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Sobre Ensinar e Pesisar Direito 1 Criação Editora O Devido Processo Legal e o Acesso à Justiça: aspectos constitucionais e cosmopolitas Flávia Moreira Guimarães Pessoa Jacqueline Taís Menezes Paez Cury Yuri Matheus Araújo Matos Adenilton de Souza Paixão ORGANIZADORES

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Sobre Ensinar e Pesquisar Direito

1Criação Editora

O Devido Processo Legal e o Acesso à Justiça: aspectos constitucionais e cosmopolitas

Flávia Moreira Guimarães PessoaJacqueline Taís Menezes Paez Cury Yuri Matheus Araújo MatosAdenilton de Souza PaixãoORGANIZADORES

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PREFÁCIO

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Título: O DEVIDO PROCESSO LEGAL E O ACESSO À JUSTIÇA: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS E COSMOPOLITAS

Organizadores:Flávia Moreira Guimarães PessoaJacqueline Taís Menezes Paez Cury Yuri Matheus Araújo MatosAdenilton de Souza Paixão

ISBN: 978-65-88593-15-8

CONSELHO EDITORIAL

Ana Maria de MenezesFábio Alves dos SantosJorge Carvalho do NascimentoJosé Afonso do NascimentoJosé Eduardo FrancoJosé Rodorval RamalhoJustino Alves LimaLuiz Eduardo Oliveira MenezesMaria Inêz Oliveira AraújoMartin Hadsell do NascimentoRita de Cácia Santos Souza

Lucas Aribé Alves(Parecerista de acessibilidade)

www.editoracriacao.com.br

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O Devido Processo Legal e o Acesso à Justiça:

aspectos constitucionais e cosmopolitas

Flávia Moreira Guimarães PessoaJacqueline Taís Menezes Paez Cury Yuri Matheus Araújo MatosAdenilton de Souza PaixãoORGANIZADORES

Aracaju | 2020

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Copyright by organizadoras

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, com finalidade de comercialização ou aproveitamento de lucros ou vantagens, com observância da Lei de regência. Poderá ser reproduzido texto, entre aspas, desde que haja expressa marcação do nome do autor, título da obra, editora, edição e paginação. A violação dos direitos de autor (Lei nº 9.619/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código penal.

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO1. Direito: Estudo e ensino.2. Metodologia de ensino e elementos do Direito.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAPESSOA, Flávia Moreira Guimarães (org.) et al. O Devido Processo Legal e o Acesso à Justiça: aspectos constitucionais cosmopolitas. 1. ed. Aracaju, SE: Criação Editora, 2020. EBook (PDF; 1 Kb). ISBN978-65-88593-15-8  

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Pessoa, Flávia Moreira Guimarães (org.) et al. P475d O Devido Processo Legal e o Acesso à Justiça: aspectos

constitucionais e cosmopolitas / Organizadores: Flávia Moreira Guimarães Pessoa; Jacqueline Taís Menezes Paez Cury; Yuri Matheus Araújo Matos e Adenilton de Souza Paixão. -- 1. ed. -- Aracaju, SE: Criação Editora, 2020.

E-Book: 1 Mb; PDF). Inclui bibliografia.

222 p., 21 cm. Inclui bibliografia. ISBN. 978-65-88593-15-8  

1. Direito. 2. Ensino. 3. Metodologia. 4. Pesquisa. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

CDD 340.07CDU 340.11

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PREFÁCIO

É com incomensurável satisfação que apresentamos a obra coletiva, “O Devido Processo Legal e o Acesso à Justiça: aspectos constitucionais e cosmopolitas”, a qual resulta da reunião de produções acadêmicas produzidas no ano de 2020 para a disciplina “Constituição e Processo”, ministrada pela professora Dra. Flávia Moreira Guimarães Pessoa, no Curso de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Esta obra é destinada aos leitores que almejam obter amplo co-nhecimento em torno dos aspectos constitucionais, em especial, no que diz respeito ao Acesso à Justiça e ao Devido Processo Legal. Os onze capítulos que compõem este livro foram didaticamente conca-tenados, com o intuito de proporcionar uma leitura fluida e agradá-vel, ademais, vale mencionar a ideia central de cada um dos textos elaborados pelos pesquisadores, vejamos:

O primeiro capítulo, faz alusão às “Mudanças na CLT ocorridas com a Lei 13.467/2017 e o Acesso à Justiça”, elaborado pelas coauto-ras Silvia Helena Maluf e Dra. Flávia Moreira Guimarães Pessoa, tem por objetivo analisar os obstáculos ao acesso à justiça, notadamente para os trabalhadores, com a instituição dos honorários de sucum-bência na Justiça do Trabalho, inclusive para os detentores da gra-tuidade da justiça e apresentar as soluções interpretativas possíveis.

Por conseguinte, o segundo capítulo, intitulado “Acesso à jus-tiça das pessoas com deficiência: desafios à concretização de direi-tos”, escrito por Kelly Helena Santos Caldas e a Dra. Miriam Couti-nho de Faria Alves, busca diagnosticar os obstáculos e as possíveis soluções ao acesso à justiça das pessoas com deficiência no cenário

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brasileiro, tendo como percurso analítico os diplomas normativos de efetivação dos direitos humanos e fundamentais destinados a este grupo tão vulnerável.

Na sequência, o terceiro capítulo intitulado “Acesso à justiça: soluções para amenizar a crise numérica dos processos na era da cultura demandista”, a pesquisadora Jacqueline Taís Menezes Paez Cury, objetiva destacar os efeitos colaterais do excesso de judiciali-zação, a partir da análise de dados estatísticos contidos no Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça, trazendo à luz algumas soluções plausíveis no ordenamento jurídico brasileiro, no sentido de impulsionar a cultura da pacificação.

No quarto capítulo, é abordada a “Normatização tecnológica do judiciário: análise das medidas adotadas para garantir o acesso à justiça durante a Pandemia da Covid-19”, nesse contexto Maria da Glória Teles Farias, Dr. Lucas Gonçalves da Silva e Camila Cardoso Takano, apresentam uma análise das normas editadas para adequa-ção da atividade judiciária com a utilização dos recursos tecnológi-cos para o fortalecimento do acesso à justiça, com disposição das medidas adotadas pelo Poder Judiciário, em especial pelo Conselho Nacional de Justiça, para a rápida adequação ao isolamento social instalado pela pandemia da covid-19.

Por sua vez, o quinto capítulo denominado “Intimação por meio eletrônico: uma ponderação entre a legalidade estrita das comunica-ções dos atos processuais e o princípio da autorregulação da vontade no processo”, elaborado por Junior Gonçalves Lima e pelo Dr. Ubiraja-ra Coelho Neto, procura sopesar a relação entre legalidade estrita das comunicações dos atos processuais e o princípio da autorregulação da vontade no processo, de tal forma que a ideia central consiste em demonstrar ter havido, aprioristicamente, uma preferência do Novo CPC pela autonomia da vontade das partes expressa nos negócios processuais por elas firmados e homologados pelo juiz.

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Consecutivamente, o sexto capítulo, enunciado como “A pro-dução antecipada de provas: por uma litigância responsável e estra-tégica”, redigido por Daniel Ighor Leite Mota e Amanda Inês Morais Sampaio, busca analisar a nova perspectiva acerca do direito à pro-va, abordando as modificações estruturais mais relevantes trazidas pelo estatuto processual vigente, além de defender a antecipação da prova como instrumento para uma litigância responsável e uma advocacia estratégica.

A seguir o sétimo capítulo, dispõe sobre a “Competência judi-cial para processar e julgar causas referentes ao Imposto sobre o Valor Agregado”. Neste Yuri Matheus Araújo Matos e a Dra. Luciana de Aboim Machado, propõem técnicas para estruturar, simplificar e garantir a celeridade e a efetividade do processo judicial sobre a tri-butação do consumo. Além disso, criam diretrizes para a coordena-ção entre os entes federativos no âmbito regulatório e fiscalizatório, mediante a relação entre a estrutura judicial tributária brasileira e a prática atual da Europa, Moçambique, Cabo Verde, Argentina, Uru-guai e Paraguai.

No oitavo capítulo, é fomentada uma discussão jurídica no to-cante ao “Devido processo legal substancial, proporcionalidade e abuso de poder em tempos de pandemia”, formulado por Nilzir Soa-res Vieira Junior e Henrique Ribeiro Cardoso, que almejam identifi-car, no contexto da pandemia da COVID-19, possíveis situações de abuso de poder, à luz do devido processo legal substancial e de seu corolário, o postulado da proporcionalidade.

Sucessivamente, o nono capítulo, versa sobre a “A constitucio-nalidade da medida de afastamento do lar pelo delegado de polí-cia”, cujos coautores Carlos Alberto Menezes, Samyle Regina Matos Oliveira e Antônio Wellington Brito Júnior, defendem a constitucio-nalidade do artigo 12-C, II, da Lei nº 11.340/2006, dispositivo que autoriza o delegado de polícia a determinar o afastamento do lar

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daquele que pratica delito em cenário de violência doméstica e fa-miliar contra a mulher.

O décimo capítulo, explana “A liberdade de expressão e infor-mação na Corte Interamericana de Direitos Humanos como garan-tia de consolidação da sociedade democrática”, onde as coautoras Maria Tereza Targino Hora e Dra. Clara Angélica Gonçalves Caval-canti Dias, analisam a posição preferencial do direito à liberdade de informação e expressão quando em confronto com outros direitos fundamentais, nos casos em que a informação divulgada esteja re-lacionada com assuntos de interesse público no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Por fim, cabe aludir ao décimo primeiro capítulo, denominado “O jus cogens interpretado como juiz natural do Tribunal Penal Interna-cional”, em que os coautores Adenilton de Souza Paixão e Henrique Ribeiro Cardoso propiciam uma compreensão sobre a norma do jus cogens interpretada como sendo o princípio do juiz natural interna-cional, acatada como norma imperativa do direito internacional.

Aracaju/SE, 08 de novembro de 2020.

Flávia Moreira Guimarães PessoaJacqueline Taís Menezes Paez Cury Yuri Matheus Araújo MatosAdenilton de Souza Paixão

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SUMÁRIO

MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA .... 11Silvia Helena Paráboli Martins MalufFlávia Moreira Guimarães Pessoa

ACESSO À JUSTIÇA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DESAFIOS À CONCRETIZAÇÃO

DE DIREITOS .................................................................................................................................... 29Kelly Helena Santos CaldasMíriam Coutinho de Faria Alves

ACESSO À JUSTIÇA: SOLUÇÕES PARA AMENIZAR A CRISE NUMÉRICA DOS PROCESSOS NA ERA DA CULTURA DEMANDISTA ................................................................ 51Jacqueline Taís Menezes Paez Cury

NORMATIZAÇÃO TECNOLÓGICA DO JUDICIÁRIO: ANÁLISE DAS MEDIDAS ADOTADAS PARA GARANTIR O ACESSO À JUSTIÇA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19 ........... 69Maria da Glória Teles FariasLucas Gonçalves da SilvaCamila Cardoso Takano

INTIMAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO: UMA PONDERAÇÃO ENTRE A LEGALIDADE ESTRITA DAS COMUNICAÇÕES DOS ATOS PROCESSUAIS E O PRINCÍPIO DA AUTORREGULAÇÃO DA VONTADE NO PROCESSO .............................................................. 89Junior Gonçalves LimaUbirajara Coelho Neto

A PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS: POR UMA LITIGÂNCIA RESPONSÁVEL E ESTRATÉGICA .................................................................................................................................. 109Daniel Ighor Leite MotaAmanda Inês Morais Sampaio

COMPETÊNCIA JUDICIAL PARA PROCESSAR E JULGAR CAUSAS REFERENTES AO IMPOSTO SOBRE O VALOR AGREGADO .................................................................................. 135Luciana de Aboim MachadoYuri Matheus Araujo Matos

DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL, PROPORCIONALIDADE E ABUSO DE PODER EM TEMPOS DE PANDEMIA .......................................................................................... 151Nilzir Soares Vieira JuniorHenrique Ribeiro Cardoso

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A CONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA DE AFASTAMENTO DO LAR PELO DELEGADO DE POLÍCIA................................................................................................................ 171Carlos Alberto MenezesSamyle Regina Matos OliveiraAntônio Wellington Brito JúniorA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS COMO GARANTIA DE CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA ................................................................................................................................ 185Maria Tereza Targino HoraClara Angélica Gonçalves Cavalcanti Dias

O JUS COGENS INTERPRETADO COMO JUIZ NATURAL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL ............................................................................................................................ 203Adenilton de Souza PaixãoHenrique Ribeiro Cardoso

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MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA

Silvia Helena Paráboli Martins Maluf*1Flávia Moreira Guimarães Pessoa**2

ResumoA partir do momento em que o Estado assumiu o monopólio jurisdicional, deve garantir a todos o acesso à justiça, ou seja, deverá possibilitar a todos condições de propor uma demanda, mesmo que não tenham condições fi-nanceiras de arcar com os custos desta, impedindo, pois, que o acesso ao Judiciário seja exclusividade de uma minoria abastada. É certo que o acesso à justiça envolve outras questões, como tempo razoável do processo e de-cisão justa, e não somente o acesso ao Poder Judiciário em si, mas este será o enfoque do nosso estudo. A acessibilidade à justiça é direito de todos os cidadãos e essencial para um Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Acesso à Justiça. Proibição de não Retrocesso. Honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho.

1 Juíza do Trabalho (TRT20ª Região). Mestranda em Direito Constitucional. Especialista em Direito Administrativo; Direito Tributário e Direito do Trabalho e Processual do Trabalho.2 Conselheira do Conselho Nacional de Justiça. Juíza do Trabalho (TRT 20ª Região), Pro-fessora do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Tiradentes. Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA. Pos Doutora em Direito do Trabalho pela UFBA. Acadêmica da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e da Aca-demia Sergipana de Letras Jurídicas.

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MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA

Abstract: From the moment the State has taken a judicial monopoly, it must guarantee everyone access to justice, that is, it should enable everyone to be able to pro-pose a claim, even if they are unable to afford the costs of the claim, thus pre-venting access to the judiciary from being exclusive to a wealthy minority. It is true that access to justice involves other issues, such as reasonable time of process and fair decision, and not only access to the judiciary itself, but this will be the focus of our study. Accessibility to justice is the right of all citizens and essential for a democratic rule of law. These are fundamental rights, provided for in the Federal Constitution of 1988, both due process and access to justice. Moreover, the first is that the other procedural principles laid down in the Mag-na Carta are implemented.Keywords: Access to justice. Prohibition of not Rewind. Succumbing fees in the Labor Justice

INTRODUÇÃO

Diante das controvérsias que surgiram acerca do disposto no artigo 791 da CLT, que instituiu na Justiça do Trabalho os honorários de sucumbência, notadamente para os beneficiários da gratuida-de da justiça, algumas interpretações possíveis foram apresentadas pelos doutrinadores e pela própria jurisprudência, para que fosse atendido o princípio de acesso à justiça, princípio este que constitui um direito fundamental, consagrado na Constituição de 1988.

O presente trabalho tem por escopo apresentar tais propostas interpretativas da lei, o que não consiste em rejeição da norma, mas interpretação desta segunda a Constituição.

Assim, dividimos o trabalho em cinco tópicos. Nos dois primei-ros cuidaremos do conceito e evolução do acesso à justiça. No ter-ceiro tópico serão identificados os obstáculos e apresentadas so-luções que buscam a melhoria para o acesso à justiça. No quarto tópico, discorreremos acerca do princípio da proibição ao retroces-

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Silvia Helena Paráboli Martins Maluf; Flávia Moreira Guimarães Pessoa

so e, por fim, serão apresentadas as interpretações possíveis acerca norma legal, atendendo-se, assim, aos preceitos constitucionais.

1. DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA

Segundo Cappelletti e Garth (1988, p. 8) a expressão “acesso à Justiça” é de difícil definição e serve para determinar duas finali-dades básicas do sistema jurídico, sendo uma através da qual po-de-se reivindicar os direitos e resolver os conflitos sob à tutela do Estado e, a segunda, deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. Ainda, segundo os autores, o acesso à justiça significava o direito formal de propor e contestar uma ação, e sendo um “direito natural”, não necessitava da proteção do Estado. Com o Estado Social e, por conseguinte, com a crescente preocupação com a preservação dos direitos humanos, passou-se a perceber a necessidade da atuação positiva do Estado, tendo o acesso à justiça ganhado particular atenção.

Para Cândido Rangel Dinamarco (1996, p. 304) “o acesso à justi-ça é a síntese de todos os princípios e garantias do processo, seja a nível constitucional ou infraconstitucional, seja em sede legislativa ou doutrinária e jurisprudencial”.

O acesso à justiça, portanto, é um princípio constitucional que garante não somente o acesso ao Judiciário (garantia formal), mas, também, a um processo justo, em se que assegure tratamento iso-nômico às partes, para que se possa concretizar outros direitos, cumprindo, assim, aquilo a que o Estado se propôs, a prestação efe-tiva da tutela jurisdicional.

Imperioso mencionar, ainda, que o acesso à justiça também poderá ocorrer através de meios alternativos, como a mediação e a arbitragem, formas estas que não dizem respeito ao nosso trabalho, cujo enfoque será a via pública, já que ao Estado compete a tutela jurisdicional.

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2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DE ACESSO À JUSTIÇA

Na antiguidade clássica havia medidas de aplicação do acesso à

justiça, sendo que em Atenas e na Grécia nomeavam-se, anualmen-te, dez advogados para realizarem a defesa em juízo dos pobres, e na França medieval havia um sistema através do qual determinava-se o patrocínio gratuito de pessoas pobres em juízo. (PORTELA, SAN-TOS, 2015, n.p.).

Em épocas mais recentes, o direito em estudo é assegurado desde a Declaração Americana dos Direitos do Homem de 1948 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, também de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e a Conven-ção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica de 1969 (OLIVEIRA, 2018, n.p.).

De acordo com Bernardo Silva de Seixas e Roberta Kelly Silva Souza (2014, p. 11-12), no Brasil, o acesso à justiça surgiu como di-reito fundamental pela primeira vez na Constituição de 1946. Nes-se período houve um incremento dos direitos sociais. Porém, já na Constituição de 1934 foram criadas a ação popular e a assistência judiciária para aqueles de dela necessitavam, direitos estes extintos na Constituição de 1937 (ARAÚJO, 2009, n.p.).

Apesar dos retrocessos com as Constituições de 1964 e 1967, nesta última havia a previsão expressa no artigo 150, §4º, do direito ao acesso à justiça, assegurando, de igual forma, o direito à ampla defesa, ao juiz natural e à assistência judiciária gratuita aos ne-cessitados, nos moldes do disposto nos §§ 15 e 32 do mencionado dispositivo.

A Constituição Federal de 88, expressamente, elencou em seu artigo 5º, inciso XXXV, o direito à tutela jurisdicional como um dos direitos fundamentais, princípio este garantidor do acesso à justiça,

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em que todos terão direito de buscar a tutela jurisdicional preventi-va ou reparatória relativa a um direito violado.

Indo mais além, no inciso LXXIV, do mesmo artigo 5º, Cons-tituição de 1988 prevê que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Isso quer dizer que a garantia ao acesso à justiça prevista na Constituição de 1988, portanto, é ampla, abrangendo tanto a fase pré-processual quanto a fase processual, tendo a Defensoria Pública papel fundamental para a concretização do princípio em foco, incumbindo-lhe a “orientação jurídica, a promoção dos direi-tos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Cons-tituição Federal”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014).

Não poderia deixar de citar o Ministério Público que, através da Constituição Federal de 1988, no seu artigo 127, passou a ter compe-tência para defender interesses sociais (difusos e coletivos) e indivi-duais indisponíveis, a exemplo do consumidor, criança, idoso.

As mudanças ocorridas no ordenamento jurídico e novos pre-ceitos constitucionais demonstram, dessa forma, o incremento ao acesso à justiça.

3. DOS OBSTÁCULOS E SOLUÇÕES PARA A MELHORIA DO ACESSO À JUSTIÇA

Apesar de as disposições constitucionais que facilitam o acesso à justiça, muitos, ainda, são os entraves.

Segundo Boaventura de Souza Santos (1986, p.19), a partir de estudos realizados, foram constatados três tipos de obstáculos para as classes populares que as impediam de ter efetivo acesso à justiça,

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sendo um de ordem econômica, outro de ordem social e, o terceiro, de ordem cultural.

Quanto ao primeiro obstáculo, adverte que foi constatado que os custos do processo eram muito elevados em relação ao valor da causa, sendo que aquele aumentava à medida que este diminuía. Ainda, diz que estudos realizados demonstraram que a justiça civil é muita cara para os cidadãos economicamente débeis e, como eles geralmente são protagonistas das ações de menor valor econômico e sendo estas mais caras, menor é o acesso à justiça para tal seg-mento da população (SANTOS, 1986, p. 19).

Ainda, a distância da classe mais baixa da população, economi-camente falando, em relação à administração da justiça, teve como causa não só econômica, mas, também, social e cultural, pois os cidadãos de baixa renda tendem a não ter conhecimento de seus direitos ou ignorar a possibilidade de reparação jurídica dos mes-mos, além do que, tendem a procurar menos a justiça, quer pela diferença de qualidade dos serviços advocatícios quer por medo de represálias. Também contatou-se que quanto mais baixa for a classe econômica do indivíduo, menos provável que conheça advogados ou que tenha amigos que os conheçam, ou, ainda, quando e onde poderá com ele se conectar, pois é na zona urbana que estão locali-zados os escritórios de advocacia (SANTOS, 1986, p. 20-21).

Cappelletti e Garth (1988, 15-23) apontam diversos obstáculos, sendo o primeiro de cunho econômico, em razão do alto custo do processo (honorários advocatícios e outras despesas processuais), porquanto o vencido no processo arcará com os custos de ambas as partes, sendo a mais importante despesa individual a referente aos honorários advocatícios.

Outra barreira identificada por Cappelletti e Garth (1988, 15-23) é a chamada de “possibilidade das partes”, que diz respeito à desigualdade substancial entre elas, que pode ser causada pela

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diferença de recursos financeiros, pela aptidão em reconhecer um direito, ou, ainda, pelo fato de um dos litigantes ter maior contato com o sistema judiciário, por ser um litigante “habitual”, contra aquele que é um litigante “eventual”. Ainda, apontam os autores como barreira para o acesso à justiça a questão dos direitos difusos, pois nesse caso, todos os envolvidos serão vitoriosos ou não. O último obstáculo apontado refere-se ao próprio sistema jurídico, mormente para as pequenas causas e autores individuais, notadamente para os mais pobres, sendo que as vantagens ficam para os litigantes organizacionais que já são acostumados a usar o sistema judicial. Ressaltam ser tarefa difícil transformar os novos direitos sociais, decorrentes do Estado Social, em vantagens concretas para os indivíduos.

Para ambos, a efetividade perfeita em um contexto substantivo se daria através da “igualdade de armas”, embora admitam que seja uma utopia, o que importa é saber até onde os entraves ao acesso à justiça podem ser atacados.

Propõem, os autores, algumas soluções para os entraves que impedem o acesso à justiça, as quais chamam de “ondas”. A primeira seria a de assistência judiciária para os pobres, através dos serviços jurídicos. A segunda onda estaria relacionada à melhor proteção dos interesses difusos, porquanto o processo sempre foi visto apenas como litígio entre duas partes; a terceira onda renovatória diz res-peito a um novo enfoque centrado em instituições e mecanismos que tornam os direitos substantivos exequíveis. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 31-73).

No que diz respeito à assistência judiciária gratuita, esta deverá abranger tanto a fase pré-processual quanto à fase processual, já que o princípio que garante o acesso à justiça não significa apenas direito de petição, mas, sim, concretização dos direitos fundamen-tais estabelecidos na Constituição de 1988.

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MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA

A segunda onda, busca a adequação das normas processuais à proteção dos interesses difusos e coletivos, porquanto, historica-mente, os processos sempre foram destinados à tutela dos interes-ses individuais.

A terceira onda, por sua vez, diz respeito à implementação de melhoria das instituições para que se tornem exequíveis os direitos fundamentais constitucionalmente previstos.

Tais proposições são no sentido de concretizar o princípio de acesso à justiça e efetividade do processo, garantido ao que dele se utilizar, que o seu direito seja satisfeito integralmente.

4. DO PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO

Apesar de não estar implícito na Constituição de 1988, o princí-pio do não retrocesso é aceito pela doutrina e jurisprudência, tendo como significado jurídico a perda de direitos anteriormente con-quistados. Em outras palavras, o retrocesso não pode ser utilizado em uma perspectiva negativa com o fito de suprimir ou restringir direitos fundamentais. Tal princípio é dirigido tanto ao legislador quanto ao intérprete do direito, ou seja, ao Poder Público na sua acepção ampla.

A inaplicabilidade do princípio consistirá em violação à Constitui-ção, e “qualquer medida restritiva deverá preservar o núcleo (ou conte-údo essencial) do direito fundamental afetado” (SARLET, 2009, p. 139).

Ademais, os princípios da segurança jurídica e dignidade da pessoa humana estão intimamente relacionados com o princípio do não retrocesso, sendo que, em uma constituição que disponha so-bre direitos sociais, a própria segurança jurídica não pode se referir apenas à irretroatividade e direitos adquiridos, mas deve ser aplica-da com o fito de promover direitos fundamentais, incluindo nesse conceito os direitos sociais (SARLET, 2009, p. 127).

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Silvia Helena Paráboli Martins Maluf; Flávia Moreira Guimarães Pessoa

Os direitos trabalhistas estão incluídos nos chamados direitos sociais, deste modo, “não pode um instrumento legislativo, infra-constitucional, ceifar dos cidadãos aquilo que conquistaram ao lon-go dos séculos” (NASIHGIL, DUARTE, 2015, p. 216). Ainda,

Sendo os direitos sociais direitos fundamentais, estes devem ser interpretados observando-se o princípio do não retrocesso. Do mesmo modo deverá ocorrer com as normas infraconstitucionais, primeiramente, porque estas devem ser interpretadas segundo as disposições constitucionais; segundo, em razão do princípio da proibição do retrocesso, o qual busca a segurança jurídica na pre-servação dos direitos fundamentais e, por conseguinte, na manu-tenção dos direitos sociais.

5. DOS OBSTÁCULOS AO ACESSO À JUSTIÇA DO TRABA-LHO COM A MUDANÇAS NAS LEIS TRABALHISTAS E SOLU-ÇÕES INTERPRETATIVAS POSSÍVEIS

A reforma trabalhista perpetrada pela Lei 13.467/2017, na con-tramão do ordenamento jurídico, dificultou o acesso à justiça, ao tornar o processo trabalhista dispendioso, notadamente para o trabalhador, que é, geralmente, a parte mais fraca, economica-mente falando, tanto na relação de direito material quanto de di-reito processual.

Ao olharmos as estatísticas da Justiça do Trabalho, é visível a di-minuição das ações ajuizadas após a vigência da lei. De acordo Co-ordenadoria de Estatística do TST, entre janeiro e setembro de 2017, as Varas do Trabalho receberam 2.013.241 reclamações trabalhistas. No mesmo período de 2018, o número caiu para 1.287.208 reclama-ções trabalhistas1. Através de dados extraídos da Folha de São Paulo

1 Primeiro ano da Reforma trabalhista. http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_pub-lisher/89Dk/content/id/24724445. Acessado em 07 de dezembro de 2020

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MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA

“Em abril, foram apresentados 108,4 mil processos no país, queda de 35% sobre abril de 2019 (166,1 mil) e de 26% ante março deste ano”2.

Várias alterações foram feitas na CLT, sendo que das mais po-lêmicas foi quanto aos honorários de sucumbenciais, conforme o disposto nos artigos 791-A, da CLT.

Apesar de ser um anseio dos advogados, esse dispositivo legal prevê a condenação em honorários de sucumbência mesmo em caso de a parte ser beneficiária da gratuidade da justiça. A exceção ocorre somente no caso de o vencido não ter obtido qualquer cré-dito, mesmo que em outro processo.

O parágrafo terceiro do mesmo dispositivo legal prevê que na hipótese de procedência parcial o juízo arbitrará os honorários de sucumbência recíproca, vedada a compensação entre honorários.

O artigo legal recebeu muitas críticas, pois entendem os doutri-nadores ter sido o mesmo um retrocesso, pois na maioria das vezes o empregado (litigante) sequer tem condições de pagar seu próprio advogado, quanto mais o advogado da parte contrária.

A justiça, como sendo uma das atividades essenciais do Estado deve estar ao alcance de todos. Assim, “não basta prescrever o direi-to, é preciso que se viabilize o direito a ter direitos, que nada mais é que desobstruir o caminho que leva à Justiça” (OLIVEIRA, 2015, n.p.).

Para Sandra Mara de Oliveira Dias (2019, p. 55), os artigos 791-A e 790-B, ambos da CLT, conflitam com o artigo 5º, incisos XXXV e LXXIV, da Constituição Federal. Ressalta que o artigo 60, também da Carta Magna, prevê em seu artigo 4º, que não serão objeto de deliberação propostas que tendem a abolir as cláusulas pétreas, es-tando entre elas os direitos e garantias individuais.

2 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/acoes-trabalhistas-caem-35-na--contramao-as-ligadas-a-virus-disparam.shtml. Acessado em 07 de julho de 2020

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Silvia Helena Paráboli Martins Maluf; Flávia Moreira Guimarães Pessoa

O desafio – quiçá intransponível – é dar uma leitura consti-

tucionalmente conforme a essa regra, diante da garantia de

que ‘o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita

aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF, art. 5º,

LXXIV)” (MALLET, HIGA, 2017, p.84).

Assim, para que se dê efetividade ao princípio do acesso à jus-tiça, inclusive para que se tornem concretos outros direitos fun-damentais porventura violados, dos quais são espécies os direitos sociais e, ainda, para que se garanta a dignidade do trabalhador, im-pedindo que lhe seja imposta uma dívida que não teria como pagar, mormente para aqueles que são beneficiários da justiça gratuita, têm sido elaboradas algumas propostas para interpretação à nova verba legal, segundo à Constituição Federal.

A solução dada por Marcelo Wanderley Guimarães (2018, p. 95-96) não se trata de simples suspensão da execução de condena-ção dos honorários de sucumbência, pois tal hipótese não atende-ria nem ao reclamante, que passaria a figurar como devedor, nem ao patrono do empregador, que nada receberia. Para ele, caberia a aplicação de um juízo de equidade, mediante criteriosa avaliação da capacidade econômica do trabalhador, com a possibilidade de arbi-tramento dos honorários em valores módicos ou quantia reduzida.

Jorge Luiz Souto Maior e Valdete Severo (2017, p. 81) em caso de sucumbência recíproca, propõem, primeiramente, a compensação com aqueles fixados em contrato, caso se entenda pela impossibilida-de de cumulação, bem como a condenação em 5% para o trabalhador e em 15% para a empresa, em razão da diferente capacidade econô-mica entre os mesmos. Além disso, entendem que se um pedido, a exemplo do dano moral, for deferido em valor inferior ao vindicado, não haverá sucumbência parcial, da qual advém a sucumbência recí-proca, justamente porque o pleito fora julgado procedente.

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MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA

O entendimento dos autores acima citados encontra lastro, tal como por eles citado, tanto na súmula n 326 do STJ que diz: “Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca”, como também no artigo 86 do CPC de 2015, que reza que: “Se um litigante sucumbir em parte mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas despesas e pelos honorários”.

Nesse sentido foi a decisão prolatada nos autos do processo tombado sob o n. 0000074-06.2018.5.13.0012, cujo relator foi o Des. Leonardo Trajano, em que foi feita a distinção entre sucumbência recíproca e sucumbência parcial. Consta do voto que

a Lei 13.467/2017 não fixou nenhum dispositivo contemplan-

do a possibilidade do pagamento de honorários sucumben-

ciais parciais. Na verdade, o parágrafo 3º do artigo 791-A da

CLT, de forma expressa, limita-se, unicamente, a contemplar

a hipótese de honorários sucumbenciais recíprocos3.

Esse, inclusive, é o posicionamento de Estevão Mallet e Flávio Higa (2017, p. 83), para os quais não faz sentido falar-se em “sucum-bência recíproca” quando a quase totalidade dos pedidos foram jul-gados procedentes e somente parte de um deles não foram, a exem-plo do reflexo de horas extras no RSR, porquanto não alteraria a sucumbência do réu, a quem deve ser atribuído, integralmente, o pagamento dos honorários de sucumbência.

Complementam, ainda, os autores afirmando que: O instituto da sucumbência recíproca – capitular e intracapitular –, sem compen-sação, constitui ferramenta poderosa no afã de aplacar a veiculação

3 https://trt-13.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/639449056/recurso-ordinario -em--procedimento-sumarissimo-ro-740620185130012-0000074-0620185130012/inteiro--teor-639449089. Acessado em 07 de julho de 2020

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Silvia Helena Paráboli Martins Maluf; Flávia Moreira Guimarães Pessoa

de pretensões descabidas, mas convém utilizá-la de modo escrupu-loso, colmatando lacunas que o texto do parágrafo em questão não tratou com denodo (MALLET, HIGA, 2017 p.83).

Fabrício Lima Silva (2019, n.p.) propõe, na hipótese de o tra-balhador não possuir créditos em outros processos, solução seme-lhante ao disposto no artigo 98, §3º, do CPC de 2015, ou seja, a exi-gibilidade do crédito ficaria suspensa, todavia, por um período de 2 anos, conforme o previsto na CLT. Por outro lado, caso o trabalha-dor possua crédito a receber, mesmo que seja em outro processo, para que seja preservada a constitucionalidade do disposto na Lei 13.467/2017 e, em respeito ao princípio que garante o benefício de assistência jurídica integral gratuita àqueles que comprovarem a in-suficiência de recurso, conforme previsto na Constituição Federal, propõe, utilizando critérios de proporcionalidade e razoabilidade, que a compensação entre o crédito trabalhista e os ônus da sucum-bência somente ocorra se o saldo remanescente for significativo para alterar a situação financeira do demandante, a ponto de reti-rar-lhe a condição de pobreza, ainda que presumidamente.

Como parâmetro, propõe que seja de 50 salários-mínimos, con-forme previsto no artigo 833, inciso IV, §2º do CPC de 2015, que são impenhoráveis, mesmo no que diz respeito a créditos de natureza alimentar, nos termos do disposto na OJ 153, da SBDI-II, do TST.

O TST através da 3ª Turma, por unanimidade, no processo tombado sob o nº TST-AIRR-2054-06.2017.6.11.0003, reconheceu ser constitucional o dispositivo que instituiu os honorários de su-cumbência na Justiça do Trabalho, destacando que a imposição do pagamento ao reclamante foi para desestimular lides temerárias, não, violando, por conseguinte, nenhum princípio constitucional e que, no caso, não caberia qualquer ação contramajoritária. O relator Alberto Bresciani destacou, ainda, que a imposição do pagamen-to de honorários sucumbenciais a beneficiários da Justiça gratuita

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“requer ponderação quanto à possibilidade de ser ou não tendente a suprimir o direito fundamental de acesso ao Judiciário daquele que demonstrou ser pobre na forma da Lei”, e que, a despeito do disposto no artigo 791-A, § 4º, da CLT, demonstrou, o legislador tal preocupação, “uma vez que só será exigido do beneficiário da Jus-tiça gratuita o pagamento de honorários advocatícios se ele obtiver créditos suficientes, neste ou em outro processo, para retirá-lo da condição de miserabilidade. Caso contrário, penderá, por dois anos, condição suspensiva de exigibilidade”4.

Salvo melhor juízo, para que seja atendido o preceito constitu-cional que garante o acesso à justiça, notadamente quando se tra-tar de beneficiário da justiça, diante das propostas apresentadas, entendemos que, no Processo Trabalhista, somente serão exigíveis os honorários de sucumbência quando o trabalhador obtiver cré-dito suficiente para arcar com os custos de tal despesa processual.

Deverá ser entendido como “crédito suficiente” valor tal que não comprometa a subsistência do trabalhador ou de sua família. Assim, mesmo que o trabalhador tenha obtido algum crédito por meio de ação trabalhista, ainda que seja superior ao valor dos honorários de sucumbência a que foi condenado, a condição de exigibilidade des-te ficará suspensa caso os valores que porventura sobejarem, pela dedução, não sejam suficientes para retirar-lhe a condição de mise-rabilidade, ou seja, que implique em valor de pequena monta, o que anularia a parte procedente da demanda.

Ainda, entendemos que, mesmo que um pleito seja deferido ao trabalhador em valor inferior ao vindicado, ele não terá que pagar os honorários de sucumbência sobre o valor que excedeu a condena-ção, porquanto, tal situação não importará em sucumbência, pois o pedido foi-lhe deferido e não modificará a condição de sucumbente do empregador.

4 https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/7/art20190716-06.pdf

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Assim, com os olhos voltados para o princípio da proibição do retrocesso, podemos, utilizando-se da hermenêutica, através dos postulados da ponderação e razoabilidade, obter interpretações justas com o fim de dar efetividade ao acesso à justiça, garantindo, ainda, ao trabalhador outros direitos fundamentais advindos das re-lações de trabalho.

CONCLUSÃO

O acesso à justiça não significa apenas ter acesso ao Judiciá-rio. Tal expressão tem que ser vista em uma concepção mais ampla, abrangendo, também, um processo justo, para que sejam concre-tizados os valores e princípios contidos no ordenamento jurídico.

Muito embora a preocupação com o acesso à justiça seja antiga, entendia-se satisfeita a garantia apenas com o direito de petição.

Esse princípio, no entanto, foi evoluindo e, no Brasil, a Cons-tituição Federal elencou, no seu artigo 5º, inciso XXXV, o direito a tutela jurisdicional como um direito fundamental.

Complementando, o inciso LXXIV, também do artigo 5º da Constituição de 1988, prevê que o Estado deverá prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

Fora criada Defensoria Pública e fortalecido o Ministério Público.A legislação brasileira também implementou várias medidas que

ampliaram o acesso à justiça; contudo, através da Lei 13.467/2017, que alterou diversos artigos da CLT, na contramão, instituiu a obri-gatoriedade do pagamento dos honorários de sucumbência, inclu-sive para os beneficiários da gratuidade da justiça, dificultando o acesso à justiça ao trabalhador.

Muitos doutrinadores, para tornar efetivo o princípio que ga-rante o acesso à justiça e, ainda, com base no princípio que veda o

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retrocesso, aprestaram diversas propostas interpretativas do artigo 791 da CLT. A jurisprudência não foi em outro sentido.

Assim, com base nas propostas apresentadas, utilizando-se da hermenêutica, entendemos que, no Processo do Trabalho somente deverão ser exigidos os honorários de sucumbência do trabalhador, em caso de sucumbência recíproca, quando, após a dedução do va-lor dos honorários do seu crédito, sobejam ainda valores suficien-tes para retirar-lhe a condição de miserabilidade. Se a quantia que sobrar for de pequena monta, a cobrança ficará suspensa, e terá o causídico dois anos para comprovar que o trabalhador perdeu a condição de miserabilidade.

Por fim, entendemos que o deferimento de um pedido em valor inferior ao pleiteado não implicará em sucumbência recíproca, por-quanto não modificará a condição de sucumbente do empregador.

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MUDANÇAS NA CLT OCORRIDAS COM A LEI 13.467/2017 E O ACESSO À JUSTIÇA

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ACESSO À JUSTIÇA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DESAFIOS À CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS

Kelly Helena SantoS CaldaS*1

MíriaM CoutinHo de Faria alveS**2

ResumoAcesso à Justiça não é apenas um direito fundamental constitucional, mas um princípio essencial para a realização de outros direitos também fun-damentais e humanos. O presente trabalho, por meio de método hipoté-tico-dedutivo e de pesquisa bibliográfica e qualitativa, tem por objetivo diagnosticar os obstáculos e as possíveis soluções ao acesso à justiça das pessoas com deficiência no Brasil. Observar-se-á os percursos normativos de efetivação dos direitos humanos e fundamentais destinados a este grupo tão vulnerável, inclusive, no próprio sistema judicial. Apesar da existência de documentos de proteção internacional e interna, as pessoas com defici-ência permanecem sem o devido respeito e reconhecimento sociojurídico, excluídos da cidadania plena e democrática. Palavras-chave: pessoas com deficiência. Acesso à justiça. Direitos huma-nos. Direitos fundamentais.

* Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (PRODIR-UFS). Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade São Luís de França (FSLF/SE). Advogada. Sergipe, Aracaju, Brasil. E-mail: [email protected]. ** Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Professora Adjunta do Depar-tamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Sergipe, Aracaju, Brasil. E-mail: [email protected].

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ACESSO À JUSTIÇA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

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AbstractThe access to justice is not only a fundamental constitutional right but an essential principle to realize other rights that are also fundamental and human. Through bibliographic and qualitative research, the present work aims to diagnose the obstacles and possible solutions to access to justice for people with disabilities in Brazil. We will observe the normative paths for the realization of human and fundamental rights for this very vulnera-ble group, including in the judicial system itself. Despite the existence of international and internal protection documents, people with disabilities remain without due respect and socio-legal recognition, excluded from full and democratic citizenship.Keywords: people with disabilities. Access to justice. Human rights. Fun-damental rights.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo problematizar o direi-to fundamental e constitucional de acesso à justiça e os obstáculos concretos enfrentados pelas pessoas com deficiência, tanto no âm-bito social quanto na esfera jurídica. Sem humanização democrática dos espaços de poder, o exercício da dignidade, da cidadania eman-cipatória, da autonomia, da participação popular e da acessibilida-de são negados aos sujeitos com deficiência. Para a superação dos preconceitos e discriminações existentes, a concretização estatal material dos atos normativos nacionais e internacionais de direitos fundamentais e humanos mostra-se como um caminho possível de concretização.

1. DO DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA

Acesso à justiça não é um tema de fácil conceituação, muito menos um tema estudado unicamente pela ciência jurídica, ao con-

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Kelly Helena Santos Caldas; Míriam Coutinho de Faria Alves

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trário, trata-se de um objeto de estudo complexo, dinâmico e extre-mamente importante para a efetividade do sistema de justiça, para a acessibilidade de todos os cidadãos aos meios de resolução de conflitos, para a democratização cada vez maior dos sujeitos pro-cessuais e para a condução social, inclusiva e humanista dos litígios. O poder Judiciário não pode ser visto como uma engrenagem ob-jetiva de números e metas, mas sim, antes de qualquer coisa, um espaço de justiça e equidade, um espaço de encontro e de histórias, um espaço de pluralidade e alteridade.

Os resquícios do colonialismo brasileiro não se apagaram com o tempo, o tratamento diferenciado às elites e discriminado aos pobres, aos negros, às mulheres, aos religiosos de matriz africana e às pessoas com deficiência, dentre outros marcadores de opres-são, são visíveis e ainda enraizados no sistema de justiça. “Assim, a expressão ‘acesso à justiça’ deve ser compreendida em um con-texto histórico e social, envolta por elementos ideológicos de do-minação, de interesses de classes, de preservação de privilégios.” (SILVA, 2013, p. 481).

O percurso jushistórico comprovou que o acesso à justiça não se refere apenas a procedimentos lógicos e distanciados da realida-de, mas de experiências de vida, acessibilidade material de direitos sociais, ação ativa e concreta com o objetivo de reduzir e, até mes-mo, eliminar as distâncias que afastam o sistema de justiça da popu-lação oprimida e invisibilizada. É preciso enfrentar a desigualdade social e compreender as demandas dos grupos vulneráveis se quiser pensar com seriedade e criticidade o acesso à justiça. Tal acesso passa a ser visto como direito fundamental e deve “ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende ga-rantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12).

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Amorim (2011, p. 181), em Acesso à Justiça enquanto direito fun-damental: efetivação pela defensoria pública, defende que o acesso à justiça é um princípio base do Estado Democrático de Direito que dialoga diretamente com a isonomia, a dignidade da pessoa humana e com a igualdade material. “A igualdade também é garantida com o tratamento desigual dos indivíduos, tentando equilibrar uma ba-lança que já em seu nascedouro fora concebida pendendo mais para um lado”.

Da leitura da Constituição Brasileira não resta nenhum dúvida de que o acesso à justiça possui status de direito fundamental. O artigo 5º, inciso XXXV, estatui que: “a lei não excluirá da apreciação do po-der judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988). Grynszpan (1999, p. 102) destaca que garantir o acesso à justiça vai muito além da ampliação meramente física e espacial do sistema de justiça:

Acreditar, porém, que a simples abertura institucional, a am-

pliação, por si só, da oferta de serviços judiciários, será sufi-

ciente para gerar um aumento correspondente da procura,

uma pronta reação positiva da população, em todos os seus

setores, é tomar como dada a legitimidade da justiça, natura-

lizando o que, de fato, é efeito de processos históricos, sociais,

de imposição, de produção. Deixa-se de perceber ainda, por

essa via, que não são homogêneos na população, em absoluto,

os dispositivos sociais de reconhecimento e de apropriação

dos direitos e dos mecanismos disponíveis para garanti-los,

bem como dos recursos de oficialização, de expressão jurídi-

ca de suas demandas.

A partir da compreensão inicial do acesso à justiça e seus obs-táculos materiais para efetivar a igualdade social, e diante da insu-ficiência de políticas públicas de reparação histórica aos perversa-

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mente oprimidos, observar-se-á, nas linhas seguintes, o apagamento e o protagonismo das pessoas com deficiência nos documentos de proteção de direitos humanos e fundamentais.

2. PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: REFLEXÃO HISTÓRICA E PRO-TEÇÕES NORMATIVAS INTERNANCIONAIS E NACIONAIS

Dentre os grupos vulneráveis que demandam uma atuação es-tatal específica para a concretização dos seus direitos e para o exer-cício democrático e pleno da cidadania, em igualdade de condições, estão as pessoas com deficiência. A exclusão, o silenciamento, a ne-gação social, os estereótipos limitantes e a restrição da vida ao mero ambiente privado foram e ainda são características que demarcam a segregação e a inferiorização destes sujeitos sociais.

Laraia (2009, p. 22), em A pessoa com deficiência e o direito ao trabalho, avalia que a indiferença discriminatória dada às pessoas com deficiência está intrinsecamente ligada à própria história da humanidade. Na antiguidade, em várias civilizações, destacou-se a exclusão supersticiosa das pessoas com deficiência por relacionar--se a deficiência com os maus espíritos, destacando-se inclusive o extermínio de crianças recém-nascidas que apresentavam alguma deficiência física. Na Idade Média, a pessoa com deficiência era vista como a prova viva da existência demoníaca na terra, um peso a ser suportado pela sociedade. Enquanto isso, na Segunda Guerra Mun-dial houve a desumanização radical e a animalização das pessoas com deficiência:

Documentos apresentados durante o Julgamento de Nu-

remberg indicam que, no período em que esteve no poder,

Adolf Hitler determinou a eliminação de pessoas com defici-

ência física e mental, por entender que seriam grupos

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minoritários considerados indesejados, tendo inclusive conferido aos médicos e parteiras o poder de indicar crianças com má-formação, que poderiam ser conde-nadas à morte. Os documentos reunidos indicam ainda que, enquanto a maior parte das vítimas foi submetida ao extermínio através do genocídio nos campos de concen-tração, outros foram usados em experimentos médicos.

Após a devastação humana sem precedentes, causada pelo re-gime nazista, o fim do holocausto deu início a um processo de de-clarações internacionais de direitos humanos, com o intuito eviden-te de impedir novas exclusões arbitrárias de direitos. A Constituição Federal Brasileira, por meio de um sistema misto, “prevê o princípio da não exaustividade dos direitos fundamentais, também deno-minado abertura da Constituição aos direitos humanos”. (RAMOS, 2014, p. 58). Às vezes na forma de norma constitucional, às vezes na forma de norma infraconstitucional, muitos tratados internacionais de direitos humanos integram o sistema normativo nacional.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas, 1948) não trata de modo específico sobre as pes-soas com deficiência, mas, mesmo que universalista e eurocêntrica, apresenta a liberdade, a igualdade e a dignidade humana como prin-cípios morais indispensáveis e fundamentais, contrários a qualquer tipo de distinção ou discriminação entre os cidadãos. A proteção especializada das pessoas com deficiência se deu com a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (ONU, 1971), a Declaração dos Di-reitos das Pessoas Portadoras de Deficiência (ONU, 1975), a Declara-ção de Salamanca (ONU, 1994) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com deficiência (ONU, 2006).

“Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer dis-tinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção

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contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.” (Assembleia Geral da ONU, 1948). O artigo VII da Declaração Universal dos Direitos Hu-manos, acima transcrito, já evidenciava o combate aos tratamentos discriminatórios aos grupos vulneráveis, mesmo que de forma não particularizada. O primeiro instrumento internacional específico foi a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (Assembleia Geral da ONU, 1971), com foco nas pessoas com deficiência intelectual.

“mesmos direitos para todos”, “cuidados médicos e tratamentos físicos apropriados”, “desenvolver ao máximo as suas capacidades e aptidões”, “participar em diversos tipos de vida comunitária” e “pro-teção tutelar especializada” são os principais pontos abordados no documento em análise. Apesar de tratar sobre pessoas com defi-ciência mental, o documento destaca “a necessidade de proteger os direitos dos deficientes físicos e mentais, e de assegurar o seu bem-estar e readaptação”. (Assembleia Geral da ONU, de 1971).

Em 1975, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, contemplando tan-to as pessoas com doenças mentais quanto as pessoas com doenças físicas. Logo no art. 1º da Declaração é apresentada a conceituação terminológica das “pessoas deficientes”: “qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou men-tais”. Além de garantir a vida plena e digna dos deficientes, o docu-mento se destaca por prezar pelo exercício efetivo dos seus direitos civis e políticos. Dentre outras garantias estão o direito à assistência médica e legal, à segurança, ao emprego e à participação social e comunitária.

Em 1994, a Declaração de Salamanca foi aprovada pela Assem-bleia Geral da ONU. Trata-se de documento elaborado na Confe-

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rência Mundial sobre Educação Especial, com o objetivo de pautar os encaminhamentos educacionais básicos, os princípios e as políti-cas para garantir e promover a inclusão social das pessoas com de-ficiência. O documento prevê que “aqueles com necessidades edu-cacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades” (Assembleia Geral da ONU, 1994). Ainda estimula-se a orientação inclusiva nas escolas regulares, pois estas “constituem os meios mais eficazes de combater atitudes dis-criminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos”. (As-sembleia Geral da ONU, 1994).

Aprimorar os sistemas educacionais, materializar a educação inclusiva, treinar os professores para a integração qualificada e construir uma ação prática em educação especial são as bases da construção digna da vida das pessoas com deficiência.

O princípio que orienta esta Estrutura é o de que escolas

deveriam acomodar todas as crianças independentemente

de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais,

linguísticas ou outras. Aquelas deveriam incluir crianças de-

ficientes e superdotadas, crianças de rua e que trabalham,

crianças de origem remota ou de população nômade, crian-

ças pertencentes a minorias linguísticas, étnicas ou culturais,

e crianças de outros grupos desavantajados ou marginaliza-

dos. (Assembleia Geral da ONU, 1994).

O documento mais recente, e não menos importante, é a Con-venção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-cia, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2006. Ratificado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 2008, tanto a Convenção

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quanto o Protocolo Facultativo foram aprovados por meio do De-creto Legislativo nº 186, nos moldes de uma emenda constitucional. Com base no bem-estar comum, na diversidade, na autonomia, na independência, na proteção e na participação política ativa das pes-soas com deficiência é que este instrumento normativo pretende enfrentar as barreiras e as violações existentes, além de promover os direitos humanos deste grupo tão vulnerável. O artigo 3º apre-senta os seguintes princípios gerais:

a) o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individu-

al, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a in-

dependência das pessoas; b) a não discriminação; c) a plena

e efetiva participação e inclusão na sociedade; d) o respeito

pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência

como parte da diversidade humana e da humanidade; e) a

igualdade de oportunidades; f) a acessibilidade; g) a igualdade

entre o homem e a mulher; h) o respeito pelo desenvolvimen-

to das capacidades das crianças com deficiência e pelo direi-

to das crianças com deficiência de preservar sua identidade.

(Assembleia Geral da ONU, 2006).

Dentre as obrigações expressas no artigo 4º da Convenção, merecem destaque a promoção de pesquisas para aprimoramento da acessibilidade, a criação de recursos disponíveis para exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais e a previsão de con-sultas públicas e ativas capazes de ouvir as pessoas com deficiên-cias e as organizações representativas quanto aos seus pleitos e demandas. Sobre a igualdade e a não discriminação, em comentá-rio à convenção, Resende (2008, p. 36) defende que é “uma garan-tia de que não serão adotados critérios, teóricos ou práticos, que afastem ou impeçam o exercício de outros direitos protegidos

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e garantidos pela lei, sendo a regra da isonomia, a viga vital es-trutural da sociedade”.

Importante registrar que a não discriminação só ocorre através da conscientização e da responsabilidade individual pela efetividade dos direitos humanos das pessoas com deficiência. “Com relação às pessoas com deficiência é preciso divulgar e ensinar a não discrimi-ná-las, a respeitá-las enquanto parte da população”. (RESENDE, 2008, p. 43). A acessibilidade é outro aspecto crucial desta Convenção, pre-vê o artigo 9º a importância da independência, da autonomia e da participação em todos os aspectos da vida da pessoa com deficiência.

A eliminação dos obstáculos e barreias à acessibilidade devem contemplar “a) edifícios, rodovias, meios de transporte e outras ins-talações, inclusive escolas, residências, instalações médicas e local de trabalho; b) Informações, comunicações e outros serviços, in-clusive serviços eletrônicos e serviços de emergência”. (Assembleia Geral da ONU, 2006). Para Vital e Queiroz (2008, p. 46):

A acessibilidade ao meio físico promove a inclusão, a equipa-

ração de oportunidades e o exercício da cidadania para todas

as pessoas. Ações que garantam a acessibilidade para pes-

soas com restrição de mobilidade aos sistemas de transpor-

tes, equipamentos urbanos e a circulação em áreas públicas

são, nada mais, que o respeito de seus direitos fundamentais

como indivíduos. Enquanto o espaço for produzido a partir

dos referenciais do chamado “homem-padrão” (possuidor

de todas as habilidades físicas, mentais e neurológicas), é

comum que a construção de rampas nas esquinas e de uma

determinada percentagem de vagas para estacionamento de

veículos adaptados às pessoas com deficiência física, sejam

considerados como “suficientes” para taxar o projeto urbano

de “projeto inclusivo”.

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Laraia (2009, p. 82), fez uma síntese dos cinquenta artigos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Defi-ciência, através da indicação dos principais direitos humanos e li-berdades fundamentais previstos:

Direitos econômicos, sociais e culturais (art. 4, 2), à igualdade e

não discriminação (art. 5), de acessibilidade (art. 9), à vida (art.

10), à igualdade (art. 12), de acesso à justiça (art. 13), à liberdade

e segurança (arts. 14 e 18), à vida e inclusão na comunidade

(art. 19), à liberdade de expressão e opinião e acesso à infor-

mação (art. 21), à privacidade (art. 22), à educação (art. 24), à

saúde (art. 25), habilitação e reabilitação (art. 26), ao trabalho

e emprego (art. 27), à participação na vida política (art. 29), à

cultura, recreação, lazer e esporte (art. 30), entre outros.

Outra contribuição deste documento internacional foi o con-ceito das pessoas com deficiência: “têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua partici-pação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições”. (Assembleia Geral da ONU, 2006). E mais, destaca no preâmbulo que este conceito é aberto e em constante evolução, devendo estar atento as novas interações e novas barreiras que possam surgir, sem esquecer a constante interação e escuta ativa com as pessoas com deficiência.

Em âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 traz dispo-sitivos importantes para as pessoas com deficiência. O legislador constitucional garantiu expressamente, direito social ao trabalho, direito à saúde, à assistência pública, à integração social a vida co-munitária, a previsão de percentual dos cargos e empregos públi-cos, à vedação de critérios diferenciados de aposentadoria, o

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atendimento educacional especializado, à acessibilidade dos bens e serviços coletivos, à adaptação de edifícios de uso público e de veículos de transporte coletivo para as pessoas portadoras de deficiência. Além disso, leis complementares e leis ordinárias fo-ram editadas com o objeto normativo de efetivar as determinações constitucionais de proteção e acessibilidade plena das pessoas com deficiência.

Merece destaque a lei nº 13.146/2015, já que se trata de nor-ma importante para instrumentalizar a inclusão prática da pessoa com deficiência na sociedade. Em seu artigo 1º, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência se compromete “a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015). Ocorre que, apesar dos princí-pios de cidadania, de dignidade da pessoa humana, de igualdade e da não discriminação estarem expressos em diversos instrumentos normativos nacionais e internacionais, a invisibilidade das pessoas com deficiência e o desrespeito pautado na ignorância e nos este-reótipos limitantes ainda dominam a estrutura social.

A razão da falta de efetividade de direitos vai muito além da

falta de cumprimento das leis pelo Estado e particulares, bem

como da disponibilidade de mecanismos de acessibilidades

ineficazes. Porquanto, decorre do desconhecimento do país

sobre a identidade de todos os seus cidadãos. (GOUVEIA,

2019, p. 121).

Não se pode deixar de mencionar as duas politicas públicas nacionais implantadas, por medidas legislativas, em benefício das pessoas com deficiência: as cotas para pessoas com deficiência no

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mercado de trabalho (Lei nº 8.213/91) e o benefício de prestação continuada às pessoas com deficiência que comprovarem não ter condições financeiras para manter-se e manter sua família (Lei nº 8742/93). Para Diniz e Barbosa (2010, p. 212):

A compreensão da deficiência como uma questão de justiça

ganhou espaço no Brasil nos últimos anos, e uma série de

direitos e políticas foram criados para atender às especifi-

cidades e demandas dessa população. Para além da agenda

política, a deficiência passou a ser reconhecida pela popula-

ção como alvo de proteção e justiça social, consolidando um

aparente consenso sobre a redução da desigualdade pela de-

ficiência como um direito humano.

Apesar dos avanços jurídicos e da compreensão social da defi-ciência como uma temática de direitos humanos, a prática ainda é permeada por negações e contradições simbólicas. A inclusão das pessoas com deficiência na agenda social do Estado, não significa que a segregação, o abandono e a invisibilidade das pessoas com deficiência deixaram de acontecer, seja no espaço comunitário, seja no espaço estatal e jurídico. As declarações universais de direitos humanos e os diplomas nacionais de direitos fundamentais são im-portantes, todavia, concretizadas sem a devida integridade, eficácia e plenitude.

3. OBSTÁCULOS AO ACESSO À JUSTIÇA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Acreditar em um sistema de justiça no qual todas as partes en-volvidas nos litígios estão em igualdade de condições é uma utopia, no entendimento de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988). Para

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aprofundar o entendimento sobre os obstáculos efetivos ao acesso à justiça, os autores enumeram três itens: custas processuais, pos-sibilidades das partes e problemas especiais dos interesses difusos. Altos custos processuais, morosidade na solução judicial, recursos financeiros escassos, diferenças de educação e status social, inte-resses fragmentados e a dificuldade de identificar os indivíduos que podem corrigir a lesão e que terão algum interesse econômico em jogo são algumas das barreiras.

Para Rodrigues (1994) uma decisão verdadeiramente justa precisa enfrentar os obstáculos reais à concretização da igualda-de material, já que a igualdade, meramente, formal acaba por ne-gar as opressões que demarcam a sociedade. Além da desigualda-de socioeconômica, muitos cidadãos desconhecem seus direitos por desinformação e ausência de orientação, já que a educação qualificada é um problema grave no Brasil.

No contexto específico das pessoas com deficiência, a exis-tência de normas inclusivas são demandas obrigatórias de um Estado que se pretende Democrático de Direito. Não há como garantir a dignidade e a igualdade de oportunidades às pessoas com deficiência sem assumir a necessidade estrutural de políti-cas públicas. Direitos Humanos e Direitos fundamentais indivi-duais e sociais precisam sair do texto normativo para dar lugar e existência aos sujeitos subalternizados e esquecidos pelo Estado, como é o caso das pessoas com deficiência, já que a palavra defi-ciência por vezes vem acompanhada de discursos excludentes e de incapacidade.

Nancy Fraser (2006) defende a existência de três reivindicações inerentes à justiça social, que são: redistribuição, reconhecimento e participação. Enquanto a redistribuição reivindica a distribuição mais justa dos recursos e das riquezas, o reconhecimento reivindica a aceitação e o respeito à diferença e a participação reivindica a

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possibilidade dialógica e discursiva de ideias e concepções diver-gentes na formação do debate público democrático. Só há como falar em efetivo acesso à justiça das pessoas com deficiência se a redistribuição, o reconhecimento e a participação pública e política aconteça na prática.

Da relação entre direitos das pessoas com deficiência e acesso à justiça é possível extrair uma coexistência. Se o acesso à justiça é o princípio constitucional que serve de alicerce para a efetivação dos demais direitos, caso os direitos das pessoas com deficiência sejam descumpridos e violados, caberá ao poder judiciário e aos órgãos essenciais à justiça a realização da decisão justa e adequada, capaz de proteger e tutelar, na prática, a dignidade e a integridade dos direitos das pessoas com deficiência.

Sobre o acesso à justiça das pessoas com deficiência, a Con-venção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência separam uma parte especial, artigo 13 e artigo 79 e seguintes, respectivamente.

1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas

com deficiência à justiça, em igualdade de condições com as

demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações

processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo pa-

pel das pessoas com deficiência como participantes diretos

ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os pro-

cedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas

preliminares.

2. A fim de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo

acesso à justiça, os Estados Partes promoverão a capacitação

apropriada daqueles que trabalham na área de administração

da justiça, inclusive a polícia e os funcionários do sistema pe-

nitenciário. (Assembleia Geral da ONU, 2006).

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Recursos de tecnologia assistida, capacitação dos membros do poder judiciário e das instituições essenciais à justiça, acessibilida-de e o acesso ao conteúdo de todos os atos processuais, a definição de curatela quando necessário e a previsão crimes e infrações ad-ministrativas quando uma pessoa com deficiência sofrer discrimi-nação nos espaços públicos são os principais aspectos tratados pela Lei nº 13.146/2015.

Sobre a atuação dos órgãos do Poder Judiciário ao tratar com pes-soas com deficiência, em 2016, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução nº 230, com o intuito de materializar o acesso à justiça deste público específico. Através de comissões permanentes de aces-sibilidade e inclusão, os órgãos do Poder Judiciário se comprometeram a oferecer estrutura física, tecnológica e humana apta a atender com igualdade, acessibilidade e inclusão toda e qualquer pessoa com defi-ciência, seja o público externo ou interno aos tribunais.

Mesmo se propondo concreta e individualizada, há autores que sustentam a fragilidade prática da Resolução nº 230, do CNJ e a fi-nalidade meramente simbólica e pouco satisfativa. Martin e Gon-çalves (2016, p. 15), em As Deficiências de Acessibilidade no Sistema de Justiça: o (des)acesso à justiça da pessoa com deficiência, fazem alguns apontamentos e questionamentos críticos:

A beleza desta resolução queda-se desencantada por sua falta

de praticidade e ausência de diálogo com os reais interessa-

dos antes de sua cominação. Pois, apesar de haver imposição

para a adequação das instalações e pessoal, entendemos que

políticas de inclusão e acessibilidade, sem o devido diálogo

com os destinatários deste direito, pouco muda na realidade

fática, em que diuturnamente as pessoas com deficiência en-

frentam preconceitos, discriminações e descaso. [...] Diante

disto, questionamos: Quando deverá haver tais capacitações

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(já que não há previsão de prazo)? Quantas vezes (já que não

se informou qual a frequência que tais capacitações deverão

ocorrer)? Quantos, dos citados envolvidos, deverão se capa-

citar? O percentual de 5% dos envolvidos para aprenderem

a linguagem dos sinais é suficiente? Não será ofertada capa-

citação para atendimentos mais adequados, visando a não

discriminação das pessoas com deficiência? Haverá capaci-

tação quanto ao respeito, identidade, capacidade, tolerância

e igualdade no trato para com as pessoas com deficiência?

Para Martin e Gonçalves (2016), a articulação do Conselho Na-cional de Justiça e dos órgãos do Poder Judiciário, ao definir mo-dos de atuação e concretização dos direitos das pessoas com defi-ciência, precisam criar canais seguros de escuta ativa das pessoas diretamente envolvidas, caso contrário, as estratégias e práticas implantadas não atenderão adequadamente aos principais interes-sados. Dar voz aos invisíveis é o caminho mais democrático e eman-cipatório de garantir direitos, de concretizar o acesso à justiça, se-não perpetuar-se-á uma positivação vaga, simbólica, meramente formalista e distante dos reais dilemas vivenciados pelas pessoas com deficiência.

Diante da necessidade de maior representatividade das pessoas diretamente afetadas pelas legislações, resoluções e políticas públi-cas, a ONU publicou a orientação legal nº 7 de 2018, na qual traz ex-pressamente o compromisso com a participação genuína e efetiva das pessoas com deficiência e das respectivas organizações sociais que as representam. Sobre as barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência, a referida orientação destaca que:

As pessoas com deficiência muitas vezes não são consultadas

na tomada de decisões sobre questões relacionadas ou que

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impactam em suas vidas, e as decisões continuam sendo to-

madas em seu nome. Nas últimas décadas, a importância de

consultar pessoas com deficiência foi reconhecida pelo sur-

gimento de movimentos de pessoas com deficiência exigindo

que seus direitos humanos e seu papel na determinação des-

ses direitos sejam reconhecidos. O lema “nada sobre nós sem

nós” ecoa a filosofia e a história do movimento de defesa dos

direitos das pessoas com deficiência, baseadas no princípio

da participação genuína. (Orientação Legal nº 7, ONU, 2018,

tradução nossa).

Para Soares (2010) não há uma identidade universal e pura, em verdade há múltiplas identidades possíveis, plurais e fragmentadas. Todavia, por relações estruturais de poder, algumas identidades são privilegiadas e certas diferenças são apagadas. A exclusão e o si-lenciamento das pessoas com deficiência são demarcados por es-tereótipos propagados pelo imaginário cultural de incapacidade, limitação cognitiva de aprendizagem, doença, dependência, loucura e inferioridade. Vistas como um problema social, as pessoas com deficiência não são ouvidas, incluídas e integradas, razão pela qual a participação ativa nos processos legislativos, administrativos e ju-diciais que as envolvem é tão importante e necessário ao exercício material da igualdade e da cidadania.

CONCLUSÃO

A conscientização democrática do Poder Judiciário, a capacida-de de escuta e respeito às pessoas com deficiência e às respectivas entidades sociais representativas, a educação inclusiva, a acessi-bilidade, o incentivo à participação autônoma e independente nos processos decisórios e jurisdicionais deve ser uma pauta urgente

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e permanente do Estado, caso contrário o direito das pessoas com deficiência se reduzirá a uma mera fantasia formalista, incapaz de promover a justiça.

O acesso à Justiça das pessoas com deficiência não se limita ao espaço físico jurisdicional de resolução de conflitos, mas a efe-tiva garantia adequada, justa, acessível, célere de todos aqueles que precisem do Poder Judiciário. As pessoas com deficiência são merecedoras de dignidade e de igualdade substanciais, de políti-cas públicas matérias de efetivação contínua dos direitos humanos e fundamentais prometidos formalmente. Os direitos das pessoas com deficiência não podem ser vistos de uma maneira universalis-ta, eurocêntrica e hegemônica, pois não existe um único modo de ser, pertencer e de existir.

REFERÊNCIAS

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ACESSO À JUSTIÇA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

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ACESSO À JUSTIÇA: SOLUÇÕES PARAAMENIZAR A CRISE NUMÉRICA DOS PROCESSOS

NA ERA DA CULTURA DEMANDISTA*

Jacqueline Taís Menezes Paez Cury**1

ResumoO acesso à justiça é um direito que pressupõe o exercício da dignidade humana e da cidadania, porém é preciso ressaltar que a cultura da judicia-lização, a falta de informação e a deficiência na educação têm sido fatores responsáveis pelo desconhecimento sobre a possibilidade de exercício do acesso à justiça por meios extrajudiciais em consonância com a lei. O re-sultado disto, tem sido a excessiva judicialização dos conflitos acarretando uma sobrecarga na via processual, conforme apontam os dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, a partir do Relatório da Justiça em Nú-meros. Conclui-se que é preciso ressaltar a importância da sua publiciza-ção, através dos meios de comunicação em massa, e de conscientização (da sociedade civil) de que a intervenção da atividade jurisdicional não tem condições de dirimir todas as lides. O método aplicado serão o dedutivo.Palavras-chave: Acesso à Justiça. Crise Numérica dos Processos. Instrumentos Alternativos de Solução de Conflitos. Efetividade na Prestação Judiciária.

* O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – (Brasil) CAPES – Código de Financiamento 001.** Mestranda do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe - UFS, sob a orientação do Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UniFG. Advoga-da. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes – UNIT (2012). Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected].

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ACESSO À JUSTIÇA

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AbstractAccess to justice is a right that presupposes the exercise of human dignity and citizenship, but it should be emphasized that the culture of judicialization, lack of information and disability in education have been factors responsible for the lack of knowledge about the possibility of exercising access to justice through extrajudicial means in line with the law. The result of this has been the ex-cessive judicialization of conflicts causing an overload in the procedural route, as indicated by the data provided by the National Council of Justice, from the Report of Justice in Numbers. It’s important to emphasize the importance of its publication, through the mass media, and awareness (of civil society) that the intervention of judicial activity is not able to resolve all the dealings. The me-thod applied will be the deductive.Keywords: Access to Justice. Numerical Crisis of Processes. Alternative Conflict Resolution Instruments. Efetivityn the Legal Provision Juditial.

1. ACESSO À JUSTIÇA

O princípio do acesso à justiça disposto no artigo 5º, XXXV da CF/88, preleciona que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão sofrida ou ameaça a direito. Portanto, esse princípio alude a inafastabilidade do acesso ao Judiciário ou indeclinabilidade da jurisdição, assim como, “uma tutela jurisdicional efetiva, adequa-da e tempestiva que tenha como resultado a ordem jurídica justa” (OLIVEIRA, 2019, p. 319).

A expressão acesso à justiça é de difícil definição, mas exerce o papel de atingir duas finalidades básicas do sistema jurídico: ser igualmente acessível todos e garantir resultados que sejam indivi-dual e socialmente justos e não apenas proclamar os direitos de to-dos. (CAPPELLETTI; GARTH; 1988).

A jurisdição é função do poder judiciário, órgão estatal, e visa

especificamente assegurar a aplicação hegemônica do direi-

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to na sociedade, promover a pacificação social e a educação,

garantir o livre exercício dos direitos e afirmar o poder do

Estado e dos institutos democráticos que o caracterizam.

(MATTOS, 2009, p. 62)

Entretanto, é preciso entender que direitos têm custo (...), pois a promessa dos direitos absolutos, além de criar expectati-vas irrealizáveis, promove o exercício irresponsável e muitas vezes abusivo dos direitos. (GALDINO, 2005, p. 230). Logo, o exercício do acesso à justiça não se trata de um direito absoluto, nem potes-tativo, mas (muito) condicionado, porque se submete às condições da ação (legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido), em consonância com a legislação. (MANCUSO, 2011). Além de estar submetido aos pressupostos de existência e validade, inclusive os ditos negativos, isto é, aqueles que não podem estar presentes: perempção, litispendência, coisa julgada, compromisso arbitral, pena de extinção do processo sem resolução do mérito. (MANCUSO, 2011).

O acesso à justiça tem sofrido transformações importantes, pois no Estado Liberal (sec. XVIII e XIX), esse direito possuía natu-reza individualista e afastar a pobreza (escassez de acesso à infor-mação e representação legal), não era preocupação do Estado, de tal maneira que o acesso formal correspondia a igualdade apenas formal (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Esse primeiro obstáculo é de-nominado primeira onda de acesso à justiça busca a “prestação de serviço jurídico para os pobres”, por meio do auxílio de um advoga-do (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

A segunda onda de acesso à justiça, ocorreu em razão da neces-sidade de “representação jurídica aos interesses coletivos ou difu-sos”, tais como o direito ao ambiente saudável ou a proteção do con-sumidor, vez que o processo era visto como um assunto entre duas

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partes referente a seus próprios interesses individuais (CAPPELLE-TTI; GARTH, 1988).

A terceira onda e mais recente barreira ao acesso à justiça, con-siste no “enfoque de acesso à justiça”, porque além de englobar os questionamentos anteriores, tenta desfazer as barreiras anteriores, ou seja, assistência judiciária advocatícia efetiva para aqueles que não podem custear o seu serviço e representação efetiva dos inte-resses públicos para a reivindicação dos direitos sociais, não apenas aos menos afortunados, mas do público em geral (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

No que concerne ao acesso à justiça, tem-se que o Estado é o detentor da jurisdição e da titularidade legítima de organização das relações sociais e por essa razão pode ser considerado um dos res-ponsáveis pela promoção do bem comum, porém, ressalta-se que este direito que não se esgota no judiciário, representa também e primordialmente, o acesso a uma ordem jurídica justa. (MATTOS, 2009, p. 60).

Afinal, “as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada e qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal têm um efeito importante” (CAPPELLETTI, 1988, p. 12).

Nesse sentido, ensina Sérgio Torres (2019): ao pensar em acesso à justiça, vem logo a mente a ideia de busca da tutela jurisdicional do Estado, mas o acesso à justiça não consiste somente em acesso ao Poder Judiciário. “É preciso não confundir acesso à justiça com acesso ao judiciário”. O acesso está umbilicalmente ligado ao resul-tado da solução do conflito, no sentido de viabilizar a ordem jurídica justa, vale dizer, efetivando a promoção da justiça” (SPOSATO; SIL-VA, 2018, p. 46).

De acordo com Mancuso (2011), de logo impende ter presente que o sentido de jurisdição não pode, em pleno limiar do terceiro

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milênio, manter-se o mesmo das priscas eras romanas, nem pode bastar o singelo sentido da “subsunção da lei aos fatos“ (...) impende reconhecer que outros órgãos, agentes e instâncias podem e em alguns casos até devem ser admitidos à cena judiciária, muito po-dendo contribuir para o aprimoramento da prestação jurisdicional.

Esse direito é tido como de natureza assecuratória, uma vez

que possibilita a garantia de todos os demais direitos, sendo

oponível inclusive ao legislador e ao Poder Constituinte De-

rivado, pois é cláusula pétrea de nossa ordem constitucional

(RAMOS, 2020, não paginado).

Desse modo, o acesso à justiça não se resume ao mero recebi-mento de demandas judiciais, inclui também a implementação de mecanismos alternativos que possibilitem e garantam a resolução de controvérsias.

2. CRISE NUMÉRICA DOS PROCESSOS

O Relatório Justiça em Número, fornecidos pelo CNJ (órgão de controle dos tribunais) anualmente desde 2004 (ano-base) constitui a fonte oficial de estatísticas sobre a realidade dos tribunais do Po-der Judiciário em Número. Em 2009 o estoque de processos era de 60,7 milhões, cujo valor das receitas totalizou R$ 17,6 bilhões, mon-tante que representou queda de 32% em relação ao ano anterior, com base nos dados obtidos pela justiça em números.

A partir da análise do Relatório da Justiça (2019), observa-se que no ano-base 2018, houve um total de 78,7 milhões de processos em tramitação e as despesas totais do Poder Judiciário somaram R$ 93,7 bilhões. Esta foi a primeira vez dentre as estatísticas elaboradas desde 2004 (ano do primeiro relatório do CNJ relativo ao ano-base

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2003) que o quantitativo de litígios solucionados ultrapassou o nú-mero de processos pendentes (não transitado em julgado).

Em outras palavras, houve um acréscimo progressivo no esto-que de processos sem solução até o ápice de 80,1 milhões em 2017 e um decréscimo a partir de 2018, em razão do “aumento do volume de processos decididos (baixados) e a redução do estoque proces-sual, assim como dos gargalos que permanecem, a exemplo da mo-rosidade na fase de execução e da estagnação dos índices de con-ciliação” (CNJ, RELATÓRIO JUSTIÇA EM NÚMEROS, 2019, p. 221). Vejamos a seguir uma síntese do estoque de processos de 2009 a 2017, com base na tabela elaborada pelo CNJ:

Gráfico: Estoque de Processos

Fonte: CNJ

Ainda que tenham sido aprovadas normas voltadas para a suma-rização processual e que o número de litígios dirimidos tenha supe-rado o valor referente ao estoque de processos em 2018, o colapso numérico das demandas continua a assolar o Judiciário de forma generalizada, alcançando os órgãos de primeiro e segundo graus e até mesmo os Juizados Especiais que foram criados como caminho alternativo para descongestionar as superlotadas Varas Federais.

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No relatório do Banco Mundial BIRD, o pesquisador e analis-ta da instituição, Carlos Gregório, menciona a existência de uma demanda processual excessiva e desnecessária no Brasil, pois só há necessidade de direcionar uma parte dos conflitos à Justiça. Na concepção do referido especialista, apesar da necessidade de novos magistrados “tem que haver medidas estruturais para que os ma-gistrados possam decidir fundamentalmente casos de grande rele-vância nacional e não pequenas causas que chegam ao Judiciário e poderiam ter outras saídas” (AGÊNCIA BRASIL, 2017, não paginado).

O processo individual incha as prateleiras do Estado, provo-

cando a crise numérica, que tem desqualificado o conteúdo

da prestação jurisdicional em prol de inúmeras reformas que

sumarizam o procedimento ou o conduzem ao julgamento em

blocos, e ainda assim com entrega de direito muito tempo de-

pois, gerando frustação em quem demandou. (GUIMARÃES,

2014, p. 258).

O problema do acesso à Justiça não é uma questão de “entrada” pela porta gigantesca desse templo chamado Justiça, o problema é de “saída”, pois todos entram, mas poucos conseguem sair num pra-zo razoável, e os que saem, fazem-no pelas “portas de emergência”, representadas pelas tutelas antecipatórias, pois a grande maioria fica lá dentro, rezando, para conseguir sair com vida. É necessário que o sistema judiciário se torne mais racional tanto no início quan-to no final do processo. (ALVIM, 2003).

A explosão da litigiosidade, foi em boa parte insuflada por uma cultura judiciarista tendente a repassar às mãos da justiça estatal todo e qualquer interesse contrariado ou insatisfeito (MANCUSO, 2011). Afinal, torna-se cômodo e interessante para os clientes habi-tuais do judiciário (Poder Público, empresas de seguro-saúde, enti-

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dades de crédito ao consumidor, administradoras de cartões de cré-dito, empresas de telefonia) deixar que as pendências se judicializem e permaneçam sub judice o maior tempo possível: isso dispensa tais litigantes de investir em recursos humanos e materiais na organiza-ção de serviços de atendimento ao público (MANCUSO, 2011).

Ademais, muitas empresas preferem adotar uma política de apenas pagar direitos trabalhistas em Juízo, assim se poupando do custo de organizar o seu próprio Departamento Jurídico, repas-sando ao Judiciário como se fosse uma terceirização do serviço, o ônus de analisar a pretensão do ex-empregado, calcular o quantum indenizatório e ainda presidir eventual negociação. Inclusive, mui-tos empresários admitiram que a morosidade é por vezes, benéfica, principalmente na área trabalhista. (MANCUSO, 2011). Outro agra-vante corresponde ao elevado percentual de ações judiciais contra a Previdência Social e o Executivo.

Para acompanhar a expansão exponencial de processos ajui-zados e pendentes, o Judiciário ampliou o investimento financeiro na construção de fóruns, aumento da quantidade de juízes, servi-dores e informatização dos tribunais, incentivo as tutelas pautadas em cognição sumária e adoção de mecanismos de padronização das respostas prontas em massa para a redução da morosidade.

Consoante assevera Mancuso (2011), o tratamento massivo de ações e o julgamento em bloco de recursos repetitivos, não conse-guem inibir a atomização dos conflitos de largo, de tal arte que por aí não se dá às macrolides o tratamento processual que tecnicamente lhes seria adequado, a saber, seu encaminhamento aos quadrantes da jurisdição coletiva, apta a recepcionar as ações por interesses difu-sos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.

Também, faz uma crítica acirrada sobre a massificação da resposta judiciária, ao aduzir que a par de comprometer a quali-dade, tem levado à adoção de estratégias arriscadas, tais como a

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busca obsessiva pela celeridade, a eliminação radical de fases ou etapas da relação processual, a tendencial sumarização da cogni-ção judicial, tudo compondo um panorama que expõe a perigo a integral, consistente e efetiva resolução justa do conflito (MAN-CUSO, 2011).

Acrescenta ainda, que a eficiência da prestação jurisdicional que inclui a razoável duração do processo (CF /1988, art. 5.º, LXX-VIII), não pode ser buscada a qualquer preço, sob uma pragmáti-ca e radical lógica de resultados em que os fins justificam todos os meios; antes, deve ser focada onde o problema começa (a explosão da litigiosidade social, fomentando a cultura demandista, à sua vez favorecida pela desinformação quanto aos demais equivalentes ju-risdicionais); não basta, pois, atacar obstinadamente a crise numéri-ca de processos judiciais, já que esta não é a causa e sim a somatória dos efeitos. (MANCUSO, 2011, p. 287).

De fato, observa-se que ocorreram progressos no tocante a efetividade quantitativa, na tentativa de alcançar algumas metas estabelecidas pelos tribunais, a celeridade, já que o excesso de processos tem deixado a prestação do serviço jurisdicional quase inoperante. Contudo, é preciso que também haja preocupação, por parte do Judiciário, quanto a busca pela efetividade qualitativa do julgamento das ações.

3. MEDIDAS DE CONTENÇÃO PARA ALIVIAR A SOBRECAR-GA DO JUDICIÁRIO

É importante elucidar alguns instrumentos criados por emenda constitucional, sugestões propostas pela doutrina, pelo novo CPC e por leis infraconstitucionais que contemplam órgãos e instâncias paraestatais concebidos para descongestionar as excessivas de-mandas no aparato estatal judicial.

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Registre-se que por vivenciarmos a “era da informação”, na qual grande parte das pessoas conhece seus direitos e questiona quando são desrespeitados, os conflitos judiciais ampliaram-se, gerando o sobrecarregamento de processos e a morosidade na resolução dos conflitos judiciais (SPOSATO; SILVA, 2018, p. 50).

A Emenda Constitucional nº 45 de 2004, por exemplo, acres-centou a CF/88 a exigência da repercussão geral da questão consti-tucional, como forma de frear o recurso extraordinário para auxiliar o seu acúmulo no Supremo Tribunal Federal. Outras medidas de contenção nessa direção foram a exigência de Transcendência da questão judicializada, para a admissibilidade do Recurso de Revista no TST e a exigência da Prequestionamento, para que um Recurso Excepcional seja recebido pelas instâncias superiores: STF (Recurso Extraordinário), STJ (Recurso Especial) e TST (Recurso de Revista).

Vale mencionar que os conflitos na esfera do desporto neces-sitam ser inicialmente submetidos aos Tribunais Desportivos (art. 217 e § 1º da CF/88) da Justiça Desportiva (órgãos privados, ligados a autonomia das entidades desportivas). Assinala Ramos (2020) que o Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei, todavia, a justiça desportiva terá o prazo máximo de 60 dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final (art. 217, §§ 1º e 2º da CF/88).

No âmbito trabalhista, as reclamações trabalhistas podem ser evitadas através da resolução da controvérsia diante das Comissões de Conciliação Prévia (art. 625-D da CLT). Apesar da fase de con-ciliação prévia ser um meio legítimo, fica afastado o entendimen-to que se trata de um método obrigatório nos dissídios individuais, permanecendo o acesso à Justiça resguardado para todos os que venham a ajuizar demanda diretamente ao órgão judiciário compe-tente” (ADI nº 2.139, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 1 de fev. 2010, DJe. 11

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de fev. 2010), sendo indispensável o término da fase de negociação no caso dos dissídios coletivos (art. 114, § 2º da CF/88).

Logo, o direito de acesso à justiça não pode ser obstaculizado pela exigência de prévio esgotamento da via administrativa. Dife-rentemente da Constituição de 1967/1969, a Constituição de 1988 não adotou nenhuma espécie de contencioso administrativo obri-gatório, condicionando o direito de acesso à justiça somente nos casos de Justiça Desportiva e dissídio coletivo na Justiça do Traba-lho. (RAMOS, 2020).

Os juizados especiais foram concebidos para ‘facilitar o acesso à Justiça’, a partir da constatação de que causas de pequena expres-são econômica ou menor complexidade não estavam sendo levadas à apreciação do Poder Judiciário (FERRAZ, 2010). Por fim, por cen-trar seus esforços na conciliação, pretende-se promover a ‘cultura da paz’. (FERRAZ, 2010).

Importa mencionar que o Juízo Arbitral foi preconizado como op-ção ao Juizado Especial (art. 24, caput da Lei nº 9.099/95), cujo árbitro é considerado juiz de fato e de direito (art. 18 da Lei nº 9.307/96). Assim, as controvérsias podem ser solucionadas pelos árbitros escolhidos pe-las partes que irá proferir uma sentença arbitral sem que haja necessi-dade de acionar o Juizado Especial. Destarte, ambos os meios almejam impulsionar a cultura de pacificação célere e informal.

Os acórdãos do Conselho Administrativo de defesa Econômica e dos Tribunais de Contas, possuem força de título executivo, po-dendo ser exigidos ou cobrados judicialmente (art. 71, § 3.º da Carta Magna; Lei nº 8.884/80).

As microempresas e empresas de pequeno porte deverão dar preferência aos seguintes instrumentos para resolver as suas con-trovérsias: conciliação prévia, mediação e arbitragem (art. 75, caput da LC nº 123/06). Outros mecanismos clássicos merecem ser as-sinalados: a Comissão Parlamentar de Inquérito; o julgamento do

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Presidente da República pelo Senado; a possibilidade de realização do inventário e do divórcio consensuais em juízo no Cartório, o pro-cesso de recuperação extrajudicial das empresas; a consignação em pagamento relativa à obrigação pecuniária.

Algumas novidades foram propostas para aliviar a crise numé-rica dos processos com o advento do Novo Código Processual Civil: sumarização de ritos, exacerbação do ativismo judicial, trancamen-to liminar de ações e de recursos, incidente das demandas repetiti-vas (MANCUSO, 2011).

Mancuso (2011), sugere algumas soluções para evitar ações re-petitivas, são elas: (I) A prevenção da judicialização exacerbada, me-diante a condução de demandas múltiplas (macrolide) à “Jurisdição Coletiva”; (II) Melhor divulgação quanto a disponibilidade de outros meios auto e heterocompositivos e (III) Encaminhamento para ou-tros órgãos e instâncias.

Importa aduzir que a ‘terceira onda’ de reforma ao acesso à jus-tiça, inclui a advocacia (judicial ou extrajudicial), seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra a sua atenção centrada no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos para processar e prevenir disputas na so-ciedade moderna” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67), (grifos do au-tor). Nesta terceira onda destinada a impedir controvérsias ou facili-tar a sua solução por instrumentos informais, encaixa-se a mediação de conflitos e a conciliação, como meios de solução autocompositiva.

Em verdade, há muito tempo o direito brasileiro registra a práti-ca da exigência de atendimento prévio como condição para o ajuiza-mento de ações, a Constituição Imperial (1824), por exemplo, previa que não seria possível começar processo algum sem se fazer constar que se tem intentado o meio da reconciliação (FERRAZ, 2010).

Com o passar dos anos, esse instrumento de pacificação de controvérsias perdeu força para a judicialização e com o advento da

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Constituição Federal de 1988, foram consagrados diversos direitos voltados para a elaboração e execução de políticas públicas sem de-talhamento de como serão garantidos pelo Estado, acontecimento que fortaleceu o fenômeno da judicialização de conflitos e paulati-namente contribuiu para o congestionamento da via judicial.

A mediação está prevista no Código de Processo Civil de 2015 do art. 165 ao art. 175. Também, encontra-se regulamentada na Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação), que a conceitua em seu art.1º, pa-rágrafo único como sendo “a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas par-tes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções con-sensuais para a controvérsia”.

Embora a referida lei verse sobre mediações judiciais e extraju-diciais entre particulares e a autocomposição na esfera da adminis-tração, neste trabalho a atenção está voltada para a mediação extra-judicial. Salienta-se que o CPC/15 faz uma explanação de maneira superficial a respeito da conciliação e em seu art. 165, estabelece a di-ferença entre a conciliação e a mediação, cujas diferenças principais consistem na inexistência ou na existência de vínculo anterior entre as partes litigantes e na atuação mais incisiva do conciliador para o fechamento de um acordo e menos interventiva do mediador no sen-tido de facilitar a comunicação entre as partes sem sugestionar.

Embora ambas constituam formas consensuais de solução de conflitos, observa-se que conciliar é diferente de mediar, pois elas divergência em relação ao procedimento (GARCIA, 2015, p. 225). No entender de Alexandre Araújo Costa (2004, p. 162) são diferenças entre conciliação e mediação.

A conciliação é cabível quando estiver em questão um vinculo

único entre as partes, decorrente de conflitos mais restritos

ou ocasionais, em que não resta interesse na continuidade do

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vínculo no futuro; já a mediação é apropriada para conflitos

mais amplos, como os que envolvam relações familiares, de

vizinhança, de trabalho e de amizade ou companheirismo.

A mediação privada, vem propor o resgate da solução pacífica de desavenças como um artifício eficaz e célere, sem a necessidade de sujeição as fases de um extenso processo judicial, sem precisar esperar o julgamento do processo por anos e anos. Além de descar-tar o procedimento inicial de um processo e a produção de provas, este instrumento é orientado por métodos e princípios adotados por dois mediadores imparciais, com a função de facilitar a cons-trução de um diálogo, para que ambas as partes encontrem uma solução satisfatória.

Assim, a mediação pode ser entendida como uma modalidade

de autocomposição voluntária, buscada por ambas as partes,

ou, ao menos, de iniciativa de uma parte, mas contando sem-

pre com a anuência da outra. Também se caracteriza como

um processo legítimo de promoção da Justiça, não conflitu-

osa, confidencial e voluntária, utilizando-se de um terceiro

imparcial, isento e desinteressado, que exerce a função de

mediador. (OLIVEIRA, 2019, p. 323).

Tanto a mediação quanto a conciliação são regidas pelos se-guintes princípios: independência, imparcialidade, voluntariedade, confidencialidade, participação de terceiro imparcial, economia fi-nanceira e de tempo, informalidade, reaproximação das partes, au-tonomia das decisões, oralidade e não-competitividade.

Entre os mediadores não pode haver qualquer relação hierár-quica, mas tão somente de apoio recíproco para que cada um expo-nha o seu ponto de vista de forma equilibrada sobre os fatos men-

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cionados pelas partes. Além disso, não poderão divulgar ou depor sobre os fatos provenientes da mediação.

A Lei de mediação, estabelece alguns requisitos para que um terceiro neutro seja considerado um mediador. São eles: possuir curso superior completo, com formação há no mínimo dois anos em instituição que seja reconhecida pelo Ministério da Educação e ter concluído a capacitação em uma escola de formação de media-dores que seja reconhecida pelos tribunais ou pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça juntamen-te ao Ministério da Justiça, não só os mediadores, mas também os conciliadores deverão possuir capacitação para o exercício de suas atividades, sendo imprescindível a realização do curso por entidade credenciada. Todavia, na mediação extrajudicial não há tantas exigências para a atuação do mediador que poderá ser qualquer pessoa de confiança das partes para a resolução dos conflitos.

Algumas vantagens com a mediação podem ser evidenciadas: fortalecimento da cidadania, redução do custo e tempo médio, põe fim a desavença antes mesmo do começo do processo judicial, au-xílio à sobrecarga da jurisdição, o controle dos procedimentos por parte dos participantes, desde o começo deste procedimento infor-mal até a decisão final das partes e a manutenção ou até mesmo o restabelecimento das relações interpessoais.

Todavia, é preciso ter em mente que apesar de todas estas van-tagens, a mediação não garante a solução para todos e quaisquer conflitos, porque é apenas mais um mecanismo para resolver a crise numérica dos processos. Ademais, salienta-se que os mecanismos alternativos de solução das lides, não implicam na extinção do jul-gamento por um juiz togado, tampouco serão os responsáveis pelo fim da crise numérica dos processos judiciais.

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Diante do exposto, compreende-se que é preciso ressaltar a importância da sua publicização, através dos meios de comunica-ção em massa, e de conscientização (da sociedade civil) de que a intervenção da atividade jurisdicional não tem condições de dirimir todas as lides. Deve-se recorrer ao Judiciário apenas nas situações as quais o seu julgamento seja realmente imprescindível, como ul-tima ratio, desse modo, a justiça poderá tornar-se célere com esse movimento de desjudicialização.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreende-se que o atual esforço para a redução da crise na prestação do serviço judiciário deve ser proporcional a efetivação dos princípios e garantias constitucionais, pois a morosidade das decisões jurídicas não condizem com um julgamento justo. Por isto, é preciso levar em consideração que a utilização das vias alternati-vas de conflitos representadas pela terceira onda de acesso à justi-ça, constituem meios mais recentes de solução pacífica de conflitos.

Ademais, possibilitam a maior satisfação entre as partes, além de serem menos onerosas para o Estado, pois muitas vezes a exces-siva quantidade de recursos, para a resolução de conflitos menos complexos, gera gastos desnecessários aos cofres públicos. Em li-nhas conclusivas, sugere-se neste trabalho que o Estado faça uso dos meios de comunicação em massa para a orientação, conscien-tização e informação da sociedade civil sobre a atual crise numérica de processos pendentes no Poder Judiciário e que este problema pode ser solucionado com o auxílio da população.

Essa ajuda da sociedade civil, seria com a busca por modelos alternativos de pacificação, para a resolução de conflitos de baixa complexidade. Através da mediação, conciliação, do acordo que são formas de autocomposição, além dos Núcleos de Prática Jurídica

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dos Cursos de Direito espalhados pelo Brasil, capazes de prover o acesso à justiça de forma desburocratizada, mais justa e acessível.

Deve-se recorrer ao Judiciário apenas nas situações as quais o seu julgamento seja realmente imprescindível, como ultima ratio, desse modo, a justiça poderá tornar-se célere com esse movimento de desjudicialização.

REFERÊNCIAS

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ACESSO À JUSTIÇA

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NORMATIZAÇÃO TECNOLÓGICA DO JUDICIÁRIO: ANÁLISE DAS MEDIDAS ADOTADAS PARA

GARANTIR O ACESSO À JUSTIÇA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Maria da Glória Teles Farias*1Lucas Gonçalves da Silva**2

Camila Cardoso Takano***3

ResumoO artigo faz uma análise das normas editadas para adequação da atividade judiciária com a utilização dos recursos tecnológicos para o fortalecimento do acesso à justiça. Será abordado o conceito de acesso à justiça como pilar constitucional necessário para a manutenção da atividade judicial. Na mes-ma linha serão apresentadas as normas que contribuíram para a evolução tecnológica do judiciário com intuito de desburocratizar a máquina. Ao fi-nal, serão dispostas as medidas adotadas pelo Poder Judiciário, em especial pelo Conselho Nacional de Justiça, por ser o responsável pela fiscalização e a normatização do Poder Judiciário, para a rápida adequação ao isolamento social instalado pela pandemia da covid-19. Palavras-chave: Acesso à Justiça. Pandemia. Tecnologia. Processo judicial Eletrônico. Videoconferência.

* Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Guanambi. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes. Ad-vogada. e-mail: [email protected].** Pós-doutor em Direito pela Università Degli Studi G. d’Annunzio (Italia) e pela Universi-dade Federal da Bahia. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP. Professor da Graduação em Direito e do Programa de Mes-trado em Direito na Universidade Federal de Sergipe-UFS.*** Servidora Pública Federal. Mestranda em Direito Constitucional pela UFS. Pós-gradu-ada em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Graduada em Direito pela UFOP. E-mail: [email protected].

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AbstractThe article analyzes the rules published to adapt the judicial activity with the use of technological resources to strengthen access to justice. The concept of access to justice as a necessary constitutional pillar for maintaining judicial activity will be addressed. In the same line, the rules that contributed to the technological evolution of the judiciary with the aim of reducing the bureau-cracy of the machine will be presented. In the end, the measures adopted by the Judiciary Power, in particular by the National Council of Justice, will be laid down, as it is responsible for the inspection and standardization of the Judiciary Power, for the rapid adaptation to the social isolation installed by the covid-19 pandemic.Keywords: Access to Justice. Pandemic. Technology. Electronic judicial pro-cess. Video conference.

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019 surge na China uma nova doença viral denominada de covid-19 (novo coronavírus). A doença tomou pro-porções mundiais e chegou ao Brasil em março de 2020. Para tentar conter a disseminação em grande escala da doença, que já havia deixado consequências desastrosas em outros países, o Brasil ado-tou o isolamento social, medida sugerida pela Organização Mundial de Saúde.

Com isso, todo o país teve que se adequar a essa nova realidade e buscar meios de não parar suas atividades enquanto aglomeração e contato social estavam proibidos. O Poder Judiciário, como ativi-dade essencial para manutenção do Estado Democrático de Direito, buscou meios para manter os serviços funcionando, e ainda lidar com a alta das demandas judiciais devido à própria implementação do isolamento. Parar ou diminuir o ritmo não eram alternativas.

Com o caos instalado no País, o Poder Judiciário encontrou nos recursos tecnológicos a alternativa mais viável para manter o fun-

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cionamento da máquina processual de modo a assegurar o acesso à justiça.

Antes da pandemia o ordenamento jurídico brasileiro já pos-suía normas voltadas para o uso da tecnologia no âmbito judicial, contudo na maioria dos atos, o uso das tecnologias era tido como excepcional. Apesar de mais de 80% dos processos do País já se-rem informatizados, a prática de diversos atos ainda eram em regra presenciais, como audiências, intimações e atendimentos no geral.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pela fis-calização e a normatização do Poder Judiciário e dos atos prati-cados por seus órgãos, editou uma série de normas para auxiliar todo o Poder Judiciário. Atos como sessões virtuais por video-conferência passaram a ser permitidas no âmbito de todos os tribunais, inclusive no Supremo Tribunal Federal e Superior Tri-bunal de Justiça.

Este artigo visa abordar as adequações realizadas pelo Poder Judiciário para manter a prestação dos serviços e o cumprimento dos procedimentos necessárias durante o isolamento social, visan-do assegurar os princípios constitucionais processuais, em especial o acesso à justiça.

1. O ACESSO À JUSTIÇA

O sistema processual brasileiro possui uma série de princípios constitucionais norteadores para sua atividade, dentre eles, o aces-so à justiça. Este princípio está presente no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988 (CF/88) onde dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direi-to” (BRASIL, 2020a). Como também possui previsão no Art. 8º, I da Convenção Interamericana de Direitos Humanos Art. 8.

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Art. 8. Garantias Judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias

e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal com-

petente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente

por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada con-

tra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações

de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra nature-

za. (Convenção Americana de Direitos Humanos, 2020).

O direito de acessar a justiça envolve o ingresso do processo, como também que este processo seja julgado conforme os manda-mentos constitucionais e legais, que as decisões tenham caráter efe-tivo e de fato solucionem os problemas propostos. Não se trata de mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo, é necessário que o maior número de pessoas seja admitido a deman-dar. “O processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça” (CINTRA; DINAMARCO GRINOVER, 2006, p. 39).

Esse princípio visa muito mais que a simples estrutura de fóruns e tribunais, cabe ao Judiciário buscar ferramentas para alcançar to-das as camadas da sociedade.

Como bem aponta Cintra, Dinamarco e Grinover, o acesso à justi-ça é ideia central que converge toda a oferta constitucional e legal dos princípios e garantias processuais, pontuando da seguinte maneira:

(a) Oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao

processo (universalidade da jurisdição), depois (b) garante-se a

todas elas (no cível e no criminal) a observância das regras que

consubstanciam o devido processo legal, para que (c) possam

participar intensamente da formação do convencimento do

juiz que irá julgar causa (princípio do contraditório), podendo

exigir dele a (d) efetividade de uma participação em diálogo –

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tudo isso com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja

capaz de eliminar todo resíduo de insatisfação. (2006, p. 40).

Para o exercício do acesso à justiça espera-se a disponibilidade de estrutura compatível com todas as necessidades sociais. Ter de-fensoria pública é acesso à justiça, fóruns nas localidades de difícil acesso é acesso à justiça, capacitação dos servidores para atendi-mento ao público é acesso à justiça, investimento em ferramentas tecnológicas é acesso à justiça.

Capelletti e Garth dispõem que a expressão “acesso à justiça” é de difícil definição, mas apresenta duas definições que são determi-nantes como finalidades básicas do sistema jurídico: o sistema tem que ser igualmente acessível para todos; e deve produzir resultados justos, tanto individualmente, quanto socialmente. (1988, p. 08).

O sistema jurídico deve conseguir alcançar toda a sociedade. Para isso, necessário o investimento de recursos públicos para su-prir lacunas da atividade judicial. As ferramentas tecnológicas têm sido os grandes propulsores da inclusão social e foi a solução en-contrada para manutenção da atividade estatal durante a crise da pandemia do coronavírus que será abordada à frente. Devido ao iso-lamento social instaurado coube ao Judiciário estabelecer medidas urgentes, que se adequassem a nova realidade, mas, ao mesmo tem-po, que fossem compatíveis com esse mandamento constitucional.

2. A NORMATIZAÇÃO TECNOLÓGICA NO EXERCÍCIO DO PODER JUDICIÁRIO

A inserção da internet no Brasil na década de 90, junto com a evolução do poder computacional estabeleceu uma mudança de paradigmas em todos os ramos da sociedade e abriu novas possibi-lidades para a prestação dos serviços públicos. As tecnologias da in-

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formação e comunicação (TICs) permitiram a renovação da atuação judicial, para enfrentamento da burocracia e morosidade processual.

As NTCI1 apresentam um enorme potencial de transformação

do sistema judicial, tanto na administração e gestão da jus-

tiça, na transformação do exercício das profissões jurídicas,

como na democratização do acesso ao direito e à justiça. No

que respeita à administração e gestão da justiça, as novas tec-

nologias podem ter um efeito positivo na celeridade e eficácia

dos processos judiciais. (SANTOS, 2005).

Com o tempo, atendimentos físicos foram substituídos pelo acesso virtual, documentos físicos foram substituídos por docu-mentos virtuais. As relações comerciais começaram a exigir mais celeridade na tramitação. Nessa mesma linha o Poder Judiciário também sempre foi bastante cobrado por mais rapidez na resolução dos conflitos judiciais. Não foi de modo imediato, mas a implemen-tação dos recursos tecnológicos no âmbito judicial aconteceu.

Uma das consequências do desenvolvimento da sociedade da informação é justamente a visibilidade do direito e dos tribunais (SANTOS, 2005). Um marco para a inovação do Poder Judiciário foi a promulgação da Lei n°11.419/20062 que implementou o processo judicial eletrônico. A partir desta lei um novo capítulo foi iniciado.

1 Novas Tecnologias de Comunicação e de Informação2 Art. 1º O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei. (BRASIL, 2020c)§ 1º Aplica-se o disposto nesta Lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição.Art. 2º O envio de petições, de recursos e a prática de atos processuais em geral por meio eletrônico serão admitidos mediante uso de assinatura eletrônica, na forma do art. 1º desta Lei, sendo obrigatório o credenciamento prévio no Poder Judiciário, conforme disciplina-do pelos órgãos respectivos.Art. 9º No processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta Lei.

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O Brasil ainda não alcançou a unanimidade de processos ele-trônicos, mas seu crescimento ano a ano tem sido gradativo. Os processos físicos estão sendo deixados de lado aos poucos. Segun-do o último levantamento do CNJ3 sobre o andamento processual brasileiro, em 2018, mais de 83% (oitenta e três por cento) dos casos novos foram peticionados eletronicamente, resumindo os proces-sos físicos ao importe de 16,1%. A Justiça do Trabalho alcançou o ín-dice de 98% de virtualização, com 100% de implantação no 1º Grau. (BRASIL, CNJ, 2019, p. 12).

A tabela abaixo apresenta a evolução dos processos judiciais eletrônicos no Brasil.

Gráfico: Série histórica do percentual de processos eletrônicos

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2019)

A implementação do sistema de Processo Judicial Eletrônico PJE foi um dos grandes protagonistas da informatização do judici-ário ao proporcionar a padronização da prática de atos jurídicos e

3 Relatório Justiça em números 2019

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acompanhamento do trâmite processual, por ser adequável a qual-quer ramo da Justiça, o objetivo de sua implementação foi a de ra-cionalizar os ganhos de produtividade e também os gastos com ela-boração ou aquisição de softwares pelos tribunais, como também visou a conversão de esforços para a adoção de solução padroniza-da e gratuita aos Tribunais, o que permitiu o emprego de recursos financeiros e de pessoal em atividades dirigidas à finalidade do Ju-diciário. (BRASIL, CNJ, 2019).

Quanto à realização dos atos com uso dos recursos tecnoló-gicos, em 2009 foi editada a Lei n° 11.900/2009 que modificou o Código de Processo Penal Brasileiro para prever a possibilidade de realização de interrogatório e outros atos processuais por sistema de videoconferência (BRASIL, 2020d). Essa mudança proporcionou uma série de benefícios ao andamento dos processos criminais, como celeridade, segurança, redução de custos, pelo simples fato de não ser mais obrigatório ter que deslocar o preso do presídio para o fórum toda vez que necessitasse ser interrogado.

Com o tempo outros mecanismos foram implementados. Em 2010 o CNJ editou a Resolução Nº 121 de 05/10/2010 para dispor es-pecialmente sobre a divulgação de dados processuais eletrônicos e expedição de certidões judiciais na rede mundial de computadores,

Devido ao aumento dos processos judicias eletrônicos e sua vi-rada majoritária sobre os processos físicos, se tornou necessário regulamentar novas situações pertinentes ao processo eletrônico. Depois de 05 (cinco) anos de tramitação, foi promulgada a Lei n° 13.105/2015, o novo Código de Processo Civil (CPC), com a promessa de adequar a matéria processual à nova realidade vivenciada.

O destaque do CPC vai para a regulamentação referente à utili-zação das novas tecnologias em diversos procedimentos do proces-so judicial, como a possibilidade de realizar audiências por meio de videoconferência, conforme disposição do art. 236, §3º: “Admite-se

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a prática de atos processuais por meio de videoconferência ou ou-tro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tem-po real” (BRASIL, 2020e). Atos como depoimento pessoal, oitiva de testemunha, acareação4 passaram a ser permitidos com utilização de recursos tecnológicos. Na mesma linha o CPC também permitiu ao advogado apresentar sustentação oral por videoconferência5.

Ao incluir as ferramentas tecnológicas na atuação judicial as barreiras físicas são minimizadas. Essas medidas têm base no prin-cípio do acesso à justiça por permitirem uma tramitação mais flexi-bilizada e desburocratizada do processo.

Outra norma importante para a inserção da tecnologia no Po-der Judiciário foi a Lei nº 12.527/2011 (lei de acesso à informação) que determinou a obrigatoriedade de todos os órgãos públicos em fornecer as informações na rede mundial de computadores. Coube ao Judiciário se adequar e implementar medidas para disponibilizar as informações na internet.

Para regulamentar as disposições da Lei nº 12.527/2011 o CNJ editou a Resolução nº 215 de 16/12/2015 que dispõe no art. 5º que “a

6 [...] Art. 385. § 3º O depoimento pessoal da parte que residir em comarca, seção ou sub-seção judiciária diversa daquela onde tramita o processo poderá ser colhido por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tem-po real, o que poderá ocorrer, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento.[...] Art. 453. § 1º A oitiva de testemunha que residir em comarca, seção ou subseção judici-ária diversa daquela onde tramita o processo poderá ser realizada por meio de videocon-ferência ou outro recurso tecnológico de transmissão e recepção de sons e imagens em tempo real, o que poderá ocorrer, inclusive, durante a audiência de instrução e julgamento.[...] Art. 461. § 2º A acareação pode ser realizada por videoconferência ou por outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real.Apesar das previsões legais a respeito do uso das tecnologias em processo judiciais, a sua utilização na prática ainda era muito tímida. Inclusive, muitos julgadores ainda permane-ciam reticentes em aceitar a utilização de meios tecnológicos, negando pedidos. (BRASIL, 2020e)5 Art. 937. § 4º É permitido ao advogado com domicílio profissional em cidade diversa da-quela onde está sediado o tribunal realizar sustentação oral por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que o requeira até o dia anterior ao da sessão. (BRASIL, 2020e).

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divulgação das informações de interesse geral produzidas ou cus-todiadas pelos órgãos do Poder Judiciário brasileiro dar-se-á, inde-pendentemente de requerimento, por meio de seus sítios eletrôni-cos” (BRASIL, p. 2020).

Já em 2017 o CNJ inovou aprovando por unanimidade a utili-zação do aplicativo Whatsapp como ferramenta para intimações em todo o Judiciário. Essa determinação aconteceu durante o julgamento do Procedimento de Controle Administrativo (PCA) n° 0003251-94.2016.2.00.0000 que tinha por objeto questionar a decisão da Corregedoria do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), que havia proibido a utilização do aplicativo pelo Juizado Civil e Criminal da Comarca de Piracanjuba/GO. (BRASIL, Agência CNJ de Notícias, 2017).

Cabe ao Judiciário buscar a melhor forma possível de resol-ver os conflitos colocados a sua responsabilidade, visando garantir o acesso à justiça. A utilização dos recursos tecnológicos busca a prestação de um serviço mais célere e menos burocrático e permite que se perca menos tempo com atos administrativos, para poder focar mais na área fim voltada para o objeto de resolução litígios.

3. ADEQUAÇÕES DO PODER JUDICIÁRIO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Apesar das diversas previsões legais que dispunham sobre a utilização de recursos tecnológicos, como a permissão de audiên-cias por videoconferência, na prática muitos recursos ainda eram utilizados de modo excepcional. Alguns tribunais não possuíam su-porte estrutural para manter a atuação com os meios tecnológicos e os atos presenciais permaneciam como a forma mais usual. Com o surgimento da situação pandêmica no País, tudo mudou e os Tribu-nais tiveram que se adaptar rapidamente à nova realidade.

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Com a divulgação do primeiro caso de infectado por coronavírus não demorou muito para que a doença começasse a se espalhar e sur-gissem novos casos por todo o País. Seguindo a mesma medida adota-da por outros países e as indicações da Organização Mundial de Saúde6 (OMS), o Brasil também adotou o isolamento social (quarentena).

Atos, portarias, resoluções, entre outras regulamentações co-meçaram a ser expedidas pelos órgãos públicos para adequar suas atividades sem o atendimento presencial. Com o Poder Judiciário não foi diferente, visto que no momento que o isolamento foi instau-rado todos os ramos foram afetados – social, político e econômico –, consequentemente refletindo no aumento da demanda judicial.

O Poder Judiciário teve que buscar adequação para diversos atos, como: realização de audiências e sessões de julgamento, aten-dimento ao público, cumprimento de mandados, perícias, intima-ções, dentre outros.

As primeiras medidas adotadas pelo CNJ foram para regular o próprio CNJ, como a edição da Portaria n° 52 em 12 de março de 2020 para estabelecer, no âmbito do CNJ, medidas temporárias de prevenção ao contágio pelo Novo Coronavírus dispondo principal-mente sobre a suspensão de atividades presenciais que não fossem imprescindíveis e sobre a adoção de modalidades de áudio e video-conferência para as reuniões imprescindíveis7.

6 “A OMS, que existe desde 1948, tem como missão elevar os padrões sanitários e de bem--estar da população mundial, coordenando os esforços internacionais para a prevenção, o controle e o tratamento de doenças, supervisionando o intercâmbio de informações epi-demiológicas entre os países membros e realizando pesquisas em diversos campos da área de saúde.” (BRASIL, Ministério da Saúde, 2020)7 Portaria n° 52, CNJ: Art. 10. Ficam temporariamente suspensos a visitação pública e o atendimento presencial do público externo que puder ser prestado por meio eletrônico ou telefônico. Parágrafo único. Fica a critério dos gabinetes da Presidência e dos Conselhei-ros adotar restrições ao atendimento presencial do público externo ou à visitação a sua respectiva área.Art. 11. As unidades do Conselho Nacional de Justiça deverão avaliar a imprescindibilidade da realização de reuniões presenciais, adotando, preferencialmente, as modalidades de áudio e videoconferência para eventos com número elevado de participantes. Parágrafo Único.

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Dias depois foi editada a primeira Resolução do CNJ (Resolu-ção n° 312 em 19/03/2020) direcionada para o isolamento social, que previa a alteração do Regimento Interno do CNJ para incluir o art. 118-B com a seguinte redação: “em situações de emergência, de calamidade pública ou de manifesta excepcionalidade, assim reco-nhecidas no respectivo ato convocatório, o Presidente do Conselho Nacional de Justiça poderá convocar, a qualquer tempo, sessão ex-traordinária do Plenário Virtual.” (BRASIL, CNJ, 2020e).

O CNJ também editou resoluções voltadas para todo o Poder Judiciário, visto que é o responsável pela fiscalização e a normatiza-ção do Poder Judiciário e dos atos praticados por seus órgãos. Em 19/03/2020 editou a Resolução nº 313 para estabelecer o regime de Plantão Extraordinário para uniformizar o funcionamento dos ser-viços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio da doença, e garantir o acesso à justiça no período emergencial8. Essa Resolu-ção determinou a suspensão do trabalho presencial de magistrados, servidores, estagiários e colaboradores nas unidades judiciárias, permitiu aos tribunais disciplinarem sobre trabalho remoto para realização de expedientes internos, como elaboração de decisões e sentenças, minutas, sessões virtuais e atividades administrativas. Determinou também, em seu artigo 5º, a suspensão dos prazos pro-cessuais até o dia 30 de abril de 2020.

Os eventos já marcados não poderão ultrapassar a cem participantes. (BRASIL, CNJ, 2020c).8 Resolução 313/2020: Art. 1º Estabelecer o regime de Plantão Extraordinário, no âmbito do Poder Judiciário Nacional, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários e garantir o acesso à justiça neste período emergencial, com o objetivo de prevenir o contá-gio pelo novo Coronavírus – Covid-19.Parágrafo único. Esta Resolução não se aplica ao Supremo Tribunal Federal e à Justiça Eleitoral. (BRASIL, 2020f)

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Em 03/04/2020 O CNJ assinou um Termo de Cooperação Téc-nica com a empresa Cisco do Brasil LTDA para que esta disponibili-zasse gratuitamente a solução Cisco Webex9, em caráter emergen-cial, com o propósito de fornecer a todos os magistrados brasileiros, uma solução de videoconferência para a prática de atos processu-ais, via internet, como audiências e sessões de julgamento.

Dias se passaram e a necessidade de manter o isolamento só aumentou, tendo em vista o aumento do contagio e da dissemina-ção da doença. Com isso, foi necessário que os tribunais voltassem a realizar audiências e que os prazos processuais voltassem a fluir. Então, em 20/04/2020 o CNJ editou a resolução n° 314 para modi-ficar as regras previstas na resolução 313 e determinou que os pra-zos processuais administrativos e judiciais que tramitavam em meio eletrônico voltassem a fluir a partir do dia 04/05/2020, mas man-tendo a vedação de designação de atos presenciais. Essa Resolução complementou outras determinações como a possibilidade de rea-lização de sessões virtuais de julgamento nos tribunais e turmas re-cursais do sistema de juizados especiais tanto em processos físicos, como em processos eletrônicos, sendo assegurado aos advogados das partes a realização de sustentações orais, a serem requeridas com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas, de acordo com a disposição do CPC.

Em linhas gerais o CNJ permitiu a prática de todo e qualquer ato que fosse possível ser realizado com utilização de recursos tecnológi-cos, decisão esta já embasada em muitos dispositivos legais já citados no tópico anterior. Contudo, os atos por meio de videoconferência

9 Resolução 314, CNJ, Art. 6º § 2º Para realização de atos virtuais por meio de videoconfe-rência está assegurada a utilização por todos juízos e tribunais da ferramenta Cisco We-bex, disponibilizada pelo Conselho Nacional de Justiça por meio de seu sítio eletrônico na internet (www.cnj.jus.br/plataforma-videoconfencia-nacional/), nos termos do Termo de Cooperação Técnica no 007/2020, ou outra ferramenta equivalente, e cujos arquivos de-verão ser imediatamente disponibilizados no andamento processual, com acesso às partes e procuradores habilitados. (BRASIL, 2020g).

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no primeiro grau de jurisdição só deveriam ser praticados se fosse possível a participação dos envolvidos no processo10.

No âmbito dos juizados especiais foi editada a lei 13.994/202011 que entrou em vigor no dia 24/04/2020, para modificar o artigo 22 da Lei nº 9.099/1995 (lei dos juizados especiais) e permitir a con-ciliação não presencial. A tramitação desta lei foi feita rapidamen-te devido à instauração do isolamento social, visto que os juizados possuem normatização separada do Código de Processo Civil. Com a edição desta lei os juizados especiais puderam manter a trami-tação processual durante a pandemia e apresentou uma mudança substancial na sua rotina.

Os Tribunais Superiores também editaram suas próprias reso-luções para disciplinar a realização de suas sessões virtuais durante a pandemia. O Supremo Tribunal Federal editou a Resolução n° 672 em 26/03/2020 e o Superior Tribunal de Justiça editou a Resolução n° 09 em 17/04/2020. Ambas apresentaram uma série de disposi-ções para esclarecer a tramitação das sessões, um delas foi a de garantir a participação dos advogados que desejassem fazer susten-tação oral ou apresentar questões durante o julgamento.

Para melhorar o andamento processual das sessões virtuais o STF também editou a Resolução 675/2020 que permitiu a dispo-nibilização do relatório e dos votos dos ministros no sítio eletrôni-co do STF durante a sessão de julgamento virtual, como também a

10 Resolução 314, § 3o As audiências em primeiro grau de jurisdição por meio de video-conferência devem considerar as dificuldades de intimação de partes e testemunhas, rea-lizando-se esses atos somente quando for possível a participação, vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais. (BRASIL, CNJ, 2020g).11 Lei 9.099/1995. Art. 22. § 2º É cabível a conciliação não presencial conduzida pelo Jui-zado mediante o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo real, devendo o resultado da tentativa de conciliação ser reduzido a escrito com os anexos pertinentes.Art. 23. Se o demandado não comparecer ou recusar-se a participar da tentativa de conci-liação não presencial, o Juiz togado proferirá sentença. (BRASIL, 2020b)

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possibilidade de os advogados realizarem esclarecimentos por meio do sistema de peticionamento eletrônico do STF, durante a sessão virtual, para automaticamente serem disponibilizados no sistema de votação dos ministros. Dessa forma, até o fim da sessão virtual, os ministros poderiam alterar votos já proferidos ou destacar pro-cessos para julgamento presencial.

CONCLUSÃO

Foi grande o desafio de garantir o acesso à justiça sem a pos-sibilidade de exercer atos presenciais. Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro, antes da crise, já possuir normas voltadas para o uso dos recursos tecnológicos, a medida de isolamento social es-tabelecida devido a pandemia do coronavírus impôs ao Judiciário uma utilização dos meios tecnológicos de modo muito mais inten-so. Inclusive, muitas medidas ainda eram utilizadas de modo excep-cional, como era o caso das audiências por videoconferência. Além da dependência da própria administração interna de cada Tribunal para disponibilizar ferramentas específicas de uso digital, como, por exemplo, uma plataforma para realizar videoconferências que nem sempre estava disponível.

A pandemia forçou a quebra de barreiras em todos os ramos da sociedade. As atividades e relações não voltarão mais a ser as mes-mas após o fim da crise. Todavia, essa situação vai deixar o aprendi-zado, de como o Judiciário pôde avançar no uso dos recursos tecno-lógicos em prol de garantir princípios constitucionais.

Mesmo após passada a crise, bem provável que o Judiciário per-maneça utilizando os recursos tecnológicos com mais frequência. Os juizados especiais, especificamente, sofreram uma modificação legal para se adequarem ao isolamento social e tudo indica que fu-turamente a tecnologia continuará sendo utilizada para a prática de

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diversos atos. Apesar de lidarem com as causas de menor complexi-dade, têm o peso de ter que resolver os litígios com mais celeridade que a justiça comum.

O objetivo deste estudo foi apresentar o uso da tecnologia na atuação do Judiciário como ferramenta essencial para desburocra-tização. Contudo, a tecnologia não é uma fórmula milagrosa que resolverá todos os problemas do Judiciário. A atividade presencial ainda é e será essencial, principalmente porque o acesso à tecno-logia para todos os brasileiros ainda é um problema a ser resolvido. Mas é preciso valorizar a evolução da atividade judicial a partir da crise com intuito de minimizar a burocracia e alcançar a aplicação dos princípios em sua plenitude.

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INTIMAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO: UMA PONDERAÇÃO ENTRE A LEGALIDADE

ESTRITA DAS COMUNICAÇÕES DOS ATOS PROCESSUAIS E O PRINCÍPIO DA

AUTORREGULAÇÃO DA VONTADE NO PROCESSO

Junior GonçalveS liMa*1ubiraJara CoelHo neto**2

ResumoTrata-se de artigo no qual se faz um confronto entre a legalidade estrita das comunicações dos atos processuais e o princípio da autorregulação da vontade na formação dos negócios processuais, por meio da crítica a um acórdão da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Pau-lo (TJ/SP), que confirmou a decisão a quo de impossibilidade de intimação por correio eletrônico e aplicativos de mensagens instantâneas, baseado na previsão legal das formas de comunicação dos atos processuais, descon-siderando o ajuste prévio entre as partes e homologado pelo juiz singular. Baseia-se em pesquisa bibliográfica, mediante análise doutrinária, jurispru-dencial e normativa.Palavras-chave: Intimação. Meio eletrônico. WhatsApp. Princípios.

* Assessor Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe (TRE/SE). Bacharel em Di-reito, pela Universidade Tiradentes (UNIT/SE). Pós-graduado em Direito Constitucional, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Direito Empresarial, pela Universi-dade Anhanguera-UNIDERP e; Direito Processual Civil, pela Pontifícia Universidade Cató-lica de São Paulo (PUC/SP). Currículo Lattes: //lattes.cnpq.br/1226965372480320.** Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado, todos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutorando (Universidade de Lisboa), sob a supervisão do Prof. Dr. Jorge Miranda. Professor Associado II do Curso de Direito da UFS (graduação e mestra-do). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9260268297028111.

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AbstractIt is an article in which there is a confrontation between the strict legality of the procedural communication acts and the principle of self-regulation of the will in the formation of procedural businesses, by criticizing the judgment of the 2nd Chamber of Private Law of the Court of Justice of São Paulo (TJ/SP), which confirmed the decision a quo on the impossibility of intimation by electronic mail and instant messaging applications, based on the legal preview of the procedu-ral communication forms, disregarding the prior adjustment between the parties and approved by the singular judge. It is based on bibliographic research, through doctrinal, jurisprudential and legal norms analysis.

Keywords: Intimation. Electronic environment. WhatsApp. Principles.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta uma ponderação entre a legalidade estrita das comunicações dos atos processuais e o princípio da autorregulação da vontade no processo, a partir da crítica feita à decisão da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), proferida em sede de Agravo de Instrumento (AI)1. A decisão colegiada, ao confirmar o julgamento de primeiro grau, preferiu o respeito à legalidade estrita e a formalidade dos atos processuais em detrimento da convenção estabelecida entre as partes para modificação episódica do procedimento legal.

No presente exame, ousa-se discordar da decisão, na medida em que ela, aparentemente, desprestigia a liberdade das partes no ajuste sobre a forma de execução dos atos de comunicação e desconsidera os deveres assumidos pelas partes perante o negócio jurídico processual firmado sobre medidas de direito dispositivo.

1 JUS BRASIL. TJ/SP. 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Pau-lo. Agravo de Instrumento nº 2165461-29.2019.8.26.0000, da Relatoria do Des. JOSÉ JOAQUIM DOS SANTOS, proferida em 4 de setembro de 2019. Disponível em: //bit.ly/3fEhwpn. Acesso em: 10 jul. 2020.

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O estudo se baseia em pesquisa bibliográfica, mediante análise doutrinária, jurisprudencial e de normas jurídicas.

1. A DECISÃO CRITICADA

A decisão criticada cinge-se à relação de consumo entre o plano de saúde do Hospital Samaritano e um de seus clientes. Insatisfeito com a decisão interlocutória, o Hospital interpôs recurso ao TJ/SP. Em resposta, o acórdão confirmou a decisão do Juízo da 1.ª Vara Cível da Comarca de Campinas que havia indeferido o pedido de viabilidade de intimação das partes por meio de e-mail e WhatsApp, a despeito de ter havido entre elas prévio ajuste processual quanto à intimação por meio eletrônico.

Eis o relatório constante no acórdão da 2ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, com as razões fáticas da demanda:

Relata o agravante que, no acordo homologado pelo juízo de

origem, o devedor e seu avalista aceitaram receber eventuais

intimações processuais via e-mail ou WhatsApp. Alega que as

intimações devem ocorrer do modo avençado, em cumpri-

mento ao disposto no art. 190 do CPC. Pleiteia o provimento

para deferimento das intimações nos moldes acima citados.

Deflui-se do resumo fático que a aceitação em receber comunicação eletrônica se deu por uma deliberação das partes, cujo acordo foi homologado pelo Juízo singular.

Ademais, não houve nenhuma menção na descrição dos fatos sobre eventual causa de invalidade da avença processual entre agravante e agravados, seja formal, seja substancial, como, por exemplo, a constatação de vício na manifestação de vontade, e nem mesmo a ocorrência de prejuízo a justificar a sua desconsideração. Ao contrário,

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menciona que o acordo foi homologado, o que faz supor que os seus elementos de constituição válida foram analisados pelo juiz.

A partir desse contexto sinteticamente narrado, esta foi a fundamentação dada pelo Relator e confirmada por seus pares da 2.ª Câmara Cível do TJ/SP:

Pois bem.

O recurso não merece provimento.

Ora, falta regulamentação legal para permitir que o aplicativo

whats app [sic] controlado por empresa estrangeira (Face-

book) seja utilizado como meio de atos judiciais.

Assim, em que pese o artigo 190 do Código de Processo Ci-

vil prever a licitude de estipulação de mudanças do proce-

dimento para ajustá-lo as especificidades da causa, tem-se

que o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo legal dispõe

que o juiz controlará a validade das convenções previstas no

artigo.

Ademais, o artigo 280 do CPC prevê que as citações e intima-

ções serão nulas quando feitas sem observância das prescri-

ções legais. E, no caso, não há previsão legal para o tipo de

intimação que pretende o agravante.

Desta feita, a manutenção da r. decisão é medida que se

impõe.

Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso.2

2 JUS BRASIL. TJ/SP. 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Pau-lo. Agravo de Instrumento nº 2165461-29.2019.8.26.0000, da Relatoria do Des. JOSÉ JOAQUIM DOS SANTOS, proferida em 4 de setembro de 2019. Disponível em: //bit.ly/3fEhwpn. Acesso em: 10 jul. 2020.

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Como se vê, a fundamentação legal da decisão colegiada se deu com base nos artigos 1903 e 2804 do CPC, confirmando a nulidade do negócio processual firmado em 1.º grau, em razão da ausência de previsão expressa no Código de Processo Civil (CPC) da intimação por e-mail ou WhatsApp,

2. O PRINCÍPIO DO AUTORREGRAMENTO DA VONTADE NO PROCESSO

Ora, tudo indica que a decisão em exame, sob a pretensão de proteger o princípio da legalidade e a tipicidade das comunicações processuais, acabou por confundir formalidade com formalismo – este, entendido como um distorcido culto à forma5.

Há de se reconhecer que a formalidade é necessária para estabelecer o devido processo legal, mas o formalismo é prescindível. Por isso, ORESTE NESTOR DE SOUZA LASPRO6 afirma que “a forma é indispensável, por ser garantia das partes, e o formalismo é inútil e prejudicial”.

3 CPC. Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às es-pecificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplica-ção somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. BRASIL. [Código de Processo Civil (2015)]. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: //bit.ly/3gPeeiX. Acesso em: 10 jul. 2020.4 CPC. Art. 280. As citações e as intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais. BRASIL. [Código de Processo Civil (2015)]. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: //bit.ly/3gPeeiX. Acesso em: 10 jul. 2020.5 DIDIER JUNIOR. Fredie. Sobre dois importantes, e esquecidos, princípios do processo: adequação e adaptabilidade do procedimento, in Revista dos Mestrandos em Direito Eco-nômico da UFBA n. 9. jan-dez 2001, 422 páginas - Salvador: Curso de Mestrado em Direito Econômico da UFBA., 2001, p. 227.6 LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Duplo Grau de Jurisdição no Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 154.

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Ao negar provimento ao recurso, mantendo a decisão a quo, com o não reconhecimento das comunicações judiciais eletrônicas, o Órgão Julgador denota ter desprestigiado o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo, como sucedâneo do princípio do devido processo legal.

Discorrendo sobre este axioma, Fredie Didier Júnior leciona:

O princípio do devido processo legal deve garantir, ao menos

no ordenamento jurídico brasileiro, o exercício do poder de

autorregramento ao longo do processo. Um processo que li-

mite injustificadamente o exercício da liberdade não pode ser

considerado um processo devido. Um processo jurisdicional

hostil ao exercício da liberdade não é um processo devido, nos

termos da Constituição brasileira. 7

O reconhecimento da importância da liberdade das partes pe-rante o processo é corroborado pela lição de Cândido Rangel Dina-marco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, para quem:

Pelo aspecto puramente técnico-formal a liberdade das par-

tes é assegurada mediante a regra geral de liberdade das

formas, segundo a qual os atos processuais revestir-se-ão,

em princípio, da forma que seu produtor preferir (CPC, art.

188 - infra, n. 132). Mesmo nos casos em que a lei exija forma

especial para o ato (petição inicial, interposição e razões de

recurso etc. - arts. 319, 1.010 etc.) essa exigência é mitigada

pela regra segundo a qual o puro erro de forma não terá con-

sequências maiores do que a anulação do próprio ato, sem

7 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 149/150.

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atingir necessariamente os demais atos do processo (arts. 281

e 283), e pelo princípio da instrumentalidade das formas, re-

gra de superdireito processual destinada a salvar da anulação

os atos cuja irregularidade não haja causado prejuízo e aque-

les que, apesar da irregularidade, tenham atingido o objetivo

(supra, n. 13 - infra, n. 135). Essas mitigações reforçam a liber-

dade formal das partes no processo.8 (grifos acrescidos)

Crê-se que, no contexto, a liberdade das partes foi duplamente violada: na decisão interlocutória proferida pelo Juízo da 1.ª Vara Cí-vel da Comarca de Campinas e, depois, no acordão do AI, da 2.ª Câ-mara Cível do TJ/SP, que a confirmou, quando deveria reformá-la.

Como todo princípio, o do respeito ao autorregramento da vontade não é absoluto, comportando limitações na ponderação com outros concretamente prevalentes9. No art. 190, o legislador processual já se antecipou em especificar algumas dessas ressalvas.

A primeira delas consiste na restrição da prerrogativa de escolha somente a “partes plenamente capazes”. No ponto, impende observar que não consta como argumento da decisão o fato de nenhuma delas ser vulnerável, a despeito de se tratar de demanda sobre relação de consumo. Ainda que houvesse, não se pode decretar a invalidade de plano de um negócio jurídico processual pelo simples fato de existir um vulnerável10. Se a razão da negativa fosse essa, tal fundamento deveria ter sido, no mínimo, explicitado, sob pena de a decisão ser

8 DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 67.9 ÁVILA. Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à á aplicação dos princípios jurí-dicos. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 156.10 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; THIBAU, Vinícius Lott (Coord.). O Direito Privado e o novo Código de Processo Civil: repercussões, diálogos e tendências. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 315.

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tachada de decisum sem motivação adequada11, afrontando o art. 489, § 1º, do CPC12.

A segunda, refere-se à exigência de controle judicial, de ofício ou a requerimento, que, na situação, foi realizada pelo Juízo da 1.ª Vara Cível da Comarca de Campinas, por meio da homologação, na qual deve ter examinado a validade da convenção processual firmada entre as partes para definir que desejavam receber as comunicações do processo mediante correio eletrônico (e-mail) ou aplicativo de chat (WhatsApp).

Por fim, nada sugere a constatação de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão no acordo processual firmado – o que, caso existisse, afastaria a possibilidade de flexibilização legal e, consequentemente, a própria homologação pelo Juízo.

Acrescente-se a essas, o fato de o regramento sobre como as próprias partes desejam ser comunicadas dos atos que lhes digam respeito consiste em claro objeto processual disponível, que em nada fere a natureza pública do processo.

Sobre o assunto, Luiz Guilherme Marinoni acentua que:

Como esses acordos comprometem posições jurídicas das

partes, mas não afetam diretamente a atividade do Estado,

a princípio deverão ser tratados como qualquer acordo en-

tre as partes, exigindo agentes capazes, objeto lícito e forma

prevista ou não proibida por lei. Desse modo, só poderão ser

realizados se o direito for disponível (ou se os seus efeitos,

objeto do processo, sejam disponíveis) e se os sujeitos en-

11 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. O dever de fundamentação adequada das decisões ju-diciais. Disponível em: https://bit.ly/3fJBga2. Acesso em: 08 ago. 2020.12 CPC. Art. 489, § 1º. Art. 489. São elementos essenciais da sentença: [...] II - os fun-damentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito. BRASIL. [Código de Processo Civil (2015)]. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: //bit.ly/3gPeeiX. Acesso em: 10 jul. 2020.

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volvidos forem capazes – ou, pelo menos, se o sujeito que se

obriga e pode ser prejudicado pelo acordo for capaz. 13

De acordo com Dinamarco e Lopes, a eventual submissão a limitações e a necessária homologação judicial não retiram do ajuste celebrado entre as partes a sua natureza de negócio jurídico. Em suas próprias palavras:

As limitações a que essa liberdade das partes se sujeita e a

necessária aprovação do ajuste pelo juiz (CPC, art. 190, par.

único) não infirmam sua qualificação como negócios jurídicos,

porque nenhum destes é totalmente livre, estando todos eles

sujeitos à compatibilidade com superiores regras de direito,

inclusive constitucional, quando for o caso.14

Assim, como todos os requisitos de composição de um negócio processual idôneo revelam-se atendidos no caso concreto, as decisões, tanto do juízo a quo, recorrida, quanto do a quem, confirmadora, a priori, denotam aparente irrazoabilidade.

3. A NATUREZA DE ATO JURÍDICO PERFEITO E A POSSÍVEL INCONSTITUCIONALIDADE DAS DECISÕES

Conforme o relatório da decisão no AI, o acordo de vontades firmado pelas partes foi “homologado pelo juízo de origem”, de modo que se tornou verdadeiro negócio jurídico processual – um

13 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil [livro eletrônico]: Teoria Geral do Processo Civil. Vol. I. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, ebook, n.p.14 DINAMARCO; LOPES, op. cit., p. 188.

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ato jurídico perfeito, cuja proteção decorre diretamente da Consti-tuição da República, nos termos do art. 5.º, inciso XXXVI15.

A definição de ato jurídico perfeito é prevista no art. 6.º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB) – Decreto-Lei nº 4.657/194216.

A respeito, André Ramos Tavares17 desmistifica o sentido da expressão legislativa “consumado”, presente no mencionado art. 6.º da LINDB, esclarecendo que “o ato jurídico perfeito é aquela relação reconhecida pelo Direito que já se completou em sua inteireza, ainda que não tenha produzido todos os efeitos previstos no momento de sua finalização”.

Ou seja, o negócio jurídico processual firmado entre as partes recebeu esse atributo a partir da aposição de suas assinaturas, como manifestação visível de suas legítimas vontades, e se perfez (se aperfeiçoou) com a homologação judicial.

Por consequência, com a desconsideração do ato jurídico já aperfeiçoado, as decisões ora sob crítica, salvo melhor juízo, incidiram em inconstitucionalidade substancial, na medida em que o Poder Judiciário não poderia (ou não deveria) carimbar de nula uma relação jurídica livremente consolidada, por apego à estrita legalidade, quando o próprio ordenamento jurídico permite a sua superação episódica.

15 Art. 5.º, XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://bit.ly/2YwD5lh. Acesso em: 10 jul. 2020.16 Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957).§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957). BRASIL. [Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (1942)]. Lei de Introdução ao Direito Brasileiro. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: //bit.ly/2DDBhyZ. Acesso em: 10 jul. 2020.17 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, ebook, n.p.

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Ressalte-se que o descumprimento, por uma das partes, de obrigação firmada em relação bilateral – na verdade, trilateral, pois depende do consentimento do Juiz – não é capaz de desfazer o compromisso avençado. Imagine-se, por exemplo, se o juiz tornasse nulo o contrato de locação porque o inquilino não quer mais pagar os aluguéis.

Da mesma forma, o sinalagma firmado para regular eventos processuais em que ao menos uma das partes não mais pretenda a ele se submeter deve ter o seu desfazimento promovido pela resilição bilateral ou distrato, como forma mais adequada ao fim da relação – o que se dá mediante nova exteriorização de vontade entre os mesmos sujeitos, como prevê o art. 472 do CC18.

Ao desconsiderar a convenção processual, a Câmara paulista acabou por presumir a existência de motivo para uma rescisão – instituto que atinge a origem do ato –, que, na verdade, não houve. Corroborando essa visão, a lição de Nelson Rosenvald:

Assim como a invalidade, a rescisão se localiza na gênese da

relação obrigacional – sem que com aquela se confunda –,

enquanto a resolução, resilição e o distrato acometem uma

relação originariamente perfeita, cuja perda de eficácia é su-

perveniente.19

A proteção da garantia dos efeitos do ato jurídico perfeito está atrelada à necessidade de se conceder segurança jurídica às relações contratuais, segundo o profícuo magistério da constitucionalista Ana Paula de Barcellos:

18 Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato. BRASIL. [Código Civil (2002)]. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://bit.ly/3hGYSxI. Acesso em: 22 jun. 2020.19 GODOY, Claudio Lufa Bueno de; e et al. Coordenação: Cezar Peluso. Código civil comen-tado: doutrina e jurisprudência. 12. ed., rev. e atual. São Paulo: Manole, 2018, p. 504.

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O terceiro fim realizado pela legalidade formal envolve a cria-

ção e a preservação de um ambiente de segurança jurídica. A

segurança é um princípio que admite vários desdobramentos,

mas, para os fins aqui em discussão, duas ideias são essenciais

à sua realização: estabilidade para o passado e previsibilidade

para o futuro. Em nome da estabilidade, protegem-se os atos

pretéritos e seus efeitos, abrigando-os em categorias como

ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. A pre-

visibilidade visa permitir o planejamento da própria conduta e

o resguardo das expectativas legítimas, imunizando os indiví-

duos contra a atuação administrativa abusiva, surpreendente

ou incoerente. 20 (grifos acrescidos)

O conceito de segurança citado por Barcellos não exclui, por óbvio, a segurança jurídica decorrente do devido processo legal.

Portanto, a decisão judicial criticada sugere a existência de violação a normas processuais constitucionais, na medida em que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil”, nos termos do art. 1.º do CPC21.

20 BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018, ebook, n.p.21 BRASIL. [Código de Processo Civil (2015)]. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: //bit.ly/3gPeeiX. Acesso em: 10 jul. 2020.

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4. O PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS E A IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE NULI-DADE SEM PREJUÍZO (PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF)

A presente crítica avança, ainda, pelo estudo das invalidades, haja vista o pacto processual de regulação das intimações eletrônicas ter sido considerado nulo.

Observe-se que, a despeito da decretação da nulidade, o acórdão no AI não aponta ter havido prejuízo para o agravado – elemento essencial para que a Câmara Cível do TJ paulista pudesse expurgar o ato negocial do mundo jurídico, como o fez.

Há muito, vige em nosso ordenamento jurídico a teoria de origem francesa pas de nullité sans grief que, no CPC, tem sua base axiológica fundada principalmente nos artigos 27722 e 28323, que dão suporte ao princípio da instrumentalidade.

Sobre essa teoria, a doutrina de Marinoni, Arenhart e Mitidiero, com forte embasamento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), esclarece:

2. Pas de nullité sans grief. Não será decretada a invalidade de

nenhum ato processual se o vício apontado não causar prejuízo

aos fins de justiça do processo, se não violar o direito funda-

mental ao processo justo (STJ, 2ª Turma REsp 725 984/PR REL.

22 Art. 277. Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade. BRASIL. [Código de Processo Civil (2015)]. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presi-dência da República, [2020]. Disponível em: bit.ly/3gPeeiX. Acesso em: 10 jul. 2020.23 Art. 283. O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo ser praticados os que forem necessários a fim de se observarem as prescrições legais. Parágrafo único. Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte. BRASIL. [Código de Processo Civil (2015)]. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: bit.ly/3gPeeiX. Acesso em: 10 jul. 2020.

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Min. Humberto Martins, j. em 12/09/2006, DJ 22.09.2006,

p. 251). A decretação de nulidade dos atos processuais de-

pende de efetiva demonstração de prejuízo (STJ, 1.ª Turma,

RMS 18.923/PR, rel. Min. Teori Zavascki, j. em 27.03.2007, DJ

04.2007, p. 210). 24

O Enunciado 16 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) 25, tratando especificamente sobre o aplicado parágrafo único do art. 190 do CPC, recomenda uma convivência harmoniosa entre o controle judicial do contrato procedimental e a referida teoria de sobrevivência do ato ameaçado. No mesmo FPPC, foi aprovado o Enunciado 1926, que explicita ser possível o estabelecimento da “previsão de meios alternativos de comunicação das partes entre si” como objeto de negócios processuais.

Portanto, a nulidade declarada na decisão colegiada do Órgão Especial do TJ/SP parece, por mais esse motivo, ter adotado posição na contramão do que prevê o ordenamento pátrio para o caso que lhe foi submetido.

24 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e; MITIDIERO, Daniel. Novo Códi-go de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2017, pág. 376.25 FPPC. 16. (art. 190, parágrafo único) O controle dos requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo. (Grupo: Negócio Processual). ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. Disponível em: //bit.ly/2DwKEQW. Acesso em: 13 jul. 2020, p. 9.26 FPPC. 19. (art. 190) São admissíveis os seguintes negócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natu-reza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo de recurso, acordo para não promover execução provisória; pacto de mediação ou conciliação extrajudicial prévia obrigatória, inclusive com a correlata previsão de exclusão da audiência de conciliação ou de mediação prevista no art. 334; pacto de exclusão contratual da audiência de conciliação ou de mediação pre-vista no art. 334; pacto de disponibilização prévia de documentação (pacto de disclosure), inclusive com estipulação de sanção negocial, sem prejuízo de medidas coercitivas, man-damentais, sub-rogatórias ou indutivas; previsão de meios alternativos de comunicação das partes entre si. 15-16. (Grupo: Negócio Processual; redação revista no III FPPC- RIO e no V FPPC-Vitória). ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. Disponível em: //bit.ly/2DwKEQW. Acesso em: 13 jul. 2020, p. 9.

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5. O PRINCÍPIO DA VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM PROCESSUAL

A postura antagônica do Juízo da 1.ª Vara Cível da Comarca de Campinas em homologar a convenção processual, possibilitando a intimação por e-mail ou WhatsApp, e a que se seguiu, cassando o negócio firmado, caracteriza autêntica venire contra factum proprium processual (proibição de comportamento contraditório), violadora dos princípios da boa-fé e da lealdade processual.

A respeito, Daniel Assumpção Amorim Neves sistematiza os requisitos do instituto da proibição do comportamento contraditório da seguinte forma:

A máxima venire contra factum proprium impede que deter-

minada pessoa exerça direito do qual é titular contrariando

um comportamento anterior, já que tal conduta despreza a

confiança e o dever de lealdade. Segundo a melhor doutrina,

há quatro pressupostos para aplicação da proibição do com-

portamento contraditório: (a) uma conduta inicial; (b) a legí-

tima confiança de outrem na conservação do sentido objeti-

vo dessa conduta; (c) um comportamento contraditório com

este sentido objetivo; (d) um dano ou um potencial de dano

decorrente da contradição. No processo é máxima ampla-

mente consagrada, inclusive pelo legislador, como ocorre na

aquiescência prevista no art. 1.000 do Novo CPC, pela juris-

prudência, que não admite o comportamento contraditório

das partes’’ e pela doutrina. 27

27 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018, p. 209.

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INTIMAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO

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Segundo a previsão normativa constante no art. 5.º do CPC, “aque-le que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”, esclarecendo que o dever de boa-fé objetiva pro-cessual não se restringe às partes, mas se estende também ao juiz que, como aquelas, é igualmente participante do processo.

Nessa linha, o Enunciado 376 do FPPC explicita que ‘’a vedação de comportamento contraditório aplica-se ao órgão jurisdicional”28.

Segundo o magistério de Didier Júnior, a venire se aplica não só diante de relações privadas, mas também em matéria de ordem públi-ca. Senão, confira-se:

Não parece razoável, de fato, defender que a ilicitude deri-

vada de comportamento contraditório possa ficar restrita

apenas ao âmbito das chamadas anulabilidades ou nulidades

relativas processuais. A ideia de que as nulidades processu-ais estariam relacionadas a normas cogentes, de “ordem pú-blica” (expressão que não encampamos, embora corriquei-ra), e que, portanto, a elas não se poderia aplicar a regra da proibição do venire (eis que se trata de regra relacionada à autonomia privada) não parece adequada com os postula-dos da atual hermenêutica. Parte-se de uma premissa de que

sempre, em eventual conflito entre o interesse particular e

um interesse protegido por norma cogente, esse prepondera

sobre aquele, pouco importam as peculiaridades do caso con-

creto. Sucede que a melhor solução não é essa.

A proteção da boa-fé objetiva também é manifestação do in-

teresse público. 29 (grifos acrescidos).

28 ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. Disponível em: //bit.ly/2DwKEQW. Acesso em: 13 jul. 2020, p. 50.29 FREDIE, op. cit., p. 470.

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Junior Gonçalves Lima; Ubirajara Coelho Neto

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Obviamente, não se está a se defender que o negócio processual em contexto não pudesse ser desconstituído, mas desde que fundado em razões processualmente democráticas para tanto.

Sendo de ordem pública, o não reconhecimento, de ofício, pela 2.ª Câmara do TJ/SP, da venire contra factum proprium ocorrida no primeiro grau, corrobora o equívoco da sua decisão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Acórdão no AI da 2ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP ser-viu como um excelente pano de fundo para o exame da ponderação entre a obediência à legalidade estrita e o princípio da autorregula-ção da vontade.

Nesse embate, o CPC de 2015 parece ter, aprioristicamente, querido se desvencilhar de mandamentos absolutos de legalidade, preferindo princípios que afastem formalismos desnecessários do processo, de maneira a lhe conceder mais celeridade, efetividade e economia.

Nessa missão, o conhecido princípio da instrumentalidade das formas corrobora a tarefa de conceder maior fluidez ao processo, diante de um sistema, a despeito da recente reforma, aqui e acolá, ainda com marcas de burocracia. De modo que, a tendência aponta para o prestígio da autonomia da vontade das partes na confecção de negócios jurídicos processuais a fim de purgar essas manchas.

Prova disso, a pandemia da COVID-19 revelou a importância da tecnologia como aliada do processo, com o uso de aplicativos de mensagens instantâneas e correio eletrônico como hábil instru-mento de otimização de acesso à justiça. Sua aplicação deixou de ser uma opção para se tornar uma necessidade de todos, inclusive para os agentes envolvidos no sistema de justiça, tornando premen-te a adaptação à nova realidade, não apenas na interação entre o juí-

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INTIMAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO

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zo e as partes, mas em tarefas até mais complexas, como na oitiva à distância de testemunhas, em processos de violência doméstica e em audiências de custódia.

Por isso, com o devido respeito, entende-se que a decisão analisa-da encontra-se desconectada de seu tempo, na contramão da moder-na visão do processo, ao fixar a obrigatoriedade de método tradicional de diálogo do Judiciário para com as partes por um caprichoso apego a uma legalidade estéril, mesmo dispondo de alternativas inovadoras de interação com seu público, concessivas de rapidez, eficiência e se-gurança no trâmite processual.

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Junior Gonçalves Lima; Ubirajara Coelho Neto

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A PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS: POR UMA LITIGÂNCIA RESPONSÁVEL E ESTRATÉGICA

daniel iGHor leite Mota*1

aManda inêS MoraiS SaMpaio**2

ResumoO presente trabalho aborda a nova perspectiva conferida pelo Código de Processo Civil de 2015 à ação de produção antecipada de provas. Para tanto, realiza-se uma análise sobre a nova visão que gira em torno do direito au-tônomo à prova, a qual foi utilizada como inspiração para a reestruturação da ação probatória autônoma. Faz-se uma análise sobre as novas hipóteses de cabimento da produção antecipada, bem como das principais inovações procedimentais. Por fim, através do método dedutivo, procede-se ao estu-do sobre os impactos pragmáticos da referida ação, sobretudo no tocante a estimulação da litigância responsável e da possibilidade de utilização estra-tégica no exercício da advocacia. Palavras-chave: Advocacia estratégica. Litigância responsável. Provas. Pro-dução antecipada de provas.

1 Graduado em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT). Especialista em Direito Pro-cessual Civil pela Escola Judicial de Sergipe (EJUSE). Advogado. Professor de Direito Pro-cessual Civil. E-mail: [email protected] Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Ser-gipe (PRODIR/ UFS), com bolsa Capes. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Judicial de Sergipe. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT). Membro do Grupo de Pesquisa Eficácia dos Direitos Humanos e Fundamentais: seus reflexos nas relações sociais (GEDH/UFS/CNPq). Advogada. E-mail: [email protected].

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A PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS

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AbstractThis research addresses the new perspective conferred by the Civil Procedu-re Code of 2015 to the action of early production of evidence. To this end, an analysis is made of the new vision that revolves around the autonomous right to proof, which was used as an inspiration for the restructuring of autonomous probationary action. An analysis is made of the new hypotheses for the antici-pated production, as well as of the main procedural innovations. Finally, throu-gh the deductive method, we proceed to the study of the pragmatic impacts of that action, especially with regard to stimulating responsible litigation and the possibility of strategic use in the practice of law.Keywords: Advance production of evidence. Evidences. Responsible litigation. Strategic advocacy.

INTRODUÇÃO O Código de Processo Civil (CPC) vigente trouxe novos institutos

e reformulou diversos que já existiam, inclusive no que concerne ao direito probatório. Aliás, dentre as mudanças de maior aspecto práti-co insere-se a produção antecipada de provas, que recebeu um trata-mento mais detalhado pela Lei 13.105/2015, sobretudo com grandes inovações no tocante ao cabimento do referido procedimento.

As referidas mudanças possuem aptidão de gerar relevantes efeitos práticos e têm sido objeto de um estudo mais aprofundado pela doutrina do que era realizado perante o CPC revogado. Tra-tando-se, assim, do objetivo geral do presente trabalho, em que se propõe a analisar a nova perspectiva que gira em torno do direito à prova e de sua produção antecipada, abordando as modificações es-truturais mais relevantes trazidas pelo estatuto processual vigente.

De igual modo, é objeto de análise a nova visão dada ao direito à prova em si, à luz do Código de Processo Civil vigente e da evo-lução doutrinária sobre o tema. Aliado a isso, adentrou-se no es-tudo da reestruturação da ação de produção antecipada de provas

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no tocante ao seu cabimento, bem como em relação aos principais aspectos procedimentais.

Buscando um viés pragmático, analisa-se a produção probatória antecipada como instrumento voltado à litigância responsável, à luz das normas balizadoras do modelo constitucional de processo. Foram abordados os benefícios da utilização do referido procedimento, como forma de evitar penalizações por violação aos deveres cooperativos.

Por fim, realiza-se uma abordagem voltada às mudanças que a nova estrutura da produção antecipada de provas proporciona, especificamente em relação a uma advocacia estratégica. Abordam--se as principais riquezas do procedimento, com a exemplificação de problemas práticos que podem ser resolvidos com a produção probatória antecipada.

Para a construção do presente estudo, priorizou-se, metodolo-gicamente, a revisão bibliográfica em livros, artigos e documentos. Além disso, realizou-se uma pesquisa num viés do método dedutivo, ao partir do estudo geral sobre o tema, qual seja, o instituto das pro-vas no âmbito do direito processual civil, para o objetivo geral que é a análise da produção antecipada de provas.

1. A NOVA PERSPECTIVA ACERCA DA PROVA À LUZ DO CPC/2015

Dentre o rol de direitos e garantias fundamentais, a Constitui-

ção Federal estabelece como pilares do processo o contraditório e ampla defesa, de acordo com a disposição expressa no artigo 5°, LV. (BRASIL, 1988, n.p.)1.

É inerente ao contraditório substancial e a ampla defesa o as-

1 “Art. 5º (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

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seguramento de que as partes tenham o poder de influenciar o Es-tado-juiz acerca da veracidade ou inveracidade das diversas alega-ções realizadas do processo, o que apenas pode ser concretizado mediante o exercício do direito à prova.

Sobre o direito constitucional à prova, discorre Assis (2016, p. 472): “o direito à prova, adquirido pelas partes no quadro mínimo traçado, integra o direito de acesso à justiça, decorre do contradi-tório e visa a influir no convencimento do juiz”.

A busca pela conceituação da prova não é uma inquietação ape-nas do Direito. Trata-se de uma busca incessante também por mui-tos ramos do conhecimento humano, conforme reconhecem Mari-noni e Arenhart (2015, p. 49):

Antes de mais nada, impõe-se lembrar que o conceito de pro-

va não é, nem pode ser encontrado exclusivamente no campo

do direito. Ao contrário, trata-se de noção comum a todos os

ramos da ciência, como elemento para a validação dos pro-

cessos empíricos. Todavia, no seio do direito, a prova assume

alguns matizes especiais que permitem observação particu-

larizada.

No Direito, especialmente na ciência processual, a doutrina também não é unânime na definição do que seja a prova, em verda-de reconhece-se o seu sentido como plurissignificante. (MARINO-NI; ARENHART, 2015, p. 49)

Quando se estar a falar da atividade probatória desenvolvida em um processo, o conceito mais difundido é o de que a prova é o elemento que se destina a afirmar ou infirmar uma alegação, na maioria das vezes voltada aos fatos controvertidos, dado o princípio iura novit curia (o juiz conhece o direito):

Por isso, para a lei processual, os meios legais de prova e os

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moralmente legítimos são empregados no processo “para

provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a

defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”(NCP-

C,art.369). São, pois, os fatos litigiosos o objeto da prova. O

direito ordinariamente não se prova, pois iura novit curia

(THEODORO JUNIOR, 2015, p. 853).

Na égide do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL, 1973, n.p.), a utilização da prova era vista basicamente como cumprimento de um ônus, ou seja, reconhecia-se o caráter meramente instrumental do instituto, no sentido de que, em regra, apenas se justificaria a sua produção quando houvesse uma pretensão expressa a fim de atri-buir consequência jurídica ao fato que se pretendia provar.

Em síntese, em uma ação se formulava um pedido, mesmo que apenas de cunho declaratório, e utilizava-se a prova no sentido de provar a alegação realizada a auferir, então, a procedência do pleito realizado. A prova era vista apenas como um meio para atingir algo, que em regra já deveria ser pedido, a exemplo de uma condenação em danos materiais, morais etc.

Aliado a isso, também se tinha a noção de que a prova em sentido subjetivo servia unicamente para gerar convicções no íntimo do julga-dor. A propósito, o juiz seria o legítimo destinatário da prova produzi-da em um processo, tanto é que possuía maior controle em relação a produção dos meios probatórios requeridos. “Em nosso entender, as normas que disciplinam as provas não pertencem exclusivamente ao campo do Direito Material, o que se daria se seu objetivo único fosse o convencimento da parte contrária e não o do juiz, que, na verdade, é , por excelência, o destinatário da prova” (ALVIM, 2013, p. 961).

A Lei 13.105/15 que instituiu o Código de Processo Civil vigen-te, atendendo a uma evolução doutrinária sobre a conceituação e a destinação da prova, trouxe diversas mudanças nos aspectos até

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então abordados no presente estudo. No tocante a definição da prova, o CPC atual deu maior ênfase

no sentido de que a prova não é apenas um elemento instrumen-tal, no sentido de provar uma alegação e atrair uma consequência jurídica pleiteada para o fato comprovado, mas sim um verdadeiro direito de todo cidadão.

A referida conclusão pode ser extraída da própria mudança da expressão utilizada pelo legislador. Veja-se a linguagem utilizada no Código revogado (BRASIL, 1973, n.p.): “Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especifi-cados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.

Já no Código vigente o legislador ao invés de enfatizar apenas o objetivo da prova, inicia o texto reconhecendo que as partes têm um verdadeiro direito à prova, de acordo com a disposição do artigo 369 (BRASIL, 2015, n.p.)2: “As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não es-pecificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”.

De acordo com o próprio texto legal, a prova não pode ser vista como um mero ônus, mas também como um direito do cidadão. Assim, balizou-se a mudança na nova perspectiva trazida para a ação de pro-dução antecipada de provas, que será abordada em subtópico posterior.

Assim discorre Theodoro Júnior (2015, p. 912):

O direito positivo anterior cuidava da prova antecipada sem-

pre tendo em vista sua utilização em processo futuro e, por

isso, regulava o instituto a partir do fundamento de que a

2 Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os mo-ralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

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antecipação se justificaria pelo risco ou dificuldade da res-

pectiva produção na fase adequada do procedimento normal.

Havia, no entanto, construção doutrinária que defendia a

existência de um direito autônomo à prova, exercitável, em

determinadas circunstâncias, sem cogitar de qualquer futuro

processo. (2015, p.912)

Com a nova perspectiva, a prova perde parte de sua coadjuva-ção no processo, ou seja, a visão retrógrada de que apenas poderia ser produzida, quando a parte manifestasse ou tivesse a intenção de manifestar uma pretensão concreta para a consequência jurídica que deveria ser atribuída ao fato investigado.

Da mesma forma, o código buscou instituir um modelo proces-sual cooperativo/colaborativo, de modo que o Estado-juiz perdeu seu protagonismo na condução do processo, o que mudou também a visão unidirecional acerca da destinação da prova.

Segundo Mitidiero (2019, p. 72) o juiz passa a ser simétrico no debate e assimétrico na decisão, a partir do modelo colaborativo que foi reconhecido legalmente:

Mais adequado, portanto, pensar mesmo em um juiz paritá-

rio no diálogo e assimétrico na decisão para caracterização

do papel do juiz no Estado Constitucional. Da combinação

dessas duas faces do Estado Constitucional e de suas mani-

festações no tecido processual surge o modelo cooperativo

de processo, calcado na participação e no diálogo que devem

pautar os vínculos entre as partes e o juiz. (2019, p. 72)

Diante disto, a visão de que a prova importa apenas para con-vencer ao Juízo não se revela mais adequada. De modo que, a busca da verdade no processo passa a ser vislumbrada de forma compar-

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tilhada, reconhecendo-se o total interesse das partes como desti-natárias dos resultados extraídos dos meios probatórios, como res-salta a doutrina:

Daí a necessidade de concluir que também elas, partes, são

destinatárias da prova – e, tal como o juiz, destinatárias di-

retas, visto que o resultado da atividade probatória pode de-

terminar, independentemente da atuação judicial, o rumo de

um processo já instaurado – pense na hipótese de autocom-

posição após a realização de perícia em que os fatos que sus-

tentam a demanda ficaram devidamente demonstrados – ou

mesmo evitar a judicialização de um conflito (DIDIER JR; BRA-

GA; OLIVEIRA, 2018, p. 63).

Sendo assim, nota-se que há uma nova perspectiva em rela-ção ao direito probatório, seja no tocante a caracterização da prova como um direito autônomo da parte, ou na sua ampla destinação para os sujeitos do processo. As novas visões implementadas pelo Código vigente resultaram em uma inovada estruturação da ação de produção antecipada de provas, o que será abordado a seguir.

1.1 A reestruturação da produção antecipada da prova A ação de produção antecipada de provas, assim como diversos

institutos, passou por uma reestruturação. A direção dessa mudan-ça se deu no sentido de alinhar o procedimento com a nova visão trazida para o direito probatório.

Modificação de grande relevância é a amplitude de cabimento do ajuizamento da referida ação, desvinculando-se do viés mera-mente cautelar que possuía no CPC/73. Analisando o artigo 381 do

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CPC3, nota-se foi preservado o cabimento da ação de produção an-tecipada de provas para as situações de urgência, ou seja, nas situa-ções em que a espera pelo momento “normal” de produção enseje a impossibilidade ou dificuldade de verificação dos fatos, mantendo--se, até esse ponto, o que já existia.

Os dois últimos incisos trazem a grande inovação do instituto, alargando em grande escala o cabimento da utilização da referida ação. No inciso II, prevê-se o cabimento da ação para quando “a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito” (BRASIL, 2015, n.p.).

Tal hipótese inovadora ressalta a importância da solução au-tocompositva, um dos pilares do ordenamento vigente. Além disso, coaduna-se no sentido da ampla destinação da prova, ou seja, de que o resultado da produção probante interessa as próprias partes, pois uma vez averiguando corretamente a ocorrência dos fatos, podem avaliar a pertinência do método heterocompositivo de resolução.

O último inciso do referido artigo alarga amplamente o cabi-mento da ação, ao prever que poderá ser ajuizada quando “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de

3 Art. 381. A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que:I - haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação;II - a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito;III - o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.§ 1º O arrolamento de bens observará o disposto nesta Seção quando tiver por finalidade apenas a realização de documentação e não a prática de atos de apreensão.§ 2º A produção antecipada da prova é da competência do juízo do foro onde esta deva ser produzida ou do foro de domicílio do réu.§ 3º A produção antecipada da prova não previne a competência do juízo para a ação que venha a ser proposta.§ 4º O juízo estadual tem competência para produção antecipada de prova requerida em face da União, de entidade autárquica ou de empresa pública federal se, na localidade, não houver vara federal.§ 5º Aplica-se o disposto nesta Seção àquele que pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica para simples documento e sem caráter contencioso, que exporá, em petição circunstanciada, a sua intenção.

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ação”. Deste modo, reconhece-se que a prova é um direito autôno-mo, uma vez que o cidadão pode ajuizar a ação tão somente para ter a correta percepção dos fatos, e, assim, decidir se manifestará eventual pretensão acerca dos fatos provados.

Em síntese, reforça-se que as partes são destinatárias da pro-va, de modo que possuem o direito de inaugurar uma ação, tão somente no intuito de se apoderar da verdade, para, então, mani-festarem qualquer pretensão, seja condenatória, declaratória ou constitutiva.

Sobre o tema afirma Theodoro Júnior (2015, p. 914):

A falta de prova atual, por si só, pode obstar, dificultar ou

simplesmente comprometer a futura defesa de interesses em

Juízo. Por isso, antes de decidir sobre o ingresso em juízo, ou

mesmo sobre a conveniência de não demandar, é justo que o

interessado se certifique da realidade da situação fática em

que se acha envolvido”.

Com o advento das referidas regras, fica difícil imaginar hipó-teses de recusa à ação de produção antecipada de provas, visto que o último inciso do artigo 381 tem grande amplitude, não se exigindo maiores justificativas, que não a de pretender ter a adequada com-preensão da realidade fática.

A competência para a referida ação é do domicílio do réu, con-soante § 2º do artigo 381, tendo o Legislador permanecido com a opção em não estabelecer qualquer regra de prevenção para even-tual ação que tenha como causa de pedir os fatos apurados na pro-dução antecipada. Isso quer dizer que poderá ocorrer de uma ação de produção antecipada de provas tramitar em um Juízo e uma fu-tura ação que manifeste pretensão com base nos fatos apurados seja processada em Juízo totalmente diverso.

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A referida regra segue a lógica de que o Juízo da produção an-tecipada de provas não deve emitir qualquer Juízo de valor sobre os fatos investigados, ou seja, a referida ação possui uma limitação cognitiva, tendo em vista que o Juízo apenas decidirá sobre as ques-tões relacionadas o próprio direito de produção à prova.

Embora a parte autora necessite apresentar as razões que justi-fiquem a necessidade da ação de produção antecipada e os supostos fatos que serão investigados, o Juízo não deve avaliar qualquer futu-ra pretensão que a parte possa ter, ou opinar sobre consequências jurídicas que os fatos provados possam ensejar:

Art. 382. Na petição, o requerente apresentará as razões que

justificam a necessidade de antecipação da prova e mencio-

nará com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair.

(...)

§ 2º O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a

inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências

jurídicas.(BRASIL, 2015)

Tal regra aliada à ausência de prevenção demonstra que nesse procedimento a prova não é coadjuvante, mas sim o objeto único e principal, não havendo uma vinculação necessária ao ajuizamento de futura demanda, até mesmo porque, um dos motivos de cabimento é o de evitar o ajuizamento de ações desnecessárias/temerárias.

Sobre o tema, discorre Talamini (2016, p. 79):

O CPC/2015 (LGL\2015\1656) prevê expressamente que a

medida de produção antecipada não previne a competência

do juízo para a ação que eventualmente se venha a propor

com utilização da prova antes produzida. Essa norma é com-

preensível em face: (a) do caráter não constritivo da medida;

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(b) da ausência de juízo, nem mesmo sumário, sobre o méri-

to da pretensão principal; (c) da eventualidade de uma ação

principal. Tal diretriz, já consolidada sob a égide do Código de

Processo Civil de 1973 (TFR, Súmula 263 (MIX\2010\1211)), é

ainda mais justificável diante da ênfase à autonomia da tutela

à prova no Código de Processo Civil de 2015.

Diversamente do CPC/73, a Lei processual vigente sustenta expressamente que não se admite defesa ou recurso na ação de produção antecipada de provas, como se observa: “Art. 382 (...) § 4º Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo con-tra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário” (BRASIL,1973).

A doutrina propõe uma interpretação conforme à constituição em relação ao referido parágrafo, pois, o que não se deve admitir são discussões relativas a futuras pretensões baseadas nos fatos discutidos, sendo cabível a discussão sobre o próprio direito à pro-dução da prova, conforme discorre Talamini (2016, p. 82):

No Código de Processo Civil de 2015, o tratamento dado ao tema

é ainda pior que o do diploma anterior. O seu art. 382, § 4.º, es-

tabelece que “não se admitirá defesa” no processo de produção

antecipada. Tal dispositivo exige interpretação que o salve da

inconstitucionalidade (CF (LGL\1988\3), art. 5.º, XXXVI, LIV e

LV).27 Não há dúvidas de que o juiz detém poder para, mesmo

de ofício, controlar (i) defeitos processuais, (ii) a ausência dos

pressupostos da antecipação probatória e (iii) a admissibilidade

e validade da prova. Logo, o requerido tem o direito de provo-

car decisão do juiz a respeito desses temas. A suposta proibição

de defesa deve ser compreendida apenas como: (a) ausência de

uma via específica para formulação de contestação e (b) não ca-

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bimento de discussão sobre o mérito da pretensão (ou defesa)

para a qual a prova pode servir no futuro.

Como se observa, a grande modificação estrutural do Código em relação a produção antecipada de provas diz respeito ao seu cabimento, desvinculando-a em parte da tutela cautelar, pois admi-tida amplamente para tutelar a prova como um verdadeiro direito autônomo, que para ser exercido, por óbvio, não precisa estar atre-lada a qualquer outra pretensão, que não a de se apurar a realidade fática. Pode-se afirmar que, a nova estruturação mais detalhista e ampla do CPC gera reflexos na forma de litigar e na atuação estra-tégica em relação ao processo.

2. O PRAGMATISMO NA UTILIZAÇÃO DA PRODUÇÃO AN-TECIPADA DA PROVA

A produção antecipada de provas, na forma em que foi trazida pelo Código de Processo Civil, tem grande importância pragmática. Consecutivamente, apresenta-se como um tema apto a revolucio-nar a prática jurídica.

Diante disso, convêm abordar os aspectos práticos da utilização do instituto aqui abordado, sobretudo no tocante à contribuição para o modelo constitucional do processo, além da própria estraté-gia que deve ser formulada pelo advogado.

2.1 A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA LITIGÂNCIA RESPONSÁVEL

O direito de ação, ou seja, o de provocar o poder judiciário inaugurando uma relação processual com uma pretensão, não é vinculado a existência do direito material postulado, conforme tese prevalecente na doutrina. Diz-se que o direito de ação é um direito

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totalmente autônomo, pois, o fato de o pedido vinculado na deman-da ser julgado improcedente, não induzirá qualquer reconhecimen-to de que o autor não teria o direito de ir ao judiciário pedindo um provimento jurisdicional.

Neste sentido, Donizeti (2016, p. 134) afirma que:

É certo que o exercício do direito de ação (ou seja, o direito

de provocar a jurisdição) é incondicionado e autônomo, quer

dizer, independe da existência do direito material que se ale-

ga discutir. A Constituição Federal, aliás, considera garantia

fundamental o direito de ver apreciada em juízo a lesão ou

ameaça de lesão (art. 5º, XXXV).

A parte tem o direito a um julgamento, seja procedente ou im-procedente, sendo este a base do direito de ação, o qual faz parte da trilogia estrutural do processo. Entretanto, o fato de o referido direito de ação não estar atrelado ao sucesso do direito material não impede o reconhecimento de abusos, conforme regra estabelecida de forma geral pelo artigo 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifesta-mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).

Diante disto, o Código busca alcançar um processo em que exista uma litigância responsável, exigindo diversos deveres da par-te, a exemplo da boa-fé objetiva, estatuída no artigo 5º do Código de Processo Civil. Ou seja, há casos em que, embora sem intenção, o ajuizamento de determinada ação pode ser considerado temerário, o que deve ser objeto de consideração pelo litigante ao analisar a viabilidade do ajuizamento de sua ação.

Neste contexto, insere-se a importância da produção antecipa-da de provas, pois com o alargamento do seu cabimento, o litigante

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que não possui a “certeza” da percepção dos fatos dos quais preten-de extrair determinada consequência jurídica, pode utilizar a ação probatória autônoma como meio de evitar lides temerárias. Como se observou no tópico anterior, a produção antecipada de provas pode ser ajuizada, para fins de justificar ou evitar o ajuizamento de ação, no sentido de que todo aquele que possuir graves dúvidas sobre a dinâmica dos fatos, ou até mesmo quiser ter um subsídio probatório mais seguro, poderá se socorrer do procedimento aqui estudado.

Logo, diante dessa possibilidade, não se justifica que demandas sejam ajuizadas por meros “achismos”, sob a justificativa da ampli-tude do direito de ação. Embora a ação de produção antecipada de provas não seja uma etapa obrigatória, deve ser observada pelos li-tigantes, sempre que houver relevantes dúvidas, no sentido de ob-servância da boa-fé objetiva.

Sobre a boa-fé objetiva no processo civil, discorrem Didier Jú-nior, Braga e Oliveira (2018, p. 143) que “a boa-fé objetiva é uma nor-ma de conduta: impõe e proíbe condutas, além de criar situações jurídicas ativas e passivas. Não existe princípio da boa-fé subjetiva”.

Uma vez que a Lei dispõe de um procedimento que visa reduzir incertezas proporcionando uma maior segurança para a parte, este não pode passar simplesmente desapercebido, sobretudo quando houver elementos altamente duvidosos e insuficientes. É o que en-sina Theodoro Júnior (2015, p. 914): “obtendo provas elucidadoras previamente, evitar-se-ia demanda temerária ou inadequada à real situação da controvérsia. Esclarecida a quadra fática, facilitar-se-ia a autocomposição, ou até mesmo se evitaria o ingresso em juízo com demanda desnecessária e inviável”.

Com a produção antecipada de provas, deve existir diminuições das justificativas apresentadas pelas partes, de que o ajuizamento de lides consideradas temerárias ocorre por uma inadequada per-

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cepção fática do autor, a qual só poderia ser esclarecida com a fase instrutória do processo.

No modelo constitucional de processo, que é cooperativo e que valoriza a boa-fé, a produção antecipada de provas se mostra de grande valia para o aprimoramento de uma litigância responsável, evitando-se, por consequência, a submissão desnecessária de al-guém a lides ajuizadas sem um real substrato fático.

Portanto, o alargamento do cabimento da produção antecipada de provas cria um ambiente propício a estimulação do ajuizamento de ações com responsabilidade, evitando-se as demandas ajuizadas por simples suspeitas, ou seja, as intituladas “aventuras judiciais”.

2.2 A PRODUÇÃO ANTECIPADA COMO INSTRUMENTO DE UMA ADVOCACIA ESTRATÉGICA

Aliada a contribuição no tocante à litigância responsável, a pro-dução antecipada de provas também contribui para uma advocacia estratégica, aumentando a chance de êxito na demanda, diminuin-do os riscos financeiros, entre diversos outros benefícios. Quan-do o advogado propõe uma demanda em representação técnica de seu cliente, espera-se que ele tenha efetuado diligências prévias, no sentido de averiguar a viabilidade daquela ação.

Entretanto, nem sempre o panorama vislumbrado pelo pro-fissional jurídico no início de sua contratação permanece hígido durante a fase probatória, seja por informações inverídicas pres-tadas, ou até mesmo por situações que se mostravam imprevisíveis até mesmo para o seu cliente. Claramente, com frequência foge aos clientes o conhecimento acerca das técnicas processuais que de-vem ser adotadas pelo patrono, o qual é responsável por estabelecer a estratégia processual a ser seguida, ou seja, o melhor caminho para o reconhecimento e efetivação do direito material sustentado.

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Incumbe, então, analisar alguns dos benefícios estratégicos na utilização da produção antecipada de provas, o que pode imple-mentar em uma nova forma da advocacia raciocinar o direito pro-cessual. Um dos principais benefícios da ação aqui estudada é a sua utilização como estratégia para evitar o risco financeiro existente nas demandas, sendo uma alternativa para averiguar a viabilidade efetiva de eventual pretensão.

Embora a utilização do processo seja lícita, mesmo diante da negativa dos pedidos formulados, existe um risco financeiro em caso de sucumbência, o que se denomina como verbas sucum-benciais, a exemplo do que dispõem os artigos 82, §2º e 85 do CPC (BRASIL, 2015, n.p.)4.

Logo, o simples fato de ter negado o que foi pedido, embora não caracterize uma conduta ilícita na utilização do direito de ação, gera prejuízos patrimoniais para aquele que foi derrotado, o que é, inclusive, um dos estímulos à litigância responsável.

Em situações que o detentor de provável direito não tenha um grande arcabouço probatório, este irá se encontrar em um dilema, ou renuncia a sua pretensão, ou então corre o risco de ajuizar a ação com diversos elementos de insegurança.

Diante disto, surge-se como estratégia a utilização da produção antecipada de provas, tendo como hipótese de cabimento o inciso II do artigo 381 do CPC (BRASIL, 2015, n.p.), ou seja, com o fim de justificar ou evitar o ajuizamento de determinada ação.

Como o direito que versa a ação de produção antecipada é a própria prova, não podendo o Estado emitir Juízo de valor sobre

4 Art. 82. Salvo as disposições concernentes à gratuidade da justiça, incumbe às partes prover as despesas dos atos que realizarem ou requererem no processo, antecipando-lhes o pagamento, desde o início até a sentença final ou, na execução, até a plena satisfação do direito reconhecido no título. (...) § 2º A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou.Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.

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eventuais consequências jurídicas dos fatos apurados, em regra não existirá verbas sucumbenciais naquele procedimento.

Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ape-nas existirá a fixação de verbas sucumbenciais na ação de produção antecipada de provas, em caso de resistência ao próprio direito de produção da prova.

A exemplo, o requerido pode opor defesa no sentido de que o meio de prova requerido é ilícito ou moralmente ilegítimo. Nes-te caso, existirá sucumbência de alguma das partes, em relação ao próprio direito à prova, o que ensejará a fixação das verbas sucum-benciais5.

Logo, uma vez que em regra não há risco financeiro na ação de produção antecipada de provas, esta deve servir estrategicamente, no sentido de além de promover uma litigância responsável, evitar o ajuizamento de ações que findariam em uma sucumbência para a parte, ou enrijecer aquelas que embora tivessem pertinência apa-rentavam que iriam findar ao insucesso.

Sobre o tema, discorre Theodoro Júnior (2015, p. 914):

De fato, se a lei processual civil impõe o dever de veracidade

na condução do processo (art. 77, I), é natural que não se lhes

recuse o acesso ao prévio esclarecimento dos fatos, por meio

de prova antecipada, sempre que não dispuserem de elemen-

tos suficientes para conhecer e retratar, desde logo e com

maior precisão, o suporte fático sobre que versará o processo

futuro. Só assim se terá como exigir-lhes que os fatos sejam

expostos em juízo, “conforme a verdade” e, até mesmo, have-

5 1. Na ação cautelar de produção antecipada de provas, somente é devida a condenação da requerida ao pagamento dos ônus da sucumbência quando caracterizada a resistência injustificada à pretensão da requerente, pela parte requerida, e essa restar vencida. - Pre-cedentes. Súm. 83/STJ. (AgInt no AREsp 1341504/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 28/06/2019) (BRASIL, 2019, n.p.) (Grifou-se).

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rá condição de evitar o aforamento de demanda inviável ou

mal proposta. (2015, p. 914)

Outrossim, além da diminuição dos riscos financeiros, existe outro aspecto bastante relevante no tocante a produção antecipada da prova, que é o de fornecer ao advogado elementos mais seguros inerentes à realidade fática, de modo a poder elaborar uma ação com argumentações voltadas à prova já produzida, explorando em grande teor o seu conteúdo.

É comum ao ajuizar uma ação, que a petição venha com diver-sas alegações, mas com a análise apenas da prova documental, ou de outros elementos que foram produzidos fora do processo, já que, em regra a fase probatória é a penúltima fase do processo, antecedida pela fase decisória. “Sendo possível dividir o processo de conheci-mento em quatro fases – apesar de não ser essa uma divisão estanque -, Após a fase postulatória, tem-se a fase de saneamento, seguida da fase instrutória e finalmente a decisória” (NEVES, 2016, p.621).

Logo, em muitas das vezes apenas em alegações finais o patro-no tem a oportunidade de registrar seus escritos sobre a análise dos diversos meios probatórios produzidos. A argumentação sobre o conteúdo da prova produzida, é essencial para influir eficazmente no convencimento do Juízo.

Afinal, um testemunho a exemplo, pode ser valorado diversa-mente, a depender da percepção de cada um, sendo de extrema relevância as argumentações das partes que levem ao Juízo a enten-der todo o contexto probatório:

A seguir, ultrapassada a etapa da instrução em audiência, e

depois de cumprida a praxe forense de o juiz indagar às par-

tes se ainda têm algo a requerer, o procedimento passa à fase

dos debates orais. Cabe, então, aos advogados, pelo tempo e

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na ordem especificados, usar da palavra, cada qual buscando

na análise e apreciação crítica das provas, e na invocação a

argumentos de direito, expostos com lealdade e boa-fé (CPC,

art. 14, II), inclinar a convicação do julgador em prol dos inte-

resses de seus constituintes. (CARNEIRO, 2014, p. 146)

Com a prova que já foi produzida em sede de produção anteci-pada, a ação já poderá ser ajuizada com uma argumentação precisa desenvolvida pelo advogado em relação a todo o conteúdo probató-rio, desde a petição inicial e também trabalhada em todo o proces-so, e não apenas nas derradeiras petições do feito.

O conhecimento acerca das fraquezas e fortalezas da causa de pedir, permitirá uma atuação mais estratégica no processo, e, inclu-sive, evitar reproduzir alegações que não se sustentem e que pudes-sem, até mesmo, redundar em condenações por litigância de má-fé.

Além disso, outro aspecto estratégico, é que o conhecimento prévio da realidade transmitida pelos meios probatórios já produ-zidos, permitirá ao advogado conhecer a real extensão das preten-sões que são viáveis para o seu cliente. A exemplo, o cliente pode pensar que apenas teria o direito ao pedido “A”, e na fase probatória ao verificar outro ilícito do demandado, observa que também seria cabível o pedido “B”. Com a produção prévia da prova, a real exten-são da pretensão viável poderá ter uma análise mais segura:

Em ações de indenização derivadas, por exemplo, de má exe-

cução de obra de engenharia ou de abuso de gestão de socie-

dade, é quase sempre muito difícil ao autor descrever, desde

logo, com segurança, os fatos constitutivos de sua pretensão,

assim como delinear, com adequada precisão, os danos re-

almente acarretados pela conduta irregular do demandado

(THEODORO, 2015, p. 915). (Grifou-se)

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Por fim, incumbe ressaltar que a ação antecipada de provas ajuizada com o fim autocompositivo também é um grande e nobre meio estratégico, pois em certas situações as partes até possuem interesse em uma solução consensual, contudo, por terem dúvidas acerca dos fatos acabam preferindo o litígio. Com o conhecimento prévio da prova, a solução consensual se torna ainda mais atrativa em determinados casos, o que deve ser explorado pela advocacia casuisticamente.

Os exemplos acima citados são apenas alguns dos benefícios estratégicos da produção antecipada de prova, não tendo este tra-balho de nenhuma forma exaurido o tema, visto que a prática re-velará inúmeras situações em que a referida ação será a melhor estratégia.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do presente estudo, pode-se verificar que a Lei 13.105/15 que instituiu o Código de Processo Civil vigente deu uma nova amplitude no tocante ao direito probatório, reconhecendo a prova um direito autônomo do cidadão, ao invés de um mero ônus a ser cumprido em caráter instrumental. Como reflexo dessa nova visão, a ação probatória autônoma foi reestruturada, no sentido de tutelar adequadamente o direito à prova, desvinculando-se, em parte, de o viés meramente cautelar que possuía no diploma pro-cessual revogado.

Denota-se que a reestruturação mais intensa no tocante à ação de produção antecipada de provas diz respeito à ampliação das hi-póteses de seu cabimento, passando a ser utilizável em hipóteses outras, que não a de urgência na obtenção da prova. Admite-se, atualmente, que a produção antecipada da prova seja utilizada no intuito de viabilizar a autocomposição, ou com o fim de fornecer

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subsídios para justificar ou evitar o ajuizamento de outras ações. Após a análise da nova perspectiva trazida pelo CPC em rela-

ção à ação probatória autônoma, pôde se averiguar os impactos pragmáticos da referida ação, mais especificamente em relação ao estímulo da litigância responsável, e a sua importância para o exer-cício de uma advocacia estratégica. A produção da prova em cará-ter antecipado nas situações que fogem ao seu intuito cautelar gera diversos benefícios para a parte, valorizando-se, ainda, o modelo constitucional de processo.

O CPC/2015 reforça a importância de um processo coopera-tivo, e plenamente voltado à boa-fé objetiva, ou seja, aquela que leva em consideração apenas as condutas das partes no processo, desconsiderando a intenção. Logo, lides temerárias não podem ser ajuizadas, sob a justificativa de que o autor apenas pôde auferir o pleno conhecimento dos fatos após a fase instrutória do processo.

No momento em que a prova pode ser produzida em caráter principal e antecipado, as partes podem observar o referido pro-cedimento, no sentido de evitar inadequadas percepções fáticas, e, por conseguinte, não existir o ajuizamento de ações fadadas ao insucesso. Evitando-se, assim, a inobservância da boa-fé objetiva, o que diminuirá os riscos de aplicação das sanções por litigância indevida.

Além do estímulo à litigância responsável, evidenciou-se que a produção antecipada da prova contribui para uma advocacia estra-tégica, seja pela diminuição de diversos riscos inerentes ao proces-so, ou proporcionando vantagens que refletem nas chances de êxito nas ações. Os impactos estratégicos estudados estão intimamente atrelados à amplitude de cabimento da ação probatória que foi ins-tituída pelo CPC/15.

Analisou-se a produção antecipada de provas como alternativa estratégica para evitar o alto risco financeiro dos processos, quando

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se estiver de lides inseguras. Observou-se que por mais que a uti-lização do processo seja lícita, mesmo em casos de improcedência dos pedidos, a sucumbência, por si só, submete a parte a diversos prejuízos patrimoniais, em razão da imposição das verbas de su-cumbência, a exemplo das custas processuais e honorários, o que estabelece um dilema para a parte e o advogado, no sentido de des-cartar a pretensão, ou submissão aos referidos riscos.

Com a adequada percepção fática pela produção antecipada da prova, a parte poderá ter maior segurança em relação a sua pre-tensão, sem se submeter desnecessariamente aos riscos financeiros comuns da sucumbência, visto que a única discussão sobre ação probatória é a existência do direito à prova. Notou-se, que, confor-me entendimento jurisprudencial, na ação que visa exclusivamente à produção da prova apenas existirá a imposição de honorários su-cumbenciais em caso de discussão sobre a existência do direito a sua própria produção.

Destarte, percebeu-se que a utilização da ação probatória tam-bém fornece elementos estratégicos, em razão de proporcionar um ambiente argumentativo mais propício para a parte no ajuizamento de uma ação, haja vista desde o início poder trazer elementos valo-rativos acerca da prova produzida, trabalhando-os em diversos atos postulatórios no decorrer do processo, ao invés de se utilizar apenas das alegações finais, o que é de grande valia para influir eficazmen-te no convencimento do Juízo. Outrossim, o conhecimento prévio da prova fornecerá à parte elementos necessários para conhecer a real extensão da pretensão que pode ser manifesta em uma ação, excluindo pedidos inviáveis e incluindo outros que se mostrarem pertinentes.

Por fim, a utilização da produção antecipada com o viés au-tocompositivo também se revela uma nobre estratégia, visto que a adequada percepção dos fatos pode levar as partes a avaliarem

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racionalmente a adequação de determinado acordo, evitando-se, assim, desgastes procedimentais desnecessários.

Conclui-se, então, que a produção antecipada de provas em sua nova estruturação trazida pelo Código de Processo Civil vi-gente, além de contribuir para o modelo constitucional de pro-cesso, estimulando à litigância responsável e consequentemente a boa-fé objetiva, constitui uma grande alternativa estratégica para as partes/advocacia, sendo mais um recurso processual há-bil que em diversas vezes poderá ser o melhor caminho no dia a dia forense.

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COMPETÊNCIA JUDICIAL PARA PROCESSAR E JULGAR CAUSAS REFERENTES AO IMPOSTO

SOBRE O VALOR AGREGADO

luCiana de aboiM MaCHado*1yuri MatHeuS arauJo MatoS**2

ResumoAs principais propostas inerentes ao Imposto sobre o Valor Agregado buscam a reunião de três a cinco tributos, de competências legislativas distintas, mas processamento semelhante, em um só. Três deles são de competência da União, um dos Estados e um dos Municípios. Observa-se dificuldades na identificação do foro mais adequado para o julgamento das causas a ele relativas, devido à especificidade da Justiça Federal. Através do cotejo entre a técnica tributária e as normas definidoras de competência,

busca-se aferir a melhor solução processual civil ao tema.Palavras-chave: Jurisdição. Competência. Imposto sobre o Valor Agregado.

1 Pós-Doutora em Direito Constitucional na Universidade Federal da Bahia - UFBA e na Università degli Studi G. d’Annunzio di Chieti-Pescara - UDA. Doutora em Direito do Tra-balho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP. Mestre em Direito do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho e em Direito Processual Civil, todos na Pon-tifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora Associada e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe – UFS. Lí-der do Grupo de Pesquisa Eficácia dos direitos humanos e fundamentais: seus reflexos nas relações sociais. Membro Fundadora e Coordenadora (Brasil) da Rede de Direitos Humanos e Transnacionalidade - REDHT. Membro do Conselho Fiscal do Instituto Ítalo-brasileiro de Direito do Trabalho. Professora e Pesquisadora no Mediterranea International Centre for Human Rights Research – MICHR, vinculado à Università Mediterranea di Reggio Calabria. Vice-Presidente da Asociación Iberoamericana de Derecho de Trabajo y de la Seguridad Social. Consultora em pesquisas da Ergon Associates (London).2 Mestrando em Constitucionalização do Direito na Universidade Federal de Sergipe – UFS. Advogado. Financiamento: CAPES.

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AbstractThe main proposals inherent to the Value Added Tax attempt to the attach of three to five taxes, of distinguished legislative competences, but same proces-sing, in only one. Three of them are of the Union’s competence, one of the Sta-tes ando ne of the counties. It is observed difficulties in the identification of the most appropriate fórum to the judgement of the causes related to it, due to the specificity of the Federal Justice. Through collation between the tributary technique and the competence-definig standards, sought to measure the best civil procedural solution to the theme.

Key-words: Jurisdiction. Competence. Value Added Tax.

INTRODUÇÃO

Diante do estudo sobre a estruturação do Imposto sobre o Va-lor Agregado no Brasil foi constatado o problema da dificuldade de definição da competência para a sua instituição, arrecadação, fisca-lização e cobrança.

Adota-se como hipótese principal a designação da União para a respectiva atuação, em decorrência da sua melhor estruturação pessoal e tecnológica. Como hipóteses secundárias, que os Estados e Municípios possuem capacidade para a fiscalização auxiliar, há preservação e otimização do pacto federativo, e este modelo pode reduzir a guerra fiscal no Brasil.

Para a análise das referidas hipóteses, as propostas de estrutura-ção do Imposto sobre o Valor Agregado no Brasil foram objeto de es-tudo comparado com a formação do Imposto sobre o Valor Agregado na Europa, Moçambique, Cabo Verde, Argentina, Uruguai e Paraguai. Foi realizada ainda pesquisa da literatura tributária e processual ci-vil inerente ao tema, através de artigos científicos, livros jurídicos e a jurisprudência inerente ao tema. Ademais, analisados números do judiciário no Brasil através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

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1 COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, MATERIAL E PROCESSUAL

A partilha constitucional originária de competências já não se tra-duz em frutos benéficos em meio à economia dinâmica do século XXI. Do ponto de vista legislativo, há partilha da base de consumo entre Estados e Municípios sem qualquer razão econômica ou tributária3. Portanto, demanda-se na atualidade uma norma hierarquicamente superior apta a harmonizar e limitar o poder local, de forma que estimule a integração socioeconômica4.

Em relação à competência para atos materiais de cobrança e fiscalização, adotou-se como hipótese inicial a atribuição à União. Passou-se ao exame dos modelos mais adotados no mundo e a sua aceitação perante os contribuintes e eficácia arrecadatória. Na aná-lise econômica sobre a competência5 adotou-se como parâmetro a teoria da taxação ótima6, tendo por substrato a teoria econômica do

3 “Uma das principais originalidades [...] no Brasil é, sem dúvida, o facto de o sistema vir regulado, com grande detalhe, na Constituição”.GUIMARÃES, Vasco Branco. A tributação do consumo no Brasil: uma visão europeia. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Hori-zonte: Fórum, 2007. P. 39-61.4 “A partilha da competência em matéria de tributação sobre o consumo gerou cenários complexos para a União. Faltam-lhe os instrumentos políticos que permitiriam a negocia-ção de forma mais cômoda”.FALCÃO, Maurin Almeida. Da tributação cumulativa ao Imposto sobre o Valor Agregado: o percurso notável da inovação tributária no Século XX. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 6235 “O objetivo da sociedade é do bem-estar dos seus cidadãos. Portanto, a distribuição das competências deve ser feita de tal modo que o bem-estar da sociedade como um todo seja maximizado. O arranjo institucional que permitiria a cada membro da federação escolher, livremente, seus tributos não seria a solução adequada para a sociedade, porque dariam margem a uma série de efeitos negativos provenientes de impostos ineficientes e injustos, o que redundaria em perda de bem-estar para a coletividade”.MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian Na-tional University. 1983.6 LOPES, Cláudio Célio de Araújo. O modelo IVA de tributação como instrumento para um novo federalismo fiscal brasileiro diante da globalização. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz; UNIFOR. 2006. P. 95-96

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trabalho dirigido por Charles Mclure7. Este examinou a incidência de impostos sobre fatores de produção8, os incidentes sobre recur-sos naturais9, equalização das disparidades regionais10 e transferên-cias verticais de recursos11.

Em seguida foi realizada a divisão em quatro modelos de des-centralização da tributação do consumo no mundo, sendo o 1 o mais

7 MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian Na-tional University. 19838 Impostos sobre fatores da produção com grande mobilidade são mais adequados para o governo central, enquanto impostos sobre fatores sem mobilidade são apropriados para os governos locais.MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian Na-tional University. 1983.Comentário: a circulação de bens e serviços, industrializados ou não, originalmente não possuía mobilidade tão ampla quanto na atualidade. Por esta razão, hoje, o governo central deve ser responsável por promover harmonização da sua cobrança e arreca-dação, pela via legislativa. Não significa concentração de poderes, mas unicamente organização e racionalidade técnica, com o fim de responder os anseios da economia contemporânea.9 Impostos sobre recursos naturais, mesmo que cobrados na origem, devem ser de com-petência federal.MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian Na-tional University. 1983.Comentário: aceita-se o paradigma orquestrado pelo autor, sem maior argumentação, por não ser este o objeto central do trabalho.10 A capacidade fiscal pode ter uma distribuição bastante desigual entre os governos sub-nacionais, havendo necessidade de mecanismos de equalização horizontal, em geral im-plementados através do governo central.MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian Na-tional University. 1983.Comentário: dentre os critérios para distribuição do fundo único de arrecadação do IVA estará a necessidade de equalização horizontal. A legislação será promovida pelo governo central, mas não a sua implementação fática, que ficará a cargo de convênio organizado pelos estados.11 A receita tributária de vários governos subnacionais pode ser insuficiente para cobrir os seus gastos, enquanto o governo federal pode ser capaz de arrecadar mais do que precisa, havendo necessidade de um processo de transferência de recursos vertical.MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian Na-tional University. 1983.Comentário: com o Imposto sobre o Valor Agregado permanecerão os critérios de transferência vertical atuais, com algumas alterações pontuais. Sua finalidade precí-pua será a equalização de receitas (diante de eventuais distúrbios provocados pelos primeiros anos de reforma); o término das preferências políticas para transferências; e a garantia de critérios técnicos para aplicação da verba, à luz dos princípios da mo-ralidade e eficiência.

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concentrado e o 4 o mais desconcentrado12. No modelo 1 restam enquadrados Índia e Austrália, estando a União responsável tanto pelo âmbito legislativo quanto pelo fiscalizador e arrecadatório, e até mesmo pela distribuição dos recursos.

Foi observada, da sua relação com a formação histórica e o ordenamento jurídico brasileiro, a impossibilidade jurídica da sua adoção, em decorrência: da própria previsão constitucional de pre-servação do pacto federativo como cláusula pétrea (argumento ju-rídico); dos sucessivos movimentos autocráticos nos governos cen-trais na história republicana (argumento político); da inviabilidade de aprovação de tal medida no Congresso em um cenário democrá-tico de tripartição dos poderes (argumento pragmático); e do afas-tamento da norma de controle social do gasto público (proximidade entre a unidade gestora do gasto e o público-alvo – argumento so-ciológico).

O modelo 2 (ocorre na Alemanha, por exemplo) mantém o as-pecto legiferante sob a União de maneira integral: esta estabelece as alíquotas, bases de cálculo, isenções, remissões, dentre outros. Foi constatado que este modelo otimiza a aplicabilidade teórica e prática do pacto federativo (argumento jurídico, conforme será demonstrado adiante); restringe a prática de atos contrários à arrecadação tribu-tária, como isenções fiscais sem fundamento técnico ou econômico (argumento ético); há ampla maioria parlamentar em seu favor, con-forme exposto nas páginas anteriores (argumento pragmático); man-tém a administração da repartição em favor dos entes federativos menores e, ao mesmo tempo, vincula-a à eficácia da sua respectiva gestão (aspecto sociológico); simplifica e barateia o cumprimento das

12 Neste trabalho será adotada a classificação de DERZI, Misabel Abreu Machado; SANTIA-GO, Igor Mauler. A harmonização dos IVAs do Brasil para o desenvolvimento produtivo. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 531-532

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obrigações acessórias (aspecto econômico) e assim reduz o custo da produção e majora a arrecadação, para fazer frente às despesas so-ciais, além de reduzir a regressividade fiscal (aspecto social).

No modelo 3 a competência legislativa deixa de ser integral-mente da União, que passa a somente uniformizar normas gerais (hipótese de incidência, sujeito ativo, sujeito passivo, v.g.). Trata-se do sistema atual brasileiro, objeto de propostas de alteração para a simplificação tributária.

O modelo 4, por fim, é o de máxima descentralização. Ocorre no Canadá, por exemplo, e é assegurado pela abstenção de tributa-ção do consumo pela província de maior expressão econômica.

As propostas em geral buscam que seja alterado para o modelo 2, à semelhança do sistema alemão, com pequenas alterações. Para que isto ocorra, alguns institutos alemães devem ser importados para o Brasil. Caso contrário, haverá acentuação do desequilíbrio na harmonia entre os entes federativos.

Mostrou-se necessário um Conselho Federal que garanta a parti-cipação estadual e interferência na elaboração das leis da União, com específica finalidade de veto de leis de renúncia fiscal que lhes sejam prejudiciais13. Protege-se assim a competência local, evitando-se um sistema autocrático, conforme observado em trabalhos inerentes ao tema14 e no estudo do sistema de estruturação do Conselho Nacio-nal de Política Fazendária (CONFAZ).

13 “Não poder, a União (Poder Público), outorgar, por lei, incentivos fiscais estaduais e municipais, em virtude de vedação constitucional”. Defende-se a máxima efetividade da norma neste aspecto.MARTINS, Ives Gandra da Silva. Um IVA possível em um sistema tributário justo. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Hori-zonte: Fórum, 2007. P. 40114 DERZI, Misabel Abreu Machado; SANTIAGO, Igor Mauler. A harmonização dos IVAs do Brasil para o desenvolvimento produtivo. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 533

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Assim sendo, nas atividades arrecadatórias e fiscalizatórias, constata-se a relevância da adoção do modelo alemão, com algumas alterações15. – competindo a todos os entes a fiscalização no Bra-sil, em um sistema misto16. O produto da arrecadação, não obstante única, não pertencente à União, mas receita de cada um dos entes federativos, conforme a distribuição realizada a partir do fundo úni-co, mesmo sendo aquela o sujeito ativo.

Atualmente há competência comum bem definida para o pro-cessamento dos tributos: na Justiça Federal os da União (PIS, CO-FINS, IPI) e na Justiça Estadual os dos Estados (ICMS) e Municípios (ISS). Caso reunidos o PIS, COFINS e CSLL em uma Contribuição so-bre o Valor Agregado (CVA), há ampliação da base de cálculo da tri-butação da renda e diminuindo a do consumo (técnica socialmente mais vantajosa). Consequentemente, a CVA será processada na Jus-tiça Federal, como tributo único, reduzindo o volume de processos a serem examinados17.

15 GUIMARÃES, Vasco Branco. A tributação do consumo no Brasil: uma visão europeia. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 6016 Também não se trata de uma exigência realizada pelo governo federal com repasse para os entes menores, como ocorre na Argentina.MEIRELLES, José Ricardo. Impostos indiretos no Mercosul e integração. São Paulo: LTr, 2000. P. 6317 No Brasil o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulga anualmente o relatório Justiça em Números, no qual identifica os principais entraves ao andamento processual (informe de 2019, p. 126). Identificou-se um acervo de 79 milhões de processos em andamento em 2018. Não obstante o acesso formal à justiça nos Estados Unidos e União Europeia, estes possuem judicialização inferior. Dentre outros fatores, em virtude do número de acordos realizados, valorização da habilidade de negociação advocatícia e debate produtivo entre as partes e o juiz, com aplicação do princípio cooperativo. do acervo nacional 54,2% dos processos são referentes às execuções (informe de 2019, p. 126). Informa o próprio órgão o avanço no julgamento dos processos de conhecimento: “as curvas de processos baixados e novos seguem quase paralelas até o ano de 2017, com o caso novo superando sutilmente a execução e praticamente se igualando em 2018” (informe de 2019, p. 126). Quanto aos executivos, entretanto, afirma que “as curvas de processos baixados e novos seguem quase paralelas até o ano de 2017, com o caso novo superando sutilmente a execução e prati-camente se igualando em 2018” (informe de 2019, p. 126). Segundo o relatório do CNJ, os processos pendentes de conhecimento eram 26,8% em 2009 e evoluíram para 25,4% em

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Quanto ao IPI, ICMS e ISS, a sua reunião em um IVA acarretará a competência comum para cobrança, deixando de adotar neces-sariamente a seletividade do IPI, sua exceção à anterioridade, e po-dendo ocasionar dificuldades inerentes ao processamento judicial. Estudou-se como solução a técnica de adoção no Brasil do Simples Nacional, adotado para as micro e pequenas empresas18. Foi identi-ficado inicialmente na análise comparativa ser possível aproveitar o seu processamento judicial19.

2010; 26,1% em 2011; 27,3% em 2012; 30,1% em 2013; 29,0% em 2014; 31,5% em 2015; 32,6% em 2016; 31,2% em 2017 e 29,6% em 2018. Observa-se a ampliação decorrente da maior litigiosidade e acesso formal à justiça, contraposta ao gasto público com aparelhamento do judiciário, além da otimização processual, fatos que contribuem para a oscilação do acer-vo. Ademais, há redução de 17% em 2016 para 15,7% em 2017 e 14,6% em 2018 de processos novos de conhecimento, fato que permitiu a redução quantitativa. Quanto aos processos de execução, entretanto, a realidade é distinta. Por possuir rito menos analisado, menor suscetibilidade de acordo que envolva interesses e sentimentos e menor estímulo coope-rativo, são os seus números: 30,2% em 2009; 32,4% em 2010; 33,7% em 2011; 35,1% em 2012; 36,2% em 2013; 37,3% em 2014; 39,7% em 2015; 40,8% em 2016; 42,4% em 2017 e 42,6% em 2018. Em nenhum exercício do período analisado há redução dos valores absolutos. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2019. Brasília: CNJ, 2019. Dis-ponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Último acesso em 10 out. 2020. P. 126.18 Hoje são as suas principais características: “Abrange a participação de todos os entes federados [...] é administrado por um comitê gestor [...] para ingressar no Simples Na-cional é necessário o cumprimento das seguintes condições: enquadrar-se na definição de microempresa ou de empresa de pequeno porte; cumprir os requisitos previstos na legislação; e formalizar a opção pelo Simples Nacional [...] irretratável para todo o ano--calendário; abrange os seguintes tributos: IRPJ, CSLL, Pis/Pasep, Cofins, IPI, ICMS, ISS e a Contribuição para a Seguridade Social destinada à Previdência Social a cargo da pessoa jurídica; [...] documento único de arrecadação; disponibilização às ME e às EPP de sistema eletrônico para a realização do cálculo do valor mensal devido; apresentação de declaração única e simplificada de informações socioeconômicas e fiscais; vencimento no último dia útil da primeira quinzena do mês subsequente ao do período de apuração”. [...] A opção pelo Supersimples retira o direito de creditamento e impede a transfererência de créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples Nacional. Portanto esta tributação especial e simplificada, para micros e pequenas empresas, divorcia-se da não--cumulatividade, sendo cumulativa (LC 123/2006, art. 23).”SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. IVA no Brasil. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 65919 SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. IVA no Brasil. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 658

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Atualmente a Justiça Federal é competente para o exame da matéria, devido ao interesse da União (parte dos tributos arrecadados lhe é devida). No caso em análise, a redução processual decorrente a unificação do PIS e da COFINS, somada à redução processual decor-rente da unificação do IPI, ICMS e ISS, pode permitir que a Justiça Fe-deral possua estrutura para o processamento das demandas. Neste caso, os Estados e Municípios litigarão ao lado da União na Justiça Federal nos casos relacionados ao Imposto sobre o Valor Agregado.

2. COMPETÊNCIA PARA TRIBUTAÇÃO E COBRANÇA PRO-CESSUAL NO COMÉRCIO INTERESTADUAL

O cenário atual de regras para o comércio interestadual, além de afastar a atividade dos pequenos e médios operadores, também faz com que o planejamento fiscal seja fator preponderante para a esco-lha do local do estabelecimento de certas sociedades empresárias20.

Foi constatado efeito direto entre a uniformização das alíquotas e o planejamento fiscal através do estudo da estruturação do CON-FAZ. Para isto, há unanimidade quanto à necessidade de local único de tributação21 (ao contrário da prática atual no Brasil, que adota a diferença entre a alíquota do local do destino e a interestadual, para o local de origem22). Contudo, há divisões doutrinárias entre o local

20 “A escolha do local de estabelecimento de certas empresas que efectuam prestações de serviços é fortemente influenciada por motivos de planeamento fiscal”PALMA, Clotilde Celorico. A harmonização comunitária do imposto sobre o valor acres-centado: quo vadis? Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tribu-tação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 19121 “A ideia de um local único de tributação é o ’objectivo final’”.PALMA, Clotilde Celorico. A harmonização comunitária do imposto sobre o valor acres-centado: quo vadis? Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tribu-tação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 213 22 Aqui foi sedimentada a “adoção de um princípio misto de origem-destino para a tribu-tação das transações interestaduais, que dificulta o controle da sonegação, além de esti-

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da origem e do destino como mais adequado para o processamento do tributo23. Não obstante alguns posicionamentos em sentido di-verso24 (local do destino2526), inclusive na experiência internacional27, foi observado que a tributação no local da origem facilita o cotidia-no do contribuinte28.

mular a “guerra fiscal” entre os estados”.QUADROS, Waldemir Luis de. A tributação indireta no Brasil. Em: AFFONSO, Rui de Britto Álvares; SILVA, Pedro Luiz Barros (org.). Reforma tributária e federação. São Paulo: FUN-DAP: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995. P. 7823 “Problema que provoca discussão permanente é o da tributação interestadual na ori-gem ou no destino”.TORRES, Ricardo Lobo. É possível a criação do IVA no Brasil? Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 2924 “Adotar o princípio de destino significa eliminar a alíquota interestadual do imposto [...] não elimina de todo a guerra fiscal, mas impõe fortíssima restrição”.VARSANO, Ricardo. A Guerra Fiscal do ICMS: quem ganha e quem perde. Revista Plane-jamento e Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, nº 15 (jun 1997). P. 17Adotar o princípio da origem pode possuir semelhante efeito sobre a guerra fiscal, com o adicional de facilitar o cumprimento das obrigações acessórias pelos operadores econô-micos.25 “[Meirelles sugere a reforma] pelo critério do destino, ou seja, o fato imponível ocorre-ria no local onde se dá a venda ou internação do produto ou a prestação do serviço[...] teria como sujeito ativo a União, [...] com repasse direto e automático para Estados-Membros e Municípios.”MEIRELLES, José Ricardo. Impostos indiretos no Mercosul e integração. São Paulo: LTr, 2000. P. 153.26 “Somos pela reforma tributária [...] adotando o princípio do destino, com mecanismo de transferências nas operações interestaduais.”LOPES, Cláudio Célio de Araújo. O modelo IVA de tributação como instrumento para um novo federalismo fiscal brasileiro diante da globalização. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz; UNIFOR. 2006. P. 100.27 “[A Argentina] adota o critério destino”.MEIRELLES, José Ricardo. Impostos indiretos no Mercosul e integração. São Paulo: LTr, 2000. P. 62.28 “A solução no Brasil, com ou sem a unificação no IVA, deve ser a da origem, única suscetível de ser fiscalizada e de manter a neutralidade frente à concorrência entre os Estados.”TORRES, Ricardo Lobo. É possível a criação do IVA no Brasil? Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 30

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Além disso, foi reconhecida a simplicidade no uso de um fundo único central para realizar uma distribuição justa que aos agentes econômicos procederem a arrecadação direta em vários locais2930.

Todavia, é importante que o contribuinte de direito especifique o estado de destino do bem, assim como o CNPJ do adquirente, nas operações B2B, com o fim de proporcionar o controle cruzado e re-partição correta das receitas. Afinal de contas, pertencerá ao estado de destino parte da arrecadação.

Retomando o estudo organizado por Charles Mclure, obser-vou-se que, nos tributos sobre o consumo que possuem incidência interestadual, a cobrança no local de destino é mais adequada aos níveis subnacionais (Estados), mas no local de destino ao governo central (União)31.

Tendo em vista a adoção pelo local de origem na tributação in-terestadual, consequentemente a competência para o seu processa-mento será da União – atraindo assim novamente a Justiça Federal à causa. Na prática diversos atos executórios são realizados pelos Esta-dos e Municípios. Logo, litigarão diretamente na Justiça Federal.

Em outro trabalho foi realizado estudo sobre o estímulo às Se-cretarias da Fazenda e Procuradorias Municipais, Estaduais e Dis-tritais para atuarem efetivamente na arrecadação e no processo judicial. O instrumento examinado é o recebimento ao respectivo ente federativo de cotas da repartição do IVA.

29 “[Defende-se] arrecadação na origem, com repasse do produto arrecadado para o Esta-do de destino via câmara de compensação.”DERZI, Misabel Abreu Machado; SANTIAGO, Igor Mauler. A harmonização dos IVAs do Brasil para o desenvolvimento produtivo. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. P. 55030 Ademais, Além disso, “Com o princípio de destino, ocorre diluição da arrecadação, o que requer alteração nos métodos de fiscalização VARSANO, Ricardo. A Guerra Fiscal do ICMS: quem ganha e quem perde. Revista Planeja-mento e Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, nº 15 (jun 1997). P. 1831 MCLURE, Charles (org.). Tax assignment in federal countries. Camberra: Australian National University. 1983.

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COMPETÊNCIA JUDICIAL PARA PROCESSAR E JULGAR CAUSAS REFERENTES AO IMPOSTO SOBRE O VALOR AGREGADO

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No entanto, há questões práticas na adoção de um sistema de origem: dificuldade de organização da câmara de compensação3233 demanda controle do Tribunal de Contas da União, como ocorre com o Tribunal de Contas dos Estados e Municípios. Mas organiza-ção intergovernamental necessária para definir a quem pertencem os frutos da tributação do comércio interestadual é maior no mode-lo proposto que no sistema atual.

Para que haja efetiva concretude do sistema único de tributa-ção na origem, observou-se a necessidade, através da formação do IVA europeu, de: (i) estruturação simples e clara no âmbito legis-lativo; (ii) organização administrativa do processo de distribuição das receitas; (iii) cooperação entre união, estados, distrito federal e municípios, para constituir um modelo eficaz; (iv) meios efetivos de controle da implementação do projeto; (v) sistema informatizado sólido e eficiente, capaz de proceder os cálculos e compensações de maneira imediata e justa34.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do estudo comparado econômico e de técnicas de descentra-lização administrativa foi constatada a adequação da tributação do consumo pelos entes federativos, de maneira comum. Logo, a hi-pótese principal do trabalho se mostrou invalidada, pois indevida a competência exclusiva da União para o seu processamento. Isto

32 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Um IVA possível em um sistema tributário justo. Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sérgio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Hori-zonte: Fórum, 2007. P. 40233 PALMA, Clotilde Celorico. A harmonização comunitária do imposto sobre o valor acrescentado: quo vadis? Em: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; VASQUES, Sér-gio; GUIMARÃES, Vasco Branco (org.). IVA para o Brasil: contributos para a reforma da tributação do consumo. Belo Horizonte: Fórum, 2007.P. 21334 COSTA, Nina Gabriela Borges. A implantação do IVA no Brasil. Em: Anais do 2º ciclo de estudos em direito. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. 2014. P. 95

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Luciana de Aboim Machado; Yuri Matheus Araujo Matos

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não impediu, todavia, o avanço para o exame da competência judi-cial, pois permanece o interesse da União nas causas, atraindo-as à Justiça Federal.

Além disso, é relevante que a Justiça Federal julgue causas ine-rentes ao Conselho Federal, estruturado com participação de todos os entes federativos e designado à fixação das alíquotas e gestão de um fundo único, com respectiva câmara de compensação. O tribu-to arrecadado pertencerá diretamente aos entes federativos, com repasse imediato supervisionado pelo Tribunal de Contas da União.

A unificação tributária de PIS, COFINS e CSLL em uma CVA ou PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS em um único IVA pode permitir a re-dução nas demandas judiciais, apta a garantir a sustentabilidade do sistema judicial federal para processamento e julgamento das cau-sas inerentes ao tema. O consumo interestadual, com tributo apu-rado no local de origem e receita repartida com o local de destino, pode ter suas causas julgadas na Justiça Federal, delas participando a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Desta maneira, a competência para o processamento e julga-mento de todas as causas inerentes ao Imposto sobre o Valor Agre-gado será da União, com participação da Procuradoria da Fazenda Nacional, sem detrimento da atuação dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

REFERÊNCIAS

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COMPETÊNCIA JUDICIAL PARA PROCESSAR E JULGAR CAUSAS REFERENTES AO IMPOSTO SOBRE O VALOR AGREGADO

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DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL, PROPORCIONALIDADE E ABUSO DE PODER EM

TEMPOS DE PANDEMIA

nilzir SoareS vieira Junior*1Henrique ribeiro CardoSo**2

ResumoNo contexto da pandemia da COVID-19, o presente trabalho objetiva iden-tificar possíveis situações de abuso de poder, à luz do devido processo legal substancial e de seu corolário, o postulado da proporcionalidade. Em seu desenvolvimento, adota-se o método hipotético-dedutivo, através de revi-são da bibliografia especializada. Conclui-se, sob a lente da proporcionali-dade, nos vieses da adequação e da necessidade, pelo reconhecimento de incursões arbitrárias sobre direitos fundamentais dos cidadãos, a pretexto do combate à emergência sanitária, mesmo com uma leitura deferente das iniciativas dos poderes políticos. Palavras-chave: Pandemia. Abuso de poder. Devido Processo Legal Subs-tancial. Proporcionalidade.

* Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Especialista em Direito Sanitário pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Promotor de Justiça (MPSE).** Doutor em Direito, Estado e Cidadania (UGF/Rio), com Pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos (IGC - Universidade de Coimbra) e Pós-doutorado em Direitos Huma-nos e Desenvolvimento (PPGCJ/UFPB); Mestre em Direito, Estado e Cidadania (UGF/Rio); Professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS) e do Programa de Pós-graduação da Universidade Tiradentes (PPGD/UNIT); Promo-tor de Justiça Titular da Fazenda Pública em Sergipe (MPSE). Líder do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Cidadania e Concretização de Políticas Públicas.

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AbstractIn the context of the COVID-19 pandemic, this study aims to identify possible situations of abuse of power, in light of substantive due legal process and its corollary, the postulate of proportionality. In its development, the hypothetical--deductive method is adopted, through a review of the specialized bibliography. It concludes, under the lens of proportionality, in the adequacy and necessity bias, by the recognition of arbitrary incursions on citizens’ fundamental rights, under the pretext of combating the health emergency, even with a respectful reading of the political powers’ decisions. Keywords: Pandemic. Power abuse. Substantive Due Process of Law. Propor-

tionality.

INTRODUÇÃO

Iniciada na província de Hubei, na China, a epidemia da CO-VID-19, infecção causada pelo SARS-CoV-2, nova vertente da família do Coronavírus, rapidamente se alastrou para quase todos os paí-ses, produzindo um elevado número de mortes.

Atualmente, ainda não existe tratamento cientificamente vali-dado para a infecção, de modo que os serviços de saúde se limitam a tratar os sintomas, para reduzir o desconforto e evitar o agrava-mento da doença e complicações que levem ao óbito do paciente.

Sobretudo após o reconhecimento da pandemia pela Organiza-ção Mundial da Saúde (OMS), em 11/03/2020, os governos nacio-nais adotaram uma miríade de providências, visando à contenção do novo vírus e, após iniciada a transmissão comunitária, à diminui-ção do ritmo do contágio. Em um passo seguinte, vieram as quaren-tenas ao redor do globo, buscando o achatamento da curva de casos e, com isso, evitar o colapso dos sistemas de saúde e a multiplicação de mortes por desassistência.

No Brasil, foi editada a Lei nº 13.979, de 06/02/2020, que dispõe sobre as medidas para o enfrentamento da Emergência em Saúde

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Pública de Importância Internacional (ESPII), decorrente do coro-navírus. Tais medidas visam, em primeiro lugar, impedir ou desa-celerar a propagação da enfermidade, entre as quais isolamento e quarentena e, além disso, criar condições materiais para lidar ade-quadamente com um evento sanitário de tal magnitude, a exemplo da requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas.

Trata-se de manifestações do poder estatal que importam restrições a direitos fundamentais dos cidadãos – de propriedade, liberdade (inclusive ambulatória), de reunião, entre outros –, em favor do interesse público primário, de tutela dos direitos à vida e à saúde.

Após a declaração da pandemia, multiplicaram-se, em quanti-dade e em diversidade, no Brasil, medidas adotadas pelo poderes públicos federal, estadual e municipal, para refrear o ritmo de con-tágio e preservar a capacidade de resposta dos sistemas de saúde. Essa verdadeira “corrida” na tentativa de deter o coronavírus se tra-duziu em medidas que aparentemente desbordam da racionalidade e do ordenamento jurídico, ao se cotejarem os meios e os fins aco-lhidos para a tutela do direito à saúde.

Nesse cenário, em que as instituições estão sendo postas à pro-va, oportuno identificar, na ordem constitucional vigente, a moldura normativa à qual devem se ajustar as medidas restritivas de direitos fundamentais, que, no complexo enfrentamento de uma pandemia, hão de ser legitimamente promovidas para a salvaguarda da vida e da saúde.

A partir desse delineamento, deve-se perquirir possíveis situa-ções de abuso de poder, à luz do devido processo legal substancial e do postulado da proporcionalidade dele defluente.

Assume-se a hipótese de que, sem embargo da maior deferên-cia a ser dada às ações estatais de combate à emergência em saúde, no exame de sua juridicidade, identificam-se medidas que, de acor-

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do com os critérios selecionados, ultrapassam os lindes normativos aplicáveis nesse quadro de excepcionalidade, configurando abuso de poder.

O trabalho se desenvolverá através do método hipotético-de-dutivo, mediante a revisão da bibliografia especializada.

1. BASES NORMATIVAS PARA ENFRENTAMENTO DE SITUA-ÇÕES DE EMERGÊNCIA EM SAÚDE: O CASO DA PANDEMIA DE COVID-19

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) considerou a saúde direito fundamental, com múltiplas dimensões (social, indi-vidual, coletiva e de participação), impondo ao Estado a sua efetiva-ção, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igua-litário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recupera-ção (CF/1988, art. 196).

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi concebido como garantia institucional do direito fundamental à saúde, encontrando discipli-na basilar nas Leis nºs 8.080/1990 e 8.142/1990.

Trazendo o foco para o objeto do presente ensaio, o §2º, do art. 6º, da Lei nº 8.080/1990, define a vigilância epidemiológica como conjunto de ações voltadas para “[…] o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doen-ças ou agravos”.

No plano internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou, em 2005, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), ins-trumento normativo que estabelece procedimentos para a proteção à saúde, contra a propagação internacional de doenças. Está posi-

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tivada, no bojo do RSI, a definição de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (PHEIC ou ESPII), assim entendido o evento extraordinário que constitui risco de saúde pública para ou-tro Estado, através da disseminação internacional de doenças.

Como Ponto Focal Nacional, órgão central que representa o Brasil para os propósitos do RSI, o Ministério da Saúde, após re-conhecimento formal da pandemia pela OMS, editou a Portaria nº 188/GM/MS, de 04/02/2020, declarando Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da Infec-ção Humana pelo novo Coronavírus.

No mesmo dia, o Presidente da República encaminhou ao Con-gresso, em regime de urgência, projeto de lei que resultou na Lei nº 13.979, de 06/02/2020, dispondo sobre as medidas para enfrenta-mento da ESPII decorrente do SARS-CoV-2.

A Lei nº 13.979/2020 elenca, em seu art. 3º, as medidas que as autoridades podem adotar, no âmbito de suas competências, en-tre as quais: isolamento; quarentena; determinação de realização compulsória de exames, procedimentos e tratamentos de saúde; exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; requisição de bens e serviços, mediante pagamento posterior de indenização justa; e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sani-tária (ANVISA).

Com as alterações promovidas no mesmo art. 3º, da lei em comento, pelas Medidas Provisórias nºs 926 e 927/2020, foi auto-rizada a restrição excepcional e temporária da entrada e saída de pessoas do país e, ainda, da locomoção interestadual e intermu-nicipal, por rodovias, portos ou aeroportos, conforme recomen-dação técnica e fundamentada da ANVISA. Essa restrição depen-derá de ato conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura, podendo ser objeto de

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delegação para os casos omissos (§§ 6º, e 6º-A, do art. 3º, Lei nº 13.979/2020, em sua nova redação).

De qualquer modo, todas essas medidas restritivas somente po-dem ser impostas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e devem ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo necessário (§1º), reconhecendo-se às pessoas atingidas os direitos de informação, de tratamento gra-tuito e, ainda, de pleno respeito à sua dignidade e aos seus direitos fundamentais (§2º). Por força dos §§8º e 9º, do multicitado art. 3º, erigiu-se a necessidade de preservação das atividades e serviços essenciais, assim definidos em decreto do Presidente da República1.

2. DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL, DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROPORCIONALIDADE

Percorrendo a senda da afirmação dos direitos fundamentais e de sua natureza principiológica, ganhou atenção, no Brasil, o prin-cípio do devido processo legal, expresso no texto magno, pela pri-meira vez, no art. 5º, LIV, da Carta de 1988: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

A cláusula do due process of law remonta sua origem histórica à Magna Charta Libertatum, assinada pelo Rei João “Sem Terra”, da Inglaterra, que, em seu artigo 39, dispunha que nenhum homem li-vre será privado de sua liberdade, de seus bens, ou de sua posição, senão pelo julgamento de seus pares e pela lei da terra. Séculos de-pois, a ideia matriz desse princípio, de limitação ao arbítrio estatal, foi retomada em 1791, na Quinta Emenda à Constituição dos Estados

1 Foi assim editado o Decreto nº 10.282, de 20/03/2020, elencando os serviços públicos e atividades essenciais, indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da co-munidade, assim considerados aqueles que, em sua falta, colocam em perigo a sobrevivên-cia, a saúde ou a segurança da população. Esse rol foi posteriormente alterado e ampliado pelos Decretos nºs 10.292, de 25/03/2020 e 10.344, de 11/05/2020.

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Unidos da América, ao enunciar que ninguém será privado da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido processo legal. Daí ressai a clássica definição dos bens tutelados pelo due process of law: vida, liberdade e propriedade.

Atualizando essa lição e trazendo-a para a realidade constitucio-nal brasileira, é possível correlacionar o plexo de bens que o princípio do devido processo legal pretende salvaguardar do arbítrio estatal, com os direitos fundamentais, mais especificamente com aqueles que consubstanciam a noção de dignidade da pessoa humana.

Sob essa óptica, Freire (2008, p. 68) defende que o exame do sentido e do alcance do devido processo legal, por ele concebido como cláusula principiológica, deve guiar-se pelo significado ético--jurídico do princípio da dignidade humana2.

No mesmo sentido, ao evidenciar os vínculos entre o princípio enfocado, o Estado de Direito e a dignidade humana, Lima (1999, p. 213-237) elenca as funções assumidas pelo devido processo legal no direito hodierno: a) controle do poder; b) fator de racionalidade da interpretação; c) parâmetro de controle de constitucionalidade; e d) fator de legitimação da atuação criativa dos juízos e de garantia da participação do cidadão na produção do direito.

Essas funções são exercidas com máxima amplitude, alcançan-do os atos emanados das entidades e órgãos vinculados aos Pode-res Legislativo, Executivo e Judiciário, instituições autônomas (e.g. Ministério Público e Tribunais de Contas) e, ainda, de particulares, mercê do reconhecimento da denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Da identificação dos elementos estruturais e funcionais do due process of law, como eixo de contenção das incursões irracionais do

2 Em suas palavras: “Isto porque o devido processo legal se afigura como uma das pro-jeções principiológicas da dignidade humana, despontando como instrumento capaz de materializar e tutelar, nas lides concretas, o respeito à existência digna, síntese da imensa totalidade dos direitos fundamentais dos cidadãos.” (FREIRE, 2008, p. 68).

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Estado sobre os direitos dos cidadãos, deduzem-se suas conheci-das acepções: (i) procedimental: exige a observância de um “proce-dimento ordenado”, assegurando a igualdade das partes em litígio e um julgador imparcial, a fim de “diminuir ao máximo o risco de intromissões errôneas nos bens tutelados” (FREIRE, p. 190-200); e (ii) substancial: incide sobre o conteúdo do ato de poder estatal, proscre-vendo aqueles que, de forma arbitrária ou desarrazoada, privem ou cerceiem os indivíduos do exercício de seus direitos fundamentais.

A aplicação do princípio do devido processo legal, sob o viés substancial, pressupõe o manejo do postulado da proporcionalida-de, além da ponderação entre direitos fundamentais positivados em normas-princípios.

Partindo da distinção qualitativa entre princípios e regras vista em Dworkin (2002), Alexy (2015, p. 43) depurou-a para estruturar sua Teoria dos Direitos Fundamentais, a partir da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (caráter empírico-a-nalítico), enfocando “a questão acerca da decisão correta e da fun-damentação racional no âmbito dos direitos fundamentais” (caráter normativo-analítico).

O mesmo autor conceitua princípios como mandados de oti-mização, os quais ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas. Veiculam, as-sim, mandamentos prima facie, que comportam satisfação em dife-rentes graus (ALEXY, 2015, p. 214-237).

Desse conceito de normas-princípios se dessume a máxima da proporcionalidade, com suas máximas parciais, que permitem com-preender como se dá a otimização: a) Adequação: critério negativo, que elimina os meios não adequados; b) Necessidade: exige que, en-tre os meios aproximadamente adequados, seja selecionado aquele que intervenha de modo menos intenso; e c) Proporcionalidade em sentido estrito: coincide com a lei do sopesamento, que se pretende

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parâmetro para solucionar, no plano jurídico, situações de colisão entre princípios3 (ALEXY, 2015, p. 588-611).

Essas premissas lastreiam a análise das restrições a direitos fundamentais – aos bens jurídicos e às posições prima facie por estes tutelados –, tidas como normas sempre compatíveis com a Constituição. Ausente essa condição, depara-se com intervenções em direitos fundamentais, mas, não, com restrições legítimas (ALE-XY, 2015, p. 276-295).

Devem, ainda, nortear os sopesamentos, sobretudo em situações de incerteza, os princípios formais, entre os quais se destaca o prin-cípio formal da decisão por parte do legislador democraticamente legitimado, concernente à competência decisória do legislador4.

Ávila (2018, p. 164-203) conceitua postulados como normas ime-diatamente metódicas, que estabelecem critérios de interpretação e de aplicação das outras espécies normativas: regras e princípios.

Entre esses postulados se insere a proporcionalidade, que im-põe aos poderes estatais que elejam, para a realização de seus fins (resultados concretos extrajurídicos), meios adequados, necessá-rios e proporcionais. A aplicação da proporcionalidade envolve, as-sim, uma “relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim” (ÁVILA, 2018, p. 203).

Ávila (2018, p. 220-221) propõe critérios para modular a intensi-dade do controle do Poder Judiciário sobre os atos do Legislativo e do Executivo que restringem direitos fundamentais. O âmbito desse controle e a exigência de justificação da restrição a uma posição jusfundamental deverão ser tanto maiores, quanto maior for: (1) a

3 “Quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 2015, p. 593).4 O princípio formal da decisão por parte do legislador democraticamente legitimado se relaciona intimamente com o reconhecimento ao Poder Legislativo de discricionariedade epistêmica (ou cognitiva), quando se revela incerto ou inseguro aquilo que é obrigatório, proibido ou facultado, por força dos direitos fundamentais, quanto às suas premissas em-píricas ou normativas (ALEXY, 2015, p. 295).

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condição para que se construa um juízo seguro sobre a questão tratada; (2) a evidência do equívoco da premissa escolhida como justificativa para a restrição; (3) a restrição ao bem tutelado cons-titucionalmente; e (4) a importância desse bem. Na direção oposta, tanto menores serão o âmbito de controle judicial e a exigência de justificação, quanto mais: “(1) duvidoso for o efeito futuro da lei; (2) difícil e técnico for o juízo exigido para o tratamento da matéria; e (3) aberta for a prerrogativa de ponderação atribuída ao Poder Le-gislativo pela Constituição”.

Tais parâmetros podem nortear não somente o controle da compatibilidade das leis com a Constituição, quanto à racionalidade de seus critérios e aos seus limites, mas todo o controle de juridi-cidade (ou constitucionalidade) dos atos estatais que exteriorizam o exercício do poder, sejam estes administrativos, legislativos ou jurisdicionais. Incidem não apenas sobre o controle exercido pelo Poder Judiciário, a que cabe dar a última palavra, mas às demais instâncias de controle interno e externo (e.g. Ministério Público, Tribunal de Contas, entre outras) dos atos e políticas emanados do Estado5.

3. PROPORCIONALIDADE, PANDEMIA E ABUSO DE PODER

No confronto de uma emergência em saúde de escala global como a COVID-19, com traços de ineditismo, os profissionais de saúde e as autoridades públicas caminham em terreno movediço, no domínio dos conhecimentos empíricos e científicos. A convicção em torno da eficácia de uma estratégia para a contenção da pande-mia cambia da noite para o dia.

5 Nessa esteira, Freitas (2010) propõe que, sem prejuízo da função de “controlador último” reconhecida ao Judiciário, devem os demais poderes (e instituições autônomas) tecer uma “rede de controle sinérgico e proativo” da constitucionalidade do atos do Estado, promo-vendo o crescente respeito ao princípio da deferência e atenuando a litigiosidade.

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A propósito, o STF, na ADI nº 5592/DF, reconheceu a aplica-ção, no âmbito do direito sanitário, dos princípios formais, origi-nalmente construídos na área ambiental, da precaução, que orienta a aplicação do direito no sentido de evitar os riscos (abstratos), em situações de incerteza; e da prevenção, que pretende elidir a prová-vel ocorrência dos danos em si.

De qualquer modo, as autoridades públicas devem atentar para os estudos já produzidos pelas instituições acreditadas no meio científico e, ainda, orientações dos órgãos de referência nacionais e internacionais, quando da edição de medidas predispostas a tutelar a saúde pública e que, ao mesmo tempo, afetem outros direitos de semelhante envergadura.

Parece ter sido esse o intento do legislador federal ao prescre-ver, no §1º, do art. 3º, da Lei nº 13.979/2020, que as medidas dirigidas a conter a nova variedade do coronavírus e a lidar com seus efeitos somente poderão ser determinadas com base em evidências cien-tíficas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde.

A essa altura, ganha importância o dever imposto às autori-dades públicas de justificar suas escolhas, corolário dos princípios da publicidade, transparência e do Estado Democrático de Direito. Viabiliza-se, com sua observância, não só o exercício racional das competências dos órgãos de controle – jurisdicional, político e ad-ministrativo –, mas o da liberdade pública, prerrogativa do povo de conhecer as razões e criticar as decisões de seus representantes6.

Assentadas essas premissas, após o reconhecimento da ESPII decorrente da COVID-19, União, estados, DF, e municípios, adota-ram várias medidas tendentes à contenção do vírus ou, ao menos, à diminuição do ritmo de contágio.

6 Sob esse enfoque, no julgamento do pedido cautelar na ADI nº 6341/DF, o Ministro Ed-son Facchin, em seu voto condutor, enalteceu o dever de justificação (ou de fundamenta-ção) das restrições impostas no atual estado de emergência sanitária, para preservar as liberdades individuais e a liberdade pública.

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Essas medidas, que claramente restringem direitos funda-mentais, têm como ponto de partida o relativo consenso, já aco-lhido pela OMS e pelo Ministério da Saúde, de que, na falta de um tratamento eficaz, cientificamente avalizado, o distanciamento/isolamento social constitui a estratégia adequada para retardar a velocidade de propagação da doença. Essa desaceleração pode ser representada pelo achatamento da curva de casos, que passa a ser perseguido para evitar o colapso dos serviços de saúde e mortes por desassistência.

Também prevalente até o momento a orientação de que o dis-tanciamento deve operar-se no plano horizontal, alcançando in-distintamente a maioria da população7 e, não apenas, no vertical, focando os grupos de risco (pacientes idosos, ou portadores de co-morbidades).

Emerge de tais observações que as medidas de combate à pan-demia, legislativas ou administrativas, que acabam por restringir di-reitos, devem eleger como fins (resultados concretos extrajurídicos) a redução do contágio e, de modo mais factível, de sua velocidade; bem como a preservação da capacidade de resposta dos sistemas de saúde às crescentes demandas assistenciais. Em última análise, tem-se como fim a proteção da saúde pública.

No entanto, tomando-se a proporcionalidade como critério ra-cional para a aferição da juridicidade das intervenções em direitos fundamentais, possível colher, do universo de medidas adotadas para debelar a pandemia, exemplos de intervenções ilegítimas, de-notando abuso de poder (excesso de poder ou desvio de finalidade).

Essa hipótese se sustenta, ainda que não se desvie do norte apontado pelo princípio da deferência, ainda mais firme diante do caráter técnico dos juízos envolvidos e da incerteza nos prognósti-cos, que têm sido a tônica na vivência desta crise sanitária e social.

7 Acerca do tema, cf. IMPERIAL COLLEGE COVID-19 RESPONSE TEAM (2020).

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Sem desconsiderar a quase inevitabilidade da ocorrência de ex-cessos na realidade caótica que se confronta, em respeito ao Estado Democrático de Direito, há de se apartar as restrições aos direitos fundamentais, justificadas pela ingente necessidade de tutela da vida e da saúde pública, das intervenções desproporcionais, que in-diciam abuso de poder.

É sob essa perspectiva que se desenvolverá a breve análise dos dois exemplos a seguir, com a profundida mínima necessária apenas para demonstrar o uso da proporcionalidade, principal corolário do substantive due process of law, como critério racional aferidor da legitimidade dos atos estatais nesse contexto excepcional.

Entre as medidas adotadas visando ao fomento do distancia-mento social está a de reduzir a oferta de transporte público urba-no, especialmente da frota circulante de ônibus8. Tal medida limita-dora da mobilidade urbana elege como fim imediato a mitigação do contágio da infecção entre os usuários do sistema, expostos a risco potencializado de contaminação.

Não tardou para que ganhassem os noticiários locais imagens de ônibus superlotados. A intervenção administrativa acabou aparente-mente produzindo resultados opostos àqueles visados, criando con-dições ainda mais propícias ao contágio. Foi ela proporcional?

Adequados são os meios que promovem os fins. Na situação posta, a diminuição da frota de ônibus, ainda que reunisse, em tese, potencial de desestimular a circulação de pessoas, acabou não sur-tindo esse efeito. Isso se deve, provavelmente, à elevada depen-dência do transporte público de significativa parcela da população, de modo que, mesmo reduzida a oferta do serviço, esses usuários continuam necessitando dele para seus deslocamentos, alguns dos

8 À guisa de ilustração, o Decreto nº 6.101, de 23/03/2020, do Município de Aracaju, no §10º, de seu art. 5º, previu a redução da frota circulante das empresas de transporte coletivo, em 30% fora dos horários de pico, em dias úteis; e em 50% aos sábados, domingos e feriados.

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quais inevitáveis: ir ao trabalho, comprar alimentos ou medicamen-tos, entre outros.

Assim, o descompasso entre a disponibilidade de transporte público – fortemente reduzida – e a demanda pelo serviço – leve-mente contraída – resulta em ônibus superlotados, ambientes com alto risco de transmissão do vírus. Vale dizer, ainda que se reduza o número de usuários, potencializam-se os riscos de contágio para aqueles que não podem deixar de acessar esse serviço público. Sob esse prisma, figura como inadequado o meio escolhido.

Mesmo que se aceite a objeção de que tal inadequação não é manifesta, a análise seguinte, pautada pela necessidade, parece conduzir a conclusões semelhantes.

O exame da necessidade do meio é essencialmente compara-tivo, pressupondo a investigação de alternativas com efetividade igual ao superior à intervenção que lhe serve de parâmetro e que afetem, com menor intensidade, os outros direitos fundamentais atingidos, nesta hipótese, os direitos à liberdade (ambulatória), ao trabalho, ao bem-estar, entre outros.

Nessa avaliação comparativa, aceita-se como premissa que, diante da COVID-19, se a prioridade do Estado é tutelar a saúde pú-blica, os custos das empresas de ônibus, naturalmente impactados pela retração da demanda, devem receber um peso menor. Partindo desse referencial, plausível sustentar que a oferta de transporte de-veria ser mantida e eventualmente ampliada nos horários de pico9, como medida eficaz para proteger a saúde e menos invasiva em re-lação aos demais direitos já listados.

9 Na mesma linha do argumento exposto, Marcus Quintella, Coordenador da FGV Trans-portes, sustenta, que, quanto menos suficiente o transporte público, mais pessoas se aglo-meram, seja no próprio veículo, ônibus, trem ou metrô, seja nos pontos, plataformas e es-tações (FGV, 2020). Em vez de reduzir a mobilidade urbana, a intervenção analisada acaba aumentando o ritmo de propagação da infecção virótica.

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Igualmente significativo o exemplo extraído de decretos10 que ordenaram a redução da quantidade de funcionários das agências bancárias, bem como a limitação do quantitativo de atendimentos, com agendamento remoto, e disponibilização de senha por telefone ou internet.

Logo se constatou, a partir de imagens divulgadas na imprensa e nas redes sociais, o aumento desmesurado do tamanho das filas de clientes, dentro e fora das agências, com o aparente desprezo da distância recomendada para diminuir os riscos de contaminação.

Ainda que não se possa desconsiderar os impactos das próprias medidas de controle sanitário para a formação de extensas filas nesses estabelecimentos, irrefutável a ilação de que a diminuição no quantitativo de funcionários e de atendimentos se revelou, sob todos as vertentes de análise, medida ineficaz para evitar aglomera-ções nas agências bancárias.

A projeção da aplicação prática de tais intervenções deixa ainda mais evidenciada a extrapolação dos limites racionais ao exercício do poder. É que, em comunidades pobres, sobretudo nos municípios do interior, com escasso acesso aos recursos digitais e, inclusive, à internet, o agendamento remoto do atendimento na rede bancária se apresenta, a toda prova, instrumento inefetivo para a contenção da frequência dos clientes nas agências. Desse modo, a medida não guarda congruência com as condições materiais de vida de parce-la significativa da população, que não pode prescindir dos serviços bancários.

10 Consultar, nesse sentido, o §7º, do art. 2º, do Decreto nº 40.567, de 25/03/2020, do Estado de Sergipe.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como adverte Boaventura de Sousa Santos (2020), a pandemia “confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está condenada ao fracasso, dado que a rea-lidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela”.

Sem desconsiderar esse ambiente de incertezas, buscou-se identificar neste trabalho, no universo de medidas adotadas em meio à emergência sanitária da COVID-19, intervenções que des-bordam da moldura dada pelo direito, configurando abuso de poder.

À luz do devido processo legal substancial e do postulado da proporcionalidade deste decorrente – sob os vieses da adequação e da necessidade –, analisaram-se exemplos de intervenções que representam incursões arbitrárias sobre direitos fundamentais dos cidadãos, a pretexto do enfrentamento à pandemia.

Essa asserção se sustenta ainda que o exame empreendido não tenha neglicenciado o princípio da deferência às decisões dos poderes políticos, cuja observância ganha ainda maior relevo no momento atual, em que as restrições a posições jusfundamentais tentam se firmar em solo pantanoso, quanto aos seus pressupostos empíricos, técnico-científicos e até jurídicos.

Ainda que se tenha presente a inevitabilidade fática de abusos eventuais no desenhado cenário de emergência, a contenção do ar-bítrio e a valorização dos direitos fundamentais despontam como missões inafastáveis do Estado Democrático de Direito.

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A CONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA DE AFASTAMENTO DO LAR PELO DELEGADO DE

POLÍCIA

CarloS alberto MenezeS*1SaMyle reGina MatoS oliveira**2

antônio WellinGton brito Júnior***3

Resumo O presente estudo demonstrará a constitucionalidade do artigo 12-C, II, da Lei nº 11.340/2006, que autoriza o delegado de polícia a determinar o afasta-mento do lar daquele que pratica delito em cenário de violência doméstica e familiar contra a mulher. Discorrerá sobre os fundamentos suscitados na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.138, aforada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), objetivando demonstrar que a prerrogativa estendida à autoridade policial não viola nem a separação de poderes, nem o devido processo legal e nem a cláusula de reserva jurisdicional, além de se coa-dunar com os postulados constitucionais que asseguram a dignidade humana e a vedação à proteção insuficiente dos direitos fundamentais. Palavras-chave: Afastamento do lar. Delegado de polícia. Constitucionalidade.

* Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor Associado da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal. Professor da Pós-Graduação Stricto Sensu da UFS. Email: [email protected]. ** Doutoranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Ciência Jurídica pelo Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professora e coordenadora do curso de Direito da Universidade Tiraden-tes, campus Propriá. Email: [email protected]. *** Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Pós-gra-duado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Delegado de Polícia do Estado de Sergipe. Pro-fessor da Pós-graduação latu sensu em Direito Constitucional do IEJUR (Instituto de Estudos Jurídicos/DF), na modalidade Ensino à Distância (EAD). Email: [email protected].

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A CONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA DE AFASTAMENTO DO LAR PELO DELEGADO DE POLÍCIA

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AbstractThe present study will demonstrate the constitutionality of article 12-C, II, of Law nº 11,340/2006, a provision that authorized the police chief to determine the removal of the home of the person who commits an offense in a scenario of domestic and family violence against women. It will discuss the arguments presented in Direct Action of Unconstitutionality nº. 6,138, was filed by the As-sociation of Brazilian Judges, to demonstrate that the prerogative extended to the police chief does not violate neither the separation of powers, nor the due legal process and neither the judicial reserve clause, in addition to being con-sistent with the constitutional postulates that ensure human dignity and the prohibition of insufficient protection of fundamental rights.

Keywords: Removal from home. Police chief. Constitutionality.

INTRODUÇÃO

A Lei 13.827/2019 modificou os termos do art. 12 da Lei 11.360/2006 (Lei Maria da Penha), a fim de determinar o dever de Estados e Distrito Federal de instituírem unidades especializadas e núcleos investigativos dentro da polícia civil para o atendimento e a investigação de casos de feminicídios e ofensas graves contra a mulher (art. 12-A), prevendo ainda o poder de delegados de polícia requisitarem os serviços públicos necessários para a proteção dos bens cuja legislação referida tenciona resguardar (art. 12-B, § 3º).

A inovação na lei permite o afastamento domiciliar do agres-sor por determinação da autoridade policial em casos de violência doméstica contra mulher ou dependentes, com risco atual ou imi-nente à vida ou à integridade física, em município que não seja sede de comarca, evitando lesão irreversível quando não for possível o pronto pronunciamento do magistrado.

Insurgindo-se contra essa inovação, a Associação dos Magis-trados Brasileiros (AMB) ajuizou a ADI 6.138, atacando a possibili-dade desse afastamento do agressor por ordem policial e argumen-

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Carlos Alberto Menezes; Samyle Regina Matos Oliveira; Antônio Wellington Brito Júnior

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tando violação aos princípios constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV), da separação de poderes (art. 60, § 4º, III) e da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI).

O objetivo deste estudo é demonstrar a constitucionalidade da hipótese legal do afastamento do agressor do domicílio pelo juiz e pelo delegado quando houver risco à vida ou à integridade da mu-lher, partindo de uma visão holística dos normativos pertinentes e demonstrando a inconsistência dos argumentos suscitados pela AMB na ADI 6.138.

Os problemas formulados são: a) é constitucional o afastamen-to do lar por ordem do delegado de polícia em crimes cometidos em cenário de violência doméstica?; b) em caso positivo, em que hipó-teses a referida ordem é possível?; c) a medida de afastamento do lar, efetivada pelo chefe de polícia, atende ao escopo de um direito penal garantista, sendo adequada, proporcional e razoável? d) nes-sas hipóteses, é admissível o encaminhamento do agressor a grupos reflexivos implementados por políticas públicas menos danosas? e) será que sempre se deve investir na pena privativa de liberdade ou será que é mais prudente, em determinadas hipóteses, conjugar o distanciamento do agressor do lar com ações concretas capazes de conduzi-lo a reflexões pedagógicas sobre seus atos, promovendo--se o respeito aos direitos das mulheres?

1. A METODOLOGIA

Faz-se uma análise jurídica centrada na necessidade da prote-ção adequada, proporcional e ágil da defesa da dignidade da mu-lher (e de seus dependentes), vítima da violência doméstica, o que conclama para uma pronta resposta estatal, embasada na proteção suficiente de bens jurídicos e em mecanismos eficazes no processo de responsabilização do agressor em todas as dimensões.

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Sendo assim, a defesa da constitucionalidade do art. 12-C, II, da Lei 11.360/2006 partirá das seguintes premissas: a) o papel histórico do delegado e sua peculiar importância na persecução penal brasi-leira enquanto garantidor dos direitos fundamentais; b) a inexistên-cia de ofensa à cláusula de reserva jurisdicional; c) a prerrogativa discricionária conferida legalmente ao delegado na proteção dos bens jurídicos alhures declinados quando incursiona em análises técnico-jurídicas de natureza pré-processual; d) o respeito pelo de-vido processo legal e pela higidez da separação de funções estatais; e) a reverência a uma persecução penal que avalize concomitante-mente a integridade das vítimas e a responsabilização do agressor.

O método científico utilizado será o dialético e as fontes de pesquisa são bibliográficas, priorizando-se os aspectos constitucio-nais e uma interpretação garantista dos direitos fundamentais.

2. O PAPEL HISTÓRICO DO DELEGADO DE POLÍCIA

No Brasil o delegado de polícia desempenha funções investiga-tórias e judiciárias, e, conforme explica Perazzoni, a investigação de delitos fica a cargo do chefe de polícia (2011, p. 91).

É importante esclarecer que a função do inquérito não está restri-ta à reunião de subsídios destinados à formação da opinio delicti pelo Ministério Público (PEREIRA, 2017, p. 27-28), pois o inquérito não se confunde com a ação penal, podendo até mesmo ser óbice ao proces-samento de investigados que não reúnem contra si os indícios de auto-ria e nem provas de materialidade delitiva, consoante reconhecido pelo STF no julgamento da ADI nº 3.441 (CABETE, SANNINI, 2018, p. 294).

Tirante o aspecto investigativo, o papel do delegado está mais próximo da Magistratura do que do Ministério Público, pois perse-gue a descoberta da verdade, auxiliando na correta aplicação da jus-tiça, ainda que contrariando as finalidades ministeriais acusatórias.

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Por isso, uma breve incursão histórica é pertinente. Em 1841, na vigência da Lei 261, as autoridades policiais eram nomeadas entre juízes e cidadãos respeitáveis. Analisavam casos criminais menos graves e expediam mandados de busca e apreensão e prisão de de-nunciados, situação que apenas se altera em 1871 quando passaram a julgar ilícitos penais, estatuindo-se o inquérito policial como me-canismo exclusivo de apuração criminal (PERAZZONI, 2011, p. 82). Com a República, os entes federados passaram a ter competência para legislar concorrentemente sobre processo penal, até que, com o advento do Código de Processo Penal de 1943, a autoridade po-licial desvinculou-se da magistratura, substituindo-se a expressão “jurisdições” por “circunscrições” (PEREIRA, 2017, p. 45).

A Constituição de 1988 conferiu mudanças significativas. Atri-buiu a autoridades distintas as prerrogativas de investigar, proces-sar e julgar. Exigiu o provimento do cargo de delegado por uma carreira específica, nos termos do art. 144, § 4º, incumbindo-lhe a direção das polícias civis e federal. Por fim, demarcou para o cargo suas principais funções: a investigativa e a judiciária, encarnando a segunda uma postura proativa que vai além da incumbência de apenas cumprir as requisições dos juízes. Ao delegado atribuiu-se, além da prerrogativa de representação ao juiz de medidas restriti-vas da liberdade, a imposição direta de medidas coercitivas em face da privacidade e do patrimônio do investigado nos limites da lei, o que se resume nas seguintes previsões: a) a representação para concessão judicial de medidas cautelares, entre as quais a prisão provisória e o sequestro de bens (arts. 13, IV, 127, 282, § 2º, 311, CPP, art. 2º da Lei 7.960/1989); b) o arbitramento de fiança para delitos de pena máxima não excedente a quatro anos ou em relação aos quais a lei não estabeleça desde logo a inafiançabilidade (arts. 322 e 323, CPP); c) a concessão de liberdade provisória uma vez adimplida a fiança arbitrada a partir dos parâmetros normativos (art. 327, CPP);

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d) a apreensão dos bens ilicitamente produzidos ou reproduzidos (art. 530-B, CPP); e) a restituição de coisas apreendidas durante o apuratório acaso desimportantes para a investigação ou para o processo (art. 120, CPP); f) a requisição de exames periciais, dados, informações e documentos (art. 13-A, 13-B, CPP, arts. 2º, § 2º, da Lei 12.830/2013, arts. 15, 16 e 17 da Lei 12.850/2013); g) a condução coercitiva de testemunhas e investigados (art. 260, CPP); h) a auto-rização para participação de detetive particular em colaboração su-plementar à investigação oficial, mediante conveniência e oportuni-dade (art. 5º, § único, da Lei 13.432/2017); i) a celebração de acordos de colaboração premiada com delatores dispostos a colaborar com a Justiça (art. 4º, § 2º, da Lei 12.850/2013); j) a concessão de soltura imediata ao preso quando da fluência in albis do prazo da prisão temporária, ainda que sem ordem expressa do magistrado (art. 2º, § 7º, da Lei 7.960/1989).

Depreende-se que, além das prerrogativas quanto aos atos in-vestigativos, a autoridade policial possui atribuições judiciárias au-tônomas, realizando análises de alta complexidade técnica, exigin-do-se que o ingresso no cargo se dê por concurso público privativo de bacharel em direito, nos termos no art. 3º da Lei 12.830/2013 (CABETE, SANNINI, 2018, p. 295-297).

Por tais razões, os demais membros da polícia judiciária não são dotados de permissão constitucional para deliberar sobre a cautelar do afastamento do lar, mesmo na hipótese de ausência do gestor na delegacia sita em município que não seja sede da comarca.

3. AS PRERROGATIVAS DE FUNÇÃO JUDICIÁRIA E A CLÁU-SULA DE RESERVA JURISDICIONAL

Na ADI 6.138 a AMB argumentou que a imposição do afastamen-to domiciliar do agressor em caso de violência doméstica contra a

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mulher (ou seus dependentes) fere o teor do artigo 5º, XI, da Cons-tituição Federal, segundo o qual a casa é asilo inviolável.

Apesar da função de proteger a integridade da vítima, a deter-minação pelo delegado do afastamento do agressor não se subso-me ao referido dispositivo, devendo a autoridade policial, diante da urgência do caso, expedir ordem para que o investigado se retire momentaneamente da residência do casal, até que o juiz se mani-feste sobre a medida, no prazo máximo de vinte e quatro horas da comunicação do ocorrido.

São dois os detalhes que chamam a atenção. O primeiro é que, excetuadas as ressalvas constitucionais ex-

pressas, não se determinará o ingresso forçado na residência, mas apenas se comunicará o investigado da determinação para a saída imediata e temporária do domicílio. Havendo descumprimento, o investigado incorre em crime de desobediência, assumindo o ris-co de uma prisão em flagrante. Havendo o cumprimento, mini-miza-se a conjuntura de detenção flagrancial, preservando-se a integridade física e psíquica da ofendida (ou de seus dependentes). A suposta inconstitucionalidade apontada pela AMB na ADI 6.138 decorre de má interpretação do dispositivo, que não propõe a re-tirada forçada do morador de sua residência, mas a comunicação para que se retire.

O segundo é o de que o afastamento do investigado de sua pro-priedade não ocorrerá por prazo indeterminado, mas pelo prazo máximo de quarenta e oito horas, lapso compreendido entre a or-dem de afastamento pelo delegado e o tempo conferido ao juiz para delibação acerca da correção da medida, sem prejuízo de prorroga-ção por ordem judicial.

A despeito dos recursos tecnológicos que permitem a rápida troca de informações entre os órgãos da persecução penal pela via eletrônica, confrontando-se a burocracia e alavancando-se a cele-

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ridade (ALCÂNTARA, GALLINARO, MARTINS, 2018, p. 566-567), ain-da existem em nosso país localidades distantes e desprovidas des-ses recursos, dificultando o contato direto entre delegado e juiz, de modo que, em razão da situação de urgência e não sendo caso de prisão em flagrante delito, nada obsta que o delegado expeça uma ordem provisória de afastamento domiciliar, cuja correção será analisada dentro de um prazo exíguo pelo juiz, o qual poderá re-vogá-la, mantê-la ou até mesmo decidir pela decretação da prisão preventiva. Obstar tal determinação pela autoridade policial impor-taria em também sonegar inúmeras prerrogativas espalhadas no CPP e em leis esparsas que retratam diretrizes análogas. Situações como a homologação da prisão em flagrante e apreensão de bens obtidos ilicitamente são exemplos em que o delegado analisa se os parâmetros legais autorizam a tomada de medidas restritivas sem pronunciamento prévio do magistrado, cabendo ao juiz deliberar, o mais rápido possível, acerca da manutenção ou não da medida, impondo a cessação dela sempre que ilegal ou desnecessária.

4. OS ARGUMENTOS DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

A AMB alegou na ADI 6.138 que a autorização policial para o afastamento domiciliar do investigado feria a separação de poderes e o devido processo legal, possibilitando ao Executivo imiscuir-se em atribuições de caráter jurisdicional.

Embora a polícia judiciária formalmente costume integrar a Ad-ministração Pública, materialmente se aproxima do Judiciário quan-to aos atos de restrição a direitos fundamentais.

Ferrajoli (2002) trata da complexidade sobre a separação abso-luta entre poder judiciário e polícia judiciária, revelando atribuições que se interconectam de maneira simbiótica. No Brasil, o delegado

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de polícia exerce a atribuição de impor, ainda que provisoriamente, restrições às liberdades fundamentais, cuja legalidade e pertinên-cia sempre ficarão sob a supervisão do magistrado, em virtude do sistema persecutório pátrio, concebido no viés filosófico garantista que destrincha em órgãos diversos as prerrogativas de investigar, acusar e julgar (BADARÓ, 2003, p. 112).

Com a vigência da república, o juiz passou a atuar de forma ex-cepcional e imparcial no inquérito, com foco nos rumos do apura-tório e sem a obrigatoriedade de alcançar evidências necessárias à condenação dos investigados. A acusação foi atribuída, como regra, ao Ministério Público, parte na ação penal pública incondicionada. Entrementes, a separação das relevantes prerrogativas de investi-gar, processar e julgar sofreu revezes quando o parquet assumiu po-deres investigatórios próprios aos do delegado, afetando o modelo acusatório garantista, voltado ao resguardo do tratamento isonô-mico entre defesa e acusação, outorgando-se ao investigado/réu o status de sujeito de direitos (CHOUKR, 1995, p. 8).

Medidas como determinação do delegado para que o investigado se retire provisoriamente de sua residência em razão de imputação de violência doméstica cumprem os dogmas do garantismo penal1,

1 Ferrajoli apresenta três conceitos de “garantismo”. O primeiro designa um modelo norma-tivo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita le-galidade”, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a máxima liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. [...] Em um segundo significado, “garantismo” designa uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” como categorias distintas não só entre si mas, também, pela “existência” ou “vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproxi-mação teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” do direito. (FERRAJOLI, 2002, p. 694). [...] De acordo com um terceiro significado, por fim, “garantismo” designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido, o garantismo (pressupõe) a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. (FERRAJOLI, 2002, p. 694).

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evitando que o julgador seja influenciado por uma das partes, crítica que sempre se agudiza quando se vislumbra uma participação contu-maz do magistrado no desenrolar da apuração preliminar dos fatos.

Daí se nota que a separação das funções de investigar, acusar e julgar concretiza plenamente o devido processo legal constitucional numa lógica de contenção do poder que assegure ao investigado/indiciado/acusado um desfecho justo da persecução penal.

5. A VEDAÇÃO À PROTEÇÃO INSUFICIENTE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição Federal, em seu art. 5º, § 1º, confere aplicabi-lidade imediata às normas estatuintes de direitos e garantias fun-damentais e tais preceitos devem ser interpretados de modo a se extrair deles a máxima efetividade. Havendo colisão normativa, o intérprete harmonizará a decisão, preservando o núcleo principio-lógico essencial, buscando o alcance de uma proteção suficiente e necessária.

Quanto à proteção suficiente, veda-se o excesso na restrição ao direito fundamental e, de outro lado, veda-se também que a prote-ção estatal seja insuficiente (BARROSO, 2019, p. 512), homenagean-do-se a técnica da proporcionalidade.

As leis, na atual sociedade pluralista, tendem a certa abstra-ção e generalidade, pois são promulgadas conjugando os interesses plurais dos grupos representados pelos parlamentares. O recurso a uma semântica aberta e indeterminada, em algumas ocasiões, atende à estratégia de não versar acerca de projetos que, uma vez aprovados, enfureceriam camadas influentes da comunidade, inde-pendentemente da solução dada (DWORKIN, 2019, p. 18).

No uso da técnica da proporcionalidade, destacam-se os veto-res da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sen-

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tido estrito, a realçar um controle de sintonia entre a justeza da medida e a imprescindibilidade da intervenção estatal (MENDES, BRANCO, 2015, p. 227).

O art. 12-C da Lei 11.360/2006 abre a possibilidade de uma coa-ção menos danosa do que a consistente na privação imediata da li-berdade. Diante de uma situação urgente de violência contra a mu-lher, se o delegado não tem a opção de determinar o afastamento domiciliar do agressor (ou porque nem a lei e nem os tribunais lho permitem), tenderá à lavratura do flagrante, ainda que a primeira escolha soe mais adequada2.

A previsão legal de afastamento domiciliar depõe, portanto, contra a banalização dos efeitos deletérios do cárcere. Explica Sou-za Netto (2002, p. 177) que os códigos processuais modernos en-veredaram por um sistema menos gravoso de medidas cautelares substitutivas, ficando a custódia provisória circunscrita aos casos de extrema necessidade. Para Fernandes (2015, p. 240), “a Lei Ma-ria da Penha traz um modelo dotado de efetividade para proteger a vítima, reeducar o agressor e romper o ciclo da violência, ora deno-minado processo protetivo”.

Destarte, considerando a técnica da proporcionalidade, a de-terminação para o afastamento domiciliar do pretenso agressor pela autoridade policial e o possível encaminhamento deste a um grupo reflexivo (quando houver)3 serão providências: a) necessárias,

2 Vieira de Carvalho (2018, p. 190) defende que o encaminhamento do autor da violência doméstica para os grupos reflexivos “pode ser utilizado como política pública tanto de prevenção à violência doméstica, quanto visando a proteção da vítima”. Acrescenta, ainda, que “no caso do encaminhamento compulsório, apesar das críticas, seria concomitante à investigação, processo penal e condenação”. Em outras palavras, caso o agressor não quei-ra voluntariamente participar de um grupo reflexivo, defende que o seu encaminhamento pode ser feito pelo próprio delegado.3 É fundamental lembrar que para Vieira de Carvalho (2018, p. 191), “[...] o encaminhamento aos grupos reflexivos, após a prática da violência, mas ainda na fase de investigação, não violaria o direito de defesa e o contraditório, e demonstraria que o autor precisa desta assistência, e seria considerado como uma nova modalidade de medida protetiva de ur-gência, de caráter autônomo”.

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pois refletem medidas indispensáveis na proteção da integridade física e psíquica da mulher e/ou de seus dependentes, incorporan-do preocupação com a responsabilização e a reinserção social do agressor, o que contribui para uma restauração familiar; b) adequa-das, pois se mostram capazes de eliminar o risco imediato que cir-cunda o conflito; c) proporcionais em sentido estrito, pois afetarão provisoriamente o patrimônio no escopo de minimizar os efeitos deletérios ínsitos à prisão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estrutura da persecução penal brasileira se consolidou na perspectiva garantista de um devido processo legal em que as fun-ções de investigar, processar e julgar se encontram separadas. Com a inserção da figura do juiz de garantias pela lei 13.964 de 2019, evi-denciou-se que o agir oficioso do magistrado deve se dar em ca-ráter excepcional, a fim de que se privilegie sua imparcialidade, sendo premente o afastamento do juiz das questões relacionadas à investigação preliminar, reservando-se a direção do apuratório ao delegado, cujo plexo de atribuições guarda caráter apuratório e ju-diciário.

A visão equivocada que limita a carreira do delegado ao caráter estritamente apuratório foi posta à prova quando a AMB aforou a ADI 6.138, questionando a constitucionalidade do art. 12-C, sob o argu-mento de que houvesse ofensa à cláusula de reserva jurisdicional, à separação de funções ou poderes estatais e ao devido processo legal.

O presente trabalho demonstrou que a inconstitucionalidade alegada pela AMB se restringe à concessão de poderes decisórios aos demais integrantes das polícias civis e federal. Demonstrou-se que o delegado é dotado de poderes decisórios que restringem bens fundamentais relacionados à liberdade, ao patrimônio e à privaci-

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dade, sendo constitucional não apenas a determinação de afasta-mento do lar do agressor que pratica violência doméstica, como também o seu encaminhamento a grupos reflexivos, desde que a ordem emane das autoridades policial ou judicial. Quanto à cláusula de reserva de jurisdição, demonstrou-se que a lei apenas permitiu a emissão de ordem para que o agressor se afaste do lar conjugal. No que toca à separação de poderes, provou-se que o delegado, em-bora integre a estrutura do Executivo, concentra atribuições que o aproximam do Judiciário. No concernente ao devido processo legal, o conceito se relaciona intimamente com uma persecução penal em que o investigado se apresenta como sujeito dotado de direitos, entre os quais se prestigia o de ser julgado por um juiz imparcial e equidistante às partes.

Por derradeiro, foram feitos aportes à técnica da proporciona-lidade, realçando-se a necessidade de uma persecução que proteja suficientemente os bens jurídicos sem se descurar de ações ade-quadas, necessárias e proporcionais.

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A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS

HUMANOS COMO GARANTIA DE CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

Maria tereza tarGino Hora*1

Clara anGéliCa GonçalveS CavalCanti diaS**2

ResumoO presente trabalho faz uma análise acerca do direito à liberdade de ex-pressão e informação, o qual é garantido de modo amplo pela Convenção Americana de Direitos Humanos com enfoque no estudo dos casos apre-ciados pela Corte Interamericana. Nas decisões proferidas pelo Tribunal in-ternacional em questão, observa-se a importância conferida à estreita rela-ção existente entre a democracia e a liberdade de expressão, assim como o reconhecimento do limiar de proteção diferenciado outorgado ao referido direito fundamental, quando veiculadas ideias, pensamentos, expressões e fatos de interesse público, a fim de garantir a sua ampla proteção e, por conseguinte, permitir a efetividade do sistema democrático. Palavras-chave: Liberdade de expressão. Democracia. Direito preferencial. Corte Interamericana.

* Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Departamento de Pós Gra-duação em Direito. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Guanambi. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Procuradora do Estado de Sergipe e Ad-vogada. Aracaju, Sergipe. Contato telefônico: 79 – 991312891. Correio eletrônico: [email protected].** Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Efe-tiva Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe, lotada no Departamento de Direito. Professora da Pós-Graduação Stricto-Sensu (Mestrado) em Direito da Univer-sidade Federal de Sergipe. Correio eletrônico: [email protected].

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A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS COMO GARANTIA DE CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

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AbstractThe present study analyzes the right to freedom of expression and informa-tion, which is broadly guaranteed by the Inter-American Convention of Human Rights with a focus on the study of cases considered by the Inter-American Court. Of the decisions issued by the international Court in the question, the importance given to the close relationship between democracy and freedom of expression is observed, as well as the recognition of the differentiated pro-tection threshold conferred to said fundamental right, when ideas, thoughts, expressions and facts of public interest are coveyed, in order to guarantee their protection and allow the effectiveness of the democratic system.Keywords: Freedom of expression. Democracy. Preferential law. Inter-Ameri-can Court.

INTRODUÇÃO

A liberdade de expressão serve de fundamento para o exercício de outras liberdades, assim como o seu pleno exercício constitui requisito primordial à garantia do Estado Democrático de Direito, considerando que a democracia tem como pressuposto a participa-ção de todos na tomada de decisões do Estado, seja diretamente ou por meio de seus representantes, de tal modo que o direito a infor-mar e ser informado, representa papel de fundamental importância na participação política dos cidadãos na esfera pública.

No contexto atual, a justificativa para a proteção da liberdade de expressão não mais se restringe ao argumento individualis-ta original, derivado das noções de dignidade e autonomia, mas está pautado, primordialmente, na chamada teoria democrática do direito à liberdade de expressão, de raiz norte-americana, a qual atribui uma posição privilegiada a esta liberdade em relação a outros direitos constitucionais ou bens legais, desde que en-volvida a comunicação de expressões destinadas a formação da opinião pública.

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O presente artigo examina o modo como o direito à liberda-de de expressão, reconhecido na Convenção Americana de Direi-tos Humanos, é interpretado pela Corte Interamericana. Para tanto, passa-se ao estudo das liberdades de expressão e informação no Sistema Interamericano, com enfoque na forma como o referido Tribunal internacional vem solucionando e abordando os conflitos e tensões apresentados em relação ao tema.

Na sequência, será especificamente abordado o Caso Lagos Del Campo, mais recente decisão da Corte internacional a versar sobre a liberdade de expressão, perfectibilizando uma análise crítica so-bre a posição preferencial deste direito quando do julgamento da referida demanda.

1. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO NO SISTEMA INTERAMERICANO E O CASO LAGOS DEL CAM-PO VS. PERU

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, estabelecida há mais de quarenta anos, já teve a oportunidade de se pronunciar acerca de diversos direitos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 e, dentre os temas examinados, fi-gura a liberdade de pensamento e de expressão, a qual encontra-se garantida no seu art. 13. Eis o teor do dispositivo:

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de

expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar,

receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem

consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou

em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro pro-

cesso de sua escolha.

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A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS COMO GARANTIA DE CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

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2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não

pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades

ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser

necessárias para assegurar:

a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas;

ou

b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da

saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou

meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou

particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelé-

tricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de

informação, nem por quaisquer outros meios destinados a

obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura pré-

via, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para

proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo

do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem

como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que

constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime

ou à violência.

De leitura do supracitado artigo, observa-se que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos consagrou o direito à liberdade de pensamento e expressão de forma vasta, abrangendo a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem considerações de fronteiras.

Nos termos do item 2, é vedada a censura prévia, admitindo-se tão somente a responsabilização ulterior necessária para assegurar o respeito dos direitos e da reputação dos atingidos pela informa-

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ção, assim como a proteção da segurança nacional, da ordem, saúde ou moral públicas. Registre-se que o item 4 autoriza que a legisla-ção, com o objetivo único de regular o acesso a espetáculos públicos e com o fim de proteção moral da infância e da adolescência, os classifique de forma prévia.

O item 3 proíbe a restrição ao direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particu-lares do papel da imprensa, rádios e demais aparelhos utilizados na difusão da informação ou quaisquer outros mecanismos que visem impedir a comunicado e circulação de ideias e opiniões.

Por fim, o item 5 estabelece um limite claro à liberdade de ex-pressão ao vedar toda e qualquer propaganda a favor de guerra e toda apologia ao ódio seja ele nacional, racial ou religioso. É possível observar, assim, que o Sistema Interamericano, tal como ocorre no ordenamento interno brasileiro, limita ao máximo as restrições à liberdade de expressão.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, desde o início da sua atuação, preocupou-se em estabelecer a relevância da liberda-de de expressão na sociedade democrática afirmando, no Parecer Consultivo OC-5/85, ser a mesma indispensável para a formação da opinião pública, assim como conditio sine qua non para que os par-tidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e, em geral, quem deseje influir sobre a coletividade, pudessem se desenvolver plenamente. (Opinión Consultiva – OC 5/85, par. 70).

Constata-se que, para a Corte internacional, a importância do direito à liberdade de expressão e informação no Sistema Interame-ricano de Direitos Humanos decorre, dentre outros argumentos, do seu reconhecimento como elemento fundamental para sustentação e promoção da democracia.

Isso porque, o conceito de ordem pública reclama que, dentro de uma sociedade democrática, seja garantida a livre circulação de

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notícias, ideias e opiniões, assim como o acesso amplo à informa-ção com todas as suas possibilidades, de modo a permitir que cada indivíduo possa formar e expor sua opinião acerca dos fatos ocor-ridos. A liberdade de expressão está, assim, no epicentro de uma sociedade democrática, por ser instrumento indispensável para a formação da opinião pública, motivo pelo qual é cabível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre.

Igualmente, confere-se uma proteção diferenciada à liberdade de expressão quando em confronto com outros princípios ou bens jurídicos. Isso porque, já reconheceu a CIDH que deve existir uma maior margem de tolerância frente a afirmações e apreciações fei-tas no curso dos debates políticos ou sobre questões de interesse público, uma vez que o controle democrático por parte da socieda-de, através da opinião pública, promove a transparência das ativida-des estatais e fomenta a responsabilidade dos funcionários sobre a gestão da coisa pública. (Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica, par. 127).

Alexandre H. Catalá Bas, ao discutir a respeito do direito de a sociedade saber de assuntos de interesse público, assevera que

Esta afirmação [de a sociedade ter o direito de saber a res-

peito dos assuntos de interesse público] se extrairá de uma

multidão de sentenças, especialmente aquelas em que o de-

mandante é um profissional da informação como maneira de

reforçar a essencialidade do direito em uma sociedade demo-

crática que não se satisfaz como o emissor, mas sim neces-

sita do outros extremo da comunicação. O direito do grande

público a ser informado em relação às questões que afetam

assuntos de interesse geral é a outra cara da moeda. Se o di-

reito a comunicar tem um corte individual, o direito a receber

tem, essencialmente, uma dimensão coletiva. Isso exige que

as cláusulas que limitam as faculdades de investigar, de co-

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municar e de criar meios de comunicação terão de ser inter-

pretadas de forma estrita de maneira que respondam a uma

necessidade imperiosa. (BAS, 2001, p.147).

Em contrapartida, caso a informação divulgada não esteja relacionada

com matéria de interesse público, em que pese a tutela constitucional da li-

berdade seja mantida, tal direito não pode ser considerado como um direi-

to fundamental preferencial em relação aos demais direitos fundamentais.

Registre-se que o interesse público estará presente não apenas quando a

matéria veiculada for relevante para a comunidade, mas também em razão

do caráter público da pessoa a que se refere o acontecimento em si.

A referida justificativa democrática permite a elevação da liberdade de

expressão ao status de direito fundamental prima facie em face dos demais

direitos fundamentais, quando relacionada a temas de interesse público.

Caso a citada liberdade, quando atrelada a assuntos de interesse público,

não for tratada de uma forma privilegiada, como um direito fundamental

preferencial, a veiculação de ideias, pensamentos, expressões e fatos não

estará razoavelmente protegida, dificultando-se a efetividade do sistema

democrático. (CHEQUER, 2011, p. 245).

Ressaltando a relevância da liberdade de expressão para esse contexto

de organização social democrática, Ronald Dworkin aduz que

A soberania popular demanda que o povo – e não os funcio-

nários – tenham o poder final do governo. Mas se os diri-

gentes se lhes permite castigar as críticas de suas decisões

tipificando-as como “sedição”, impedir a população de infor-

mação que poderia dar lugar a ditas críticas ou proibir no-

vos partidos ou periódicos que poderiam extrair à luz de seus

erros ou crimes, então o povo não é quem manda, ou não é

completamente. Portanto, uma estrutura constitucional que

garante a liberdade de expressão contra censura oficial pro-

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tege os cidadãos em seu papel democrático como soberanos.

(DWORKIN, 2003, p. 396).

A liberdade de expressão tem uma dimensão individual e uma di-mensão social. Na sua dimensão individual, a liberdade de expressão não se esgota no reconhecimento teórico do direito de falar ou es-crever, mas também compreende, inevitavelmente, o direito a utilizar qualquer meio apropriado para difundir o pensamento e fazer che-gá-lo ao maior número de destinatários. Já em sua dimensão social, pode ser compreendida como um mecanismo para o intercâmbio de ideias e informações apto a permitir a comunicação passiva entre os seres humanos. Implica-se, assim, no direito de todos a conhecer opiniões e notícias, sendo que estas duas dimensões devem ser ga-rantidas simultaneamente. (GARCÍA RAMÍREZ; GONZA, 2007, p. 18-19).

Em relação ao alcance da liberdade de expressão, a jurispru-dência da CIDH já se posicionou no sentido de que quem está sob a proteção da Convenção Americana tem o direito de buscar, receber e difundir ideias e informações de toda índole, assim como também o direito de receber e conhecer as informações e ideias difundidos pelos demais. (Opinión Consultiva – OC 5/85, par. 30; Caso Tristán Donoso vs. Panamá, par. 109).

Igualmente, também já foi reconhecido que o direito em estudo não é absoluto, de modo que a liberdade de expressão pode estar sujeita a condições ou limitações, mormente quando interfere em outros direitos garantidos pela Convenção. (Caso Mémoli vs. Argen-tina, par. 123; Caso Usón Ramírez vs. Venezuela, par. 48).

Ademais, a Corte Interamericana já decidiu que o art. 13.2 da Convenção, o qual proíbe a censura prévia, também prevê a possi-bilidade de se exigir responsabilidades posteriores pelo exercício abusivo deste direito. Eventuais restrições têm caráter excepcional e não devem limitar além do estritamente necessário, sob pena de

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converterem-se em mecanismo direto ou indireto de censura pré-via. (Caso Tristán Donoso vs. Panamá, par. 110).

Consignou-se também que para que as responsabilidades ulte-riores sejam validadas, é necessário que se cumpram três requisitos: a) devem ser previstas em lei; b) devem estar destinadas para asse-gurar o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas, ou a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas e c) devem ser necessárias em uma sociedade democrática. (Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica, par. 120).

Já reconheceu a Corte Interamericana, inclusive, que a honra dos indivíduos deve ser protegida sem prejudicar o exercício da li-berdade de expressão e o direito de receber informação, oportu-nidade em que foi destacado o artigo 14 da Convenção, o qual pre-vê que toda pessoa afetada por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo tem direito de realizar, através do mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta. (Caso “La Última Ten-tación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile, par. 61).

A mais recente decisão da Corte a versar sobre a liberdade de ocorreu em agosto de 2017, quando do julgamento do Caso Lagos Del Campo vs. Peru. Desse modo, com o intuito de perfectibilizar uma análise crítica sobre a posição preferencial, assim como demonstrar a importância do direito à liberdade de expressão na afirmação da progressividade social e no fortalecimento do regime democrático, promover-se-á um aprofundamento no estudo da referida decisão.

Pois bem, em 28 de novembro de 2015, a Comissão Interameri-cana de Direitos Humanos submeteu à Corte Interamericana o caso referente à demissão do Sr. Alfredo Lagos del Campo, como conse-quência de declarações promovidas durante uma entrevista para a revista “La Razón”, realizada quando eleito presidente pela Assem-bleia Geral do Comitê Eleitoral da Comunidade Industrial da empresa Ceper-Pirelli, onde trabalhou como operário por mais de 13 anos.

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Consoante relatado pela Comissão, na referida entrevista, o Sr. Del Campo denunciou que a diretoria da empresa supostamen-te usou “chantagem e coerção” para realizar “eleições fraudulentas fora do Comitê Eleitoral”, situação que ensejou a destituição de Del Campo de seu posto de trabalho, sob o fundamento, segundo o em-pregador, de que sua conduta seria justificativa suficiente para de-missão por justa. (Caso Lagos Del Campo vs. Peru, par. 51).

O Sr. Del Campo moveu ação contra a empresa Ceper-Pielli S.A. perante o Juizado do Trabalho de Lima, que classificou a demissão como sendo improcedente e injustificada. Contudo, em apelação interposta pela empresa, o Tribunal de Segunda Instância refor-mou a decisão de primeiro grau, por considerar que as declarações proferidas constituíram grave indisciplina em agravo do emprega-dor e que a Constituição Política do Estado garante a liberdade de expressão, mas não para ofender a honra e a dignidade de pessoal hierárquico da empresa empregadora.

Após, o Sr. Lagos del Campo interpôs diversos recursos perante as instâncias jurisdicionais chilenas, todos declarados improceden-tes, de modo que em 5 de agosto de 1998, o denunciante peticionou junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na qual rea-firmou a responsabilidade internacional do Peru pela falta de prote-ção do seu direito, como dirigente dos trabalhadores, de expressar opiniões no contexto de um conflito trabalhista eleitoral.

Quando da análise do mérito, a Corte sinalizou que o art. 13 da Convenção protege declarações, ideias ou informação “de toda ín-dole”, sejam ou não de interesse público. Todavia, quando tais decla-rações tratem de assuntos de interesse público, o magistrado deve avaliar “com especial cautela” a necessidade de limitar a liberdade de expressão. (Caso Lagos Del Campo vs. Peru, par. 109).

Igualmente, assinalou que a difusão de informação referente ao âmbito do trabalho, usualmente, possui um interesse público,

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uma vez que decorre de interesse coletivo para os trabalhadores respectivos, e com uma abrangência especialmente geral, quando atende a aspectos relevantes, por exemplo, a respeito de determi-nado sindicato, e mais ainda, quando as opiniões sobreexcedem o âmbito de um modelo de organização do Estado ou as suas insti-tuições em uma sociedade democrática. (Caso Lagos Del Campo vs. Peru, par. 111).

Nesse sentido, a Corte considerou que as declarações destina-das a promover o adequado funcionamento e aprimoramento das condições de trabalho ou pedidos dos trabalhadores, representam um objetivo legítimo e coerente no âmbito das organizações dos trabalhadores, assim como as declarações realizadas no âmbito de um processo de eleição interna colaboram para o amadurecimento do debate durante o processo como ferramenta essencial do inte-resse coletivo e dos seus eleitores. (Caso Lagos Del Campo vs. Peru, par. 113). Acresceu, ainda, que

[…] no contexto do referido processo eleitoral, as declarações

do Sr. Lagos del Campo, como representante dos trabalhado-

res, além de extrapolar o âmbito privado, tinham relevância

ou impacto para transcender não apenas o interesse coletivo

dos trabalhadores da empresa, mas também do sindicato (da

Comunidade) relacionado às Comunidades Industriais em ge-

ral. Portanto, dos fatos deste caso depreende-se que a infor-

mação contida nas declarações do Sr. Lagos del Campo eram

de interesse público e, consequentemente, tinham um nível

reforçaado de proteção.

Em terceiro lugar, a respeito da intensidade das declarações

publicadas na revista La Razón, a Corte recorda que a liber-

dade de expressão, em particular em questões de interesse

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público, “é uma pedra angular na própria existência de uma

sociedade democrática”.[...] Não apenas deve ser garantida no

que se refere à divulgação de informação ou de ideias que são

recebidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas

ou indiferentes, mas também no que se refere às que sejam

ingratas para o Estado ou qualquer setor da população.Adi-

cionalmente, neste caso pertinente, afirmou que “[na] are-

na do debate sobre questões de alto interesse público, não

apenas se protege a emissão de expressões inofensivas ou

bem recebidas pela opinião pública, mas também aquelas que

chocam, irritam ou inquietam os funcionários públicos ou a

um setor qualquer da população. Em uma sociedade demo-

crática, a imprensa deve informar amplamente sobre ques-

tões de interesse público, que afetem bens sociais […]”. Deno-

ta-se que não passa inadvertido pela Corte que os limites da

crítica admissível são menos amplos a respeito das pessoas,

em geral, que a respeito dos políticos e dos funcionários em

exercício das suas funções.

Sobre as mesmas declarações publicadas na entrevista, o Tri-

bunal considera que, em geral, depreende-se que o objeti-

vo do Sr. Lagos del Campo era denunciar as alegadas irre-

gularidades, ou seja, de informar sobre uma situação, que ao

seu critério feria os interesses que ele representava, acom-

panhados, talvez, de comentários críticos ou opiniões. Pelo

contrário, do conteúdo dessas expressões, no presente con-

texto, não se denota que tiveram clara intenção de injúria,

difamação, humilhação ou dolo contra qualquer pessoa em

especial ou que tivessem tendência a afetar o produto da

empresa. Embora a publicação contivesse determinadas

expressões fortes a respeito da situação denunciada, estas

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não extrapolavam a proteção do caráter das denúncias

expostas no âmbito do referido contexto.(Caso Lagos Del

Campo vs. Peru, p. 63-65).

A Corte Interamericana concluiu, assim, que o Estado deu aval a uma restrição ao direito à liberdade de pensamento e de expressão do Sr. Lagos del Campo, por meio de uma sanção desnecessária - demissão - em relação ao fim perseguido e sem a devida motivação. Em verdade, a sua liberdade de expressão foi restringida sem levar em consideração que as suas declarações versavam sobre questões de interesse público, no âmbito das suas competências, as quais es-tavam protegidas pela sua condição de representante dos trabalha-dores, como Presidente do Comitê Eleitoral.

Como resultado, a CIDH reconheceu que o Estado peruano foi responsável pela violação ao direito à liberdade de pensamento e de expressão e às garantias judiciais, previstos nos artigos 13.2 e 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como que a entidade violou o direito à liberdade de associação e à estabilidade laboral, previsto nos artigos 16 e 26 da Convenção.

Nesse contexto, pode-se extrair que a jurisprudência da CIDH entende que liberdade de expressão e informação não são consideradas direitos absolutos e, consequentemente, podem sofrer restrições, sendo que o exercício de cada direito funda-mental deve ocorrer de forma harmoniosa, com respeito e pro-teção aos demais.

O art. 13.2 da Convença Americana de Direito Humanos, a propósito, ao tempo em que veda a censura prévia, também pre-vê a possibilidade de se exigir responsabilidades posteriores pelo exercício abusivo desse direito, o que corrobora a sua relatividade, devendo ser realizada sempre uma adequada ponderação ou justo equilíbrio dos direitos em colisão.

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Contudo, em que pese a própria relatividade do direito, a li-berdade de informação e expressão diferencia-se dos demais direi-tos fundamentais, por a ela ser conferido um caráter preferencial, decorrente da justificativa democrática, particularmente quando veiculadas questões de interesse público. Vale dizer: nos casos em que existir um conflito entre direitos fundamentais, o aplicador do direito deverá conferir um peso maior ao direito à liberdade de ex-pressão no que alude aos assuntos de interesse coletivo.

Na espécie, em que pese a CIDH não tenha expressamente afir-mado que a liberdade de expressão desfruta de uma posição prefe-rencial em contraposição aos demais direitos fundamentais, foi enfá-tica ao consignar que quando o conteúdo da informação for dotado de interesse público, o operador do direito deve avaliar com especial cuidado a necessidade de restringir a liberdade de expressão.

Isso porque, caso não conferido um tratamento privilegiado ao direito de expressão, no sentido de ser acolhido como direito fun-damental preferencial, a veiculação de ideias, pensamentos, expres-sões e fatos não estará verdadeiramente resguardada, prejudicando a garantia do pleno desempenho do sistema democrático

Assim, pode-se defender que a Corte, quando do julgamento do caso em análise, considerou o direito a liberdade de expressão e informação como direito preferencial, por o assunto difundido configurar interesse público. Conforme sustentado, a liberdade de expressão e informação é reconhecida não apenas como elemento condicionador da democracia pluralista, mas também como pre-missa para o exercício de outros direitos fundamentais.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à liberdade de expressão e informação é garantido no âmbito Convenção Interamericana de Direitos Humanos. No Siste-

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ma Interamericano, a liberdade de expressão é assegurada ampla-mente de modo que a livre circulação de ideias, pensamentos, ex-pressões e fatos é a regra, sendo que qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões exceção, demanda consistente justificação.

As liberdades de expressão e de informação se apresentam como requisitos para a formação da opinião pública livre, sem a qual não existe democracia, razão pela qual o aplicador do direito, seja no âmbito nacional ou internacional, ao resolver um conflito entre direitos fundamentais, deverá autorizar que a balança da pondera-ção confira maior peso inicial ao direito fundamental à liberdade de expressão, sobretudo quando opiniões de relevância coletiva esti-verem em jogo.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos enfatiza a impor-tância da garantia do pleno exercício da liberdade de expressão para todo indivíduo e os perigos que implicam as medidas adotadas com o fim de restringir tal direito. As decisões da Corte sobre a matéria fazem uma correlação entre a liberdade de expressão e o próprio sustento da sociedade democrática, sendo imperioso o reconheci-mento da liberdade de pensamento e expressão inclusive quando o seu exercício provoque, choque ou inquiete.

Assim, ainda que a Corte Interamerciana, de forma literal não tenha reconhecido o direito à liberdade de expressão como direito preferencial, já aduziu, de forma indireta , a prevalência de tal direito quando se abordam assuntos de interesse público. No Caso Lagos Del Campo, especificamente, a Corte afirmou que caso exista um interesse geral ou público, requer-se um nível reforçado de proteção à liberdade de expressão, assim como a necessidade de que o juiz avalie com espe-cial cautela a necessidade de limitar a liberdade de expressão.

A análise da jurisprudência da Corte Interamericana de Direi-tos Humanos permite observar a aplicação do direito à liberdade

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de expressão e informação com um limiar de proteção diferencia-do o que justifica uma maior margem de tolerância frente a afir-mações e manifestações realizadas no curso dos debates políticos ou sobre questões de interesse público, já que constitui uma das principais formas de efetivo exercício do controle democrático pela sociedade.

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A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS COMO GARANTIA DE CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

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O JUS COGENS INTERPRETADO COMO JUIZ NATURAL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

adenilton de Souza paixão*1Henrique ribeiro CardoSo**2

ResumoA existência de um “jus cogens” provocou a exigência de uma jurisdição internacional, a formação de um Tribunal Penal Internacional que pretende concretizar o processo de universalização de um ideal ético, que se pauta numa ideia fundamental: a dignidade humana conectando o direito a moral, criando esta ordem política que se propõe a universalizar um processo de normatização de uma ética geral que se forma nos direitos internacionais. Se a atividade interpretativa também é uma atitude, que implica compre-ensão histórica da época, então podemos dizer que o “jus cogens” pode ser interpretado como sendo o “juiz natural internacional” que oferta compe-tência ao Tribunal Penal Internacional? Para alcançarmos essa resposta a metodologia aplicada neste artigo será a pesquisa bibliográfica. Palavras-chave: Jus cogens. Dignidade humana. Ética. Juiz natural. Tribunal Penal Internacional.

* Mestrando no Programa de pós graduação em Direito da Universidade Federal de Sergi-pe (PRODIR/UFS); Graduado em Direito Pela UFS; Graduado em Filosofia pela UFS; Técni-co judiciário do Tribunal de Justiça de Sergipe.** Doutor em Direito, Estado e Cidadania (UGF/Rio), com Pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos (IGC - Universidade de Coimbra) e Pós-doutorado em Direitos Huma-nos e Desenvolvimento (PPGCJ/UFPB); Mestre em Direito, Estado e Cidadania (UGF/Rio); Professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS) e do Programa de Pós-graduação da Universidade Tiradentes (PPGD/UNIT); Promo-tor de Justiça Titular da Fazenda Pública em Sergipe (MPSE). Líder do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Cidadania e Concretização de Políticas Públicas.

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AbstractThe existence of a “jus cogens” led to the demand for an international jurisdic-tion, the formation of an International Criminal Court that intends to materia-lize the process of universalizing an ethical ideal, which is based on a funda-mental idea: human dignity connecting the right to moral, creating this political order that proposes to universalize a process of standardization of a general ethics that is formed in international law. If interpretative activity is also an attitude, which implies a historical understandingnof the time, then we can say that the “jus cogens” can be interpreted as being the “international natural jud-ge” that offers jurisdiction to the International Criminal Court. To achieve that

answer the methodology applied in this article will be bibliographic research.Keywords: Jus cogens. Human dignity. Ethics. Natural judge. International Cri-minal Court.

INTRODUÇÃO

O “jus cogens” como norma imperativa de direito internacional se formou através da leitura do direito costumeiro como fonte do direito internacional: é que com o intuito de julgar e condenar os res-ponsáveis pelos abusos do nazismo, dando eficácia a norma proteto-ra dos direitos humanos, o direito internacional elaborou um prin-cípio que entabulava sua competência originaria para julgar crimes de guerra, genocídio e crimes de lesão a humanidade: o “jus cogens”.

O jus cogens são os princípios gerais do Direito internacio-nal, é uma obrigação do tipo “erga omnes”, exige que se respeite as normas que protegem a dignidade humana. De fato, a dignidade humana é o paradigma assentado pelo “jus cogens” e, assim como ocorre no princípio do juiz natural, sua exigência é dar existência a dignidade humana, através da prestação jurisdicional competente e imparcial, dentro da comunidade internacional.

Procurando pela compreensão de que um princípio não possui um único modo de operar, encontramos a lição de Humberto Ávila,

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que nos apresenta a possibilidade de criação de uma espécie nor-mativa através da releitura de outros dispositivos, exemplo disso é o juiz natural. Este é um princípio que requer a interpelação de mais de um dispositivo, que em harmonia irão concretizá-lo. O mesmo ocorre com o jus cogens, que para sua construção e efetividade ne-cessita de uma interpretação que interpele todas as normas impera-tivas de direito costumeiro internacional, alinhadas com a proteção da dignidade humana. Será que podemos afirmar que o jus cogens pode ser entendido como sendo o juiz natural internacional?

Interpretar o direito, após a segunda guerra mundial e num momento exegético em que a linguagem se tornou uma das formas da manifestação de uma consciência histórica, requer o entendi-mento de que toda a compreensão é na verdade uma atitude, na lição de GADAMER1.

1. A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO JUS COGENS NO DIREI-TO INTERNACIONAL:

Para falarmos do jus cogens, sob o aspecto histórico, é crucial entendermos a abordagem dada pelo teólogo espanhol Francisco de VITORIA (1483-1546). A preocupação de VITORIA estava associada a necessidade de justificativa Moral para a invasão espanhola nas ter-ras indígenas da América, sua filiação ao jusnaturalismo iria atrair a força de lei geral ao direito das gentes (jus cogens). Segundo VITO-RIA: “ninguna nación puede darse por no obligada ante el derecho de gentes, porque está dado por la autoridade de todo el orbe”.2

Frente aos genocídios praticados contra as populações indíge-nas das américas, a Igreja se manifesta cobrando por parte dos Es-

1 GADAMER, Hans-George. Verdade e Método I. 6 ed. Tradução Flávio Paulo Meurer, rev. Enio Paulo Giachini. Petropolis: Vozes, 2004. p.213-2152 VITORIA, Francisco de. De la potestade civil, in Obras de Francisco de Vitoria, Releccio-nes Teológicas. Madrid: Teofilo Urdanoz, 1960, proposición 21, p.191-192.

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tados europeus a cristianização daqueles povos. Noutras palavras, aquilo que o direito natural traduz da Moral e que toma a forma de jus gentium, possuindo força de lei, já apresentava, em estado latente, a noção atual de dignidade humana: o respeito a vida, a in-tegridade, a saúde, a liberdade.

No século XVI, o holandês Hugo GROTIUS, ao investigar o direito natural e suas relações com a Guerra apresenta a ideia de um direito natural que está ligado a razão humana, o que favoreceu o surgimen-to de uma ordem jurídica não submissa a questões sacerdotais:

O direito natural é tão imutável que não pode ser mudado

nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder

de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange

porque aquelas de que fazemos alusão não podem ser senão

enunciadas, mas que não possuem nenhum sentido que ex-

prima uma realidade e são contraditórias em si. Do mesmo

modo, portanto, que Deus não poderia fazer com que dois

mais dois não fossem quatro, de igual modo ele não pode im-

pedir que aquilo que é essencialmente mau não seja mau. [...]

na realidade não é o direito natural que muda, sendo imutá-

vel, mas é a coisa, a respeito da qual o direito natural estatuiu,

que sofre mudança.3

Assim, com a ideia de direito natural separada da divindade criou-se o ambiente para um Direito Internacional (uma ciência dos jus gentium), uma vez que a soberania e a territorialidade não esta-vam mais submetidas a questões religiosas, mas ao respeito destes princípios. O respeito pela soberania e territorialidade, símbolos da vontade do Estado, seria pactuado entre as nações em 1648 com o fim da Guerra dos 30 anos e assinatura da paz de WESTPHALIA.

3 GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Ijuí: UNIJUÍ, 2007. p.81

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A constituição de instituições de direitos internacionais que iriam regular as relações entre os Estados só surgiria após 1945, com a criação das NAÇÕES UNIDAS, em seu artigo 92 que cria o TRIBU-NAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. O artigo 33 da Carta de 1945 estabeleceu a necessidade de se buscar a mediação para a solução pacifica de conflitos.

A Carta das Nações Unidas normatizou direitos inalienáveis com efeito vinculativo universal, fazendo desta Carta uma verda-deira Constituição de uma comunidade internacional. Esta Carta positivou o jus cogens e acabou vinculando sua inderrogabilidade. Na lição de FIORATI:

A imperatividade do jus cogens não implica somente na sua

obrigatoriedade, uma vez que também as normas derivadas

de jus dispositivum são obrigatórias para as partes, mas, prin-

cipalmente, na proibição da derrogação de suas normas. A

imperatividade encontra sua outra face na inderrogabilidade.4

O caráter proibitivo do jus cogens impossibilita qualquer ten-tativa de sua derrogação. Na lição do professor João Grandino RO-DAS, “A limitação da autonomia da vontade dos Estados encontra sua justificativa na proteção do estado contra suas próprias fraque-zas ou contra as desigualdades no “bargaining power”.5

Esta preocupação com as limitações da vontade e soberania dos Estados tinham sua origem na experiencia dos regimes totalitários, como por exemplo o nazismo. Portanto, para limitar a vontade dos Estados e dar eficiência as normas de direito internacional fora atri-buído efeito erga omnes às normas de jus cogens, com obrigatorie-

4 FIORATI, Jete Jane. Jus Cogens: As Normas Imperativas do Direito Internacional Público como Modalidade Extintiva dos Tratados Internacionais, Franca: UNESP, 2002. p.865 RODAS, J. G. Jus cogens em direito internacional. Revista da Faculdade de Direito, Uni-versidade de São Paulo, v. 69, n. 2, p. 125-136.

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dade capaz de limitar a soberania dos Estados. Segundo o professor Guido Soares:

O impulso decisivo para a retomada histórica da discussão de

existirem princípios superiores à plena autonomia da vontade

dos Estados foi, sem dúvida, obra da Comissão de Direito In-

ternacional da ONU, particularmente responsável pela con-

venção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.6

A convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 trata do jus cogens no artigo 53 e o apresenta como uma norma imperativa de direito internacional.7 Esta obrigatoriedade é reforçada pela superve-niência de uma nova norma imperativa de direito internacional, previs-ta no art.64. Assim, qualquer tratado que venha a entrar em atrito com uma nova norma de jus cogens torna-se nulo imediatamente.

2. A DIGNIDADE HUMANA NA FORMAÇÃO DE UMA OR-DEM POLÍTICA

Se pretendemos examinar o que fundamenta a formação de uma ordem política internacional, mediante a formação de um TRI-BUNAL PENAL INTERNACIONAL, cuja finalidade é a aplicação do “jus cogens” mediante uma jurisdição internacional, então devemos in-

6 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. P.1317 BRASIL. Decreto nº 7030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm> Acesso em: 12 julho 2020. Convenção de Viena sobre Direito dos Tra-tados de 1969: Artigo 53. É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, confli-te com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.

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vestigar o próprio conceito de dignidade humana a fim de traduzirmos o significado de direitos humanos, desvelando quais são as exigências normativas requeridas pelo consenso da comunidade internacional, que irá se traduzir em legitimidade e legalidade deste Tribunal.

A dignidade humana tem sua formulação teórica atribuída ao fi-losofo alemão Immanuel Kant, que tratou deste tema em sua obra in-titulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Segundo Kant:

Ora, a moralidade é a única condição sob a qual um ser racional pode ser fim em si mesmo: pois só através dela é possível ser membro legislante no reino dos fins. Portan-to, a moralidade e a humanidade, na medida em que ela é capaz da mesma, é a única coisa que tem dignidade.8

A moralidade oferece a humanidade a possibilidade de ter um fim em si mesma, e isto só pode acontecer graças a sua autonomia, sua liberdade. Na produção filosófica kantiana “o direito é o conjunto de condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar em acordo com o arbítrio de um outro, segundo um a lei universal da liberdade”.9

O direito se torna a forma universal de coexistência das liber-dades, para isso Kant alocou o direito no âmbito da razão prática e deste modo pode relacionar-se com a Moral. Não à toa sua ideia de dignidade humana é um modo de operar seu imperativo categórico: “Age segundo uma máxima que possa ao mesmo tempo ter valor de lei geral”10. Assim, através do imperativo da moralidade kantiana o Direito conquista sua Universalidade.

8 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafisica dos Costumes. Edição Bilingue. Trad. Guido Antonio de Almeida. São Paulo: Discurso editorial: Barcarolla, 2009. p.2659 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. p.40710 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. 2. ed. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993. p. 39.

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A noção de direitos humanos enraizada na ideia de dignidade humana proclama esta universalidade pretendida pela moral kan-tiana. A Declaração universal dos direitos do Homem. A defesa de direitos humanos nasce da indignação dos humilhados frente a vio-lação de sua dignidade. Esta é a fonte moral que deu origem aos direitos humanos. E este é o legado deixado pelos legisladores das diversas constituições democráticas do ocidente. Para Habermas, “Apesar de su contenido exclusivamente moral, los derechos huma-nos tienen la forma de derechos subjetivos exijibles que conceden libertades y pretensiones especificas”11.

No texto acerca da Constituição da Europa, HABERMAS diz que existe uma demanda universal de validez acerca dos direitos hu-manos. O autor alemão compara a dignidade humana a um “sismó-grafo” que iria registrar os movimentos de uma ordem democrática legal e afirma que:

Unicamente este vinculo interno entre la dignidade humana

y los derechos humanos puede dar lugar a la fusión explosiva

de contenidos morales com el derecho coercitivo; em otras

palavras, em el derecho como el médio por el cual debe reali-

zarse la construcción de órdenes políticos justos.12

A positivação dos direitos humanos tornou o direito um meio para construção de uma ordem jurídica internacional, que se pro-ponha a ser justa. Para Habermas, na formação das NAÇÕES UNI-DAS o que facilitou a negociação frente as diferenças culturais foi

11 HABERMAS, Jurgen. El Concepto de dignidad humana y la utopia realista dos derechos humanos. Trad. Javier Aguirre Román. Rev. Eduardo Mendieta y María Herrera. Dianóia, vol. LV, nº 64, mayo,2010. P.1112 HABERMAS, Jurgen. El Concepto de dignidad humana y la utopia realista dos derechos humanos. Trad. Javier Aguirre Román. Rev. Eduardo Mendieta y María Herrera. Dianóia, vol. LV, nº 64, mayo,2010. P.22

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a necessidade de interpretação dos conceitos legais universais, foi através da noção de dignidade humana que se pode alcançar um consenso.

Segundo Vilma Leite Machado Amorim:

Entenda-se por dignidade não o simples acesso aos bens, mas

que tal acesso seja igualitário e não esteja hierarquizado “a

priori” por processos de divisão do fazer que coloquem alguns,

na hora de ter acesso aos bens, em posições privilegiadas, e

outros em situação de opressão e subordinação. Mas, cuidado!

Falar de dignidade humana não implica fazê-lo a partir de um

conceito ideal ou abstrato. A dignidade é um fim material. 13

A dignidade humana, mais que um valor moral, tornou-se uma exigência de concretização. Após a segunda Guerra mundial, diante dos atos dos regimes nazistas, ofensor a ideia de Direitos Hu-manos, porém legítimos sob o ponto de vista da lei vigente, o Direito necessitou alterar seus paradigmas. O positivismo alemão não con-seguiu impedir as práticas desumanas dos regimes totalitários. O nascimento do neoconstitucionalismo, aliado ao desenvolvimento constante da hermenêutica do direito, traduziu um direito consti-tucional próximo a moral e a noção de princípios, sempre próximos ao tema da dignidade humana.

3. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL COMO REALIZA-ÇÃO DE UM PRINCÍPIO MORAL UNIVERSAL:

As relações entre o Estado e a pessoa humana começaram a ser reguladas pelo direito internacional, já a partir da Carta das Nações

13 PESSOA, Flávia Moreira Guimarães (organizadora). Constituição e Processo. Aracaju: EVOCATI, 2014. p.676

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Unidas de 1945. A existência de uma jurisdição internacional já vi-nha sendo discutida ainda no século XIX, a época da Convenção de Genebra (1864) e sua preocupação com a formação de um direito internacional.

As convenções realizadas em Genebra na Suíça (1864-1949) tra-tavam de muitas matérias relativas aos problemas morais enfren-tados nos campos de batalha. Estas preocupações morais condu-ziam a formação de um direito internacional. Mas, foi somente com a Carta das Nações Unidas, em seu artigo 92, que surgiu uma Corte Internacional de Justiça. Porém, esta se limita a julgar os Estados e não os indivíduos.

A necessidade de responsabilização individual dos praticantes de crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade tor-nou-se uma bandeira dos direitos humanos e dos direitos interna-cionais.

Desde a primeira Guerra Mundial, os aliados constituíram acor-dos para realização de julgamentos dos criminosos de guerra. No Tratado de Versalhes (1919) os aliados já haviam consignado a ne-cessidade de responsabilizar o antigo imperador da Alemanha pelos seus crimes de guerra. Esta ideia de responsabilizar o indivíduo e não apenas o Estado, gerou resultados na cultura Internacional.

Somente após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a forma-ção do Tribunal de Nuremberg é que podemos falar da existência de uma jurisdição internacional para julgamentos de indivíduos que praticaram crimes graves, contra a humanidade, crimes que ofen-dem a dignidade humana.

Muita polemica surgiu em torno da alegação de afronta ao

princípio da anterioridade da lei penal, sob o argumento de

que os atos punidos pelo Tribunal de Nurenberg não era

considerados crimes no momento em que foram cometidos.

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A essa crítica outras se acrescentaram, como as relativas ao

alto grau de politicidade do Tribunal de Nuremberg(em que

os vencedores estariam julgando os vencidos); ao fato de ser

um tribunal precário e de exceção (criado post facto); e as

sanções por ele impostas (como a pena de morte).14

Os juízes de Nuremberg alegaram que já haviam tratados in-ternacionais que serviam de base para a legitimidade de tais jul-gamentos, dentre eles o Tratado de Versalhes e a Convenção de Genebra. Paralelo aos julgamentos em Nuremberg, também era formado o Tribunal de Tókio no Japão para julgamentos dos res-ponsáveis pelas atrocidades cometidas na guerra. Estes dois Tri-bunais, não possuíam ainda uma competência predefinida por lei, e além deles outros foram sendo constituídos à maneira “ad hoc”, pelo Conselho de segurança das Nações Unidas, eram Tribunais “especiais” e tinham como objetivo responsabilizar os indivíduos que feriram normas do “jus cogens”: O Tribunal Penal Internacio-nal para a Yugoslávia (1993) e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (1994).

A existência de uma corte permanente de Justiça Penal interna-cional foi concretizada no dia 17 de julho de 1998, na cidade de Roma na Itália, foi constituído o Tribunal Penal Internacional. O Estatuto de Roma em seu artigo 1º expõe a complementaridade de sua juris-dição para julgar os crimes que estão listados nos artigos 4º e 5º. Esta complementaridade significa que a competência do Tribunal Penal Internacional dependerá de omissão ou falta de disposição da justiça

nacional em julgar o infrator.

É a universalização do conceito de dignidade humana que fez emergir

uma jurisdição internacional penal para combater aqueles que pretendem

14 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 1ª ed., 2ª triagem. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007. P.37-38

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destruir a humanidade. Portanto, a dignidade humana tornou-se uma ação

máxima, que permite a universalização de uma jurisdição internacional pe-

nal, na medida que tornou-se uma lei geral, mediante a formação do con-

senso. Noutras palavras, uma aparente realização do imperativo categórico

da moral de Immanuel Kant.

A declaração Universal dos Direitos do homem é um ideal universal,

nas palavras de Sidney Guerra:

(...) como um ideal comum a ser alcançado por todos os po-

vos e todas as nações, a fim de que os indivíduos e órgãos

da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esfor-

cem, pelo ensino e pela educação , por desenvolver o respei-

to destes direitos e liberdades e por promover, por medidas

progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reco-

nhecimento e sua aplicação, tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.15

4. O JUIZ NATURAL COMO UMA INTERPRETAÇÃO DO JUS COGENS

A instituição do Tribunal Penal Internacional de maneira per-manente o afastou de qualquer comparação com um juízo de exce-ção, seja face ao “pacta sunt servanda” dos Tratados internacionais que o legitimavam antes mesmo de sua formação permanente, seja pela sua competência que é fixada pelo art.1º do Estatuto de Roma, que atende ao chamado do artigo 53 da convenção de Viena: A complementaridade de sua competência é norma imperativa de direito internacional. Mas como é possível uma jurisdição inter-

15 GUERRA, Sidney. Direitos Humanos na ordem jurídica internacional. Revista Pensar. Universidade de Fortaleza. v.14. n.1. p.188.

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nacional que seja capaz de aplicar os direitos internacionais de maneira imparcial?

Para que seja possível uma jurisdição internacional que res-ponsabilize não só Estados, mas indivíduos, protegendo a realização do princípio do “jus cogens”, é necessário se mitigar a regra de sobe-rania dos Estados, principalmente em sua imunidade funcional dada aos seus chefes de Estado. Na Convenção de Viena, o art. 26 trata do pacta sunt servanda e o art.27 afasta a soberania de um Estado, que mediante o princípio do “rei in solutos” (princípio que aduz imuni-dades aos atos do rei) tentar descumprir a imperatividade do jus cogens. Ora, é dever dos Estados membros da comunidade inter-nacional, em face da universalização dos direitos humanos, julgar ou extraditar o chefe de Estado ou indivíduos que sejam responsá-veis por crimes contra a pessoa humana, não podendo alegar direito interno para descumprir as normas assumidas pelo tratado. Desta forma, afastando a soberania e a imunidade funcional, o Tribunal Penal internacional poderá exercer uma imparcialidade nos julga-mentos contra autoridades que agridem os direitos humanos. Na nossa Constituição Federal de 1988 esta imparcialidade é atribuída ao princípio do juiz natural.

O jus cogens como princípios gerais do Direito internacional é uma obrigação do tipo “erga omnes”, exige que se respeite as normas que protegem a dignidade humana. De fato, a dignidade humana é o paradigma assentado pelo “jus cogens” e assim como ocorre no juiz natural sua exigência é de dar existência a dignidade humana, através da prestação jurisdicional competente e imparcial, dentro da comunidade internacional.

A imparcialidade é a própria essência da atividade jurisdi-cional. Mas esta não se resume ao exercício de sua imparcialida-de, tal atividade exige o atendimento a uma serie de garantias e deveres pré-estabelecidos. Os princípios seriam estas garantias

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fundamentais ao exercício do direito que exige respeito pela pes-soa humana.

A hermenêutica jurídica não ficou de fora destes problemas e pas-sou a estudar o poder normativo dos princípios. Alguns doutrinadores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, construíram suas teorias dos princípios estabelecendo uma distinção com a noção de regras. Esta distinção entre regras e princípios é fundamental para entendermos a conexão existente entre o jus cogens e o princípio do juiz natural.

Para estes autores a diferença entre regras e princípios torna--se qualitativa, e passa a se estabelecer da seguinte forma: o conflito de regras se resolve por sua clausula de exceção, juízos de subsun-ção, mediante discussões acerca da sua validade. Já o conflito de princípios atrai juízos valorativos mediados pela noção de propor-cionalidade. Na lição de Cardoso:

As regras são postas como razões definitivas para um juízo

concreto de dever ser – uma sentença judicial ou um ato ad-

ministrativo individual, por exemplo –, aplicáveis, em regra,

sem exceção. A forma de aplicação será a subsunção. Diferen-

temente, os princípios são razões prima facie.16

Esta maneira de abordar a dimensão normativa dos princí-pios, realizando uma distinção que se pauta pela existência de con-flito e o modo de sua solução receberá duras críticas. Humberto Ávila irá questionar a dissociação do conflito normativo entre regras e entre princípios. Para Ávila:

A citada dimensão de peso (dimension of weight) não é, então,

atributo abstrato dos princípios, mas qualidade das razões e

16 CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e Argumentação: A teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos. Curitiba: JURUÁ, 2009.. p.201

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dos fins a que eles fazem referência, cuja importância concreta

é atribuída pelo aplicador. Vale dizer, a dimensão de peso não

é um atributo empírico dos princípios, justificador de uma di-

ferença lógica relativamente às regras, mas resultado de juízo

valorativo do aplicador.17

A ponderação também poderia ser atribuída ao conflito de re-gras, não apenas os princípios poderiam sofrer sopesamento. ÁVILA propõe uma distinção entre regras e princípios que seja inclusiva:

(...) diferencia-se das demais porque admite a coexistência das

espécies normativas em razão de um mesmo dispositivo. Um

ou mais dispositivos podem funcionar como ponto de referên-

cia para a construção de regras, princípios e postulados.18

Assim, ÁVILA apresenta a possibilidade de que dispositivos podem gerar mais de uma espécie normativa. Assim, o juiz natural é um princípio que requer a interpelação de mais de um dispositivo, que em harmonia irão concretiza-lo.

Em nossa Constituição Federal de 1988 o art.5, inciso XXX-VII, nos diz que “não haverá tribunal de exceção” e o inciso LIII diz: “ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente”. Estas normas somadas a outros direitos fundamentais irão se coadunar para formar um princípio implícito no texto cons-titucional brasileiro, o juiz natural.

Neste sentido, em face da reaproximação entre direito e Moral, mediada pela noção de dignidade humana, o jus cogens, como nor-ma imperativa de direito internacional, construída pelos dispositi-vos formulados do direito consuetudinário, como herança de uma

17 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.5118 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.60

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exigência moral, poderia ser formulado como uma manifestação não apenas da jurisdição competente internacional, sobretudo, pela interpelação de diversos dispositivos para criar a espécie normativa do juiz natural internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória histórica do jus cogens, desde a sua formação como jus gentium, foi um trabalho que envolveu diversas áreas do conhe-cimento dentre elas a Teologia, a filosofia, a sociologia e o direito. As humilhações enfrentadas pelas diversas populações no planeta coadunaram com a formulação teórica de um princípio Universal que promovesse o respeito aos povos.

Houve uma aproximação, de maneira gradual, entre os con-ceitos de filosofia moral e as normas de direito pactuadas entre os Estados. Este avanço da Universalização da dignidade humana exigiu a constituição de uma Corte Internacional capaz de respon-sabilizar Estados e indivíduos que desrespeitassem a humanidade.

A positivação continua de direitos fundamentais após a 2ª Guerra mundial, inaugurou um período de desenvolvimento de teorias her-menêuticas acerca da normatividade de tais princípios, enquanto se exigia o surgimento de uma jurisdição internacional permanente.

O Tribunal Penal Internacional, como norma imperativa do jus cogens, personificou-se nesta instituição e o exercício hermenêu-tico formulou uma interpretação capaz de harmonizar diversos dis-positivos dos direitos internacionais, criando condições para uma espécie normativa própria do devido processo legal, da imparciali-dade, da igualdade, do contraditório e da ampla defesa: o juiz natu-ral internacional.

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