Jurandir Malerba (1994) inicia

resenha do livro “Sobre o tempo”, de Norbert Elias (1989), obra de referência para os que

estudam o significado do tempo. Na visão de Elias, “em um mundo sem homens e seres

vivos, não haveria tempo e, portanto, tampouco relógios ou calendários” [(Malerba

(1994:217), apud Elias (1989)]2. Nas palavras de Mônica Martins, “o homem é construtor

do tempo (...). O tempo deve ser compreendido no contexto social onde é produzido e

também em interação com outros elementos da vida social”. [(Martins (2000a:6-7), apud

Elias (1993)]3.

Neuma Aguiar (2001), que também discorre sobre as idéias de Elias, chama a

atenção para os diferentes aspectos da temporalidade, comentando que tanto fenômenos

naturais como instrumentos podem fornecer medidas da temporalidade, ressaltando que “as

medidas são transformadas em símbolos, para que os indicadores da temporalidade possam

ser compartilhados por todos":

“Dia e ano referem-se a periodicidades naturais derivadas da rotação da Terra em torno do Sol e em torno de si mesma. Já a semana e os horários cotidianos são dimensões sociais, derivadas historicamente da regularidade da vida monástica que indicava o ritmo diário das atividades litúrgicas, e quando os sacristãos deveriam bater os sinos marcando o tempo para o acordar, o dormir, as refeições, a missa e as orações”. (Aguiar, 2001:82)

2MALERBA, Jurandir. Ensaio sobre o tempo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n.14, p. 300-304, 1994. 3MARTINS, M.M. A questão do tempo para Nobert Elias: Reflexões atuais sobre tempo, subjetividade e interdisciplinaridade. In Revista de Psicologia Social e Institucional do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Londrina. Paraná, n.2, 2000a.

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Malerba (1994) comenta: “Através de inúmeras digressões eruditas sobre diversos

povos, Elias demonstra que houve tantas maneiras de se perceber o tempo quantos foram os

níveis de diferenciação e integração social entre os indivíduos, no passo de um processo

civilizador. (...) A necessidade de controle, de "medição" do tempo (seja através da

observação do movimento dos astros, das marés, das estações do ano para a agricultura,

calendários, ou instrumentos mecânicos como relógios ou cronômetros), segundo a pauta

de autocontrole requerida no estágio civilizacional atingido, serviu sempre para a

orientação do homem no mundo. E para essa orientação, os homens foram criando

símbolos” (Malerba, 1994:302).

A visão de Elias sobre o papel do tempo como “propiciador do desenvolvimento da

sociedade” é bem explicitada por Martins (2000a): “o processo civilizador acabou impondo

aos indivíduos um número maior de atividades e encadeamento dessas, assim como maior

dependência e complexidade na rede de relações sociais”. A autora continua:

A regularidade e seqüência das medições do tempo possibilitaram demarcar rotinas e atividades dentro de um mesmo código temporal. Tempo e atividade são correlacionados porque medições do tempo permitem ao homem uma certa regularidade e previsibilidade diante da vida (Martins, 2000a:5).

Ela exemplifica:

Assim, segundas-feiras repetem-se após domingos, dias de trabalho são intercalados por dias de folga, em um modelo seqüencial que permite às pessoas se organizarem e programarem suas atividades em função do tempo. A regularidade das medidas temporais pode assim, oferecer maior previsibilidade do próprio coditiano (Martins, 2000a:6)

Ao transpor as concepções de Elias para a análise do tempo de trabalho, esta autora

salienta que:

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(...) nem sempre tivemos nossa vida e trabalho pautado por agendas, horários, relógios e despertadores. O relógio mecânico, por exemplo, foi inventado no século XIII e só atingiu uma parcela maior da população em meados do século XV quando era acoplado nas torres dos principais vilarejos europeus. Por volta do século XVI, a maioria das dioceses inglesas já possuía relógio e este continuou existindo junto com outras formas de medição do tempo e trabalho. Gradativamente, relógios mecânicos foram se espalhando por toda a Europa, sendo que no século XVIII já haviam penetrado níveis mais íntimos de relações de trabalho (Martins, 2000b:5).

Whitrow (1993) comenta sobre o advento do relógio, que se expandiu das praças,

igrejas, fábricas, prédios públicos e casas para o pulso de cada um de nós, ocupando um

local de destaque na organização da vida e significando uma nova forma de contabilizar e

determinar o tempo. Como instrumento de regulação das ações dos homens, o relógio se

tornou um marco do novo mundo dominado pelo capitalismo. A este respeito, Figueiredo

(1982) observa que a organização temporal orientada pelo relógio é relativamente recente,

caracterizando-se, sobretudo a partir do desenvolvimento industrial, por seus relógios de

ponto, visando maximizar e controlar a produção. A autora avalia que a urbanização e a

industrialização têm nos levado cada vez mais a orientar nosso dia-a-dia através de um

sistema mecânico de precisão matemática onde o tempo é calculado até por segundos.

Assim, uma das formas de se pensar na contextualização dos tempos de trabalho

vem da observação de que as maneiras de organizar os tempos de trabalho e não-trabalho

(ou seja, o tempo dedicado ao trabalho e o tempo em que não se trabalha) se expressam de

formas diferenciadas em diferentes grupos sociais. Em seu texto sobre o tempo e o

trabalho, Martins (2000b) cita estudos antropológicos de Clastres (1978) sobre grupos

indígenas que trabalhavam dois meses para cada quatro anos, sendo o tempo restante

despendido em festas e rituais, assim como índios ianomâmis, cuja duração média do

trabalho não ultrapassava três horas diárias, observando se tratar de uma atividade

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produtiva que não visava à produção cumulativa de bens e capital, mas somente à

satisfação das necessidades e ressaltando as mudanças trazidas pelo capitalismo industrial

e, com isso, o caráter contextual dos tempos de trabalho. [(Martins (2000b) apud Clastres

(1978)]4.

Segundo Pesavento (1990) as representações mentais trazidas pelo capitalismo

encontram sua forma acabada quando estas noções se introjetam e cada indivíduo passa a

contar com um relógio moral interno, o que nos faz refletir sobre o advento de um novo

tempo social, em que a verdadeira, e talvez mais eficaz a pontualidade venha do interior do

indivíduo. Desta forma, a introdução de um novo processo de trabalho e de um novo

processo de acumulação, no advento do capitalismo, marcou uma alteração fundamental.

Este novo processo de trabalho inaugura um novo tempo. Rompe-se o equilíbrio do ciclo da

natureza com o sistema de trabalho, e a jornada não obedece mais ao nascer e ao pôr do sol

ou às variações do clima, mas sim às exigências da empresa. A reorientação geral das

tarefas objetiva a disciplina do trabalho5, que encontra uma de suas formas de realização no

controle do tempo do trabalhador (Pesavento, 1990). Karl Marx já questionava sobre a

questão dos limites da jornada de trabalho ao afirmar que:

"...Durante uma parte do dia o trabalhador deve descansar, dormir, durante outra tem de satisfazer necessidades físicas, alimentar-se, lavar-se, vestir-se etc. Além de encontrar este limite puramente físico, o prolongamento da jornada de trabalho esbarra em fronteiras morais. O trabalhador precisa de tempo para satisfazer necessidades espirituais e sociais cujo número e extensão são determinados pelo nível geral da civilização. Por isso as variações da jornada de trabalho ocorrem dentro desses limites físicos e sociais. Esses limites são de natureza muito elástica, com ampla margem de variação...” (Marx, 1987:262)

4MARTINS, M. M. Tempo, trabalho, Elias e pesquisa em organizações. Apresentado na III Conferência de Pesquisa sócio-culural, Campinas, São Paulo, 16 a 20 de julho, 2000b. 5O conceito de "disciplina do trabalho" foi desenvolvido por Thompson em "Time, work – discipline and industrial capitalism".

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De acordo com Pesavento (1990) a nova forma de construção social do tempo se

expressa numa representação interna diferenciada. Surgem as noções de "tempo útil" e de

que "tempo é dinheiro”, de onde se gera uma preocupação com o "bom uso do tempo", da

mesma forma que se articulam estratégias para exercer uma vigilância sobre o tempo do

trabalhador com fiscais, relógios de pontos e regulamentos que se complementam com

multas e recompensas (Pesavento, 1990).

Conforme mostra Figueiredo (1982), a longa jornada de trabalho típica do início do

desenvolvimento industrial se reduziu para 8 horas diárias e outras tantas equivalentes para

o lazer e para o repouso. A partir desta afirmação, pode-se perceber que a definição quanto

à duração do trabalho tem variado nas diversas épocas históricas, já que nos primórdios do

século XIX a jornada chegou a ser de 12, 14 ou mesmo 16 horas por dia (Dejours,1999).

Um outro aspecto da construção do tempo de trabalho se refere ao momento em que

o trabalho é realizado. Soares (2005) menciona que “talvez se possa considerar que há um

padrão temporal de organização social segundo o qual as atividades classificadas como de

trabalho se concentram no período diurno e, em relação à semana, nos dias chamados

‘úteis’” (p.1). Neste contexto, poder-se-ia falar da construção de um padrão temporal de

trabalho-não trabalho que se aplica tanto às 24 horas do dia, como à semana, considerado

um padrão hegemônico na sociedade (Soares, 2005). No entanto, há profissões cujas

atividades de trabalho abarcam as 24 horas do dia e os sete dias da semana, como por

exemplo, aviadores, petroleiros, profissionais de enfermagem e médicos que atuam em

hospitais e bombeiros, entre outras. Ao discorrer sobre estudo realizado com profissionais

da enfermagem, Soares (2005) reflete sobre quão contextual é a organização dos horários

de trabalho:

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“Embora em todos os hospitais se lide com a concepção de realizar atividades ininterruptamente, através do revezamento dos trabalhadores, há várias formas de organizar os horários de trabalho do pessoal de enfermagem. Na Austrália, por exemplo, os regimes de trabalho incluem em geral plantões em horários fixos, com duração de 8 a 10 horas. Já na Inglaterra, são comuns plantões mais longos – de 12 horas – em horários alternados, ou seja, a pessoa trabalha alguns dias no período diurno, e outros, no período noturno” (Soares, 2005:5).

Alguns livros e artigos que abordam a condição de trabalhar segundo horários que

não seguem o padrão diário e/ou semanal dos tempos de trabalho-não trabalho se

mostraram interessantes para a construção do meu objeto de estudo, por descreverem

vivências dos trabalhadores em relação ao tempo de trabalho em diversos contextos.

Um desses materiais é livro de Itani (1998), que chama a atenção para o universo

dos aviadores, ao considerar o fato de os pilotos viverem no "contrafluxo do tempo", com

relação ao tempo de trabalho e à vida sócio-familiar. Segundo esta autora, a vida destes

trabalhadores não pode ser organizada, senão fora da programação das escalas e das

jornadas, ou do tempo não dedicado à companhia, já que o tempo destes profissionais se

desenvolve em dimensões diferenciadas, apresentando tempo de serviço em terra, número

de pousos, sobreaviso, tempo por medida de controle por tipo de tribulação. Enfim, Itani

salienta que: "...Em muitos casos não há uma separação clara entre o que é dedicado ao

trabalho e o que não o é..."(Itani, 1998:123).

Em pesquisa realizada com operárias que trabalhavam à noite, Cunha (1997) analisa

a gestão do tempo de trabalho na vida das operárias e investiga o trabalho noturno para as

mulheres, no qual estas necessitam "construir rearranjos para gerir as tarefas cotidianas e o

cuidado com os filhos" (Cunha, 1997:131). A autora salienta que todas as trabalhadoras

casadas entrevistadas foram escaladas para o turno noturno, com base na concepção por

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parte dos que ocupam o papel de gerentes da fábrica de uma melhor adequação do trabalho

noturno às atribuições de mãe e dona de casa, de tal forma que de dia trabalham em casa e à

noite, na fábrica.

Nota-se, na pesquisa de Rotenberg e cols (2001), com profissionais de uma fábrica

de plásticos, que o impacto do trabalho noturno sob a ótica de gênero se destaca na medida

em que se observa a realidade de homens e mulheres fora do trabalho profissional, ao

considerar a divisão sexual do trabalho (Rotenberg e cols, 2001). Neste estudo,

observaram-se algumas especificidades quanto a formas de organização dos horários de

trabalho, com trabalho das 22 às 6 horas de segunda à sexta-feira e com folga nos fins de

semana. Neste sentido Rotenberg salienta que:

“Esta estrutura temporal do trabalho, que envolve um turno fixo (somente à noite) com folgas nos fins de semana, é relativamente comum em indústrias que não requerem sistemas contínuos de trabalho. Se este esquema tem a vantagem de preservar o fim de semana livre, por outro lado, ele implica uma seqüência de noites de trabalho, de forma que o tempo de folga é muitas vezes dedicado a reparar o cansaço da semana” (Rotenberg e cols 2001:646).

Em relação a profissionais da enfermagem, Soares (2005) comenta: plantões fixos

de 12 horas (diurno ou noturno) costumam ser majoritários no Brasil, sendo que nos

hospitais públicos federais, o regime de trabalho adotado é classificado como "regime

12/60", em que as 12 horas de trabalho são seguidas de 60 horas (dois dias e meio) de

folga, enquanto na rede privada, os regimes mais comumente adotados são os 12/36, em

que a folga tem duração de um dia e meio. Observa-se, assim, se tratar de esquemas de

trabalho em que os dias de folga não necessariamente coincidem com o fim de semana ou

com datas festivas. Tanto neste caso, como entre os aviadores, observamos que o trabalho

é organizado de tal forma que cada semana não é igual à seguinte nem à anterior.

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Seja em relação à semana ou às 24 horas do dia, cabe mencionar a observação de

Rotenberg (2003) sobre o valor social do tempo: “o tempo não tem o mesmo valor nas

diversas horas do dia ou nos diversos dias da semana” (...), fazendo referência à vantagem

de o tempo livre coincidir com os momentos em que a maioria da comunidade se dedica ao

lazer” (p. 53). Ela descreve o estudo de Wedderburn (1981), em que o autor observa que os

horários noturnos e os fins de semana são os momentos mais valorizados para usufruir a

folga, sendo o sábado à noite o momento mais valorizado para o tempo livre. [(Rotenberg

(2003) apud Wedderburn (1981))] 6.

Em conjunto, essas pesquisas em muito contribuíram para a construção do meu

objeto de estudo, uma vez que a intenção era apreender vivências e práticas de profissionais

de enfermagem em relação ao que consideram como o seu tempo. Desta forma, dou

continuidade à trajetória que tenho empreendido, norteada pela proposta de realizar estudos

que abordem o relato das profissionais quanto à forma como organizam seu tempo levando

em consideração o trabalho em plantões.

6Rotenberg, L. Aspectos sociais da tolerância ao trabalho em turnos e noturno, com ênfase nas questões relacionadas ao gênero. In: Trabalho em Turnos e Noturno na sociedade 24 horas. Editora Atheneu, São Paulo, 2004.

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2. UMA PSICÓLOGA PESQUISANDO EM UM HOSPITAL

O trabalho de campo que realizei ocorreu em um hospital público do Rio de Janeiro.

Minha inserção se deu como uma estudante de psicologia que tinha por intuito conhecer a

forma como profissionais de enfermagem que trabalham em plantões noturnos vêem a

organização do próprio cotidiano. Para atingir tal objetivo realizei entrevistas sempre por

três noites consecutivas durante duas semanas do mês de março/2006, de forma a abarcar

os três plantões existentes no hospital.

Por estarem submetidas ao regime de 12 horas de trabalho e 60h de folga, há no

hospital um rodízio entre a equipe, já que é necessário haver profissionais trabalhando

durante todos os dias da semana. Pois de acordo com a escala das trabalhadoras, os

profissionais que estão de plantão em uma 2ªf só estarão novamente de plantão na 5ªf, os

que trabalham 3ª só estarão novamente na 6ª, os plantonistas de 4ª só estarão novamente no

sábado e assim sucessivamente.

O trabalho em plantões no hospital estudado é realizado de forma a abranger dois

turnos. O turno diurno, que abarca o período de 7h da manhã ás 19h e o noturno ocorrendo

de 19h às 7h do dia seguinte. Ambos apresentando 60 horas de folga. Sendo assim, para as

entrevistadas, uma semana acaba sendo diferente da outra (ora trabalham na 2ª feira, ora na

4ª feira, ora no sábado). É interessante destacar, que a maioria das profissionais apresentam

uma segunda atividade profissional, o que contribui para que seu dia-a-dia seja diferente do

padrão que é hegemônico na sociedade em que vivemos.

O roteiro utilizado nas entrevistas (em anexo) era pré-estabelecido e buscava

explorar o cotidiano das trabalhadoras de enfermagem, de forma que estas pudessem falar

sobre seu dia-a-dia, e as fizessem refletir sobre o seu tempo, atravessando sua rotina diária

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dentro do hospital e fora deste. Costumava iniciar com uma pergunta mais abrangente e

com outros tópicos que deveriam ser perguntados caso o participante não os abordasse,

atentando para evitar ao máximo o direcionamento na fala das participantes.

Costumei realizar duas entrevistas por noite em dois dos sete setores que existem no

hospital. Optei por pesquisar dois setores por acreditar que o número de profissionais

pesquisadas em apenas um setor seria insuficiente para conduzir minhas reflexões, já que

durante o turno noturno, o contingente de técnicas de enfermagem costuma ser superior ao

de enfermeiras nos setores, e desta forma ao abordar um setor não conseguiria abordar o

universo das enfermeiras na mesma proporção que o das técnicas. A seleção dos dois

setores se deu pela maior facilidade de acesso, já que se encontravam próximos um do

outro dentro do hospital.

Ao chegar nos setores, me aproximava do posto de enfermagem e como já tinha

previamente a escala mensal das trabalhadoras, perguntava pelo nome da profissional que

estaria de plantão naquela noite. Geralmente, quando a própria não estava no posto, as

profissionais do posto entravam em contato com a enfermeira ou técnica procurada e esta

vinha ao meu encontro.

Apresentei-me como estagiária de iniciação científica FAPERJ da Fundação

Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), explicando em linhas gerais o projeto no qual estou inserida,

que se trata de uma pesquisa na área da saúde do trabalhador que enfoca a relação do

trabalho em plantões com a saúde de profissionais de enfermagem. Após esta explanação,

convidava cada trabalhadora a participar, deixando claro o caráter voluntário da

participação e a possibilidade de desistência a qualquer momento. Como esta pesquisa está

inserida em um projeto maior, as entrevistadas já haviam assinado o termo de

consentimento Livre e Esclarecido, nos moldes recomendados pela Resolução 196/96,

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referente aos aspectos éticos de pesquisas com seres humanos. No momento em que

mencionava a participação voluntária, eu costumava relembrá-la de tal fato de maneira que

se sentissem confortáveis para negar a participação se assim desejassem.

No contato inicial com as entrevistadas, fornecia uma explicação prévia sobre a

pesquisa e seus objetivos, deixando a participante ciente de que a entrevista seria gravada e

que utilizaria a fita apenas para fins de estudos. Nenhuma entrevistada colocou

impedimento à gravação e cada entrevista durou aproximadamente 20 minutos. Foram

entrevistadas um total de 12 profissionais.

As entrevistas ocorreram dentro de um clima de muita cordialidade, aparentando

desejo de colaboração por parte das profissionais de enfermagem. Creio que o fato de já ter

conhecido algumas das entrevistadas, em etapas anteriores da pesquisa como estagiária de

iniciação científica, possa ter contribuído para que se estabelecesse uma rede de confiança e

cumplicidade que acabou transformando a entrevista numa “boa conversa”.

Tendo em mãos todas as entrevistas transcritas, realizei leitura exaustiva e repetida

das mesmas, buscando uma imersão no material e identificando o que surgia de relevante.

Busquei, ao mesmo tempo, apreender as representações que as diversas profissionais de

enfermagem tinham das questões abordadas sem deixar de examinar cada entrevista como

um todo, apreendendo o significado que estas mulheres atribuem ao trabalho, às

responsabilidades domésticas, ao lazer ou outras atividades, procurando trazer à tona suas

vivências e práticas em relação à inversão de horários.

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3. ESCASSEZ, SINCRONIZAÇÃO E PRATICIDADE

."...Na longa lista de emprego de tempo da mulher, vêm

os filhos, os idosos, o companheiro, só não vem ela mesma,

personagem secundário, última coadjuvante de sua própria vida..."

(Rosiska Oliveira)

Ultimamente muitos meios de comunicação, têm apresentado discursos quanto a

não termos tempo hábil para processar tudo o que queremos e/ou desejamos. Na mídia,

tanto escrita quanto falada, o cotidiano urbano tem sido focalizado como fonte de angústias

em função de os indivíduos estarem expostos a uma avalanche de informações e a

cobranças relativas à dedicação a diversos compromissos. Partindo deste pressuposto,

defende-se que o tempo passa e ficamos com a sensação de que nem tudo está sendo

realizado a contento.

Os anúncios publicitários vêm cogitando a demanda social de reivindicações por

mais tempo, tanto de homens quanto de mulheres, quando em sua estratégia de venda

prometem aos indivíduos produtos que possam garantir a autonomia sobre seu próprio

tempo. A apresentação desta idéia surge como estratégia de mercado para induzir a compra,

sob o lema da simplificação da vida, ao defenderem a aquisição de produtos que propiciam

a obtenção de mais tempo para si e para o que desejar fazer7.

Tal discurso está associado não apenas à venda de produtos, mas à venda de

fórmulas para a dita qualidade de vida, como está ilustrado na edição especial da revista

VEJA MULHER de Maio/06, que contem uma sessão dedicada ao cotidiano feminino, 7 Tal fato está presente em nosso dia-a-dia seja através de anúncios em revistas, nos comerciais televisivos de eletroeletrônicos (como: microondas, internet, etc.)

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onde mulheres são instruídas a como organizar o dia-a-dia, de forma a ter uma maior

qualidade de vida, fornecendo estratégias para equilibrar o tempo gasto com o trabalho e a

vida pessoal (Pinheiro, 2006).

É possível encontrar na literatura considerações sobre a escassez do tempo da

mulher indo ao encontro do que vem sendo apresentado em vários meios de comunicação.

Observa-se, assim, que o que chamamos de “tempo” vem se tornando uma questão na atual

sociedade urbana.

A autora Rosiska Oliveira, por exemplo, trabalha com tal idéia ao dizer que o dia

das mulheres não cabe dentro de um dia (Oliveira, 2003). A autora menciona haver, por

parte de mulheres, reivindicações quanto a terem tempo para dar conta de papéis como

profissional, mãe, esposa, dona de casa, filha, amiga, aluna, esportista entre outros. Rosiska

aponta que o tempo, ou melhor, a falta dele, tornou-se uma aflição constante,

principalmente para quem é mulher, exerce uma atividade profissional e tem filhos.

Na pesquisa que realizei, pude observar que os discursos das mulheres trabalhadoras

de enfermagem são elaborados no sentido de defender a noção de que o tempo é um bem

escasso em suas vidas. Esta idéia geralmente é empregada quando técnicas ou enfermeiras

relatam a forma como organizam seu cotidiano e queixam-se de falta de tempo para cuidar

dos filhos, para realizar atividades voltadas para si e atividades de lazer. Por diversas vezes

pude ouvir profissionais pesquisadas relatarem que se o dia tivesse mais de 24 horas elas

conseguiriam executar tudo o que pretendiam, já que, em sua opinião, as 24 horas do dia

não são suficientes para exercer todas as suas atribuições, como afirma uma técnica ao

dizer:

“... Curto, o dia podia ter 48 horas, curto, para que eu possa executar todas as atividades que eu preciso, seja ela em nível de trabalho profissional, como dona de casa, como mãe, como esposa, como cristã,

15

Page 20: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

minha vida religiosa. Por causa disso se torna curto para eu executar o que eu gostaria de executar...” (Claudia - técnica de enfermagem).

Em nosso estudo, observamos que as visões das profissionais de enfermagem sobre

o tempo são pautadas na condição de serem mulheres. Observa-se que, freqüentemente,

quando relatam seu cotidiano e se queixam da falta de tempo, empregam pronomes em

primeira pessoa do plural ou palavras que nos remetem a uma certa noção de pertencimento

a um grupo, conforme observado no relato da enfermeira abaixo, onde a expressão "a

gente" tem o sentido de identificá-la a um grupo, no caso o de mulheres que exercem

atividade profissional e também desempenham atividades domésticas:

"...O tempo todo a gente está trabalhando, quer seja em casa ou no trabalho. Não passa o dia inteiro dormindo ou vendo televisão. A qualquer hora você está trabalhando, a não ser na hora que você está na cama dormindo ou descansando. Do resto, está trabalhando..." (Rose – enfermeira)

Esta questão, com freqüência apresentada pelas entrevistadas parece ser cara ao

universo feminino que, como mostra a epígrafe de Rosiska Oliveira, é marcada por

cuidados com os outros e não consigo mesma. Observa-se entre as mulheres uma espécie

de priorização do tempo que reflete valores sociais de nossa cultura, onde o papel relativo

ao cuidado do lar assume destaque em seu funcionamento social.

O fato é que a presença cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho não

diminuiu seus encargos domésticos. Como comenta Portela (2003) em relação ao estudo de

Doucet (1995), qualquer que seja a técnica utilizada para “mensurar” a participação das

pessoas no trabalho doméstico (avaliação do uso do tempo, questionários sobre a

distribuição das tarefas domésticas, entre outras), o trabalho realizado em casa ainda

16

Page 21: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

pertence essencialmente à mulher.[(Portela (2003) apud Doucet (1995)]8. Esta combinação

de “trabalhos”, denominada dupla jornada (Kergoat, 1989), é comum entre aquelas que

vivem em família e trabalham fora.

Mesmo submetidas a várias atividades e obrigações, as mulheres aqui estudadas

vêem a realização dos afazeres domésticos como algo necessário e do qual não abrem mão.

As entrevistadas parecem sinalizar que o tempo do trabalho profissional não inviabiliza o

tempo do trabalho doméstico, embora se queixem de sobrecarga por estas múltiplas

funções.

Ao estudar trabalhadoras noturnas de uma fábrica, Cunha (1997) afirmou que tais

mulheres viviam uma condição em que o trabalho profissional e as atribuições da casa

apresentavam uma relação de interconexão. Da mesma forma, as trabalhadoras de

enfermagem avaliam o trabalho doméstico como cumulativo e não tendo hora pré-

determinada para seu início nem para o seu fim, despendendo, desta forma, mais tempo e

organização para sua execução do que o trabalho profissional, conforme a técnica nos

relata:

“...As tarefas de casa me ocupam mais do que o trabalho em si. Porque o trabalho a gente sai. Tem horário de chegar lá, cumpre nossa carga horária e vai embora. A história aqui em casa, não. Quanto mais você faz, mais coisa aparece. Pouco tempo em casa, aí mesmo que sobrecarrega, porque o que eu não fiz ontem, anteontem eu vou ter que fazer tudo em pouco espaço de tempo que eu estou em casa...” (Melissa – técnica de enfermagem).

Desta forma, os afazeres da casa para a maioria das entrevistadas estão juntamente

com o trabalho profissional formando um grande “bloco de trabalho”. As afirmações nesse

sentido baseiam-se na idéia de que estão continuamente mobilizadas por atividades de

8 Portela, L.F, Rotenberg, L. & Waissmann, W. Health, sleep and lack of time: relations to domestic and paid work in nurses. In Rev de Saúde Pública, vol 39, n. 5, p. 802-8, São Paulo, 2005.

17

Page 22: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

responsabilidade seja em casa ou no hospital, conforme observou Cunha (1997) no relato

das operárias entrevistadas. As considerações da autora se aplicam no caso aqui estudado

quando afirma que o fato das mulheres que trabalham fora terem atribuições do serviço

doméstico e de cuidado com filhos resulta em um acúmulo de funções, formando um

continuum dificilmente dissociável entre tempo de trabalho realizado na casa e na fábrica

(Cunha 1997)- neste caso ao trabalho em casa e no hospital.

Tal acúmulo de funções em diferentes esferas da vida assume para as entrevistadas

um sentido de peso, de sobrecarga. Tendo por base esta noção, técnicas e enfermeiras

revelam suas expectativas quanto a se apropriarem do tempo em benefício próprio e não

apenas viverem reféns dos afazeres de cuidados, sejam estes com pacientes ou com o lar.

Quando se queixam de falta de tempo costumam reivindicar um momento para si que

represente um usufruto seja no auto-cuidado ou no prazer do convívio com os outros.

Conforme explicitado por uma enfermeira: “...Eu gostaria sim de fazer exercício físico. Eu

estou precisando, estou acima do peso. Eu queria ver mais essa parte, cuidar mais de mim.

No momento, não tenho tempo...” (Roberta – Enfermeira).

Assim como muitas mulheres em nossa sociedade, o tempo de cuidado com o corpo

e com a estética é relatado pelas profissionais como algo desejado, mas dificilmente sobra

tempo para realizá-lo, assim como para as atividades de lazer e descanso. As colocações de

Servan-Schereiber (1991) em seu livro “A arte do tempo”, vão ao encontro das concepções

das entrevistadas quando nos chama atenção para a importância do tempo para o corpo,

para o consumo, para descanso, leitura e amor, ressaltando que estes tempos embora sejam

necessários, não dão conta de todas as possibilidades ou desejos de nossa existência,

conforme relatos de uma enfermeira:

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Page 23: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

"... Eu acho que eu poderia ter mais um tempo para descansar, para dormir. De repente um tempo a mais para ficar em casa ou mais um tempo para passear. Ás vezes, você termina de arrumar a casa"ah, podia ir no cinema" quando você olha no relógio são dez horas da noite. Aí você pensa, podia ter mais tempo para eu poder ir e depois dormir. O trabalho te ocupa tanto tempo que não sobra..." (Rose – Enfermeira).

Conforme já dito, o discurso dessas mulheres costuma ser queixoso, pois trata de

alguma coisa que lhes falta – o tempo. Em especial, a falta de tempo para os filhos aparece

não apenas como uma preocupação no presente momento, mas como uma preocupação

futura com a qualidade da relação mãe-filho em termos das possíveis conseqüências da

pouca atenção dada aos filhos, como nos mostra a enfermeira quando diz:

“... Isso é uma coisa que eu tenho receio de no futuro eu enfrentar algumas conseqüências em cima disso, por exemplo, carência afetiva, essas coisas dos filhos, isso me preocupa. Eu acho que a gente, às vezes, se realiza de um lado, mas se frustra no outro, por não poder dar atenção que a gente gostaria de dar...” (Nazaré. - Enfermeira).

Mesmo entre as que não têm filhos, pode-se perceber uma preocupação com a

qualidade da relação mãe-filho caso venham a engravidar e permaneçam submetidas a um

ritmo intenso de trabalho, como comenta a enfermeira:

"....Daqui a pouco vou ter filho, minha pretensão é trabalhar em um lugar só, já estou me organizando para isso. Porque senão o que adianta trabalhar em dois empregos? Ter filhos para quê? Aí vou ficar só em um. Não sei se vou ficar de dia ou de noite, mas pretendo ficar só em um..." (Rose – Enfermeira)

A convivência entre mães e filhos é tida por estas mulheres como fundamental, e há

quem se posicione numa perspectiva semelhante àquela desenvolvida por Rosiska Oliveira

(2003) ao afirmar que a ênfase exagerada na vida profissional, em detrimento da vida

privada, acaba voltando-se contra a própria sociedade, na medida em que, deixando em

segundo plano a função educativa, os pais abrem espaço à deriva no destino de muitas

crianças e jovens.

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Page 24: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

É importante destacar que muitas profissionais costumam ter duplo emprego e que

costumam identificar que o tempo de folga que apresentam entre plantões surge com

freqüência como um impulsionador para um duplo emprego, na medida em que estão

submetidas a um esquema de trabalho no esquema denominado 12/60 (lê-se doze por

sessenta), trabalhando por 12horas e folgando por 60h (dois dias e meio). Tal horário

implica trabalhar em dias não seguidos o que tende a favorecer um segundo vínculo

empregatício.

Cabe observar, entretanto, que mesmo usando o argumento da falta de tempo, há

entrevistadas que constroem suas justificativas sobre duplo ou triplo emprego em uma

espécie de predisposição que se combina à necessidade financeira, conforme dizem estas

duas enfermeiras:

"...Se eu pudesse optar, eu optaria por trabalhar em um só, mas não dá. O dinheiro nunca dá para a gente conciliar faculdade e serviço. Fora as tarefas que a gente tem que cumprir em casa. Ajudar o marido nas despesas, nas nossas despesas, na rua, na faculdade. Então tem que ter outro emprego de suporte..." (Melissa – Técnica de enfermagem)

“...Porque eu acho que, na verdade, enfermeira é meio maluca, médico também, porque se todo mundo consegue sobreviver com um emprego, por que a gente tem esse vício de trabalhar em dois? Acho que primeiro foi assim, um desafio, será que eu consigo? Aí você vai, você acaba que constrói um salário que depois para você voltar para trás é difícil. Mesmo que você volte atrás, você volta atrás, ganha só aquilo, e aí você vai passar a ter muito tempo ocioso. “Pô, esse tempo ocioso, eu podia estar trabalhando e ganhando mais”. Eu cheguei a ficar seis meses sem trabalhar em dois, só em um, fiquei doida, não dava...” (Rose– Enfermeira)

Nota-se que esta enfermeira encara o acúmulo de emprego na profissão de

enfermagem como uma característica específica dos profissionais da área de saúde,

especialmente entre enfermeiras e médicos. A questão do duplo emprego surge com

20

Page 25: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

freqüência na falas destas profissionais, onde a maioria das trabalhadoras acumula além

do trabalho no hospital estudado uma outra atividade profissional9.

Fato observado com freqüência nas entrevistas destas profissionais é o orgulho por

"trabalhar muito", por dar conta de muitas responsabilidades e atividades profissionais.

Desta forma, o acúmulo de empregos é encarado como uma conquista:

"... A pessoa que cumpre um ofício só profissionalmente já chega no final do dia cansada. Imagine dois. Só que eu já estou acostumada, trabalhando desde os 14 anos de idade, eu estou acostumada com um ritmo mais acelerado..." (Claudia.– técnica de enfermagem)

"...Você acha que as pessoas gostam de trabalhar muito, muito, muito? Eu trabalho muito. Você vê a minha idade, eu vou fazer 50 anos, nenhuma garotinha nova trabalha tanto quanto eu. Trabalha? Não trabalha...Minha filha é trabalhadeira, puxou a mãe, gosta de um emprego, de trabalhar..." (Elaine – técnica de enfermagem)

Ao abordar o fato de trabalhar em demasia, pude ouvir uma técnica relatar que já

houve épocas em que realizava plantões para três pessoas no hospital estudado, ou seja,

além do seu plantão ela substituía dois colegas de trabalho, realizando um total de 30

plantões por mês, quando o habitual seria fazer 10 plantões por mês. Atualmente está

realizando dois plantões no hospital pesquisado além de ter um outro emprego na

assistência em outro hospital.

"... Aqui eu era três pessoas diferentes, o meu e mais duas, eram 30 plantões, 10 meus, 10 de uma e dez de outra. Aí, agora eu faço três também, só que um rapaz saiu daqui e aí eu fui e arrumei um fora. Aí é mais cansativo, muito mais cansativo e mais exigente, é particular, é muito mais exigente...." (Elaine – Técnica de Enfermagem)

9 Seria de grande valor refletir sobre as considerações de Karl Marx quanto ao significado da jornada de trabalho nas relações de produção capitalistas, procurando elucidar o contexto de atividades de prestação de serviço em enfermagem no Brasil, a partir das idéias do autor ou de autores que já tenham feito um investimento semelhante com base em tal teoria clássica. Não foi possível realizar esta análise na presente monografia; proponho-me a desenvolvê-la em pesquisas futuras.

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Page 26: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

A menção a atuar como “três pessoas diferentes” era possível na medida em que

ocorre uma espécie de “negociação da escala de trabalho” entre essas profissionais, como já

tínhamos observado em outras etapas da pesquisa (v. Soares, 2005; Ribeiro-Silva e cols, a

sair). Tal negociação se dá de algumas formas, como (i) ao fazer plantão para outro

profissional (como no caso da técnica citada), (ii) ao permitir que outro trabalhador faça o

seu plantão ou (iii) através de trocas de dia ou de horários. As “negociações” referentes a

substituir um(a) colega ou ser substituída por um(a) colega envolvem valores monetários,

como será comentado adiante.

Observa-se, desta forma, que além da questão relativa ao tempo total dedicado ao

trabalho, outro aspecto abordado pelas entrevistadas diz respeito à forma de lidar com a

escala mensal de trabalho visando obter folgas que entendam ser mais convenientes, seja

para favorecer o convívio com seus familiares ou para melhor compatibilizar com outras

atividades de trabalho ou estudo10.

Quando se trata de compatibilizar o horário com outras atividades de trabalho ou

estudo, observa-se como nos foi dito por uma técnica a escolha de não "trabalhar de dia

direto" de forma a possibilitar a sincronização: "...Antes eu trabalhava só de dia, optei por

trocar de turno porque se eu trabalhasse de dia direto, não teria como estudar..." (Melissa –

Técnica de enfermagem).

Ao pensar nos arranjos familiares destas trabalhadoras, torna-se interessante

observar as estratégias desenvolvidas por estas mulheres no sentido de conviver com os

filhos em momentos de lazer e/ou necessidade, como pude ouvir de uma enfermeira: "...

Fiquei chateada por não ter vindo no plantão ontem, vou ter que pagar isso, e, pagando esse 10 Em decorrência das trocas, os profissionais às vezes realizam plantões de 24 horas, ao invés de 12 horas no sentido de favorecer a compatibilização com outro emprego ou de aumentar o tempo de folga (v. Soares, 2005).

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Page 27: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

plantão, eu vou ter que trabalhar dobrado. Mas não tinha jeito, meu filho estava doente e eu

não tinha com quem deixá-lo..." (Roberta – Enfermeira).

Cabe ressaltar o papel assumido pelo cônjuge em relação aos filhos durante a

ausência das mulheres, o que pode se tornar mais complexo quando ambos trabalham em

turnos. No caso apresentado por uma técnica de enfermagem aqui entrevistada, poder-se-ia

falar de um gerenciamento dos horários de trabalho do casal no qual ambos contam com a

possibilidade de troca, de forma a garantir a presença do marido em casa nas noites de

trabalho da esposa , como comenta técnica de enfermagem:

"...Somos plantonistas, então quando dá para trocar o plantão a gente troca e fica uns dias mais folgada em casa. Atualmente a gente está trabalhando em plantões diferentes, então quando eu não fico com as crianças é ele quem fica. Então a gente consegue administrar esse lado de casa por causa disso..." (Sonia – técnica de enfermagem)

O investimento por parte das trabalhadoras de enfermagem no sentido de negociar

seus dias de trabalho também está relacionado à possibilidade de partilhar com a família

dos momentos de festas e comemorações. Isto pode ser evidenciado na dissertação de

Soares (2005), quando esta menciona o caso das trabalhadoras de enfermagem que realizam

trocas e/ou pagamentos de plantão como garantia de que poderão estar presentes em outros

compromissos como, por exemplo, datas consideradas especiais como Natal e Ano Novo.

De acordo com Soares (2005), nestas datas ocorre um aumento monetário dos plantões

vinculado ao valor simbólico destas festividades, já que nestes dias muitas trabalhadoras

prezam estar com suas famílias, pagando mais caro do que o usual para outros fazerem o

seu plantão.

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Page 28: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

Um outro aspecto da sincronização se refere à escolha do plantão noturno pelas

profissionais da enfermagem. Sobre este aspecto, surge com freqüência no discurso das

entrevistadas o fato de avaliarem sua experiência em trabalhar à noite como representando

uma espécie de “praticidade”, de forma que durante o dia podem desempenhar suas

atividades cotidianas e à noite, período que em geral a sociedade adormece, elas realizam

seu trabalho profissional. Tal fato pode ser observado no relato da técnica quando diz:

“...Para mim a noite é feita para dormir. Mas para mim ela é prática. No meu contexto hoje, trabalhar à noite para mim, é praticidade. Eu posso fazer o que eu gosto e ter tempo depois para fazer outras coisas...” (Julia – Técnica de enfermagem)

O turno noturno também é visto pelas trabalhadoras como uma espécie de “coringa”

que pode ser utilizado para amenizar o dia-a-dia atribulado das entrevistadas, como nos foi

dito por uma técnica: “...Necessidade de acomodar as escalas, porque eu entrei para o

outro emprego, eu achei que ia ficar “menos pior” se trabalhasse à noite...” (Lucia– técnica

de enfermagem)

O trabalho noturno se destaca, então, no discurso das técnicas e enfermeiras como

justificativa para conciliar com outro emprego e/ou estudo ou para se dedicar mais aos

filhos, já que no período noturno eles estão dormindo. Segundo afirmam tal fato muitas

vezes pode abalar a vida conjugal, em vista de ser o período da noite considerado o período

da intimidade entre os casais.

Assim, alguns relatos revelam considerações sobre a ausência da mulher como

companheira que na visão da trabalhadora poderia acarretar desentendimentos na vida do

casal, conforme nos disse a técnica de enfermagem: "..Ele fica mais tempo em casa do que

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Page 29: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

eu. Ele começou a reclamar muito que eu não tinha mais tempo para ele, até para as

crianças mesmo. Foi quando eu me separei..." (Melissa – Técnica de enfermagem).

Tal discurso nos remete ao fato de que para estas trabalhadoras, as esferas que

acabam sendo privilegiadas são as de profissional e mãe, enquanto a vida conjugal se

encontra em segundo plano como nos diz a técnica:

"... Priorizava o trabalho à noite porque podia ficar com meus filhos, dar atenção aos meus filhos durante o dia. É quando eu considero que a criança necessita mais. Á noite eles estão dormindo. Quem sente falta é o marido, mas essa hora o marido fica em segundo plano. Quando você tem que optar, tem que colocar as necessidades dos filhos e o marido entende..." (Claudia.- Técnica de enfermagem).

Nota-se no discurso desta técnica de enfermagem a oposição entre conjugalidade e

parentalidade, onde seu papel enquanto cônjuge parece ser anulado, elegendo como

primordial o cuidado com os filhos, em detrimento da sua vida conjugal.

Fato recorrente nas falas das entrevistadas é a noção de trabalho de dia versus

trabalho à noite, onde as vantagens do turno da noite são exaltadas pelas trabalhadoras.

Segundo relatos das trabalhadoras, à noite não há a correria do turno diurno, por haver um

número reduzido de profissionais tanto de enfermagem quanto de outros profissionais no

setor e conseqüentemente haver menos cobranças por parte da chefia de enfermagem do

hospital, conforme relato da enfermeira:

"...Em relação ao trabalho de dia, eu acho que a noite é um trabalho mais calmo, acho que o nível de estresse é muito menor, de dia tem muita gente, em geral as rotinas são todas feitas de dia, as cobranças...de dia você tenta resolver todos os problemas e deixar o menos possível para a noite..." (Rose – Enfermeira)

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Page 30: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

O turno diurno se destaca na fala das profissionais de enfermagem por ser o turno

do "estresse" e da "correria" enquanto o noturno surge como "calmo" e "tranqüilo".

Em contrapartida, quando tecem comentários sobre o turno noturno, as

trabalhadoras relatam cansaço, desgaste físico, emocional e assumem que pagam um

“preço” pela troca do dia pela noite. Na visão delas, este “preço” que costumam pagar se

relaciona com o fato de abdicar do sono noturno em casa, embora tenham permissão para

dormir ou repousar durante os plantões11. Muitas das entrevistadas relatam não conseguir

dormir durante os plantões noturnos no hospital, mas apenas descansar.

"...Porque a noite o tempo que você tinha para descansar você tem que ficar acordada porque tem que trabalhar. Você está tão cansada que você deita e só descansa o corpo, mas a sua mente continua ali, pensando em tudo que precisa ser feito..." (Melissa – Técnica de enfermagem)

“...Eu acho que trabalhar a noite sobra mais tempo para outras coisas, mas é muito cansativo. Porque a gente não repõe esse descanso. Não descansa, nem antes de vir e nem após. Então fica muito cansativo você descansa pouco..”. (Nazaré- Enfermeira)

Estas falas nos remetem a situações em que as profissionais referem não conseguir

descansar, nem antes nem após o plantão noturno, tornando o cotidiano cansativo. Sobre o

sono durante o plantão, algumas relatam que o corpo descansa durante a noite, mas a mente

permanece em plena atividade, pensando em tudo o que deve ser feito. Surgem nos

discursos preocupações a longo prazo quanto ao que parecem considerar como uma

organização temporal desfavorável ao corpo, ao mesmo tempo em que parecem considerar

11 De acordo com estudos prévios de nossa equipe, as profissionais de enfermagem deste hospital têm permissão para dormir durante os plantões noturnos, havendo locais próprios para o repouso ou descanso (Ribeiro-Silva e cols., a sair). Em geral, as equipes de cada setor fazem uma espécie de rodízio em que cabe a cada profissional um tempo de aproximadamente três horas de repouso, devendo-se ressaltar que a possibilidade de contar com o tempo para o descanso depende da dinâmica do plantão, podendo não ocorrer em função da necessidade do serviço (Soares, 2005).

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Page 31: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

os efeitos maléficos do trabalho noturno como cumulativos, tendendo a se agravar de

acordo com a totalidade do tempo em que a pessoa esteve exposta ao turno noturno: "...

Eu acho que é porque é de muito tempo trabalhando a noite. Eu acho que esse meu

cansaço deve ser por conta disso, porque são muitos anos trabalhando a noite..." ( Mariana

– Técnica de enfermagem)

"....O desgaste é maior porque a gente não nasceu biologicamente para isso, o certo é dormir a noite e trabalhar de dia. Então, o organismo da gente sente, acaba sentindo. Agora a gente não percebe, mas futuramente..." (Roberta.- Enfermeira)

O fato é que ao trabalhar a noite, como nos disse uma técnica de enfermagem, há

uma espécie de "desperdício de energia", onde se trabalha muito e dorme pouco, e o dia

seguinte ao plantão já se inicia com a sensação de cansaço por parte das profissionais.

"... À noite você tem muito desperdício de energia, você trabalha muito, dorme pouco, começa o dia cansada, mas tem a opção....Tem a vantagem e a desvantagem. No dia é muito mais cansativo por trabalhar direto. A noite tem a hora de descanso. Mas assim, fisicamente, eu me sinto mais cansada, eu durmo pouco..." (Melissa – técnica de enfermagem).

Ter um período para o descanso durante o plantão noturno parece ter efeito benéfico

aos trabalhadores no sentido de “compensar” parcialmente a redução na duração média do

sono por dia, como foi tratado por Ribeiro-Silva e cols (2006) ao ressaltar a importância do

período de descanso durante o turno noturno, principalmente para os profissionais de

enfermagem que acumulam dois empregos.

Ao fazerem menção sobre o trabalho noturno em outro hospital, surge a questão de

não haver lugar nem permissão por parte da chefia de enfermagem para o descanso durante

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Page 32: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

o plantão, levando na visão da profissional a um viver uma situação considerada como de

maior desgaste, como nos diz a técnica:

"... Trabalhar a noite num lugar que você não tem lugar de descanso, eu quase morri... você deita no chão, não tem travesseiro, não tem conforto nenhum. Isso você sente. Eu fiquei acordada o tempo todo. As vezes que trabalhei lá à noite, todas as noites que eu trabalhei lá eu não dormi, fiquei acordada..." (Elaine – Técnica de enfermagem)

Discursos deste tipo são reveladores do quanto o período da noite está relacionado

ao descanso. E o quão difícil se torna o fato de não dormir durante este período,

principalmente entre as profissionais que estão submetidas ao duplo emprego e necessitam

deste período de descanso para engajar em outra atividade profissional no dia seguinte.

Recorrente no discurso de algumas trabalhadoras é a dificuldade de lidar com o

sono no dia seguinte ao plantão noturno, conforme nos disse uma técnica:

"... O dia que eu faço 24 horas, eu não rendo mais nada no dia seguinte. Eu acho que o problema é o sono. Eu fico com sono o dia inteiro. Se eu não durmo amanhã de dia. Por exemplo, amanhã eu vou para casa, aí quando dá para dormir antes do almoço, eu dou uma dormida antes do almoço, se não dá, eu faço as minhas coisas todas, termino de almoçar, eu deito e durmo. Aí durmo praticamente, se não me interromper o telefone e eu conseguir escurecer o quarto, eu durmo a tarde toda e a noite tenho mais sono ainda...." (Mariana – técnica de enfermagem)

Este discurso faz referência à inversão de horários vivenciada pelos profissionais

que realizam trabalhos à noite. Algumas estratégias adotadas por estes profissionais, como

"escurecer o quarto" sinalizam a necessidade de repousar durante o dia. Este grupo de

profissionais encontra-se na "contra-mão" da sociedade, onde as refeições com a família, os

estabelecimentos comerciais e o nível de ruídos seguem os horários considerados

“normais” da sociedade, além dos fatores físicos do ambiente, entre os quais a claridade

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Page 33: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

durante o dia, que também contribuem para prejudicar diurno. Além disso, se

considerarmos as informações de que dormir de dia contraria o funcionamento do

organismo nos moldes descritos pela Cronobiologia (Menna-Barreto, 2003),

concordaremos com Rotenberg e cols. (2001) quando comentam que o trabalho à noite está

associado a um cotidiano essencialmente diferente do adotado pela comunidade em geral,

no que concerne aos ritmos sociais e biológicos.

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Page 34: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho procurei apresentar elementos que contribuíssem para a reflexão

acerca do “tempo” de mulheres profissionais de enfermagem que exercem plantão noturno.

A partir do contato com o material obtido nas entrevistas, optamos por apresentar este tema

do âmbito mais geral para o particular, abordando primeiramente as questões relativas ao

universo feminino, posteriormente enfocando as especificidades destas mulheres por se

tratarem de profissionais de enfermagem e, em seguida, as particularidades por elas

mencionadas em relação ao trabalho noturno.

As mulheres entrevistadas apresentaram em seus discursos a noção de

obrigatoriedade na execução de atribuições socialmente destinadas à mulher e revelam uma

concepção de tempo que reflete valores de nossa cultura, onde o tempo de lazer e de

cuidados consigo mesma estão em segundo plano quando comparados com o tempo para a

manutenção do lar e para família. Em seus relatos apresentam queixas quanto à escassez de

tempo para conviver com seus amigos e familiares e para executar tudo o que pretendem.

Ao considerar essas mulheres como inseridas no grupo das profissionais de

enfermagem, não foram observadas diferenças quanto ao discurso de técnicas de

enfermagem e enfermeiras. Em seus relatos surgem queixas e especificidades com relação à

organização do dia-a-dia devido aos horários de trabalho. Entretanto apesar destas queixas

observa-se entre elas uma espécie de naturalização do tempo de trabalho, já que consideram

que isso “faz parte do ofício”. Ao mesmo tempo, lançam mão de estratégias no sentido de

favorecer a sintonia de seus horários com os de sua família e da sociedade em geral.

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Page 35: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

As entrevistadas alegam "pagar um preço" por trabalharem à noite, já que em sua

visão, este é o tempo do convívio com a família e do recolhimento. Para elas, as vantagens

e/ou recompensas advindas por trabalhar em um horário não usual convivem com esse

"preço a ser pago". As vantagens surgem nas falas das trabalhadoras, ao considerar

“prático" o trabalho noturno, já que facilita a conciliação com um outro emprego, atividade

de estudo e/ou favorece a dedicação aos filhos (de dia). Quanto ao "preço", relatam

cansaço, desgaste físico e dificuldades em relação ao ato de dormir, parecendo atribuir ao

trabalho noturno alguns efeitos sobre o "organismo", além de repercussões na vida familiar

e social.

No transcorrer desta monografia, busquei apresentar a percepção das profissionais

de enfermagem quanto à vivencia de seus horários e à organização do que avaliam como o

seu "tempo", sendo este tempo entendido como um conceito construído socialmente,

utilizado pelas pessoas segundo seus valores sócio-culturais. Em aparente oposição a este

“tempo subjetivo”, poder-se-ia pensar em um tempo “objetivo” medido através de

instrumentos, que corresponderia ao “tempo físico” nas palavras de Szalai (1966). Este

autor considera o tempo físico como, provavelmente, a única “coisa” igualitariamente

distribuída entre os seres humanos, a única da qual todos recebem a mesma quantidade e da

qual todos podem gastar o mesmo montante: 24 horas por dia, nem mais, nem menos12.

Nesse sentido, é interessante observar o discurso de uma das entrevistadas em relação ao

tempo dedicado à dupla jornada:

"...O dia em vez de ter 24 horas, podia ter mais, podia ter 30 horas mas mesmo assim acho que não resolveria porque a gente é tão viciada em trabalho que eu acho que ia acontecer a mesma queixa de falta de tempo..." (Rose– Enfermeira)

12 Embora o autor não comente, esta noção se refere a sociedades que fazem uso de relógios.

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Ao avaliar que poderia se beneficiar de um dia de 30 horas, ela imediatamente

reconhece que a possibilidade de “esticar” o dia de 24 para 30 horas não resolveria o

problema da escassez de tempo. Assim, através desta fala pode-se apreender que a queixa

não se refere propriamente à falta de tempo, já que um dia com “mais horas” significaria

mais horas para trabalhar. Nas palavras desta enfermeira, se trata de um “vício em

trabalho”, uma noção ligada à obrigatoriedade do trabalho, que permeou o conjunto de

discursos das mulheres aqui estudadas.

O presente trabalho consistiu em reflexões introdutórias acerca do tema proposto.

Por se tratar de uma área ampla, há necessidade de um maior aprofundamento no futuro

particularmente sobre aspectos das relações de gênero no trabalho e da visão marxista da

jornada de trabalho, entre outros. Desta forma, pretendo dar continuidade ao trabalho, já

que a meu ver as questões aqui abordadas são de grande relevância em nosso meio social.

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REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Page 39: O DIA DE QUEM TRABALHA À NOITE: Reflexões sobre o cotidiano

ANEXO

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ROTEIRO UTILIZADO NAS ENTREVISTAS Como foi o seu dia hoje? O que você sente ao pensar sobre o seu dia? Em geral, como é o seu cotidiano, o seu dia-a-dia? O que você diria sobre seu tempo? Por ex: O que você faz quando sai daqui? E depois o que você faz.....etc.. Idade? Tem companheiro (casada, união livre, etc)? Tem filhos? Idades? Há quanto tempo trabalha na área de enfermagem? Sempre trabalhou á noite? (vantagens e desvantagens decorrentes) Por que optou por este horário? Em qual momento da sua vida? É falta de opção ou gosta? Tem outro emprego na assistência ou fora da assistência em enfermagem? Se sim, há quanto tempo acumula mais de um emprego? O que te fez trabalhar com enfermagem? Você gosta do que faz?