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ANTÔNIO CARLOS GOMES FERREIRA
O DESAFIO DA EFICIÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
NO CENÁRIO DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA
MESTRADO EM DIREITO
UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO / São Paulo
2015
ANTONIO CARLOS GOMES FERREIRA
O DESAFIO DA EFICIÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO
CENÁRIO DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA
Dissertação apresentada à Universidade
Nove de Julho – São Paulo, para obtenção do
Título de Mestre em Direito.
Orientadora: Professora Dra. Irene Patrícia
Nohara.
SÃO PAULO
2015
Ferreira, Antonio Carlos Gomes.
O desafio da eficiência do estado democrático de direito no cenário
da globalização econômica./ Antonio Carlos Gomes Ferreira. 2015.
114f.
Dissertação (mestrado) – Universidade Nove de Julho -
UNINOVE, São Paulo, 2015.
Orientador (a): Profa. Dra. Irene Patrícia Nohara.
1. Estado. 2. Globalização. 3. Pós-modernidade. 4. Eficiência.
I. Nohara, Irene Patrícia. II. Titulo
CDU 34
Data da Aprovação ____/___/____
Orientadora:
_________________________________
Professora Doutora Irene Patrícia Nohara
Examinadores:
_________________________________
Professor (a)
_________________________________
Professor (a)
_________________________________
Professor (a)
Dedico este trabalho à minha mãe Maria Helena Lopes, maior exemplo de
perseverança e luta pela vida, que infelizmente partiu no meio desta pesquisa, não podendo
assistir a conclusão do trabalho, mas deixou seu legado de dignidade e ideal de justiça e que
apesar das dificuldades impostas pela vida, soube transmitir toda sabedoria e apoio constante.
AGRADECIMENTOS
À orientadora Professora Irene Patrícia Nohara, por seu espírito inovador e
empreendedor na tarefa de multiplicar seus conhecimentos, por sua vocação inequívoca, por
não poupar esforços como educadora, pela sua disciplina ao me ensinar a importância da
pesquisa acadêmica, pelo incentivo, simpatia e presteza no auxilio às atividades e discussões
sobre o andamento desta Dissertação.
Ao professor Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, pelo suporte na orientação deste
trabalho nо tempo que lhe coube, pelas suas correções, pontuais esclarecimentos e incentivos.
Aos idealizadores, coordenadores e funcionários da Universidade Nove de Julho -
UNINOVE.
À professora Adriana Silva Maillart, que com sua delicadeza e inteligência ajudou-
me a compreender melhor os temas que envolvem a minha pesquisa.
Agradeço igualmente às professoras Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches e
Mônica Bonetti Couto, que com as palavras certas nos momentos mais tortuosos auxiliaram
na estrutura e organização deste trabalho.
Ao diretor do Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho, professor Vladmir
Oliveira da Silveira, que conduz com esmero e dedicação o programa de pós-graduação – sem
esse amparo, muitas conquistas não teriam ocorrido.
Aos colegas de classe, pela espontaneidade e alegria na troca de informações e
materiais numa demonstração de amizade e solidariedade.
Ao meu amigo e parceiro Sérgio de Carvalho Gegers, pelo irrestrito apoio e
confiança.
A toda a minha família, pela paciência e tolerância, principalmente a meus filhos,
Ravenna e Antônio, que sofreram a ausência do pai, e à minha esposa, Priscila, que, além de
me incentivar e apoiar nesta jornada, me ajudou a superar obstáculos indizíveis, estando
sempre ao meu lado.
Finalmente, a Jesus Cristo, que se mostrou criador e foi criativo nesta tarefa. Seu
fôlego de vida em mim foi sustento е deu-me a coragem para questionar realidades е propor
sempre um novo mundo de possibilidades; e por ser essencial em minha vida, autor de meu
destino e socorro bem presente na hora da angústia.
“O Estado não é uma imposição divina aos homens nem é o resultado de um pacto ou
contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma
sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social”.
Marilena Chauí
RESUMO
A presente dissertação objetiva refletir acerca do desafio da eficiência do Estado
Democrático de Direito no cenário da globalização econômica. Problematiza a crise
paradigmática e institucional do Estado com foco na sua cooptação por grupos hegemônicos
que exercem pressão regulatória. Este movimento acaba tendo reflexos no avanço da justiça
social, sendo o princípio da eficiência, no contexto pós-moderno, relacionado, portanto, com
aspectos de exclusão social. Além dos referenciais teóricos que refletem a pós-modernidade,
há o cotejo das funções do Estado em relação à sua estruturação na modernidade, bem como
uma reflexão crítica sobre seu papel do ponto de vista da dominação. Espera-se, assim, refletir
acerca da mudança do papel do Estado, que, de instrumento de sustentação do capitalismo na
sua gênese, passou a importante instância de resistência às forças desregulamentadoras que
causam fragmentação e exclusão social na contemporaneidade. A abordagem relaciona o
Estado com o paradigma da eficiência, sendo a justiça social vista como um dos objetivos
incorporados pelo Estado Democrático e Social de Direito.
Palavras-chave: Estado, globalização, pós-modernidade, eficiência, democracia.
ABSTRACT
This dissertation aims to reflect on the challenge of democratic rule of law in the
efficiency scenario of economic globalization. Questions the paradigm and institutional crisis
of the state focused on its cooptation by hegemonic groups that exert regulatory pressure. This
movement ends with reflections in the advancement of social justice, and the principle of
efficiency in the post-modern context, related, therefore, aspects of social exclusion. In
addition to the theoretical frameworks that reflect post-modernity, there is the comparison of
state functions in relation to its structure in modernity as well as a critical reflection on its role
from the standpoint of domination. It is expected, therefore, to reflect on the changing role of
the state, which, of capitalism support instrument in its genesis, passed the important
resistance instance to deregulation forces that cause fragmentation and social exclusion in
contemporary times. The approach relates the state with the paradigm of efficiency and social
justice seen as one of the corporate goals by the Democratic and Social State of Law.
Keywords: State, globalization, post-modernity, efficiency, democracy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
1. O SURGIMENTO DO ESTADO E SUA EVOLUÇÃO DE ACORDO COM AS
COMPREENSÕES SOCIAIS E POLÍTICAS DO MUNDO OCIDENTAL .......................... 14
1.1. O conceito de Estado ......................................................................................................... 14
1.2. As primeiras organizações e o surgimento do Estado Moderno ....................................... 17
1.3. Estado: uma imposição divina, resultado de um contrato social ou da vitória de um
projeto econômico?................................................................................................................... 23
1.4. A ameaça ao capitalismo e o surgimento do Estado Social .............................................. 32
2. O ESTADO CAPITALISTA NO CENÁRIO DE CRISE INSTITUCIONAL .................... 42
2.1. O Estado Neoliberal........................................................................................................... 42
2.2. Neoliberalismo e exclusão social ...................................................................................... 50
2.3. A crise paradigmática e institucional................................................................................. 56
2.4. Neoliberalismo e democracia: a manipulação ideológica da classe dominante .............. 633
3. OLIGARQUIAS PÓS-MODERNAS: A COOPTAÇÃO DO ESTADO POR GRUPOS
HEGEMÔNICOS ..................................................................................................................... 71
3.1. Grupos Hegemônicos e a nova configuração da luta de classes ........................................ 71
3.2. Dominação econômica e pressão regulatória .................................................................... 75
3.3. Desafios do Estado Democrático de Direito na Pós-Modernidade ................................... 80
3.3.1. O Princípio da eficiência e a administração gerencial .................................................... 87
3.4. Proibição do retrocesso social ........................................................................................... 93
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 99
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 104
10
INTRODUÇÃO
A presente dissertação pretende examinar o Estado fundado no cerne do pensamento
moderno e suas transformações ao longo dos acontecimentos históricos, políticos e sociais,
buscando compreender a possibilidade da concepção de um Estado eficiente no cenário da
economia globalizada. Traçando um escorço histórico sobre a formação do Estado, a partir do
século XV, passando pelo movimento absolutista e pelo liberalismo, até se alcançar o
conceito de Estado Democrático de Direito, observamos a relação do Estado com as classes
sociais de cada período histórico e percebemos que seu processo de formação, consolidação e
evolução está intimamente ligado ao próprio processo de consolidação e evolução do sistema
capitalista.
Desde as primeiras organizações políticas da sociedade, observamos o crescimento e o
fortalecimento de grupos econômicos juntamente com o avanço do capitalismo. Assim, como
meio de assegurar a garantia dos interesses desses grupos, estabeleceu-se um poder político
soberano: o Estado que, por sua vez, passou por significativas transformações a par das
transformações econômicas e sociais deste mundo capitalista.
Entendemos que as normas e os ordenamentos jurídicos e os atos normativos editados
pelo poder do Estado traduzem explicitamente em seu conteúdo as características, os
interesses e a ideologia dos grupos legisladores. Assim, ao ser posicionado o homem no
centro das relações sociais, é preciso conceber o Direito como fenômeno parcial, apenas
comprometido com as maiorias, ou seja, uma disciplina que serve à classe dominante como
elemento mantenedor do Estado na defesa de seus interesses e na perpetuação da dominação
dos ricos em detrimento dos pobres.
Aprendemos com a história que o homem não foi, necessariamente, a finalidade inicial
do Estado. Ressalvadas as conquistas das lutas sociais dos trabalhadores, incorporadas pelo
Estado Democrático e Social, esse ente político não se preocupou, efetivamente, com ações
que visavam melhorar a qualidade de vida dos seres humanos, mas, antes, sustentou um
modelo de desigualdade social e serviu como instrumento de manutenção dos interesses de
uma classe potencialmente dominante recém-surgida e a seu projeto econômico: o
capitalismo.
A partir desta perspectiva, desenvolvemos uma pesquisa acerca da relação do Estado
com a classe dominante e os desafios deste Estado no cenário de transformações sociais e
econômicas. Para isso, na primeira parte do trabalho é considerada a delimitação do Estado a
partir da noção de Estado Moderno e de seu gradual desenvolvimento institucional, algo que
11
culmina com a ascensão do capitalismo, até o conceito de Estado na contemporaneidade, com
a consolidação do modelo de Estado burguês.
Se concebermos, por exemplo, o Estado a partir do liberalismo, o qual foi influenciado
pelos interesses da burguesia do século XVIII, estampados nas revoluções burguesas,
sobretudo na Revolução Francesa e na Revolução Industrial, é possível observarmos, como
consequência, a crise daquele modelo de “Estado mínimo” e a necessidade de adequação de
um modelo de Estado que propiciasse maior intervenção do poder público na economia.
Com o advento da Segunda Guerra Mundial e inevitavelmente com seu impacto sobre
os rumos da humanidade, questionou-se o paradigma do Estado, prática que deu azo ao
surgimento das teorias do Estado Democrático de Direito e, posteriormente, do Estado do
Bem-Estar Social em meio à Revolução da Informação e do neoliberalismo, que enfraquece
novamente a soberania deste Estado e proporciona significativas mudanças em suas
características. Assim, objetivando tornar a economia a principal instância reguladora da
sociedade, os efeitos colaterais são latentes, entre eles, o aumento das desigualdades e a
inevitável exclusão social.
Na segunda parte do trabalho, é abordado o papel do Estado capitalista no cenário de
crise das instituições modernas, entre elas a do próprio Estado, considerando-se que um novo
paradigma de regulação social surgiu em meio às transformações do mundo pós-moderno.
As transformações transcenderam a um novo modelo econômico, erigindo-se a
contemporaneidade sobre novos marcos na convivência social. Em meio a esse fenômeno e
por estar diante de fortes interesses globais, o Estado sofreu drástico abalo, tendo sido
aplacada sua soberania e seu poder de decisão.
Na terceira e última parte, retomamos a temática central para analisarmos a existência
de oligarquias pós-modernas e a cooptação do Estado por grupos hegemônicos, ao
abordarmos o princípio da eficiência e concebermos o Estado, hoje, juntamente com a
sociedade privada organizada e com grupos transacionais, como instrumento de resistência à
globalização, no sentido de garantidor de direitos sociais.
Nessa crise paradigmática, por notarmos o recuo da soberania estatal em prol dos
interesses econômicos de grupos específicos, lançamos um olhar sobre o papel do Estado na
sociedade contemporânea, com a reflexão sobre como a ingerência desses grupos tem
desvirtuado o objetivo político estatal de combate às desigualdades sociais e de ampliação de
direitos, para garantir a todos, e não somente a alguns, o acesso a bens e serviços que
possibilitem a plena cidadania.
12
Buscamos compreender se em algum momento do processo de formação do Estado
houve um projeto de inclusão e de busca do bem-estar de todos os seres humanos ou se o
Estado foi tão somente a maneira pela qual uma possível classe dominante garantiu seus
interesses e sua dominação, o que nos leva a refletir também sobre as consequências do
neoliberalismo e da flexibilização da soberania estatal em prol de interesses econômicos e
políticos que desviam o Estado de seu fim sobre o todo social.
O Estado Liberal que outrora fora instrumento fundamental para a sustentação ao
capitalismo, tornou-se hoje, nos moldes do Estado Democrático de Direito, sobretudo nos
países periféricos, obstáculo ao avanço desenfreado do capitalismo na globalização neoliberal,
mormente quando se afasta do modelo de Administração Pública Gerencial, voltando-se
precipuamente a garantir o papel regulador do Estado, sua capacidade financeira e
administrativa e sua “governabilidade”, ou seja, voltando-se à gestão pública eficiente que
busca todos os meios necessários e adequados para a efetivação dos direitos sociais e para a
construção de uma sociedade justa, livre e solidária.
O método empregado nesta pesquisa é o dedutivo, com análise do material de pesquisa
e leitura exploratória de obras pertinentes ao tema, tomando como marco teórico o conceito de
eficiência trazido por Irene Nohara, o diagnóstico da pós-modernidade traçado por Zygmunt
Bauman e principalmente a visão crítica do papel do Estado com base na obra de Karl Marx.
Enfatizamos que a influência do pensamento marxista norteia as reflexões e articulações das
ideias encadeadas nesta pesquisa científica.
A partir do caminho metodológico traçado e do processo reflexivo que a elaboração
desta dissertação proporcionou, foi possível aprimorar as discussões acerca da relação entre o
Estado e a sociedade, sobretudo em relação às classes dominantes. Este aprimoramento está
no sentido tanto de ampliação das discussões, quanto também de vislumbre dos desafios que
estão postos diante de uma hegemonia neoliberal e para as possibilidades de visão crítica em
favor de um projeto democratizante, que ratifique, inclusive, as propostas constitucionais.
Embora se tenha claro que reverter os processos político-ideológicos hegemônicos
requer muito mais do que vontades individuais, é preciso levar em conta que o mundo
capitalista passa por transformações, causadas muito em função da crise estrutural que se
arrasta e que chega a contornos inéditos e com consequências também inéditas, portanto o
momento é mais do que propício para um convite à discussão crítica acerca de um projeto
neoliberal hegemônico, que tem desfigurado as potencialidades democratizantes de uma
possível relação entre Estado e organizações da sociedade civil.
13
Assim, espera-se contribuir para o debate que se trava na linha 1 do Programa de
Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho, designada Justiça e o Paradigma da
Eficiência, e que esperamos que se estenda à sociedade, pois, primeiramente, a Justiça faz
parte do Estado, depois, este se encontra desafiado com permanentes crises em relação ao seu
papel na efetivação dos direitos fundamentais. Em suma, a ideia é refletir acerca da eficiência
do Estado Democrático de Direito no cenário da globalização econômica, como contributo
para uma análise sobre o impacto dos influxos desregulamentadores da pós-modernidade na
promoção da justiça social.
Desta forma, a presente dissertação não pretende esgotar tal discussão, mas, ao
contrário disso, ela tem o intuito de instigar a investida em estudos neste campo, por ampliar
os debates e fortalecer uma discussão mais crítica da realidade e – quem sabe? – ampliar as
possibilidades de aproximação real a um projeto emancipatório, ou seja, pretende-se que este
trabalho se torne, ainda que como contribuição mínima, um instrumento de socialização de
informações e questionamento da realidade.
14
1. O SURGIMENTO DO ESTADO E SUA EVOLUÇÃO DE ACORDO COM AS
COMPREENSÕES SOCIAIS E POLÍTICAS DO MUNDO OCIDENTAL
1.1. O conceito de Estado
Certamente o contorno da ideia de Estado é fruto do aumento da complexidade da vida
em sociedade e do conflito entre as divisões de poderes existentes que exigem a concentração
do poder nas mãos de uma só pessoa e/ou grupo de pessoas. Com isso, emergem três aspectos
inerentes a essa nova forma de agrupamento humano e que irão servir de parâmetro para todos
os conceitos de Estado a serem desenvolvidos posteriormente, quais sejam: a feição política, a
jurídica e a social1.
Para compreendermos o Estado, não podemos desconsiderar esses três aspectos
conceituais. Destarte, Álvaro Azevedo Gonzaga e Cláudio De Cicco conceituaram assim o
Estado:
Uma definição abrangente de Estado seria ‘uma instituição organizada política,
social e juridicamente, ocupa um território definido e, na maioria das vezes, sua lei
maior é uma Constituição escrita. É dirigido por um governo soberano reconhecido
interna e externamente, sendo responsável pela organização e pelo controle social,
pois detém o monopólio legítimo do uso da força e da coerção’2.
Sob o aspecto político, o Estado tornou-se o centro do poder. Com isso, o poder
político passou a ter sua expressão máxima no ente estatal, estando o poder político e o Estado
intrinsecamente ligados, tornando-se o Estado o poder institucionalizado. Assim, o aspecto
político do Estado baseia-se na função de coordenar os grupos e os indivíduos de acordo com
os fins a serem atingidos e no fato de que ele, Estado, impõe a escolha dos meios apropriados.
Segundo Darcy Azambuja:
O Estado Moderno é uma sociedade à base territorial, dividida em governantes e
governados, e que pretende, nos limites do território que lhe é reconhecido, a
supremacia, sobre todas as demais instituições. De fato, é o supremo e legal
depositário da vontade social e fixa a situação de todas as outras organizações3.
1 Para muitos doutrinadores, a ideia de Estado Moderno surge em 1648 com a chamada Paz de Vestfália,
consubstanciada em dois tratados: Tratado de Münster e de Onsbrück. Com a assinatura desses dois tratados,
foram fixados os limites territoriais resultantes das guerras religiosas bem como da Guerra dos Trinta Anos,
movida pela França e seus aliados contra a hegemonia dos Habsburgos no Sacro-Império Romano-Germânico,
de nítida influência católica. Superando, em parte, as questões religiosas, estabeleceram-se as questões políticas
dos Estados como elemento principal das suas relações. Este novo enfoque, por sua vez, não significa o descarte
das questões religiosas que, aliás, ainda se encontram presentes em alguns contextos. (Cf. Mário Megale da
Silveira Filho, A tutela dos direitos coletivos em face do modelo de Estado Social Brasileiro, passim). 2 Cláudio de Cicco e Álvaro de Azevedo Gonzaga, Teoria Geral do Estado e Ciência Política, p. 43.
3 Darcy Azambuja, Teoria Geral do Estado, p. 6.
15
O Estado seria uma organização social, dotada de poder e com autoridade para
determinar o comportamento de todo o grupo4, ou nos dizeres de Kelsen: “o Estado é uma
sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem
coercitiva.”5.
Sahid Maluf considera o Estado como fato social6. Para Clóvis Beviláqua,” o Estado é
um agrupamento humano, estabelecido em determinado território e submetido a um poder
soberano que lhe dá unidade orgânica.”7.
Sob a feição jurídica, o ente estatal torna-se uma organização destinada a manter as
condições universais de ordem social pela aplicação do direito, tornando-se produtor de
direito, objeto do direito e sujeito de direito8. Sendo uma ordem jurídica, o Estado vive nela e
a ela se submete, fazendo com que seja respeitado por todos os indivíduos e sociedades,
inclusive pelos demais Estados.
Segundo Dalmo de Abreu Dallari9:
Aí está um dos grandes problemas do Estado contemporâneo: ele existe em função
dos interesses de todos os indivíduos que o compõem, e para o atendimento desses
interesses busca a consecução de fins gerais; visando atingir esses objetivos, ele
exerce um poder que pretende alcançar o máximo de eficácia, sobrepondo-se a todos
os demais poderes e submetendo até aqueles que lhe dão existência; ao mesmo
tempo, é a expressão suprema da ordem jurídica, assegurando a plena eficácia das
normas jurídicas, mesmo contra si próprio.
A força decisiva do Direito na formação do Estado consiste em fazer, por meio de um
regramento universal, com que as pessoas que coexistem naquele determinado território
(comunidade) passem a viver em coesão ou simplesmente direcionadas por um ideal,
transformando o poder de situação fática à sua institucionalização10
. Para Queiroz de Lima, é
a “Nação encarada sob o ponto de vista de sua organização política, ou simplesmente, a nação
politicamente organizada”11
.
Roberto Aguiar ressalta que “as normas jurídicas e os ordenamentos jurídicos, como
todos os atos normativos editados pelo poder de um dado Estado, traduzem de forma
4 SILVA, Enio Moraes da. O estado democrático de direito. Brasília: Revista de Informação Legislativa, a.42
n. 167, 2005, p. 216. 5 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p. 273.
6 Sahid Maluf, Teoria Geral do Estado, p. 35.
7 Clóvis Beviláqua, apud Sahid Maluf, Teoria Geral do Estado, p. 21.
8 Mário Megale da Silveira Filho, A tutela dos direitos coletivos em face do modelo de Estado Social
Brasileiro, passim. 9 Dalmo de Abreu Dallari, O futuro do Estado, p. 48-49.
10 Para Georges Burdeau, o Estado se forma quando o poder se torna uma instituição, mediante o fenômeno da
“institucionalização do poder” (Georges Burdeau, Traité de Science Politique, t. 2, p. 128). 11
Queiroz de Lima, apud Sahid Maluf, Teoria Geral do Estado, p. 37.
16
explícita, seja em seu conteúdo, seja pelas práticas que o sustentam, as características,
interesses e ideologia dos grupos que legislam.”12
. Afinal: “ninguém legisla contra si
mesmo.”13
.
Sob o caráter sociológico, o Estado representa a convergência das forças sociais
existentes no território, buscando a segurança e a promoção do interesse comum dos homens
por meio da reunião das forças individuais. Assim sendo, o Estado seria a síntese dos ideais
de comunhão que ele traz dentro de si e, por isso, se apresenta à sociedade como poder de
mando, governo e dominação. Ou seja, o Estado é a organização das forças coativas sociais.
Para Marcelo Alexandrino e Paulo Vicente, o Estado é “pessoa jurídica territorial
soberana, formada pelos elementos povo, território e governo soberano”. Esses três elementos
são indissociáveis e indispensáveis para a noção de um Estado independente: “o povo, em um
dado território, organizado segundo sua livre e soberana vontade”14
.
Na análise que propusemos, o direito germânico é oportuno de ser resgatado porque
nos permite observar a articulação entre direito e cultura. Como bem diz Jellinek: “... a
princípio, o Estado germânico é uma associação de povos a quem falta a relação constante
com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só muito lentamente se
levou a cabo em sua história.”15
.
É possível, ainda, a compreensão do Estado como uma forma moderna de
agrupamento político, caracterizado pelo fato de deter o monopólio da violência16
e do
constrangimento físico legítimo sobre um determinado território17
.
Adotaremos ao longo deste trabalho a concepção de Estado que surge a partir da
propriedade privada e da divisão social do trabalho; a visão marxista de que o Estado cria as
condições necessárias para o desenvolvimento das relações capitalistas18
, ou seja, o Estado
como o ente que gere os interesses da classe dominante, portanto não admitimos a
12
Roberto A. R. Aguiar, O que é Justiça: uma abordagem dialética, p.115. 13
Aguiar, Idem, p. 116. 14
Marcelo Alexandrino e Paulo Vicente, Direito administrativo descomplicado, p. 13. 15
Geor Jellinek, Teoria General del Estado, p. 307. 16
“Monopólio da violência” refere-se à definição de Estado exposta por Max Weber em “Política como
vocação“, ensaio em que Weber fundamenta uma definição de Estado que se tornou clássica para o pensamento
político ocidental, atribuindo-lhe o ”monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado
território”, para impor sua ordem (Max Weber, “Política como vocação”. In, Ensaios de Sociologia, p. 97.). 17
Franz Oppenheimer situa a origem do estado na violência imposta por um grupo social a outro, definindo-o
como a “instituição social que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com objetivo de organizar o
domínio do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões intestinas e agressões estrangeiras” (Der
staat, p. 5, apud Paulo Bonavides, Ciência Política, p. 53). 18
Norberto Bobbio, “Existe uma doutrina marxista do Estado?”, In O Marxismo e o Estado, 1979.
17
possibilidade de existência de autonomia do Estado em relação às oligarquias que o
cooptam19
.
Em suma, o papel da unidade do Estado capitalista é o de legitimar a hegemonia
social do bloco burguês no poder, fazendo com que a ação do poder político
institucionalizado seja encarada como sendo executada em benefício dos interesses
do conjunto das classes sociais, e não em defesa dos interesses do bloco burguês no
poder. Isto é viabilizado pelo fato de o caráter de classe estar ausente das instituições
estatais, neutralizando, em seu interior, as clivagens sociais.
No entanto, o Estado não é apenas um aparelho de repressão e violência, mas um
aparato político-jurídico em que a intervenção e a organização variam de acordo com a
organização da sociedade, considerando aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais,
conciliados pelas ligações de forças entre as parcelas das classes vigentes20
.
1.2. As primeiras organizações e o surgimento do Estado Moderno
Observando a trajetória do ser humano no planeta é possível apreendermos que os
indivíduos são gregários por natureza, nascem “para a agregação dos homens e para a
sociedade (societas) e a comunidade do gênero humano”21
ou, segundo Aristóteles, são
animais sociais22
.
Ainda, segundo Aristóteles23:
(...) a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social,
e que é por natureza e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma,
seria desprezível ou estaria acima da humanidade […] Agora é evidente que o
homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social.
Como costumamos dizer, a natureza não faz nada sem um propósito, e o homem é o
único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode
indicar a dor e o prazer, os outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida
somente até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las
entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto
também o justo e o injusto; a característica especifica do homem em comparação
com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do
19
Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, p. 274. 20
Extraído da ideia do “Estado ampliado” de Gramsci, na leitura de José Willington Germano, “Gramsci: igreja
e intelectuais (acerca da formação do estado burguês na Itália)”, Educação em Questão, v.4, n.1/2, p. 125. 21
Cícero, De Finibus, IV, 2,4, apud Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 602. 22
O animal político, ou “zoon politikon”, é a expressão que Aristóteles utilizou para descrever a natureza do
homem, em sua interação necessária na pólis. Este conceito aristotélico é um dos argumentos fundamentais para
a organização social e política do homem. Para Aristóteles, a união entre os homens é natural, porque o homem
é um ser que naturalmente necessita de coisas e de outras pessoas para alcançar a sua plenitude. Afirma ele: “As
primeiras uniões entre pessoas, oriundas de uma necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes de existir
um sem o outro, ou seja, a união da mulher e do homem para perpetuação da espécie (isto não é resultado de
uma escolha, mas nas criaturas humanas, tal como no outros animais e nas plantas, há um impulso natural no
sentido de querer deixar depois de indivíduo um outro ser da mesma espécie.” (Aristóteles, A política, p. 13). 23
Aristóteles, Idem, p. 15.
18
justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal
sentimento que constitui a família e a cidade.
Na mesma ordem de ideias da disposição natural dos homens para a vida associativa e,
certamente por influência de Aristóteles, encontramos em Roma, no século I A.C., a
afirmação de Cícero de que
(...) a primeira causa de agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade
do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não
nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que,
mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum24.
Na Idade Média, São Tomás de Aquino, expressivo seguidor de Aristóteles, também
considera que o homem é naturalmente sociável: “O homem é, por natureza, animal social e
político, vivendo em multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que evidencia pela
natural necessidade”25
. Destarte, “a natureza social do homem se manifesta na linguagem, no
dizer ou no logos (...) O homem é o único animal que fala, e o falar é função social.”26
.
Assim, o homem poderá realizar a sua potência mais elevada: a vida política em sociedade.
Registros antropológicos dão conta de que nas regiões de planícies formadas pelos
grandes rios Nilo, Tigre e Eufrates surgiram as primeiras organizações sociais complexas. O
Ocidente conheceu as primeiras manifestações da organização social do homem na
Antiguidade, em que pesem os registros das sociedades mesopotâmicas, dos reis egípcios,
persas, sumérios, africanos e asiáticos. Assim, adotaremos como organização política a Grécia
Antiga, considerada a primeira referência de organização social nos moldes das chamadas
cidades-estados27
, apesar da existência, ainda na Antiguidade, do Estado Oriental ou Estado
Teocrático, que, via de regra, tinha na figura do chefe religioso a concentração do poder
político28
. Significa, de maneira geral, que há uma estreita relação entre o Estado e a
divindade29
.
24
Cícero, Da República, livro primeiro, XXV, p. 30. 25
Tomás de Aquino, Suma Teológica, v. I, p. 96. 26
Julian Marías, “Aristóteles”, In História da filosofia, p. 91. 27
Este termo aplica-se a toda cidade que se autogoverna, sem o auxílio ou intervenção de um ente baseado em
outro centro político e administrativo. A estrutura de governo da cidade-estado foi muito utilizada na
antiguidade, onde a população humana sedentária ainda era reduzida, e a noção de governo e composição para a
formação de um Estado ainda eram noções bastante abstratas. O ideal visado era a autossuficiência, a autarquia,
dizendo Aristóteles que “a sociedade constituída por diversos pequenos burgos forma uma cidade completa,
com todos os meios de estabelecer por si, tendo atingido, por assim dizer, o fim a que se propôs” (Aristóteles, A
política, p. 8). 28
Hélcio de Abreu Dallari Júnior, Teoria Geral do Estado Contemporâneo, p. 27. 29
Há uma convivência de dois poderes, um humano e um divino, variando a influência deste segundo
circunstâncias de tempo e lugar (Georg Jellinek, Teoria General del Estado, p. 217).
19
Nas cidades-estados ou pólis, a chefia religiosa não interferia nos comandos da chefia
de Estado, e é já nesta sociedade que observamos a marca de profundas desigualdades sociais,
uma vez que a sociedade era dividida entre homens livres e estrangeiros, além dos escravos,
que constituíam a grande maioria da sociedade30
.
Os homens livres formavam a aristocracia, eram os proprietários de terras e os únicos
que possuíam direitos políticos. As mulheres e crianças não eram consideradas cidadãs e não
participavam das decisões políticas. Os estrangeiros eram, geralmente, artesões e
comerciantes, também não possuíam direitos políticos e não podiam ser proprietários de
terras.
A utilidade do escravo é semelhante à do animal. Ambos prestam serviços corporais
para atender às necessidades da vida. A natureza faz o corpo do escravo e do homem
livre de forma diferente. O escravo tem corpo forte, adaptado naturalmente ao
trabalho servil. Já o homem livre tem corpo ereto, inadequado ao trabalho braçal,
porem apto para a vida do cidadão31
.
Os escravos, que eram a base da mão de obra, executavam todo tipo de trabalho, o
doméstico, na agricultura e até o trabalho na extração de minérios. Tinham uma vida marcada
por sofrimento, pobreza e desrespeito. Em função dessas condições, ocorreram várias revoltas
sociais envolvendo os escravos gregos32
.
A cidade-estado romana se organiza basicamente como as cidades gregas e, devido a
questões culturais próprias, eram fortificadas como civitas33
, sendo construídas com forte
senso de urbanização. O Estado, então, era uma nação organizada que fundamentava e
unificava sua vontade por meio do direito34
.
Tal introito fez-se necessário para compreendermos que, seja na polis grega, seja na
res publica em Roma, tais sociedades já eram marcadas por diferenças de classes, ou seja,
nenhum modelo clássico rompeu com a desigualdade social.
Na Idade Média, não tínhamos Estados com poder centralizado sob o comando de um
soberano, mas diversos reinos com o poder político dividido entre os senhores feudais e as
comunas35
. O mundo naquela época era fracionado em diversos feudos independentes, até
30
Dallari Júnior, Ob. cit., p. 28. 31
Aristóteles, Política, cap. II, 1243b. 32
Dallari Júnior, Ob. cit., p. 28. 33
Alude à ideia de cidadão/cidadania. 34
Daí a importância do Direito Romano, que serviu de berço para boa parte do direito ocidental. 35
As raízes do movimento comunal encontram-se nas aspirações dos burgueses das cidades, que
queriam liberdade, segurança, isenção de impostos feudais e justiça própria; estas exigências resultavam do
desenvolvimento comercial, que era afetado pela rigidez das estruturas feudais. Fonte: Norberto Bobbio, Nicola
Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, p. 199.
20
que, no final da Idade Média, uma série de fatos ligados à crise do sistema feudal concorreu
para a formação das monarquias nacionais, com o fortalecimento do poder real, tais como o
desenvolvimento do comércio e as revoltas camponesas.
A sociedade estava dividida em classes sociais fixas: o clero (membros da Igreja
Católica, detentores do controle religioso e de terras); a nobreza (a realeza e seus membros,
detentores do poder bélico e de terras) e os camponeses (detentores da força de trabalho nas
terras)36
.
As bases da cultura estavam relacionadas à educação imposta pelo clero. Saliente-se
que a educação era elitizada, sendo permitido apenas a alguns nobres terem acesso a ela. A
grande maioria, constituída pela massa social camponesa, era mantida longe do ensino,
ficando sua formação restrita aos dogmas estabelecidos pela própria Igreja Católica.
Em 1531, em sua obra O Príncipe, Niccolò Machiavelli (ou Nicolau Maquiavel,
aportuguesadamente) faz uso, pela primeira vez nos escritos sobre política, da palavra Estado
com seu significado contemporâneo: “todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm
poder sobre os homens, são Estados e são ou repúblicas ou principados”37
. Em William
Shakespeare (1564-1616), nas pegadas de Maquiavel, também encontraremos a palavra
“Estado”, indicativa da sociedade política – na tragédia Hamlet, pela boca da personagem
Marcelo é dito: “Something is rotten in the State of Denmark” [grifo nosso] (tradução: Há
algo de podre no Reino da Dinamarca)38
.
O fato é que Maquiavel ensina que o governo civil é aquele que é obtido através do
favor dos concidadãos39
. Tal conceito é o que mais se aproxima do ideal de democracia da
atualidade. Nele, o príncipe deve manter a estima do povo em troca de sua continuidade no
poder. É inegável a associação desse princípio com a ideia moderna de legitimidade40
.
Maquiavel é responsável pela autonomia da ciência política, desligada das
preocupações predominantemente filosóficas da política normativa dos gregos e desvinculada
da fé e da moral cristã41
.
Inegavelmente, Maquiavel norteia sua obra na figura do Estado, visto que sua
preocupação era elaborar a melhor forma de o Estado ser capaz de impor a ordem, com base
no mundo real, tendo como ponto de partida e chegada a realidade concreta, o mundo do ser.
36
Dallari Júnior, Ob. cit., p. 28. 37
Nicolau Maquiavel, O Príncipe, p. 7. 38
Marcus Cláudio Acquaviva, Teoria Geral do Estado, p. 4. 39
Maquiavel, Idem, p. 68. 40
Lairton Moacir Winter, “A concepção de Estado e de poder político em Maquiavel”, In Revista Tempo da
Ciência, Vol. 13, número 25, p. 123. 41
Maria Lucia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Temas de Filosofia, p.155.
21
Seu objetivo, como pensador político, era impor um Estado estável em resposta ao caos e à
instabilidade daquela sociedade42
.
A ideia de Estado moderno surge com o fim do império Romano, a partir do
enfraquecimento do Estado imperial e da convulsão do feudalismo, pois, com a crise do
sistema feudal, os cargos mais elevados passaram a ser ocupados pela nobreza e pelos
burgueses mais ricos que compravam títulos de nobreza. Ocorre, então, o fortalecimento desta
nova classe, a burguesia mercantilista43
, a qual, visando a expansão de “seus negócios”,
investe na unidade entre os povos, o que faz surgir, mais tarde, o fenômeno da
nacionalidade44
.
Como era constituída a burguesia nascente? Dela faziam parte os escritores, os
doutores, os professores, os advogados, os juízes, os funcionários (as classes educadas), bem
como os mercadores, os fabricantes, os banqueiros (as classes abastadas), que já tinham
direitos e queriam mais. Acima de tudo queriam (precisavam) lançar fora o jugo da lei feudal
numa sociedade que realmente já não era feudal. Precisavam deitar fora o apertado gibão
feudal e substituí-lo pelo folgado paletó capitalista45
.
Uma vez alterada a ordem vigente e o poder constituído sofrendo mudanças em suas
bases ideológicas, surge a imediata necessidade de alteração dos instrumentos de legitimação
do poder. Assim surge o Estado, com a criação de uma estrutura burocrática administrativa,
42
Francisco Weffort (org.), Os Clássicos da Política, passim. 43
Em que pesem versões contrárias sobre a origem do capitalismo, como a de Ellen Wood, que entende que o
feudalismo produziu uma variedade de formas e resultados em toda a Europa, e um desses resultados foi o
capitalismo, mais especificamente na Inglaterra, em que a base material em que se fundamentava a economia
nacional emergente era a agricultura, tendo, então, o capitalismo surgido da exploração da classe dominante
agrícola na Inglaterra (Ellen Wood, A origem do capitalismo, passim). Adotamos a origem “tradicional”, que
nos remete à origem do sistema capitalista na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, com o
renascimento urbano e comercial dos séculos XIII e XIV, época do surgimento da burguesia, que buscava o
lucro por meio de atividades comerciais. Com base nos estudos históricos, identificamos na burguesia, nos
banqueiros e cambistas, os ideais embrionários do sistema capitalista: lucro, acúmulo de riquezas, controle dos
sistemas de produção e expansão dos negócios. Sendo o capitalismo dividido basicamente em três fases:
Capitalismo Comercial, entre os séculos XVI e XVIII, que teve início com as Grandes Navegações e Expansões
Marítimas Europeias, quando a burguesia começa a buscar riquezas em outras terras fora da Europa;
Capitalismo Industrial, com a significativa mudança no sistema de produção na Europa, tendo na Revolução
Industrial o fortalecimento do sistema e solidificação de suas raízes na Europa e em outras regiões do mundo; e,
por fim, o Capitalismo Financeiro, iniciado no século XX até a atualidade, tendo no sistema bancário, nas
grandes corporações financeiras e no mercado globalizado as molas mestras de desenvolvimento. (Síntese
extraída da obra: Michael Beaud, A História do Capitalismo: de 1500 até nossos dias, passim). Importante
salientar que, independentemente da versão adotada, seja a origem agrária ou a do renascimento urbano e
comercial, o fato é que, onde há o capitalismo, estão presentes também a luta de classes e a exploração do
homem pelo homem por meio de uma classe dominante. 44
Ressalte-se que a nação é considerada o pré-estágio do Estado. A ideia de nação é uma pura criação artificial,
largamente explorada no século XVIII para levar a burguesia, economicamente poderosa, à conquista do poder
político (Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 132). 45
Leo Huberman, História da riqueza do homem, p. 149.
22
leis gerais, um sistema tributário, idioma nacional, moeda unificada e força militar para
proteger e manter a soberania nacional e a ordem.
O desenvolvimento do comércio acirrou a divisão social do trabalho, que até então
estava limitada “a um prolongamento da divisão natural do trabalho existente na família”.
Esse antagonismo já não cabia no “regime gentílico”, apenas um tipo de sociedade
poderia comportá-lo para sua própria sobrevivência: esta se caracterizaria pela contradição
entre as classes. Segundo Engels,
(...) acabava de surgir uma sociedade que, por força das condições econômicas
gerais de sua existência, tivera que se dividir em homens livres e escravos, em
exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em que os referidos
antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda tinham que ser levados
a seus limites extremos. Uma sociedade desse gênero não podia subsistir senão em
meio a uma luta aberta e incessante das classes entre si, ou sob o domínio de um
terceiro poder que, situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse
os conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no campo econômico,
numa forma dita legal. O regime gentílico já estava caduco. Foi destruído pela
divisão do trabalho que dividiu a sociedade em classes, e substituído pelo Estado46.
O Estado emerge de dentro da sociedade em um determinado estágio de
desenvolvimento econômico que intensificava as contradições entre as classes. De acordo
com Lênin, “O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não
podem objetivamente ser conciliados.”47
, contradizendo a concepção difundida do Estado
como conciliador das classes colidentes e de consenso social.
E, como o Estado também institui a propriedade privada, esses mecanismos levam
cada vez mais a que o Estado defenda os interesses da burguesia e a ajude a se consolidar,
conforme o pensamento marxista que vai afirmar mais tarde que o Estado é o comitê dos
negócios da burguesia48
.
Acirram-se a luta de classes e o conflito entre “capital e trabalho”. As grandes
organizações e empresas capitalistas e as massas trabalhadoras já não se entendem e entram
em conflito na tentativa de assegurar seus próprios interesses – veremos sumariamente essas
questões no capítulo a seguir.
46
Friederich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado p. 190. 47
Vladimir Ilich Lênin, O Estado e a revolução, p. 9. 48
“(...) a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente,
a soberania política exclusiva do Estado representativo moderno. O governo do estado moderno não é senão um
comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.”. (Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto
do Partido Comunista, p. 69).
23
1.3. Estado: uma imposição divina, resultado de um contrato social ou da vitória
de um projeto econômico?
Para Hegel, o Estado é a “realidade da ideia moral, a substância ética consciente de si
mesma, a manifestação visível da divindade”49
, ou seja, algo que é absoluto e que tem como
função harmonizar a contradição família e sociedade.
Nas justificativas teóricas para o absolutismo, temos o conceito do poder divino dos
reis do jurista francês Jean Bodin50:
Nada havendo de maior sobre a terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos, e
sendo por Ele estabelecidos como seus representantes para governarem os outros
homens, e necessário lembrar-se de sua qualidade, a fim de respeitar-lhes e
reverenciar-lhes a majestade com toda a obediência, a fim de sentir e falar deles com
toda a honra, pois quem despreza seu príncipe soberano despreza a Deus, de Quem
ele é a imagem na terra.
No livro De Lá Republique, de 1576, Bodin publica importante obra política trazendo
os conceitos de soberania e do direito divino dos reis. Nesse período, a Europa passava pelo
caos das guerras de Religião do século XVI51 e, como forma de unificação política e de
pacificação social, temendo a anarquia, o autor sustenta a existência de uma vontade suprema
soberana.
Para o autor, a soberania era o poder absoluto do chefe de Estado de legislar para os
súditos, sem necessidade de se sujeitar às leis, visto que “não pode dar ordens a si mesmo”52
.
Jacques Bossuet, com a obra Política segundo as Escrituras Sagradas, do final do
século XVII, afirmou que houve um estado de natureza e que os homens se organizaram
politicamente e conferiram poder supremo a um rei e aos seus descendentes (um poder
soberano) para poderem viver em segurança. Essa seria, então, a legitimação da mais antiga
forma de governo: a monarquia.
49
George W. F. Hegel apud Paulo Bonavides, Ciência Política, p. 75. 50
Jean Bodin, “A República”, citado por Jean-Jacques Chevalier, As grandes obras políticas de Maquiavel a
nossos dias, p. 58. 51
As Guerras travadas entre católicos e protestantes (huguenotes) na França, na segunda metade do século XVI
(entre 1562 e 1598) ficaram conhecidas como “Guerras de Religião”. Elas são o desdobramento das diversas
consequências da Reforma Protestante iniciada em 1517 por Martinho Lutero. No entanto, na França, a
intolerância e a violência não tinham apenas motivações religiosas, mas também (e principalmente) políticas
(Frank Viana Carvalho, O Pensamento Político Monarcômaco: da limitação do poder real ao contratualismo,
tese de doutorado, p. 191-196). 52
Norberto Bobbio, A teoria das formas de governo, p. 96.
24
Considerai o príncipe em seu gabinete. Dali partem as ordens graças as quais
procedem harmonicamente os magistrados e os capitães, os cidadãos e os soldados,
as províncias e os exércitos, por mar e por terra. Eis a imagem de Deus, que,
assentado em seu trono no mais alto dos céus, governa a natureza inteira... Enfim,
reuni tudo quanto dissemos de grande e augusto sobre a autoridade real. Vede um
povo imenso reunido numa só pessoa, considerai esse poder sagrado, paternal e
absoluto; considerai a razão secreta, que governa todo o corpo do Estado, encerrada
numa só cabeça: vereis a imagem de Deus nos reis, e tereis ideia da majestade real53
.
Para o autor, a monarquia seria sagrada, vez que os príncipes são como ministros de
Deus e seus representantes na Terra, de forma que não devem prestar contas a ninguém54
.
Ainda no século XVII, temos o fortalecimento da ideia de Estado Absoluto, sendo
Thomas Hobbes um dos seus grandes representantes teóricos. Ao investigar as origens do
Estado e sua razão, Hobbes rompeu com a visão antropológica de Aristóteles, segundo a qual
o homem seria um animal social por natureza, defendeu um suposto estado de natureza em
que os indivíduos viveriam em liberdade e igualdade segundo seus instintos. Contudo, em tal
“estado de natureza”, teríamos a “guerra de todos contra todos” que, nas palavras do
pensador:
Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é
inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os
homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua
própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a
indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem
navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há
construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que
precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do
tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um
constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre,
sórdida, embrutecida e curta55
.
O Estado hobbesiano tiraria os homens do estado de natureza para garantir o
cumprimento e obediência às leis de natureza. Ou seja, leis naturais são base para direitos
naturais que perfazem o estatuto do homem antes de qualquer outra institucionalização
jurídico-política.
Para que as leis de natureza tenham vigência, é necessário um poder suficientemente
grande para que sejam respeitadas. E, para tanto, o passo seguinte é conferir toda força a um
53
Jacques-Bénigne Bossuet, Política segundo as Escrituras Sagradas, citado por Jean-Jaques Chevalier, As
Grandes Obras Políticas de Maquiavel aos nossos dias, p. 88. 54
Faz-se um contraponto com o pensamento marxista que, por meio do Materialismo Histórico, propõe que os
homens não são meros seres contemplativos do mundo (produto do meio), mas são também produtores da
História: “a sociedade, o Estado e o Direito não surgem de decretos divinos, mas dependem da ação concreta
dos homens na História” (Marilena Chauí, Convite à Filosofia, p. 112). 55
Thomas Hobbes (Thomas de Malmesbury), Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e
civil, p. 76.
25
homem ou a uma assembleia de homens – esse é o caminho da instituição do Estado. Somente
a ingerência política de um Estado que se sobreponha às individualidades seria capaz de
garantir segurança a todos. Assim, o Estado soberano significaria a realização máxima de uma
sociedade civilizada e racional.
A ascensão do Estado estava relacionada a mudanças nos pensamentos políticos, na
compreensão e na legitimação da mudança estatal. Defensores do Estado tradicional seguiam
as linhas do direito divino dos reis, baseado na crença de que o soberano tem o direito de
reinar pela vontade de Deus e não dos homens.
Um dos objetivos que Hobbes via no acordo que viabilizasse o Estado era a
manutenção da paz, não qualquer paz, mas a paz que a burguesia em consolidação necessitava
para desenvolver seus negócios e afirmar-se como a classe que detinha os meios de
produção56
.
Hobbes pretende dar uma justificativa racional e universal para a existência do Estado
e para as razões pelas quais os seus comandos devem ser seguidos. Assim, traçou
detalhadamente todo um sistema em volta da sua proposta de Estado, em consonância com as
exigências e o espírito de seu tempo, ou seja, o ideal de uma classe social revolucionária que
se estabelecia e necessitava fundar um Estado em harmonia com seus interesses.
Certamente a ideia de poder concentrado e absoluto não interessava mais à classe
emergente da época, que buscava a expansão do poder econômico, e, logo no século XVIII,
em meio às reivindicações políticas da burguesia, na França e na Inglaterra, surgiram fortes
correntes de pensamento contrárias ao absolutismo monárquico.
Com a evolução do pensamento humanista, sustentado pelo Iluminismo, há o
aparecimento do Estado Liberal, sendo o pensador John Locke seu maior expoente,
publicando, ainda no final do século XVII, a obra Dois tratados do governo civil, onde
critica o poder absolutista do rei, poder que é fundamentado na “escolha divina” e traz,
também, ensaios sobre a ideia do governo civil.
Segundo Locke, neste suposto “estado natural” (assim como Hobbes entende, de
perfeita liberdade e igualdade), o homem possui direitos naturais independentes de sua
vontade, entre eles, o direito à propriedade: “o Homem era naturalmente livre e proprietário
de sua pessoa e de seu trabalho57
”. Os homens saem do “estado de natureza” e ingressam
56
Elson Rezende Mello, Considerações sobre o Estado em Hobbes, Revista de Ciências Humanas, v. 12, n. 1,
p. 217-234. 57
Francisco C. Weffort, Formação do pensamento político brasileiro: ideias e personagens, p. 85.
26
na “sociedade civil” por meio de um contrato social (consenso), essa é a base das teorias de
Hobbes e Locke.
Em sentido muito amplo, o Contratualismo compreende todas aquelas teorias
políticas que veem a origem da sociedade e o fundamento do poder político
(chamado, quando em quando, potestas, imperium, Governo, soberania, Estado)
num contrato, isto é, num acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos,
acordo que assinalaria o fim do estado natural e o início do estado social e político58
.
Immanuel Kant assinala, na mesma linha de raciocínio, que:
O ato pelo qual um povo se constitui num Estado é o contrato original. A se
expressar rigorosamente, o contrato original é somente a ideia desse ato, com
referência ao qual exclusivamente podemos pensar na legitimidade de um Estado.
De acordo com o contrato original, todos (omnes et singuli) no seio de um povo
renunciam à sua liberdade externa para reassumi-la imediatamente como membros
de uma coisa pública, ou seja, de um povo considerado como um Estado (universi).
E não se pode dizer: o ser humano num Estado sacrificou uma parte de sua liberdade
externa inata a favor de um fim, mas, ao contrário, que ele renunciou inteiramente à
sua liberdade selvagem e sem lei para se ver com sua liberdade toda não reduzida
numa dependência às leis, ou seja, numa condição jurídica, uma vez que esta
dependência surge de sua própria vontade legisladora59
.
Assim, aceitando-se a autoridade da vontade geral, o cidadão não só passa a pertencer
a um corpo moral coletivo, bem como adquire liberdade ao obedecer a uma lei que prescreve
para si mesmo.
Apesar das diferenças, o que existe em comum nas teorias contratualistas é a ênfase do
caráter racional e laico (não religioso) da origem do poder. É o próprio homem que dá o
consentimento para instauração do poder, reafirmando assim o valor do indivíduo e do
cidadão60
.
Nessa linha, pelo contrato social, o homem deixa de ter a liberdade natural, instintiva
e, portanto, sem limites, para ganhar a liberdade civil, a qual tem como limitação a vontade
geral, tornando-se, pois, um ser racionalmente moral. Assim, é celebrado entre os homens um
contrato social para que o governo civil preserve os direitos naturais dos indivíduos em face
do próprio Estado que, diferentemente do contato social hobbesiano em que há a sujeição
absoluta dos súditos ao Estado, no contrato social de John Locke, é concebido como um
consentimento coletivo em prol da instauração de um corpo político tendente a garantir a
inviolabilidade dos direitos naturais.
58
Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, p. 272. 59
Immanuel Kant, A metafísica dos costumes, p.158. 60
Maria Lucia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Temas de Filosofia, p.157.
27
Pois, sendo ele apenas o poder conjunto de cada membro da sociedade, concedido à
pessoa ou assembleia que legisla, não pode exceder o poder que tinham essas
pessoas no estado de natureza, antes de entrarem em sociedade e cederem-no à
comunidade. Pois ninguém pode transferir a outrem mais poder do que ele próprio
possui; e ninguém dispõe de um poder arbitrário absoluto sobre si mesmo, ou sobre
quem quer que seja, para destruir sua própria vida ou tomar a vida ou a propriedade
de outrem61
.
O Estado deve preservar o direito à liberdade62
e à propriedade privada. As leis devem
ser expressão da vontade da assembleia e não fruto da vontade de um soberano, ou seja,
quando trata dos limites do poder instituído pelo pacto social, Locke entende que a defesa da
propriedade privada é uma das principais finalidades do governo.
Desponta, portanto, uma preocupação no pensamento burguês: que as leis não fossem
produzidas por quem tivesse o poder de aplicá-las, percebendo-se a importância que o
controle do poder dos juízes já possuía na estrutura do Estado Moderno. Assim, para fazer
frente ao poder absoluto do Estado, outro pensador, Montesquieu, assegurava que
(...) o poder naturalmente abusará da liberdade, isto é, o poder naturalmente
corrompe e que o governante tendo meios e necessidade agirá sem considerar as
liberdades dos súditos. (...) Ao poder deve-se opor o poder. Apenas o poder
correspondente pode controlar o poder. Com isso, proclama que o governante deve
ser considerado como potencialmente mau e assim uma engenharia institucional
deve evitar a ação maléfica, mesmo quando não tentada63
.
A solução de Montesquieu, portanto, é que o poder deve necessariamente ser dividido
para ser controlado64
. Montesquieu “opta claramente pelos interesses da nobreza, quando põe
a aristocracia a salvo tanto do rei quanto da burguesia”65
.
(...) Por outro lado, como autêntico aristocrata, desagrada-lhe a ideia de o povo todo
possuir poder. Por isso estabeleceu a necessidade de uma Câmara Alta no
Legislativo, composta por nobres. A nobreza, além de contrabalançar o poder da
burguesia (estamento social em rápida ascensão social e econômica na França dos
séculos XVII e XVIII), era vista por ele como capacitada, por sua superioridade
natural, a ensinar ao povo que as grandezas são respeitáveis e que monarquia
moderada é o melhor regime político66
.
61
John Locke, Segundo tratado sobre o governo, p. 504. 62
Daí decorre que essa liberdade concedida a cada indivíduo era indispensável para que a burguesia mantivesse
“o domínio do poder político”, que não se estendia às outras classes sociais (Paulo Bonavides, Do Estado
Liberal ao Estado Social, p. 44). 63
Charles de Secondat, Baron de Montesquieu, Do espírito das leis, p. 13. 64
Ressalvem-se os poderes de prerrogativa já previstos por Locke: “muito assunto há que a lei não pode prover
por meio algum, e estes devem necessariamente ser entregues à discrição daquele que tem nas mãos o poder
executivo, para que regule conforme o exigirem o bem público” (John Locke, Segundo tratado sobre o
governo, p. 98). 65
José Américo Motta Pessanha e Bolívar Lamounier, “Montesquieu (1689-1755): Vida e Obra”, In
Montesquieu, Do Espírito das leis, p. 23. 66
Pessanha e Lamounier, Idem, Ibidem.
28
Além da influência de Montesquieu, outro pensador se destacava no pensamento
político do qual se apropriaria a classe burguesa, no combate ao Absolutismo: trata-se de
Jean-Jacques Rousseau, que não rompeu com a ideia de um contrato social, contudo fez
algumas críticas aos modelos de contrato trazidos por Hobbes e Locke.
Para Rousseau, a legitimidade só está assegurada mediante a realização efetiva dos
interesses do soberano, e a soberania está localizada no povo67
. O Estado deveria ser limitado
e agir em função do povo (soberano), sendo a soberania do povo inalienável68
. Defende,
ainda, a necessidade de representantes políticos em constante rotatividade, algo que
minimizaria os riscos de degeneração dos governos e a usurpação da soberania da sociedade
civil.
Uma associação de cidadãos produz um corpo coletivo e moral, sendo que de sua
unidade se extrai a vontade. Essa “coletividade de cidadãos” unidos é o que Rousseau chamou
de povo.
Assim como a natureza deu a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus
membros, o pacto social deu ao corpo político um poder absoluto sobre todos os
seus; e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, carrega, como eu já
disse, o nome de soberania69
.
A manifestação da vontade do povo representa a vontade geral, capaz de guiar o poder
do Estado e impor limites à liberdade civil. Essa vontade soberana é manifesta por meio da
lei. Contudo, o desejo do soberano só atinge a qualidade de lei se buscar atingir o “bem
comum”, que passa a ser o fim do Estado70
.
Rousseau não atribui à propriedade a categoria de direito natural, como o direito à
liberdade e à igualdade. Pelo contrário, entende que o estabelecimento da propriedade ocorre
como um ato unilateral do primeiro ocupante no estado de natureza, assim, antes da lei civil.
Afirma ele que:
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e
encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria
poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os
67
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, p. 39. 68
Rousseau, Ob. Cit., p. 38. 69
Rousseau, Ob. Cit., p. 253. 70
Prova da influência dos pensamentos de Montesquieu e Rousseau no ideário da Revolução Francesa é o
dispositivo dos artigos 6º e 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
29
buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor;
estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”71
.
Assim, diferentemente de Locke, que estabelece a propriedade como fruto do trabalho,
dando mais sustentação às ideias de acúmulo de propriedade, Rousseau a considera como
degeneração do gênero humano e atribui o direito de propriedade legítimo após o contrato
social72
. Caberia apenas à vontade geral impedir a excessiva desigualdade de patrimônio73
.
As teorias políticas desse período contribuíram de forma marcante para abalar as
estruturas do Antigo Regime. As noções de soberania da sociedade civil, de um Estado a
serviço da comunidade, da rotatividade representativa e da participação popular na elaboração
da legislação fizeram com que Rousseau fosse aclamado pela burguesia e influenciasse a
Revolução Burguesa, na França, em 1789.
Segundo Malberg74
, os franceses foram influenciados pela noção de Montesquieu de
ser a lei a regra geral que subjuga as regras individuais, alcançando todos os cidadãos para
restituir a igualdade subtraída pela vida em sociedade75
.
Por meio do famoso trinômio da liberdade, igualdade e fraternidade76
, a Revolução
buscou a ascensão do homem-súdito ao status de homem-cidadão77
. O ideal burguês
associado à leitura de Rousseau traz-nos a ideia de que o Estado é coparticipante da união da
igualdade e da liberdade entre os homens, sendo o fomentador de uma sociedade capaz de
71
Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p.
222. 72
“O direito de primeiro ocupante, ainda que mais real que o do mais forte, só se converte em verdadeiro
direito depois de estabelecido o de propriedade. Todo o homem tem naturalmente direito a tudo que o lhe é
necessário; mas o ato positivo que o torna proprietário de algum bem o exclui de todo o resto; estando feita a
sua parte, a ela se deve limitar, e não tem mais direito à comunidade. Eis por que o direito de primeiro ocupante,
assaz débil no estado de natureza, é para todo homem civil, respeitável” (Rousseau, Ob. cit., p. 62). 73
Ernst Bloch, Derecho natural y dignidad humana, p. 65. 74
A autor ressalta que a noção da lei enquanto regra geral foi ainda mais alargada sob a influência da teoria de
Rousseau da “vontade geral do povo”. Fonte: R. Carré de Malberg, Contribution à la Théorie Générale de
l´État, p. 5-6. 75
Marcus Castro destaca que, apesar de Montesquieu ter postulado a “existência de relações naturais entre os
homens”, nascidos “naturalmente iguais e dotados da faculdade do conhecimento”, esse pensador francês não
pode ser considerado um jusnaturalista, como Hobbes, Locke e Rousseau, visto que, segundo o autor,
Montesquieu afirma que é com o surgimento da sociedade que desaparece a “igualdade natural entre os
indivíduos”, instaurando-se um “estado de guerra”. Nesse contexto é que se revelaria o papel das leis positivas
em Montesquieu, destinadas a restabelecer a liberdade política dos indivíduos. Indubitável a importância de
Montesquieu às instituições, em substituição à ética do bem, que se torna o fundamento da ordem: “No estado
da natureza, os homens nascem em situação de igualdade; mas eles assim não persistem. A sociedade os faz
perder essa condição, e eles não retornam ao estado de igualdade senão por meio das leis”. (Montesquieu, 1834,
p. 245). Fonte: Marcus Faro de Castro, “Violência, Medo e Confiança: do Governo Misto à Separação de
Poderes.”, In Revista Forense, vol. 382, p. 157-180. 76
Segundo Irene Nohara, “embora o lema da Revolução tivesse sido liberdade, igualdade e fraternidade, apenas
o primeiro princípio foi efetivamente perseguido na etapa de consolidação da Revolução” (Irene P. Nohara,
Direito Administrativo, p. 20). 77
Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 30.
30
conduzir seus cidadãos à plena felicidade. Contudo, a história nos mostra que a liberdade e a
igualdade não caminham juntas.
Nas palavras de Rousseau:
Se indagarmos em que consiste precisamente o maior bem de todos, que deve ser o
fim de todo o sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetivos
principais: liberdade e igualdade. A liberdade, porque toda a dependência particular
é outro tanto de força tirada ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não
pode existir sem ela. Já disse o que é a liberdade civil; a respeito da igualdade (...)
que nenhum cidadão seja bastante opulento para poder comprar a outro, e nenhum
tão paupérrimo para necessitar vender-se, o que supõe. Por parte dos grandes,
moderação de bens e de crédito; dos pequenos, moderação de ânsia e cobiça. Mas os
fins gerais de toda instituição devem modificar-se em cada país pelas circunstâncias
que nascem, tanto da situação local, como a do caráter dos habitantes. E
considerando estas circunstâncias, deve dar-se a cada povo um sistema de
instituição, que seja o melhor, embora não por si, mas para o Estado a que se
destina78
.
Os burgueses ansiavam por um modelo de Estado que alcançasse os seus objetivos
capitalistas. Daí, temos uma série de acontecimentos impulsionados por uma classe
desafiadora que derrubaram a Bastilha em 14 de julho de 1789. Caem os privilégios
medievais, e é elaborada a Declaração dos Direitos. O Antigo Regime é substituído por um
novo modelo de Estado79
. Nasce um novo tempo, uma nova ordem burguesa e capitalista, que
transformaria o mundo para sempre, porém, a inclusão social não se consolida, a liberdade e a
igualdade de Rousseau foram esquecidas pelos revolucionários80
. Uma vez conquistado o
poder, a burguesia se ocupou de garantir também a hegemonia ideológica, e a igualdade
restringiu-se ao direito à generalidade da lei formal e abstrata, tendo sido abandonada a busca
efetiva pela distribuição de condições materiais e de oportunidades iguais para todas as
pessoas81
.
No plano institucional, “o liberalismo significou a construção de um Estado em que o
poder se fazia função do consenso, e em que a divisão de poderes se tornava princípio
obrigatório; o direito prevalecia em seu sentido formal, e a ética social repudiava as
intervenções governamentais”82
. Nesse passo, o Estado liberal assumiu “essencialmente
78
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, p. 87-88. 79
Os burgueses conseguiram: romperam “com a velha aristocracia ociosa e protegida, que vivia à sombra dos
tronos, desdenhando a burguesia e sendo por esta desdenhada” (Bonavides, 2001, p. 68). 80
No liberalismo houve um acúmulo de riqueza que trouxe por consequência o poder econômico, porém este
poder cresceu de tal forma que se transformou num abuso do poder econômico, que fez com que a igualdade do
liberalismo virasse uma “piada” (Rodrigo Santos Neves, “O Estado regulador”, In Revista de direito
constitucional e internacional, n. 44, p. 211). 81
Irene P. Nohara, Direito Administrativo, p. 20. 82
Nelson Saldanha, O Estado Moderno e o Constitucionalismo, p. 51.
31
características de abstenção: não atuar na ordem econômica nem afrontar os direitos e as
liberdades individuais”83
.
A burguesia, que em um primeiro momento precisou de um Estado forte e unificado
para garantia de seus direitos, agora impõe um Estado mínimo, com a ausência de direitos
sociais e a não intervenção na economia, pois “sem individualismo, não há liberalismo”84
, e,
com certeza, o desenvolvimento desta ideologia e deste modelo estatal foi essencial para o
desenvolvimento do capitalismo85
e do sistema político e jurídico da sociedade ocidental.
Embora Ellen Wood defenda que o capitalismo tenha surgido na Inglaterra como uma
necessidade de expansão do mercado agrícola inglês, como lógica de mercado para a
produção de excedentes da aristocracia rural, ou seja, a origem do capitalismo como lógica de
desenvolvimento de lucro desse mercado não guarda relação com o movimento iluminista
francês86
, e, embora seja possível a concepção do Estado simplesmente como uma instituição
personificada, para o qual são constituídas funções pela sociedade que historicamente o criou,
entendemos que o Estado surge para a consolidação do ideal burguês, que mais tarde vai
resultar na solidificação do sistema capitalista.
Entendemos, dessa forma, que o Estado é um ente político idealizado pelo pensamento
burguês, que reproduz o capitalismo e está, então, comprometido com os ideais econômicos
dessa classe87
, visto que as constituições liberais consolidam a vitória do projeto econômico
burguês, garantindo fundamentalmente os direitos individuais, ou seja, a liberdade para
estabelecer contratos e a garantia da propriedade.
Uma passagem da obra de Friedman ilustra bem a concepção de Estado liberal do
autor:
Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedade; sirva
de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo
econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos;
promova a competição; forneça uma estrutura monetária; se envolva em atividades
com relação ao monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como
83
Jorge Reis Novais, Contributo para uma teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito liberal ao
Estado social e democrático de Direito, Dissertação de Pós Graduação à Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, p 73. 84
Norberto Bobbio, Positivismo jurídico - lições de filosofia do direito, p. 16. 85
Para fins didáticos, adotaremos o conceito de capitalismo dado por Ellen Wood: “o capitalismo é um sistema
em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidas para fins de troca
lucrativa; em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado; e em que todos
os agentes econômicos dependem do mercado, os requisitos da competição e da maximização do lucro são as
regras fundamentais da vida (...). Acima de tudo, é um sistema em que o grosso do trabalho da sociedade é feito
por trabalhadores sem posses, obrigados a vender sua mão de obra por um salário, a fim de obter acesso aos
meios de subsistência” (E. M. Woods, As origens do capitalismo, p. 12). 86
E. M. Wood, As origens do capitalismo, passim. 87
Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto do Partido Comunista, p. 69.
32
suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplemente a
caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano
ou de um louco; - um tal governo teria evidentemente, importantes funções a
desempenhar88
.
Por outro lado, este modelo de Estado, não foi capaz de trazer igualdade e
desenvolvimento humano. Ao contrário, mostrou-se um Estado opressor89
e mantenedor de
uma ordem de separação de classes, privilegiando como cidadão aquele que é proprietário90
,
tanto que a ideia de Estado Mínimo se mostrou ineficaz no controle social, pois a economia de
“livre-mercado”, com a omissão do Estado, acirrou esse conflito de classes.
Segundo Irene Nohara, “a defesa da máxima liberdade individual criava um Estado
que nada fazia para refrear a ação opressora dos economicamente poderosos nas relações
privada”91
. Em outras palavras, o Estado se firmava como um “grupo humano estabelecido
em determinado território, onde os mais fortes impõem suas vontades aos mais fracos”92
.
1.4. A ameaça ao capitalismo e o surgimento do Estado Social
Com a Revolução Francesa, a burguesia falava “ilusoriamente em nome de toda a
Sociedade, com os direitos que ela proclamara, os quais, em seu conjunto, se apresentavam,
do ponto de vista teórico, válidos para toda a comunidade humana, embora, na realidade,
tivesse bom número deles vigência tão somente parcial, e em proveito da classe que
efetivamente os podia fruir.”93
.
Com a consolidação do modelo liberal, o projeto capitalista se espalha e solidifica-se
pelo mundo. Assim, o desenvolvimento contínuo das forças produtivas faz com que a
88
Milton Friedmann, Capitalismo e liberdade, p. 38. 89
“Com o predomínio da doutrina do liberalismo, que se ajustava bem aos desígnios de expansão econômica e
de ampliação das trocas comerciais da burguesia, o Estado foi tido como ‘o fantasma que atemorizou o
indivíduo’, Esta expressão, lapidada por Paulo Bonavides, ilustra uma mentalidade que concentrava no
‘espectro’ estatal toda a pressão do ser humano” (Irene P. Nohara, Direito Administrativo, p. 20). 90
Locke, ao trabalhar o conceito de propriedade e de cidadania no Segundo Tratado sobre o Governo,
desenvolve que o cidadão é aquele que é proprietário de seu próprio corpo, mas não apenas do corpo como
matéria, mas, sim, dono de tudo que o seu corpo produz. Desta forma, o trabalhador explorado, que não tem o
direito de consumir os bens que produz, pois estes são pertencentes ao seu patrão, seria considerado um sujeito
de segunda classe, isto é, um não cidadão. Locke, ao defender seu ideário, conclui como natural a desigualdade,
sendo a cidadania um direito restrito. (Everton Bandeira Martins, O papel da disciplina de história na
construção de cidadãos plenos a partir de um olhar histórico reflexivo, .Dissertação de Mestrado, à
Universidade Federal de Santa Maria, passim). Num período de ebulição de ideias e de definição de padrões,
encontramos em Rousseau a defesa de um aspecto diferente de Locke: neste ponto, “nenhum homem tem
autoridade natural sobre seu semelhante”, argumenta Rousseau; “a força não produz nenhum direito” (Maria
Covre, O que é cidadania?, p.27). 91
Nohara, Ob. cit., p. 21. 92
Léon Duguiy, Manuel de Droit Constitutionnel, p. 14-15. 93
Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 44.
33
produtividade do trabalho atinja seu ápice94
. A burguesia, por deter a propriedade privada dos
meios de produção – e por isso é a classe dominante –, subtrai o excedente do trabalho da
classe dominada95
, suficiente para sua autossustentação e sustentação do aparato institucional
necessário para reproduzir esse modo de produção, no seio do qual se encontra o Estado de
Direito.
O pensamento de Karl Marx traz um novo referencial teórico acerca da relação entre a
sociedade civil e o Estado, fazendo dura crítica aos valores burgueses edificados nas
Revoluções Burguesas, sobretudo a Revolução Francesa de 1789, que, para ele, é um
“momento histórico” de emancipação política e de garantia de direitos da burguesia.
Resumidamente,
(...) o poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe
economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal
e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos
economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a
dominação social96
.
Na obra de Marx é descartada a herança contratualista, que implicava na existência de
um fictício “estado de natureza”. Ao invés disso, temos que as relações humanas são
construídas historicamente97
. O Estado, então, está sempre a favor das classes dominantes
para garantir a sua dominação sobre o todo social e em desfavor dos trabalhadores, uma vez
que não rompe com a estrutura de exploração do trabalho pelo capital, mas tem o papel de
regular tal relação, perpetrando-a98
.
94
“O sistema capitalista surge sobre um terreno econômico que é o resultado de um longo processo de
desenvolvimento. A produtividade do trabalho que encontra e que lhe serve de ponto de partida é uma dádiva
não da natureza, mas de uma história que abrange milhares de séculos.” (Karl Marx, O capital, p. 587). 95
Mais-valia: nome dado por Karl Marx à diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao
trabalhador, que seria a base do lucro no sistema capitalista. “O capitalista, finalmente, força os operários a
prolongar o mais possível a duração do processo de trabalho, para além dos limites do tempo de trabalho
necessário para a reprodução do salário, já que é precisamente este excedente de trabalho que proporciona a
mais-valia” (Karl Marx, Capítulo VI inédito de O capital, p. 109). 96
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, p. 411. 97
“tanto as relações jurídicas quanto as formas de Estado não podem ser compreendidas nem por si mesmas,
nem pela chamada revolução geral do espírito humano, mas antes têm suas raízes nas condições materiais de
existência” (Marx e Engels, apud N. Bobbio, O conceito de sociedade civil, p. 129). 98
As classes sociais constituem a base do pensamento de Marx. Elas são determinadas pela posição que um
grupo de indivíduos possui nas relações sociais de produção. Essa posição seria determinada pela propriedade
ou não de bens. O grupo que os possuísse seria a classe dominante, que por sua vez, exerceria a dominação
sobre a classe dominada (os não detentores do capital). As relações entre essas classes nascem na infraestrutura,
sendo afirmadas, mantidas e reproduzidas pela esfera superestrutural (que também tem o papel de reprimir
ataques ao status quo). Em última instância, Marx considera que as relações econômicas (infraestrutura)
determinam o corpo superestrutural (Augustin Cueva, “A concepção marxista das classes sociais”, In Debate e
Crítica, n° 3, p. 87).
34
Com a implementação da ideologia liberal, a burguesia, então, deixou de ser apenas a
classe economicamente dominante e passou a articular também o poder político, instaurando
por meio das instituições do Estado de Direito uma hegemonia ideológica. Percebe-se que o
Estado tem suas funções atreladas aos interesses do mercado, mantendo sua estabilidade e
garantindo a propriedade privada dos meios de produção e da terra.
Nesse processo de ampliação de mercado e crescimento da burguesia, há um
aniquilamento das formas de relações de produção anteriores, instalando em toda parte
do globo terrestre configurações cosmopolitas, tanto no modo de produção como no
modo de consumo da sociedade capitalista.
Nessa nova perspectiva, na mesma medida em que a burguesia e o capital se
desenvolvem, na “mesma medida desenvolve-se o proletariado (...), os quais só vivem
enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto o seu trabalho aumenta o
capital”99
.
O Estado não rompeu com a estrutura de organização do processo de trabalho, por isso
possui uma origem na desigualdade e no conflito de classes; constitui-se como uma instituição
acima de todas, com a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe e
assumir certa margem de independência em relação às classes, especialmente em conjunturas
de intenso conflito social. Firma-se, então, como instrumento indispensável à manutenção do
sistema capitalista, intervindo de forma direta, inclusive por meio da força, se necessário, na
luta de classes, a favor da classe capitalista dominante.
As novas configurações sociais surgidas na transição provocada pela Revolução
Industrial tornaram ainda mais evidentes o contraste entre os interesses das classes
dominantes e dominadas, ou simplesmente, entre o capital e o trabalho, sendo que o
proletariado protagonizou uma série de reivindicações em prol da realização de efetiva justiça
social100
.
Observamos que os momentos mais favoráveis ao trabalho ocorreram nos anos
dourados do capitalismo101
. Nesse período, os trabalhadores, em especial os da Europa
Ocidental, obtiveram melhores condições de reprodução e até mesmo a formação de pecúlios.
99
Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, p. 34. 100
Irene P. Nohara, Direito Administrativo, p. 21. 101
Depois da Segunda Grande Guerra, a economia mundial passou a desfrutar de um longo período de
prosperidade, alcançando, durante as décadas de 1950-1960, taxas recordes de crescimento. Nesse período, o
PIB mundial cresceu 4,9% ao ano, taxa que adquire toda a sua relevância se a compararmos ao crescimento do
período de 1896-1951, quando o PIB aumentou 2,21% ao ano (Jaime Graciano Trintin e Sandra dos Reis M
Rossoni, “Os anos dourados do capitalismo”, In Akrópolis - Revista de Ciências Humanas da UNIPAR, V. 7,
N, 27).
35
Não conseguiram, entretanto, mesmo nos Estados comandados pelos partidos
socialdemocratas, mudanças no caráter do modo de produção capitalista102
.
A concentração de renda do sistema capitalista produz a concentração das riquezas nas
mãos de poucos e consequentemente contribui para o crescimento da miséria, da
marginalidade e da violência103
. As revoltas sociais são combatidas e controladas, então, pelo
aparato policial do Estado.
Em meados do século XIX, as consequências danosas desse modelo de Estado e a
eclosão das desigualdades sociais e dos conflitos gerados pelos abismos sociais104
ocasionaram reações contrárias.
No entanto, apesar da repressão estatal para conter a revolta dos dominados, o Estado
não é capaz de solucionar a crise social que eclode, agravada pela primeira guerra de
proporção mundial em 1914. Até que, em 1917, temos a primeira Constituição Social, no
México, e dois anos mais tarde na Alemanha, com a ampliação de direitos fundamentais
relativos à previdência, à educação e à saúde, além da previsão de maior intervenção do
Estado na economia.
Certamente, tais acontecimentos, além da crescente marcha do Estado Soviético
recém-formado após a Revolução Socialista de 1917, representavam grave ameaça aos
interesses dos grupos econômicos ocidentais. O Estado, então, na defesa dos interesses dos
grupos econômicos dominantes, adapta-se à nova realidade, incorporando gradativamente
valores sociais, no entanto, continua a assegurar o ideal capitalista.
102
João Maria Figueiredo, A configuração econômica do Estado na sociedade capitalista contemporânea,
Tese de Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Paraná. 103
O ser humano não é a finalidade do Estado de Direito, o que contribui para que a violência atinja índices
insuportáveis. Na década de 1990, o Brasil apresentava taxa de 26,3% homicídios por 100 mil habitantes,
ocupando a segunda posição entre os 60 países mais violentos do mundo (P. S. Pinheiro e G. A. de
Almeida, Violência urbana, p. 18.). Em 2012, o Brasil registrou a maior taxa de homicídios desde 1980: nada
menos do que 56.337 pessoas foram mortas naquele ano, num acréscimo de 7,9% frente a 2011. A taxa de
homicídios que leva em conta o crescimento da população também aumentou 7%, totalizando 29 vítimas fatais
para cada 100 mil habitantes (o levantamento é baseado no Sistema de Informações de Mortalidade – SIM –, do
Ministério da Saúde, que tem como fonte os atestados de óbito emitidos em todo o país. O autor do mapa, o
sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, diz que o sistema do Ministério da Saúde foi criado em 1979 e que produz
dados confiáveis desde 1980. As estatísticas referentes a homicídios em 2012, portanto, são recordes dentro da
série histórica do SIM. Fonte: Demetrio Weber e Odilon Rios, “Número de assassinatos cresceu 7,9% no país
entre 2011 e 2012”, O Globo, 27/05/2014, disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/mapa-da-violencia-
2014-taxa-de-homicidios-a-maior-desde-1980-12613765
765#ixzz38wgG2Af7>, acesso em 12/jun./ 2014. 104
Nunca houve, para um povo, maior dependência do que a enfermidade, a fome, a miséria, o analfabetismo e
a prostituição. Quem libertar a sociedade desses flagelos terá feito uma revolução (Paulo
Bonavides, Do estado liberal ao estado social, p. 211).
36
Paulo Bonavides afirma que não haveria Estado Social de Direito sem a Revolução
Russa, já que a Revolução de 1917 apresentou ao mundo uma nova possibilidade de relações
sociais105
.
O liberalismo não estava estruturado para as transformações geradas pelas revoluções
burguesas, sobretudo o desenvolvimento industrial, que trouxe profundo impacto nas
sociedades ocidentais a partir do século XVIII.
O fracasso econômico do modelo liberal levou à descrença na autorregulação do
mercado, o que fez com que o Estado deixasse de ter uma atuação mínima e negativa. A
desigualdade que surgiu desencadeou reações contra o Estado Liberal e, em meio à pressão
social e para fazer frente aos ideais socialistas, surge a ideia de um Estado mais amplo que
passa a intervir na economia e na promoção de uma igualdade material (e não só formal),
promovendo o bem-estar social de seus cidadãos.
Em 1929, o crack da bolsa de Nova York e a Grande Depressão conduziram os
economistas à substituição das ideias econômicas ortodoxas (livre-mercado), surgindo a
necessidade de implantação de um “capitalismo de mercado”106
.
Não podemos deixar de citar aqui o período entre guerras, pois se trata de um período
importante de fortalecimento estatal que infelizmente descortinou ao mundo a face dos
sistemas autoritários conjugada à ascensão de extremismos ideológicos que culminou no
totalitarismo107
.
É desse período histórico, também, a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e
1939, que resultou no confronto entre grupos de tendência esquerdista, que defendiam um
Governo Republicano, apoiados por sindicatos, partidos políticos de esquerda e defensores da
105
Paulo Bonavides, Do estado liberal ao estado social, p. 183. 106
Teoria de Jonh Maynard Keynes (1883-1946). Segundo o keynesianismo, que propunha a intervenção estatal
na vida econômica com o objetivo de conduzir a um regime de pleno emprego, o sistema capitalista tem um
caráter intrinsecamente instável. Significa dizer que, ao contrário do que sustentam os economistas de inclinação
mais ortodoxa, a operação da “mão invisível” (sugerida por Adam Smith) não produz a harmonia apregoada
entre o bem-estar global e o interesse egoístico dos agentes econômicos (consumidores, produtores e
assalariados), visto que, em busca de seu ganho máximo, o comportamento individual e racional destes agentes,
pode gerar crises a despeito do bom funcionamento das poderosas forças automáticas dos mercados livres. E
essas crises advêm de insuficiências de demanda efetiva. Nisso se aproxima de Marx, mas se afasta
radicalmente dele quanto ao método de análise e quanto ao futuro do sistema capitalista (síntese extraída da
leitura da obra John Maynard Keynes, Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda). 107
“A palavra totalitarismo refere-se a uma concepção política que se mostra em franca oposição à doutrina do
cidadão abstrato e do homem soberano, criada pelo liberalismo. Enquanto este se fundamentava na plena
autonomia individual, colocando a liberdade individual no ápice da escala de valores a ser respeitada pelo
Estado e atribuindo ao poder político apenas e tão somente a manutenção da origem pública, as duas doutrinas
totalitárias do século XX, fascismo e nacional-socialismo, vão mostrar poderosas reações a tal concepção”.
(Marcus Cláudio Acquaviva, Teoria Geral do Estado, p. 215). O Estado totalitário da esquerda é representado
pelo comunismo, e o de direita, pelo nazifascismo, ambos autoritários, com a aparência de Estados de Direito,
em que a ordem jurídica é vinculada e imposta por uma ideia total inegável. (Anderson de Menezes, Teoria
geral do Estado, p. 129).
37
democracia e que contavam, ainda, com o apoio da União Soviética, em confronto com os
defensores do nazifascismo108
, que comandados pelo general Francisco Franco, tinham como
objetivo eliminar o crescente movimento comunista na Espanha e contavam com o apoio dos
setores conservadores e tradicionais da sociedade (Igreja, grandes latifundiários e o Exército)
e com a ajuda militar da Alemanha nazista e da Itália fascista, no intuito da implantação de
um governo autoritário, que acabou acontecendo quando Francisco Franco assumiu o poder
em abril de 1939, implantando um regime ditatorial de direita na Espanha109
.
A Guerra Civil Espanhola foi um dos últimos gritos da proposta de ascensão do
socialismo antes da Segunda Guerra Mundial pelas vias democráticas, um projeto de governo
de status social que deu certo.
O advento da Segunda Guerra e a lamentável experiência do Holocausto
representaram outro marco da história mundial, já que exigiram a necessidade de mudanças
de vários paradigmas, entre eles o da legalidade, já que, sob o pretexto da legalidade, o Estado
perpetrou verdadeiro extermínio legal de seres humanos.
Evoca-se, então, a necessidade do resgate da dimensão valorativa da estrutura jurídica
do Estado, uma vez que este passa a ser visto como protetor da dignidade humana. Destarte, o
Estado pós-guerra busca novos contornos para a sociedade. Nesse contexto, os Estados
Unidos da América, nova potência mundial, mantêm os interesses capitalistas com influência
em todo o mundo ocidental. Nos países capitalistas periféricos, apesar da existência de
Constituições Sociais, os Estados Unidos patrocinam ditaduras militares e governos
autoritários aptos a evitar a proliferação do ideal comunista, enquanto que na Europa
oferecem apoio financeiro para a construção de um novo modelo de Estado.
As transformações sociais, o acirramento das desigualdades e das mazelas da
exploração de classes ocasionou uma transformação também no modelo de atuação do Estado,
que, de braço da economia burguesa, agora, ainda que para manter o modo de produção
capitalista, passa ao estágio de Estado Social, assumindo o papel de garantidor de direitos
108
O fascismo surgiu na Itália em 1922, com a “marcha sobre Roma” que Mussolini empreendeu com seus
milicianos de “camisas negras”, impressionando o poder italiano, como chefe do governo, sob o reinado de
Vittorio Emmanuele III. O “Duce”, como se denominou, realizou reformas básicas e gradativas e inaugurou a
era do Estado totalitário fascista. O nazismo apareceu em 1933, quando Hitler, por meio de vitória eleitoral,
ascendeu ao poder na Alemanha, então sobre a república parlamentar de que era presidente o marechal
Hindenburg. Intitulou-se Führer e mobilizou seus “camisas pardas”, manejando o governo como chanceler do
Terceiro Reich. Também legislou gradativamente até dominar a sociedade alemã, mormente depois da morte de
Hindenburg. Difundiu-se o nazifascismo, e outros Estados fortes copiaram tal modelo, com diversos aspectos e
roupagens: em 1926, a Polônia do marechal Jozef Pilsudski; em 1933, Portugal de Salazar; em 1936, a Espanha
do general Francisco Franco; em 1937, o Brasil de Getúlio Vargas; em 1949, a Argentina de Perón. (Anderson
de Menezes, Teoria geral do Estado, p. 130). 109
Síntese extraída da leitura de Eric J. Hobsbawn, 1917- Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991.
38
sociais, com o aumento da intervenção do poder público na economia. Emerge-se, então, o
Welfare State como alternativa para romper com a ordem econômica vigente e reestruturar as
economias fracassadas regidas pelos princípios liberais110
.
Para Paulo Bonavides, o Estado Social foi a grande revolução que se verificou nos
últimos tempos, vez que é a possibilidade de combate às mazelas sociais produzidas pelo
próprio capitalismo. Assim, traz uma proposta de concepção do Estado tanto como produto da
Revolução Francesa quanto da Revolução Socialista, vez que essas revoluções inauguraram
uma nova visão do homem – o homem “cidadão do universo”, haja vista os direitos
conquistados111
.
O autor ainda descreve as características desta nova concepção de Estado:
Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a
impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional
ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na
economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços,
combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa
própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede
o crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais,
enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita
dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua
influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área
da iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a
denominação de Estado Social112
.
Com a ideia de Estado Social de Direito, há a humanização do interesse público e
surge a preocupação com a cidadania e com a dignidade da pessoa humana e não apenas com
os bens materiais. Surge a necessidade de o Estado reduzir as desigualdades sociais e
propiciar o bem-estar social da coletividade
Conforme Irene Nohara assevera:
(...) foi exigido do Estado um papel essencialmente positivo, ou seja, ele deixa de ser
'guarda-noturno', isto é, protetor da propriedade e da ordem pública, e passa a ser,
além de garantidor da segurança, prestador de serviços públicos, como saúde e
educação113
.
110
Luiz Carlos Bresser Pereira (org.), A Reforma do Estado nos Anos 90: Lógica e Mecanismos de Controle. 111
Segundo Bonavides, a Revolução Francesa deu origem ao Estado de Direito, e a Revolução Russa serviu de
inspiração para o mundo ocidental, para um Estado comprometido com a justiça social: “Não fora a Revolução
Socialista do século XX, o mundo estaria ainda atado à cruel liberdade individualista do capitalismo selvagem
do século XIX, da mesma forma que, sem a Revolução Francesa, continuaria o gênero humano vivendo debaixo
do cetro daqueles reis e rainhas, diante de cujo despotismo o povo se prostrava, coisificado e genuflexo, sem
direitos, sem liberdade, sem participação” (Paulo Bonavides, Do estado liberal ao estado social, p. 211). 112
Paulo Bonavides, Do estado liberal ao estado social, p. 208. 113
Irene P. Nohara, Direito Administrativo, p. 22.
39
O Estado objetiva garantir a isonomia entre os seres humanos, intervindo na ordem
econômica e social na defesa de classes desfavorecidas, assumindo a responsabilidade na
execução de finalidades sociais e na promoção do bem-estar coletivo. Dessa forma, O Estado
é o detentor das prerrogativas, do poder para o cumprimento do dever que vem como
atividade premente de satisfação das necessidades públicas para promoção do bem comum.
A nova orientação proposta pela Administração Pública promove o desenvolvimento
dos direitos sociais, aumentando as responsabilidades do Estado e fazendo com que a
sociedade se torne gradativamente mais dependente da Administração Pública.
Com o crescimento dos chamados direitos sociais e econômicos, este ampliou
desmesuradamente o rol de suas atribuições, adotando diferentes atitudes: (...)
serviços públicos, entrando na categoria de serviços públicos comerciais, industriais
e sociais (...) intervenção no domínio econômico (...) o fomento como uma atividade
administrativa de incentivo à iniciativa privada de interesse público114
.
Certamente tal modelo estatal foi um avanço, mormente na garantia de direitos
individuais e na promoção dos direitos humanos, todavia, a ampliação da atuação em todos os
âmbitos sociais e a centralização dos serviços comprometeram a possibilidade de realização
desses serviços aos cidadãos, principalmente por causa da burocratização e da escassez de
recursos nos países em via de desenvolvimento115
.
A oferta de direitos sociais representa a possibilidade de a população ter acesso à
saúde, à educação e, assim, a mecanismos de organização para cobrar do Estado a efetivação
de políticas que garantam a sua inclusão no sistema social e econômico.
A classe dominante foi obrigada a fazer concessões para garantir a legitimidade do
capitalismo, incorporando gradativamente as reivindicações dos trabalhadores frente aos
ideais socialistas116
, atenuando, assim, os conflitos sociais oriundos do abismo social entre
ricos e pobres, e deste modo, garantir, ainda que minimamente, direitos sociais aos
trabalhadores.
114
Maria Sylvia Zanella di Pietro, Parcerias na Administração Pública: Concessão, Permissão Franquia,
Terceirização, Parceria Público Privada e Outras Formas, p. 56. 115
A ineficiência do Estado em cumprir seu dever é aumentada pela crise financeira dos países mais pobres.
Aqui são incluídos os países da América Latina, entre eles, o Brasil – ideia extraída de “Políticas sociais para o
desenvolvimento: superar a pobreza e promover a inclusão; Simpósio Internacional sobre Desenvolvimento
Social”. Organizadoras: Maria Francisca Pinheiro Coelho, Luziele Maria de Souza Tapajós e Mônica Rodrigues.
Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, UNESCO, 2010. 116
“À medida que o capitalismo se espraia por regiões mais vastas e penetra mais fundo em todos os aspectos da
vida social e do meio ambiente natural, suas contradições vão escapando mais e mais a nossos esforços de
controlá-las. A esperança de atingir um capitalismo humano, verdadeiramente democrático e ecologicamente
sustentável via se tornando transparentemente irrealista. Mas, conquanto esta alternativa não esteja disponível,
resta ainda a alternativa verdadeira do socialismo” (E. M. Wood, As origens do capitalismo, p. 129).
40
As ações sociais do Estado são uma forma de legitimar o sistema capitalista, mas os
limites dessa ação são estabelecidos pela função básica do Estado: “garantir a manutenção do
trabalho como mercadoria”117
.
Dando ênfase ao lado social da passagem do liberalismo para o intervencionismo,
percebemos que esse momento se destaca pela luta dos movimentos dos trabalhadores na
busca de uma regulação, de uma promoção das questões sociais, tais como as relações de
produção e seus reflexos, a assistência e a previdência social, entre outras reivindicações
sociais que o Estado buscou assumir.
Realmente, trata-se de concessões da classe dominante que coincidem com os ciclos
de expansão e crise do capital e do resultado das lutas de classe. Esse raciocínio nos permite
concluir que, na forma de Estado de Bem-Estar, os trabalhadores obtiveram maiores êxitos em
suas lutas.
O Estado gradativamente vai sendo transformado de uma estrutura de manutenção da
exclusão social em um Estado sustentável, tendente ao combate das desigualdades, que deve
oferecer os meios para que os indivíduos sejam livres, ou seja, liberdade é ter acesso a direitos
sociais como educação, cidadania, trabalho justo, saúde, previdência e participação política. A
liberdade está atrelada à ideia de dignidade. O Estado, numa análise teórica, tem por bem o
homem, buscando a promoção de igualdade e liberdade com inclusão e desenvolvimento118
humano e social.
Este modelo de Estado foi o modelo predominante nos países ocidentais na segunda
metade do século XX, defendendo o desenvolvimento do mercado, contudo, acompanhado de
políticas públicas e da interferência do Estado na economia para corrigir os erros e proteger,
sobretudo, o ser humano, ou seja, o Estado é o organizador da política e da economia,
encarregando-se da promoção e da defesa social: atua ao lado de sindicatos e da sociedade
privada para garantir serviços públicos e proteção à população: trata-se da incorporação dos
valores sociais pelo Estado Democrático de Direito119
.
Surge, aqui, o dever do Estado em realizar serviços com escopo na satisfação das
necessidades públicas, intervindo na economia por meio de sociedades de economia mista,
117
Offe, Ob. cit., p. 139. 118
Trabalhando no campo da Teoria Econômica, Amartya Sen apresenta uma interpretação revolucionária do
conceito de “desenvolvimento”, promovendo uma reaproximação entre a ética e a economia e, com isso,
possibilitando a reumanização da segunda (Amartya Sen, Desenvolvimento como liberdade).
119 Com esta busca a um modelo intermediário entre o Estado Liberal e o Estado Socialista, passa-se da
Democracia Política para a Democracia Social, ou seja, da Ideologia Constitucional Liberal à Ideologia
Constitucional Social (Ivo Datas, Teoria do estado contemporâneo, p. 55).
41
fundações e empresas públicas, ampliando, ainda, seu poder (prerrogativas para alcançar a
satisfação dessas necessidades).
Observamos a figura do Estado Social de Direito com o papel de promover e garantir a
justiça e os direitos sociais e, com o acréscimo de princípios democráticos às funções do
Estado Social, temos, então, a figura do Estado Democrático de Direito. Contudo, há uma
contradição básica neste modelo de Estado: está explicitamente orientado à maior proteção
aos trabalhadores e às minorias, mas é essencialmente uma instituição de uma sociedade
dominada pelo capital120
.
Nos países industrializados ocidentais, porém, foram observados os primeiros sinais da
crise do Welfare State, relacionada à crise fiscal provocada pela dificuldade cada vez maior de
harmonizar os gastos públicos com o crescimento da economia capitalista. Nessas condições,
retoma-se a luta de classes e o conflito entre “capital e trabalho”. As grandes organizações e
empresas capitalistas e as massas trabalhadoras já não se entendem e entram em conflito na
tentativa de assegurar seus próprios interesses, o que estudaremos no capítulo a seguir.
120
Claus Offe, Legitimacy versus Efficiency, p.138.
42
2. O ESTADO CAPITALISTA NO CENÁRIO DE CRISE INSTITUCIONAL
2.1. O Estado Neoliberal
Quase dois séculos depois da Revolução Francesa, o mundo passou por um processo
de avanço tecnológico e aumento exacerbado do consumo. Este mundo é marcado pela
globalização da economia, uma vez que se faz necessária a fluidez de capitais, produtos e
serviços. Neste cenário econômico, a política é guiada pelo ideal neoliberal.
A propósito da palavra globalização, trata-se de uma “palavra que não estava em parte
alguma (mas que) passou a estar em toda parte”121
. A globalização surpreende, encanta,
assusta122
. Surpreende-nos com a velocidade com que rearticula as realidades, encanta com as
novidades e promessas, que anuncia um mundo panglossiano123
e ilusoriamente melhor124
e
que assusta ao evidenciar a fragmentação social, realizando várias formas de alienação,
percebidas como naturais no processo civilizatório125
; que mata a noção de solidariedade,
devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser
animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada126
.
Assim, conceituamos a globalização como um dos processos de aprofundamento da
integração econômica, social, cultural127
e política dos Estados em escala mundial128
, ao passo
em que também ficam evidentes problemas estruturais, como o aprofundamento das
desigualdades sociais.
O horizonte mundializado129
da acumulação capitalista, denunciado por Marx e Engels
no Manifesto do Partido Comunista, ainda em 1848, tornou-se uma realidade incontestável,
e desta vez publicamente legitimado pelos gestores da nova ordem, visto que as empresas
organizaram-se de forma global e transnacionalmente, por meio da utilização dos sistemas de
comunicação telemática130
.
121
Anthony Giddens, A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-
democracia, p. 38. 122
Octavio Ianni, Teorias da globalização, p. 14. 123
Refere-se ao doutor Pangloss, personagem do romance Cândido, de Voltaire, definido pelo exagero de
otimismo, pela tendência em ver as coisas pelo melhor lado, mesmo com muitas adversidades. (Antônio Houaiss
e Mauro Sales Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). 124
Mílton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, p. 18. 125
Octávio Ianni, Ob. cit., p. 197. 126
Mílton Santos, Ob. cit., p. 65. 127
P. Bernardin, Maquiavel Pedagogo: Ou o Ministério da Reforma Pedagógica, p. 68-69. 128
A. M. Slaughter, A new world order, p. 41-45. 129
“Mundialização” é um termo alternativo usado mormente na França, sendo classificada como um processo
de mutação tecnológica do capitalismo, de hipertrofia dos mercados financeiros e da crise do keynesianismo
(François Chesnais, A mundialização do capital, 1996). 130
Richard Sennet, A Corrosão do Caráter, 2004.
43
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de
produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das
relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao
contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores.
O contínuo revolucionamento da produção, o abalo constante de todas as condições
sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as
precedentes131
.
Novas hierarquias são formadas, as classes dominantes, fortalecidas, e a antiga classe
operária, responsável pelas reivindicações sociais e de resistência à exploração do capital,
além de perder espaço no cenário político para os novos movimentos sociais, assumiu ares de
“classe média” altamente diversificada e fragmentada132
.
Esse movimento de globalização do capital pode ser compreendido como um
movimento expansionista da economia para além das fronteiras das nações ante à necessidade
da retomada de crescimento do capitalismo e da taxa de lucratividade das classes homogêneas
em busca de novos campos de exploração por meio da criação de um mercado global.
Segundo Boaventura de Sousa Santos, a globalização neoliberal:
(...) corresponde a um novo regime de acumulação de capital, um regime mais
intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, a dessocializar o
capital, libertando-o dos vínculos sociais, e políticos que no passado garantiram
alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu todo à lei
do valor, no pressuposto de que toda atividade social se organiza melhor quando se
organiza sob a forma de mercado. A consequência principal desta dupla
transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das
oportunidades produzidos pela globalização neoliberal no interior do sistema
mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais
entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país133
.
Trata-se, portanto, de uma “nova configuração do capitalismo mundial”134
em que o
Estado garante liberdade ao capital especulativo, transferindo lucros para sua economia.
Assim, para tornar o Estado mais atraente aos investimentos e ao “capital estrangeiro”, a
política neoliberal propõe o fim da intervenção estatal na economia, fazendo do mercado o
principal regulador da sociedade135
.
131
Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto do Partido Comunista, p. 69. 132
Krishan Kumar, Da Sociedade pós-industrial à pós-moderna, 2006. 133
Boaventura de Sousa Santos, Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário, p. 11. 134
François Chesnais, A mundialização do capital, p. 13. 135
A resposta do capitalismo à crise foi a adaptação e o aproveitamento para consumo das suas mercadorias, por
um regime de “acumulação flexível” (David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens
da mudança cultural, 2005).
44
Diante ao agravamento da crise do capital no final do século XX, os detentores do
capital136
reorganizaram as estratégias de dominação ideológica e de intervenção política e
econômica. Assim, há uma desconstrução do modelo anterior (produção em massa) e da
configuração do Welfare State nos países centrais, enquanto que nos países periféricos temos
a implementação de uma “estratégia de abertura e desregulação econômica com vistas a uma
transnacionalização radical dos centros de decisão e das estruturas econômicas”137
.
O modelo de Estado Neoliberal firma suas bases no período após a Segunda Guerra
Mundial, inicialmente na Europa e na América do Norte, porém, o grande impulso do modelo
de Estado Neoliberal aconteceu em meio às crises do modelo econômico do pós-guerra e com
a primeira crise do petróleo de 1973. Podemos apontar como texto marco da concepção
neoliberal a obra Caminhos da servidão, de 1944, escrita por Friedrich Hayek138
, e que seu
avanço se deu, principalmente, após a derrocada do comunismo na União Soviética e na
Europa Oriental, ocorrida entre 1989 e 1991, que representou uma reação política contra as
conquistas dos trabalhadores ocorridas no Estado do Bem-Estar Social.
Para os neoliberais, a diminuição do Estado era necessária, vez que o modelo do
Welfare State estaria superado139
, já que se tornou demasiadamente caro ao erário público.
Assim, deveriam ser deixadas para os entes privados as questões sociais e econômicas do
136
“Detentores do capital”: a burguesia que inicialmente se articulou para derrubar a antiga ordem vigente e
impôs as transformações econômicas, sociais e políticas a partir do fim do feudalismo, exerceu domínio sobre a
história, justamente por serem os detentores do capital. Visto que, uma vez conquistado o poder, a burguesia se
ocupou de garantir também a hegemonia ideológica; portanto, embora a nomenclatura “burguesia” possa estar
em desuso de acordo com as novas configurações do capitalismo, entendemos que os grupos hegemônicos e as
oligarquias pós-modernas guardam relação com essa elite dominante. A Professora Miriam Limoeiro Cardoso,
afirma: “Amparado nessas concepções, Florestan não atribui a dependência exclusivamente à dominação
externa. Pensa que o capitalismo possui a sua própria lógica econômica, que consiste exatamente na articulação
entre os mecanismos ‘de fora para dentro’ (dos centros capitalistas hegemônicos para as economias capitalistas
dependentes) e ‘de dentro para fora’ (da periferia para os centros hegemônicos). Quanto a esses dois fatores, o
externo e o interno, diz que ‘um não se fortalece sem ou contra o outro’. As burguesias locais tomam parte
importante nessa articulação. É por meio delas que a articulação se realiza. Por isso Florestan as identifica como
parceiras das burguesias hegemônicas. A dominação externa se duplica na dominação interna, e os setores
sociais dominantes internamente superexploram e, consequentemente, superdominam a massa da população
(população trabalhadora e população excluída) para garantir seus próprios privilégios e a partilha do excedente
econômico com as burguesias das economias hegemônicas. (Miriam Limoeiro Cardoso, “Capitalismo
dependente, autocracia burguesa e revolução social em Florestan Fernandes”, artigo do Instituto de Pesquisas
Avançadas da Universidade de São Paulo, disponível em:<http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos>, acesso
em 04/out./2015). 137
José Luís Fiori, 60 lições dos 90. Uma década de neoliberalismo, p. 11. 138
A obra de Hayek, escrita já em 1944, trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos
mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciados como uma ameaça letal à liberdade, não somente
econômica, mas também política. O alvo imediato de Hayek, naquele momento, era o Partido Trabalhista inglês,
às vésperas de vencer a eleição de 1945. Segundo o autor, apesar de suas boas intenções, a social-democracia
conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão (uma servidão moderna). Perry Anderson, “Balanço do
neoliberalismo”, In Emir Sader e Pablo Hentili (org.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado
democrático, p. 9-23. 139
“o apelo por justiça social vai de encontro com as normas básicas de uma sociedade de homens livres”
(Friedrich Hayek, O Caminho da servidão, p. 97).
45
Estado, ou seja, propunham um retorno ao antigo modelo liberal140
, diferenciando-se apenas
no sentido de que o modelo neoliberal busca liberdades econômicas enquanto o Estado liberal
buscou liberdades políticas.
A grande doutrina do neoliberalismo é a repulsa à política intervencionista do Welfare
State. Por isso, os movimentos dos trabalhadores são eleitos pelos neoliberais como os
grandes vilões e responsáveis pela crise econômica, devido às pressões reivindicatórias
exercidas pela classe operária por melhores salários e condições de trabalho, ou seja, a
ampliação de direitos sociais que inevitavelmente estremecem as bases do capitalismo no
tocante à acumulação de capital.
Teóricos do neoliberalismo sustentam que as conquistas operárias, tais como a
previdência social, o subsídio de emprego, o salário mínimo e outras intervenções do Estado
para a garantia de direitos sociais, postuladas no Estado de Bem-Estar, bem como as
reivindicações da classe trabalhadora para a redução da jornada de trabalho, aumento salarial
e seguro-desemprego, representam verdadeiro perigo para a estabilidade do sistema
capitalista: seriam “imperfeições” introduzidas no mercado.
A proposta neoliberal surge como pretensa forma de correção dessas “distorções” e
expurgo das imperfeições do sistema; significa voltar a favorecer o crescimento da economia
capitalista, ao flexibilizar e fragmentar o trabalho. Em suma, o mercado deve servir como
base para a organização da sociedade, contudo, os direitos sociais e trabalhistas tornam
inviáveis a economia de livre empresa; assim, surge a necessidade de uma política que
viabilize a implementação de um Estado mínimo: eis o neoliberalismo141
.
Nas palavras de Antonio José Avelãs:
Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária da época
contemporânea, caracterizada, não só pela afirmação da igualdade civil e política
para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os
indivíduos no plano econômico e social, no âmbito de um objetivo mais amplo de
140
“Daí por que um novo liberalismo, propugnando por uma fórmula (neo)conservadora que resultava em
menos Estado e mais Mercado. O pensamento neoliberal era contraposto às práticas keynesianas adotadas na
época do regime militar” (Irene P. Nohara, Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na
configuração do direito administrativo brasileiro, p. 65).
141 Surgindo efetivamente na Europa e Estados Unidos, foi aplicado radicalmente por Margareth Tatcher na
Inglaterra e por Reagan nos E.U.A., com o objetivo de realizar a “estabilidade econômica”, que, por sua vez,
gerou grande corte social; inclusive, nos E.U.A., houve uma elevação do número de pessoas vivendo abaixo da
linha de pobreza, pela supressão das garantias de emprego, pelo bombardeamento da organização sindical, entre
outros fatos. (Nélson Paulo Lima, Como não privatizar: uma proposta para o Brasil, p. 35). Segundo Irene P.
Nohara: “foi do Latin American Adjustemente: how much has happened?, em 1989, a convite da entidade de
caráter privado denominada Institute for International Economics, que surgiu o receituário adotado
posteriormente como paradigma pelo FMI e pelo Banco Mundial de condição para a renegociação da dívida ou
a concessão de créditos países latino-americanos” (Nohara, 2012, p. 69).
46
libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objetivo que está
na base dos sistemas públicos de segurança social142
.
A proposta neoliberal pode ser cotejada com a ideia de Estado de Marx, para quem “o
executivo do Estado moderno é um comitê para administrar os negócios de toda a
burguesia”143
.
Da mesma forma o neoliberalismo visa converter o Estado em uma agência de
ajustamento das práticas políticas da economia nacional. Alguns dos seus ideais mais
específicos e mais gerais expressam-se em metáforas como a “nova ordem mundial” e “aldeia
global”. Os principais guardiões dos seus ideais e práticas têm sido o FMI, o Banco Mundial,
o BIRD e a OMC:
Há um processo transacional de formação de consenso entre os guardiões oficiais da
economia global. Este processo gera diretrizes consensuais, escoradas por uma
ideologia da globalização, que são transmitidas aos canais de formulação de
políticas de governos nacionais e grandes corporações. Parte deste processo de
formação de consenso desenvolve-se em foros não oficiais, como a Comissão
Trilateral, as conferências de Bildeberg ou a mais exotérica Sociedade Mont Pélerin.
Parte dele caminha através de organismos oficiais como a Cooperação Econômica e
o Desenvolvimento (OECD), o Banco Internacional de Pagamentos, o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Grupo dos 7 (G7). Eles são forma ao discurso no
qual as políticas são definidas, assim como os termos e os conceitos que
circunscrevem o que pode ser pensado e feito. Também articulam as redes
transacionais que vinculam formuladores de políticas de país em país. O impacto
estrutural desta centralização de influências nas políticas de governos nacionais pode
ser denominado de internacionalização do estado. A sua influência mais comum é
converter o Estado em uma agência para ajustamento das práticas e políticas da
economia nacional às exigências estabelecidas pela economia global. O Estado
torna-se uma correia de transmissão da economia global à economia nacional, a
despeito de ter sido formado para atuar como bastião da defesa do bem-estar
doméstico em face dos distúrbios de origem extrema. Dentro do estado, o poder se
concentra nas agências mais diretamente ligadas à economia global: escritórios do
presidente, do primeiro ministro, do ministro da fazenda e do diretor do Banco
Central. As agências mais diretamente identificadas com a clientela doméstica, tais
como os ministérios da indústria, do trabalho e outros são subordinados144
.
O Neoliberalismo pretende transformar o Estado em uma agência de ajustamento
político da economia dos países às exigências da economia global. Assim, a economia, agora
em escala globalizada, continuará sendo regida pelo mercado organizado em grandes
conglomerados econômicos, reduzindo o governo a uma posição meramente arbitral.
Para esta visão política, o Estado deve empreender esforços para propiciar segurança
negocial e investir recursos na criação de infraestrutura, de forma que políticas sociais são
tidas como sobrecarga em seu orçamento. Contudo, a não intervenção do Estado na economia
142
António Avelãs Nunes, O Estado capitalista e as suas máscaras, 2013. 143
Karl Marx e Friedrich Engels, Ob. Cit., p. 69. 144
Otávio Ianni, A sociedade global, p. 8-9.
47
resultaria no esfacelamento de suas instituições e diluição de sua soberania, posto que o
controle político do mercado estaria entregue à privilegiada e homogênea elite formada por
poderosos capitalistas.
Sobre o assunto, afirma Bauman: “devido à total e inexorável disseminação das regras
de livre mercado e, sobretudo, ao livre movimento do capital e das finanças, a ‘economia’ é
progressivamente isentada do controle político”145
.
O neoliberalismo atual retrata a reafirmação da hegemonia de países ricos como os
Estados Unidos da América na economia mundial, principalmente após o declínio da oposição
do socialismo liderado pela antiga União Soviética. Compartilham deste entendimento
economistas como Giovanni Arrigui que afirma:
Graças a sua transterritorialidade e a sua especialização funcional, o número de
empresas multinacionais que prosperaram sob a hegemonia norte-americana tem
sido incomparavelmente maior. Uma estimativa de 1980 situou o número de
companhias transnacionais em mais de 10 mil, e o número de suas afiliadas
estrangeiras em 90 mil (Sropford e Dunning, 1983, p.3). No início da década de
1990, segundo outra estimativa, essas cifras haviam se elevado para 35 mil e 175
mil, respectivamente (The Economist, 27 de março de 1993, p. 5, citado em Ikeda,
1993)146
.
O falso sucesso da experiência socialista, que, principalmente entre as décadas de
1950 a 1970, alavancou, aparentemente, estrondoso crescimento econômico na União
Soviética e também na China, declinou-se gradativamente com o processo de abertura chinesa
em 1979 e, posteriormente, com a própria crise soviética na década de 1980. Ao que tudo
indica, revelou-se como o estopim para a inauguração de um novo processo em que, em
grande parte, a alternativa do socialismo liberalizante cedeu espaço para um capitalismo
social, com novas feições resultantes do retorno da liderança hegemônica dos Estados Unidos
e, por efeito, de seu sistema econômico neoliberal147
.
Com o fim da bipolarização do mundo, foi estabelecida a “Nova Ordem Mundial”.
Esse termo foi utilizado pela primeira vez pelo então presidente dos Estados Unidos, Ronald
Reagan, fazendo menção ao processo de dissolução da antiga União Soviética148
, que
demandava uma reengenharia mundial quanto às relações internacionais entre todos os
Estados. Na visão dos Estados Unidos, uma vez que não tinham mais um concorrente direto
145
Zygmunt Baumann, Globalização: as consequências humanas, p. 73.
146 Giovanni Arrigui, O longo século XX, p.74.
147 Reis Friede. Curso de ciência política e Teoria Geral do Estado - Teoria Constitucional e Relações
Internacionais, p. 362. 148
Segundo Sun Tzu, “a glória suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar”. (Sun Tzu, A
arte da guerra, p. 25), e o capitalismo sempre se articulou para evitar a expansão de qualquer ideologia ligada à
lógica do acúmulo de capital e da exploração do trabalho.
48
na busca da dominação econômica e política no globo, os demais Estados mundiais deveriam
se acostumar com a ideia de liderança norte-americana para o desenvolvimento mundial.
O neoliberalismo como política dominante nos países capitalistas ocidentais, liderados
pelos Estados Unidos, contribuiu de certa forma para o alcance da “exaustão econômica” da
União Soviética. Assim, os Estados Unidos (principalmente as empresas e bancos que dirigem
o país) expandiram seu sistema econômico por todo o mundo149
.
O desmantelamento da União Soviética150
e a capitulação da China Comunista
promoveu a líder mundial a única superpotência que restou: os Estados Unidos da América,
transformados numa hiperpotência desses novos tempos do pós-Guerra Fria. O
desaparecimento das fronteiras ideológicas e econômicas, com a subsequente absorção das
antigas potências comunistas pelo mercado internacional, promoveu Washington como a sede
da hegemonia dos norte-americanos sobre o mundo inteiro.
Importante mencionar que neste período a indústria da guerra sustentou a economia e
a própria legitimidade do Estado ao longo do século XX151
. Foi um período em que ocorreram
grande número de mortes152
, por guerras internas, inclusive inúmeros genocídios, que
acompanharam a ascensão comercial dos EUA, que promove até hoje conflitos entre as
nações153
. Assim, a globalização traz uma nova reflexão sobre a soberania e sobre as
fronteiras transnacionais.
149
Gabriel Augusto Miranda Setti, “A hegemonia neoliberal e o capitalismo contemporâneo”, In Revista
Urutágua, 2012. 150
“A implosão do bloco soviético iniciou-se com o governo de Gorbachov, quando este anunciou que não mais
interferiria nos Estados do Pacto de Varsóvia. Vários Estados foram desvinculando-se da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – URSS –, o que levou à criação da Comunidade dos Estados Independentes – CEI –,
composta de algumas das antigas repúblicas soviéticas”. In Roberto Luiz Silva, Direito internacional
resumido, p. 24. 151
Poucas companhias no mundo desfrutam de uma situação tão privilegiada quanto as empresas da indústria
bélica americana. Em 2003, as vendas do setor alcançaram a estrondosa cifra de 150 bilhões de dólares (maior
que o PIB da Argentina, por exemplo), o que é um assombro para qualquer negócio. O grande momento da
indústria bélica americana foi a Segunda Guerra Mundial. Foi a partir dali que empresas até então civis
passaram a produzir para o setor (Carolina Meyuer, “A indústria de 150 bilhões”, Revista Exame, 06/07/2004,
disponível em <http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/821/noticias/a-industria-de-150-bilhoes-
m0051720>, acesso em 10/jul./2015). 152
Albert Einstein, em carta dirigida a Freud, datada de 30 de julho de 1932, diante da proposta da Liga das
Nações, demonstra a preocupação da comunidade científica com a destruição que é produzida pela guerra e se
apavora com o lado mercenário de uma pequena casta: “Essa fome de poder político está acostumada a medrar
nas atividades de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me
especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que,
indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e a venda de armas
simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal”
– Sigmund Freud, Por que a guerra?, p. 237-259 (Edição Standard Brasileira, 1977, p. 241). 153
Os Estados Unidos fomentaram no Oriente Médio a maioria dos conflitos hoje existentes. Israel é a nação
que recebe maior ajuda financeira norte-americana, apesar de ter atualmente o 4º Exército Mundial. Osama Bin
Laden foi recrutado, treinado e financiado para lutar contra a invasão soviética no Afeganistão. Sadam Hussein
foi da mesma forma financiado para combater e deter o avanço do Estado iraniano pós-Reza Pahlevi. (Valdênio
49
Sob essa ótica, podemos sustentar que, da mesma forma que o liberalismo serviu para
confirmar a ascensão e o domínio comercial da Inglaterra, o neoliberalismo confirma a
ascensão dos Estados Unidos e sua dominação no comércio mundial, propiciando a intenção
de penetração em todos os mercados nacionais.
Para o neoliberalismo, o Estado Social provoca o desajuste do mercado, o que
significa restrição à expansão da iniciativa privada. Portanto, temos a reutilização da
expressão de Adam Smith “mão invisível”154
do mercado, isto é, o Estado Neoliberal não quer
se preocupar com políticas sociais, portanto, um Estado submisso às leis do mercado; os
neoliberais não concordam com os movimentos dos trabalhadores155
, defendem a
desregulamentação geral da economia, buscam a eliminação do controle de preços, o fim da
rede pública de proteção social, a privatização de empresas públicas; defendem a existência
de uma taxa natural de desemprego; buscam a disciplina orçamentária do Estado e a
estabilidade da moeda, através de cortes de gastos públicos, prioritariamente os gastos
sociais156
.
É possível, portanto, apontarmos a modificação do papel do Estado a partir do
paradigma do estado Liberal de Direito, inaugurado com a Revolução Francesa sob a
influência econômica do pensamento de Adam Smith (laissez-faire, laissez-passer), tendo o
Estado um papel abstencionista e potencial violador das garantias individuais. Com as
reivindicações sociais pós-Revolução Industrial, temos a figura do Estado Social de Direito
com papel positivo, promotor e garantidor da justiça e de direitos sociais e, em um terceiro
momento, com o acréscimo de princípios democráticos às funções do Estado Social, temos o
A. Caminha, “A nova ordem mundial“, Revista Jus Navigandi, ano 8, n. 66, 1/jun./ 2003, disponível
em <http://jus.com.br/artigos/4123>, acesso em 19/out./2015). 154
Adam Smith considera que a economia deva funcionar baseada em ações de indivíduos que busquem os
próprios interesses privados guiados pela racionalidade instrumental. Não se trata de uma ordem econômica
benevolente, pelo contrário, guia-se por fins egoísticos e individualistas, mas gratifica a sociedade, já que,
segundo ele, se encontra coordenada anonimamente pela “mão invisível” do mercado: “já que cada indivíduo
procura, na medida do possível, empregar o seu capital em fomentar a atividade (...) e dirigir de tal maneira essa
atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por
aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover
o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo (...) [Ao empregar o seu capital] ele tem em vista
apenas sua própria segurança; ao orientar sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior
valor, visa apenas o seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão
invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a
sociedade que esse seu objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios objetivos,
o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quanto tenciona
realmente promovê-lo”. (Adam Smith, A riqueza das nações - Investigação sobre sua natureza e suas
causas, p.379). 155
“A desregulação e a tentativa de flexibilização do regime trabalhista, num cenário de crise, têm potencial de
fazer com que as pessoas não exerçam controle sobre suas vidas profissionais. Sem segurança no emprego, elas
acabam não tendo voz ativa nas instituições às quais pertencem” (Nohara, 2002, p. 68).
156 Gregório Iriarte, Neoliberalismo sim ou não? Manual destinado a comunidades, grupos e organizações
populares, p. 34.
50
Estado Democrático de Direito, cuja crise do modelo exige ações globais da economia, que,
por meio de uma política neoliberal e sob a pressão dos organismos de financiamento
internacionais, afasta novamente o Estado das decisões políticas, para promover a abertura do
mercado econômico157
.
Ao manter o Estado privado de seu poder em razão dessa nova ordem mundial, temos,
além da perda da capacidade do controle estatal, crescentes déficits de legitimação no
processo decisório e a progressiva incapacidade de provar ações de comando e de
organização158
, reacendendo as antigas intolerâncias relacionadas à crise econômica e social e
a progressiva ausência de perspectiva de inclusão de parcela substancial da população
mundial159
.
2.2. Neoliberalismo e exclusão social
Como vimos, o liberalismo clássico foi a mola propulsora da economia capitalista,
tornando-se uma corrente doutrinária e ideológica fundamental tanto para a economia quanto
para a política dos Estados modernos. Com as bases do liberalismo clássico erigiu-se o projeto
hegemônico burguês para suplantar as estruturas feudais que atravancavam o livre
desenvolvimento e se opunham ao jogo das forças econômicas.
Foi no liberalismo clássico que foram firmadas as bases do sistema capitalista com o
respeito à livre iniciativa e à livre concorrência, a proteção ao direito da propriedade privada,
da liberdade individual, da regulação do trabalho e da segurança jurídica para produção e
circulação de produtos.
Para Norberto Bobbio, “o liberalismo é, como teoria econômica, defensor da economia
de mercado; como teoria política, é defensor do Estado que governe o menos possível ou,
como se diz hoje, do Estado mínimo (isto é, reduzido ao mínimo necessário)”160
.
O neoliberalismo submete o Estado aos interesses do mercado e de grupos
hegemônicos transnacionais, assim, a força financeira desses grupos sobrepuja a própria
soberania estatal. Destarte, “os atores não estatais desdenham da soberania dos Estados-Nação
e trabalham com afinco na corrosão de determinadas funções do Estado”161
.
157
Irene P. Nohara, Direito Administrativo, p. 28-29. 158
Jürgen Habermas, “Nos limites do Estado”, Folha de S. Paulo, 19/ jul./ 2002, p. 4-7. 159
Nohara, 2015, p. 25. 160
Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 128. 161
Nicolao Dino de Castro Costa, “Direito e Neoliberalismo”, Revista de Informação Legislativa, Brasília,
2003, disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/914>, acesso em 10/abr./ 2014.
51
O novo cenário político e econômico da pós-modernidade mantém velado, sob nova
roupagem, a luta de classes surgida desde o aparecimento do binômio capital-trabalho, sendo
a desigualdade entre classes cada vez mais latente, pois, buscando enfrentar a crise estrutural
do capitalismo no final do século XX e impor a retomada de sua lucratividade, as novas
oligarquias162
promovem o enfraquecimento do Estado e o retrocesso dos direitos sociais dos
trabalhadores.
O capital como demonstrou Marx nos Grundrisse, tende necessariamente ao limite
mais externo de um mercado global, que representa também a sua situação de
máxima crise (visto que não é possível maior expansão): essa doutrina é para nós,
hoje, muito menos abstrata do que era no período moderno; ela designa uma
realidade conceitual que nem a teoria nem a cultura podem postergar para um tempo
futuro163
.
A proposta neoliberal que busca favorecer o crescimento da economia capitalista
flexibiliza e fragmenta o trabalho aumentando o desemprego e acirrando as desigualdades
sociais, pois os detentores do poderio econômico, na busca pela expansão do mercado e
aumento de seus dividendos164
, são alheios aos interesses nacionais e, portanto, insensíveis à
fração da população excluída deste processo pelo aprofundamento do abismo entre ricos e
pobres165
.
O Estado, por sua vez, submisso aos interesses dominantes, impõe a privatização e
descentralização de suas políticas sociais. Com o enfraquecimento do Estado, assistimos à
gradativa falência dos serviços sociais públicos, pois, ao favorecer a sustentação do capital, há
uma distribuição desigual do fundo público.
Com a economia desatrelada do controle político, os grupos hegemônicos que
cooptam o Estado forjam sua “desresponsabilização”166
no que concerne à garantia dos
162
“Grupo de algumas pessoas poderosas que dominam uma parte dos interesses de um país. / Figurativamente:
Autoridade, preponderância ou influência de pequeno número de pessoas. / Forma de governo na qual um
pequeno grupo de pessoas detém o poder” (Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Dicionário Aurélio Básico
da Língua Portuguesa, 1988).
163 F. Jameson, As sementes do tempo, p. 41.
164 Nesse sistema, como apontou Immanuel Wallerstein, “acumula-se capital a fim de se acumular mais capital.
Os capitalistas são como camundongos numa roda, correndo sempre mais depressa a fim de correrem ainda
mais depressa” (Immanuel Wallerstein, O capitalismo histórico, civilização capitalista, p. 34). 165
A contribuição da economia capitalista ao desenvolvimento das nações pobres da América Latina e África
são cada vez menores a cada década, em contrapartida, os malefícios do sistema como: depredação do meio
ambiente e dos recursos naturais, destruição da vida no planeta, e a consequente disseminação da fome,
desastres naturais e epidemias, não param de aumentar. Sem mencionar a piora sistemática da distribuição da
riqueza no planeta, pois resta evidente que o “movimento atual do capitalismo é cada vez mais excludente”
(CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p.33). 166
“As políticas sociais entram neste cenário caracterizadas por meio de um discurso nitidamente ideológico.
Elas são: paternalistas, geradoras de desequilíbrio, custo excessivo do trabalho, e devem ser acessadas via
mercado. Evidentemente, nessa perspectiva, deixam de ser direito social. Daí as tendências de
52
direitos sociais, deixando a população nacional à margem de sua própria sorte, desencadeando
um movimento de regressão dos direitos e das políticas públicas, agravando a questão social
com o empobrecimento dos trabalhadores e a marginalização dos excluídos.
Segundo Vicente de Paula Faleiros:
a exclusão é um processo dialético e histórico decorrente da exploração e da
dominação com vantagens para uns e desvantagens para outros com impactos de
disparidade, desigualdade, distanciamento, inferiorização, perda de laços sociais,
políticos e familiares com desqualificação, inacessibilidade a serviços,
insustentabilidade e insegurança167
.
O modelo neoliberal de organização política e econômica retira dos Estados sua
função de zelar pelo bem de todas as pessoas e representa um retrocesso social, gerando
benefícios apenas a uma pequena parte da população. Em contrapartida, causa efeitos no
campo social, agravando os índices de desemprego e miséria.
O avanço tecnológico e o elevado corte de gastos em busca de competitividade
internacional ocasionam índices de desemprego alarmantes, com a criação de uma grande
massa de trabalhadores “desqualificados” (ou com baixa qualificação) excluídos do mercado
de trabalho.
Esta política de exclusão social compromete os princípios fundamentais do Estado do
Bem-Estar Social, como o da dignidade da pessoa, do valor social do trabalho, a erradicação
da pobreza e a redução das desigualdades sociais.
Para Emmanuel Teófilo Furtado:
o neoliberalismo não pode se manter e se desenvolver em cenário no qual esteja
aberta a instância de aquisição de direitos, o exercício da cidadania e a busca de
ampliação de direitos. O neoliberalismo vai propagar que o aumento de direitos tem
uma dimensão antieconômica168
.
As políticas antissociais do neoliberalismo aumentam as desigualdades cada vez mais
acentuadas da distribuição da riqueza produzida, o que nos faz pensar no papel do Estado na
era da sociedade de massas.
Dentro de um contexto histórico, o liberalismo promoveu graves equívocos no campo
do desenvolvimento da humanidade, influenciou a vida em sociedade por meio de uma
desresponsabilização e desfinanciamento da proteção social pelo Estado, o que, aos poucos – já que há
resistências e sujeitos em conflito nesse processo eminentemente político – vai configurando um Estado mínimo
para os trabalhadores e um Estado máximo para o capital” (Elaine Rosseti Behring, Brasil em contrarreforma:
desestruturação do Estado e perda de direitos, p. 64).
167 V.P. Faleiros, “Inclusão Social e Cidadania”, In Debates Sociais, n°65/66, ano XLI, p. 109.
168 Emmanuel Teófilo Furtado, Preconceito no trabalho e a discriminação por idade, p. 290.
53
revolução política e econômica, a qual introduziu a ética capitalista individualista,
contribuinte dos processos de exclusão social.
Marx e Engels169
afirmavam que, ainda que o capitalismo pregue a igualdade e a
ascensão social com base no trabalho, a consolidação do modelo burguês com o avanço da
industrialização, por meio da propriedade privada dos meios de produção, teria agravado a
desigualdade política e econômica com a instituição da “mais valia” e a manutenção dessa
inerte divisão de classes. Desse modo, cada sociedade legitimaria o tipo de desigualdade
social a ela inerente, ou seja, a desigualdade é derivada de uma ideologia.
Para Hannah Arendt, “o processo de acúmulo de riqueza, tal qual o conhecemos,
somente seria possível se o mundo e a própria humanidade fossem sacrificados”170
. Em um
primeiro momento, essa alienação teria se evidenciado pela miséria e pela pobreza material de
muitos trabalhadores, destituídos de direitos fundamentais, em benefício do enriquecimento
de poucos.
Maria Luiza Feitosa, citada pelo Professor Vladmir Silveira171
, afirma que a exclusão
social não obrigatoriamente pressupõe exploração, vez que o incluído não precisa do excluído
(à margem do sistema produtivo), diferentemente do explorador, que precisa do explorado.
Ou seja, a exclusão pode transcender a pobreza e a desigualdade social, por abranger mais do
que aspectos econômicos e sociais, mas, sobretudo, oportunidades sociais e capacidades
individuais que são privilégios de poucos, principalmente nos países pobres marcados pelo
subdesenvolvimento e pela dependência econômica.
O fato é que a globalização trouxe profundos impactos nas relações sociais,
concentrando ainda mais a riqueza gerada no sistema e aumentando a marginalização e a
exclusão social. Os 20% mais ricos da população mundial dispõem de uma renda 82 vezes
maior que a dos 20% mais pobres, sendo que dos seis bilhões de habitantes do planeta, apenas
500 milhões vivem na fartura, enquanto 5,5 bilhões continuam a passar necessidades172
.
A globalização agrava as desigualdades sociais. Para Boaventura Santos, a iniquidade
da distribuição da riqueza mundial se agravou nas últimas décadas. Visto que entre os países,
“a diferença de rendimento entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre era, em 1960, de 30
169
Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto do Partido Comunista, 1996. 170
Hannah Arendt, A condição humana, p. 102. 171
Maria Luiza Alencar Mayer Feitosa, “Exclusão social e pobreza nas interfaces entre o direito econômico do
desenvolvimento e o direito humano ao desenvolvimento”, In Vladmir Oliveira da Silveira; Samyra Haydêe Dal
Farra Naspolini Sanches; e Mônica Benetti Couto (org.), Direito e Desenvolvimento no Brasil do Século XXI,
pp. 103-121. 172
Ignácio Ramonet, Propagandas silenciosas: massas, televisão, cinema, 2002, apud Adriane de Sousa
Camargo, Globalização e Hegemonia nas Relações Internacionais: o caso da Via Campesina por uma
perspectiva gramsciana, p. 41.
54
para 1, em 1990 de 60 para 1 e em 1997 de 74 para 1173
“. De acordo com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 20% da população mundial (países ricos)
detinham em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham
apenas 1%174
. Em 2005, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou dados que
demonstraram o grande abismo entre ricos e pobres: “os 500 indivíduos mais ricos do mundo
têm um rendimento conjunto maior do que o rendimento dos 416 milhões de pessoas mais
pobres.”175
.
Por conta da intensificação da implantação do projeto neoliberal, com crescente
redução de custos do Estado e aumento de lucro das empresas capitalistas, tem havido
inúmeras demissões de trabalhadores, terceirização e inferiorização de outros por meio da
diminuição dos salários. As empresas nacionais se tornam transnacionais, e as economias dos
Estados locais também caminham para sua consolidação com o projeto capitalista global
aprofundando as desigualdades e a exclusão nos Estados nacionais e aumentando a pobreza
das classes subordinadas.
Dentro de um contexto de diminuição do poder do Estado é que constatamos a
intensificação das desigualdades sociais, desigualdades constatadas tanto entre as nações,
como interna e individualmente nos Estados, onde o abismo entre ricos e pobres, ou seja, a
manutenção e a ampliação da luta de classes são cada vez maiores. “As riquezas são globais, a
miséria é local – mas não há ligação causal entre elas, pelo menos não no espetáculo dos
alimentados e dos que alimentam”176
.
A globalização aumentou a diferença entre países ricos e pobres no mundo. Entre os
números, estão os seguintes: 185 milhões de pessoas estão desempregadas no planeta (6,2%
da força de trabalho), um recorde; a diferença entre países ricos e pobres aumentou desde o
começo dos anos 1990s, com um grupo minoritário de nações (que representa 14% da
população mundial) dominando metade do comércio mundial177
.
173
Boaventura de Sousa Santos, “Os processos de globalização”, In: Boaventura de Sousa Santos (Org.),
Globalização: fatalidade ou utopia?, p. 40. 174
Boaventura de Sousa Santos, “Os processos de globalização”, In: Boaventura de Sousa Santos (Org.),
Globalização: fatalidade ou utopia?, p. 39. 175
Boaventura de Sousa Santos, A gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 333. 176
Zygmunt Bauman, Globalização: as consequências humanas, p. 82. 177
Aponta estudo da ONU (Organização das Nações Unidas), divulgado em 2004: o levantamento “A Fair
Globalization” (“Uma Globalização Justa”) foi realizado em parceria com a OIT (Organização Internacional do
Trabalho) e conduzido por 26 pessoas, incluindo políticos, economistas, representantes de empresas, sindicatos
e da sociedade civil, além de acadêmicos. Entre os membros do grupo estavam Joseph Stiglitz (Nobel de
Economia) e a antropóloga Ruth Cardoso, ex-primeira-dama brasileira. Os autores reconhecem que a
globalização propiciou sociedades e economias abertas, assim como maior liberdade para o intercâmbio de bens,
ideias e conhecimentos, mas que a pobreza (quem vive com US$ 1 ou menos por dia) cresceu em praticamente
55
A aceleração do capitalismo globalizado por meio de investimentos e ajustes
estruturais nas políticas econômicas dos países pobres produziu também o aumento, em escala
jamais vista, da desigualdade econômica e social no mundo. Diversos dados apontam para o
abismo existente entre os centrais e os periféricos no globo178
.
Nos últimos trinta anos a desigualdade na distribuição dos rendimentos entre países
aumentou dramaticamente. A diferença de rendimento entre o quinto mais rico e o
quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de
74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a
sua riqueza entre 1994 e 1998. A riqueza dos três mais ricos bilionários do mundo
excede a soma do produto interno bruto dos 48 países menos desenvolvidos do
mundo179
.
Segundo Boaventura Santos, com base nos Relatório do Programa para o
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD, 2001), mais de 1,2 bilhões de pessoas, pouco
menos que 25% dos habitantes do planeta, vivem na pobreza absoluta (com um rendimento
inferior a um dólar por dia). Além disso, o grupo dos países pobres, onde vive 85,2% da
população global, detém apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o grupo dos países
ricos, com pouco mais de 14% da população global, detém 78,5% do rendimento produzido
no mundo180
.
As desigualdades e mazelas perpetradas pelo modelo burguês de condução do mundo
estão expostas, os excluídos pelo sistema não exigem a observância dos seus direitos, muitos
sequer conhecem os direitos assegurados pelo ordenamento jurídico, o que se torna
interessante para conter gastos na política neoliberal, pois, quanto menos se exige do Estado,
menor a sua atuação como provedor dos direitos sociais181.
Destarte, é preciso uma reflexão acerca da problemática social neste processo de
globalização econômica que não fomenta o desenvolvimento da sociedade, mas, tão somente,
todo o mundo, notoriamente na América Latina, na Europa Oriental e na África (Gilberto Dimenstein,
“Globalização aumenta a desigualdade, diz ONU”, Folha de São Paulo, 25/02/2004, disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/noticias/gd250204.htm>, acesso em 19/05/2015). 178
Gustavo Corrêa Matta, A medida política da vida: a invenção do WHOQOL e a construção de políticas
de saúde globais, Tese de doutorado para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina
Social, 2005. 179
Boaventura de Souza Santos, “Os processos da globalização”, In B. Santos (org.), A globalização e as
ciências sociais, p. 32. 180
“Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20% da população
mundial a viver nos países mais ricos detinham, em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20%
mais pobres detinham apenas 1%” (Boaventura de Souza Santos, “Os processos da globalização”, In: B. Santos
(org.), A globalização e as ciências sociais, p. 32-36). 181
Priscilia Sparapani, “O modelo de estado brasileiro contemporâneo: um enfoque crítico”, In Âmbito
Jurídico, XV, n. 98, disponível em:<http://www.ambito‐juridico.com.br/site/>, acesso em 10/mai./2014.
56
a acumulação de lucros para os detentores do grande capital182
, distribuindo a riqueza
socialmente produzida de forma desigual, promovendo, assim, a exclusão social e a
fragmentação da sociedade civil, promovendo um neocolonialismo183
ligado à expansão dos
países capitalistas centrais sob a égide dos EUA e de órgãos multilaterais e de organizações
internacionais, como: FMI, OMC, Banco Mundial, OCDE, ONU.
A globalização, enquanto neocolonialismo, representa verdadeiro golpe na estrutura
do Estado Democrático de Direito, que, por sua vez, enfrenta desafios institucionais em meio
a uma crise paradigmática, já que a modernidade não cumpriu seus desafios184
e a pós-
modernidade oferece à humanidade problemas difíceis de serem equacionados185
. Tal crise
merece um espaço de debate e reflexão próprio em nosso trabalho, para entendermos esse
novo cenário de desafios do Estado Democrático de Direito.
2.3. A crise paradigmática e institucional
Ouve-se muito falar em uma suposta crise do Estado, nos deparamos com diversas
abordagens sobre o tema apontando as principais causas desta crise e até trazendo possíveis
soluções. Nossa proposta é tratar a crise do ente estatal, enquanto instituição social, de uma
forma diferente, qual seja: não a compreendendo de forma isolada e ocasional, mas inserta em
um contexto amplo de uma crise paradigmática que afeta o Estado Democrático de Direito e
as principais instituições do nosso tempo, inclusive a família, a escola, a igreja e a sociedade
em geral.
Entendemos que a crise institucional é fruto de uma crise paradigmática que afeta a
visão de mundo186
do ser humano no planeta, o que significa dizer que o mundo está passando
182
Marx já denunciava que a “condição mais essencial para a existência e a dominação da classe burguesa é a
acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e o aumento do capital; a condição do capital é o
trabalho assalariado” (Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto do Partido Comunista, p. 77). 183
Para Bonavides, a globalização representa um neocolonialismo, um verdadeiro golpe de Estado desferido
contra o Estado Democrático de Direito (Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 183). 184
Boaventura de Souza Santos, Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade, p. 35. 185
Irene P. Nohara, Direito Administrativo, p. 25. 186
Cosmovisão ou mundividência: é a orientação cognitiva fundamental de um indivíduo ou de toda uma
sociedade. Essa orientação abrange sua filosofia natural, seus valores fundamentais, existenciais, normativos,
seus postulados ou temas, suas emoções e sua ética.Outro sentido do termo é o de uma imagem do mundo
imposta ao povo de uma nação ou comunidade, isto é, uma ideologia. O termo é um calco linguístico da palavra
de origem alemã que significa literalmente “visão de mundo” ou “cosmovisão”. Essa palavra alemã é adotada
regularmente em diversas línguas para expressar esses significados. Suas origens etimológicas remetem ao
século XVIII. Ela é um conceito fundamental na filosofia e epistemologia alemã e se refere a uma “percepção
de mundo ampla”. Adicionalmente, ela se refere ao quadro de ideias e crenças pelas quais um indivíduo
interpreta o mundo e interage com ele (A. B. H. Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.794).
57
por transformações substanciais. Assim, analisar a crise do Estado isoladamente nos limitaria
a compreensão do próprio tempo e da sociedade contemporânea.
Para tanto, abordamos o embate de paradigmas estabelecido pela transformação do
mundo através do movimento pós-moderno, trazendo esclarecimentos acerca da modernidade
e da pós-modernidade e dos desafios que se revelam nesse tempo. Para diferenciarmos os
marcos paradigmáticos e compreender as análises desses pensamentos, utilizaremos a
concepção do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e faremos a distinção entre períodos da
modernidade e da pós-modernidade em modernidade sólida e modernidade líquida.
A modernidade sólida é justamente a modernidade que inicia com a descoberta do
Novo Mundo, o Renascimento e a Reforma (século XV e XVI), atinge seu auge político nas
revoluções do século XVIII e desenvolve suas implicações gerais após a Revolução Industrial
do século XIX187
. Surge neste período a construção de uma nova imagem do homem no
mundo, rompendo com o paradigma do sistema feudal e colocando o homem no centro do
Universo188
. Na modernidade sólida, há o fim da crença em uma ordem mantida por Deus189
e, em contrapartida, a assunção do projeto moderno, qual seja: a ideia de controle do mundo
pela razão190
.
O Estado e a ciência foram figuras de suma importância para a execução do projeto da
modernidade sólida, visto que o Estado mantinha o controle social e a ciência servia para a
eliminação de ambivalências e para a classificação do mundo previsível, eliminando todas as
incertezas, ou seja, tudo era conhecido e categorizado para, então, ser controlado191
. O Estado,
através de seu projeto, fornecia os critérios para avaliar a realidade do dia presente. Esses
critérios dividiam a população em plantas úteis a serem estimuladas e cuidadosamente
cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou arrancadas192
.
187
A. Touraine, Crítica da Modernidade, p. 11. 188
Jucelia Bispo Santos, “Bauman: modernidade e consequências da globalização”, Revista Internacional de
Direito e Cidadania, n. 11, p. 155-164. 189
O homem abandona a visão de que Deus seria o centro do Universo (Teocentrismo) e os olhares se voltam
agora para o ser humano (Antropocentrismo). Nesta concepção, considera-se que o universo deve ser avaliado
de acordo com a sua relação com o Homem, sendo que as demais espécies, bem como tudo mais, existem para
servi-los, postulando que tudo o que existe foi concebido e desenvolvido para a satisfação humana. Marca a
descrença baseada na Fé e o culto da razão humana, da ciência e da racionalidade. (Gilberto
Cotrim, Fundamentos da Filosofia – História e Grandes Temas, passim). 190
O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à
formação de capital e mobilização de recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da
produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades
nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar
formal e à secularização de valores e normas (J. Habermas, O discurso filosófico da Modernidade, p. 5). 191
Jucelia Bispo Santos, “Bauman: modernidade e consequências da globalização”, Revista Internacional de
Direito e Cidadania, n. 11, p. 155-164. 192
Zygmunt Bauman, Modernidade Líquida, p. 29.
58
Nas palavras de Eduardo Bittar, “pode-se dizer que a modernidade envolve aspectos
do ideário intelectual (científico e filosófico) associados a outros aspectos econômicos
(Revolução Industrial e ascensão da burguesia) e políticos (soberania, governo central,
legislação) conjunturalmente relevantes”193
.
Para Anthony Giddens, a modernidade refere-se às instituições e a modos de
comportamento estabelecidos que se globalizaram194
. Ele destaca “a dialética do local e do
global” e as características da “alta modernidade”, considerando a modernidade uma ordem
pós-tradicional, a tentativa de emancipação do homem (do pensamento dogmático) por meio
da razão humana e da ciência195
.
As ideias forjadas na visão de mundo do homem moderno influenciaram para sempre
a humanidade, tanto no campo econômico, com a forte industrialização e desenvolvimento do
capitalismo, quanto no campo social, com o impacto destas transformações na história e no
pensamento filosófico até os dias atuais. As principais formas de ação racional foram
encontradas no Estado-Nação e no industrialismo capitalista – e em suas práticas políticas e
econômicas – e passaram a dominar e a moldar todas as outras áreas da vida humana196
.
Para analisar o processo de individualização da sociedade, é preciso observar o projeto
da modernidade no Ocidente, que pode ser entendido como um ideário relacionado ao projeto
de mundo e visão de sociedade empreendido em diversos momentos ao longo da Idade
Moderna, sobretudo a partir da Revolução Industrial. Em suma, trata-se de uma investigação
sobre as origens e o desenvolvimento do capitalismo197
.
Já a modernidade líquida é o termo utilizado por Zygmunt Bauman como metáfora da
fluidez para traçar um diagnóstico das transformações sociais na sociedade contemporânea
que a fragmenta. Segundo o autor, a “fluidez” é a principal metáfora para o estágio presente
da era moderna, já que os fluidos não fixam o espaço nem se prendem no tempo198
.
Segundo Bauman (2001), as inúmeras esferas da sociedade contemporânea (vida
pública, vida privada, relacionamentos humanos) passam por uma série de
transformações cujas consequências esgarçam o tecido social. Tais alterações, de
acordo com o sociólogo polonês, faz com que as instituições sociais percam a
solidez e se liquefaçam, tornando-se amorfas, paradoxalmente, como os líquidos. A
193
Eduardo. C. B. Bittar, O direito na pós-modernidade, p. 42.
194 Não no sentido da globalização abordada na pós-modernidade, mas no sentido de que se iniciou na Europa e
depois se espalhou para o resto do mundo, conforme a leitura de Antony Giddens, “Os contornos da alta
modernidade”, In Modernidade e Identidade, p. 27.
195 Gilberto Cotrim, Fundamentos da Filosofia – História e Grandes Temas, p. 132.
196 M. Berman, Tudo o que é sólido desmancha no ar, 1996.
197 Jucelia Bispo Santos, “Bauman: modernidade e consequências da globalização”. Revista Internacional de
Direito e Cidadania, n. 11, p. 155-164. 198
Zygmunt Bauman, Modernidade líquida, p. 8.
59
modernidade líquida, assim, é tempo do desapego, provisoriedade e do processo da
individualização; tempo de liberdade ao mesmo tempo em que é o da insegurança.
Como resposta a esta possibilidade de liberdade (Bauman, 1998, 2000, 2001), os
homens deste tempo, no anonimato das metrópoles, têm a sensação de impotência
sem precedentes, já que, no anseio por esta liberdade, os mesmos encontram-se por
sua própria conta e risco em meio ao concreto. A responsabilidade é deixada às
energias individuais, favorecendo a solução biográfica das contradições sistêmicas.
Desta forma, como todos estão sem tempo, e preocupados com inúmeras atividades
assumidas, poucos são aqueles que têm tempo e disponibilidade para dar o ombro
amigo para o próximo; o vizinho é um desconhecido199
.
Bauman conceituou a pós-modernidade como “modernidade líquida”. Para Irene
Nohara200
, a pós-modernidade é um conceito em construção. Existem, portanto, várias
interpretações dadas à expressão, desde os que entendem que ela representa uma elevação dos
ideais modernos de desempenho e valorização do indivíduo autônomo, até os que enxergam
nela uma significativa ruptura com a modernidade.
Na contemporaneidade, percebemos profundas e significativas mudanças que
caracterizam a transição para uma pós-modernidade, ou modernidade líquida, pois a forma do
poder mudou. Este não é mais visível e concentrado, é poder em rede mundial e
multifacetado201
. O capitalismo se expandiu em múltiplas formas de relação social, por meio
da biopolítica, e a multidão é o novo sujeito social decisivo para a transformação mundial202
.
Jair Ferreira dos Santos conceitua:
Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e
nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o
modernismo (1900-1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 50.
Toma corpo com a arte Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os
anos 70, como crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na
moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência, (...) sem
que ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural203
.
Mais do que um movimento filosófico, a pós-modernidade representa um novo
paradigma cultural e social, uma nova leitura do mundo baseada em premissas como a
conquista do espaço, o aumento descomedido do consumo no mundo capitalista, a velocidade
199
Fabio Elias Verdiani Tfouni e Nilce da Silva, “A modernidade liquida: o sujeito e a interface com o
fantasma”, Revista Mal-Estar e Subjetividade, v.8, n.1.
200 Irene P. Nohara, Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito
administrativo brasileiro, p. 101. 201
Utilizamos a reflexão de Boaventura Santos, para quem a globalização é um fenômeno multifacetado com
dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais complexas. “A globalização é o processo pelo qual
determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência a todos do globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival” (Boaventura de Souza
Santos, “Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos”, in Lua Nova, Revista de Cultura e Política nº
39, p. 108). 202
M. Hardt e A. Negri, Império, p. 23. 203
Jair Ferreira dos Santos, O Que é Pós-Moderno, p. 7-8.
60
da informação, os avanços tecnológicos (como da biologia molecular, com a descoberta do
DNA), o individualismo acentuado, a liberação feminina, o niilismo204
nas artes em geral205
.
Em termos históricos, a pós-modernidade surge da chamada crise do pós-guerra, com
a extinção dos modelos socialistas e com o avanço avassalador do sistema capitalista no
modelo neoliberal e de forma globalizada. O cenário é de explosão da densidade demográfica
nos centros urbanos e uma inevitável crise de valores que se sucede.
Aquela busca moderna de um saber totalizador, uno, estruturado, contínuo e
sistemático não tem validade em um mundo marcado pela fragmentação cultural, pela
contradição e pluralidade de pontos de vista, pela heterogeneidade social e impossibilidade de
consenso cultural. A única substância capaz de definir a sociedade contemporânea seria,
então, a diferença206
.
Na modernidade líquida, todas as relações passam a ser reduzidas a relações de
consumo207
e, como o consumo, são passageiras e se esvaem com o fim do desejo, tornando o
indivíduo algo líquido, efêmero:
Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como
cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com precedentes e manter-se
fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mutáveis
e de curta duração, não constituem opções promissoras208
.
Com efeito, o dinheiro não é propriamente o centro, mas sim gastá-lo, ou seja, o ato de
consumir:
Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependência de consumidor a
dependência universal das compras é a condição sine qua non de toda liberdade
individual; acima de tudo da liberdade de ser diferente, de ter identidade209
.
A nova configuração mundial é vista assim por Castells:
204
Concebemos por Niilismo (do latim nihil, nada) um conceito filosófico que afeta diferentes áreas do mundo
contemporâneo. É a desvalorização do sentido, a ausência de finalidade e de resposta, a ideia de dissolução de
princípios absolutos. Esse conceito é extraído do pensamento de Nietzsche, conforme leitura de Deleuze: “As
etapas precedentes do niilismo correspondem, segundo Nietzsche, à religião judaica, depois à cristã. Mas esta
foi preparada pela filosofia na Grécia (...). Mas o niilismo não para aí e prossegue um caminho que faz toda a
nossa história” (G. Deleuze, Nietzsche, p. 25). 205
Julia Eugenia Gonçalves, “A Pós-Modernidade e os Desafios da Educação na Atualidade”, Revista
Científica Aprender, 2008. 206
Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, 2000. 207
As relações humanas dos indivíduos que se constroem pelo consumo acabam sendo, como eles próprios,
imagem do consumo e acabam por gerar uma fluidez, uma fragilidade cada vez mais acentuada nos
relacionamentos humanos (Zygmunt Bauman, Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, 2004).
208 Zygmunt Bauman, Modernidade líquida, p. 60.
209 Bauman, Ob. cit., p. 98.
61
Um novo mundo está tomando forma neste fim de milênio. Originou-se mais ou
menos no fim dos anos 60 e meados da década de 70 na coincidência histórica de
três processos independentes: revolução da tecnologia da informação; crise
econômica do capitalismo e do estatismo e a consequente reestruturação de ambos; e
apogeu de movimentos sociais culturais, tais como libertarismo, direitos humanos,
feminismo e ambientalismo. A interação entre esses processos e as reações por eles
desencadeadas fizeram surgir uma nova estrutura social dominante, a sociedade em
rede; uma nova economia, a economia informacional/global; e uma nova cultura, a
cultura da virtualidade real. A lógica inserida nessa economia, nessa sociedade e
nessa cultura está subjacente à ação e às instituições sociais em um mundo
interdependente210
.
A crise institucional acontece pela falta de estrutura organizacional, de autonomia e de
identidade no mundo que torna cada vez mais problemática a afirmação da crise do Estado
Social e a desaceleração da produtividade industrial nos países centrais211
.
Este período de transição entre a modernidade e a pós-modernidade é marcado por
conflitos paradigmáticos212
que resultam em uma crise de valores. O homem na modernidade
sólida tinha um projeto de emancipação baseado na razão e na ciência, tentando estabelecer
um mundo justo e equilibrado, contudo, as antigas certezas foram abaladas após as duas
grandes guerras de proporções mundiais, o surgimento de doenças diversas, o embate de
ideologias, o capitalismo selvagem, a alienação e o crescimento do abismo social entre ricos e
pobres.
Por conta dos avanços da própria ciência e da tecnologia, temos, hoje, a capacidade
bélica de destruição do planeta, mas não conseguimos encontrar uma solução para salvá-lo. A
crise mundial é um fato consolidado.
A globalização da economia, enfim, chega à crise global: são 180 milhões de
desempregados no mundo, número nunca antes alcançado, revela a OIT. Um
aumento de 20 milhões em dois anos, ‘em decorrência da recessão global’. No ano
de 2000, a taxa mundial de desemprego era de 5,9%, passando no final de 2002 para
6,5% da população economicamente ativa. Subempregados (aqueles que recebem
menos de US$ 1,00 por dia) subiram para 550 milhões, de sorte que o total de
pessoas sem trabalho ou em subempregos, chegou a 730 milhões. O desemprego
cresceu mais acentuadamente na América Latina, nada menos do que dez por cento.
Segundo Juan Somavia, diretor geral da OIT, no prazo de dez anos, deverão
habilitar-se para ingressar no mercado de trabalho 500 milhões de pessoas, de modo
que se estima ser necessária a criação de 1 bilhão de novos postos de trabalho nesta
década, para que seja atingido o objetivo de reduzir à metade o número de pessoas
que vivem na extrema pobreza213
.
210
M. Castells, Fim de milênio, p. 412. 211
Boaventura de Souza Santos, Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade, p. 214. 212
Para Kuhn, um paradigma refere-se ao modelo de pesquisa científica: “Os paradigmas adquirem seu status
porque são mais bem-sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de
cientistas reconhece como graves”. (Thomas S. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, p. 44). 213
José Carlos Arouca, O Sindicato em um mundo globalizado, p. 927.
62
Este novo mundo proposto é o da fome, pobreza e miséria absoluta, “onde 800
milhões de pessoas estão em condições de subnutridas e 4 bilhões de pessoas vivendo na
miséria”214
. Tem-se a ideia de que a pobreza é só a fome, mas à pobreza estão ligadas, ainda,
a miséria, as péssimas condições de vida, as famílias destruídas, a falta de perspectiva, o
analfabetismo e a exclusão social, e toda tentativa de mudança desse quadro encontra
barreiras nos interesses econômicos do sistema de produção capitalista.
A globalização, como vimos, deu mais oportunidade aos extremamente ricos de
ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para
movimentar largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e especular com
eficiência cada vez maior215
.
O avanço da tecnologia digital na era virtual e a velocidade da informação no mundo
globalizado passam a exigir instituições com sistemas abertos a uma nova concepção de
tempo em que o sujeito perde o poder da decisão. Essa tecnologia não causa impacto na vida
dos mais pobres, sendo a globalização um paradoxo: é muito benéfica para muito poucos, mas
deixa de fora ou marginaliza dois terços da população mundial216
.
Segundo Bauman:
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis
projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades
podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova
situação é que todo diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o
fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida
por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre mantendo
as opções abertas217
.
Se na modernidade sólida o Estado é uma instituição forte e intervencionista, na
modernidade líquida, são os grandes conglomerados econômicos (megaempresas) que
desfrutam da liberdade econômica que torna o Estado um mero e inerte espectador da
incerteza do mercado.
Certamente, das mudanças trazidas pelo fenômeno da globalização218
, entre as mais
marcantes estão a perda de poder do Estado e o enxugamento dos gastos públicos, que
214
Bauman, Ob. cit., p.81. 215
Zygmunt Bauman, Modernidade e Ambivalência, p. 79. 216
Bauman, Ob. cit., p. 79. 217
Zygmunt Bauman, Modernidade líquida, p. 112-113. 218
A globalização, para expressar a sua vertente mais aparente, pode ter iniciado em diversos momentos
históricos: com o iluminismo, com as revoluções industriais e científicas ou com as grandes navegações. Mas o
certo é que as transformações enfrentadas pela sociedade no período entre o final da década de sessenta com a
crise do Welfare State e a década de noventa com a queda do regime comunista no leste europeu promoveram
63
refletiram de forma substancial na intervenção do Estado com prestações sociais.
Observamos, assim, um Estado enfraquecido perante a nova ordem internacional, restando-
lhe, entre outras poucas funções, a de “controlar” a pobreza e a massa de excluídos para a
fruição do capital.
Com o enfraquecimento do Estado, esperava-se, na promessa do livre comércio e no
desenvolvimento econômico, a diminuição das desigualdades sociais. Contudo, cresce cada
vez mais o abismo social entre ricos e pobres, ou seja, a globalização trouxe o aumento da
riqueza dos mais ricos e o aumento da pobreza dos mais pobres. Analisando o fenômeno sob o
ponto de vista jurídico, a globalização representa o “deslocamento da capacidade de
formulação de definição e de execução de políticas públicas, antes radicada no Estado-nação,
para arenas transnacionais ou supranacionais, decorrentes da globalização econômica e de
seus efeitos sobre o poder soberano”219
.
2.4. Neoliberalismo e democracia: a manipulação ideológica da classe dominante
Observamos que o Estado não é um ente imparcial220
e independente, alheio aos
interesses econômicos, mas uma forma necessária da reprodução capitalista.
O conceito de Estado aparece formulado inicialmente na literatura marxista como um aparelho de
dominação de classe, ou seja, um executor fiel dos interesses dominantes, sem importância particular.
Atualmente, dentro do próprio campo marxista, o conceito de Estado é apresentado como um sujeito
primordial dentro do jogo político-econômico, como pode ser observado nos conceitos de “capitalismo
monopolista de Estado”, “capitalismo de Estado” e “Estado burocrático autoritário” (MARTINS, 1977)221
.
Nico Poulantzas assim vê a autonomia relativa do Estado:
uma profunda mudança nas formas de pensar e interpretar o mundo, motivo pelo qual se tornou possível falar
em uma mudança paradigmática, ”numa superação da modernidade por uma pós-modernidade ainda não
traduzida de forma definitiva” (Elmar Altvater, “Os desafios da globalização e da crise ecológica para o
discurso da democracia e dos direitos humanos”, In Agner Heller (org.), A crise de paradigmas em Ciências
Sociais e os desafios para o século XXI, p 109-151. 219
Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, “Os direitos sociais como direitos humanos num cenário de
globalização econômica e de integração regional”, In Flávia Piovesan (coord.), Direitos humanos, globalização
econômica e integração regional, p. 214. 220
Marx considera a luta de classes em termos de um simples confronto entre dois opositores, com um número
declinante de burgueses e uma explosão no tamanho do proletariado, ou seja, o Estado é qualificado como mero
comitê gestor dos interesses da classe dominante, a burguesia. Os adeptos desta análise não admitem a
possibilidade de existência de algum tipo de autonomia do Estado em relação à classe dominante. George
Taylor, In David Marsch e Gerry Stoker, Theory and methods in political science, p. 249.
221 Ronaldo Baltar, “Discussões sobre a relação Estado e classes dominantes”, In Revista Mediações, v.1. n.1. p
.18-23, jan-jun. 1996, p. 20.
64
Entendo, aqui, não diretamente a relação das suas estruturas com as relações de
produção, mas a relação do Estado com o campo da luta de classes, em particular a
sua autonomia em relação às classes ou frações de bloco no poder e, por extensão,
aos seus aliados ou suportes. (...). Espero, por isso mesmo, marcar nitidamente a
distância que separa esta concepção do Estado de uma concepção simplista e
vulgarizada, que vê no Estado o utensílio ou o instrumento da classe dominante.
Trata-se pois de (...) demonstrar que a concepção do Estado em geral como simples
utensílio da classe dominante, errônea na sua própria generalidade, se revela
particularmente inapta para apreender o funcionamento do Estado capitalista222
.
Disso decorre que sua ação está profundamente ligada à sustentação do capitalismo,
mesmo quando faz concessões à classe trabalhadora ou ampara os dominados com direitos
sociais, pois está sempre cumprindo a sua função de mediação dos conflitos entre as classes e
grupos.
O Estado capitalista fornece o quadro para as lutas entre frações da classe dominante
e reintegra a classe operária, como indivíduos separados dos meios de produção e de
sua classe, numa nação e num conjunto unificado de regras e instituições. Ao mesmo
tempo, o Estado fornece o espaço político para a luta de classes. É ele que reintegra
os trabalhadores e os burgueses num todo unificado que será reproduzido como
sociedade capitalista – como uma estrutura de classes – através do tempo223
.
Sobre esse jogo institucional, Poulantzas escreve:
O caráter paradoxal dessa relação reside no fato de esse Estado assumir uma
autonomia relativa face a essas classes precisamente na medida em que constitui um
poder unívoco e exclusivo daquelas. Por outras palavras, essa autonomia em relação
às classes politicamente dominantes, inscrita no jogo institucional do Estado
capitalista, de forma alguma autoriza uma participação efetiva das classes
dominadas no poder político, ou uma cessão a essas classes de “parcelas” de poder
institucionalizado224
.
Ou seja, o Estado em sua forma social ou em sua forma política é necessário para que
a própria dinâmica do capitalismo se estabeleça. Assim, a política estatal está subordinada à
economia desde a sua gênese, visto que o Estado garante a ordem social e a manutenção da
estrutura burguesa de divisão de classes, assegurando as garantias do livre mercado e
mantendo o aparelho repressivo225
, contendo os efeitos da exclusão social.
222
Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais, p. 274. 223
José Antônio Fernandes Magalhães, Ciência Política, p. 109.
224 Poulantzas, Ob. cit., p.284.
225 Adotamos o conceito de Marx de que o Estado consiste numa superestrutura de alienação do proletariado em
favor da manutenção da exploração da classe dominante em detrimento da classe subalterna, porém avançamos
no conceito de Gramsci, que procurou perpassar o conceito marxista de Estado, compreendendo que o Estado já
não governa apenas com base na força, na opressão da classe trabalhadora, conforme fez no século XIX,
impedindo a organização proletária, já que hoje contamos com a ampliação dos direitos políticos e sociais,
porém adotamos a ideia de que a classe dominante exerce seu poder por meio da dominação ideológica do
controle de ideias, de posições e de convencimento das classes subalternas a se submeterem ao seu domínio.
65
Para Kelsen, por exemplo, o absolutismo político tende a se utilizar do absolutismo
filosófico como instrumento ideológico, com a apresentação do governo como único
representante possível da tradução de uma vontade superior, autorizado a conduzir uma massa
de comuns. Assim, a democracia só é verdadeira quando pressupõe uma sociedade de iguais,
capazes de debater e decidir sobre os rumos de sua liberdade, visto que “democracia é
discussão”226
, e o conteúdo de uma ordem jurídica deve ser necessariamente o resultado de
consensos estabelecidos entre maioria e minoria, que deve se utilizar de todos os meios
possíveis para o diálogo democrático227
.
Kelsen pressupôs um participante capaz de manter sua autonomia política, intelectual
e dirigir sua participação a partir da razão. Mas, para Poulantzas, o Estado é ativamente
envolvido na construção tanto da unidade quanto da separação. Ele reproduz indivíduos
atomizados como sujeitos jurídicos (prevenindo a unidade que emerge em relações de
produção baseadas em classe) e reconstrói a unidade sob a égide do conceito de Estado-
nação228
.
Nietzsche, concentrando-se na necessidade de autossuperação do homem, faz duras
criticas ao Estado:
Estado? Que é isso? Pois seja! Abri bem os ouvidos, porque, agora, vou dizer-vos a
minha palavra sobre a morte dos povos. Chama-se Estado, o mais frio de todos os
monstros frios. E, com toda frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da
sua boca: 'Eu, o Estado, sou o Povo!'229
.
A crítica é pertinente porque Nietzsche contribui para que seja feito um contraponto
acerca da totalidade do povo e sua forma de organização política, uma crítica, então, à noção
do Estado como representação da unidade do povo.
Partindo-se da premissa da existência de uma relação direta entre os interesses da
classe dominante e a ação política do Estado e a conformação desse Estado à sociedade civil,
Para que os grupos dominantes obtenham o consenso na sociedade, eles permitem que os grupos subalternos se
organizem e expressem seus projetos sociais e políticos. Com isso, vão-se constituindo mediações entre a
economia e o Estado, que se expressam na sociedade civil: o partido político, o sindicato, a imprensa, a escola.
É um movimento próximo daquilo que Gramsci, certamente inspirado na reflexão de Hegel, entendeu como
“trama privada”, chamando a sociedade civil de “aparelho 'privado' de hegemonia” (Cf. em A. Gramsci,
Quaderni del carcere, p. 801). 226
Hans Kelsen, A Democracia, p. 183. 227
“A vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão contínua entre maioria e
minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria.
Essa discussão tem lugar não apenas no parlamento, mas também, e em primeiro lugar, em encontros políticos,
jornais, livros e outros veículos de opinião” (Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 411). 228
“Nesta estrutura teórica, a legislação burguesa desempenha uma dupla função de legitimar a separação do
trabalhador dos meios de produção e reunificar sistematicamente o sujeito sob a égide do Estado-nação”
(Poulantzas, Ob. cit., p.284).
229 Friedrich Nietzche, Assim falava Zaratustra (um livro para todo e para ninguém!), p. 75.
66
concebemos a relação do neoliberalismo com a democracia como um paradoxo, visto que os
neoliberais propalam e difundem a ideia de que a liberdade concedida ao setor econômico faz
prosperar a democracia e que o mercado é favorável a esta – como se livre mercado e
democracia andassem juntos.
Essa visão é, a nosso ver, equivocada, pois acreditamos que o neoliberalismo propicia
o surgimento de atores sociais (grupos hegemônicos) que dominam a sociedade não apenas no
campo econômico, mas também no político. Esses atores cooptam a mídia para difundir
análises que condicionam a opinião dos cidadãos, funcionando como uma forma de
dominação ideológica. Aqueles que divergem do pensamento dominante são considerados
antiquados, retrógrados e quase heréticos.
Assevera Marcelo Silveira:
(...) pode-se abordar a mídia a partir da perspectiva funcionalista para verificar a
maneira mais eficiente de transmitir uma mensagem, mas também se pode adotar um
ponto de vista mais crítico, como o dos adeptos da escola de Frankfurt, e analisar
como essa mensagem é criada para manipular a opinião pública de forma a
maximizar o lucro e o controle social. Ainda uma terceira opção seria analisar a
tecnologia dos meios de comunicação como extensões físicas do homem, como na
teoria cibernética. De uma forma ou de outra, todas as teorias possuem, em comum,
o fato de que os meios de comunicação influenciam comportamentos e atitudes e são
capazes de influenciar ou determinar identidades culturais e sociais (Ferreira, 2001).
Em outras palavras, elas destacam a fragilidade do indivíduo frente aos meios de
comunicação. Em todas as teorias, existe uma assimetria, uma diferença abissal
entre o poder da mídia e a vulnerabilidade do indivíduo, visto como impotente e
incapaz de resistir aos apelos da mídia (FERREIRA, G. M. As Origens Recentes: os
Meios de Comunicação Pelo Viés do Paradigma da Sociedade de Massa. In
Hohlfeldt, A., Martino, L. C., França, V. V. (org.) Teorias da Comunicação:
Conceitos, Escolas e Tendências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, pp. 99-118)230
.
Silverstone alerta que a mídia opera de maneira significativa, ou seja, o que deve ser
analisado não é a maneira como os eventos são apresentados, mas “a maneira mais sutil, nem
sempre evidente, de como a mídia estabelece referências que influenciam comportamentos e
atitudes no dia-a-dia das pessoas”231
.
O ponto de partida da análise de Silverstone (2002) é que a mídia é onipresente e
diária na sociedade moderna. Nós dependemos da mídia não apenas para lazer,
entretenimento e informações mas também para obtermos uma sensação de conforto
e segurança capazes de criar um sentido na nossa existência cotidiana. Ligar a TV ou
abrir o jornal nos liga a outros que estão fazendo a mesma coisa. A busca de
informações e de entretenimento equivale ao conteúdo manifesto, enquanto a
230
Marcelo Deiro Prates da Silveira, “Efeitos da globalização e da sociedade em rede via Internet na formação
de identidades contemporâneas”, In Revista Psicologia: Ciência e Profissão. vol. 24. no.4.
231 R. Silverstone, Por que Estudar a Mídia?, p. 20.
67
obtenção de conforto e segurança são partes do conteúdo latente, inconsciente, na
relação com a mídia e com os outros232
.
Nas palavras de Souza, ao transmitir notícias e imagens, a televisão está “simulando a
participação do sujeito na vida pública”233
. Ademais, os órgãos da mídia difundem
informações de interesse social. Desta forma, a sociedade confia nas informações e fatos
propagados234
, ao que se conclui que a mídia influencia a sociedade, formando ou
manipulando a opinião pública, vez que, na modernidade líquida, a informação também é uma
mercadoria235
. Sobre a hegemonia da mídia e a submissão da opinião pública a ela explana
Andrade:
Os órgãos da mídia distanciaram-se de sua função inicial (reportar, narrar) para,
vagarosamente, destacarem-se como intervenientes e invasores do fato. Com isso,
não mais noticiam, mas opinam. Deixaram de informar para formar opinião. Neste
contexto verificado, a relação entre a mídia e a opinião pública chegou a um
tamanho grau de hegemonia do primeiro e submissão do segundo que, atualmente,
pode-se dizer que, a opinião pública reduziu-se à opinião publicada pelos órgãos da
mídia236
.
Como há evidências de que a mídia pode ser controlada pelos grandes grupos privados
formando assim opiniões, manipulando a sociedade e influenciando o modo coletivo de
pensar, entendemos que a democracia resta comprometida.
Milton Santos, citado por Irene Nohara, observa que esta estrutura aliena, “provocando
o emagrecimento moral e intelectual da pessoa, a redução da personalidade e da visão de
mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do
consumidor e a figura do cidadão”237
.
Foucault, que é considerado um filósofo que analisa as estruturas do poder, expõe a
influencia das instituições burguesas diretamente nas atividades e nos pensamentos cotidianos
232
Marcelo Deiro Prates da Silveira, “Efeitos da globalização e da sociedade em rede via Internet na formação
de identidades contemporâneas”, In Revista Psicologia: Ciência e Profissão. vol. 24. no.4.
233 M. Souza, “Televisão, Violência e Efeitos Midiáticos”, In Psicologia: Ciência e Profissão, v. 23, n.4, pp.
82-87. 234
Daniel Cornu relata que “a missão geral da imprensa é informar o cidadão, para que este seja capaz de formar
a sua própria opinião” (Daniel Cornu, Jornalismo e Verdade: para uma ética da informação, apud Fábio
Martins de Andrade, Mídia e Poder Judiciário: a influência dos órgãos da mídia no Processo Penal Brasileiro,
p. 48). 235
Ignácio Ramonet, A tirania da comunicação, apud Andrade, Ob. cit., p. 56. 236
Andrade, Ob. cit., p. 47. 237
Milton Santos, Por uma outra globalização, p. 49, apud Irene P. Nohara, Reforma administrativa e
burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito administrativo brasileiro, p. 68.
68
do homem238
. A partir de uma análise das instituições burguesas e dos malefícios que elas
trazem à sociedade como estrutura social, radiografou:
Se é verdade que estas pequenas relações de poder são com frequência comandadas,
induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de
classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou
uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas
relações de poder239
.
Os detentores do capital transnacional querem controlar inclusive os serviços que
outrora eram públicos, de forma que o Estado Democrático é visto como concorrente; por isso
há uma pressão para que os países adotem as medidas desestatizantes240
.
A classe dominante local, possuidora do poder econômico, exerce um poder de
pressão por meio do controle dos veículos de comunicação, disseminando uma visão quase
única que domina a discussão política e econômica no senso comum.
Como reflexo destas questões, o cidadão politicamente alienado age instintivamente,
pois está envolto em um sistema comprometido em corroborar a conjuntura existente. A
passividade diante dos acontecimentos histórico-políticos nos faz perceber o quanto a
alienação política condiciona o indivíduo à não participação, pela falta de informação e acesso
ao conhecimento emancipador, afasta-se da preocupação política241
.
Na era da “sociedade de massas”242
, considerando o inconsciente coletivo do senso
comum, é possível afirmar que as pessoas se comportam de maneira mimética243
, passam a
agir todas da mesma forma, com base em uma determinada ideia. As convenções ideológicas
disseminadas na pós-modernidade acerca do modelo de condução do mundo são frágeis e
desprovidas de uma reflexão mais profunda, podendo, inclusive, ser manipuladas. Assim, é
238
“meus livros não são proféticos e tampouco um apelo às armas. Eu ficaria extremamente irritado se eles
pudessem ser vistos sob essa luz. O objetivo a que eles se propõem é o de explicar, do modo mais explícito –
mesmo se, às vezes, o vocabulário é difícil –, essas zonas da cultura burguesa e estas instituições que influem
diretamente nas atividades e nos pensamentos cotidianos do homem” (Michel Foucault, Ditos e escritos:
estratégia, poder-saber, p. 306). 239
Michel Foucault, Ditos e escritos: estratégia, poder-saber, p. 231. 240
Nohara, Ob. cit., p. 73. 241
Como bem lembra Carvalho: “eleitores desprezam políticos, mas continuam votando neles na esperança de
benefícios pessoais” (José Murilo Carvalho, Cidadania no Brasil, p. 224). 242
“Sociedade de massas” é associada a uma forma de desenvolvimento do capitalismo, em que os interesses e
os desejos da vida dos indivíduos são massificados, de forma homogênea. Tal conceito é extraído da indústria
cultural, da Escola de Frankfurt (Cf. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Indústria Cultural e Sociedade,
2002). 243
Com base nos estudos do pensador francês René Girard, para quem o desejo humano é fruto da presença de
um mediador, ou seja, é sempre mimético. Não desejamos direta, mas indiretamente, e o alvo do nosso desejo é
determinado menos por nós mesmos do que pelas redes tramadas pelas mediações nas quais nos envolvemos. O
desejo humano é fundamentalmente mimético, imitativo, não desejamos segundo uma subjetividade
autocentrada que impõe suas próprias regras. (René Girard, A violência e o sagrado, 2008).
69
possível forjar opiniões e condicionar a psicologia dos mercados para fazer valer alguns
interesses.
Marilena Chauí denuncia a manipulação ideológica da classe dominante ao afirmar
que “os meios de comunicação de massa são empresas privadas, mesmo quando, como é o
caso do Brasil, rádio e televisão são concessões estatais, pois estas são feitas a empresas
privadas; ou seja, os meios de comunicação são uma indústria (a indústria cultural) regida
pelos imperativos do capital”244
.
A televisão adquiriu o poder de definir o que será ou não um acontecimento político,
assim como o âmbito geográfico em que esse acontecimento será conhecido245
, de acordo
com a vontade dos que detêm o monopólio econômico e produtivo. Com isso, o pensamento
dominante molda o comportamento e o entendimento social e regula o plano material
econômico e político, dominando também o campo das ideias, de forma que a dominação de
uma classe sobre as outras faz com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais
as ideias da classe dominante246
.
Discute-se a “função alienadora e de formação da opinião publica, e manipuladora da
televisão, por se aproveitar da natureza emocional, intuitiva e irreflexiva da comunicação por
imagens”247
. Sendo que os limites do possível também é ela quem condiciona sutilmente
impondo, com força da imagem, padrões de comportamento, de identificação, de juízo e até
mesmo um novo padrão estético248
.
A imagem é o resumo visível e indiscutível de uma série de conclusões a que se
chegou através da elaboração cultural; e a elaboração cultural que se vale da palavra
transmitida por escrito é apanágio da elite dirigente, ao passo que a imagem final é
construída para a massa submetida249
.
A ideologia é um processo no qual as ideias, os valores, da classe dominante se
transformam em ideias e valores prevalecentes, ou seja,de todas as classes sociais.
As ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes;
isto é, a classe que é a força ‘material’ dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força ‘espiritual’ dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de
produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que
244
Marilena Chauí, Simulacro e poder: uma análise da mídia, p. 73.
245 J. Arbex Jr., Showrnalismo: a notícia como espetáculo, p. 32.
246 Marilena Chauí, O que é ideologia, p. 85.
247 Maria Lucia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Temas de Filosofia, p. 215.
248 “O homem permanentemente insatisfeito cuja participação no processo político do país ficou limitada a
concordar ou com os apelos da AERP ou com as mensagens editoriais do Jornal Nacional”, Maria Rita Kehl,
“Um só povo, uma só cabeça, uma só nação”, In: Anos 70. Televisão, p. 5-29. 249
Umberto Eco, Apocalípticos e integrados, p. 363.
70
faz com que elas sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles
aos quais faltam os meios de produção espiritual.As ideias dominantes nada mais
são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais
dominantes concebidas como ideias;[…].; na medida em que dominam como classe
e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda
sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas dominem também como
pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a distribuição das
ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes
da época250
.
Transformar as ideias das classes dominantes em ideias preponderantes em todo o
tecido social é o cerne da ideologia; por isso, ideias dominantes não são sinônimas da
realidade existente, pois a ideologia é justamente a substituição da realidade por uma ideia
que se faz dela, a transformação de ideias particulares em ideias para todos. E um dos seus
papéis “[...] é o de fazer com que os homens creiam que tais ideias representam efetivamente
a realidade”251
.
Portanto, o paradoxo é que, ao modelar e reduzir o Estado, sob a justificativa de
conceder mais liberdade às pessoas, na verdade é concedido poder a grupos sociais
específicos, o que favorece a maior concentração de renda, fragmenta a sociedade civil e cria
um pensamento único. Assim, podemos sustentar, com base nos estudos feitos, que uma
sociedade controlada ideologicamente se assemelha a uma sociedade totalitária, o que é não
se ajusta com o sentido de democracia.
250
Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (Feuerbach), p. 72. 251
Marilena Chauí, O que é ideologia, p. 87.
71
3. OLIGARQUIAS PÓS-MODERNAS: A COOPTAÇÃO DO ESTADO POR GRUPOS
HEGEMÔNICOS
3.1. Grupos Hegemônicos e a nova configuração da luta de classes
Aprendemos que o processo de surgimento e evolução do Estado ocidental esteve
ligado aos dinâmicos processos de estruturação e desenvolvimento do capitalismo no mundo,
de forma que na contemporaneidade não é diferente.
Com as crises do capital no início do século XX, bem como com as revoluções
socialistas e a crescente marcha das reivindicações sociais dos trabalhadores, a classe
dominante reconfigurou as estruturas sociais, fazendo surgir a figura de um Estado forte,
garantidor de direitos sociais.
Ocorre que os Estados Unidos da América, temendo a difusão do comunismo,
principalmente na Europa, enfraquecida pela Segunda Guerra Mundial, e nas Américas, sua
área de controle direto, formulou uma política de contenção252
, contribuindo para a tensão da
Guerra Fria, que se instaura na metade do século XX.
Já no final do mesmo século, com o término da Guerra Fria e da bipolarização253
existente entre as duas superpotências dominantes militarmente e com a derrocada do
socialismo254
, confirmou-se a desarticulação do Estado Social, dissolvendo-se, também, as
utopias das lutas sociais, algo que deu espaço a uma nova ordem geopolítica que adentrou o
século XXI.
O sistema capitalista agora sem oposição e dominante na maior parte dos países
globais, reinventa-se, criando novos centros de poder e obrigando uma mudança também no
papel do Estado contemporâneo. A globalização expressa este novo ciclo de expansão do
capitalismo, pautada no ideário neoliberal. Livre de seus inimigos externos, o capitalismo
inicia um combate consigo mesmo, com suas tensões e contradições255
.
252
Leonel Itaussu Almeida Mello, Quem tem medo de geopolítica?, p. 163. 253
Brzezinski “caracteriza a competição americano-soviético como uma rivalidade histórica travada entre dois
grandes impérios”, rivalidade que caracteriza a competição EUA x União Soviética, sob a ótica econômica,
política ou ideológica, uma luta travada pelo controle da Eurásia como condição para conquistar o mundo
(Leonel Itaussu Almeida Mello, Quem tem medo de geopolítica?, p. 146). 254
“A implosão do bloco soviético iniciou-se com o governo de Gorbachov, quando este anunciou que não mais
interferiria nos Estados do Pacto de Varsóvia. Vários Estados foram desvinculando-se da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas - URSS criando-se a Comunidade dos Estados Independentes - CEI, composta de algumas
das antigas repúblicas soviéticas” (Roberto Luiz Silva, Direito internacional resumido, p. 24). 255
Janaina Rigo Santin, “As novas fontes de poder no mundo globalizado e a crise de efetividade do direito”,
Revista da SJRJ, n. 25, p. 79-92.
72
Com a expansão desenfreada do capitalismo, novos atores surgem, e, com o
fortalecimento da iniciativa privada e das forças de mercado, novas oligarquias256
buscam
diminuir a força do Estado social e lhe atribuir o título de modelo ultrapassado, aquém do que
se espera de um Estado contemporâneo257
. Com isso, sua intervenção se enfraquece,
propiciando maior liberdade para operação do capital, e, em contrapartida, a garantia de
efetivação de direitos fundamentais é ameaçada.
A globalização é o cenário para surgimento de uma nova elite capitalista global que é
evidenciada na pesquisa do ETH (Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica), a Escola
Politécnica Federal de Zurique, que mostra a concentração do poder em nível mundial258
.
A investigação “The network of global corporate control” (rede do controle
corporativo global) demonstra que 1.318 empresas transnacionais possuem direta ou
indiretamente ações de sociedades que representam 60% das receitas mundiais. Mostra ainda
que o núcleo desse grupo trata-se de uma “superentidade”, formada por 147 empresas que
concentram 40% das receitas corporativas mundiais259
.
Diante de tais números, podemos arrazoar que esta elite capitalista mundial, além de
exercer evidente impacto no mercado, já que a tal “estrutura da rede de controle das
corporações transnacionais impacta a competição de mercado mundial e a estabilidade
financeira260
”, detém a concentração de poder econômico e político, visto que “as corporações
atuam no mundo, enquanto as instâncias reguladoras estão fragmentadas em 194 países, sem
contar a colaboração dos paraísos fiscais. Gera-se um imenso espaço desgovernado”261
.
Boaventura Santos já denunciava:
256
Oligarquia: “grupo de pessoas poderosas que dominam uma parte dos interesses de um país”.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1988). Figuram
como atores responsáveis pela reorganização geoeconômica global, as corporações transnacionais que disputam
o controle do espaço econômico global e as poderosas instituições ligadas ao sistema financeiro mundial, como
o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento (Bird) e a Organização Mundial de Comércio (OMC). 257
As oligarquias transnacionais criticam o Estado nacional que investe no fortalecimento de políticas públicas
voltadas para o social, denominando-o “nocivo e distorcivo ou limitativo, no que se refere à dinâmica e à
multiplicação dos negócios, das atividades econômicas, do progresso tecnológico, da generalização do bem-
estar” (Octávio Ianni, A Era do Globalismo, p. 264). 258
Estudo realizado por Stefania Vitali, James B. Glattfelder e Stefano Battiston, “The Network, of Global
Corporate Control”. O texto completo foi disponibilizado em arXiv:1107.5728v2 [q-fin.GN] e publicado pelo
PloS One, em 26 de outubro de 2011: matemáticos revelam que uma rede capitalista domina o mundo. Em
termos ideológicos, o estudo está acima de qualquer suspeita, visto que o ETH de Zurique, juntamente com o
Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, faz parte da nata da pesquisa tecnológica,
sendo que seus cientistas já receberam 31 prêmios Nobéis, entre eles: Albert Einstein (Ladislau Dowbor, A rede
de controle das corporações transnacionais. 2013, disponível em <http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-
rede-de-controle-das-corporacoes-transnacionais>, acesso em: 15/nov./2015. 259
William I. Robinson, Global capitalism and the crisis of humanity, p.23. 260
Dowbor, Ob. cit. 261
Dowbor, Ob. cit.
73
Uma das transformações mais dramáticas produzidas pela globalização econômica
neoliberal reside na enorme concentração de poder econômico por parte das
empresas multinacionais: das 100 maiores economias do mundo, 47 são empresas
multinacionais; 70% do comércio mundial é controlado por 500 empresas
multinacionais; 1% das empresas multinacionais detém 50% do investimento direto
estrangeiro (Clarke, 1996)262
.
Resta evidente que um pequeno consórcio de grandes corporações, entre elas os
grandes bancos, governa o planeta. Segundo reflexão de José Saramago:
Ninguém assume suas responsabilidades, muito menos os governos, porque não
sabem, porque não podem, porque não querem ou porque isso não lhes é permitido
por aqueles que realmente governam o mundo: as grandes empresas multinacionais,
pluricontinentais, que detêm todo o poder263
.
No mundo contemporâneo, marcado pela heterogeneidade social e pela diferença, há
uma dificuldade de identificação das classes sociais, pois temos a impressão de que a
fragmentação do ser pós-moderno se sobrepõe ao velho conceito de classes sociais. No
entanto, ainda que tenhamos dificuldades com a nomenclatura é imprescindível identificarmos
que o embate “capital x trabalho” ainda se perpetua, vez que a luta de classes é uma
característica da sustentação do modelo capitalista.
Segundo Mezarros:
encontramos o antagonismo inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre
e necessariamente a forma de subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao
capital, não importando o grau de elaboração e mistificação das tentativas de
camuflá-la264
.
Ocorre que a relação de dominação se reajustou e ampliou-se da seguinte forma: de
um lado, uma elite global, composta por empresas multinacionais, dirigentes de instituições
financeiras internacionais265
e a elite capitalista local (surgida das relações entre o setor
administrativo do Estado e da elite empresarial, diretores de grandes empresas, altos
funcionários do Estado, líderes políticos e profissionais influentes), que partilham comumente
262
Boaventura de Souza Santos, “Os processos da globalização”, In: B. Santos (Org.), A globalização e as
ciências sociais, p. 34. 263
Fernando Gómez Aguilera (sel. e org.). As palavras de Saramago: catálogo de reflexões pessoais, literárias
e políticas, p. 373. 264
István Mezárros, O século XXI: socialismo ou barbárie?, p.19. 265
Figuram como atores responsáveis pela reorganização geoeconômica global, as corporações transnacionais
que disputam o controle do espaço econômico global e as poderosas instituições ligadas ao sistema financeiro
mundial, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou Banco Internacional de
Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e a Organização Mundial de Comércio (OMC).
74
de uma condição socioeconômica privilegiada e detêm comum interesse nas relações do poder
político e do controle social, conforme expõe Boaventura Santos:
Evans foi um dos primeiros a analisar a “tripla aliança” entre as empresas
multinacionais, a elite capitalista local e o que chama “burguesia estatal” enquanto
base da dinâmica de industrialização e do crescimento econômico de um país
semiperiférico como o Brasil (Evans , 1979, 1986). Becker e Sklar, que propõem a
teoria do pós-imperialismo, falam de uma emergente burguesia de executivos, uma
nova classe social saída das relações entre o sector administrativo do Estado e as
grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta nova classe é composta por um
ramo local e por um ramo internacional. O ramo local, a burguesia nacional, é uma
categoria socialmente ampla que envolve a elite empresarial, os diretores de
empresas, os altos funcionários do Estado, líderes políticos e profissionais
influentes. Apesar de toda a heterogeneidade, estes diferentes grupos constituem, de
acordo com os autores, uma classe, “porque os seus membros, apesar da diversidade
dos seus interesses setoriais, partilham uma situação comum de privilégio
socioeconômico e um interesse comum de classe nas relações do poder político e do
controlo social que são intrínsecas ao modo de produção capitalista”. O ramo
internacional, a burguesia internacional, é composta pelos gestores das empresas
multinacionais e pelos dirigentes das instituições financeiras internacionais
(1987:7)266
.
De outro lado, enquanto as classes dominantes se superestruturaram, ganhando
amplitudes globais, a antiga classe operária, responsável pela resistência à exploração do
capital, além de perder espaço no cenário político, assumiu ares de “classe média”
desestruturada, diversificada e fragmentada267
. Sem contar os invisíveis, totalmente
excluídos268
deste contexto.
Nesta nova configuração, a unidade do poder é, então, mantida em torno dessa fração
hegemônica, a “nova classe dominante”:
(...), a unidade do poder institucionalizado é mantida pela sua concentração em torno
do lugar dominante, onde se reflete a classe ou fração hegemônica. Os outros
poderes funcionam sobretudo como resistências ao poder dominante: inseridos na
função unitária do Estado, contribuem para a organização da hegemonia da classe ou
fração que se reflete, como força política, no poder dominante.269
Sobre essa nova classe hegemônica dominante, escreveu Gramsci:
266
Boaventura de Souza Santos, “Os processos da globalização”. In: B. Santos (Org.), A globalização e as
ciências sociais, p. 34. 267
Krishan Kumar, Da Sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. 268
Os “vagabundos” de Bauman: “A simples visão do vagabundo faz o turista tremer - não pelo que o
vagabundo é, mas pelo que o turista pode vir a ser” (Zygmunt Bauman, Globalização: As consequências
humanas, p. 106), que, na verdade, a exclusão é uma característica do “espírito do capitalismo”: “Ela força o
indivíduo, a medida que esse esteja envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de
comportamento capitalistas. (...) um trabalhador que não possa ou não queira se adaptar às regras, será jogado na
rua, sem emprego”. (Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 21-22). 269
Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, p. 302.
75
Podem ser fixados, por enquanto, dois grandes planos superestruturais: o que pode
ser chamado de, sociedade civil, ou seja, o conjunto de organismos habitualmente
ditos privados, e o da sociedade política ou Estado. E eles correspondem à função de
hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade; e à do domínio
direto ou de comando, que se expressa no Estado e no governo jurídico270
.
O poder real, invisível, por detrás das instituições – o capital internacional e as
empresas transnacionais (formadores da nova classe hegemônica dominante271
) –, é um poder
conservador que promove um Estado intervencionista poderoso, fundamentalmente de
proteção social para os ricos, cujo apoio se dá através de mecanismos fiscais, subsídios e
outros fatores financeiros272
, enquanto destina aos pobres, reformas que visam restringir e/ou
aniquilar direitos sociais.
3.2. Dominação econômica e pressão regulatória
Como vimos, o discurso neoliberal prega as privatizações de empresas estatais para
aliviar o déficit público além de reformas administrativas “urgentes”, mas o que se observa é
o acirramento das desigualdades, com o desvio da utilização de verbas públicas de programas
sociais para os programas econômicos de ajuda ao empresariado. Trata-se, portanto, da
expansão de um sistema político e econômico com base em um “Estado mínimo”, de livre
mercado, para os pobres, e um Estado intervencionista para os ricos.
Em outras palavras, se a concepção de um poder de Estado dividido em parcelas não
é válida para as relações classes dominantes - classes dominadas, (...), também não o
é para as relações entre classes e frações que constituem o bloco no poder. (...)
Unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica
significa, assim, unidade do poder de Estado, na sua correspondência com os
interesses específicos desta classe ou fração. Esta característica relaciona-se, entre
outras coisas, ao jogo interno das instituições do Estado capitalista, à sua própria
270
A. Gramsci, Obras Escolhidas, p. 119. 271
Para termos uma ideia do poder de dominação dessas empresas, fizemos um recorte em uma situação de
manipulação pela “ilusão de escolha” com dados do setor de Supermercado nos EUA. As grandes empresas do
setor de varejo, alimentos e bebidas lucraram U$ 77 bilhões em 2012. Muitas companhias têm marcas múltiplas
e levam o consumidor a acreditar que estão escolhendo entre concorrentes, quando na verdade estão optando por
produtos feitos pela mesma empresa, nas mesmas fábricas. E isto vale até para as marcas orgânicas, tidas como
independentes, e que estão sendo engolidas por grandes corporações. Em 2012, 53.6% do dinheiro que
americanos gastaram com alimentos foi parar nas mãos de quatro grandes redes: Walmart, Kroger, Target e
Safeway. Isto é um dano para a economia e para o equilíbrio social, uma vez que tais empresas são conhecidas
por suas políticas de baixos salários e sua eliminação de pequenos negócios familiares em todo o país (José
Eduardo Mendonça, “Como supermercados criam a ilusão de que consumidor tem escolha“, 2013, disponível
em:<http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/planeta-urgente/como-supermercados-criam-a-ilusao-de-que-
consumidor-tem-escolha/>, acesso em 15/nov./2015). 272
Jim Cason e David Brooks, “La política en EUA, pararrayos de los ricos contra el odio popular – entrevista a
Noam Chomsky”, La Jornada, La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, p. 69.
76
unidade e à sua autonomia relativa consideradas aqui do ponto de vista da função do
Estado com relação ao bloco no poder273
.
Ao Estado, restou apenas a função de organizar uma sociedade de consumidores,
afastando-se dos ideais perseguidos pelo Estado Social, limitando-se a assegurar, a despeito
de uma suposta isonomia, a fruição dos bens de consumo postos à disposição dos
consumidores, ao passo que, promove, concomitantemente, a exclusão social e controla a
pobreza penalmente, criminalizando a miséria.
Segundo Bauman:
A única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que ele assuma é a de
garantir um “orçamento equilibrado”, policiando e controlando as pressões locais
por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da
população face às consequências mais sinistras da anarquia de mercado274
.
Essa classe hegemônica, que reflete a força política do poder dominante, coopta o ente
estatal275
em suas esferas burocráticas, exercendo forte influência nos governos dos Estados
nacionais, por meio da pressão regulatória, fazendo valer a supremacia de seus interesses
econômicos.
A importância dessa classe ou fração em que são recrutadas as '“cúpulas” da
burocracia, assinalaram-na Marx e Engels, através de um conceito específico, o da
classe detentora do Estado. Este conceito pareceu-lhes indispensável a fim de indicar
que essa classe ou fração pode identificar-se, mas também não se identificar, com a
classe ou fração hegemônica do bloco no poder, aquela que habitualmente se
designa, embora impropriamente, como classe ou fração politicamente dominante.
Em suma, essas cúpulas da burocracia podem provir de uma classe ou fração
politicamente dominante, que faz parte do bloco no poder276
.
Benaion Noval Mello afirma que “os mercados não ‘operam no vácuo’, para que eles
possam operar livremente, sem intervenção, é necessária uma forte pressão reguladora, de
acordo com as condições colocadas pelos conglomerados”277
.
273
Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, p. 294. 274
Zygmunt Bauman, Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p.
73. 275
“Cabe ao Estado unificar os interesses dos capitalistas individuais, na manutenção do sistema, construindo
um bloco de poder que venha a agregar as diferentes frações da classe dominante em torno de uma ideologia
que legitime o seu domínio. (...) o bloco no poder é a expressão política das diferentes frações da classe
dominante. É através do bloco no poder que essas diferentes frações são unificadas para governar.” (José
Antônio Fernandes Magalhães, Ciência Política, p.110). 276
Poulantzas, Ob. cit., p. 331. 277
Noval Benaion Mello, As ideias neoliberais e o governo brasileiro, in Universidade e Sociedade, ano 1, n º
2, p. 68.
77
Com efeito, os grupos econômicos hegemônicos impõem ao Estado a realização de
“reformas278
“ por meio de políticas públicas de destruição de direitos sociais, como corte em
verbas orçamentárias de programas de educação, saúde, seguridade social, habitação, combate
à pobreza e erradicação da fome, e, por outro lado, buscam a promoção da legalização do
controle da política e da economia, propiciando a “autorregulamentação” da economia e,
consequentemente, a dominação do todo social por grupos compromissados com interesses do
capital transnacional.
A terminologia “globalização da economia mundial” está sendo utilizada para
justificar a nova forma de dominação, não só econômica como sociocultural dos
países do “Primeiro Mundo” sobre os países periféricos, impondo outros padrões de
normas, condutas e comportamentos, que dão uma nova roupagem a este antigo tipo
de dominação. [...] O que à primeira vista aparece como uma intensificação das
relações sociais mundiais, na verdade, constitui-se uma nova face do imperialismo
mundial279
.
Como são as detentoras do poder econômico, as novas oligarquias formadas pela elite
econômica nacional, o capital internacional e os conglomerados transnacionais, participam
das decisões políticas do Estado e exercem pressão regulatória no que tange ao afrouxamento
de direitos sociais e proteção de seus interesses por meio dos mecanismos jurídicos, fiscais e
financeiros. Assim, a legislação local vai sendo moldada para o favorecimento do capital
especulativo dos mega investidores, sem fronteiras ou nacionalidade.
A classe hegemônica mundial sempre se articulou para ditar as regras da economia
mundial280
. Após a crise do capitalismo no final dos anos 1970s, o neoliberalismo foi
implantado nos países ricos centrais como meta de retomada de crescimento e lucratividade,
sendo imposto aos países capitalistas periféricos, dependentes economicamente, para que
aplicassem a “cartilha” extraída do Consenso de Washington281
e reorganizassem suas
economias de acordo com os padrões impostos pelos grupos dominantes.
278
Os atuais problemas globais criaram uma profunda crise de governabilidade aos países, especialmente aos
periféricos, que foram agravados com os “ajustes realizados” sob orientação de instituição como o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial (Mike Davis, Planeta Favela). 279
Karine de Souza Silva, Os Excluídos da Globalização, In Odete Maria de Oliveira (Org.), Relações
Internacionais & Globalização, p. 280. 280
Na esteira da Conferência Internacional de Bretton Woods, em julho de 1944, por proposta do governo norte
americano, para promoção de uma economia internacional estável e do livre comércio. Teve a participação de
44 países aliados. Entre seus objetivos iniciais, destacam-se: reordenação do sistema econômico internacional,
buscando a estabilidade interna dos Estados e a reestruturação das relações financeiras mundiais, criando um
arcabouço de regras econômico-financeiras para a promoção das garantias necessárias para a promoção da
liquidez internacional (Javier Vadell, “O Banco Mundial: dos empréstimos para o ajuste aos empréstimos para
políticas de desenvolvimento”, Conjuntura Internacional). 281
“Em 1989, no bojo do ‘reaganismo’ e do ‘tatcherismo’, máximas expressões do neoliberalismo em ação,
reuniram-se em Washington, convocados pelo Institute for International Economics, entidade de caráter
privado, diversos economistas latino-americanos de perfil liberal, funcionários do Fundo Monetário
78
Dessa feita, a elite capitalista mundial representada pela coalizão desta reunião em
Washington, impôs aos países periféricos medidas que garantiam vantagens às grandes
corporações sobre seus mercados, por isso a necessidade do “afastamento” do Estado.
Entre tais imposições, destacamos a disciplina fiscal (limitação dos gastos do Estado,
sobretudo, com programas sociais); o direcionamento dos gastos públicos (principalmente em
infraestrutura); a liberação financeira (fim de restrições às instituições financeiras
internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e a retirada do Estado do setor); o
incremento do comércio exterior (redução de alíquotas de importação e estímulos á
exportação para impulsionar a globalização da economia); a eliminação de restrições ao
capital externo; privatização das empresas estatais e a desregulação (flexibilização das leis
trabalhistas282
e de controle econômico).
A partir de então, o FMI, por exemplo, é mero intermediador da transferência de
divisas dos países periféricos para os capitalistas centrais.
O Fundo Monetário Internacional tem basicamente funcionado como a instituição
que garante que os países pobres, muitos deles cada vez mais pobres e endividados,
paguem as suas dívidas aos países ricos (Estados, bancos privados, agências
multilaterais) nas condições (juros, por exemplo) impostas por estes. Mas as
transferências líquidas do Sul para o Norte assumem muitas outras formas como, por
exemplo, a “fuga dos cérebros”: segundo as Nações Unidas, cerca de 100.000
profissionais indianos imigram para os EUA, o que corresponde a uma perda de 2
bilhões de dólares para a Índia (PNUD, 2001:5)283
.
Representantes dos interesses das oligarquias globais, de forma independente, atuam o
FMI, o BIRD e a OMC, organizações multilaterais, com capacidade de atuação junto aos
governos nacionais. Possuem recursos monetários e políticos suficientes para orientar, induzir
ou impor políticas monetárias, fiscais e outras de cunho neoliberal aos países pobres284
.
Acontece que essas organizações multilaterais, a “santíssima trindade do capitalismo
global”, tornaram-se poderosas agências de privatização, desestatização, desregulamentação,
Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo norte-
americano. O tema do encontro, Latin Americ Adjustment: How Much has Happened?, visava a avaliar as
reformas econômicas em curso no âmbito da América Latina. John Willianson, economista inglês e diretor do
instituto promotor do encontro, foi quem alinhavou os dez pontos tidos como consensuais entre os participantes.
E quem cunhou a expressão ‘Consenso de Washington’, através da qual ficaram conhecidas as conclusões
daquele encontro”. (João José Negrão, Para conhecer o Neoliberalismo, p. pág. 41-42). 282
Nos anos 90, a base material da taxa de rendimento de 15% sobre os fundos próprios foi uma taxa de
crescimento dos lucros de 8% a 9%. O rigor salarial e a flexibilização do emprego, assim como o recurso
sistemático ao trabalho barato e pouco protegido, por meio da deslocalização e da subcontratação internacional,
permitiram esse movimento (François Chesnais, “Capitalismo de fim de século”, In: Osvaldo Coggiola (org.),
Globalização e socialismo, p.55). 283
Boaventura de Souza Santos, “Os processos da globalização”, In: B. Santos (org.), A globalização e as
ciências sociais, p. 33. 284
Octávio Ianni, A Era do Globalismo, p. 125.
79
modernização ou racionalização, sempre em conformidade com as exigências do mercado,
das classes dominantes e do desenvolvimento capitalista285
.
Aos países capitalistas do sul, periféricos ou pobres, não restou alternativa, pois vivem
em eterna e insanável dependência financeira, com colossais endividamentos, assim, tiveram
que adequar suas economias às imposições dos países dominantes.
Segundo Paulo Nogueira Batista:
(...) apresentado como fórmula de modernização, o modelo de economia de mercado
preconizado no consenso de Washington constitui, na realidade, uma receita de
regressão a um padrão econômico pré-industrial caracterizado por empresas de
pequeno porte e fornecedoras de produtos mais ou menos homogêneos. O modelo é
o proposto por Adam Smith e referendado com ligeiros retoques por David Ricardo
faz dois séculos. Algo que a Inglaterra, pioneira da Revolução Industrial, pregaria
para uso das demais nações mas que ela mesma não seguiria à risca. No Consenso
de Washington prega-se também uma economia de mercado que os próprios Estados
Unidos tampouco praticaram ou praticam (...). O modelo ortodoxo de laissez-faire,
de redução do Estado à função estrita de manutenção da ‘lei e da ordem’ – da
santidade dos contratos e da propriedade privada dos meios de produção – poderia
ser válido no mundo de Adam Smith e David Ricardo, em mercados atomizados de
pequenas e médias empresas gerenciadas por seus proprietários e operando em
condições de competição mais ou menos perfeita; universo em que a mão de obra
era vista como uma mercadoria, a ser engajada e remunerada exclusivamente
segundo as forças da oferta e da demanda; uma receita, portanto, de há muito
superada e que pouco tem a ver com os modelos modernos de livre empresa que se
praticam, ainda que de formas bem diferenciadas, no Primeiro Mundo286
.
Houve verdadeiro desmanche do setor público nos Estados pobres para o avanço do
poderio das oligarquias dominantes e dos conglomerados transnacionais. Assim, as nações
periféricas eram forçadas a cumprir as imposições neoliberais debilitando suas economias
com as “reformas” de afrouxamento da legislação em e favor das grandes corporações.
As grandes empresas transnacionais ligadas ao capital hegemônico estão sediadas nos
países ricos, o que aumenta a pressão para a liberalização de investimento nos países pobres.
A globalização financeira criou, aliás, seu próprio Estado. Um estado supranacional,
dispondo de seus próprios aparatos, redes de influência e meios de ação próprios.
[...] Esse Estado Mundial é um poder sem sociedade, sendo esse papel
desempenhado pelos mercados financeiros e pelas empresas gigantes, das quais ele é
o mandatário, tendo como consequência que as sociedades realmente existentes são
sociedades sem poder. E isso não para de agravar-se287
.
Detentoras dos meios de produção e, logo, do poder econômico, passaram a efetuar
um verdadeiro lobby mundial para obter relações jurídicas mais flexíveis e passíveis de
285
Octávio Ianni, Idem, ibidem. 286
Paulo Nogueira Batista, “O consenso de Washington. A visão neoliberal dos problemas latino-americanos”,
Caderno Divida Externa nº 6, p. 119-120. 287
Ramonet, As guerras do séc. XXI: novos temores e novas ameaças, p.103-104.
80
precariedade de trabalho. Assim, ao instalarem suas linhas de produção nos Estados que mais
lhes interessa política, jurídica e economicamente, fragmentam o processo produtivo288
.
Beneficiadas pela mobilidade do processo de produção capitalista, as empresas
transnacionais demonstram poder de intervenção mundial provocando a concorrência entre
Estados. Destarte, quando analisam as condições para direcionamento de investimentos, em
uma negociação nitidamente desigual, mantém as sociedades nacionais extremamente
dependentes da sociedade global por ditarem as regras do jogo da política neoliberal289
.
Junto com as instituições financeiras internacionais, estas megaempresas se tornaram
poderosos centros de poder global, maiores, no que concerne a influência nos ditames sociais,
inclusive, que as instituições democráticas dos Estados nacionais, vez que impõem seus
desígnios e exigências às nações, influenciam os rumos da política e provocam a
desestabilização social destes Estados290
.
Com o esfacelamento do Estado e suas instituições há a ação dos grupos hegemônicos
capitalistas que ultrapassa a interferência econômica, passando, também, a controlar a ordem
política dos países dependentes291
, exercendo a função de traduzir a ideologia dominante em
ação concreta. Ou seja, “a função do bloco no poder é organizar a hegemonia burguesa no
interior do Estado capitalista”292
.
3.3. Desafios do Estado Democrático de Direito na Pós-Modernidade
Ao longo do processo de evolução do capitalismo, o Estado passou por diversas
transformações, contudo, independente do momento histórico, desde sua estruturação,
influenciado pelas revoluções burguesas293
, firmou-se como instrumento de grupos
hegemônicos para manter o status quo de dominação de classes294
.
288
Ladislau Dowbor, “Globalização e Tendências Institucionais”, In: Ladislau Dowbor, Octavio Ianni e Paulo-
Edgar A. Resende (org.), Desafios da Globalização, p. 14. 289
Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, p. 75. 290
Octávio Ianni, A Era do Globalismo, p. 266. 291
A. Atilio Boron, Estado, capitalismo e democracia na América Latina, p. 93. 292
José Antônio Fernandes Magalhães, Ciência Política, p.110. 293
As principais Revoluções Burguesas: a Revolução Puritana, em 1642; a Gloriosa, em 1688 (ambas na
Inglaterra),a Revolução (norte) Americana, em 1776; a Revolução Francesa, em 1789 e a Revolução Industrial
iniciada em 1760, serviram de instrumentos de transformação político-institucional que consolidam o poder
econômico da burguesia entre os séculos XVII e XIX, perpetrando o capitalismo e transformando o Estado para
atender seus interesses. Foi a Revolução Inglesa que abriu as condições para a instauração do modo de produção
capitalista, via Revolução Industrial, na medida em que estabeleceu a plena prosperidade privada sobre a terra,
permitiu à marinha inglesa controle sobre os mercados mundiais e, ao intensificar os cercamentos, proletarizou
uma grande massa de pessoas (Modesto Florenzano, As revoluções burguesas). 294
“A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história das lutas de classes” (Karl Marx
e Friedrich Engels, O Manifesto do Partido Comunista, p. 69).
81
Considerando que a burguesia desempenhou na história um papel eminentemente
revolucionário, até a sua consolidação no poder político295
e que em:
todos os fenômenos históricos em que uma burguesia foi, se não a protagonista, pelo
menos a beneficiária, do processo que abriu caminho ao capitalismo, quanto para
designar o processo histórico que no Ocidente, entre aproximadamente 1770 e 1850,
transformou a sociedade ocidental de aristocrática e feudal em burguesa e
capitalista296
.
Temos que o poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe
economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e
jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos
economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a
dominação social297
.
No inicio do século XX, com o Fordismo, onde havia concentração de trabalhadores,
baixa remuneração; desenvolvimento de tecnologias, criação de estoques de insumos e
matéria-prima298
, padronização da produção, divisão de trabalho entre intelectual e
mecânico299
e a mecanização e não qualificação do trabalho, bem como na ingerência do
taylorismo300
e/ou no sistema fordista-keynesiano301
e, mais tarde, quando “a produção não
ocorre a partir da capacidade produtiva da empresa, mas de acordo com a capacidade de
absorção do produto no mercado”302
, o Estado sempre foi moldado pelos interesses
econômicos, adaptando-se de acordo com as compreensões sociais e políticas do mundo.
Vimos, então, no limiar do século XX, há uma inegável mudança de paradigma social
em relação aos valores epistemológicos anteriores, presentes no projeto da modernidade. Tal
295
Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (Feuerbach), p. 78. 296
Modesto Florenzano, As Revoluções Burguesas, p.120. 297
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, p. 411. 298
Antônio Rodrigues de Freitas Júnior, “Globalização & integração regional: horizontes para o reencantamento
do direito do trabalho num quadro de crise do Estado-Nação”, Revista LTr, v. 61, n. 2, p. 206-207. 299
“Um tipo de homem é necessário para planejar e outro diferente para executar o trabalho. [...] em quase todas
as artes mecânicas, a ciência que rege as operações do trabalho é tão vasta e complexa que o melhor trabalhador
adaptado a sua função é incapaz de entendê-la, quer por falta de estudo, quer por insuficiente capacidade
mental” (F. W. Taylor, Princípios de administração científica, p 43). 300
O modelo de produção em massa fordista foi universalizado e combinado com as técnicas de administração
científica tayloristas, ao passo que foram ampliados diversos direitos sociais, o que suavizou temporariamente o
conflito inerente à relação capital-trabalho até a crise de seu padrão de acumulação (R. Braga, “Luta de classes,
reestruturação produtiva e hegemonia”, In: Novas Tecnologias. Crítica da atual reestruturação produtiva, p.
96). 301
“responsável pelo crescimento mundial nos anos 50 e 60, principalmente nos Estados Unidos e Europa
Ocidental, onde surgiu o Welfare State” (César Augusto Silva da Silva, “Reformas Econômicas da América
Latina no Contexto da Globalização”, In: Odete Maria de Oliveira (org.), Relações Internacionais &
Globalização, p. 209). 302
Alexandre Luiz Ramos, “Acumulação flexível, toyotismo e desregulamentação do Direito do Trabalho”, In:
Alexandre Ramos e Edmundo Lima Arruda Jr. (org.), Globalização, neoliberalismo e o mundo do trabalho,
p. 251.
82
transação representa uma ruptura com o modo de organização social, com a passagem da
ciência moderna para uma ciência pós-moderna303
.
O paradigma da modernidade foi constituído antes da total dominação capitalista, e a
transição para a pós-modernidade acontece com espantoso crescimento deste sistema
impulsionado pelas transformações tecnológicas e pelo consumo exacerbado, sendo certo que
o modelo anterior não cumpriu a promessa de emancipação do homem, mas, ao contrário,
conduziu a humanidade a absurdos e atrocidades, com duas grandes guerras de proporções
globais e ameaça à vida do planeta com a exploração indiscriminada de recursos naturais para
atender às necessidades cada vez mais crescentes deste vicioso ciclo de produção e
consumo304
.
Para Boaventura:
a relação entre o moderno e o pós-moderno é uma relação contraditória. Não é de
ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade como querem outros,
é uma situação de transição em que há momentos de ruptura e momentos de
continuidade305
.
O fato é que as transformações são manifestas, e a transição se mostra no processo de
compreensão do espaço e do tempo, cujo intento transcende os aspectos meramente
econômicos, desorientando as práticas político-econômicas, o equilíbrio do poder de classe,
assim como toda a vida social e cultural306
. A sociedade pós-moderna, marcada por
fenômenos econômicos e tecnológicos, pelo consumismo, individualismo, dinâmica do
mercado, ameaça à soberania estatal e inquestionável insegurança quanto ao futuro, exige a
construção de novos marcos para atender às novas exigências sociais.
Para entendermos os desafios do Estado neste cenário pós-moderno, é necessário
entendermos a sua gênese, o que nos remete às revoluções promovidas pela burguesia, os
processos históricos que consolidam seu poder econômico e sua ascensão ao poder político,
pois ao longo dos séculos XVII e XVIII a burguesia se demonstrou ser uma classe social
303
“suas ênfases na descontinuidade, na fragmentação, na ruptura e no deslocamento contêm uma linha em
comum” (Stuart Hall, A identidade cultural da pós-modernidade, p. 18). 304
“Numa sociedade de consumidores, todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por
vocação (ou seja, ver e tratar o consumo como vocação). Nessa sociedade, o consumo visto e tratado como
vocação é ao mesmo tempo um direito e um dever humano universal que não conhece exceção”. (Zygmunt
Bauman, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria, p.7). 305
Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade, p. 103. 306
David Harvey, Condição Pós-Moderna, p. 257.
83
revolucionária307
, que destruiu a ordem feudal, consolidou o capitalismo e transformou o
Estado para atender a seus interesses de classe.
Destarte, o Estado passa a ser regulado por um poder soberano, com instituições
amparadas no ordenamento jurídico que, posteriormente, com princípios democráticos, busca
uma harmonização de várias escalas de interesses. O Estado firma-se na ideia de soberania, ou
seja, é detentor de um poder sem igual ou concorrente, no âmbito de um território, capaz de
estabelecer normas e comportamentos para todos os seus habitantes308
.
A sociedade, que tinha a função de oferecer sentido à vida de seus membros,
acolhendo-os na vida adulta como parte de algo maior, que o transcendia309
, dilui-se no
cenário de insegurança, incertezas e dissolução de vínculos sociais, abalando os pressupostos
de democracia e participação política, pois observa-se na pós-modernidade que a capacidade
da autogestão e o exercício independente da soberania estatal são mitigados pelos interesses
extranacionais, sendo que grande parte do poder de ação do Estado agora se afasta na direção
de um espaço globalizado, enquanto a política é incapaz de operar efetivamente na direção
planetária, já que permanece local310
.
Com o surgimento desses novos centros de poder e a nova organização da classe
detentora dos meios de produção, os Estados nacionais perdem cada vez mais as suas
prerrogativas sociais.
Assiste-se, assim, a este espetáculo insólito: a ascensão de firmas planetárias, diante da qual os
contrapoderes tradicionais (Estados, partidos, sindicatos) parecem tornar-se impotentes. O fenômeno
principal de nossa época, a globalização liberal, não é mais pilotado pelos Estados. Diante das firmas
gigantes, estes perdem cada vez mais as suas prerrogativas. Os cidadãos assistem, impotentes, a uma
espécie de golpe de Estado planetário de novo tipo311
.
O Estado é reduzido a mero agente regulatório dos interesses mercadológicos,
comprometido em oferecer segurança apenas para os investidores capitalistas.
No cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final do
espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de repressão.
Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe
307
Não obstante a visão de Christopher Hill, que entende que as “Revoluções Burguesas”, além de liquidar com
a antiga ordem feudal absolutista, foram revoluções nas quais a burguesia se apropriou das forças populares para
fazer a sua revolução, pois não foi a burguesia que conduziu os processos revolucionários e, sim, o povo. Isso
pode ser identificado nas Revoluções Inglesa do século XVII e Francesa do século XVIII. In: Adhemar Marques
et.al., História Contemporânea através de textos, p.9-10. 308
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 17. 309
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 75. 310
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 08. 311
I. Ramonet, As guerras do séc. XXI: novos temores e novas ameaças, p. 108.
84
política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as
megaempresas312
.
Os Estados nacionais não conseguem mais elaborar políticas decisórias independentes,
porque tais políticas passam cada vez mais ao controle das corporações multinacionais
privadas, que decidem os rumos da produção de bens e serviços313
.
O centro das decisões é direcionado para fora das fronteiras dos Estados. A autonomia
dos Estados está sujeita, então, aos mais variados interesses, sobretudo aos interesses do
mercado e das oligarquias314
locais descompromissadas com o bem-estar da população
humana, porque voltadas ao acúmulo desmedido de capital.
Com claro descompasso entre os interesses nacionais e transnacionais, observamos um
processo de descrédito nas instituições públicas e desinteresse do cidadão na participação
democrática, vez que este cidadão tem abalado a sua crença na autonomia do Estado, gerado,
muitas vezes, pela ineficiência de suas instituições315
.
A subordinação do Estado aos interesses do mercado transnacional (e não de seus
mercados nacionais) e a dominação oligárquica por grupos hegemônicos criam um sistema
político de marginalização social e política dos menos favorecidos economicamente, obstando
a construção da cidadania e da participação política.
As nações perderam a maior parte da soberania que possuíam outrora, e os políticos
perderam a maior parte de sua capacidade de influenciar os eventos. Não é de
surpreender que ninguém mais respeite líderes políticos, ou tenha muito interesse no
que eles possam ter a dizer. A era do estado-nação está encerrada316
.
Paralelamente a essa crise de representatividade, entendemos que ocorre cada vez mais
a diminuição da legitimidade de autoridades, de representantes. A vontade popular fica sem
saber a quem recorrer quando reconhece no poder estatal um espaço elitista, em que se
defendem interesses privados e econômicos317
.
312
Zygmunt Bauman, Globalização: As consequências humanas, p. 73. 313
André-Noël Roth, “O Direito em Crise: fim do Estado moderno?”, In: José Eduardo Faria (org.), Direito e
Globalização Econômica: implicações e perspectivas, p. 26. 314
“Grupo de pessoas poderosas que dominam uma parte dos interesses de um país”. (Aurélio Buarque
de Holanda Ferreira, Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1988). 315
“(...) a globalização é irreversível e, em alguns aspectos, independente da atuação governamental. O mesmo
não se dá com a ideologia baseada na globalização, a ideologia neoliberal do livre mercado ou o que foi
chamado de fundamentalismo do mercado livre.” (Eric J. Hobsbawm, O novo século, p. 78). 316
A. Giddens, Mundo em descontrole, p. 18-19. 317
Antônio Carlos Gomes Ferreira, “A desobediência civil na sociedade brasileira: reflexões sobre participação
política e representatividade sob a luz do pensamento de Hannah Arendt“, Jus Navigandi, ano 19, n. 3971,
disponível em: <http://jus.com.br/artigos/28439>, acesso em 18/mai./2014.
85
A rapidez de movimento torna o verdadeiro poder extraterritorial. Podemos dizer
que, não conseguindo mais as instituições existentes reduzir a velocidade de
movimentos do capital, os políticos perdem poder cada vez mais – circunstancia
simultaneamente responsável por uma crescente apatia política, um progressivo
desinteresse do eleitorado por tudo que tenha caráter ‘político’, à exceção dos
saborosos escândalos encenados pelas elites à luz dos refletores, e a queda da
expectativa numa possível salvação gerada pelo governo, sejam quais forem seus
atuais ou futuros ocupantes. O que é feito e pode ser feito nos escalões de governo
influi cada vez menos na luta cotidiana dos indivíduos318
.
Não bastasse a diluição da autonomia do Estado, o forte individualismo e o
esvaziamento da participação política, elencamos o abalo à organização do trabalho e a luta
dos trabalhadores como mais uma consequência da globalização e marca da pós-modernidade,
visto que com a transnacionalização do trabalho e sua flexibilização resulta em inevitável
precarização do trabalho humano.
Segundo Boaventura Santos:
A degradação salarial é, no entanto, apenas um aspecto do isolamento político das
classes trabalhadoras. Outro aspecto não menos importante é a degradação dos
salários indiretos e, consequentemente, das prestações e serviços do Estado-
Providência. O retrocesso nas políticas sociais tem assumido varias formas: cortes
nos programas sociais; esquemas de coparticipação nos custos dos serviços
prestados por parte dos utentes; privatização capitalista de certos setores da
providencia estatal no domínio da saúde, da habitação, da educação, dos transportes
e das pensões de reforma; transferência de serviços e prestações para o setor privado
de solidariedade social mediante convênios com o Estado; mobilização da família e
das redes de interconhecimento e de entreajuda – o que em geral podemos designar
por sociedade-providência – para o desempenho de funções de segurança social até
agora desempenhados pelo Estado319
.
O aumento da pobreza e dependência econômica dos países pobres, sobretudo da
África e da América Latina, faz parte da configuração do capitalismo contemporâneo e a força
ideológica e política do neoliberalismo.
Sem intervenção política ativa da oligarquia pós-moderna e dos grupos hegemônicos
que cooptam o Estado, bem como os governos que aceitaram não resistir a eles, e sem a
implementação de políticas de desregularão e de privatização, o capital financeiro
internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam destruído “os entraves e freios à
liberdade deles de se expandirem à vontade e de explorarem os recursos econômicos,
humanos e naturais, onde lhes for conveniente”320
. A proliferação das corporações
318
Zygmunt Bauman, Em busca da política, p. 27. 319
Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade, p. 254. 320
François Chesnais, A mundialização do capital, p. 34.
86
transnacionais, o capital sem rosto, multifacetado321
, estabelece uma cadeia particular de
produção e aproveitam-se das vantagens comparativas oferecidas em cada local do planeta322
.
Assistimos à participação do Estado como ator efetivo do mercado globalizado, visto
que a transnacionalidade das empresas e a dependência do capital externo fazem com que as
políticas do Estado voltem-se a atrair esse capital externo. Assim, controles rígidos de
câmbio, alta carga tributária e a burocracia servem de barreiras para o capital.
E esta mudança atinge sensivelmente nosso modo de gerir os bens públicos, num
mundo que pede rapidez, eficiência, economia, moralidade e responsabilidade para
com tudo o que é público — um mundo onde o Mercado e não o Estado parece ser
o Leviatã tão temido, quase que moldando o atuar das nações conforme suas
conveniências e necessidades323
.
Evidente que o capital, que é circulante, busca “segurança” econômica e maiores
condições de lucro, não possui nacionalidade, mas tão somente ambição de majorar seus
dividendos, o que abala a soberania e o poder político do Estado.
A participação do Estado e sua intervenção regulatória constituem-se em barreira aos
investimentos, assim, somente com a diminuição da atuação do Estado, a economia nacional
torna-se atrativa ao afluxo de capital e investimentos externos, mantendo os índices básicos de
emprego e circulação da produção, tornando o Estado cada vez mais dependente do mercado
internacional e de interesses de grupos específicos.
O discurso global é de defesa ao princípio da liberdade e da igualdade no mercado.
Contudo, observamos os grupos econômicos hegemônicos (empresas transnacionais,
instituições financeiras internacionais e parte da elite dominadora nacional) planejando de
forma excêntrica e rigorosa os rumos da economia mundial, através de “seus mapas do
mundo, as suas geoeconomias, à revelia dos assalariados e governantes; ou subordinando-
os”324
.
O poder está concentrado nas mãos dos detentores do grande capital, ou seja, das
empresas e instituições financeiras multinacionais privadas – a nova classe dominante –, que
321
De acordo com essa tendência, o capital avança para além das barreiras e preconceitos nacionais, para além
da adoração da natureza e da satisfação tradicional, confinada, complacente e incrustada das necessidades
presentes, e das reproduções dos velhos estilos de vida. É destrutivo para com tudo isso, e constantemente o
revoluciona, pondo abaixo todas as barreiras que impeçam o desenvolvimento das forças de produção, a
expansão das necessidades, o desenvolvimento multifacetado da produção e a exploração e o intercâmbio das
forças naturais e mentais (Karl Marx, Grundrisse, p. 408-410) (destaque nosso). 322
René Dreifuss, “Os Códigos do Admirável Mundo Novo”, Revista Rumos do Desenvolvimento,
n. 123, p. 31. 323
Eros Roberto Grau, “O Discurso Neoliberal e a Teoria da Regulação”, In: Desenvolvimento Econômico e
intervenção do Estado na ordem constitucional - Estudos em homenagem ao professor Washington Peloso
Albino de Sousa. 324
Octávio Ianni, A Era do Globalismo, p. 265.
87
influenciam os rumos das economias mundiais e excluem do processo decisório o público
externo. Criou-se, então, um sistema antidemocrático e ditatorial, visto que as decisões acerca
da produção, dos investimentos e do comércio são concentradas nessas oligarquias
hegemônicas, à revelia dos cidadãos, dos consumidores e dos trabalhadores. Grande parte do
comércio global já é feito “intraempresas”, que deslocam as etapas produtivas no escopo de
evitar as barreiras socioambientais e os direitos conquistados pelos “trabalhadores mimados
do Ocidente”325
.
São visíveis os resultados causados pela globalização, de forma que o combate ao
aumento das desigualdades sociais, à exclusão social e política, o crescimento do
endividamento público de muitos Estados e a precarização das condições do trabalho humano
surgem como desafios do Estado Democrático, mas o grande desafio do Estado
contemporâneo é a manutenção de sua soberania ante aos ditames imperialistas326
do
neoliberalismo e a salvaguarda das garantias sociais de seus nacionais frente ao poderio e
interesses escusos do capital oligárquico mundial.
3.3.1. O Princípio da eficiência e a administração gerencial
Na ideia de administração do Estado no cenário contemporâneo, temos a
“Administração Pública” como o próprio Estado, grafado com letras maiúsculas, ou a
“administração pública” como exercício da função administrativa, grafado, então, em letras
minúsculas, demonstrando a diferenciação conceitual na grafia.
A função administrativa se traduz na função dever/poder utilizado por Celso Antonio
Bandeira de Melo327
, invertendo a expressão de Renato Alessi e Santi Romano328
, pois com a
expressão dever/poder ressaltamos a ideia de que cabe ao Estado cumprir o dever de
satisfação das necessidades públicas, tendo o poder, as prerrogativas como instrumento para
alcançar a satisfação dessas necessidades. O poder é, destarte, instrumental, ancilar, para o
cumprimento do dever que vem como atividade premente de satisfação das necessidades
públicas para promoção do bem comum329
.
325
Noam Chomsky, Novas e velhas ordens mundiais, p. 233-234. 326
Os novos centros de poder esculpido pelas oligarquias pós-modernas “recriam os nexos de cunho
imperialista; mas em outros níveis, com outra dinâmica.” (Octávio Ianni, A Era do Globalismo. p. 233). 327
Conceito extraído de: Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 65. 328
A função vem empregada na doutrina como função e/ou atividade nas clássicas definições de Santi Romano
e Renato Alessi extraída da obra de Santi Romano, apud Franco Modugno, Verbete “Funzione”, In:
Enciclopedia Del Diritto, XVIII, p. 1401 e de Renato Alessi, Principi di Diritto Amministrativo, Vol. I, p. 3. 329
Também utilizado em expressões sinônimas como: “felicidade coletiva” ou “prosperidade pública”
(expressão usada pelo Professor Ataliba Nogueira na obra: O Estado é meio e não fim, de 1945), “bem de
88
O aspecto gerencial da administração pública surgiu na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos após da ascensão ao poder de governos conservadores, tais como Margaret Thatcher
em 1979 e Ronald Reagan, no inicio dos anos 1980330
.
Na Grã-Bretanha o modelo de gerencialismo foi imediatamente aplicado ao serviço
publico, levando à uma profunda reforma administrativa que contribuíram para tornar o
serviço publico mais flexível, descentralizado, eficiente e orientado para o cidadão331
.
Diante de uma nova ordem econômica, no fim do século XX, engendrou-se a
necessidade de implantação de medidas para modernizar a administração pública, tendo em
vista as imposições dos países capitalistas centrais que esbarravam nos excessivos entraves
provocados por uma administração burocrática332
.
Sob o neoliberalismo, reforma-se o Estado […]. Realizam-se a desregulamentação
das atividades econômicas pelo Estado, a privatização das empresas produtivas
estatais, a privatização das organizações e instituições governamentais relativas à
habitação, aos transportes, à educação, à saúde e à previdência. O poder estatal é
liberado de todo e qualquer empreendimento econômico ou social que possa
interessar ao capital privado nacional e transnacional. Trata-se de criar o “Estado
mínimo”, que apenas estabelece e fiscaliza as regras do jogo econômico, mas não
joga. Tudo isto baseado no suposto de que a gestão pública ou estatal de atividades
direta e indiretamente econômicas é pouco eficaz, ou simplesmente ineficaz. O que
está em causa é a busca de maior e crescente produtividade, competitividade e
lucratividade, tendo em conta mercados nacionais, regionais e mundiais. Daí a
todos” (Constituição Federal de 1988, artigo 3º.) e melhor definida pela Professora Maria Garcia: “O bem
comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento
integral da personalidade humana.”, extraída da encíclica “Pacem In Terris”, do Papa João XXIII (Maria
Garcia, Desobediência civil: direito fundamental, p. 24). 330
Com a sequência de vitórias dos neoliberais: em 1979, Margaret Thatcher, na Inglaterra; em 1980, Reagan,
nos EUA; em 1982, Helmut Kohl, na Alemanha. Porém, as primeiras experiências de “ajuste” neoliberal haviam
sido ensaiadas na América Latina: em 1973, no Chile, com Pinochet. Nos anos 80, os programas neoliberais de
ajuste econômico foram impostos a países latino-americanos como condição para a renegociação de suas dívidas
galopantes. Daí se passou à vigilância e ao efetivo gerenciamento das economias locais pelo Banco Mundial e
pelo FMI: 1985, Bolívia; 1988, México, com Salinas de Gortari; 1989, na Argentina, com Menem; 1989,
Venezuela, com Carlos Andrés Perez; 1990, Fujimori, no Peru. E, desde 1989, o Brasil, de Collor a FHC. Em
um livro do início dos anos 1990, Anne Krueger, economista-chefe do Banco Mundial durante a fase dos
ajustes, festejava as dezenas de programas aplicados mundo afora: “os países que os ‘acolheram’ deixaram de
governar suas dividas, passaram a ser governados pelas dívidas ou a serem governados através de suas dívidas”.
(Reginaldo C. Moraes, “O legado de Margareth Thatcher”, Conjuntura Internacional, v. 10, n. 2, p. 21). 331
O planejamento e a execução das ações têm pôr fim a qualidade dos serviços, pois o “cidadão é um
consumidor” dos serviços públicos, como observa Bresser Pereira (Luiz Carlos Bresser Pereira e Peter Spink
(org.), “Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado”, In: Reforma do Estado e
Administração Pública Gerencial, p.33). 332
Da necessidade de um modelo da administração pública que superasse a confusão entre o público do privado,
bem como a confusão entre o político do administrador público, nasceu a administração burocrática, de cunho
legalista e racionalista (Luiz Carlos Bresser Pereira. “Da administração pública burocrática à
gerencial”, Revista do Serviço Público, 47, p. 4). O modelo burocrático foi importante no Estado Liberal para
garantir “a propriedade e os contratos, pois “no Estado Liberal só eram necessários quatro ministérios - o da
Justiça, responsável pela polícia, o da Defesa, incluindo o exército e a marinha, o da Fazenda e das Relações
Exteriores. Nesse tipo de Estado, o serviço público mais importante era o da administração da justiça, que o
poder judiciário realizava” (Luiz Carlos Bresser Pereira, “Estado, sociedade Civil e legitimidade democrática”,
Lua Nova: Revista de cultura e Política, n.36, p. 5).
89
impressão de que o mundo se transforma no território de uma vasta e complexa
fábrica global e, ao mesmo tempo, em Shopping Center global e Disneylândia
global333
.
A crise econômica dos anos 1970s era, antes de tudo, uma crise de Estado. David
Harvey definiu essa crise como uma crise de “rigidez”334
, visto que a rigidez do Estado
impedia o livre empreendimento e os investimentos do setor privado. Foi necessária uma
intervenção da classe hegemônica com a intensificação do controle do trabalho e da
racionalidade. As fusões de empresas, a busca de novos mercados e mão de obra barata,
automação e o desenvolvimento tecnológico tornaram-se tendências mundiais. Harvey
chamou essa tendência de uma reestruturação produtiva e reforma do Estado, de “acumulação
flexível”, já que:
[…] se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho,
dos produtos e padrões de consumo. Caracterizam-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de
inovação comercial, tecnológica e organizacional335
.
Segundo Sennet, “as empresas buscaram eliminar camadas de burocracia, tornaram-se
organizações mais planas e flexíveis. Em vez das organizações tipo pirâmide, a administração
quer agora pensar nas organizações como redes”336
.
Com as transformações econômicas mundiais, inevitavelmente acompanhamos
também uma mudança no papel do Estado, que precisou reduzir os entraves para o avanço do
capital. Assim, quando houve o esgotamento do modelo burocrático, a estratégia usada para
redefinir o papel do Estado foi a implementação do modelo gerencial.
Grosso modo, a redefinição do papel do Estado na economia e a tentativa de reduzir
os gastos públicos na área social — tarefa esta nem sempre bem sucedida — foram
as duas saídas mais comuns à crise das dimensões econômica e social do antigo tipo
de Estado. Para responder ao esgotamento do modelo burocrático weberiano, foram
introduzidos, em larga escala, padrões gerenciais na administração pública,
inicialmente e com mais vigor em alguns países do mundo anglo-saxão (Grã-
Bretanha, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia), e depois, gradualmente, na
Europa continental e Canadá337
.
333
Octávio Ianni, “Globalização e Neoliberalismo. São Paulo em perspectiva”, p. 28, disponível em:
<http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v12n02/v12n02_03.pdf>, acesso em 19/mai./2015. 334
David Harvey, “Do Fordismo à Acumulação Flexível”, in: A condição pós-moderna, p. 135. 335
David Harvey, “Do Fordismo à Acumulação Flexível”, In: A condição pós-moderna, p. 140. 336
Richard Sennet, A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, p. 23 337
Fernando L. Abrucio, “O impacto do modelo gerencial na administração pública: um breve estudo sobre a
experiência internacional recente”, Cadernos ENAP, N.10, p.7.
90
O problema é que, a partir de tal modelo, há significante redução com gastos públicos
na área social338
. No caso do Brasil, surge a reforma administrativa germinada pela Emenda
constitucional n. 19/98, que implementa o modelo de administração publica gerencial na
Administração. Assim, é importante analisarmos o princípio da eficiência neste novo cenário
administrativo.
Buscando um controle de resultados na gestão pública e por trás de uma ideia de
assegurar uma adequada prestação de serviço por parte do Estado, por meio deste princípio, é
inserido o modelo ideológico neoliberal na administração publica brasileira.
Segundo Alexandre de Moraes:
O princípio da eficiência impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus
agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício e suas competências de
forma imparcial, neutra, transparente, participativa eficaz, sem burocracia sempre
em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais
necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a
evitar desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social339
.
Nos dizeres de Hely Lopes Meirelles,
Dever de eficiência é o que impõe a todo agente público de realizar suas atribuições
com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da
função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com
legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório
atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros340
.
Da análise desse conceito, entendemos que tal princípio é pluridimensional e não deve
ser reduzido à simples busca pela eficácia ou economicidade no uso dos recursos públicos,
mas ser entendido e aplicado conjuntamente ao contexto teleológico dos princípios contidos
no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988, quais sejam, os da legalidade,
impessoalidade, moralidade e proporcionalidade, pois “a eficiência é princípio que se soma
aos demais princípios impostos à Administração pública, não podendo sobrepor-se a nenhum
deles, especialmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança jurídica e ao
próprio Estado de Direito”341
.
Ainda, segundo Di Pietro:
338
Karine Y.L. Pereira & Solange M. Teixeira, “Redes e intersetorialidade nas políticas sociais: reflexões sobre
sua concepção na política de assistência social”, Textos & Contextos, v. 12, n. 1, p. 114-127. 339
Alexandre de Moraes, Direito constitucional, p. 317. 340
Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo brasileiro, p. 20. 341
Maria S. Zanella di Pietro, Direito Administrativo, p. 84.
91
Pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se
espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores
resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a
Administração Publica, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores
resultados na prestação de serviço público342
.
Há a presunção de que o princípio da eficiência tem status de princípio fundamental na
implantação de novo modelo gerencial (em oposição ao modelo burocrático), flexibilizando a
Administração, para uma melhor gestão da coisa pública.
Com efeito, em que pesem os avanços da política social com a Constituição de 1988,
muito em função da reforma democrática do Estado, caracterizada pela luta de movimentos
sociais, faz-se necessário a discussão desta contrarreforma neoliberal ocorrida no Estado e
seus impactos gerados para a política social.
A proposta de um modelo eficiente de Estado, garantidor da expansão do mercado e
da iniciativa privada, dos contratos internacionais firmados pelo Banco Mundial e FMI, e da
garantia da competitividade do país em âmbito internacional, soa como uma estratégia
político-ideológica para busca de consensos e legitimidade, como garantia do projeto
neoliberal, que se resume em uma interação do governo, setor privado e sociedade civil.
A administração pública gerencial emergiu na segunda metade deste século, como
resposta à crise do Estado; como modo de enfrentar a crise fiscal; como estratégia
para reduzir o custo e tornar mais eficiente a administração dos imensos serviços que
cabiam ao Estado; e como instrumento para proteger o patrimônio público [...] é
orientada para o cidadão e para a obtenção de resultados343
.
A eficiência é um conceito fundamental da nova administração pública. A questão é
tornar o serviço público eficiente, mas eficiente para quem? O capitalismo monopolista, sob a
predominância do capital financeiro especulativo provoca mudanças significativas na relação
Estado/mercado. A reestruturação do processo de trabalho, com ênfase na flexibilização dos
contratos e da legislação que protege o trabalhador e na baixa remuneração da força de
trabalho, no desmonte dos coletivos de trabalho e na captura da subjetividade operária e dos
mecanismos de proteção social, aliados à privatização, vem trazendo sérias consequências
sociais para o mundo, em geral, e para o Brasil, em particular344
.
As mudanças no mundo do trabalho e o novo complexo da reestruturação produtiva
são estruturais, produtos de um processo histórico e sociológico. O Estado brasileiro não
342
Maria S. Zanella di Pietro, Direito Administrativo, p. 84. 343
Luiz Carlos Bresser Pereira, “Os avanços da reforma na Administração Pública”, In: Cadernos MARE da
Reforma do Estado. v. 15, p. 28. 344
Paula Martins Sirelle, Terceirização na esfera pública estatal: estratégia (im) posta à sociedade,
Dissertação (Mestrado em Serviço Social), Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008, p. 97.
92
apenas deu ao “mercado” ampla liberdade para contratar, usar e remunerar os trabalhadores,
como, ao comportar-se, ele próprio, como mais um empregador obcecado pela redução dos
custos de pessoal, deu seu aval à rápida e intensa precarização do mercado de trabalho345
.
Certamente a sociedade pós-moderna traz novos desafios no que concerne ao papel do
Estado e sua relação com as classes sociais (dominantes e dominadas), com a valorização do
tempo e a promoção da “sociedade de risco”346
e a “erosão da eficácia do Estado na gestão
macroeconômica”347
. Contudo, observamos que o princípio da eficiência, que visa melhorar
os serviços públicos para o cidadão, na verdade camufla a imposição dos países ricos, extraída
do teor da cartilha do Consenso de Washington, para implementação das políticas neoliberais
visando “descartar” o Estado outrora tão importante para desenvolvimento do sistema
capitalista, ou seja, por detrás do discurso da Reforma administrativa, com foco no modelo
gerencial, há uma tentativa de mitigação do apelo às questões distributivas e às missões
sociais do Estado democrático348
.
Entendemos que a eficiência da Administração pública há de ser conjugada a valores e
ocupada de “questões éticas e sociais, notadamente de caráter (re) distributivo da riqueza
produzida no país”349
.
A eficiência do Estado só poderá ser averiguada tendo como parâmetro esse
fundamento e não o plano de perspectiva da eficiência sob a ótica da classe dominante, que
além de falha, desconsidera os fatores sociais na instituição dos critérios de avaliação do
sistema econômico350
.
O Estado, embora criação da classe dominante para manter a dominação sobre o todo
social, ao assumir a feição de Estado democrático, passou sim a ser capaz de promover a
redistribuição de riquezas e, revelar-se como idealizador de uma sociedade mais igualitária e
garantidor de direitos fundamentais.
Em conclusão, a eficiência não é inimiga dos direitos fundamentais. Ao
contrário de ser uma forma de substituir critérios de justiça por critérios
puramente financeiros, a eficiência – adequadamente construída – é um
345
A M. C. Borges, “Reforma do estado, emprego público e a precarização do mercado de trabalho”, Caderno
CRH, v. 17, n. 41, p. 267. 346
“o sistema de superespecialização profissional, juntamente com a organização burocrática, fracassa diante
dos riscos desencadeados pelo desenvolvimento da produtividade, não serve à contenção dos perigos” (Ulrich
Beck, Sociedade de risco, p. 82). 347
Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade, p. 290. 348
Irene P. Nohara, Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito
administrativo brasileiro, p. 161. 349
Flávio Galdino, Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: direitos não nascem em árvores, p. 260. 350
Emerson Gabardo, Legitimidade e Eficiência do Estado: Uma Análise das Estruturas Simbólicas do Direito
Político, p. 122.
93
poderoso instrumento de transformação social e proteção dos valores
democrático (sic) e dos direitos fundamentais351
.
Os princípios da moralidade e da eficiência, que direcionam a atuação do Estado, são
imprescindíveis para direcionarem a atuação do Estado a “administrar a escassez de recursos e
otimizar a efetividade dos direitos sociais”352
. Ronald Dworkin também nega a condição de
valor à eficiência econômica, afirmando que a afirmação de que o Direito busca a eficiência
só é verdadeira se for atrelada a algo moralmente legitimo que conduza à felicidade353
; ou
seja, a riqueza deve ser associada à maximização do bem-estar humano, ao que necessário
adotar-se, então, um conceito de eficiência social354
.
É cediço que o grande objetivo da reforma administrativa é a aplicação de métodos
gerenciais tendentes à reestruturação produtiva para melhorar a governança do Estado por
meio da flexibilidade, descentralização e terceirização, causando a “erosão da eficácia do
Estado”355
democrático para expansão dos negócios da classe dominante internacional. Mas o
Estado, no bojo do texto constitucional, deve ter a capacidade de implementar políticas
públicas e cumprir funções de forma eficiente e efetiva, pela interpretação constitucional de
previsão de assistência ao bem-estar do ser humano356
.
3.4. Proibição do retrocesso social
Estamos no limiar do século XXI e acompanhamos que, desde o processo de formação
do Estado moderno, o homem não conseguiu acabar com a desigualdade nem com as
injustiças sociais. Observamos violações aos direitos fundamentais que atentam contra a
dignidade do ser humano, embora tais direitos sejam reconhecidos historicamente, tendo
gradual origem na defesa de novas liberdades contra velhos poderes357
, de forma que os
direitos humanos são reconhecidos, mas não concedidos, pela sociedade política358
.
351
Flávio Galdino, Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: direitos não nascem em árvores, p. 261. 352
Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 381. 353
Ronald Dworkin, Uma Questão de Princípio, p. 351-398. 354
Humberto Ávila, Sistema Constitucional Tributário, p. 430-437. 355
Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade, p. 290. 356
A sua positivação no art. 37 da Constituição deixa transparecer sua condição de princípio jurídico, entendido
este como norma que ordena realizações, a maximização de bem-estar de seus cidadãos (Robert Alexy, Teoria
dos Direitos Fundamentais, p. 86). 357
Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, p. 5. 358
João Baptista Herkenhoff, Curso de Direitos Humanos – Volume I (Gênese dos Direitos Humanos), p. 30 e
31.
94
Estudamos ao longo do trabalho que, na expansão do sistema de produção capitalista,
o Estado serviu de braço para uma oligarquia hegemônica que exerceu e exerce sua
dominação sobre o todo social.
Considerando a apropriação indevida e usurpação do ideal de necessidade do Estado
por parte da burguesia e retomando a ideia de Aristóteles359
e de Rousseau360
, entendemos que
o Estado contemporâneo, com o preceito democrático, incorporou valores sociais e
reivindicações seculares da classe dominada e dos excluídos, conquistas implementados
através de ações e programas de políticas sociais, não podem ser alvo de retrocesso social.
Na complexa conjuntura de flexibilização da soberania do Estado democrático frente
ao poderio dos grupos hegemônicos que cooptam o Estado para defesa de seus interesses
econômicos, Boaventura Santos sugere-nos um movimento de resistência à globalização,
denominado globalização contra hegemônica:
Defendi, noutro local, que existem duas formas de globalização: a globalização
neoliberal e aquilo a que eu chamo uma globalização contra-hegemônica, que desde
há algum tempo se vem opondo à primeira (Santos, 2002: capítulos 5, 9). Designo
por globalização contra-hegemônica o conjunto vasto de redes, iniciativas,
organizações e movimentos que lutam contra as consequências econômicas, sociais
e políticas da globalização hegemônica e que se opõem às concepções de
desenvolvimento mundial a esta subjacentes, ao mesmo tempo em que propõem
concepções alternativas. A globalização contra-hegemônica centra-se nas lutas
contra a exclusão social. Atendendo a que a exclusão social é sempre produto de
relações de poder desiguais, a globalização contra-hegemônica é animada por um
ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão, o qual implica a redis-
tribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos.
359
Aristóteles afirma que “o Estado não pode ser definido simplesmente como uma comunidade que vive num
mesmo lugar e protege seus membros dos malfeitores e promove a troca de bens e serviços359
“, mas que “existe
para capacitar os grupos familiares a viver bem, ou seja, a ter uma vida plena e satisfatória e isso só pode ser
alcançado quando os grupos ocupam um único e mesmo território” (Aristóteles, Política, p. 229), ou seja, para
Aristóteles, o Estado “é uma associação de homens livres que utiliza o poder político para alcançar a sua
finalidade: a promoção da justiça política”, sendo a justiça política promovida, então, entre homens que vivem
em comum tendo em vista a autossuficiência, homens que são livres e iguais que visam alcançar o bem comum,
de modo que entre os que não preenchem esta condição não existe justiça política (Aristóteles, Metafísica, p.
130); de modo que a associação política, o poder político e a justiça política são uma decorrência da natural
existência humana, o que significa dizer que “o Estado é uma criação da natureza” (Aristóteles, Política, p.
146), visto que se foi criado pelo homem, é porque “o homem é por natureza um animal político” (Aristóteles,
Política, p. 146). Aristóteles reconhece ainda que “em numerosas ocasiões, a maioria julga melhor do que um só
homem”; e que “é mais difícil corromper ou chegar a um acordo com a maioria”, assim como é mais difícil
“poluir uma grande quantidade de água” do que uma pequena quantidade, e que “o julgamento de um pode ser
deturpado se ele tiver um mau temperamento ou sentimentos demasiado fortes por alguma coisa; mas
dificilmente muitos perderiam a calma deturpando o julgamento” (Aristóteles, Política, p. 244). 360
Para Rousseau, a legitimidade só está assegurada mediante a realização efetiva dos interesses do soberano, e
a soberania está localizada no povo (Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, p. 39). O Estado deveria ser
limitado e agir em função do povo (soberano), sendo a soberania do povo inalienável (Jean-Jacques Rousseau,
Do contrato social, p. 39).
95
Algumas das características da governação361
podem ser encontradas no movimento
global de resistência à globalização neoliberal362
(hegemônica) que se firma na luta contra a
exclusão social. No entanto, as práticas democráticas devem “ocorrer em contextos
específicos para dar respostas a problemas concretos”363
, mas como conceber a democracia no
Estado cooptado por interesses de uma classe hegemônica? Boaventura Santos sugere uma
revisão na teoria jurídica do Estado, criticando o monopólio estatal do direito, propõe também
a socialização dos direitos dos cidadãos e das comunidades e critica o conceito de
territorialidade enquanto unidade básica do Estado e do direito364
, evidenciando um
pluralismo jurídico, pelo espaço da cidadania, da comunidade e o espaço mundial365
, em que
serão considerados os “conjuntos mais elementares e mais sedimentados de relações sociais
nas sociedades capitalistas contemporâneas”366
.
Diante da ingerência de grupos hegemônicos na atuação do controle político e
econômico dos Estados, surge como grande desafio a salvaguarda dos direitos fundamentais
sociais conquistados ao longo dos tempos em resistência à política imposta pela classe
dominante, protegendo tais direitos da política neoliberal atual.
Com o enfraquecimento do Estado, há o aumento da ingerência da elite capitalista no
intuito de promover a “desregulação”, por isso é importante evocarmos a garantia de
prevalência do princípio da proibição de retrocesso social para evitar a atividade restritiva dos
direitos fundamentais367
.
Segundo Ingo Sarlet, a proibição do retrocesso social pode ser interpretada como um
subprincípio da segurança jurídica:
A problemática da proibição de retrocesso guarda íntima relação com a noção de
segurança jurídica. (...) a ideia de segurança jurídica encontra-se umbilicalmente
vinculada também à própria noção de dignidade da pessoa humana. Com efeito, a
dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida em todo o lugar onde as
361
“A governação é hoje apresentada como um novo paradigma de regulação social que veio suplantar o
paradigma anteriormente em vigor assente no conflito social e no papel privilegiado do Estado, enquanto ente
soberano, para regular esse conflito por via do poder de comando e de coerção ao seu dispor” (Boaventura de
Sousa Santos, “A crítica da governação neoliberal: O Fórum Social Mundial como política e legalidade
cosmopolita subalterna”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 72, p. 7). 362
“Que tem hoje a sua melhor expressão no Fórum Social Mundial” (Boaventura Santos, Idem, p. 7). 363
Boaventura de Sousa Santos, Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, p. 52. 364
Celso Campilongo. Direito e democracia, p. 87. 365
“(...) o espaço mundial é a soma total dos efeitos pertinentes internos das relações sociais por meio das quais
se produz e reproduz uma divisão global do trabalho. (...) O espaço mundial é, por conseguinte, a matriz
organizadora dos efeitos pertinentes das condições e das hierarquias mundiais sobre os espaços doméstico, da
produção, do mercado, da comunidade e da cidadania de uma determinada sociedade” (Boaventura de Sousa
Santos, Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, p. 278). 366
Boaventura de Sousa Santos, Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, p. 272. 367
Rodrigo Goldschmidt, “O princípio da proibição do retrocesso social e sua função limitadora dos direitos
fundamentais”, Revista Justiça do Direito, v.14, n.14, p. 33.
96
pessoas estejam sendo atingidas por um tal nível de instabilidade jurídica que não
estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade,
confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa
estabilidade das suas próprias posições jurídicas368
.
Com efeito, considerando-se as exigências da segurança jurídica, temos que observar
que a dignidade da pessoa humana não exige apenas a proteção em face de atos de cunho
retroativo do Estado, não prescindindo de uma proteção contra medidas que se apresentam
retrocessivas e devem ser coibidas da mesma forma369
.
Não é possível validar “manobras” tendentes a reduzir ou extinguir direitos sociais,
sob pena de pôr em o risco a dignidade conquistada arduamente em constantes lutas por
direitos a melhores condições de vida humana.
Para Canotilho, uma vez obtido determinado grau de realização, os direitos sociais
passam a constituir uma garantia institucional e um direito subjetivo, tornando-o irreversível
como “direitos adquiridos”, pois violaria, ainda, o princípio da proteção da confiança e da
segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural370
, sendo totalmente
inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados,
sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses
benefícios371
.
Robert Alexy destaca que “a concepção apresentada é uma concepção básica ampla e
formal. A seu lado pode coexistir uma concepção básica ampla e substancial. Sob a
Constituição Alemã, essa concepção ampla e substancial é determinada pelo conceito de
dignidade humana”372
.
Os maiores ensinamentos acerca do princípio da proibição de retrocesso social vêm
dos países desenvolvidos como Itália, Alemanha e Portugal. A doutrina brasileira é, portanto,
inspirada nessas doutrinas estrangeiras.
No Brasil, o maior dos obstáculos ao reconhecimento da proibição ao retrocesso social
advém da liberdade de conformação do legislador e do princípio democrático. Porém, o
princípio se revela como instrumento de proteção à eficácia das normas constitucionais, sendo
uma decorrência lógica do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e da
vinculação do legislador aos direitos fundamentais373
.
368
Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 436. 369
Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 437. 370
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 336. 371
CANOTILHO, Idem, p. 336. 372
Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 446. 373
Artigo 5º, §1º, da Constituição Federal da República, de 1988.
97
Destarte, ainda que seja formalmente possível a flexibilização pela autonomia coletiva
imposta pela dinâmica pós-moderna (para atender às exigências neoliberais), deve-se observar
a terminante vedação de hipóteses restritivas de direitos sociais. Inadmissível, portanto,
subjugar direitos sociais em detrimento dos escusos interesses do mercado, mormente se
analisarmos os direitos sociais como fundamentais e, assim, irrenunciáveis e indisponíveis,
com supedâneo nos princípios da segurança jurídica, da vedação de retrocesso social e,
mormente, da dignidade da pessoa.
Compreende-se, assim, que, mesmo havendo hipóteses de flexibilização, isso não
significa a existência de uma “carta em branco” para aniquilar o direito conquistado com
muitas lutas, mesmo porque esbarraríamos no denominado efeito “cliquet”374
.
De fato, a globalização trouxe profundos impactos nas relações humanas e intensas
transformações sociais, contudo, a não flexibilização do principio da proibição do retrocesso
social consiste em importante conquista da civilização, uma vez que favorece e fortalece as
estruturas da assistência social do Estado na sustentação dos direitos fundamentais.
Comentávamos ainda neste capitulo do trabalho acerca dos desafios do Estado
Democrático na pós-modernidade, destacando o combate às desigualdades causadas, em
grande parte, pelo modelo de exploração imposto pela classe dominante ao longo da história.
Assim, é preciso assegurar a soberania do Estado frente à imposição neoliberal e garantir os
direitos sociais fundamentais aos seus nacionais. Neste sentindo, a observância do principio
do “não retrocesso social” se mostra como instrumento de resistência na luta contra a força
dos interesses hegemônicos das oligarquias capitalistas.
Por outro lado, assistimos a uma “globalização contra-hegemônica que procura
radicalizar o conceito e a prática democrática, ampliando-a para todos os espaços, desde as
relações cotidianas entre os indivíduos até as esferas globais, passando pelas lutas locais e
nacionais”375
.
374
A expressão “cliquet” é utilizada pelos alpinistas e define um movimento que só o permite subir, não lhe
sendo possível retroceder, em seu percurso. O efeito “cliquet” dos direitos humanos significa que os direitos não
podem retroagir, só podendo avançar nas proteções dos indivíduos. No Brasil esse efeito é conhecido como
princípio da vedação do retrocesso, ou seja, os direitos humanos só podem avançar, jamais retroceder. “É
importante lembrar que o princípio em tela é, acima de tudo, um avanço na busca de patamares mais justos e
dignos de vida material. A proibição de retrocesso impede que direitos sociais já disciplinados e garantidos pela
legislação infraconstitucional e implementados através de ações e programas de políticas sociais sejam, ao
alvedrio dos Poderes Públicos, extintos, configurando o vácuo do direito...” (Cláudia Maria da Costa Gonçalves,
Direitos Fundamentais Sociais: releitura de uma constituição dirigente, p. 199). 375
Isabella Gonçalves Miranda e Fábio André Diniz Merladet, “Uma apresentação crítica dos conceitos de
globalização hegemônica e contra-hegemônica à luz das novas manifestações populares internacionais”,
Primeiros Estudos, n. 3, p. 7-24.
98
É preciso dizer que proibição de retrocesso social não se traduz em mera manutenção
do status quo, antes significando também a obrigação de avanço social376
. Assim, faz-se
imperativo o reconhecimento de que o ser humano deve ser o bem e o fim maior do Estado,
sendo todo cidadão merecedor de respeito de forma isonômica e plena. E perseguir esse ideal
é mais do que um desafio do Estado Democrático e Social: deve ser a sua prioridade.
Devem-se empreender esforços na justificação dos direitos humanos, pois, somente
com a garantia e proteção destes, é possível enfrentar a sociedade excludente e multifacetada
gerada pelo impacto da globalização da economia e pela política neoliberal.
376
Felipe Derbli, O Princípio da Proibição do Retrocesso Social na Constituição de 1988.
99
CONCLUSÃO
Maquiavel no século XVI foi o primeiro a compreender o Estado como um conjunto
de instituições políticas. Thomas Hobbes, posteriormente, designou o Estado como um
contrato social, um pacto que os homens estabelecem entre si, postulando que eles abrem mão
de uma parte de sua liberdade para que um governo possa regular as relações entre eles e
manter a paz e a harmonia do todo; justificava-se assim a centralização política nas mãos da
figura de um poder soberano para a existência de uma nação politicamente organizada e com
uma burocracia administrativa.
No paradigma do Estado liberal, desponta a Revolução Industrial, sendo o liberalismo
usado pela burguesia para justificar a acumulação de capital a partir da exploração da força de
trabalho. Temos neste Estado as “ilusões” da Igualdade, Liberdade e Fraternidade da
Revolução Francesa. Usamos o termo “ilusões” porque vimos que o Estado não é o curador
social que tem por finalidade o bem comum da sociedade e a proteção de interesses
universais, mas surge como uma necessidade da classe dominante para manter o status quo de
dominação dos ricos sobre os pobres.
Progredimos, cronologicamente, ao Estado Democrático de Direito, em que o Estado,
ao mesmo tempo em que limita sua ação, dá ao indivíduo a possibilidade de lhe exigir
prestações positivas, sendo reconhecedor de direitos e de garantias humanas fundamentais que
tanto restringem a atuação estatal quanto permitem a exigência de suas prestações para a
realização de algumas garantias.
Os argumentos que ensejaram a criação do Estado foram, ao longo dos anos, perdendo
sua força, desde que consideramos o binômio segurança x liberdade sob um novo paradigma
do Estado e do Direito no mundo contemporâneo globalizado, pois ao Estado restou apenas a
função de organizar uma sociedade de consumidores, afastando-se dos ideais de sua gênese e
limitando-se a assegurar a fruição dos bens de consumo materiais e imateriais postos à
disposição dos consumidores aptos, produzindo exclusão social.
Assim, com o fortalecimento da iniciativa privada e das forças do mercado, a classe
dominante continua buscando a defesa de seus interesses e agora visando suplantar o Estado
social, ao atribuir-lhe o título de modelo arcaico, ultrapassado, com o objetivo de enfraquecer
sua intervenção, criando, assim, uma superpopulação de excluídos.
Abordamos a evolução da organização política do Estado em conformidade com as
transformações sociais impostas pela evolução do sistema capitalista, desde a gênese do
pensamento liberal, enquanto projeto burguês, no século XVII, até a reorganização do sistema
100
no final do século XX, com a implementação das metas traçadas pelas oligarquias
internacionais, sobretudo as instituídas no Consenso de Washington em 1989, que impuseram
ao mundo o modelo neoliberal e favoreceram a globalização do capital. Tal fenômeno
ocasionou profundas mudanças no cenário político, econômico e social, das quais certamente
a mais marcante é a flexibilização da soberania do Estado em favorecimento aos interesses
econômicos transnacionais, algo que o desvia de seu fim.
O Estado atenuado e impotente em face da nova ordem internacional, passou tão
somente à assegurar a segurança jurídica para atração do circulante e especulativo capital
estrangeiro, convivendo com o quadro crescente de dependência econômica, falência das
instituições internas e crescimento da exclusão e das mazelas sociais.
Com as transformações sociais impressas pelos avanços industriais e tecnológicos, fez
com que esta nova classe dominante que “impulsiona a historia”, os detentores do capital,
tomam novas faces e se organizaram globalmente, de forma que não possuem forma ou feitio,
não têm rosto, identidade, passaporte ou nacionalidade. São “invisíveis”, mas onipresentes,
não têm endereço fixo, estão “em circulação”, são flutuantes, manifestando-se por meio de
megainvestidores e de conglomerados de empresas transnacionais que são agora as detentoras
do capital especulativo, as quais mantêm seus tentáculos na organização e articulação política
e econômica do mundo atual, ditando as regras do jogo do mercado.
A sociedade globalizada reforça o poder econômico destes grupos hegemônicos,
provocando mudanças drásticas na relação entre o público e o privado, contudo, é
imprescindível o debate da inevitável coexistência destes na economia globalizada, porém
deve-se recuperar o projeto do Estado Democrático e Social, visto que este ente político
representa a instância voltada à proteção dos direitos sociais e ao combate às desigualdades
perpetradas pela reprodução do sistema de exploração do homem pelo homem.
Um diálogo com autores, a maioria de visão marxista, nos proporcionou trazer ao
longo do trabalho, uma abordagem crítica ao processo de evolução histórica do Estado
ocidental desde a modernidade, cotejando a ligação dos propósitos estatais aos interesses
econômicos, sobretudo aos interesses de uma classe economicamente dominante: a burguesia.
O Problema é que, embora a teoria marxista tenha sido um divisor de águas na história
da filosofia política proporcionando um novo olhar sobre a estrutura do Estado, é importante
entender que tal teoria foi escrita no século XIX diante dos problemas postos àquela época.
Marx construiu uma teoria de base até hoje utilizada e válida, mas quando fazemos uma
análise do Estado, temos que chamar a atenção para alguns conceitos. Principalmente no que
101
concerne à sociedade de classes na pós-modernidade. Ou seja, o papel do Estado “burguês” na
modernidade líquida com diversas identidades que se recriaram.
Vimos que na nova classe dominante figuram como atores responsáveis pela
reorganização geoeconômica global, as corporações transnacionais que disputam o controle
do espaço econômico global, as poderosas instituições ligadas ao sistema financeiro mundial e
a elite capitalista local, que partilham comumente de uma condição socioeconômica
privilegiada e detém comum interesse nas relações do poder político e do controle social e que
a nova classe de dominados encontra-se desestruturada e fragmentada, escondida na figura da
“classe média”. A dominação agora se retrata na exploração das nações ricas e do capital
transnacional em detrimento das nações pobres do globo, gerando uma multidão de excluídos.
Assim, buscamos problematizar a crise paradigmática e institucional do Estado-nação
com foco na eficiência deste Estado contemporâneo, cooptado por grupos hegemônicos que
exercem pressão regulatória na defesa dos interesses do capital globalizado.
Será que o Estado pode trazer o desenvolvimento inclusivo? Será que o Estado, dentro
do contexto da globalização, pode proporcionar um desenvolvimento horizontal, se
desvinculando dos interesses particulares de grupos específicos?
As desigualdade e mazelas consumadas pelo modelo burguês de condução do mundo
estão aí, os excluídos não exigem a observância dos seus direitos, muitos sequer conhecem os
direitos e garantias que lhes são assegurados pelo ordenamento jurídico, o que se torna
interessante para conter gastos na política neoliberal, pois, quanto menos se exige do Estado,
menor a sua atuação como provedor dos direitos sociais.
Ao mesmo tempo percebemos um movimento tendente a desacreditar e enfraquecer a
figura do Estado Democrático de Direito, retirando sua função reguladora e entregando-a aos
agentes econômicos e ao “mercado”, ou seja, o controle dos rumos dos países, antes
designados aos Estados soberanos, passa gradativamente às mãos de atores não estatais. E
neste processo notamos as sombras da “velha ingerência” da classe dominante propulsora do
liberalismo, travestida em grupos hegemônicos locais, que, por seu turno, são os únicos
beneficiados com a retomada do ideal burguês e a imposição do sistema neoliberal pelas
novas oligarquias pós-modernas.
Na expansão do sistema de produção capitalista, o Estado sempre serviu de braço para
que uma oligarquia hegemônica exercesse sua dominação sobre o todo social. Contudo,
passamos a conceber que o Estado contemporâneo, a partir da incorporação de reivindicações
resultadas de embates históricos, lutas por melhoria de condições do trabalho em face do
capital, conquistas sociais implementadas por ações e programas de políticas sociais, assume,
102
então, o aspecto de Estado Democrático de Direito e pode ser visto como instrumento de
resistência ao sistema de exclusão capitalista a consolidar politicamente as vitórias políticas
da classe trabalhadora.
Ironicamente, o Estado que outrora serviu tão somente para gerir os negócios da
burguesia, agora se apresenta como empecilho à expansão do sistema capitalista, visto que,
com instituições democráticas sólidas, com a participação política dos menos favorecidos por
meio de políticas públicas de inclusão e sustentabilidade, a globalização hegemônica começa
a encontrar resistência. Por isso, a fragmentação das instituições públicas pelas ações
ideológicas da classe dominante.
Se este Estado serviu, em um primeiro momento, como dispositivo para o triunfo do
capitalismo e do ideal burguês, hoje se mostra como instrumento de resistência ao avanço
selvagem do mesmo capitalismo sempre sedente por produção e acúmulo de riquezas. Neste
passo, a observância de princípios vitais, como o da proibição de retrocesso social para evitar
a supressão de direitos já conquistados, bem como o da dignidade humana para avançar nesta
direção mostra-se imprescindível para fazer frente à sociedade de massas, multifacetada,
gerada pela política neoliberal.
A figura do Estado hoje justifica-se apenas com a garantia e proteção dos direitos
sociais, e para isso é imprescindível a figura do Estado Democrático de Direito forte e
autônomo para atuar na redução das desigualdades e mazelas sociais e na preservação do
meio ambiente, além de mostrar-se apto a prover dignidade e desenvolvimento humano
sustentável aos seus cidadãos, pois o projeto de Estado-nação, constitucional e soberano, tem
comprometimento com os seres humanos e sua dignidade, diferentemente dos grupos
hegemônicos que o usurparam do Estado durante toda a história da evolução do Estado.
De fato, a globalização trouxe profundos impactos nas relações humanas e intensas
transformações sociais e, com elas, desafios ao Estado Democrático de Direito na pós-
modernidade, com destaque para o combate às desigualdades causadas, em grande parte, pelo
modelo de exploração imposto pela classe dominante ao longo da história. É preciso, pois,
assegurar a soberania do Estado frente à imposição neoliberal e garantir os direitos sociais
fundamentais aos seus nacionais. É imperativo, portanto, o reconhecimento de que o ser
humano deve ser o bem e o fim maior do Estado, sendo todo cidadão merecedor de respeito
de forma isonômica e plena.
Assim, deve-se barrar a desarticulação dos interesses nacionais dos países capitalistas
pobres por meio das tais “reformas” de adequação neoliberal que obstam seu
desenvolvimento interno e, ao contrário delas, promover a consolidação do sistema
103
democrático, para retomar os rumos do Estado do Bem-Estar Social que incentive a
globalização contra hegemônica que vise ao desenvolvimento local por meio da participação
direta da sociedade nas decisões, visando ao desenvolvimento sustentável de seu povo.
104
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