o décimo terceiro discípulo

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religião, aventura, romance

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Copyright © 2015 – Mathias Gonzalez – MG Editor

Revisão: Maria Miguel Gonzalez

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida

sejam quais forem os meios empregados sem a

permissão expressa por escrito do Autor ou Editora. Aos

infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos

102, 104, 106 e 107 da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de

1998.

Contato com o autor:

e-mail: [email protected]

https://clubedeautores.com.br/authors/42814

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"Crê nos que buscam a verdade.

Duvida dos que a encontraram."

(André Gide)

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Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................... 7

Capítulo I - A invasão do Império Romano............................ 13

Capítulo II - A Resistência do Povo Judeu – a Destruição de

Massada ................................................................................. 21

Capítulo III - A Era das Trevas ................................................ 49

Capítulo IV - Os Essênios ....................................................... 61

Capítulo V - A Grande Viagem ............................................... 95

Capítulo VI - O Plano de Redenção da Humanidade ........... 121

Capítulo VII - Os Dissidentes ............................................... 145

Capítulo VIII - A Missão dos 12 + 1 ...................................... 167

Capítulo IX - A Perseguição ................................................. 197

Capítulo X - A Proximidade da Morte .................................. 227

Capítulo XI - Roma – A Capital do Império ........................... 281

Capítulo XII – Visões do Inferno ........................................... 307

Capítulo XIII – O Retorno...................................................... 335

Capítulo XIV – Uma mudança de rumos .............................. 361

Capítulo XV – O grande enigma ........................................... 383

Capítulo XVI – A Difícil Decisão ............................................ 401

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Capítulo XVII - A Sorte Está Lançada ................................... 435

Capítulo XVIII – O grande reencontro .................................. 463

Capítulo IXI – Traição e Crucificação .................................... 481

Capítulo XX – Uma Paz Possível ........................................... 507

7

INTRODUÇÃO

Quando iniciei meus escritos, estávamos no ano 3.790 do

nosso calendário judaico, sob o governo do Rei Herodes I –

O grande, um judeu nascido em Edom, criado em Roma,

colocado no poder para nos governar. Não sei até quando

continuarei a escrever. Já sou um ancião chegado nos anos e

sei que os meus dias estão contados.

Meu nome é Matias, sou o filho mais velho de Harael, filho

de Eleazar. Meu pai foi aquele que, com apenas dez dos

seus homens, derrotou uma legião de soldados romanos

comandados pelo centurião Lucius de Gália, na batalha do

Mar Negro.

O que irei vos relatar agora poderá custar a minha vida, pois

estou quebrando o Pacto de Silêncio imposto por meus

irmãos essênios, aos quais tive a honra de servir como

escriba por quase vinte anos.

O relato que farei nesses papiros talvez nunca venha a ser

lido por ninguém e nem mesmo os papiros venham ser

encontrados. Eu espero que pelo menos um deles um dia

seja encontrado em perfeitas condições e decifrado, para

que os homens finalmente conheçam a verdade sobre o que

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poderá ser a maior história de todos os tempos, isto é, como,

verdadeiramente, o Messias foi concebido.

Este será o meu testemunho. Não espero que meus irmãos

da fraternidade possam me perdoar pelo sacrilégio de

revelar toda a verdade, mas, eu fui um dos escribas que

escreveu o que será no futuro conhecido em um dos

Evangelhos: "E conhecereis a Verdade e ela vos libertará".

É sobre essa verdade que quero contar.

Eu sou aquele que será considerado como o décimo terceiro

discípulo de Cristo, o substituto de Judas Iscariotes e vou

relatar o que vi e ouvi. Escrevo para aqueles que têm

ouvidos para ouvir, olhos para ler e sabedoria para entender,

o que não seria possível nesse tempo em que vivo.

Aquilo que eu relatar, sei que parecerá o resultado da mente

de um homem confuso, incoerente, dominado pelo medo ou

movido por uma intensa paixão pela verdade. Talvez até eu

seja julgado como alguém fora da realidade. O certo é que

eu não tenho muito tempo para escrever tudo e, mesmo o

que eu conseguir produzir, terei que esconder meus papiros

em vasos e enterrá-los em cavernas, na esperança de que,

um dia, alguém possa ter a sorte de encontra-los,

decodificá-los e, finalmente, revelá-los.

Ao produzir tais textos, estou movido por um único desejo:

o de contar a verdade, conforme vi e ouvi. Em alguns

momentos, eu poderei cometer o erro de interpretar o que vi

ou ouvi dos meus irmãos essênios, mas, se o fizer, será

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apenas para esclarecer algum fato relevante, já que não sei

quando os meus papiros serão encontrados e nem o que será

feito deles. Por isso, preciso dar tantos detalhes e

explicações quantas forem necessárias para facilitar o

entendimento de quem os encontrar. Pode ser que levem

cem, mil ou dez mil anos para serem descobertos. Eu,

sinceramente, espero que sejam encontrados muito depois

de minha morte, pois, se isso acontecer antes, minha

mulher, meus oito filhos e filhas e eu poderemos ser

condenados a uma morte ainda pior do que aquela que foi

escolhida para Emmanuel, o Filho do Altíssimo.

Aprendi com os mestres da Judéia a arte de escrever em

papiros e a efetuar registros históricos. Esse é o meu ofício,

muito embora eu sempre quisesse ser guerreiro, um homem

que soubesse manejar uma espada, montar em cavalos e

usar arco e flecha e lança, como sabem muitos dos nossos

soldados. Devido ao meu porte franzino e minha excelente

memória, meu pai não me deixou seguir o seu ofício de

combatente judeu. Encaminhou-me muito cedo para a

escola de escribas, onde aprendi a ler e escrever, bem como

a redigir documentos de toda ordem. Aprendi várias línguas

com facilidade e, eventualmente, manifestava em sonhos o

dom da profecia. Por essa razão, chamei a atenção de um

dos meus mestres, que era um essênio, e um dia, me levou

secretamente para conhecer alguns dos outros membros da

fraternidade. Depois contarei em detalhes como isso

aconteceu.

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Conheço os pormenores da história do nosso povo, suas

conquistas, seus sofrimentos até os dias de hoje. Tentarei,

nos meus relatos, apresentar apenas os fatos mais

importantes para que, qualquer leitor, em qualquer tempo ou

lugar do mundo, possa compreender e confirmar a

veracidade do meu testemunho. Nem sempre os

historiadores relatam fatos reais. O teor dos seus escritos

geralmente depende da orientação de quem lhes paga para

escrever. Assim, os escribas judeus costumam escrever

apenas o que convém aos rabinos e aos governantes da

Judéia. Evitam contar algo que possa manchar a dignidade

do nosso povo. Os escribas romanos fazem o mesmo. Da

mesma maneira, fazem os persas, os árabes, os egípcios e os

gregos. Todos contam versões de um mesmo fato de modo

que nunca será possível se comprovar quem contou toda a

verdade. Eu entendo que cada povo tem seus brios, seu

orgulho e o desejo de retratar cada época vivida como um

sucesso. Mas nem sempre a vitória ocorreu conforme

apresentada nos relatos.

O que me faz diferente dos demais escribas? Por que você

deveria acreditar nas minhas palavras e não nos relatos

contados por outros escribas? Porque você poderá usar a sua

própria inteligência para comparar os escritos e descobrir as

falhas que eu mesmo irei apontar. Há também uma outra

grande razão para que você acredite nas minhas palavras: eu

também quero ter um lugar na história do meu povo. Não o

lugar de um traidor, mas de alguém que cumpriu a missão

de escriba, conforme lhe foi pedido e também de alguém

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que quer revelar a verdade por trás de tudo o que eu mesmo

escrevi. Eu fui apenas usado por meus irmãos da

fraternidade para cumprir o papel de escriba, não cabia a

mim discutir se o que faziam era correto ou não. Embora eu

tenha discordado deles algumas vezes, como você lerá. De

certo modo, eu até fui, durante vinte anos, seduzido pela

história que me pediam para eu escrever nos papiros.

Cheguei a acreditar que, mesmo sendo uma história criada

por um grupo de pessoas, tinha seu valor, já que ela foi

concebida por um grupo de homens dotados de grande

inteligência e sabedoria e teve o propósito de mudar para

melhor as leis do nosso povo e até de grande parte do

mundo. Esses homens detêm um imenso cabedal de

conhecimento e informação. Muitos já viajaram por todo o

Oriente e parte do Ocidente. Tudo o que eles querem é que

uma nova fé e uma nova maneira de viver se espalhe pelo

mundo e que, dentro de alguns séculos ou milênios, essa

fabulosa história seja lembrada e recontada. Que seja uma

história com poder de modificar a vida de homens e

mulheres que a conhecerem.

Quando eu comecei a escrever esses pergaminhos, a nossa

fraternidade ainda tinha a proteção do rei Herodes I, pois

Menahen era seu amigo e oráculo particular. Menahen foi,

durante muitos anos, o sacerdote-mor dos essênios da

Judeia. Com a morte trágica de Herodes, que sofreu uma

queda do cavalo ao completar setenta e seis anos de idade,

ficamos expostos e fragilizados. Muitos já foram mortos e

estamos sendo perseguidos. Os romanos nos odeiam e os

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nossos próprios irmãos judeus nos abominam. Já não temos

um lugar seguro para viver.

Para que você possa melhor entender como tudo aconteceu,

preciso te fazer um relato minucioso dos dias que vivi.

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Capítulo I - A invasão do Império Romano

Eu tinha dez anos de idade e estava, com os meus irmãos

mais novos, dando de beber às nossas cabras em um poço

próximo de nossa aldeia, quando vimos, ao longe, uma

poeira amarelada vindo em nossa direção.

- Benjamin... Calebe... Mirian! Corram para aquela gruta!

Vem vindo uma tempestade de areia. Vou tentar levar as

cabras para lá antes que a tempestade nos alcance – gritei

para meus irmãos.

Benjamim, que apesar de ser um ano mais moço do que eu,

demonstrava um grande poder de observação, fez sombra

no rosto com uma das mãos pequeninas e espichou o

pescoço queimado de sol na direção da poeira.

- Não é tempestade, são cavalos... são cavalos!

Meu coração disparou. Cavalos vindo em direção ao único

poço existente naquela região, só podiam ser romanos. E, se

fossem romanos, nós estaríamos em perigo, pois eles eram

considerados por meu povo como inimigos. Meu pai havia

lutado contra eles na batalha do Mar Negro, derrotando uma

legião de romanos. Depois disso, meu pai se tornou um

fugitivo e havia uma recompensa para quem o encontrasse

vivo ou morto. Minha mãe e nós havíamos nos mudado para

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um vilarejo ao norte de Jericó, onde vivia meu tio Hezron.

Meu tio era criador de cabras e ninguém sabia que ele era

irmão do meu pai, pois nunca havia nos visitado na época

em que Jerusalém foi invadida e saqueada pelos romanos.

Meu pai havia se alistado para servir ao exército e, por sua

destreza no uso da espada curva e da lança, logo granjeou

fama e se tornou subcomandante das guarnições zelotes, um

grupo de judeus especializados em espionagem e ataques

surpresa aos romanos e a outros inimigos da nossa terra.

- Vou matar esses cães sarnentos! – gritou meu irmão

Caleb, cuspindo no chão e enfiando a mão em seu saco de

pedras, ao tempo em que empunhava sua funda. Calebe

tinha apenas oito anos e, no nosso grupo de amigos, era o

campeão em atirar pedras. A funda era a arma mais usada

pelos pastores e camponeses de nosso povo. Essa arma

preferida de Calebe era feita com uma tira flexível de couro

de cabra, medindo dois dedos de largura e quatro palmos de

comprimento. Havia no meio da tira uma parte mais larga e

côncava, onde se colocava a pedra a ser atirada. Calebe

costumava enrolar as duas pontas da tira na sua mão

esquerda, pois era canhoto. Quando ele girava velozmente a

funda acima da cabeça e soltava uma das pontas, a pedra

viajava certeira na direção do alvo. Se fosse um pássaro ou

uma serpente, Calebe quebrava os ossos do animal,

causando um estrago tão grande que ele, por puro ato de

misericórdia, liquidava a vítima com outra pedrada

fulminante na cabeça. O sonho de meu irmão era, ao

completar quinze anos, entrar para o grupo dos

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Fundibulários que constituíam parte regular dos exércitos de

Judá. Uma espécie de grupo de elite de atiradores de pedras

com o uso de fundas.

Mirian e Benjamin já estavam correndo em direção à gruta,

que ficava a poucos metros do poço onde estávamos. Calebe

olhava em volta à procura de mais munição para a sua arma

de guerra e eu estava apavorado, sem saber se deveria

deixar para trás as 10 cabras, que eram toda a nossa fortuna,

ou se deveria me juntar aos meus irmãos e arrastar o

impetuoso Calebe para o interior da gruta, na esperança de

que os soldados romanos, depois de dar água aos cavalos,

seguissem em sua rota para Jericó.

A poeira aumentava no horizonte e eu sabia que, dentro de

pouco tempo, os cavaleiros chegariam até o poço. Todos

que viajavam pelo deserto da Judeia possuíam mapas para

encontrarem oásis e poços perenes, formados pela água

fresca que corria sob as rochas nas profundezas do chão

duro.

- Calebe, não seria melhor levarmos as cabras lá para dentro

antes que os soldados cheguem. Nossa mãe e tio Hezron

vão ficar desapontados se as deixarmos para os romanos.

Guarde suas pedras para uma próxima vez – implorei, na

esperança de que meu irmão teimoso me ouvisse.

- Malditos!! Malditos!! – praguejou o magricelo sardento,

juntando-se a mim e tocando as cabras na direção da

caverna, onde meus outros dois irmãos já estavam.

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De vez em quando, olhávamos no sentido da poeira que

parecia um fantasma vindo em nossa direção. Intimamente,

pedi a Javeh que nos protegesse.

Por muito pouco, os soldados não nos viram arrastar nossa

última cabra para dentro da caverna. De onde estávamos,

podíamos vê-los desmontando e conversando em voz alta.

Meus conhecimentos da língua romana e de muitas outras

me permitiam ouvir fragmentos da conversa quando o vento

sobrava em nossa direção.

- .... Herodes está criando uma serpente dentro de casa... vai

ser picado antes que se dê conta.... deveriam ser todos

queimados ou crucificados... Roma não vai tolerar essas

rebeliões... decepar todas as cabeças... temos meia dúzia de

espiões comprados no exército deles.... gostam de dinheiro,

pois irão gastá-los no Hades de que tanto falam...

Procurava conter a minha ira ao perceber o escárnio dos

romanos ao nosso povo. Tinha certeza de que se Calebe

pudesse entender o que falavam sairia da caverna com a sua

funda e os atacaria sem piedade.

Minha irmãzinha, Mirian, tremia de medo e tive que apertá-

la contra meu peito para que se acalmasse.

- Eles vão beber toda a nossa água... eles vão beber toda a

água do nosso poço – dizia ela, chorando baixinho.

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- Não vão... tem muita água lá. Logo irão embora. Javeh

está do nosso lado – dizia eu à minha irmã, agarrando-me a

um fio de esperança e fé que nem mesmo eu sabia que

possuía.

Benjamin e Calebe faziam cerco para impedir que as cabras

saíssem da gruta. Uma delas começou a balir alto.

- Benjamin, faça essa bendita cabra parar de berrar. Os

romanos não podem perceber que estamos aqui – disse eu

em pânico, ao tempo em que espiava para ver se algum

soldado havia ouvido.

Não ouviram. Pelo número de cavalos, calculei que eram

em torno de cem homens – as temidas centúrias romanas da

Ordem Equestre, formada por plebeus romanos

endinheirados que recebiam ordens diretas de César e

também dele toda a proteção possível. Um centurião era juiz

e carrasco de quem estivesse abaixo dele. Se achasse que

um homem ou mulher deveria morrer, passava-o no fio da

espada na presença de todos e não havia nenhuma outra lei

para julgar aquele ato. Mesmo os governadores temiam os

centuriões, pois eram homens agressivos, impiedosos e

gananciosos. Um quarto dos bens que saqueavam ficava

para eles, a outra parte ia para Roma.

Pelo tempo que pareceu uma eternidade, os romanos

continuaram gargalhando e conversando, como se não

tivessem pressa alguma de ir embora. As cabras estavam

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ficando nervosas, pois nem todas tinham bebido água

suficiente. Meus irmãos também pareciam aterrorizados.

De repente, um dos soldados afastou-se do grupo e

caminhou na direção da gruta onde estávamos. Alertei os

meus irmãos para que ficassem em silêncio e tapassem as

bocas das cabras para que não balissem.

Calebe deitou-se no chão da gruta ao meu lado, espiando

para fora. Ao lado dele, havia um saco de pedras de vários

tamanhos, todas preparadas para serem disparadas por sua

funda mortal. No templo, nós já havíamos escutado diversas

vezes a história do valente Davi que, antes de se tornar rei,

matou o gigante Golias com uma pedrada certeira de sua

funda. Davi fora o inspirador de meu irmão. Nós

poderíamos morrer ali mesmo, degolados pelas afiadas

espadas dos romanos, minha irmã poderia ser estuprada e

morta, mas, com certeza, alguns deles iriam morrer antes,

atingidos pelas pedradas mortais disparadas por meu irmão.

Senti um grande orgulho dele naquele momento. Minha

natureza era parecida com a dele, mas eu fora desencorajado

por meu pai a seguir uma carreira militar. Meu espírito de

guerreiro fora amortecido pelos livros sagrados que aprendi

a ler desde pequeno. Benjamin era parecido comigo, no

entanto, mais astuto em todos os sentidos. Ele também

falava o latim, língua dos romanos, e era sempre quem

resolvia os nossos pequenos e grandes problemas. Corri

para obter dele um conselho.

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- Benjamin... um dos soldados romanos está vindo em

direção à nossa caverna... você tem uma ideia do que

devemos fazer?

Benjamin colocou o dedo indicador em forma de gancho no

lábio inferior e, depois de um tempo que parecia demasiado

longo frente aquela situação, disse:

- Tenho sim. Mas vocês precisam confiar em mim. E não

deixe Calebe atirar nenhuma pedra, aconteça o que

acontecer.

- O que é? Qual é o seu plano? O que podemos fazer? –

disse eu aflito.

- Confiem em mim... apenas isso. Se o soldado chegar perto

da caverna, eu irei falar com ele. Vocês ficam aqui dentro.

Eu podia agora ver a poeira levantada pelas sandálias de

couro do soldado romano, a qual ia dos pés até ao joelho.

Ele estava vindo na direção certa da caverna. Usava um

saiote branco que parecia ser de seda e, sobre ele, um outro

de cor preta, feito de tiras de couro. Na cintura, presa ao

cinturão de metal, a temível espada romana cujo

comprimento chegava à panturrilha. Pude ver um escudo

metálico em seu peito e, por baixo dele, uma veste branca

de manga curta que deveria fazer parte do saiote. Ele usava

ainda ombreiras de cobre nos dois lados e tudo indicava que

era um dos líderes do grupo.

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Olhei para trás e vi meus irmãos, exceto Calebe, ajoelhados

com as mãos postas, recitando alguma coisa que parecia ser

uma oração ininteligível. Deveria ser a última que fariam

nesta vida. Eu tive vontade de me juntar a eles, mas fiquei

paralisado ao ver o soldado desembainhando a sua espada e

se aproximando mais cautelosamente da entrada da caverna,

como se suspeitasse de alguma coisa.

Benjamin, correu na direção das cabras e depois passou

velozmente sobre mim e saiu da gruta, enrolando o rosto no

turbante.

O soldado romano, ao ver o menino correndo em sua

direção, empunhou a espada com as duas mãos. Bastaria um

movimento dele e eu veria a cabeça de meu irmão voar

pelos ares. Os romanos sabiam que éramos seus inimigos e

não nos poupariam. Fechei os olhos com tanta força que as

lágrimas que inundaram meus olhos saíram espremidas

pelos cantos. Minhas mãos e todo o corpo tremiam e

transpiravam de medo, o que foi agravado pelo calor do dia.

Meu irmão estava agora face a face com o romano.

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Capítulo II - A Resistência do Povo Judeu – a

Destruição de Massada

Se eu estou relatando aquele episódio do dia em que meu

irmão Benjamin, sozinho, enfrentou um soldado romano e,

com a sua enorme astúcia, livrou-nos da morte certa e ainda

salvou as nossas cabras, as quais, com certeza, fariam parte

de um grande banquete romano, é porque eu tinha uma

missão a cumprir, assim quero crer.

Das muitas coisas que aprendi no caminho com os meus

irmãos Essênios é que nada neste universo acontece por

acaso. O acaso é só uma palavra para explicar o que não

conhecemos. Se algo acontece, então não é acaso, é o

resultado de uma ação ou de um conjunto delas, que a

maioria de nós desconhece. Tudo está interligado e segue

um curso misterioso.

Na minha família, eu podia ver nitidamente o quanto Javeh

havia nos abençoado. Minha mãe, Judith, era carinhosa,

zelosa dos filhos e esposa dedicada. Meu pai a desposara

quando ela tinha quatorze anos e não quis aceitar o dote da

família, pois eram muito pobres. Meu pai a amava e, se

estiver vivo, ainda a ama muito, pois tudo que fez na vida

foi para nos proteger dos invasores e nos dar melhores

condições de vida. O soldo que ganhava como soldado do

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exército judeu nos proporcionava uma vida melhor do que a

da maioria das demais famílias que viviam da pesca,

pastoreio ou lavoura.

Quando meu pai se envolveu na batalha do Mar Morto,

enfrentando uma centúria romana com apenas dez soldados,

somente três judeus sobreviveram junto com meu pai e dois

romanos feridos fugiram. Foram eles que reconheceram e

denunciaram meu pai, tornando-o um foragido.

Conta-se que o Imperador César Augustus, tio de Lucius de

Gália, ficara tão furioso com o incidente que ofereceu uma

recompensa de sessenta moedas de prata para quem

encontrasse meu pai ou levasse a sua cabeça para Roma.

Meu pai tinha muitos amigos e, provavelmente, havia

fugido para o Egito, tornando a sua captura mais difícil. Se

a minha mãe não tivesse sido instruída por meu pai a fugir

conosco, no meio da noite, para o deserto, para depois

refugiar em Jericó, vilarejo onde meu tio Hezron vivia

pastoreando ovelhas, todos nós estaríamos mortos.

Meus irmãos, todos eles tinham qualidades especiais.

Mirian, a mais moça era divertida e sempre procurava nos

animar com suas canções e brincadeiras. Nós a protegíamos

e a amávamos. Calebe era o nosso guerreiro, corajoso e

destemido, estava sempre pronto para enfrentar o que fosse.

Mesmo meu pai tinha dificuldade para controlá-lo. Apenas

minha mãe, com seu jeito amoroso, continha a fúria de

Calebe. Benjamin era o mais esperto de nós. Sempre

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contava histórias e resolvia os nossos problemas. Chegou a

aperfeiçoar uma funda para Benjamin, para possibilitar o

arremesso de duas pedras simultaneamente. Essa arama

mortal poderia provocar grandes ferimentos em quem fosse

alvejado. Também era ele o negociante, quando íamos ao

mercado fazer compras, minha mãe o encarregava de fazer

os negócios. Benjamin trocava uma cabra velha por tecidos

e calçados três vezes mais valiosos.

Eu, no entanto, não acreditei que ele teria sucesso com o

soldado romano. Não naquele dia. Nos não tínhamos para

onde fugir e o soldado iria nos achar escondidos.

Ficamos grudados um nos outros enquanto Benjamin

gesticulava e se aproximava do soldado. Eu não podia ouvir

direito o que ele dizia, pois pareciam apenas grunhidos sem

sentido. Quanto mais ele se aproximava, mas o soldado se

afastava, até que o romano começou a correr de costas na

direção dos companheiros que, ao vê-lo, desembainharam

suas espadas e olharam com espanto em direção à nossa

caverna.

Em seguida, vimos todos os soldados correrem para seus

cavalos montarem e dispararem rumo à estrada na direção

de Jericó. Um milagre havia acontecido, Javeh havia

poupado nossas pobres almas. Mas, nesse caso, o Senhor

havia usado a inteligência de meu irmão para nos livrar dos

romanos.

24

Estávamos ainda paralisados sem entender o que tinha

acontecido lá fora, quando Benjamim voltou pálido como

um cadáver, ainda meio trêmulo. Havia um sorriso amarelo

em seu rosto e eu pude ver que era medo misturado à

alegria.

- Benjamin, o que aconteceu? O que você falou aos

romanos? Conte logo...

Somente depois que me aproximei do meu irmão foi que

percebi que o seu rosto estava enlameado com excrementos

e xixi de cabra. Os braços e mãos também. Nem em mil

anos eu pensaria em afugentar soldados romanos com cocô

de cabra que, embora tenha um odor muito forte quando

misturado à urina, isso não seria suficiente para fazê-los

correr em desespero daquela forma. Deveria ser outra coisa.

Agora todos nós estávamos abraçando Benjamin,

esquecemos o cheiro horrível que exalava do corpo dele.

Definitivamente, sabíamos que os romanos estavam longe.

A poeira agora se distanciava. O mesmo fantasma que

trouxera agonia e medo agora nos dava alívio e alegria.

- O que fez o soldado romano fugir? O que você disse a ele?

Você falou alguma coisa sobre o nosso pai? Você disse a

eles onde havia um tesouro, foi isso?

Benjamin apenas respondeu:

25

- Eu disse ao soldado que era leproso e que toda a minha

família que estava dentro da caverna eram todos leprosos.

Disse também que tínhamos bebido água naquele poço e

que se eles não fossem embora depressa poderiam ficar

contaminados. Foi só isso o que eu disse.

A lepra é uma das piores doenças que acomete o nosso

povo. O sacerdote Mehahen disse que não era uma doença

contagiosa. Ele mesmo havia tratado de muitas pessoas com

lepra e não se contaminara. Mas, a aparência horrível de um

leproso afastava qualquer um, mesmo os próprios familiares

os expulsavam para o interior de cavernas longe dos demais.

Cuidavam de levar comida e roupas para eles, deixando-os

longe, para que fossem recolher. Os Essênios vêm

estudando essa e outras doenças há muitos anos e alguns

que estiveram ao leste do Oriente trouxeram boas novas.

Talvez chegue o dia em que os leprosos já não precisem

mais viver ocultos em cavernas e sejam curados.

Foi o medo da lepra que afugentou os soldados romanos. A

simples menção da palavra lepra era suficiente para fazer

tremer as pernas de um centurião romano. Uma simples

mentira teve o poder de salvar as nossas vidas. Também era

uma simples mentira que tinha o poder de matar uma

pessoa. Tudo dependeria da fé de quem a ouvisse. Não seria

atingido nem para o mal nem para o bem aquele que não

desse crédito a uma mentira. Os Essênios me ensinaram que

havia mentiras que podiam se transformar em verdades e

muitos morreriam por ela, muitos a defenderiam como

26

verdade absoluta. Tudo dependeria da forma como essas

mentiras fossem contadas.

As inúmeras histórias que li e ouvi contar no templo,

oriundas do Torá e do Talmud, que são os livros da tradição

histórica e religiosa do nosso povo, estão cheios de

parábolas que nada mais são que contos de fácil

memorização e muito simples de serem compreendidas,

criados para transmitir algum tipo de ensinamento. São, nas

palavras do sacerdote Menahen, “doces mentiras que podem

levar a amargas verdades”. A verdade sempre é dolorosa.

Os seres humanos nunca estarão devidamente preparados

para ela, por isso inventam tantas histórias para torná-la

melhor aceita. E, como já fiz referência no prólogo, as

histórias sempre estarão manchadas pelos dedos de quem as

escreve ou pelos interesses de quem pagou para serem

escritas.

Um dia, perguntei ao meu mentor espiritual, irmão Abner,

como podia ter certeza de que os livros que embasavam a

nossa religião tinham sido inspirados por Javeh, o nosso

único Deus e Senhor. Ele acariciou a longa barba e me

respondeu:

- Inspiração divina são todas as ações humanas que buscam

tornar a vida sobre a terra mais fácil de viver, com menos

guerras, mais amor, paz e abundância para todos. O seu

oposto, chamamos de inspiração satânica. No entanto, tudo

depende do lado em que se está.

27

- Então muitas histórias contadas no Torá e no Talmud

podem não ser verdadeiras e sim lendas para transmitirem

alguma mensagem.

- Sim Matias, é isso mesmo. A inspiração divina é isso.

Você se lembra das histórias dos nossos antigos reis, não

lembra? São muitas e há uma em especial que fala sobre o

rei Saul.

“Os filisteus lutaram contra os israelitas no monte Gilboa.

Muitos israelitas foram mortos ali e o resto fugiu. Entre os

que fugiram, estavam o rei Saul e os seus filhos. Mas os

filisteus os cercaram e mataram Jônatas, Abinadabe e

Malaquias, filhos de Saul. A luta estava feroz em volta de

Saul, que foi atingido por flechas inimigas e ficou muito

ferido. Então ele disse ao rapaz que carregava as suas

armas:

— Tire a sua espada e me mate para que esses filisteus

pagãos não caçoem de mim.

Mas o rapaz estava muito apavorado e não quis fazer isso.

Então Saul pegou a sua própria espada e se jogou sobre ela.

Quando viu que Saul estava morto, o rapaz também se

jogou sobre a sua própria espada e morreu junto com ele. E

assim Saul e os seus três filhos morreram juntos e nenhum

dos seus descendentes se tornou rei. Quando os israelitas

que moravam no vale de Jezreel souberam que o exército de

Israel havia fugido e que Saul e os seus filhos tinham sido

mortos, abandonaram as suas cidades e fugiram. Então os

filisteus foram e ocuparam aquelas cidades.

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Um dia depois da batalha, quando os filisteus voltaram lá

para tirar dos mortos e as coisas de valor, acharam os corpos

de Saul e dos seus filhos caídos no monte Gilboa. Então

cortaram a cabeça de Saul e pegaram as armas dele. Depois

mandaram mensageiros com elas para o território filisteu a

fim de darem as boas notícias aos seus líderes e ao povo.

Eles puseram as armas dele num dos seus templos e

penduraram a sua cabeça no templo de Dagom, o deus

deles. Quando o povo da cidade de Jabes, em Gileade,

soube do que os filisteus haviam feito com Saul, os mais

corajosos foram, pegaram os corpos de Saul e dos seus

filhos e os levaram para Jabes. Eles os sepultaram debaixo

de um carvalho e jejuaram sete dias.

Saul morreu assim porque foi infiel a Deus, o Senhor. Ele

desobedeceu aos mandamentos de Javeh e consultou os

espíritos dos mortos, em vez de consultar o Senhor. Por

isso, Deus o matou e entregou o reino a Davi, filho de Jessé.

- Sim, eu me lembro dessa história. Ela de fato aconteceu?

E se aconteceu, como pode Javeh ter entregado aos inimigos

seu próprio povo que o adorava? Apenas para punir Saul

tirou a vida dele? Se a Lei proibia consultar os mortos, não

poderia ter o Senhor ferido a Saul e salvado o seu povo

temente e adorador?

- Sim, poderia – respondeu-me o irmão Abner – Mas que

lição ficaria para os demais? A história foi escrita para dar

conhecimento do preço da desobediência. Se havia uma Lei

para ser seguida, quem deixasse de cumpri-la seria punido.

29

- Mas nesse caso, além de Saul que havia cometido a

desobediência, os soldados e o povo também sofreram as

consequências.

- Você está certo, meu bom rapaz – disse-me, meu primeiro

mestre Essênio, batendo-me no ombro – um dia você

entenderá a razão de nós Essênios existirmos. Nós

cumprimos a Lei, mas também queremos modernizá-la.

Queremos atualizá-la. Faz muito tempo que o nosso povo

vem sendo conduzido pela Mão de Ferro do nosso Deus.

Chegará o dia em que já não precisaremos dessas histórias

para agirmos de modo correto.

- Então essa história do Rei Saul foi criada pelos rabinos do

passado? Elas só tem valor filosófico e moral? Foi trazida

até nós para nos ensinar a obediência às leis? Saul não

poderia ter ditado as suas palavras para um escriba e nem

mesmo ao seu guardador de armas. Quem escreveu essa

história o fez com o objetivo de deixar uma lição. Foi isso,

irmão Abner?

- Já faz tanto tempo que essa história foi contada e

recontada que seria quase impossível dizer que ela chegou

até nós da mesma maneira que ocorreu. Pode ser que Saul

não tenha sido sacrificado por castigo do Senhor, mas foi

assim que o povo viu o acontecimento e o escritor seguiu o

que pareceu mais apropriado à Lei naquele momento. Todos

sabiam que a Lei condenava a feitiçaria e a consulta aos

quiromantes. Mesmo um Rei não podia invocar ajuda aos

mortos. O Rei Saul achou que estava acima das leis.

Ninguém pode está acima das leis, você deve saber disso.

As leis, justas ou injustas, foram criadas para organizar a

30

vida sobre a Terra. Sem elas, cada um poderia fazer o que

quisesse e o mundo dos homens já teria sido destruído, só

restando os animais, os quais têm também suas regras e

organização.

- Isso quer dizer que a missão dos Essênios é mudar as leis,

torna-las mais justas e melhor para todos?

- Sim, mas não somente isso. Nossa fraternidade tem, ao

longo de muitos anos, se dedicado a entender o mistério da

vida e busca uma forma de viver que seja menos agressiva a

Terra. Busca uma forma de viver que seja baseada na

fraternidade, no respeito ao outro.

- Pelo que entendo, o senhor está me dizendo que nós

vamos modificar as leis que já existem a milhares de anos?

Vamos contrariar as Leis de Moisés e dos demais profetas?

- Tenha cuidado com suas palavras, Matias. Não coloque

palavras na minha boca – disse o mestre sorrindo. O que

estou dizendo e que talvez seja a hora de contarmos uma

nova história que terá mais poder que as que já foram

contadas. Muitos acreditarão nela, outros não. Mas não

importa. No fim, colheremos alguma coisa de boa. Você

sabe que quando fazemos uma semeadura, algumas

sementes caem em solo fértil e dali nascem boas plantas que

também dão frutos. Outras caem em terreno árido e

morrem. As ideias e as histórias são assim também. Pode

ser que muitas sementes que plantarmos hoje venham

nascer, frutificar e se reproduzirem, para que o mundo

inteiro possa ser alcançado. É o princípio da semeadura.

Você ainda tem muito o que aprender sobre essa lei. Há

31

plantas que curam doenças e cada uma delas, sem exceção,

tem uma função no equilíbrio da nossa vida. Se uma deixar

de existir, outras também deixarão e, com o passar dos

tempos, haverá desequilíbrio. Insetos, animais, rios e

montanhas se modificarão por causa disso. Histórias são

como sementes, mais tarde ou mais cedo, você perceberá o

poder delas.

Eu ficava a cada dia mais fascinado com os ensinamentos

dos Essênios que até esquecia da minha família e da guerra

que meu povo estava travando contra os invasores.

Herodes, ao assumir o reinado sobre a Judeia, queria manter

boas relações com o nosso povo e, por essa razão,

estabeleceu instituições culturais em Jerusalém, construiu

majestosos edifícios públicos e remodelou o templo,

transformando-o num edifício de glorioso esplendor. Por

algum tempo, conseguiu aplacar a ira dos sacerdotes.

O nosso templo já havia sido saqueado e incendiado muitas

vezes, tendo o Rei da Babilônia, Nabucodonosor II, levado

os nossos tesouros e destruído grande parte dele. Assim,

Herodes começou, nos primeiros anos do seu reinado,

reformar o nosso templo e também reconstruir e ampliar

uma das nossas antigas fortalezas sobre o monte Massada,

uma rocha com quase 500 metros de altura de onde

podíamos ver todo o esplendor do Mar Morto, o nosso mar

de sal que fica na foz do Rio Jordão, formando um grande

lago, onde é impossível um homem morrer afogado.

Eu era menino quando a fortaleza foi reconstruída. Meu pai

e eu costumávamos ficar sentados à sombra de uma

32

figueira, à beira do lago, enquanto os carregadores iam e

vinham levando madeira, blocos de pedras e todo material

envolvido na grande reconstrução.

- Pai, porque a gente não afunda no Mar Morto? Seria

possível um homem andar sobre ele?

- Eu realmente não sei, Matias. Isso é um mistério. Talvez

você um dia venha a descobrir nos livros. Infelizmente, eu

não sou um homem de letras. Tudo o que sei, aprendi

ouvindo os Rabinos e Sacerdotes no templo. Você que tem

o dom da escrita e leitura, quem sabe um dia me dirá... –

disse meu pai sorrindo e batendo em meu ombro.

Poucas vezes vi meu pai sorrir. Grande parte do tempo, ele

estava treinando as artes de combate. Eu tinha muito

orgulho de meu pai por saber que ele se preparava para uma

grande batalha. Eu só não queria que ele morresse lutando.

Queria que ele vivesse muitos anos para celebrar seu

heroísmo.

Foi meu pai quem me chamou a atenção para um fato

curioso.

- Veja Matias, essa fortaleza tem o nome do monte:

Massada, e está sendo reconstruída pelos romanos para ser a

mais bem guardada fortificação jamais construída.

Trouxeram engenheiros de Roma, da Grécia e do Egito para

ajudar e quando ficar pronta poderá abrigar mais de 15 mil

homens, terá um palácio, muros com seis metros de altura

e dois de largura, impossíveis de serem derrubados com as

armas de guerra que temos. Só existem dois caminhos para

33

chegar até o topo da montanha: o caminho da cobra, pelo

lado oriental que é tão estreito que um homem terá que

colocar um pé à frente do outro para caminhar por ele. O

outro, no lado ocidental, será guarnecido com uma muralha

com mais de 50 metros de altura e terá quatro portões e

mais de trinta torres. Os romanos pensam que estarão

seguros lá dentro, mas não estão. Um dia nós tomaremos de

volta o que nos pertence.

- Dizem que estão construindo piscinas gigantescas lá

dentro do novo palácio, é isso mesmo, meu pai?

- Sim meu filho. Herodes mandou trazer de Roma e da

Grécia pisos de mosaicos, afrescos dos melhores pintores do

Império, colunatas de mármore e até uma grande piscina.

Para garantir a autossuficiência, ele vai plantar hortaliças e

grãos. Dez cisternas estão sendo escavadas na rocha para

coletar água da chuva, com capacidade para mais de 40

milhões de litros. As despensas guardarão jarros de azeite,

vinho, farinha e frutas. Um almoxarifado poderá estocar

armas suficientes para um exército de dez mil homens.

Tudo isso nos pertence, Matias... os romanos enriquecem às

nossas custas. Nos usam como escravos. Um dia pagarão

com a vida por esse ultraje.

Naquela época, eu não poderia compreender que meu pai se

referia ao projeto audacioso dos judeus para a retomada da

fortaleza de Massada que ocorreu logo depois que Herodes,

o Grande, morreu e assumiu o trono seu filho mais velho,

Herodes Arquelau, considerado incompetente pelo governo

de Roma.

34

Quando Arquelau ocupou o lugar do pai, eu já havia

cumprido grande parte da minha missão de escriba do

templo como também a minha outra atividade secreta junto

aos irmãos da fraternidade essênia. Eu fora advertido que

deveria sair de Jerusalém antes da captura de Massada pelo

nosso povo. A proteção que a fraternidade tinha

conquistado durante o reinado de Herodes o Grande, já não

mais existia. Os romanos queriam destruir qualquer grupo

que não os apoiasse abertamente. Essa talvez tenha sido

uma das grandes motivações para que os zelotes

planejassem invadir a fortaleza de Massada e recuperar os

bens que julgavam seus.

Os zelotes formavam um grupo de guerreiros especiais

responsáveis pelo ataque e tomada de Massada. Após

muitos anos de espionagem, comprando mapas dos

arquitetos que haviam ajudado a reconstruir a fortaleza, um

grupo de judeus, comandados por Eleazar, decidiu invadir a

fortaleza, aproveitando a ausência do rei Herodes Arquelau

que havia viajado para Roma para a celebração da grande

festa do Solsticio de inverno, a noite mais longa do ano.

Fingiram ser serviçais e entram na fortaleza envenenando os

guardas dos portões durante a festa em que a guarda

palaciana também celebrava. Misturaram um poderoso

veneno ao vinho e em outros alimentos servidos aos

romanos. Logo que os efeitos começaram a aparecer, os

portões foram abertos para a entrada dos comandados de

Eleazar, os quais completaram a missão.

Os invasores tiveram sucesso e, na manhã daquele dia,

contou-se que seis mil soldados romanos haviam sido

35

decapitados e apenas dez do nosso povo haviam morrido em

combate.

Aquela foi uma batalha sangrenta que trouxe sofrimento a

muitos do nosso povo e fez com que vários dos nossos

fugissem para outras terras para evitarem a perseguição dos

romanos. Muitos dos irmãos essênios foram perseguidos e

mortos naquela época.

Roma, ao saber da captura de Massada, iniciou uma

campanha para retomar a fortaleza e, ao mesmo tempo,

destruir o grande Templo de Jerusalém, em represália à

morte dos romanos e pelo fato de ter sido Herodes, o

Grande o rei que havia reconstruído o templo com a ajuda

de mestres de obras e engenheiros do Império.

Durante seis anos, os zelotes permaneceram no controle de

Massada, muito embora tenha surgido divergência entre

eles, ainda que parte do povo judeu tivesse ficado orgulhosa

com a captura e morte dos soldados romanos. Isso porque,

os zelotes decidiram impor a lei e a ordem segundo seus

próprios conceitos. Sentenciavam e matavam pessoas do

seu povo de acordo com normas particulares. Não

obedeciam mais a Lei e os profetas de Javeh.

Os romanos, embora tivessem ocupado outras cidades da

Judeia, queriam de volta o domínio da capital. Mas, para

isso, precisavam recuperar Massada, cuja perda fora uma

grande desonra para o império e para Herodes Arquelau.

Uma legião formada pelos melhores generais romanos,

experientes em combates na Grécia e na Pérsia, foi

36

deslocada para invadir Jerusalém. Na ocasião, havia dois

outros redutos judaicos, Herodion e Maqueronte, os quais

foram completamente destruídos e os seus ocupantes

decapitados e crucificados. Os romanos fizeram uma

macabra avenida com cinquenta quilômetros de extensão,

lado a lado, com milhares de cruzes, onde pregavam os

corpos dos judeus feridos em combate. Não era permitido a

ninguém que os retirassem da cruz até que seus corpos

fossem comidos pelos corvos. Assim o fizeram, para

aterrorizar a todos que entrassem ou saíssem de Jerusalém.

Desse modo, saberiam o que lhes aconteceria, caso fizessem

parte de algum grupo de revoltosos.

A fortaleza de Massada, que fora dominada pelos zelotes,

foi entregue ao novo procurador, o General Romano, Flávio

Silva.

Eu não estava mais em Jerusalém naquela época, mas

acompanhava as notícias da iminente invasão do lugar.

Meu coração se entristeceu e durante muitas noites eu

acordava tendo visões de morte. Temia pela vida de meu

irmão Calebe que era, na época, comandante dos temíveis

fundibulários. Ele fora um dos invasores na ocasião em que

Massada foi tomada de assalto. Em minhas orações, eu

pedia ao Senhor que poupasse a sua vida, mas sabia que o

destino do meu intrépido irmão havia sido selado por ele

mesmo, desde pequeno. Ele havia tomado nas mãos a

missão de salvar o seu povo e o fazia da melhor maneira

que podia: matar cada soldado romano que cruzasse o seu

caminho.

37

Silva marchou em direção a Massada com a poderosa e bem

treinada Décima Legião e uma tropa auxiliar de oito mil de

soldados, além de milhares de prisioneiros judeus que

trabalhavam como escravos, produzindo alimentos e

fornecendo água para o exército.

O general romano estudou por semanas a fio as diversas

possibilidades para retomar a fortaleza e, ao fim de certo

tempo, decidiu cercar Massada por oito acampamentos,

sendo que o principal deles foi construído do lado sul da

fortaleza, de onde puderam observar toda a movimentação

dos zelotes, ou sicários, como também eram chamados

pelos romanos.

A segunda estratégia de Silva foi construir uma gigantesca

muralha de três quilômetros de extensão e quase dois

metros de espessura, circundando toda a montanha. O

objetivo era impedir a entrada de suprimentos de qualquer

natureza aos zelotes, bem como servir de obstáculo à fuga

dos mesmos durante o confronto.

Com a ajuda dos engenheiros e estrategistas militares, o

general romano decidiu que seria necessário construir uma

plataforma até o topo da montanha onde se encontrava o

forte, pelo lado oeste, que era mais baixo, e, desse modo,

poderiam transpor a muralha que o protegia.

Os trabalhadores recrutados para essa gigantesca obra eram

todos judeus e os zelotes não puderam atirar pedras ou

flechas sobre seus próprios irmãos, já que também

pertenciam ao nosso povo e estavam subjugados pela mão

38

de ferro de Roma. Matá-los seria enfraquecer ainda mais o

nosso povo.

As tropas comandadas por Silva levaram grande quantidade

de terra e pedras para o local e usaram vigas de madeira de

tamargueira, com cerca de um metro de comprimento, para

escorar a pilha de entulho. Com esse material, construíram

um plano inclinado de quase duzentos metros.

Ao fim de alguns meses de trabalho bem planejado, a rampa

foi concluída e as enormes máquinas de guerra dos romanos

entraram em ação. Uma dessas torres tinha cerca de trinta

metros de altura, e, lá de cima, os romanos lançavam uma

chuva de setas e pedras sobre os encastelados.

Aquela gigantesca torre transportava um poderoso aríete,

composto de uma enorme tora de madeira, com uma ponta

de ferro no formato de cabeça de carneiro. A tora era

suspensa por cordas presas à máquina de guerra. Os

soldados empurravam a máquina até perto da muralha ou

dos portões e, ao chegarem a uma distância suficiente,

puxavam a tora para trás e depois a empurravam para a

frente com toda a força. Os romanos imaginavam que

conseguiriam derrubar as muralhas com tal aríete.

No entanto, apesar de sucessivas investidas contra os muros

de Massada, esses não cediam e pareciam instransponíveis.

O que não sabiam é que os zelotes, ao perceberem as

manobras do general romano, usaram um sistema

engenhoso para reforçar toda a muralha por dentro. Eles

construíram uma segunda muralha, usando vigas dos

telhados das construções existentes na fortaleza além de

39

demolirem edifícios que não teriam grande utilidade, para

usarem o entulho formado de pedras, para encher o espaço

entre a muralha de madeira e a externa, a qual estava sendo

golpeada pelos os romanos. Essa segunda muralha interna

tinha quase vinte metros de espessura e uma altura de dez

metros. Quanto mais o aríete romano golpeava a muralha

externa, mas a terra entre os dois muros se compactava e o

tornava mais e mais impenetrável.

O general Silva ficou furioso com o insucesso. Não voltaria

para Roma sem ter reconquistado Massada. Indagou aos

engenheiros uma forma de destruir essa nova muralha e quis

saber como os zelotes a haviam construído, já que durante

quase seis meses eles estiveram acampados em volta da

fortaleza e ninguém havia entrado na fortaleza ou saído de

lá, o que tornaria impossível o carregamento de terra ou

pedras. Um engenheiro egípcio, especializado em

construções de fortalezas, concluiu que só madeira poderia

suportar o impacto dos aríetes romanos. E, por isso, a única

maneira de destruir a muralha interna seria com o

lançamento de setas incendiárias. Naquele mesmo dia, logo

que um vento sul soprou na direção da fortaleza, o general

Silva ordenou que os arqueiros disparassem sobre Massada,

a um só tempo, duas mil flechas flamejantes com as pontas

embebidas em azeite. Em poucos minutos, viram as

labaredas subirem e o céu enegrecer com a fumaça. A

fortaleza não estava preparada para tal ofensiva.

Mas a mão de Javeh estava sobre o nosso povo e um vento

contrário fez as chamas se voltarem na direção das tropas

inimigas, que tiveram que recuar e aguardar outro momento

propício.

40

Porém, naquela mesma noite, duas mil flechas incendiárias

riscaram os céus de Jerusalém e caíram como estrelas

cadentes sobre a fortaleza de massada, queimando o que

havia sobrado das muralhas internas. Agora as torres

poderiam atacar o forte usando aríetes para destruírem o

muro externo.

Embora os subcomandantes das tropas romanas estivessem

ansiosos para invadir Massada, o comandante quis esperar

até o dia seguinte, ao avaliar que seria mais estratégico uma

batalha em plena luz do sol. Ele não queria passar pelo

vexame de ser surpreendido por alguma armadilha criada

pelos zelotes. Assim, permaneceu com os legionários

acampados, afiando suas espadas, aparelhando seus cavalos

e estudando uma ofensiva mortal, indefensável, sobre a

mais bem guardada de todas as fortalezas em poder dos

judeus.

No interior da fortaleza, Eleazar Ben Jair enfrentava um

grande dilema. Convocou seus líderes para a tomada de uma

decisão.

- Os romanos vão esperar até o amanhecer para nos

atacarem. Nossos alimentos já estão quase esgotados, nossa

água foi usada para apagar parte do incêndio. Nossos

homens estão fracos, pois estamos vivendo com uma

pequena ração de alimentos há meses – disse Eleazar aos

seus líderes.

- Vamos continuar lutando, irmão. Morreremos lutando.

Não vamos nos render a esses porcos romanos – Disse

Calebe.

41

- Seja razoável, Calebe. Podemos fazer um acordo com os

romanos e salvarmos nossos filhos, nossas mulheres e

alguns dos nossos soldados. Sabemos que eles não pouparão

a nós que lideramos as tropas. Nós seremos crucificados

para servirmos de exemplo.

- Afinal, não é essa a terra que Javeh nos deu como

herança? Não foi ele quem deu a vitória aos nossos

antepassados como Davi, Salomão, Moisés e tantos outros?

O que temos a temer? – bradava meu irmão, agitando os

braços no meio do círculo formado pelos outros 11 líderes,

incluindo o comandante.

- Eleazar está certo, irmão Calebe. Nós já humilhamos os

romanos durante sete anos. Recuperamos o que nos

pertencia. Fizemos Roma ajoelhar-se perante nós. Agora

seria o momento de fazermos um acordo – argumentou o

chefe dos arqueiros.

- O que temos a oferecer? Os romanos já sabem que nos

vencerão. Cuidaram para que não tivéssemos opção.

Cortaram o fornecimento de alimentos e nossos filhos já

passam fome. Nós nunca os chamamos para qualquer

negociação. Como poderemos agora querer negociar? Não

temos nada! Nada!

- O irmão Calebe está certo, Eleazar. Neste momento não

temos escolha. Uma rendição agora de nada servirá.

Podemos nos render, mas seremos mortos de igual modo e,

provavelmente, ainda estuprarão nossas mulheres e filhas.

Elas irão odiar a nossa covardia enquanto viverem e os

42

filhos delas nos amaldiçoarão também. Não podemos deixar

que nossas mulheres sejam prisioneiras dos romanos.

- Sim!! Não podemos! – bradaram todos em uníssono.

Apenas Eleazar ficou em silêncio, andando em círculo,

acuado, confuso, sem saber o que fazer.

- Quanta falta faz o seu irmão aqui, Calebe. Benjamin não

deveria ter nos deixado. Se ele estivesse conosco, com

certeza, ele encontraria uma solução para esse dilema. Seu

irmão foi o melhor estrategista que já tivemos.

- Meu irmão é um covarde. Fugiu para a Grécia na primeira

oportunidade que teve. Não tinha estômago para matar...

- Não chame aqueles que não têm coragem de matar de

covarde, pois covarde é aquele que não assume seus

próprios sentimentos. Ele não conseguia odiar os romanos

como nós. Foi corajoso para assumir isso publicamente.

- Até se casou com uma romana, não foi Calebe? – disse um

dos líderes, em tom de zombaria.

Calebe voltou-se bruscamente para Jadel e o agarrou pelo

pulso.

- Não fale de meu irmão, seu cretino. Só um irmão tem o

direito de criticar o outro. Você nem o conheceu direito...

- Calma irmãos... – Eleazar interrompeu a discussão,

interpondo-se entre os dois – Guardem todo esse ódio para

os nossos inimigos que estão lá embaixo esperando o dia

43

amanhecer para nos atacar e nos matar. Eu já tomei uma

decisão.

Alguns homens que estavam agachados em volta da

fogueira prontamente se levantaram.

- Reúnam todos os chefes de famílias que estão conosco.

Traga-os aqui, agora.

Os líderes não fizeram mais perguntas. Foram aos

alojamentos onde estavam todos os chefes de família e os

conduziram ao centro da fortaleza.

Uma lua cor de sangue alumiava os semblantes dos homens.

As chamas da fogueira lambiam o ar da noite com suas

línguas de fogo, adivinhando o porvir. Um vento leste

soprou por sobre as muralhas, trazendo o frio da noite e o

anjo da morte. Javeh parecia haver esquecido de nós.

- Irmãos de luta... eu os chamei aqui para dizer que nossa

luta ainda não está terminada. O Senhor me inspirou para

vos dirigir essas palavras. Esse dia entrará para a história do

nosso povo, da mesma forma que se dá com o dia da

tomada de Massada. No alto desta montanha, escreveremos

nossos nomes com sangue. Assim como os nossos pais, os

pais dos nossos pais, nos ensinaram a imolar o cordeiro em

sacrifício, nós hoje nos imolaremos em nome de Javeh, o

nosso Senhor. Não pensem que ele nos deixou. Não, ele

apenas nos deu vida suficiente para que chegássemos a esse

dia. Aqui, durante sete anos, comemos, bebemos,

coabitamos com as nossas mulheres, tivemos e criamos os

nossos filhos. Lutamos como soldados em defesa de nossa

44

terra. Ensinamos os nossos filhos a viverem com honra e

dignidade, não se sujeitando à escravidão imposta pelos

romanos. Por isso, não nos deixaremos aprisionar. Não

entregaremos nossas mulheres ou nossos filhos para serem

torturados, estuprados, queimados vivos e crucificados.

Hoje, todos nós faremos o último sacrifício. Nos chamam

de zelotes porque zelamos pela honra do nosso povo e

jamais nos subjugaremos a ninguém. Usem as suas espadas

e ofereçam seus filhos e suas mulheres em sacrifício ao

Senhor que nos espera nas moradas celestiais. Depois que

fizeram isso, voltem aqui e nós queimaremos tudo que

restar e depois ofereceremos vosso sangue a Javeh.

Sortearemos um de nós para que também nos ofereça em

sacrifício. O último de nós tombará sobre a própria espada.

Agora vão, cumpram o que o Senhor deseja que façamos.

Um a um, os homens segurando a pequena espada curva

que traziam à cintura, símbolo de guerra dos zelotes,

caminharam num cortejo fúnebre em direção às suas

habitações. Eles fizeram o que lhes fora ordenado. Uma

mãe em desespero tentou fugir com seus filhos, mas foi

alcançada pelo marido que a implorou para que não

resistisse, para que confiasse no Senhor.

- Você não vê que nossos filhos são inocentes? Eles nada

fizeram para serem mortos. Eles não tem culpa alguma,

meus pobrezinhos. Veja os olhinhos deles como estão

cheios de terror e medo. Não querem morrer... Não os mate,

por favor, em nome de Javeh, eu te peço!

O homem recuou por alguns instantes, paralisado, como se

tivesse sido tocado pelo desespero da esposa que protegia

45

com o próprio corpo os filhos pequeninos, sendo que um

deles ainda mamava.

- Você não vê que não temos qualquer esperança.

Precisamos fazer esse sacrifício para salvar o nosso povo –

disse o homem, com as mãos trêmulas.

- Salvar o nosso povo?! Que povo? Enquanto nós estamos

aqui, eles estão lá embaixo assistindo a nossa derrota.

Porque os sacerdotes do templo não oferecem as vidas deles

em sacrifício? Eles já estão velhos, já comeram e beberam.

Nossos pequeninos não... são inocentes, não fizeram

nenhum mal. Deixe que os romanos nos peguem, nos

torturem, resistiremos. Talvez alguns de nós sobreviva e, aí

sim, teremos chance de planejarmos a nossa vingança.

- Mulher... mulher... não me faça sentir culpa. Não posso

fraquejar neste momento. Tenho que cumprir o que Javeh

nos ordenou a fazer. Você não se lembra do que o sacerdote

nos mostrou no livro dos Juízes, quando Jefté fez um voto

ao Senhor de sacrificar sua única filha em holocausto se Ele

os fizesse vencedores da luta contra os filhos de Amon. O

Senhor atendeu o pedido e Jefté sacrificou a própria filha,

como havia prometido...

- Você está louco, meu marido. Eu jamais ofereceria a vida

de uma filha minha, mesmo que tivesse dez. Às vezes, eu

penso que todas essas histórias são coisas dos homens. Deus

não se envolve nessa podridão humana. Não quer sacrifício

de um inocente. Para quê Ele iria querer o sangue de um

inocente? Para beber?

46

- Não blasfeme, mulher – disse o homem, agora

visivelmente irritado. Você não tem o direito de falar assim

do nosso Deus. Basta os romanos, que zombam das nossas

tradições e da nossa fé. Agora venha, ajoelhe-se e deixe-me

cumprir a vontade do Senhor...

A mulher não o ouviu, embrenhou-se entre as ruínas da

fortaleza mal iluminada e misturou-se à uma pequena

multidão de mulheres e crianças que corria de um lado para

o outro, como abelhas tontas, sem saberem para onde ir,

onde se esconderem. Fugiam da morte, como os

cordeirinhos o fazem para não serem sacrificadas pelos

sacerdotes nos Templos.

Ao longe, podia-se ouvir o clamor das criancinhas e de suas

mães que choravam, implorando para não serem mortas. Os

romanos acreditavam que elas estavam clamando por

salvação e proteção ao nosso Deus. E estavam, mas não

para as livrarem dos romanos, mas sim dos próprios irmãos.

Quando o dia raiou, as tropas romanas marcharam pela

rampa em direção aos muros da fortaleza, preparadas para

combater e massacrar os zelotes, bem como todos que lá

estivessem. Arrombaram os portões e entraram de espadas

em punho, prontos para se defenderem de uma possível

emboscada.

Mas, em vez de soldados judeus, eles viram surgir das

sombras três mulheres, nove crianças e um aleijado, com ar

de louco, que haviam escapado do sacrifício da noite

anterior, escondendo-se em cavernas subterrâneas.

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O general Silva não teve outra escolha, senão voltar para

Roma para informar ao Imperador que finalmente haviam

recuperado a fortaleza de Massada, mas nada poderia servir

de troféu aos conquistadores. As mulheres e crianças

encontradas foram soltas, pois não ofereciam qualquer

perigo e já não tinham qualquer valor. O único homem vivo

que fora encontrado vagando, cantando e pulando sobre os

cadáveres, era um gago louco e só serviu para divertir, por

algum tempo, os soldados romanos que, após terem feito

uma marca com fogo na testa e nas nádegas do homem, com

as inscrições: Quae est ROME (pertence a Roma), o

chutaram para fora do acampamento e ordenou-lhe que

fosse mostrar aos judeus de Jerusalém o que sobrara da

coragem dos guardiães de Massada.

O que os romanos não sabiam era que o homem que se

passou por gago e louco para escapar da morte e salvar sua

esposa e filhos se chamava Calebe. Ele fora o último

homem a ser sorteado e encarregado de matar os demais

líderes. No entanto, quando pegou a espada para sacrificar a

esposa e as filhas, o Senhor segurou a sua mão, como fez a

Abraão, impedindo-o de sacrificar seu filho Isaac. Naquele

instante, Calebe recebeu a inspiração divina por meio da

lembrança das astúcias de nosso amado Benjamin. Que o

Senhor o guarde onde estiver.

E era o décimo quinto dia do mês de nisã, do nosso

calendário judaico, o primeiro dia da Festa dos Pães Asmos

48

49

Capítulo III - A Era das Trevas

- Matias... Matias, acorde. O dia já amanheceu. Todos já

ceamos e só falta você. Você vai sair conosco ou vai ficar aí

dormindo o resto do dia?

Despertei-me e a claridade que entrava pela fresta entre a

cortina feriu meus olhos, obrigando-me a tapa-los com uma

das mãos. Podia sentir o calor da aragem que vinha de fora

para o interior da nossa morada. Já deveria passar da

terceira hora (entre seis e nove da manhã).

Minha mãe estava agachada ao lado da esteira onde eu

dormia. Acariciou com a ponta do dedos o meu rosto ainda

sonolento. Seus olhos negros me fitavam docemente,

enquanto sua boca se abria num sorriso que me aquecia a

alma. O cabelo preto, escorrido, que ela gostava de amarar e

jogar para frente sobre o ombro esquerdo, a deixava ainda

mais bela. Meus irmãos e eu achávamos que tínhamos a

mãe linda de toda a Judeia e sempre dizíamos isso a ela.

- Aonde vamos? – perguntei, enquanto me espreguiçava

ainda cheio de sono.

- Vamos ao Mar Morto, você se esqueceu? Hoje é o

aniversário de seu tio Samuel e nós vamos todos para

Madabã. Depois nos reuniremos na margem sul do Mar,

onde passaremos o resto do dia. Vamos, vai ser divertido.

50

- E se eu não quiser ir? – perguntei.

- Não tem problema, meu filho. Posso saber o que você vai

fazer enquanto estivermos fora? Só voltaremos à noitinha.

- Vou à Sinagoga. Preciso falar com o sacerdote Abner

sobre um sonho que tive essa noite e ajudá-lo com umas

cópias de papiros.

- Outro sonho, Matias? Espero que não tenha sonhado outra

vez com o fim do mundo e com monstros de sete cabeças e

dez chifres – Disse minha mãe sorrindo e afastando-se de

mim e fazendo as últimas recomendações. Não deveria sair

da cidade, pois havia nas redondezas muitos bandidos e

salteadores. Deveria comer os bolinhos de trigo com aveia,

mel e leite de cabra que ela havia preparado e, quando

tivesse fome mais tarde, deveria comer tâmaras e nacos de

carne seca de carneiro que havia dentro de um pote de

barro. Eu também deveria beber muita água, o dia inteiro,

pois o calor naquela época do ano era intenso.

Era um domingo. Partiram em grande algazarra, meu pai,

minha mãe e meus três irmãos, Benjamin, Calebe e Mírian.

Estariam de volta depois da décima segunda hora ( entre 15

e 18 horas).

Aquilo era perfeito, pois o que eu iria fazer, provavelmente,

me tomaria o dia inteiro e eu fora advertido para não falar

nada a respeito com os meus pais. O sacerdote Abner havia

destacado firmemente, durante uma aula, quando ele pode

falar comigo a sós, longe do olhares dos demais alunos, para

eu não contar nada a ninguém, especialmente aos meus pais.

51

- Porque meus pais não podem saber, mestre Abner? Eu

nunca minto para eles? Indaguei na ocasião.

- Você não precisará mentir, Matias. Terá apenas que

omitir. Eu confio em você. Você saberá a razão quando eu

te mostrar o que verá. Sua família não pode ser envolvida de

modo algum. Venha me ver no dia em que puder sair de

casa sem despertar suspeitas. Diga apenas aos seus pais que

você virá me contar um sonho ou me ajudar copiar alguns

papiros que estão se deteriorando. Não deixe que eles

desconfiem de nada. Você vai precisar de um dia inteiro

para essa tarefa.

Eu estava ansioso e eufórico. Durante aquele primeiro ano,

desde que meu pai entregara ao irmão Abner minha

educação na escrita, leitura de papiros e estudos de línguas,

eu tinha permissão par ir estudar na sinagoga no período da

manhã, voltando para almoçar em casa com toda a família.

Aquele dia seria especial, pois eu iria finalmente saber o

que o meu mestre havia me prometido há alguns meses e

somente agora chegara o momento oportuno com a saída de

minha família de casa.

Depois de comer, saí às pressas, levando apenas uma

pequena bolsa de couro onde guardava meu pequeno

tesouro, o naco de carne, duas tâmaras e um turbante

branco, dado a mim por minha mãe, o qual servia para me

proteger do sol e das tempestades de areia que sempre

sopravam sobre a cidade.

Tomei o caminho mais longo para chegar até a sinagoga,

pois não queria ser visto por meus amigos que poderiam me

52

distrair. Queria chegar logo à sinagoga, porque, no último

Sabath, havia avisado ao Mestre Abner que o encontraria

lá.

Desci a pequena encosta que ficava próxima de minha casa,

ao leste das ruas centrais de Jerusalém, e segui por uma

velha estrada de pedras que levava ao cume do monte

Moriá. Se tivesse escolhido o caminho costumeiro,

passando pelo centro da cidade, eu levaria menos de meia

hora para chegar lá, mas, como eu tive que rodeá-la, para

evitar encontrar possíveis amigos e conhecidos, cheguei ao

meu destino no dobro do tempo. Apressei o passo e entrei

na última ruela que me levaria direto ao templo.

Já estava avistando o telhado avermelhado da sinagoga,

quando ouvi uma voz chamar o meu nome.

- Matias... Matias... para onde você vai com tanta pressa?

Olhei para trás e vi Sarah, filha do rabino Moshe, sorrindo e

acenando para mim.

Meu coração acelerou ainda mais, para além do esforço da

minha caminhada vigorosa. A doce voz de Sarah era como

o ressoar da harpa tocada pelo Rei Davi e tinha o poder de

me transportar ao mundo dos serafins.

Sarah já havia completado 12 anos e eu estivera presente na

cerimônia de seu Bat Mitzvá, quando ela se tornou “filha do

mandamento". Ela era dois anos mais velha do que eu, mas

parecíamos ter a mesma idade. Eu era magricela, alto e

qualquer um poderia dizer que eu tinha 12 ou 13 anos.

53

Sarah tinha a pele alva, o cabelo castanho claro brilhante

que contrastava com seus pequeninos olhos esverdeados.

Quando andava, movia-se como as folhas de uma palmeira

acariciada pelo vento e sua voz era macia como as doces

tâmaras colhidas nos oásis de Jericó. Sua pele exalava um

suave perfume de acácia que me fazia estremecer e arrepiar

como se um manto de fino orvalho houvesse subitamente

envolvido o meu corpo.

Ela correu para acercar-se de mim. Ao ouvir sua voz, fiquei

um pouco atordoado por alguns momentos.

- Heim?.. o que você perguntou? Disse ofegante e sem parar

de caminhar.

- Para onde vai com tanta pressa? Vi você desde que

apareceu lá no alto da colina e fiquei esperando você passar

– disse ela, tentando acompanhar meus passos rápidos.

- Vou à sinagoga, tenho uns papiros para copiar lá... onde

está Bem-Ami?

- Meu irmão foi para o Mar. Parece que todo mundo foi

para lá hoje. Está um calor insuportável. Mírian está em

casa?

- Não... não... minha irmã não está – respondi gaguejando –

eles foram para o Mar... quer dizer, foram para a festa do

meu tio e depois vão ao Mar. Desculpe Sarah, tenho que ir

depressa agora. O mestre Abner não gosta que eu o faça

esperar.

54

Apressei o passo para me distanciar de Sarah, que desistiu

de me acompanhar e ficou lá, como um delicado querubim,

acenando para mim, sem dizer mais nada. Não precisava. Só

aquele sorriso bastava.

Entrei pela porta dos fundos da sinagoga e fui encontrar o

mestre Abner, que estava arrumando duas bolsas que

pareciam conter frutas, amêndoas e mel. Respondeu ao meu

cumprimento secamente e, sem dizer uma palavra, apontou

para que eu apanhasse uma das bolsas e a atravessasse a

tiracolo. Em seguida, fomos até um pequeno estábulo onde

dois jumentos já estavam arriados à nossa espera.

Montamos e rapidamente galgamos a montanha na direção

sul da cidade. Eu ainda não estava refeito do encontro com

Sarah. Ela tinha o poder de me fazer sonhar de olhos

abertos. Eu sabia que logo que completasse 13 anos e

tivesse realizado a minha cerimônia de Bar Mitzvá, recitado

trechos da Torá e me tornado “filho da obrigação” eu teria a

permissão para pedi-la em casamento. Eu nunca entendi por

que as mulheres não tinham permissão para ler a Torá e os

demais Livros Sagrados. Acho que Javeh se compadecia

delas e não as obrigava a passar anos e anos decorando

centenas de versículos da Lei. Meus pais e os pais de Sarah

eram de famílias próximas e tudo fazia crer que só haveria

uma pessoa que não ficaria satisfeito com o nosso noivado:

Calebe, meu irmão de sangue quente.

- Mestre Abner, para onde vamos? O que vamos fazer?

Indaguei, depois de uma hora de cavalgada.

55

O mestre fez sinal para que eu parasse o meu animal,

aproximou-se de mim sobre sua própria montaria e me disse

em voz grave:

- Para sua segurança e dos meus irmãos, terei que vendá-lo

daqui por diante. Quanto menos você souber para onde

vamos, melhor para todos nós. Vou passar esse unguento

azul em seus olhos. Não vai te causar dano algum. Se

alguma patrulha romana ou judaica aparecer, eu explicarei a

razão de você estar vendado. Direi a eles que você está

tratando de uma enfermidade nos olhos e não pode receber

poeira. Direi que estamos indo visitar um médico conhecido

que vive nas montanhas.

Montanhas? Havia muitas montanhas nos arredores. Com

os olhos vendados, eu dificilmente saberia para qual delas

estaríamos indo.

Obedeci. O cheiro do unguento era forte e me causou ânsia

de vômito. Eu precisava obedecer ao mestre. Apesar de

incomodar-me o fato de não saber para aonde íamos ou o

que iriamos fazer.

- Pode me dizer pelo menos o que iremos fazer, mestre?

Insisti.

- Você é muito curioso, Matias. Quer saber tudo, quer

entender tudo, quer antecipar tudo. Essa foi uma das razões

por que o escolhemos. Você foi escolhido para nos ajudar

em uma tarefa que só alguém com a sua habilidade em

manejar as palavras, memória prodigiosa e poder de criação,

56

poderá realiza-la com facilidade. O trabalho que você terá

que fazer é imenso, mas você será recompensado por isso.

- Eu fui escolhido por quem? – perguntei, ansioso por uma

resposta objetiva.

- Você continua perguntando o que logo vai saber, qual a

sua missão e o grande trabalho a realizar, Matias.

- O senhor está dizendo que terei uma grande fortuna ao

terminar esse trabalho?

- O verdadeiro valor do trabalho de um homem nem sempre

pode ser medido pela quantidade de ouro ou prata que ele

recebe, mas sim pela felicidade e pelo bem que ele

proporcionará aos outros. Não se deve trabalhar apenas

visando receber um salário, Matias. Trabalhe como se não

precisasse de recompensas materiais e, tenha certeza, o

Altíssimo não o desamparará. O mundo será melhor se

trabalharmos por amor.

- E quem vai nos sustentar? Quer dizer, se eu não receber

um salário pelo meu trabalho, como vou viver... como vou

comer ou beber.

- Há muita coisa que você precisa aprender, meu rapaz.

Você está de olhos vendados agora e não pode ver, mas

pode ouvir o som do vento sacudindo as folhas das árvores,

pode sentir o movimento do seu animal, pode sentir o sol na

sua pele, pode ouvir o canto de pássaros e muitas outras

coisas. Quem cuida de tudo isso? Certamente não sou eu,

nem o Sacerdote do Templo, nem seus pais, nem os meus

57

ancestrais. Tudo que há sobre a Terra existe

independentemente da vontade dos homens. Os homens

existem independentemente de sua própria vontade. Somos

criaturas de Javeh e, se aceitarmos a orientação Dele, nunca

seremos desamparados, como não são as aves nos céus, as

plantas, as flores e os frutos. Temos que aprender a cuidar

das obras de Javeh e a ouvir seus ensinamentos.

Enquanto cavalgávamos, o mestre Abner me distraiu

contando histórias do nosso povo para me fazer refletir

sobre fatos que eu nunca havia pensado antes. A venda

sobre meus olhos não me causou mais qualquer incômodo.

Eu sabia que, quando amamos e confiamos em alguém, não

importa saber para onde ele está nos levando, seja para onde

for, desfrutaremos com ela o prazer da caminhada. Meu

mestre era o homem que eu mais amava, depois de meu pai.

Às vezes até achava que minha admiração por Abner era

insuperável por qualquer outra que eu viesse a ter por

qualquer pessoa. Isso porque eu ainda não havia conhecido

outras, ainda mais formidáveis.

- Chegamos Matias. Agora vou desmontá-lo e faremos mais

uma pequena caminhada. Depois retirarei a sua venda. Você

está com fome?

- Estou sim e com muita sede – disse, ao descer do animal.

Comemos em silêncio e eu tentava adivinhar em que lugar

estávamos. Eu não havia viajado muito com meus pais e

viajar sozinho era proibido, principalmente depois que

nossas terras foram invadidas pelos romanos. Muitos

meninos e meninas haviam sido estuprados pelos nossos

58

inimigos, que eram devassos e de má índole. Por isso, eu

tinha pouca experiência com viagens e lugares. Mas podia

sentir que estávamos próximos a um oásis, pois era possível

sentir o cheiro da água e do mato verde.

- Deixaremos nossos animais aqui e caminharemos algum

tempo, não vai demorar muito. Enquanto isso, preciso te

dizer que, depois do que você verá e ouvirá hoje, sua vida

nunca mais será a mesma.

- O que vai acontecer, Mestre. Eu sou apenas uma criança.

Como posso fazer parte de algo tão importante? – indaguei,

sentindo uma forte angústia e medo.

- Você será preparado para essa missão, Matias. Não há o

que temer – disse Abner, como se lesse meus pensamentos.

- Mas... e se eu não quiser fazer parte disso? O que irá

acontecer?

- Eu tenho certeza de que você não vai fugir do que te será

oferecido. Mas, se quiser, seu desejo será respeitado.

Qualquer pessoa que for obrigada a fazer algo contra a

própria vontade não será capaz de produzir boas coisas.

Concordei intimamente. Minha mãe sempre dizia isso

quando meu pai queria obrigar a mim e aos meus irmãos a ir

aos jogos de guerra e às disputas de bigas. Eu não gostava

de ver os pobres animais serem açoitados, puxando carroças

pesadas, competindo uns contra os outros. No final, quem

ganhava o prêmio era o cavaleiro e não o cavalo. Achava

aquilo uma injustiça. Eu não seria nunca obrigado a fazer

59

nada contra a minha vontade, nem que tivesse que morrer

por isso. Ou não... eu não sabia ainda.

60

61

Capítulo IV - Os Essênios

No final da tarde, meus pais e meus irmãos retornaram um

pouco mais cedo para casa. Depois da festa de aniversário

de meu tio Eliabe, minha mãe havia dito ao meu pai que não

estava se sentindo bem.

- O que você tem, querida? Será que Javeh vai nos

presentear com outro filho? Perguntou sorrindo.

- Não... eu acho que não. O que sinto é um aperto no

coração. Uma sensação de desconforto, como se alguma

coisa estivesse me sufocando. Tenho isso às vezes, quando

você está lutando contra os nossos inimigos – disse minha

mãe, mostrando-se tensa.

- Está bem. Não ficaremos muito tempo no Mar e

voltaremos mais cedo para casa. Talvez seja este calor

intenso que está te causando o mal estar. Você vai ficar bem

depois que se banhar.

Foram ao Mar Morto e minha mãe não quis se banhar,

apesar de toda a insistência das outras mulheres que

estavam afastadas dos homens a convidaram para nadar,

pois a Lei proibia homens e mulheres de se banharem juntos

em público.

Durante a caminhada de volta para casa, minha mãe insistiu

com meu pai para que fossem até a sinagoga, onde eu

62

deveria estar trabalhando com o mestre Abner. Meu pai

relutara, pois não queria causar incômodo ao escriba-mor do

Templo. Mas minha mãe não se deteve e os arrastou para lá.

Para surpresa de todos, eu não estava lá, nem o mestre

Abner. Na verdade, ninguém sabia para onde havíamos ido.

- Talvez estejam no Templo – disse meu irmão Calebe,

seguindo em direção ao Templo, que ficava a pouco mais de

meia hora de caminhada na direção oposta à nossa casa.

Foi Bejnamin, quem deu a primeira pista de onde

poderíamos ter ido.

- Acho que eles saíram da cidade – disse ele, apontando

para a cocheira.

Todos correram para olhar, mas nada viram.

Benjamim, no entanto, mostrou que havia dois cochos com

feno e vasilhames de água próximos um do outro e, um

pouco mais atrás, havia excrementos de animais.

- Veja, pai... eles saíram bem cedo, pela manhã. Os

excrementos estão secos.

- Como você pode saber que saíram da cidade, Benjamim?

– indagou Calebe, sentindo-se em desvantagem.

- E para que servem os animais de montaria? Veja... está

faltando duas selas – disse ele, apontando para o local onde

ficavam os arreios dos animais.

63

- Judith, você vai com as crianças para casa, talvez Matias

já esteja lá. Eu vou ao templo.

Quando minha mãe chegou em casa, eu não estava lá. Meu

pai voltou horas depois e estava aflito, pois eu também não

estivera no templo.

- Temos que sair para procurar nosso filho... eu sentia que

alguma coisa não estava bem – disse minha mãe, com a voz

trêmula.

- Vamos esperar um pouco mais. Quem sabe o mestre

Abner não tenha ido mostrar alguma coisa a Matias fora da

cidade– ponderou meu pai.

- Sem nos avisar? Ele sabe que não pode fazer isso. Muito

menos sem o nosso consentimento. Para onde ele levaria

nosso filho? Tudo indica que haviam combinado antes, pois

o mestre já estava esperando por ele na sinagoga –

acrescentou minha mãe.

- Como assim. Como você sabe que ele já estava esperando

por ele na sinagoga? – indagou meu pai.

- Quando vínhamos para cá, encontramos Sarah e ela nos

disse que Matias passou logo cedo por ela dizendo que

estava apressado para chegar à sinagoga, porque o mestre

Abner “não gostava de esperar”.

- Claro, o mestre Abner é muito pontual e não gosta de ficar

esperando seus discípulos.

64

- O problema é que, até onde sei, Matias não estava sendo

esperado por ele...

- Não estava? Como assim?

- Ele me disse que não queria sair conosco porque iria ver o

Mestre Abner, que sempre está no domingo pela manhã na

sinagoga, para contar-lhe sobre um sonho estranho que

tivera. Matias nunca mente.

Minha mãe confiava cegamente em mim e suas deduções

estariam corretas se o que eu estava fazendo não envolvesse

uma questão de vida e morte, como foi o caso da tarefa que

meu mentor Abner me confiara. Ele me fizera jurar que

jamais diria uma palavra a sobre a minha missão aos meus

pais ou a qualquer outra pessoa. Que também eu nada diria

sobre o que eu visse ou ouvisse naquele dia. Ele me

assegurara que a minha família e eu poderíamos ser mortos,

se eu quebrasse o segredo.

Naquela época, eu sequer podia imaginar que, no futuro, o

simples fato de alguém saber sobre algo que era proibido

pudesse lhe custar a própria vida.

Meu pai tinha muitos amigos em Jerusalém e, naquela noite,

fez algo que mudou todo o rumo da minha vida, da dele e de

todos os demais da minha família. Ele não poderia saber

que aquilo aconteceria e o que fez foi movido pelo amor de

pai que não queria perder nenhum dos seus filhos. Eu era o

filho mais velho e talvez o mais querido. Meu pai iria até

65

Roma, se preciso fosse, para trazer-me são e salvo para

casa.

A noite chegou rápido e a aflição em minha casa aumentou.

Mais de 100 homens haviam saído à minha procura e do

mestre Abner, pois ele também não retornara para casa até a

3ª vigília (entre meia noite e 3 da manhã).

O que mais dificultou a minha procura foi a tempestade de

verão que se abateu durante a madrugada daquele dia. Uma

chuva torrencial deixou as ruas de Jerusalém enlameadas e

sujas de detritos que desceram das encostas.

O dia amanheceu e meus pais tinham passado a noite em

claro. Haviam pedido ajuda ao Sumo Sacerdote e este havia

solicitado ao governador da Judeia, Pôncio Pilatos, que era

seu amigo, para que interrogasse as patrulhas romanas da

região sobre o paradeiro de um menino e um escriba de

meia idade. Nada puderam apurar. Ninguém nos havia visto

nem ouvido falar de nós.

Vasculharam a casa de Abner, bem como seus trabalhos, na

esperança de encontrar alguma pista, mas nada

conseguiram. Nem a esposa dele, nem os filhos sabiam do

seu paradeiro.

No terceiro dia de buscas, meu pai, inconformado, começou

a suspeitar que meu desaparecimento tinha sido planejado

pelos romanos, pois sabiam que ele era um zelote destemido

e inimigo mortal de Roma.

66

- Vou cortar a garganta de Pilatos – disse meu pai exaltado.

Aquele bastardo vai pagar, junto com toda a família, pela

desonra que nos fez.

- Como você pode saber que foram os romanos, Harael?

Não existem provas. Talvez eles tenham saído para dar um

passeio pelo campo e se perderam. Você se lembra de que

naquela noite caiu uma forte tempestade? Eles podem ter se

perdido no deserto... podem ter sido assaltados...

- Sim, assaltados pelos romanos – interrompeu meu pai.

Quem mais é capaz de cometer mais barbaridades em nossa

terra que eles?

- Não apenas os romanos são maus em nossa terra, Harael.

Você sabe que desde os tempos de Moisés haviam ladrões e

salteadores. Não foram os romanos os criadores do mal. O

mal existe desde o início do mundo.

- Sim, mas os romanos aperfeiçoaram o mal. Tudo que

estamos sofrendo agora é culpa deles.

- Mas será que apenas eles são os responsáveis? Lembre-se

de que nosso povo tem se dividido e por isso enfraqueceu.

Lembra-se das 12 tribos de Judá, provindas dos 12 filhos

de Jacó, neto do Patriarca Abraão, que estiveram unidos até

a morte do rei Salomão? Depois disso, cada um quis ficar

com as melhores terras e ter domínio uns sobre os outros.

Essa foi a nossa desgraça. Divididos e enfraquecidos, fomos

sendo derrotados um a um e hoje estamos dominados por

67

um povo estranho que também quer dominar o mundo e

impor a todos seus costumes e leis.

- Você tem razão, Judith.... talvez eu esteja exagerando, mas

você sabe o quanto odeio os romanos. Nossa guerra contra

eles parece que nunca chegará ao fim. Eu só ficarei

satisfeito quando não mais vir uma única túnica vermelha

caminhando por nossas ruas, maltratando e escravizando os

nossos irmãos.

- Você é um guerreiro, eu sei. Sinto orgulho de você por

isso. Mas até quando viveremos em um mundo em que seja

necessário derramar o sangue de um filho para se conseguir

a paz? Não existe nenhuma mãe que sente felicidade em

entregar seu filho para morrer em uma guerra, mesmo que

seja para defendê-la. Antes, essa mãe quererá morrer no

lugar do filho.

- Eu não compreendo vocês mulheres... Não compreendo

como pode ter um amor tão grande por um filho e se sentir

capaz de dar a própria vida por ele.

- Você não daria sua vida por seu filho?

Meu pai ficou em silêncio. Ele sabia a resposta. Também

daria.

Embora as buscas continuassem por mais de duas semanas,

aos poucos, as pessoas foram se acomodando, exceto minha

68

mãe, que dizia sempre ter certeza de que eu não havia

morrido e que um dia eu voltaria para os seus braços.

Meu pai já não era tão otimista e a cada dia sentia mais ódio

dos romanos. Meus irmãos me contaram que, por vezes, ele

também desaparecia por dias sem que a minha mãe

soubesse o seu paradeiro. Quando ele voltava, estava

sempre ferido e, depois de tratado, voltava aos combates às

escondidas, pois ninguém poderia saber que ele era o autor

das constantes mortes de soldados romanos emboscados nas

montanhas.

Minha mãe orava a Javeh para que me protegesse e me

trouxesse de volta, são e salvo.

O que ela não sabia é que quem voltaria para casa já não

seria mais aquele menino meio tímido, calado e ponderado.

O Matias que voltaria para casa havia sido transformado

com o que viu e ouviu naquele domingo em que

acompanhou o seu mestre em uma viagem sem volta ao

mundo dos Essênios.

- Vou tirar a sua venda agora, Matias. Mantenha os olhos

fechados e vá abrindo aos poucos. Quem permaneceu muito

tempo nas trevas precisa ir se acostumando aos poucos com

a luz, antes de abrir totalmente os olhos. Somente quando

eles estiverem preparados é que você poderá enxergar tudo

sem problemas.

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Aquela foi uma das grandes lições que aprendi naquele dia

inesquecível. Anos depois eu saberia compreender melhor a

razão pela qual os mestres nunca falavam abertamente sobre

suas descobertas, nem quando transmitiam seus

ensinamentos. Era preciso primeiro preparar os aprendizes.

Era necessário ir dosando pouco a pouco o ensino. Uma

criança recém-nascida não será capaz de digerir alimentos

pesados antes que seu corpo esteja preparado para recebê-

lo. As aves pequeninas ficam sob a proteção da mãe até que

estejam aptas a voarem sozinhas pelo céu para buscar o

próprio alimento. É necessário ter maturidade, para

compreender as verdades sobre a vida.

Aos poucos, fui abrindo os olhos e o que vi foram

gigantescas montanhas de areia dourada refletindo a luz do

sol. Meus olhos arderam com a intensidade da

luminosidade, obrigando-me a cerrar as pálpebras.

Olhei para o mestre Abner e ele estava imóvel, olhando para

a vastidão do deserto.

Eu olhei em volta e percebi que não havia uma árvore, uma

rocha, um oásis, um rio ou lago que pudesse ser visto dali.

Girei o corpo para o norte o sul, o leste e o oeste e tudo que

vi foi um imenso deserto. Apesar do calor, senti um frio na

espinha.

- Estamos perdidos no meio do Saara, Mestre? – perguntei

com um meio sorriso nervoso.

70

- Olhe direito Matias... Olhe...!!

Olhei outra vez em torno de mim e tudo que via era um mar

de areia. Eu nunca tinha estado num deserto, mas, pela

descrição dos livros que lera na biblioteca do Templo, era

ali onde estávamos.

- O senhor está me assustando, mestre. Ficou louco?

Arrisquei.

- Ahahahaha... é isso que sempre dizem, quando afirmamos

que estamos vendo alguma coisa bem em nossa frente e as

outras pessoas não conseguem ver. Nos chamam de loucos.

Elas não são capazes de enxergar, mas alguns de nós

podem. Vou te dar mais uma chance. Olhe naquela direção

outra vez.

Olhei e olhei de novo para as montanhas de areia e nada vi

além delas. Senti uma sede descomunal. Minha garganta

ficou seca e as únicas palavras que pude balbuciar foram:

- Mestre, o senhor me trouxe aqui para eu morrer, é isso?

O mestre não respondeu. Apenas aproximou-se de mim,

abraçou-me e disse:

- Não, Matias. Você não foi trazido aqui para morrer e sim

para renascer. Eu vou te ajudar agora. Relaxe os olhos...

continue olhando naquela direção, não force nada. Não

queira ver nada. Esqueça a areia... esqueça as dunas...

Apenas olhe e deixe que algo apareça em sua visão.

71

Eu já estava chorando, mas obedeci, certo de que o calor do

sol havia cozinhado os miolos do meu mentor.

Aos poucos, tomado de uma imensa alegria, eu percebi que

sim, havia alguma coisa ali. De vez em quando o vulto

sumia, mas depois voltava a aparecer. Não estava bem

nítido, mas havia algo sim e não estava muito longe. Estava

se formando bem ali na minha frente.

Segurei com força a mão do mestre.

Aos poucos, vi pessoas vestidas de branco vindo em minha

direção. Corri instintivamente para detrás do mestre,

buscando proteger-me e ele sorriu, tentando tranquilizar-me.

- Não tenha medo, Matias. Essas pessoas estavam esperando

por nós. Não são fantasmas, nem anjos, são agora os seus

irmãos.

Em seguida, fui cercado por moças e rapazes de pele

bronzeada, usando túnicas brancas até a altura dos joelhos,

cerzidas com barbante na altura da cintura. Todos usavam

no pescoço um cordão feito de couro trançado, de onde

pendia a figura minúscula de um peixe.

Todos falavam ao mesmo tempo e me tocavam, como se eu

fosse um objeto valioso. Mestre Abner conversava

animadamente com um dos homens, que parecia ser uma

espécie de líder, pois portava um bracelete de cobre e era o

mais idoso dentre os que ali estavam. Calculei que havia

72

mais de cem pessoas, sendo a maioria homens. Talvez umas

trinta mulheres, apenas.

Fomos conduzidos na direção do que agora parecia ser uma

gigantesca construção com vinte metros de altura e uns

duzentos de circunferência. Meus olhos não paravam de

olhar em volta tentando compreender o que era aquele lugar

e porque razão eu não o havia visto enquanto estava bem

em frente dele. Aquilo deveria ser um milagre divino. Sim,

deveria ser. Certamente o mestre Abner era um profeta com

poderes divinos dados por Javeh e nunca nos falara sobre

isso.

Observei que a construção em forma de concha com a boca

voltada para baixo tinha uma abertura no centro por onde

entrava a luz do sol. Em volta dela, havia um grande pátio

com dezenas de cabanas feitas de madeira, cada uma

contendo uma rede parecida com a que os pescadores

usavam, mas de menor tamanho, feitas com tecido,

amarradas nas extremidades a duas estacas. Essas redes

estavam penduradas a meio metro do chão. Vi algumas

pessoas deitadas nelas e crianças que se baloiçavam de um

lado para outro. Ao fundo da grande construção, havia uma

horta com espécies de verduras que eu nunca havia visto em

toda a minha vida, nem mesmo na grande feira da Galiléia,

aonde íamos, uma vez ao ano, por ocasião das festas do Tu

Bishvat, que marca o início do “Ano Novo das Árvores” e

onde comíamos várias espécies de frutos vindos de todas as

partes de Israel.

73

Havia também algumas árvores de pequeno e médio porte,

que, pelo aroma que exalavam, pude reconhecer que ali

havia tâmaras, ameixas, figos, caquis, nêsperas e maçãs. Eu

perguntaria depois sobre aquele milagre ao mestre Abner ou

a alguém que pudesse me dizer como era possível se

produzir tantas coisas no meio do deserto.

Por um instante, passou-me pela mente o desejo de que

meus pais estivessem ali junto com meus irmãos, para

verem todas aquelas maravilhas. Não era apenas um oásis,

mas o mais belo oásis que já havia visto em toda a minha

vida. O mistério de não tê-lo visto antes ainda me intrigava.

Eu não sairia dali sem saber como algo poderia estar tão

diante de meus olhos e eu não conseguia enxergar. Aquelas

coisas eram reais e não uma simples imaginação de minha

mente infantil. Não era uma mágica, como sempre via fazer

os encantadores de serpente e engolidores de espadas, nas

praças de Jerusalém. Meu pai também sabia fazer truques

com moedas, fazendo-as desaparecer bem diante dos nossos

olhos. Se ele dissesse que tinha sido um anjo que havia feito

a moeda desaparecer, com certeza, nós acreditaríamos,

mesmo sem nunca ter visto um único anjo em nossa frente.

Certa vez eu lhe perguntei:

- Pai, porque os Livros Sagrados contam que os profetas

viam e falavam com os anjos e só eles os viam?

74

- São mistérios de Deus, meu filho. Deus se manifesta do

modo como quer, quando quer e onde quer. Nós não temos

poder de interferir na vontade do Altíssimo.

- Então quer dizer que nossas orações poderão não ser

atendidas, caso Javeh esteja de mal humor? – perguntei

sorrindo.

- Não brinque com Deus. Com Deus não se brinca. Deus é

fogo consumidor e pode ferir de morte aqueles que zombam

dele – disse meu pai, em tom de reprimenda.

- Mas pai, não está escrito que todo homem morrerá de

qualquer jeito...

- Matias... Matias.. você faz perguntas muito difíceis, meus

filho. Eu não sei como pude ter tido um filho com tanta

vontade de saber e conhecer. Você deveria ser um

guerreiro... defender nosso povo. Mas, pelo que vejo, você

quer mesmo é ler e escrever não é?

- Sim, pai... eu quero ler muito, quero ler todos os livros do

mundo e saber um pouco de tudo – respondi alegremente.

- E o que vai fazer com todo esse conhecimento acumulado?

- Vou escrever muitos livros. Vou ensinar coisas às outras

pessoas. Coisas que estão ocultas e que as pessoas poderiam

saber para melhorarem suas vidas.

75

- Você é muito ambicioso, meu filho. Vou encaminhá-lo ao

mestre Moshe. Ele já sabe que você aprendeu a ler sozinho

e está disposto a guia-lo. Isso vai me custar dez moedas de

prata por mês, você sabia?

Eu sabia que meu pai não era rico e que o salário que

ganhava como guerreiro das tropas judaicas nos dava uma

vida confortável, mas não de luxo. Dez moedas de prata era

uma fortuna. No entanto, depois de dois meses ao lado do

mestre Abner, ele dispensou meu pai dos pagamentos,

dizendo que, se eu o ajudasse na tradução e cópia de

documentos sagrados, tudo estaria certo. E foi assim que eu

aprendera o Latim, Grego, Árabe, Aramaico além do

Hebraico que era a língua da nossa família.

Uma chuva torrencial começou a cair e, imediatamente, vi

grupos de homens e mulheres colocando potes e bacias na

grande praça com o objetivo de recolher a água. Dessa

forma, teriam água fresca para uso doméstico. Havia lá um

poço, do qual provavelmente os moradores daquele lugar se

serviam de água para as necessidades do dia a dia.

O lugar era muito limpo e organizado. Notei que as pessoas

que lá estavam sempre sorriam e pareciam se sentir

genuinamente felizes.

Mestre Abner era muito querido por todos e foi ele quem

me apresentou ao grupo, quando, após a tempestade, nos

sentamos em um grande círculo sobre o tapete que cobria

uma área destinada às refeições. Foram servidos sucos de

76

frutas e bolinhos feitos com cereais, os quais eu não pude

identificar. Não havia nenhum tipo de carne. Indaguei a um

dos rapazes que estava ao meu lado sobre esse fato e ele

explicou-me que os Essênios daquele lugar não comiam

animais. Achei aquilo muito interessante, pois eu mesmo,

muitas vezes, sentia muita pena quando via meus pais

matando animais, ou mesmo no templo, quando o carneiro

era sacrificado ao nosso Deus.

Lembro até hoje das palavras do mestre Abner quando se

referiu a mim, naquele dia.

- Matias, de agora em diante, vai viver conosco. Aprenderá

as mais variadas ciências e será o escriba que nos ajudará a

escrever uma nova história para o nosso povo e para o

mundo que tanto necessita de algo novo para mudar o

destino da humanidade. A obra que ele escreverá fará

divisão das Eras. Terá o poder de marcar o antes e o depois.

Mesmo que passem mil gerações, as palavras dos livros que

ele escreverá serão lembradas por todos em alguma parte da

Terra.

Eu fiquei estarrecido. Como eu, um menino de apenas 10

anos de idade, teria conhecimento para escrever algo tão

sublime? Não... o mestre Abner estava completamente

enganado a meu respeito. Eu não era a pessoa certa. Diria

isso a ele logo que terminássemos a refeição e pediria para

ele me levar de volta para a minha casa. Provavelmente,

77

meus pais já estariam à minha procura, pois o sol começava

a se por.

- Mestre, por favor, leve-me para casa... estou com medo.

Disse baixinho a Abner, quando ficamos a sós.

- Meu filho, nós não podemos ir para casa hoje. Fomos

informados que, a meio caminho de Jerusalém, estão

acampadas tropas romanas e ninguém entra ou sai da cidade

sem ser revistado. Estão prevendo um ataque surpresa por

gente do nosso povo. Parece que os zelotes estão por trás

dessa manobra. Portanto, não é seguro sairmos agora.

Temos que esperar. Também há o fato de os ventos estarem

levando a tempestade para a cidade e não conseguiríamos

vencê-la no meio da noite.

- O que eu irei dizer aos meus pais quando voltarmos?

Perguntei, aflito.

- Não se preocupe, eu me encarrego de explicar tudo aos

seus pais. Eles compreenderão. Por ora, não se preocupe.

Agora vá descansar. Há uma rede esperando por você em

uma das cabanas. Se tudo estiver bem, amanhã cedo

voltaremos.

Concordei, fui para a cabana indicada, no entanto, não

consegui conciliar o sono. Minha mente ainda estava

atordoada com todos aqueles acontecimentos, aquele lugar

estranho e ao mesmo tempo magnífico. Perguntava-me a

razão de não existirem outros lugares como aquele, onde as

78

pessoas viviam felizes, repartindo tudo, cantando e

dançando como verdadeiros irmãos. Não conseguia

imaginar como mantinham tudo tão oculto no meio das

dunas. Como podiam cultivar plantas ali dentro, criando um

verdadeiro oásis artificial. Eu tinha que contar tudo aos

meus pais, mesmo sendo advertido pelo mestre Abner para

não falar nada a ninguém sobre o que vira ou ouvira.

Fiquei por muito tempo olhando para fora da minha cabana,

para a fraca luz das estrelas que cintilavam no firmamento.

Todos dormiam profundamente. Talvez eu pudesse fugir

dali. Não estava interessado em escrever livros que

mudariam o mundo. Queria voltar para perto de minha

família e continuar meus estudos das línguas, tornar-me um

bom copista, nada mais. Talvez eu pudesse fugir antes que o

dia amanhecesse. Uma lua tímida iluminava o céu quando

saí daquele lugar misterioso. Havia notado que uma

pequena valeta que servia para escoar a água da chuva

passava por baixo da parede circular do conjunto de

cabanas. Meu corpo franzino passou com relativa facilidade

por ela e logo eu me vi do lado de fora. Não havia sentinelas

ou, se existisse, dormiam profundamente e não notaram a

minha fuga. Acho que se sentiam seguros onde estavam,

ocultos pelas dunas gigantescas.

Aos poucos, os meus olhos foram se acostumando com a

escuridão e tentei me guiar pelas estrelas, pois o mestre

Abner já havia me ensinado muito sobre elas e o modo

como podemos nos orientar por elas para chegar a algum

79

lugar. Durante o dia, nos guiamos pela luz do Sol, mas,

durante a noite, são as estrelas que oferecem os melhores

mapas. Os viajantes do deserto e os marinheiros sabem ler o

céu e chegam sempre onde desejam.

Lembrei-me do oásis onde havíamos deixado nossos

jumentos amarrados. Não estaria muito longe dalí, pois

recordava-me que tínhamos andado poucas horas até

encontramos as dunas mágicas onde estavam os Essênios.

Olhava o céu buscando encontrar as estrelas que me

indicariam o caminho, confiei no meu conhecimento e corri

na direção em que apontavam. Eu acabaria chegado a

Jerusalém ou talvez me perdesse para sempre nas areias do

deserto. Poderia morrer de fome e sede ou queimado pelo

calor do sol refletido na areia que a transformava em brasa

viva ao meio dia. Minha decisão havia sido tomada e eu

assumiria o risco. Tudo o que mais desejava era voltar para

casa, rever meus pais e irmãos. Embora fosse fascinante

aquele mundo dos Essênios, o mestre Abner estava

enganado a meu respeito.

Iluminado pela fraca luz da lua minguante, caminhei pelas

dunas de areia, ora tropeçando, ora me arrastando, mas com

a firme determinação de chegar ao oásis antes que o dia

amanhecesse e o Mestre Abner sentisse a minha falta.

Os primeiros sinais do sol nascente tingiram o céu com tons

alaranjados, anunciando mais um dia. Minhas pernas doíam

devido ao esforço da caminhada e minha boca ansiava por

80

uma gota d´água. Foi com imensa alegria que, do alto de

uma duna, avistei, a menos de um quilômetro, o que parecia

ser um oásis onde eu poderia matar a minha sede. Com as

últimas forças que me restavam, corri naquela direção e

logo reconheci que os dois animais deixados no dia anterior

permaneciam lá. Estavam pastando sossegados. Não haviam

ficado amarrados. Um dia perguntei ao meu pai a razão de

não precisar amarrar animais, como cavalos ou jumentos,

quando chegávamos a um oásis.

- Deus fez o animais inteligentes, meu filho. Eles sabem que

em volta só há deserto e nada para comer ou beber. Não

necessita ser amarrado o animal que tem ao seu dispor

comida, bebida e um bom lugar de descanso. Ele até pode

sair para perambular pelo deserto mas quando sentir sede e

fome ou precisar dormir, voltará para a sombra e água

fresca do oásis que já conhece.

- E porque os camelos não são assim? Indaguei.

- Os camelos são capazes de armazenar muita água em

pouco tempo. Alguns conseguem beber mais de 50 litros

por vez e com isso podem perambular pelo deserto por duas

ou três semanas sem água. Ora, pelo instinto, acabam

encontrando outro oásis nesse tempo. Por isso precisam ser

amarrados firmemente, pois, se fugirem, não voltarão muito

cedo ou talvez nunca.

Assim, meu coração se alegrou ao perceber que os animais

estavam lá, como se esperassem por mim.

81

Ao me aproximar, no entanto, vi que, próximo às palmeiras,

havia uma rede armada e que dentro dela havia alguém

embrulhado em panos. Provavelmente, seria algum viajante

do deserto que fora apanhado pela tempestade do dia

anterior e agora esperava o dia amanhecer para seguir

viagem. Tentei me aproximar a um dos animais sem

perturbar o viajante.

O jumento que havia me trazido levantou-se ao me ver,

como se me reconhecesse. Como se soubesse que eu voltara

para ser levado para casa. Os arreios estavam como o

mestre Abner havia deixado, pendurados em um pequeno

arbusto.

Depois de beber muita água no lago e banhar-me sem fazer

ruído, saí revigorado e comecei a colocar o cabresto no

jumentinho que me havia aguardado pacientemente e agora

mostrava-se animado com o prenúncio de uma viagem de

volta ao estábulo seguro, onde recebia a ração com aveia e

cevada.

Foi então que ouvi uma voz, logo atrás de mim, soar como

um trovão, gelando-me a espinha.

- Muito bem Matias... Muito bem.

Voltei-me assustado e vi que a pessoa que estava na rede

havia se levantado e estava bem atrás de mim com um

sorriso nos lábios. Era o Mestre Abner, como um espírito do

mal, a me perseguir.

82

Recuei apavorado.

- Por favor, mestre... por favor... não me leve de volta. Eu te

imploro, não me leve de volta.

- Calma, meu filho... calma... Está tudo bem. Fique calmo.

Não precisa chorar eu vou levar você de volta... Mas dessa

vez vou levá-lo para casa. Vou levá-lo de volta para a sua

família. Mas você primeiro precisa me prometer que não vai

contar nada do que viu ou ouviu nessa sua viagem, está

bem?

Abracei o mestre, sentindo o corpo tremer na convulsão de

um pranto que durou algum tempo. Prometi mil vezes que

não falaria nada. E sabia que iria cumprir a minha promessa.

Faria qualquer coisa para voltar para casa.

Durante o caminho de volta para Jerusalém, fiz muitas

perguntas ao meu mestre e ele respondeu a todas elas sem

hesitação.

- Como o senhor sabia que eu voltaria ao oásis e ficou lá

esperando por mim?

- Eu sei da sua natureza, Matias. Você é intrépido,

determinado e muito teimoso. Fizemos uma aposta lá na

comunidade dos Essênios sobre sua fuga. Metade apostou

que você ficaria e a outra metade apostou do meu lado.

Você ainda tem uma mente infantil e toda criança quer

voltar para casa, mesmo quando as coisas estão indo bem

83

fora dela. Você ficou ansioso para contar tudo aos seus pais

e irmãos. Contar seus feitos. De que vale saber de coisas,

ver coisas, realizar feitos, se não há ninguém para falar

sobre eles? Você não é diferente. O que fizemos também foi

um teste. Precisávamos ter certeza de que você tem coragem

para enfrentar sozinho o que virá pela frente.

- E se eu tivesse ficado? O senhor me traria de volta?

- Sim, Matias, esse era o plano. Nunca tive a intenção de

deixa-lo lá. Só queria te mostrar que há uma comunidade

que existe há muitos séculos, mas está sendo perseguida por

gente do nosso próprio povo.

- Porque razão estão sendo perseguidos? Eles estão fazendo

mal a alguém?

- Não estamos, mas estamos desafiando as nossas Velhas

Leis. Estamos desafiando as nossas tradições e para os

demais sacerdotes que seguem os Mandamentos de Javeh

que foi dado a Moisés, os Essênios são uma ameaça.

- O que vocês querem mudar?

- Você viu que as mulheres na comunidade dos Essênios são

tratadas como um de nós? Viu que elas fazem as orações da

mesma forma que nós os homens fazemos?

- Sim, mas isso não é contra a Lei?

84

- É exatamente isso o que os Essênios querem mudar.

Querem que as mulheres, as filhas dos homens, sejam

tratadas como iguais e não como se fossem um bem, uma

propriedade dos pais, dos maridos ou dos irmãos mais

velhos. Querem que as mulheres realizem as cerimônias do

Templo, por exemplo?

- O quê?! Realizar as cerimônias do Yom Kippur, do Sucot

ou mesmo os Bar Mitzvá? Indaguei alarmado.

- Viu Matias... até você, que tem uma mente muito lúcida

para a sua idade, acha isso um absurdo. Sim, os Essênios

são a favor de que as mulheres participem de tudo, até da

preparação e realização do Sabath?

- Do Sabath?!

Eu não podia imaginar como uma mulher poderia realizar

todas os rituais que só o Sumo Sacerdote realizava.

Certamente os Essênios eram loucos de querer tais coisas.

- Mas isso é razão para quererem destruí-los, Mestre Abner?

- Não é, mas o nosso povo tem agido assim. Tudo o que está

escrito precisa ser cumprido. Se não há nada lá que diz que

uma mulher poderia se tornar sacerdotisa, então não

aceitarão o contrário, mesmo não havendo também nada

que diga que elas não possam. Alegam que não podemos

simplesmente mudar as Leis de acordo com a nossa

vontade.

85

- Mas as Leis não são escritas pelo homem sob a inspiração

de Deus?

- Essa é a questão, Matias. Você está aprendendo a arte da

escrita. Dentro de poucos anos, poderá escrever em várias

línguas e aquilo que você escrever será Lei.

- O senhor está dizendo que serei inspirado por Deus para

escrever, é isso mesmo?

- Sim, meu bom rapaz. É isso mesmo. Deus vai usar você

para escrever a mais linda história de todos os tempos. No

entanto, meu caro Matias, preciso te advertir que você não

vai receber qualquer recompensa por isso.

- O senhor já me falou sobre isso. Bastará a glória de ser

vaso nas mãos de Deus. Eu quero ser usado por ele para

escrever essa história...

- Pois é, mas nem isso você terá. Você escreverá uma

história que será lida por milhões de pessoas pelo mundo,

mas ninguém irá glorificar o seu nome. Seu nome não será

conhecido...

- Como assim, Mestre? Eu serei usado por Deus, escreverei

uma história inspirada e ninguém saberá que fui eu que a

escrevi? E por que devo fazer isso? Indaguei confuso.

- Olhe a sua volta, Matias. O que vê?

86

- Vejo o céu, nuvens se formando, aves, plantas, animais

que nos transportam agora, vejo a mim, vejo o senhor...

- Ótimo.. você citou exatamente as coisas que não são feitas

pelos homens. Mencionou as criaturas e feituras naturais.

Agora me responda: quem é o autor de todas essas obras?

- Javeh, o nosso Criador – respondi sem titubear.

- E onde está o nome dele, dizendo que isso ou aquilo é

criação Dele? Como sabemos que foi Ele que fez tudo o que

vemos, Matias?

- Os Livros Sagrados dizem...

- E é mesmo preciso Livros Sagrados para nos dizer isso?

Não somos nós mesmos que percebemos sem esforço que

existe algo muito maior do que nós por trás de tudo o que

existe? Deus não precisa colocar o nome dele nas obras que

ele criou. As obras magníficas falam por si mesmas.

Calei-me. O Mestre era um sábio. Ele sempre tinha a

palavra certa. Compreendi que eu seria usado para uma

missão importante, mas não teria o crédito da obra. O

mérito certamente seria de Deus. Então a obra que eu

escreveria deveria ser mesmo algo muito precioso. Mas por

que eu?

- Deus escolhe quem ele quer, Matias. Não temos como

fugir quando Ele nos escolhe. Você foi escolhido.

87

- O senhor também lê pensamentos, Mestre? Foi exatamente

o que acabei de pensar.

- Os pensamentos se movem, Matias. Nós só não os vemos,

mas tudo o que pensamos e sentimos sai de nossas cabeças

como um poderoso vento... invisível, mas os efeitos podem

ser sentidos por outros. O pensamento é o maior poder que

foi dado aos seres humanos. Quando você pensa muitas

vezes sobre a mesma coisa é como se transportasse um

punhado dessa areia que está sob os nossos pés. Cada

punhado vai se acumulando até se transformar numa

montanha. O vento carrega a cada dia um pouquinho da

areia. Nós não vemos o vento, mas o monte de areia vai se

formando.

- Fale-me um pouco mais sobre a comunidade dos Essênios,

Mestre. Como eles podem ficar escondidos nas dunas do

deserto. Que poder mágico é aquele que os tornam

invisíveis?

- Ahahahaha... não há nenhuma mágica em ficarem ocultos,

Matias. Se você pintar um pequeno pedaço de tecido na

mesma cor de uma parede e colocá-lo na frente dessa

parede, você verá a parede que é maior, mas não verá o

tecido. Os Essênios pintaram a grande cabana com a mesma

cor da areia do deserto. Por isso você não a enxergava.

Você olhava e só via o deserto, pois o deserto é muito

maior, mas a construção estava lá, bem diante dos seus

olhos. Alguns animais fazem isso para não serem

88

capturados por suas presas. Quando um lagarto olha para

um galho de árvore ele não vê senão folhas, mas o

gafanhoto está bem ali e assim poderá sobreviver. Muitas

Comunidades Essênias vivem diante dos olhos das pessoas,

mas elas não conseguem enxergá-las.

- Tenho outra pergunta para te fazer, Mestre. Por que eu tive

que ser vendado na ida mas não estou sendo na volta? Eu

poderia agora saber o caminho que leva à Comunidade, não

poderia?

- Sim poderia, mas a venda não foi para ocultar de você o

caminho, foi para que você se lembrasse de que uma pessoa

que fica muito tempo na escuridão pode ficar cega se for

exposta bruscamente a uma luz muito intensa. Ela precisa ir

se acostumando com a luminosidade aos poucos. Também

queria que você aprendesse a usar seus outros sentidos, seu

senso de orientação ficou mais aguçado. Seus ouvidos, seu

olfato e demais órgãos foram amplificados e isso te ajudou a

chegar ao oásis, como prevíamos. Sabíamos também que

você se guiaria pelas estrelas.

- A vida é sempre assim, Mestre? Já está tudo resolvido,

mas alguns de nós não sabemos o que de fato vai nos

acontecer?

- Não, não está tudo resolvido. Se estivesse, nós não

teríamos razão para existir. Deus nos coloca no mundo para

preencher uma lacuna. Estava faltando alguém para realizar

algo, não importa o que seja. Todas as pessoas têm um

89

valor. Tudo e todos estão interligados. Vivemos numa

grande rede da vida onde cada fio nos prende uns aos

outros. Mesmo um pequenino fio da extremidade da rede,

quando é puxado, muda o desenho da rede e assim é

infinitamente.

- Se isso é verdade, por que razão o senhor disse que já

sabia que eu fugiria e voltaria ao oásis? O senhor tem o dom

de ver o futuro? É um adivinho?

- Não, não sou um adivinho, Matias. Mas sou muito

observador. Todos os homens podem aprender a prever

algumas coisas. Veja o céu, por exemplo. Está voltando a

formar nuvens. Se são nuvens escuras e grossas, é provável

que, dentro de algumas horas, volte a chover, não é?

Observamos a direção dos ventos. Quando os ventos fortes

sopram do leste para o oeste neste lugar onde estamos, será

que indica chuva ou não?

- Provavelmente, sim. – respondi.

- Então é assim... provavelmente. Não acertaremos sempre.

Tudo o que temos a fazer é observar, aprender com as

outras pessoas que passaram suas vidas investigando,

observando e escrevendo livros sobre esses fenômenos.

Chegará um dia em que será possível se prever muitos

deles.

- Tais como tempestades, terremotos, pestes e outras coisas?

90

- Sim, tenho certeza de que chegará esse dia.

Enquanto cavalgávamos, vimos, ao longe na estrada,

bandeirolas vermelhas vindo em nossa direção.

- São romanos! Precisamos nos esconder, Matias. Eles

podem nos molestar – disse o mestre Abner, tocando o

animal para subir uma pequena encosta.

- Se já nos viram, virão atrás de nós – Disse sem olhar para

trás.

- Temos que chegar até aquelas árvores antes que eles

apareçam na curva.

- Talvez seja melhor descermos dos animais e corrermos,

Mestre. Eles estão cansados e estamos numa ladeira com

pedras soltas. O senhor e eu chegaremos às árvores mais

rápido à pé que montados nos animais. – disse eu, sem

esperar pela decisão de Abner.

Ele também desmontou e começou a correr

desesperadamente atrás de mim. Eu era bom de pernas e dei

uma mão ao Mestre, arrastando-o para trás das árvores,

segundos antes dos soldados romanos aparecem na curva.

- Alto!! – bradou o comandante, obrigando aos cavaleiros

pararem logo atrás dele.

Eu podia ouvir as batidas do meu coração e quase as dos

coração do mestre Abner.

91

- Soldado... vá buscar aqueles jumentos, eles parecem

saudáveis e servirão para transportar nossos alimentos.

Imediatamente, um cavaleiro disparou na direção dos

nossos animais e os puxou pelo cabresto, retomando à

posição em que estava na tropa.

Eu podia jurar que os nossos animais olharam para nós,

como se estivessem implorando para que os salvássemos. O

tratamento que os romanos dispensariam a eles não seria

nada parecido com o que o Mestre Abner dava aos animais

que usava como montaria eventual.

Os romanos continuaram sua marcha.

- Malditos romanos! tornaram-se donos de tudo que

encontram pela frente e que tenha algum valor. Pelo que

vejo, eles estão armados para uma guerra. Alguma coisa

muito terrível está prestes a acontecer. Nunca vi aquele

general por aqui.

Uma nova chuva se abateu sobre nós e ficamos

encharcados, enquanto caminhávamos por uma via diferente

da estrada que rumava a Jerusalém. Abner concluiu que não

seria bom sermos apanhados sozinhos por tropas romanas,

sobretudo ele que já havia tido problemas com o governador

romano por conta de intromissões dele na biblioteca do

templo, confiscando livros que eram importantes e

pertenciam ao nosso povo, ou levando-os para serem

copiados pelos escribas romanos que falavam a nossa

92

língua. Eles eram muito bons nas falsificações. Eram

capazes de falsificar a própria mãe de César, se lhes

pagassem.

- Vamos para a casa de Efraim. Ele nos dará abrigo até

podermos voltar para Jerusalém.

Efraim era um velho conhecido de Abner e do meu pai.

Contou-nos que havia indícios de que nos próximos dias

haveria uma invasão das tropas romanas a um dos nossos

quartéis. Eles queriam confiscar metade das armas,

alegando que os judeus não precisavam delas, pois estavam

sob a proteção de Roma. No entanto, negociadores de

ambos os lados estavam num impasse. Os judeus não

entregariam metade de seus cavalos, espadas, arcos e

demais armas de guerra aos romanos, não sem sangue. Os

zelotes iriam intervir.

Ao ouvir essa história, entrei em pânico, ao lembrar que

meu pai era um dos capitães dos zelotes e que ele poderia

morrer naquele confronto.

Não me lembro com detalhes o que aconteceu comigo

naquela noite, pois comecei a tossir e vomitar terrivelmente.

Tive febre alta e delirei. Nos meus delírios, eu via meu pai

envolto em uma túnica branca, encharcada de sangue, sendo

açoitado pelas ruas de Jerusalém, sem que ninguém o

acudisse. Depois via quando colocaram uma tora de

madeira sobre seu ombro e o fizeram puxar até o alto de um

93

monte, onde ele seria crucificado, como era costume dos

romanos quando queriam punir um malfeitor.

O irmão Efraim e sua esposa Rachel cuidaram de mim. Por

algum tempo, eu não vi o mestre Abner, que um dia voltou

aflito e informou que eu tinha que ir com ele naquele

momento, dentro de um cesto de mantimentos vazio,

explicando que um grupo de zelotes havia penetrado no

quartel onde estava o general Lucius e tinha assassinado

todos os soldados durante a noite. Alguns dos soldados

feridos haviam reconhecido meu pai e ele agora estava

sendo procurado com os demais zelotes responsáveis pelo

ataque.

- Matias, precisamos fugir para um lugar distante de

Jerusalém. A cidade está cercada por tropas romanas

enviadas por Herodes e ninguém entra ou sai, até que os

responsáveis pelo ataque sejam punidos. Eu consegui levar

sua mãe e seus irmãos para um sítio nas proximidades de

Jericó, onde um irmão de seu pai é criador de cabras. Os

romanos não sabem quem são os parentes de seu pai. Lá

vocês estarão seguros.

Foi dentro de um cesto de transportar verduras, no fundo de

uma carroça, misturado a sacos de aveia, trigo, tomates que

eu cheguei oculto ao local onde a minha mãe e meus irmãos

me esperavam.

Aquele foi um dos dias mais felizes da vida da minha mãe e

da minha vida também. Nem ela, nem meus irmãos, nunca

94

vieram a saber sobre os Essênios. Eu cumpri a minha

promessa e o mestre Abner cumpriu a dele.

95

Capítulo V - A Grande Viagem

Mesmo a alegria de minha mãe e dos meus irmãos não

conseguiu afastar a minha tristeza ao saber que talvez eu

nunca mais voltasse a ver meu pai. Ele era agora um

fugitivo. Romanos e judeus procuravam por ele por toda a

Judeia. Era oferecida uma recompensa por sua cabeça e não

tardariam a descobrirem onde estávamos.

Os dias, as semanas, os meses passavam lentos. Minha

rotina era levar, junto com meus irmãos, as cabras para

pastar e traze-las sãs e salvas no fim do dia, além de ajudar

meu tio em outras tarefas do campo e cuidar dos meus

irmãos.

Eu sentia falta de minha vida em Jerusalém. Sentia saudades

do perfume do cabelo de Sarah, filha do rabino Moshe.

Sentia falta da biblioteca do templo, com seus inúmeros

papiros e pergaminhos cheios de aventuras. Sentia falta das

ruas apinhadas de gente nos dias de festa e de toda a

algazarra dos meus colegas escribas nas aulas de línguas e

escritura. Sentia falta da sabedoria do meu mestre Abner e

das longas conversas que tínhamos.

Na casa do tio Eliabe, só havia alguns poucos rolos de

pergaminhos, cópias já desgastadas do Talmud, contendo os

livros mais importantes, os quais eu já relera incontáveis

vezes, sendo capaz até de recitá-los de cor.

96

Não havia, naquele lugar, nenhum instrumento disponível

para escrever e minha mãe temia ir a Jericó, cidade mais

próxima, para não levantar suspeitas sobre a sua identidade.

A cidade era pequena e qualquer pessoa estranha era logo

notada, especialmente minha mãe, pela sua beleza.

Ela sempre pedia para eu esperar que esquecessem a

perseguição a meu pai, pois logo apareceriam outros judeus

mais importantes a serem procurados e nós seríamos

esquecidos. Quando pudesse, ela mesma iria comprar tinta e

cânulas, com as quais eu poderia escrever alguma coisa nos

pergaminhos que eu aprendera a fazer usando a pele de

cabra. Essa foi uma das primeiras lições que aprendi com o

mestre Abner – preparar um excelente pergaminho com a

pele curtida de carneiro ou de cabra. Eu já havia produzido

dezenas e esperava poder escrever alguma coisa neles ou

negociá-los no mercado de Jericó.

Todos os dias, eu olhava para a estrada na esperança de que

meu pai aparecesse, trazendo nas mãos novidades das

cidades por onde ele passava, quando em missão militar. No

começo da noite, deitava-me na minha esteira aa lado dos

meus irmãos e lá ficava de olhos abertos, olhando o céu

estrelado na noites de verão, sentindo-me frustrado e me

perguntando porque as minhas orações não haviam sido

atendidas por Javeh.

97

Um dia perguntei ao irmão de meu pai que nos acolhera a

razão de Javeh não estar atendendo às minhas preces feitas

diariamente com tanto fervor.

- O Senhor sabe o que é melhor para nós, meu sobrinho.

Continue pedindo. Se Javeh decidir atender ao seu pedido,

significa que você fez boas escolhas.

- O meu pedido é justo. Nenhum filho deveria ficar sem seu

pai ou a sua mãe – disse eu, desgostoso.

- Sim, é verdade. Mas não se esqueça de que não somos nós

que decidimos o acontecimento dos fatos no mundo. É

Javeh quem decide.

- E como eu saberei que foi Ele quem decidiu, se somos nós

que praticamos as ações no dia-a-dia? Não são os homens

que realizam as coisas sobre a Terra?

- Sim, mas só se Deus autorizar. Se Ele permitir.

- Mesmo matar e perseguir inocentes?

- Você pode achar que são inocentes, mas, e se Deus

entender que não o são? Afinal, Ele é o dono da Vida e

pode fazer o que quiser.

- Então para que nos criou, se nós vamos sempre depender

da vontade Dele para qualquer coisa? Não seria melhor não

fazermos nada e esperar que Ele resolva tudo, faça tudo

certinho para nós?

98

- Matias, você está me confundindo... Você pensa demais.

Melhor concentrar-se nos seus textos para recitar no seu Bar

Mitzvá, logo você completará 13 anos e não poderá errar

nem um único versículo.

- Eu já decorei tudo tio Eliabe. Não se preocupe – disse-lhe,

contrariado, por não obter uma boa resposta do meu tio.

Mas ele não era um sábio como os mestres do Templo. Não

era o mestre Abner que sempre tinha uma resposta melhor

para mim.

Tio Eliabe nunca havia se casado, não tinha filhos e

demonstrava atenção e cuidado a nós. Travava-me como um

pai, mas eu sentia falta do meu pai verdadeiro.

Uma noite fui despertado por uma conversa cochichada, em

tom de discussão, entre minha mãe e meu tio. Minha mãe

dormia sempre ao nosso lado num dos três cômodos da casa

e tio Eliabe em um outro, que era a dispensa, agora

improvisado para se tornar um quarto independente. Minha

mãe estava na sala com o meu tio naquela noite, como

sempre ficava antes que todos nós nos recolhêssemos.

Depois ela viria deitar-se ao nosso lado, cobrindo-nos,

quando fazia frio.

Embora falassem em tom baixo, não pude deixar de ouvir

grande parte da conversa.

- Judith, você sabe que Harael não voltará mais. Ele

provavelmente já foi morto em alguma batalha, morto pelos

99

romanos. Não podemos continuar nessa situação. Dizia meu

tio.

- Eu não acredito que ele esteja morto, Eliabe. Mesmo

depois de dois anos, ele pode ter fugido da Judeia e ido para

outro país. Não sabemos.

- Você sabe que meu irmão não era homem de fugir. Seu

destino sempre foi guerrear. Ele sempre disse que morreria

lutando. Portanto, já é hora de você assumir sua viuvez. As

pessoas já estão começando a falar...

- As pessoas... eu pouco estou ligando para as pessoas. Pois

que falem. Estou com a minha consciência tranquila. Estou

à espera do meu marido.

- Você não acha que as pessoas vão acabar desconfiando ao

me virem com você e os meninos nas ruas de Jericó, como

se fôssemos uma família?

- Você quer se justificar para eles, pois faça isso.

- Não é isso o que quero, Judith. O que eu quero mesmo...

- Pois diga, Eliabe... diga o que você quer...

- Você sabe. Já falamos uma vez sobre isso. Eu sou solteiro,

nunca me casei e acho que agora...

- Nunca! Jamais trairia a memória de meu marido. Não se

atreva a me falar nisso outra vez. Meus filhos não o

respeitarão mais se souberem que você quer tomar o lugar

100

do pai deles. Não vou coabitar com você, Eliabe. Nem hoje

nem daqui a mil anos...

Minha mãe entrou em nosso quarto, furiosa. Eu fingi que

estava dormindo, mas também estava cheio de ira. Minha

vontade era de levantar e cortar a garganta de meu tio.

Como ele poderia querer tomar o lugar de meu pai? Meu pai

voltaria e eu lhe contaria tudo. Então a honra de minha mãe

estaria lavada.

Ouvi minha mãe soluçando baixinho. Ela tentou abafar o

som do pranto e aos poucos foi amainando e, passado algum

tempo, percebi que ela adormecera.

Vi, em claro, os primeiros raios do sol chegarem. Eu tinha

certeza de que, se contasse aos meus irmãos sobre o que

ouvira naquela noite, certamente Calebe mataria meu tio

sem titubear, como fazia com as serpentes do deserto.

Quebraria lhe a cabeça com uma pedrada certeira.

Não falei com o meu tio naquela manhã e me recusei a sair

com os meus irmãos para levar as cabras para pastarem.

Minha mãe, ao me ver sentado à sombra de uma tamareira

próximo da casa, veio falar comigo.

- Meu filho, você está bem? Está sentindo alguma coisa?

Comecei a chorar. Minha mãe me abraçou, confortando-me

e me disse:

101

- Você também sente falta do seu pai, não é? Eu tenho

esperança de que ele um dia voltará. Mas temos que esperar

a vontade do Senhor...

Afastei-me de minha mãe, abruptamente.

- Vontade do Senhor... vontade do Senhor... e qual é a

vontade do Senhor? Por que Ele não vem resolver as coisas

para nós aqui em baixo, minha mãe? Nós não sabemos o

que fazer. Ficamos rezando e rezando, horas e horas, dias e

dias, sem saber o que Deus quer. Isso não é justo – disse eu,

aos berros.

Minha mãe ficou assustada.

- Matias... eu nunca o vi tão revoltado. O que está

acontecendo?

- A senhora sabe o que está acontecendo. Ouvi a conversa

da senhora com o tio Eliabe. Eu deveria matá-lo, como meu

pai o fará quando voltar para casa, se eu lhe contar o que

aconteceu.

Minha mãe empalideceu.

- Meu filho... tenha calma. O que você ouviu foi o delírio

de seu tio. Ele gosta de nós. Quer nos proteger. Tem medo

que um dia descubram quem somos nós. Ele quer se casar

comigo...

- Nunca!! Nunca!! Eu o matarei, se ele falar nisso outra vez.

102

Minha mãe agora estava próxima de mim. Ajoelhou-se aos

meu pés já em lágrimas.

- Matias... por favor... por favor me escute, meu filho. Seu

tio Eliabe está sendo sincero. Ele quer nos proteger. As

pessoas acabarão desconfiando de nós, se não parecermos

uma família. Ele sabe que se você for ao templo em Jericó

fazer o seu Bar Mitzvá, teria que dizer que ele é seu pai e eu

a sua mãe. Mas não podemos mentir.

- Sim, isso é uma mentira infame!! – concordei.

- Sim, mas protegerá as nossas vidas. De que adianta

falarmos a verdade e perecermos? Não valerá a pena. Nossa

vida é o que há de mais sagrado e importante. Não importa

o que tenhamos que fazer para nos salvar.

- Mãe, tio Eliabe conhece as escrituras... Deus falou a

Moisés nos dez sagrados mandamentos: “Não cobiçarás a

mulher do teu próximo; e não desejarás a casa do teu

próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua

serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma

do teu próximo.” O que ele está fazendo deve ser punido

com a morte.

- Eu sei... eu sei, meu filho. Mas e se seu pai estiver morto?

Nós não sabemos...

Meu ódio agora se voltou contra a minha mãe. Fiquei

descontrolado e despejei toda a minha fúria contra ela.

103

- A senhora vai se deitar com ele, vai? Vai se prostituir? Eu

seria o primeiro a atirar-lhe pedras, como manda a Lei.

Minha mãe, como um relâmpago, voou em minha direção e

me esbofeteou duramente. O som daquela bofetada eu

nunca mais esqueci por toda a minha vida. Foi a primeira e

única vez que ela fizera aquilo.

Corri para o campo, em desespero e aos prantos. Vi a minha

mãe ainda correndo atrás de mim, mas nunca conseguiu me

alcançar. Depois de alguns minutos, vi o seu vulto ficar

cada vez mais pequenino atrás de mim, até desaparecer

completamente por trás dos montes.

Eu sabia que nunca mais voltaria para casa. Se eu voltasse,

contaria tudo aos meus irmãos e mataríamos tio Eliabe.

Talvez nunca perdoaríamos nossa mãe se ela se casasse com

o irmão do meu pai, sem a certeza de que meu pai estava

morto. Eu sempre acreditaria que ele estava vivo, até que

me provassem o contrário.

Não sei por quanto tempo vaguei a esmo pelas montanhas e

estradas até encontrar uma cabana no sopé de uma colina

ao cair da noite. Os cães de guarda alertaram os moradores

da minha chegada. Eu estava exausto, cheio de fome, de

sede e revoltado.

Fui recebido por uma família de lavradores que era formada

por sete pessoas. O pai, a mãe e cinco crianças. Dois

meninos, mais ou menos da minha idade, pareciam ser

104

gêmeos e três meninas menores. A mais pequenina ainda

não sabia andar. Gamaliel era o pai daquela família.

Na noite em que cheguei, ele apenas se preocupou em me

levar para um banho no poço que ficava próximo da casa,

depois me deu comida e bebida. Notei que todos me

observavam curiosos. Nem eu falava, nem eles. Todos

pareciam esperar que eu contasse o que estava fazendo ali.

Nem mesmo eu sabia onde estava e a que distância ficava a

minha casa. Tinha caminhado a esmo durante todo o dia e

parado poucas vezes para descansar. Precisava extravasar

minha revolta contra Javeh, que não atendia às minhas

orações, contra meu tio Eliabe, o bastardo que queria se

deitar com a minha mãe, contra minha mãe, que estava

fraquejando e achando que meu pai havia morrido, contra os

romanos, que eram, ao fim de tudo, os responsáveis por

toda aquela situação. Se eles não tivessem invadido o nosso

país, meu pai não teria saído de casa para matá-los e todos

estaríamos bem. Eu tinha que fazer alguma coisa para

destruir os romanos. Essa agora era a minha obsessão.

- Não quer comer mais um pedaço de pão, meu rapaz? Disse

Gamaliel, sorrindo e retirando-me do devaneio.

- Não... obrigado. Estou satisfeito e muito cansado. Onde

estamos?

Todos se entreolharam.

- Então você não sabe onde está? Indagou o homem.

105

- Não, não sei. Estou perdido. Respondi sem graça.

- Você está em Ram, uma vila que fica ao sul de Jerusalém.

Ao ouvir a palavra Jerusalém, estremeci, e todos

perceberam.

- Jerusalém? A que distância estamos de lá?

- Pouco menos de um dia de marcha a pé. Menos de meio

dia em uma boa montaria.

- Você veio de lá? Perguntou um dos gêmeos.

- Sim... quer dizer, não... Respondi confuso. Sabia que não

poderia falar muito para não comprometer a minha família.

Não tivera tempo para criar uma história convincente.

Contei sem muitos detalhes que eu viajava de Jericó com a

minha família e fomos atacados por uma patrulha romana.

Eu consegui me esconder e fugir, por isso acabei indo para

aquele lugar. Precisava, então, encontrar algumas pessoas

que eram amigos de meus pais em Jerusalém.

- Quem são os seus pais... e quem são os seus amigos em

Jerusalém?

Inventei nomes, procurando proteger a identidade de meus

pais e a minha própria. Eu não sabia quem era aquele

homem. Podia ser um colaborador dos romanos. Se eu

cometesse algum erro, poderia piorar as coisas.

106

- Jerusalém está completamente sitiada. Destruíram o nosso

templo e sinagogas. Mataram muitos dos nossos sacerdotes

que não queriam colaborar. Tudo por causa do ataque dos

zelotes, há cerca de dois anos...

Uma vez mais estremeci. Então eles deveriam saber sobre

meu pai. Poderiam até estar procurando por uma

recompensa, pois naquela época qualquer dinheiro

representava prestígio e poder. Aquela família era grande e

poderia mudar de vida rapidamente, se recebessem a

recompensa oferecida pela cabeça de meu pai ou, quem

sabe, a de um dos membros da família dele.

Gamaliel contou que sempre ia a Jerusalém levar cereais

para vender no mercado e que, se eu quisesse, poderia me

levar para lá. Também me ofereceu generosamente

hospedagem em sua casa pelo tempo que quisesse, desde

que eu os ajudassem na colheita do trigo e nas tarefas do dia

a dia.

Concordei de bom grado e, por algumas semanas, esqueci a

minha raiva, voltando a sentir saudades de minha mãe e dos

meus irmãos. Também já não conseguia sentir tanta raiva do

meu tio. E se ele estivesse certo? Minha mãe precisava ser

protegida e tio Eliabe tinha sido muito bom para todos nós,

tratando-nos como filhos. Mas, no meu coração, algo dizia

que um dia meu pai voltaria e não seria bom encontrar meu

tio Eliabe na mesma cama que minha mãe.

107

Jerusalém parecia uma cidade fantasma. Não era a mesma

cidade cheia de vida onde eu nascera e passara grande parte

da minha infância, até ser levado pelo Mestre Abner. As

ruas estavam quase vazias em pleno meio dia e, aqui ou ali,

via-se uma guarnição romana observando a tudo e a todos.

Quase não acreditei no que vi, quando passamos pelas

ruínas do Grande Templo. Não ficara pedra sobre pedra e,

no meio dos escombros, havia o infame estandarte romano,

tremulando ao sabor do vento, impondo-nos sua dominação.

- Senhor Gamaliel, pode deixar-me aqui... vou tentar

encontrar os amigos de meu pai na sinagoga. Se não os

encontrar, o procurarei no mercado e voltarei para a sua

casa em sua companhia.

- Está bem, João... espero que tenha sorte. Mas saiba que, de

qualquer modo, terei prazer em acolhê-lo como a um

sobrinho, em minha humilde casa – disse-me ele, batendo

em meu ombro e me ajudando a descer da carroça cheia de

sacos de cereais.

João. Fora o único nome que surgiu em minha cabeça

quando ele me perguntou qual era o meu nome. Era um

nome muito conhecido, pois naquela época havia um

profeta chamado João que andava pregando nas montanhas

e fazendo algo que era novidade para todos em Jerusalém.

Ele tinha o hábito de levar as pessoas para dentro de rios e

lagos, mergulhando-as completamente. Era um ritual de

purificação, de renascimento espiritual.. Ele dizia que

108

aquele ato simbolizava a limpeza dos pecados. Quem se

arrependesse dos pecados e recebesse aquele mergulho e

não pecasse mais, teria a salvação. Por isso, apelidaram-no

de João Batista, aquele que batiza.

Sem muita dificuldade, cheguei até à sinagoga onde

costumava ir com meus pais, encontrei-a semidestruída.

Haviam demolido parte da entrada principal e, no lugar,

haviam improvisado uma outra construção onde as

cerimônias eram realizadas. A biblioteca ficava nos fundos,

mas só havia uma entrada pela frente do edifício.

Bati à porta e, ansiosamente, esperei que viessem abri-la.

Um senhor idoso de cabelos e barba grisalhos veio abrir.

Deveria ser novo por ali, pois eu nunca o havia visto. Pelas

roupas, ele era um mestre escriba e sacerdote.

- Em que posso ajuda-lo, meu rapaz? – disse o ancião

sorrindo.

- Senhor, o mestre Abner está aqui hoje? Gostaria de vê-lo –

disse-lhe, espiando para dentro.

- Mestre Abner... ahh sim. E quem é você?

- Eu sou... João, um antigo discípulo dele – disse eu,

lembrando que não deveria mencionar meu nome

verdadeiro, pois isso poderia me causar problemas.

109

- Por onde você tem andado, João? Você não é de

Jerusalém, é? – indagou o mestre escriba, desconfiado.

- Sim, sou. Morei aqui alguns anos, mas, depois, minha

família e eu nos mudamos para outra cidade. O mestre

Abner vai me reconhecer...

- Lamento, mas mestre Abner está morto. Foi massacrado

no templo, tentando defender nossos valiosos papiros

sagrados confiscados pelos romanos. Eu vim de Belém para

substituí-lo. Isso foi no ano passado. Você não sabia?

Não ouvi mais nada. Apenas senti minhas pernas

fraquejarem e sentei-me na calçada na frente da sinagoga.

Fiquei ali, com a cabeça entre as pernas, chorando

copiosamente. Meu tutor, meu mestre, o homem mais sábio

que eu conhecera até então, estava morto.

Lembro-me de que aquele ancião, que vim saber depois

tratar-se do grande mestre escriba Malachai, levou-me para

o interior da sinagoga e ficou lá esperando que eu me

recompusesse e, em seguida, disse-me com sua voz grave e

macia:

- João... ,ou quem quer que você seja, eu não posso ficar

com você aqui muito tempo. Estou de partida para o Egito,

pois sinto que não poderei continuar o meu trabalho nesta

cidade, nessa nossa terra que foi tomada pelos nossos

inimigos. Eles sempre virão atrás de mim para que eu lhes

faça cópias de papiros e pergaminhos sem pagar uma única

110

moeda. Não posso ser escravizado por eles dessa forma.

Minha profissão não vai servir aos assassinos dos nossos

irmãos.

- Não podemos ficar aqui e lutar contra eles, mestre

Malachai?– indaguei.

- Nesse momento não podemos. Nosso povo está

enfraquecido, dividido, corrompido, humilhado e derrotado.

Os poucos rebeldes serão facilmente destruídos. A ordem é

que devemos nos dispersar...

- Ordem? Quem deu essa ordem?

O ancião pareceu sentir-se embaraçado com a minha

pergunta ou apanhado de surpresa.

- A ordem do nosso Deus... O Senhor nos ordena para que

saiamos pelo mundo para preservar a nossa cultura, nossos

ensinamentos e a nossa fé.

Foi a primeira vez que eu ouvira aquela palavra: fé. Não

havia em nenhum capítulo ou versículo do Talmude ou da

Torá essa palavra. Quis perguntar naquele momento sobre o

significado dela, mas deixei isso para outra ocasião, se

tivesse oportunidade..

- O que o senhor vai fazer no Egito? Eles não são também

nossos inimigos?

111

- No momento não. São nossos aliados contra os romanos.

César já tentou invadir Alexandria, a capital, mas não teve

sucesso. Vencer o exército egípcio no momento é uma

missão impossível para os romanos. Os gregos também

estão do nosso lado e querem recuperar as cidades que

foram invadidas. A Pérsia também está reunindo forças

contra Roma. Um dia nós os venceremos – disse o mestre

sem perder a calma, mas com uma firmeza inabalável.

Comecei a gostar daquele homem que me levou a conhecer

seus trabalhos.

- Leve-me com o senhor, mestre. Prometo que o obedecerei

em tudo, como obedecia ao meu mestre Abner. Trabalharei

dia e noite para compensar as despesas que tiver comigo.

- E a sua família?

- Não tenho mais família, como já te disse, estão mortos. Só

tinha o mestre Abner aqui e por isso vim procurá-lo. Mas

como o senhor me disse, ele está morto. Já não poderá me

ajudar.

O mestre Malachai me ouviu sem interromper e depois

contou um pouco da sua história.

Havia começado muito cedo, como eu, nas artes da escrita,

das ciências, da astrologia e aprendizagem de idiomas. Já

havia visitado bibliotecas de várias partes do mundo e sua

família era de Belém.

112

Indagou-me sobre o que eu havia aprendido com o mestre

Abner e eu lhe contei da admiração que sentia por meu

primeiro mestre.

- João... você não me convenceu com a história da sua

família que foi morta pelos romanos e você acabou indo

para a casa de Gamaliel que o acolheu. Está faltando

alguma coisa no seu drama.

- E o que está faltando, mestre Malachai? – indaguei

temeroso.

- Ora, se você disse que nasceu aqui em Jerusalém, então

deve ter amigos, parentes, pessoas que o conhecem, não é?

No entanto, quer viajar comigo para o Egito. Você parece

estar fugindo de alguém ou de alguma coisa. O que é? Quer

me contar ou terei que descobrir sozinho?

Eu não sabia ainda se poderia confiar no mestre Malachai e

contar-lhe toda a verdade. Não se pode contar a verdade

para pessoas que podem nos fazer mal, mesmo que

tenhamos que ser chamados de mentirosos.

- Se você estiver mentindo é porque não quer ser

machucado ou está protegendo alguém. É o seu direito, meu

rapaz. Mas saiba que se você quer ter o direito de cobrar a

verdade dos outros, deve servir de exemplo – disse o ancião,

cofiando a longa barba.

113

- Como saber se uma pessoa merece a nossa verdade,

mestre? As pessoas costumam ser más quando descobrem a

verdade.

- Nunca saberemos, João. Nunca saberemos. Você corre

igual risco em mentir ou contar a verdade. Pode sofrer com

ambas. A escolha é sua. Se me contar a verdade, posso te

prometer guardar segredo e nunca usar o que souber contra

você para te fazer mal. Isso eu prometo.

- Mas as pessoas costumam prometer e depois não cumprem

o que prometem, mestre. Que escolha eu tenho?

- Como te disse, você não tem escolha sobre o que as outras

pessoas farão com a sua verdade. Elas poderão falhar.

Todos falhamos e é bom que você comece a se acostumar

com isso.

- Deus não falha! – disse eu, com veemência.

- Você, com certeza, não deve se lembrar que está escrito no

livro de Gênesis: “Então arrependeu-se o Senhor que ele

tinha feito o homem na terra e pesou-lhe em seu coração”.

Provavelmente, você também conhece a história do Rei

Saul, não conhece? Pois está registrado no Livro de

Números que Deus disse: “Arrependo-me que eu tenha

posto a Saul para ser rei”. Há muitos outras passagem nos

livros em que o próprio Senhor Deus reconheceu ter feito

algo errado. Se Ele pode errar, será que não temos esse

direito?

114

- O que o senhor está dizendo não é perigoso? Não vai

contra os nossos princípios? Os sacerdotes concordam com

o senhor?

- Pode ser que hoje eles não concordem, mas chegará o dia

em que concordarão e deixarão de seguir as escrituras de

modo tão ao pé da letra. É necessário que saibamos

interpretar o que está escrito, João. E tem algo que você

precisa entender. Será mesmo que tudo aquilo que está

escrito e em que acreditamos foi Deus quem ditou? Não

somos nós os escribas que escrevemos com a nossa pena e

com nossos instrumentos o que compõem as Leis?

Ao ouvir aquilo, lembrei-me imediatamente do mestre

Abner e da comunidade dos Essênios. Será que o mestre

Malachai era um essênio também? Eu deveria perguntar

sobre isso ou deveria silenciar? Preferi silenciar.

Após algum tempo matando as saudades dos livros da

biblioteca da sinagoga que ainda estavam intactos e

conversando com o mestre Malachai, percebi que podia

confiar nele. Tinha certeza de que ele era um essênio.

- Mestre Malachai – disse-lhe temeroso – eu vou te contar a

minha história real. Depois disso, o senhor ficará livre para

decidir se deve me levar ou não. Se não quiser me levar, eu

aceitarei a vontade do Senhor.

- Nesse caso, a minha vontade, não é, João. Conte-me tudo.

115

Contei todos os detalhes possíveis, até mesmo sobre a visita

à comunidade dos Essênios. O ancião ouviu tudo sem

interromper ou demonstrar qualquer emoção.

- Então é você o Escolhido? Javeh nos guiou na direção um

do outro. Talvez você não saiba, mas há uma grande Lei

que rege todo o universo que ajusta cada momento de nossa

vida para que certas coisas aconteçam. Bastaria um piscar

de olhos para que esse momento não acontecesse. A prova

está aqui agora. Você na minha frente.

- Isso quer dizer que o senhor vai me levar para o Egito?

Indaguei eufórico.

- Não apenas para o Egito, mas também à Grécia, à India, à

China, à Pérsia e mesmo à Roma. Viajaremos pelo mundo,

meu rapaz. Você já deu a si mesmo o seu nome: João. De

agora em diante, você será João. Ninguém mais precisa

saber do seu nome original. Ele guarda alguns perigos. É

melhor assumir seu novo nome.

Sorri de orelha a orelha. Eu agora tinha um novo protetor.

- Qual o objetivo de nossas viagens, mestre Malachai?

- Aprender, João. Você já fala muitas línguas e é um bom

escriba. Está prestes a completar 13 anos e seu Bat Mitzvá

será pelo mundo.

- Quer dizer que não precisarei fazer essa cerimônia?

116

- Não, João. Não precisará fazer. Para quê, se você já

provou que conhece as Escrituras mais que um sacerdote. O

Bat Mitzvá é uma celebração familiar, mas seus pais e seus

irmãos de sangue não estarão por perto. Nem é seguro que

você volte para perto deles. Sua mãe, seu pai e seus irmãos

agora são todos os que puderem ajuda-lo a cumprir a sua

missão. E posso te garantir, não será fácil, nem divertida.

Você vai sentir vontade de desistir, mas você a concluirá.

- Posso te pedir permissão para fazer mais uma coisa antes

de partirmos?

- Sim, João, mas seja o que for, espero que isso não mude o

seu modo de pensar nem o faça se desviar da sua missão.

- Não deixarei mestre, eu prometo.

- E o que é que você quer fazer?

- Preciso ver alguém...

- Você tem uma prometida? Uma jovem por quem está

enamorado, é isso?

Sorri envergonhado.

- Não sinta vergonha de demonstrar amor, carinho e paixão,

João. Sem esses sentimentos nós sequer existiríamos. Vá

ver a sua amada e volte para partirmos. Uma caravana de

mercadores partirá ao cair da tarde e será uma longa

117

viagem. Vou providenciar roupas para você, pois vi que

você nada trouxe contigo.

Agradeci e sai às pressas na direção da casa onde Sarah

morava com os pais. Eu poderia chegar lá de olhos

vendados.

Era uma casa como as demais da cidade, com uma

diferença, havia duas tamareiras imensas de cada lado da

casa e um caminho de pedras roliças conduziam até uma

elevação. Na primavera, Sarah e sua mãe plantavam flores e

muitas vezes eu as ajudava nessa tarefa, tornando-me um

conhecedor daquela arte.

Naquela época do ano, não havia flores, mas as pedras

continuavam lá, ladeando o caminho.

Bati com força na porta, esperando que ela se abrisse e

Sarah aparecesse, queria abraça-la, dizer-lhe que senti

saudades e que voltaria para que nos casássemos.

Quando a porta se abriu, foi um rapaz que me perguntou o

que eu desejava.

- Procuro por Sarah, a filha mais velha do sacerdote

Moshe... sou amigo dela. Meu nome é... é... Matias.

O rapaz, que deveria ter o dobro de minha idade, me olhou

com um certo desdém, pois meus trajes eram menores do

que o meu corpo, em seguida gritou.

118

- Sarah... tem um rapaz aqui chamado Matias procurando

por você.

Sarah apareceu em seguida. Suas mãos tremiam e ela mal

conseguia cobrir o rosto com um véu.

Fiquei ali petrificado olhando para ela, mas o instinto me

dizia que não deveria abraçá-la. Os braceletes que ela usava

no braço esquerdo e o véu indicavam que ela estava casada

e aquele rapaz era o seu marido.

Sorri e a cumprimentei reverentemente.

- Matias, por onde você andou? Muita coisa aconteceu por

aqui. Meu pai foi assassinado no Templo junto com outros

sacerdotes... o seu mestre Abner também foi sacrificado.

Foram tempos difíceis Matias... Perdoe-me... esse é o meu

esposo, Daniel... olhe, vamos ter um filho e eu vou dar o seu

nome a ele, já decidimos, não é meu esposo?

O rapaz deu um meio sorriso e confirmou com a cabeça.

Não tive tempo de explicar nada a Sarah. Meu coração

estava partido em mil pedaços e não havia nada que eu

pudesse fazer.

Uma vez mais Javeh havia falhado comigo. Uma vez mais

os romanos tinham tirado as melhores pessoas de minha

vida.

119

Eu não disse para onde iria. Não sabia se era seguro falar da

minha nova vida diante de um estranho. Nos despedimos.

Vi que Sarah havia ficado com os olhos rasos d´agua no

meio abraço que trocamos. Voltei para a sinagoga, sem

olhar para trás. Deixaria para trás o meu passado, as minhas

dores, os meus problemas, a minha família, o meu amor. O

único que tive em toda a minha vida.

120

121

Capítulo VI - O Plano de Redenção da

Humanidade

A viagem pelas estradas empoeiradas de Israel, passando

por Belém, Hebron e Berseba até alcançarmos as montanhas

de Gosén, foi terrível e houve momentos em que eu achei

que não iríamos conseguir chegar ao nosso destino.

O comboio, formado por 30 homens e 6 mulheres montados

em camelos e jumentos de carga, se perdia na imensidão do

deserto repleto de infinitas dunas douradas. O inclemente

sol do meio dia queimava as nossas peles, nos rachava os

lábios e nos fazia transpirar copiosamente. As tendas

armadas para nos proteger das tempestades da madrugada

eram açoitadas pelo vento que nos expunha à escuridão da

noite sob o olhar frio das estrelas. Vez por outra, uma lua

encurvada aparecia no firmamento, como se nos seguisse

silenciosa a espiar de longe os nossos passos.

Ocasionalmente, encontrávamos patrulhas romanas que

vasculhavam todas as mercadorias em busca de armas.

Muitos até nos saqueavam, sem se importar se morreríamos

de fome ou de sede. O que os impedia de nos matar era o

fato de viajarem conosco, três romanos, três sírios, três

egípcios, dois gregos, um persa e os demais, todos judeus de

diferentes regiões com permissão para viajar dadas pelo Rei

da Judeia, um romano. Sem isso, não teríamos sequer saído

de Jerusalém.

122

Sempre éramos abordados por soldados que faziam

perguntas, revistavam nossas cargas, deixando-as

espalhadas pela areia e, depois de se servirem com o que

lhes apeteciam, partiam nos deixando com a tarefa de

reembalar nossos pertences, compostos por uma preciosa

carga de cereais, frutas secas e verdoengas que colhíamos

nos oásis encontrados no caminho, cantis com água,

pergaminhos virgens, tintas, perfumes, incenso, azeite e

artigos de cozinha que negociávamos de cidade em cidade.

Esses produtos eram muitas vezes usados como moeda de

troca para que nos deixassem passar. Também serviria para

o caso de sermos atacados pelos beduínos do deserto –

grupos armados errantes que viviam de assaltos aos

viajantes desavisados. Eles representavam o maior perigo.

Mesmo maior que os romanos, os quais obedeciam ordem

de generais e do rei. Sabíamos de muitas caravanas que

foram massacradas pelos impiedosos tuaregues e outros

grupos nômades, sem governantes e sem leis, a não ser as

que eles próprios faziam.

Não nos era permitido carregar armas. Nem as

carregaríamos, pois todos, exceto eu, eram membros

itinerantes da Comunidade dos Essênios. Foi o que me

dissera o mestre Malachai antes de partirmos.

Enfrentamos tempestades de areia, chuvas torrenciais, frio e

calor intenso em nossa jornada rumo ao Egito. Foi uma

grande aprendizagem para mim viajar com aqueles homens

e mulheres tão diferentes dos demais com quem eu já havia

convivido até aquela data.

123

Viajava ao lado do mestre Malachai que era o líder do

grupo e todos o obedeciam sem discussões, exceto eu, que

vez por outra sentia vontade de contrariá-lo. Mas, em vez de

reprimenda, ele sempre tinha uma palavra de ponderação

para comigo.

Durante as noites em que acampávamos para o descanso,

mestre Malachai contava-nos histórias do nosso povo,

algumas eram novidade para mim, pois mesmo já tendo lido

grande parte dos livros existentes no Talmud, ainda havia

outros que eu não lera, já que existiam livros proibidos aos

que não eram sacerdotes.

- Qual a razão de existirem livros proibidos, mestre

Malachai?

- Os livros proibidos são aqueles que, de algum modo,

contam histórias constrangedoras ou que os sacerdotes não

querem dar conhecimento ao povo. Histórias que

envergonham o nosso povo. Alguns já tentaram destruí-los,

mas graças ao trabalho sábio e diligente dos escribas, como

nós, que sempre tivemos a oportunidade para fazer cópias e

as fazíamos secretamente e, em seguida, ocultando-as em

algum lugar quase impossível de ser achado.

- Foi assim que muitos livros proibidos chegaram até os

nossos dias, é isso?

- Sim. Um desses livros é o do Profeta Samuel. Você sabe

quem foi ele? – indagou-me, Malachai.

124

- Não tenho certeza, mas ele deve ter sido um sacerdote ou

profeta, estou certo?

- Na verdade ele foi um grande líder de Israel e o primeiro

dos grandes profetas. Foi ele, também, juiz e administrador.

Chega-se a dizer que ele era da estatura histórica de Moisés.

Por outro lado, o conteúdo dos dois livros dedicados à vida

dele não deixa alguns sacerdotes muito confortáveis.

- E o que causa esse desconforto, mestre?

- Vou te contar uma história que está registrada no Primeiro

Livro de Samuel, mais precisamente no capítulo VI. Se

você quiser perguntar alguma coisa, poderá fazê-lo. Assim

compreenderá melhor a profundidade da história. Você sabe

o que era a Arca da Aliança nos tempos dos profetas?

- Sim, todos que estudam as Leis sabem que foi um baú de

madeira revestido em ouro por dentro e por fora, construído

seguindo as orientações que Javeh deu a Moisés.

- Isso mesmo, João. Foi construída por Bezalel, o artífice-

mor do povo hebreu. Era feita de acácia e tinha uma tampa

chamada Propiciatório. Na frente, foram colocados dois

querubins feito em ouro, sendo que as asas deles se

curvavam para o meio da tampa, em sinal de reverência e

adoração. Nas laterais, havia quatro argolas de ouro, nas

quais se enfiavam duas varas, também feita de acácia e

ouro, para transportar o objeto. Somente os sacerdotes

podiam tocar e transportar aquela arca.

125

- O que havia dentro dela, mestre? Eu já li sobre isso mas

não me recordo direito dos detalhes.

- Conta-se que, dentro da Arca da Aliança, havia alguns

objetos sagrados do povo judeu daquela época, entre eles: a

vara de amendoeira de Arão que floresceu e frutificou.

- Vara de Arão? É aquela história contada no livro de

Números? Não me recordo bem dela, mestre.

- Deus falou a Moisés, há mais de mil anos, que iria

escolher um dos homens para ajudá-lo a cuidar do povo.

Falou a Moisés para pegar 12 varas secas e, em cada uma

delas, deveria escrever o nome de cada um dos príncipes de

Israel. As varas seriam colocadas no tabernáculo onde

faziam as orações e celebravam os rituais sagrados. A vara

que florescesse indicaria aquele que iria acompanhar

Moisés em sua missão. No dia seguinte, havia uma vara que

estava florida e brotara renovos e dera amêndoas. Era a vara

de Arão. Então ela foi colocada dentro da Arca junto com

outros objetos.

- Quais eram esses outros objetos?

- Um pote de maná e as Tábuas dos Dez Mandamentos.

- Maná? O senhor se refere àquela comida que Javeh

mandou do céu para alimentar o povo hebreu que fugiu do

Egito? Que tinha gosto de mel ou de bolo doce de azeite?

126

- Isso mesmo, meu rapaz. Você leu o livro de Êxodo, não

foi? Segundo a história, esse alimento caia do céu após o

amanhecer e parecia uma geada branca, descrito também

como uma semente de coentro ou obdélio. Esses flocos

eram moídos, cozidos ou assados, sendo transformados em

bolos.

- Javeh sabia cuidar do seu povo, não era, mestre Malachai?

- Sabia não, ainda sabe cuidar. Os estudos que os sábios do

Egito fizeram recentemente mostram que aqueles flocos, o

maná, não era algo vindo do céu, mandado por Javeh, mas

sim um produto expelido por piolhos de plantas, cigarras e

cochonilhas, que se alimentam das tamargueiras do deserto

do Sinai. Era essa substância doce que evaporava e, pela

manhã, apareciam como flocos, batizados com o nome de

“maná do céu”. Aliás, se tivermos sorte, poderemos

encontrar um pouco desse maná durante a nossa caminhada.

Fiquei sem fala. Durante toda a minha vida eu havia sido

ensinado que o maná era um alimento sagrado, enviado por

Javeh para alimentar o seu povo, agora o mestre Malachai

me contava algo que eu jamais saberia se não o tivesse

encontrado.

- Onde o senhor aprendeu essas coisas, mestre?

- Nas minhas viagens, com os meus mestres, os sábios e os

livros da biblioteca de Alexandria e de Pérgamo. Você nem

imagina quanto conhecimento está acumulado nesses

lugares. Foi lá onde absorvi muitos conhecimentos, os

quais, dentro de alguns séculos, já não serão novidade.

127

Infelizmente, não podemos perder tempo nas sinagogas

explicando os milagres de Javeh. Mas a história existe para

ser contada. Afinal, que diferença faz se a comida que

alimentou e ainda pode alimentar tantas pessoas foi um

produto que veio diretamente das mãos de Javeh, ou se foi

feito por pequenas criaturas que Ele mesmo criou com o

propósito de nos ajudar a viver melhor? Um dia os homens

e mulheres descobrirão que os milagres estão por toda parte.

Não precisamos nem mesmo orar para que eles aconteçam.

Desconfiei que o mestre Malachai havia bebido muito vinho

naquela viagem e pedi para ele concluir logo a história, pois

estava com sono e queria ir dormir na minha tenda com os

outros rapazes do grupo.

- Onde paramos?

- Na arca mestre... nos objetos que estavam dentro dela. O

senhor disse que havia as Tábuas dos Dez Mandamentos?

Mas elas não foram quebradas por Moisés quando viu o

povo adorando um bezerro de ouro?

- Sim, João, foram quebradas as primeiras, mas Deus

mandou Moisés lavrar outras tábuas de pedra e voltou a

escrever com fogo os dez mandamentos.

- Ah... é isso mesmo. Eu só nunca entendi a razão pela qual

Moisés teve que ir sozinho para o monte Sinai, porque

Javeh o pediu para não deixar ninguém chegar perto do

monte enquanto Ele estivesse lá escrevendo as tábuas para

Moisés.

128

- Isso não é para ninguém entender, meu filho. A história

não nos dá explicações. Apenas narra os acontecimentos,

conforme eram contados de uma pessoa para outra. Para a

entendermos, precisaríamos reescrevê-la e, nem assim,

poderíamos estar certos de que tudo ficou esclarecido. Pois

bem, a Arca foi feita para simbolizar a nova aliança que

Deus fez com os homens. Por isso tinha que ser levada

sempre para onde fossem os sacerdotes e tinha um valor

incalculável.

- O ouro já tinha tanto valor, naquela época?

- Sim, ouro e prata sempre foram metais preciosos pela

resistência e durabilidade. A Arca era o objeto mais valioso

que o povo hebreu possuía, era guardada por soldados

armados e somente os sacerdotes podiam tocá-la.

- Mestre, esse maná que estava dentro da arca não poderia

ser outra coisa? Uma bebida, por exemplo? Pelo que me

lembro, o maná não podia ser guardado por muitos dias,

porque estragava. Como poderiam deixar um pote com

maná dentro da arca?

- Você está ficando bom em interpretações do Talmude,

João. Pode ser que seja mesmo outro alimento. Já conversei

com alguns sábios da Índia, um país longínquo, bem mais

antigo que o nosso, e eles me disseram que lá são

conhecidas muitas ervas que provocam visões e

alucinações. A bebida feita com essas ervas, por exemplo, é

muito mais forte que o vinho. Mas, um dia você vai ler

sobre isso e tirar suas conclusões. Por ora, vamos pensar

apenas no “maná” que estava na arca. O que se pode dizer é

129

que era algo que os sacerdotes certamente não queriam que

ninguém mais além deles provasse, por isso tinham tanto

cuidado.

- Parece que o senhor, se desviou do assunto. O senhor

estava contando sobre a Arca da Aliança, o que aconteceu

com ela na história do livro do Profeta Samuel.

- Pois bem, houve uma luta terrível entre os hebreus e uma

tribo rival conhecida por filisteus. Eles conseguiram, depois

de muitos dias de luta contra os soldados comandados por

Samuel, matar milhares de soldados e se apropriarem da

Arca Sagrada, que era muito valiosa e a levaram para a

cidade de Asdode. Talvez tenha sido o artefato mais valioso

em toda a Terra, naquela época. O peso em outro seria

suficiente para comprar milhares de cavalos, armas de

guerra e terras.

- E o que os filisteus fizeram com a Arca? Destruíram-na?

- Não, eles sabiam que os hebreus reverenciavam naquela

arca o próprio Javeh. Avaliaram que talvez pudesse

negociar com outros inimigos usando a arca como moeda de

troca. Os filisteus tinham outro deus chamado Dagon.

Assim, colocaram a Arca ao lado de Dagon. No dia

seguinte, quando os filisteus foram fazer seu culto a Dagon ,

encontraram a estátua dele com a cabeça e as mãos

decepadas.

- Devem ter ficado muito assustados, não foi?

130

- Sim, e os sacerdotes de Dagon acharam que havia sido

obra de algum hebreu infiltrado no meio deles. Mas não

tinham provas. Conta o livro de Samuel que, passado alguns

dias, Javeh feriu aos filisteus daquela cidade com

hemorroidas. Homens, mulheres e crianças.

- Foi um duro castigo para eles, não foi, mestre?

- Sim, conta a história que houve ainda um castigo pior.

Javeh assolou todas as cidades para onde a Arca era levada

com uma praga de ratos, além das hemorroidas. Milhares de

filisteus morreram ou ficaram gravemente doentes nas

cidades de Gate e Ecron.

- Que história mais triste, mestre Malachai. – e como ela

termina? O que aconteceu depois?

- Os príncipes filisteus, vendo seu povo morrer, chamou os

sábios e sacerdotes hebreus para uma conversa e lhes

perguntou o que deveriam fazer. Queriam a garantia de que,

se devolvessem a Arca da Aliança, as mortes parariam bem

como a praga de ratos.

- E pararam mesmo?

- Bem, no acordo que fizeram, os sacerdotes exigiram que a

Arca fosse devolvida e, além disso, os filisteus deveriam

expiar o pecado cometido enviando junto com a Arca

algumas peças feitas em ouro puro. Vou recitar o trecho de

Samuel que diz: “E disseram os sacerdotes: Fazei, segundo

o número dos príncipes dos filisteus, cinco hemorroidas de

ouro e cinco ratos de ouro; porquanto a praga é uma mesma

131

sobre todos vós e sobre todos os vossos príncipes. Fazei,

pois, umas imagens das vossas hemorroidas e dos vossos

ratos, que andam destruindo a terra, e dai glória ao Deus de

Israel; porventura aliviará a sua mão de cima de vós, e de

cima do vosso deus, e de cima da vossa terra”.

- Ahahaha... essa foi muito boa.

Não aguentei e caí numa sonora gargalhada.

- Que espertos foram os sacerdotes, não foram? Quiseram

receber uma recompensa em ouro pela desfeita de terem

lhes roubado a Arca. E os filisteus cumpriram? Fizeram as

hemorroidas e ratos de ouro? Mas Deus não havia proibido

fazer imagens de escultura?

- Claro, fizeram sim. Mas você não se lembra da história de

Moisés? Ele mesmo que recebeu os Dez Mandamentos que

seguimos até hoje onde se diz que não devemos fazer

imagens de escultura nem as adorar?

- Lembro sim, ele ficou 40 dias lá no monte e desceu com as

tábuas da lei. Lembro-me de ter lido que, enquanto ele

estava conduzindo o povo pelo deserto por 40 anos, muitos

foram picados por serpentes venenosas. Foi então que ele

pediu que Arão recolhesse todas as joias, argolas, colares e

braceletes de ouro, as fundisse e fizesse uma serpente de

ouro e a colocasse no meio do acampamento, para que

qualquer um que ficasse doente e olhasse para a serpente

ficaria curado. Que interessante, lembrei-me agora de que o

dilúvio durou 40 dias. Também foram 40 os dias

132

anunciados para a destruição da cidade de Nínive, como diz

o livro do profeta Jonas.

- Exatamente, meu rapaz. Pelo que vejo, você está atento

aos números e aos sinais deixados pelos antigos escribas.

Todos os pintores, escritores e escultores encontram sempre

uma maneira de ocultar em suas obras conhecimentos que

só serão percebidos por outros conhecedores dos mesmos

símbolos.

- O senhor está dizendo que, nos livros sagrados, os

números são indicativos de algum conhecimento oculto? Os

escribas antigos criaram um código secreto, é isso?

- Sim, foi assim e sempre será. Um dia você conhecerá o

significado desses números. As histórias podem se perder

no tempo, as pessoas se confundirem, mas os números são

sempre únicos. Nunca são alterados. Os números 3, 7, 12,

13, 33 e 40 são símbolos universais, conhecidos por

estudiosos de várias partes. Os escribas de países

estrangeiros e também do nosso, que já viajaram para outras

terras, conseguiram colocar nas histórias esses números de

modo a que somente outros escribas ou leitores experientes

percebessem.

- O senhor conhece o significado oculto dos números,

mestre Malachai?

- Sim, conheço alguns. Tenho estudado a Guematria que me

ajuda a compreender o significado oculto dos números nos

textos sagrados. Infelizmente, esses estudos são proibidos

em muitos países. Ao que parece, as pessoas que possuem

133

esse conhecimento não quererem compartilhá-los com mais

ninguém.

- Um dia o senhor me ensinará a Guematria?

Talvez eu não tenha tempo para te ensinar tudo o que você

deseja saber, meu rapaz. Os livros e outros mestre te

ajudarão, com certeza. Vai depender de você. Mas vamos

terminar a nossa história. Onde paramos?

- Nas hemorroidas...

Gargalhamos juntos. Malachai continuou.

- Antes delas, temos que concluir a história da serpente de

Moisés. Você há de convir que foi uma boa maneira de ele

conseguir a atenção do povo para algo muito poderoso que

só agora estamos descobrindo nos estudos com os sábios de

outros povos. Está relacionado com a palavra “fé”.

- Fé? O que significa exatamente essa palavra. Qual é a

origem dela?

- Essa palavra é de origem Grega "pistia", que quer dizer

“acreditar”. Quando você intimamente acredita em alguma

coisa, dizemos que você tem “fé”. Ela é um sentimento e

não pode ser explicada por nossos conhecimentos atuais.

Quando oramos a Javeh, acreditamos que Ele vai nos

atender, estamos tendo fé.

134

- Mas Moisés não falou para o povo ter fé em Javeh e sim

numa serpente de ouro no alto de um mastro. Não é a

mesma coisa.

- Sim, mas a crença em ambos depende da “fé”. E obter

algo por meio da fé depende só de você, da sua crença, do

que você intimamente acredita. Você sabia que existem

outros povos que adoram a deuses que fazem milagres

como os que Javeh faz? Eu não sabia disso até conviver

com povos do oriente. Um dia você os conhecerá. Mas

vamos terminar essa história da Arca, pois eu já estou

ficando como sono e amanhã teremos que levantar cedo o

acampamento, para seguirmos viagem. Com sorte,

alcançaremos o delta do Nilo em três dias.

- Essa história é muito interessante, mestre Malachai.

Também é muito intrigante essa coisa de “fé”. Quer dizer

que se eu acreditar firmemente que um dia eu reencontrarei

meu pai e meus irmãos, eu reencontrarei?

- Sim, meu filho. Se você acreditar firmemente e buscar a

realização do seu desejo, se aproveitar todas as

oportunidades dadas por Javeh para que você alcance seu

desejo, será possível sim.

- Finalmente, o que aconteceu com a Arca depois que foi

entregue com as hemorroidas e os ratos de ouro? A doença

e os ratos desapareceram?

- Pois é, essa é uma história curiosa, pois, conta-nos o livro

de I Samuel, no capítulo 5, que, logo que a Arca foi

devolvida na cidade hebreia de Bete-Semes, conforme as

135

instruções dos sacerdotes, houve uma grande festa, mas,

dias depois, 50 mil pessoas foram feridas com hemorroidas

e milhares morreram em pouco tempo.

- Morreram?! Mas não eram hebreias? Foram feridas por

Javeh?

- Foi o que disseram. Mas duvido muito. Disseram que elas

cometeram o pecado de tocar e olhar dentro da Arca, e isso

era proibido. Alegavam que mesmo o povo de Israel não

podia tocar na arca, só os sacerdotes que eram ungidos por

Javeh.

- Que estranho isso, mestre Malachai.

- Não é tão estranho, se você pensar, por exemplo, que

existem doenças que são transmitidas de uma pessoa para

outra. Muita gente pensa que a lepra é contagiosa, mas

nosso povo tem estudado essa moléstia e comprovou que

não é. Não sabemos ainda como muitas doenças se

transmitem de uma pessoa para outra, mas tudo indica que

morreram por uma doença transmitida pelos ratos.

Chamam-na de “peste negra”, porque ela causa o

aparecimento de manchas de cor escura na pele e ferimentos

por todo o corpo. Já aconteceu em outros países,

provocando a morte de milhares de pessoas. Ao que parece,

a arca estava contaminada e espalhou a doença.

- Então não foi Javeh?! - indaguei, perplexo.

- Ora, ora, João... Javeh não é o responsável por tudo? –

respondeu sorrindo o ancião, exibindo dentes perfeitos.

136

- Sim, mas não é uma mentira dizermos que algo feito pelos

homens foi obra de Javeh?

- Mentira, mentira nem sempre é. Os profetas do passado

eram muito sábios e usavam a ignorância do povo para

ajudar a fazê-los obedecer às Leis. Precisavam temer a

Javeh que lhes foi dado como único Deus. Era a maneira de

conduzi-los e educá-los. O temor gera obediência. Essa é a

maneira mais simples de ensinar a uma criança. Precisamos

mudar isso, mas no passado não havia outro modo. Os

profetas falavam em nome de Javeh

- Então os profetas simulavam a vontade de Javeh?

- Você um dia compreenderá que existem muitos mistérios

na vida. Nem sempre os livros antigos do nosso povo

explicam tudo. Os profetas eram líderes que queriam o bem

do nosso povo. Queriam nos manter unidos para enfrentar

os inimigos. Para isso, precisávamos nos apoiar em um

Deus forte, poderoso e imbatível.

- Mas às vezes nosso povo perdia muitas batalhas, não era?

Como foi o caso de Samuel e tantos outros reis.

- Sim, perderam muitas guerras, mas sempre acreditavam

que Javeh estava do lado deles. Como os escribas da época

escreviam o que os reis e sacerdotes desejavam e

ordenavam, eles faziam com que o povo interpretasse as

derrotas como castigo de Javeh por alguma desobediência.

Era uma forma de obter a coesão. Quanto mais acreditassem

que teriam uma vitória se seguissem as leis de Deus, mais

fortes ficariam. Foi assim que o nosso povo foi forjado. O

137

povo precisava ter disciplina, seguir normas, para obterem o

sucesso nas empreitadas. Eram dias muito difíceis.

- Mestre.... – disse eu, bocejando. O senhor pode terminar a

história das hemorroidas e dos ratos. Já não me aguento

mais de sono.

- Claro, João... a culpa é sua que fica esticando a conversa.

Obriga-me a dar voltas e mais voltas. Mas está bem. É

assim mesmo que se faz. Tira-se as dúvidas, questiona-se,

indaga-se as razões, faz-se comparações, para se obter boas

conclusões. O que aconteceu com a Arca foi que, depois de

ela retornar aos hebreus, matar e adoecer milhares de

pessoas do nosso povo, todos adoradores de Javeh, os

sacerdotes decidiram leva-la para um outeiro e a colocaram

dentro de uma casa especialmente construída para abriga-la

e lá a deixaram por 7 anos. Colocaram guardas para vigiá-

la. Dessa vez, nem mesmo os sacerdotes tinham permissão

para tocá-la.

- Sete anos?! Ou seja, depois desse tempo a doença que

estava lá dentro já teria acabado, não é?

- Provavelmente. Tudo se acaba um dia, até as piores

doenças. Também foi tempo suficiente para que as pessoas

ficassem curadas e muitas fortes o suficiente para não serem

mais contaminadas por aquele mal. Os ratos também

desapareceram completamente de todas as cidades, pois os

sacerdotes apelaram para o fogo na intenção de destruí-los.

- E porque os sacerdotes não adoeceram?

138

- Quem disse que os sacerdotes não adoeciam? Muitos

morriam e logo eram apontados como alguém que tinha

cometido algum pecado. Ora, quem não comete pecados?

- Talvez houvesse alguns que eram capazes de resistir a

certas doenças mais que outros?

- Com certeza. Os que cuidavam da arca deviam conhecer

algum medicamento, alguma erva que os protegia de certos

males. Eles se consideravam abençoados por Javeh.

- Não deveriam distribuir o medicamento para todos?

- Deveriam? E como seriam controlados? Quem os puniria

quando transgredissem? Os sacerdotes sabiam que

perderiam o controle do povo facilmente, se todos

pudessem ter algum tipo de proteção especial. Eram eles

que queriam ficar com esse poder.

- Mas o senhor é um sacerdote, mestre Malachai. Faz uso

desse poder para controlar as outras pessoas?

- Eu estaria mentindo se dissesse que não. Existem pessoas

que não conseguirão obedecer, senão pelo medo. Quando

seus pais dizem que, se você cometer algum pecado, mesmo

oculto dos homens, você será castigado por Javeh que tudo

vê, está colocando medo em seu coração para que você siga

as normas. No momento em que acontecer algum mal em

sua vida, eles te dirão que deve um castigo de Javeh, por

algum pecado que você cometeu. Eles estão errados? Estão

mentindo para se beneficiar ou tentando te proteger do mal?

Uma criança morreria facilmente se não obedecesse aos pais

139

ou aos adultos com mais experiência. Esse é o objetivo das

Leis. Proteger as pessoas do mal que elas, por inocência ou

ignorância, possam cometer até contra si mesmas.

Fui dormir com a mente fervilhando de novas perguntas.

Aquele era um novo mundo para mim. Quanto mais eu

conversava com homens sábios, mais curioso eu ficava

sobre os milagres, as lutas, as conquistas e o destino do

nosso povo. Eu também gostaria muito de saber sobre o

meu próprio destino. Sobre a minha missão. O mestre

Abner não estava mais vivo para me falar sobre ela e, agora,

o meu novo tutor parecia convencido de que eu tinha um

grande trabalho a realizar.

Dormi profundamente, ouvindo o som do vento sibilar pelas

frestas da minha tenda. Mergulhei em um sono intenso,

povoado de sonhos nos quais meus irmãos e eu

brincávamos felizes às margens do Rio Jordão,

acompanhados pelos olhares atentos e zelosos de meus pais.

Minha mãe me sorria feliz, recostada contra o peito de meu

pai. Eu os olhava de longe e, aos poucos, eles iam sumindo

no horizonte, até se tornarem uma fina poeira tocada pelo

vento.

Despertei-me, abruptamente, ouvindo gritos e alaridos no

acampamento. Não havia mais ninguém dentro da minha

tenda. Meus companheiros já não estavam mais lá. Espiei,

cautelosamente, pela fresta da lona e fiquei estarrecido com

o que vi. Estávamos sendo assaltados por tuaregues.

Os reconheci imediatamente, pois usavam um turbante azul,

o “tagelmust”, que lhes tapava quase todo o rosto, deixando

140

apenas os olhos descobertos. Meus companheiros de viagem

estavam ajoelhados no centro do acampamento e, em volta

deles, homens vestidos em roupas pretas, portando adagas.

Alguns tuaregues estavam montados em camelos e

portavam a temível “takoba”, uma espada de lâmina larga,

com dois gumes e um friso longitudinal, com o punho

guarnecido por uma peça retangular, que lembra uma cruz.

Falavam alto e o que parecia ser o líder estava de pé diante

de Malachai, com a espada encostada na altura de sua

garganta.

- Para onde estão indo e o que estão levando? – perguntou o

tuaregue, em uma língua que reconheci ser o aramaico.

- Somos mercadores e estamos viajando para o Egito... para

a cidade de Alexandria. Vocês podem levar parte de nossa

comida e alguns utensílios. Deixe apenas o suficiente para

que consigamos chegar ao nosso destino. Somos menos de

40 viajantes, temos aqui mulheres e crianças.

- Quantos escravos estão levando? – indagou o guerreiro,

sem afastar a lâmina pontiaguda da garganta de Malachai.

- Somos mercadores, gente de boa vontade e de paz. Não

temos escravos. Nossa comunidade não aceita escravos –

disse o mestre, sem demonstrar qualquer medo.

Lembrei-me da ocasião em que o mestre Abner me ensinava

a história dos povos nômades que habitavam os desertos,

entre os quais existiam os tuaregues e o beduínos. Eles

chamavam a si mesmos de Imuhagh “os homens livres”.

141

Não admitiam nenhum tipo de escravidão. Tinham como

meta libertar todos os escravos, em qualquer lugar que os

encontrasse, matando impiedosamente os algozes.

Escondiam-se no labirinto do deserto e raramente eram

encontrados. Jamais entravam em cidades e preferiam

realizar ataques surpresa a caravanas pequenas, de qualquer

nacionalidade, que lhes cruzasse o caminho. Dessa vez, nós

eram suas vítimas.

O líder do grupo pareceu desconfiado da resposta de

Malachai e pediu a um dos seus homens que perguntasse em

várias línguas quem era escravo naquela caravana.

- Se houver um único escravo entre vocês, cortarei a sua

cabeça e a de todos os demais que o acompanha, exceto dos

escravos – disse o homem em voz alta, olhando para

Malachai com fúria.

Pensei em ir ao encontro dos meus companheiros, mas

decidi que era melhor me manter oculto.

Alguns tuaregues haviam se desmontado e agora reviravam

as tendas e as nossas mercadorias, pareciam procurar por

armas ou ouro. Eram meticulosos nesse trabalho e pareciam

não ter pressa.

- El-Alah!! Venha ver isso aqui – gritou um dos homens

para o líder do bando, ao abrir um dos sacos de cereais –

vejam o que eu encontrei escondido no meio do trigo....

O homem arrastou Malachai pela túnica até o local onde

estava o saco aberto revelando o conteúdo oculto. Havia 5

142

adagas curtas, cuidadosamente embrulhadas em tecido e

escondidas dentro de um saco de trigo.

- Então vocês são homens de paz, não é? Não transportam

armas nem escravos. Que outras mentiras ainda vai dizer

antes que eu decepe a sua cabeça, seu velho mentiroso? –

Berrou o líder, chutando o estômago de Malachai, caído ao

chão.

- Perdoe-me senhor... perdoe-me senhor. Eu não sabia que

alguém do nosso grupo transportava armas escondidas. Por

favor, pode ficar com elas. Queremos apenas prosseguir

nossa viagem em paz.

- Mentiroso! Você é um velho mentiroso e vai morrer por

esse insulto. Por seus trajes, posso ver que é um homem de

posses. Deve ter muitos escravos para te servir. Vai morrer

por isso também. Nosso povo vai libertar todos os escravos

da terra, nem que tenhamos que morrer para conseguir isso.

Instintivamente, pensei em ir correndo para salvar o meu

mestre, mas procurei controlar a minha aflição. Lembrei-me

de meu irmão Benjamin. Se ele estivesse ali, talvez pudesse

nos salvar. Mas ele não estava e nós agora estávamos nas

mãos dos tuaregues e de Javeh, se ele pudesse ouvir a minha

súplica e desejasse atende-la. Os tuaregues não nos

poupariam.

Um dos guerreiros caminhou em direção à tenda onde eu

estava oculto. Não sabia o que devia fazer quando ele

entrasse. Não havia onde me esconder. A única solução

seria sair por baixo da tenda na direção oposta. Lembrei-me

143

da ocasião em que fugira da comunidade dos essênios e,

sem perder tempo, esgueirei-me para passar por baixo da

lona. Mas, ao fazer isso, meu pé engastou em uma das

estacas de sustentação da tenda e esta caiu sobre mim,

chamando a atenção de todos que estavam a poucos metros

dali.

Com a rapidez de um felino, o tuaregue me agarrou e me

ergueu com uma das mãos, enquanto a outra segurava a

espada junto ao meu pescoço.

- Olhem como esse cabritinho treme de medo, El-Alah –

Disse o tuaregue, enquanto me arrastava como a um saco

vazio, jogando-me perto de Malachai. Abracei-o com o

corpo trêmulo, aterrorizado pelo medo. As mulheres e

demais crianças correram em nossa direção e se

amontoaram sobre nós como se quisessem nos proteger.

O líder do grupo, a quem chamavam de El-Alah, voltou-se

para os seus guerreiros e gritou palavras que eu não entendi.

Deveria ser um dialeto desconhecido. Em seguida, brandiu

sua espada, dizendo em voz firme:

- Apenas um de vocês será sacrificado aqui. Um de vocês

deve se oferecer em favor dos demais. Os outros poderão

prosseguir em sua jornada. Isso servirá para que vocês se

lembrem, pelo resto da vida de vocês, que um dos seus

irmãos foi capaz de sacrificar a própria vida para lhes

poupar e com isso aprendam a serem pessoas de valor.

Quem vai derramar seu sangue na areia do deserto para

libertar seus irmãos? Quem vai?

144

Mestre Malachai, apesar de idoso, levantou-se com a força

de um jovem e se jogou aos pés de El-Alah.

- Sacrifique-me... eu sou o culpado. Pode sacrificar-me. Que

seu desejo seja realizado. Estou nas mãos de Javeh.

Fui atrás de meu mestre. Eu não o deixaria morrer, ou

morreríamos lutando.

Um dos guerreiros tuaregue me interceptou com a perna,

derrubando-me antes que eu alcançasse o ancião.

- Por favor, por favor, não mate o meu mestre. Eu suplico...

eu suplico... – gritei na direção do líder, que se virou de

súbito e se aproximou de mim em passos lentos, com a

espada erguida. Ele agora estava a poucos centímetros do

meu rosto, podia apenas ver os seus olhos, pois seu rosto

ainda estava envolto pelo turbante azul. Vi neles um brilho

que conhecia, ao mesmo tempo em que ele exclamou:

- Matias!! Matias!!.... meu filho... é você?

145

Capítulo VII - Os Dissidentes

Certamente, não deve existir maior emoção na face da terra

do que a provocada pelo sentimento de amor genuíno de um

pai ou mãe por um filho. Esse amor é capaz de superar

qualquer barreira, qualquer obstáculo. Um pai será capaz de

morrer no lugar do filho, se tiver que fazer essa escolha. Eu

tive certeza disso, ao receber, naquele dia inesquecível, o

abraço de amor do meu pai. Ficamos ali ajoelhados na areia

do deserto, chorando sob os intermináveis beijos de meu

pai, diante de uma plateia de tuaregues, egípcios, romanos,

gregos e judeus. Apenas três pessoas sabiam o que

significava aquele reencontro. Meu pai, eu e o mestre

Malachai.

Quando meu pai se refez da perplexidade e se levantou,

ergueu-me como uma pluma em suas mãos, exibindo-me

para todos:

- Homens, companheiros... abaixem as suas armas. Elas não

serão necessárias aqui. Seja lá qual for o deus que está por

trás de tudo isso, só posso dizer que hoje, no deserto do

Sinai, aconteceu um milagre. O maior milagre de toda a

minha vida. Esse rapaz é Matias, o meu filho mais velho.

Todos se olharam espantados, boquiabertos, enquanto eu

sorria como uma criança de colo agarrada ao meu pai, meu

herói, meu salvador. Não havia outro homem a quem eu

mais respeitasse e amasse sobre a terra, além dele. Eu sabia

que agora poderia voltar para casa, rever meus irmãos e a

146

minha mãe. O que eu não sabia era que Javeh, ou como

disse meu pai, seja lá que deus estivesse por trás daquele

encontro, minha vida dali em diante não seria mais a

mesma.

O que se seguiu depois, não será difícil para nenhum leitor

desse meu pergaminho imaginar. Já se passaram várias

décadas, mas eu até hoje revivo aquele dia como se fosse

hoje.

Homens e mulheres se abraçaram e cantaram por todo o

resto do dia, varando até a madrugada. Os tuaregues agora

eram também nossos irmãos. Nos ofereceram o mais puro e

refinado vinho produzido em toda Judeia, furtado de outros

mercadores atacados.

Meu pai não se separava de mim por um só instante. A todo

momento, sorria para mim e acariciava meu rosto, como eu

o via fazendo à minha mãe. Não sabia que os tuaregues

podiam ser tão afetuosos. Mas aquele não era um tuaregue

qualquer, era o meu pai.

- O senhor mudou de nome? Porque estão te chamando de

El-Alah?

- Mudei de nome porque Halael passou a ser o homem mais

procurado de toda a Judeia. Mas, se você observar direito,

eu só inverti a ordem de algumas letras. Veja: EL-ALAH ...

HALA-EL...

Caímos na gargalhada.

147

- Você talvez não saiba, mas Alah é a palavra que os povos

semitas, que foram gerados por Ismael, um dos filhos do

antigo patriarca Abraão, chamam Deus. Ismael teve 12

filhos e esses povos se tornaram inimigos de Israel. Até

hoje, lutamos contra eles em muitas regiões, porque querem

mais e mais das nossas terras. Foi essa divisão que nos

enfraqueceu e por isso fomos subjugados aos romanos.

No dia seguinte, tive tempo para contar ao meu pai o que

havia acontecido comigo, quando fui ao encontro do mestre

Abner e sobre o meu desaparecimento na noite da grande

tempestade.

- Sua mãe e eu sofremos muito com o seu desaparecimento,

meu filho. Chegamos a achar que você havia sido

sequestrado pelos malditos romanos e sido levado para fora

da Judeia. Vasculhamos muitas cidades à sua procura e não

encontramos um só rastro seu ou de Abner. Minha revolta

por seu desaparecimento me causou um tamanho desespero

que não encontrei outra solução senão dizimar, numa ação

suicida, as tropas do general Lucius de Galia. Infelizmente,

alguns soldados romanos me reconheceram e, mesmo

feridos, escaparam, colocando minha cabeça a prêmio.

- Por que o senhor não voltou para nos buscar? Por que não

nos procurou mais durante todo esse tempo?

- Depois da ação contra os romanos, as tropas do imperador

cercaram Jerusalém e ninguém entrava ou saía de lá. Os

romanos ofereceram uma valiosa recompensa por minha

cabeça. Se eu tentasse ir vê-los, com certeza seria apanhado

e vocês também seriam torturados, crucificados vivos, em

148

plena luz do dia. Eu não poderia deixar que isso acontecesse

e fugi para me esconder no deserto.

- Mas os romanos, depois que destruíram o Templo de

Jerusalém e mataram os sacerdotes, baixaram a guarda e

deixaram de persegui-lo. O senhor poderia ter nos

procurado.... – disse eu, magoado.

- Sim, e eu procurei, mas vocês não estavam mais lá.

Tinham partido na mesma noite em que houve a divulgação

dos romanos oferecendo recompensa por minha cabeça...

- Trinta moedas de prata...

- Isso mesmo, trinta infames moedas de prata, era o meu

preço. Você não acha que eu valho mais do que isso? Disse

meu pai, batendo com a mão em minha cabeça.

- O senhor vale todos os tesouros do mundo, meu pai. Eu

pagaria mil vezes o valor da Arca da Aliança por sua vida,

se pudesse.

- Pois foi isso o que aconteceu meu filho. Não poderia

arriscar a vida de vocês me aproximando, mesmo que

soubesse onde estavam naquele momento crítico. Se eu os

tivesse encontrado, certamente seria delatado por alguém.

Até mesmo uma pessoa que estivesse bem próxima de mim

e fosse gananciosa poderia me entregar aos romanos e vocês

pagariam com a vida. Apesar disso, andei por muitos meses

à procura de vocês, mas fui vencido por um novo desejo...

149

- O de se tornar um bandido, fugitivo, assaltante e ladrão

sanguinário... Um tuaregue... – disse eu, em tom de

zombaria.

- É isso mesmo o que você pensa de seu pai?

- Claro que não. Mas quero saber por que se tornou um

tuaregue e como se tornou o líder de um bando deles?

- No deserto, fiz muitos amigos. Não poderia mais me

misturar aos judeus. Havia uma recompensa por minha

cabeça e me afastei da Judeia, entrando na Síria e depois no

Egito. Fui aceito num grupo de fugitivos e descobri que

poderia continuar a minha missão de varrer os romanos da

nossa terra, ao tempo em que também ajudava a retirá-los

de outras terras. Eles estão escravizando pessoas em todo o

mundo. Por isso me tornei um tuaregue.

- Isso quer dizer que, se o mestre Malachai estivesse

transportando escravos, vocês o matariam?

- Sim, meu filho. Sem qualquer dó ou piedade. Um ser

humano que obriga outro a lhe servir e retira dele a

liberdade, não merece viver. Deve ser arrancado pela raiz,

como uma erva daninha. Não podemos deixar que esses

vermes se reproduzam, que tenham filhos que serão também

senhores de escravos. Vamos libertar a todos, desde o

Ocidente até o Oriente...

- Se eu não estivesse aqui hoje, Malachai morreria?

150

- Sim, ele morreria, pois não há nada que possa ser mais

doloroso para a consciência de um pecador mentiroso do

que saber que alguém morreu inocentemente no lugar dele.

Quem estava transportando as armas ocultamente, sem o

conhecimento do líder do seu grupo, sabia que tinha

transgredido a lei. Então carregaria para sempre a culpa da

morte de Malachai em seus ombros. Não teria mais sossego

e, para não cometer mais esse pecado, passaria a agir de

modo correto e praticaria o bem. Por isso, eu teria que

sacrificar alguém.

- Mas o mestre Malachai era inocente... ele não merecia

morrer e sim quem cometeu a transgressão, fazendo o que

não era permitido.

- Sim, eu sei, mas como líder do grupo ele precisava

defender a maioria. Ele sabia que o transgressor era um

covarde e não se entregaria. Assim, ao se oferecer para

morrer no lugar de todos e até do transgressor, ele criaria

condições para ser lembrado como mártir e, ao mesmo

tempo, ensinaria aos demais a não cometerem o mesmo ou

outros pecados, você entende?

Eu aceitei a explicação de meu pai. Era dura a lição que eu

estava tendo com aqueles acontecimentos. Eu não sabia,

mas aquilo me ajudaria a cumprir com perfeição a missão

que eu tinha pela frente, a qual desconhecia completamente.

Meu pai quis saber para onde o mestre Malachai estava me

levando. Expliquei tudo e ele tomou uma resolução que eu

nunca tinha imaginado ser possível e pra mim era

inacreditável que ele a tivesse tomado.

151

Chamou a todos para o centro do acampamento e disse:

- Meus companheiros de luta, vamos acompanhar essa

caravana até o destino final que é a cidade de Alexandria no

Egito. Depois disso, voltaremos à nossa missão no deserto.

Não somos homens feitos para as cidades. Nosso juramento

foi feito e não o quebraremos. Vamos continuar libertando

os oprimidos e os escravizados. Um dia, os nossos netos,

bisnetos ou trinetos viverão em um mundo sem escravidão,

onde um homem ou mulher possa viver dignamente do seu

trabalho. Onde todos tenham o direito de ir e vir, sem ter

que pedir permissão ao seu patrão.

Os homens aplaudiram com urras, brandindo suas lâminas

afiadas para o céu.

Partimos ao cair da tarde, pois, em muitas épocas do ano,

com a luz da lua é mais confortável se viajar pelo deserto,

sem sofrer os efeitos da insolação.

Eu esperava que, durante a viagem, pudesse convencer meu

pai a não voltar a viver com os tuaregues e sim ir a Jericó,

buscar a minha mãe e os meus irmãos que viviam com o tio

Eliabe, os quais certamente também estavam à minha

procura. No entanto, meu pai não abriu mão de seu

propósito.

- Eu sei que todo filho quer ter o pai e a mãe ao seu lado.

Sei que você sente falta de seus irmãos, mas tenho que te

dizer algo muito importante, Matias. Não destruirei a vida

da sua mãe e a dos seus irmãos nem a sua. Se eu for

apanhado, estarei condenando não apenas a mim, que pouco

152

importa, mas condenarei a vocês que são sangue do meu

sangue, carne da minha carne. Eu os amo demais para

permitir que algum mal aconteça a vocês.

Senti uma grande raiva de meu pai. Como ele poderia

pensar que a minha mãe estaria melhor longe dele. Ela

ainda o esperava. Ainda o amava. Decidi então contar-lhe

sobre o tio Eliabe, sobre a proposta que ele fizera à minha

mãe. Eu acreditava que isso o fizesse mudar de ideia.

Meu pai, ao ouvir o que eu lhe disse, levantou-se

bruscamente e segurou no cabo da espada. Eu sabia que

alguma coisa o convenceria a voltar. Talvez aquela fosse a

única coisa que o demoveria do desejo de continuar fugindo

para longe de nós.

Em seguida, ele afastou-se de mim e continuou por um

tempo caminhando sozinho. Quando voltou para perto de

mim, vi que havia chorado.

- Matias, você não sabe o que é perder um ente querido.

Você não sabe o que é perder a pessoa que você mais ama,

por isso me pede para voltar para sua mãe. Você não acha

que se houvesse um jeito de protegê-la eu não teria voltado?

Não posso fazer isso. Eu sou um homem marcado pelo resto

da minha vida. Já tive que passar muitos homens no fio da

minha espada. Tenho muitos inimigos por toda parte. Não

apenas romanos querem a minha cabeça, mas todos os

povos a quem eu tenho caçado e os feito derramar sangue

por seus crimes. Jamais poderei voltar.

153

- Quer dizer que vai deixar minha mãe se deitar com outro

homem por não ter coragem de voltar para ela? Por que não

deixa que ela decida isso? Será que ela não prefere morrer

ao seu lado do que ficar eternamente sozinha, esperando a

sua volta?

O tapa que recebi no rosto foi tão violento que caí

desacordado.

Por sorte, não quebrou meus dentes, mas fiquei com um

hematoma horrível no lado oposto ao lugar onde havia

recebido o tapa de minha mãe em uma situação parecida. Eu

fora esbofeteado exatamente pelas duas pessoas que mais

amava. Será que estavam cumprindo o que estava escrito no

Livro de Provérbios: "A vara da correção dá sabedoria, mas

a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe" ? Eu

jamais espancaria os meus filhos quando os tivesse.

Meu pai não falou mais comigo durante o resto da viagem.

Foi melhor para ambos, pois, se ele o tivesse feito, eu

levaria mais bofetadas e ele se sentiria mais e mais culpado.

Foi o mestre Malachai que me acalmou, depois de tratar

com unguentos o inchaço da minha bochecha.

- João... ou melhor, Matias...

- Me chame de João, por favor – disse, zangado – não quero

mais o meu nome de nascimento. Meu pai me renegou e eu

não quero mais ser reconhecido como filho dele de agora

em diante.

154

- Como quiser, João – disse-me, afetuosamente, o mestre. –

Você precisa entender que seu pai tem motivos. Ele ama

demais a sua mãe e seus irmãos. Mais do que a própria vida.

Você não acha que se ele pudesse ter a família de volta ele

não o faria? Mas ele não é mais aquele pai de família.

Nunca foi. Sempre foi um guerreiro. Sempre quis resolver

as coisas pela força, com o uso das armas. Ele está certo.

Javeh fez homens pacíficos como eu e muitos dos nossos

irmãos essênios, mas criou também outros como ele. Seu

pai se tornou um homem poderoso, seus companheiros o

seguem e ficariam perdidos sem ele. Ele criou uma nova

família, você não percebe? Criou novos laços, mas não

significa dizer que não ama vocês.

Não podia aceitar o que o mestre Malachai me dizia. E meu

coração e alma estavam imersos nas lembranças da nossa

vida em família. Eu sentia falta de todos eles. Eu queria

voltar para casa, mas não disse isso ao mestre. Permaneci

em silêncio. Um dia eu voltaria. Um dia eu voltaria a

encontrar minha mãe e os meus irmãos. Meu pai que

continuasse fugindo como um rato no deserto.

Não quis mais ouvir histórias de Malachai. Quando as

pessoas se reuniam em volta da fogueira, eu permanecia

acocorado ao lado de meus companheiros de tenda, alheio a

tudo e a todos. Meu pai também não me procurou mais para

qualquer conversa.

A viagem transcorreu sem qualquer outra ocorrência. Nem

soldados romanos apareceram, nem assaltantes. Nós

estávamos guardados por um bando de malfeitores, então

que risco teríamos. Os romanos não ousariam nos atacar,

155

vendo quem nos protegia. Lutar com um grupo tão grande

de tuaregues, dispostos a morrer antes do que se entregar,

era uma missão suicida para qualquer tropa. Melhor era

deixá-los seguir viagem.

- Amanhã, antes do meio dia, chegaremos ao delta do Nilo,

João - disse eufórico o mestre Malachai, antes de ir para a

própria tenda dormir.

- E o que significa isso? Chegaremos ao nosso destino

final?

- Nunca chegamos ao destino final em nossa jornada, meu

rapaz. Nossa vida será sempre um ir e vir para algum lugar.

Nem a morte é o nosso último lugar de descanso, como

muitos pensam. Existe muito mais além. Um dia você

saberá. Mas o que você verá amanhã não está escrito em

nenhum dos livros que você leu até hoje. Os sacerdotes da

Judeia não querem que as outras pessoas saibam da

existência desse lugar para onde vamos.

- Então deve ser um lugar com muitos pecadores, muito

violento, não é?

- Deixarei que você veja com seus próprios olhos. Não

quero influenciar o seu julgamento. Você já é um rapaz

amadurecido, verá por si mesmo e depois me dirá o que

achou.

Concordei, meio desanimado. Na primeira oportunidade que

tivesse, voltaria para casa. Voltaria para Jericó, onde minha

156

mãe e meus irmãos esperavam por mim. Mas não foi o que

aconteceu.

A caravana estava exausta depois de uma marcha puxada

para que alcançássemos o delta do rio Nilo antes do meio

dia. A vegetação que cobria o vale tinha agora um verde

intenso e as árvores eram de grande porte. Havia palmeiras

por toda a parte, além da imensa a variedade de borboletas e

pássaros que eu nunca havia visto.

Quando alcançamos a última elevação de uma pequena

cadeia de montanhas, meu pai, que estava com seus homens

na frente do grupo servindo-nos de batedor, voltou para nos

informar que estava tudo em ordem. Não havia patrulhas

egípcias na região e por isso nossa descida até o delta do

Nilo seria segura. Ele voltaria dali mesmo com seus

homens. Os soldados egípcios eram especialistas em roubar

mercadores estrangeiros e depois mata-los. Eram homens

sem Deus. Ou melhor, eles tinham os deuses deles. Na

verdade, pensei naquele momento que apesar de nós judeus

também termos o nosso Deus conhecido como Javeh,

éramos especialistas em guerrear, matar, tornar escravos os

inimigos quando vencidos, tudo com a benção Dele. A meu

ver, não havia deuses suficientemente piedosos e bondosos

no mundo. Tínhamos que conviver com eles e obedecê-los

sem questionar.

Meu pai desceu de seu camelo e veio na minha direção.

Meu desejo era de ir correndo abraça-lo e implorá-lo para

que ficasse comigo ou me levasse com ele. Que me tornasse

um tuaregue. Eu o seguiria aonde quer que ele fosse, mas

não me deixasse ali entregue a estranhos, como se eles

157

fossem a minha família. Mas não fiz nada disso. Apenas

ouvi o que ele me disse, segurando-me pelos ombros.

- Meu filho, eu o amo e quero que saiba que faria qualquer

coisa para protege-lo. O que estou fazendo é para o seu

próprio bem, da sua mãe e dos seus irmãos. Um dia, quem

sabe, você os reencontrará. Você não é um rapaz de

orações? Pois continue orando, quem sabe Javeh não te

atende, como fez para permitir o nosso reencontro no

deserto.

Depois disso, ele abriu uma pequena bolsa de couro que

trazia presa à cintura e dela retirou um bracelete aberto,

feito de prata, com desenhos e inscrições que pareciam ser

de uma língua antiga, desconhecida por mim. Segurou o

meu pulso direito e prendeu o bracelete. Como meu braço

era delgado, meu pai teve que dobrá-lo nas bordas, usando a

força de suas mãos para que se ajustasse.

- Você vai crescer e poderá ir ajustando o tamanho desse

bracelete ao seu braço. Prometa-me que, aconteça o que

acontecer, você jamais o perderá, jamais se desfará dele.

- Sim.. eu... eu prometo – balbuciei, sentindo as lágrimas

inundarem meus olhos.

Ele se virou sem mais uma palavra indo se despedir de

Malachai e fazendo-lhe prometer que cuidaria de mim

enquanto vivesse.

158

Fiquei olhando o bando de tuaregues partirem em sua

marcha cadenciada de volta para o lugar de onde vieram, até

sumirem no horizonte.

- Matias, prepare-se! Depois que chegarmos ao topo

daquela elevação, avistaremos a planície onde está o Nilo, o

maior rio do mundo.

Não existe palavras para descrever o que vi quando

descortinei, do alto, aquela imensidão de terras planas,

cobertas com plantas de cores variadas que iam do amarelo

dourado, o verde cana até o marrom escuro. O rio

caudaloso, imenso, com águas rebrilhando à luz do sol,

dividia-se em dois, formando uma bifurcação que seguia até

o mar azul turquesa, o Mediterrâneo.

- Olhe João – disse-me, o mestre Malachai, eufórico,

apontando na direção oeste – aquele braço do Nilo é o canal

Roseta e o outro, a leste, chama-se Damieta. Ambos

desaguam no Mediterrâneo e é a porta de entrada e saída de

navios que vão para todas as partes do mundo.

Eu estava boquiaberto com aquela paisagem que parecia ser

um sonho, de tão magnífico. Espalhada pela planície até

alcançar o Mediterrâneo, havia um mar de construções de

toda espécie, casas, edifícios de muitos andares, templos e

muitas outras edificações com formas tão variadas que eu

não conseguia entender como poderiam ter sido construídas.

Centenas de embarcações ancoradas, com suas velas

arriadas, em um local que parecia ser um porto, formavam

um cenário indescritível diante dos meus olhos. Era mil

vezes mais grandioso do que eu havia imaginado.

159

- Mestre! Aquela cidade lá embaixo é Alexandria? Indaguei,

estupefato.

- Sim, meu rapaz. Essa é a capital do Egito, Alexandria, que

ostenta esse posto por mais de 300 anos. Do outro lado,

estão as cidades de Tanta e Mansura. O último

recenseamento indicou que habitam em Alexandria, no

momento, mais de um milhão de habitantes.

- Um milhão?! Isso quer dizer que só nessa cidade moram

mais pessoas do que em toda a Judéia?

- Sim, João. Eu diria que o dobro. Em Jerusalém, que é a

capital do nosso povo, moram apenas 30 mil pessoas. A

menos que exista em alguma outra parte no Oriente outra

cidade igual, Alexandria é a maior cidade do mundo, nos

nossos dias. Aqui está guardado todo o saber que o ser

humano tem acumulado desde que se começou a registar em

argila, cerâmica, papiro e nos atuais pergaminhos. Esta é a

cidade onde podemos encontrar livros de matemática,

engenharia, arquitetura, agricultura, astronomia, astrologia,

botânica, gematria, medicina, filosofia, religiões de várias

partes do mundo e todas as demais ciências.

Todos do nosso grupo estavam de olhos arregalados.

Tocávamos nossos camelos para que mais depressa

chegássemos àquele lugar que parecia ser uma miragem,

antes que ele desaparecesse de nossos olhos. Enquanto isso,

eu ia indagando.

- Eu já tinha ouvido falar dessa cidade, mas nunca pensei

que fosse tão grande. Quem a construiu, mestre?

160

- Você se lembra de um Rei da Macedônia, conhecido como

Iskander al-Akbar ou Alexandre, o Grande?

- Sim, claro, o maior de todos os conquistadores gregos que

queria dominar o mundo inteiro antes dos romanos. Não era

ele que tinha um cavalo chamado Bucéfalo?

- Isso mesmo, João. Há 330 anos, Alexandre liderou um

exército de milhares de homens, formado por macedônios e

gregos. Ele conquistou o Egito e decidiu construir uma nova

capital para o Egito e deu a ela o nome de Alexandria, em

sua própria homenagem. Também construiu uma outra

cidade mais ao sul do Nilo e, para homenagear seu cavalo,

batizou-a como o nome de Bucéfala.

- Que homem esquisito era esse Alexandre!...

- Sim, era mesmo. Mas foi um visionário no seu tempo. Ele

foi, desde os 13 anos de idade, educado por um sábio grego

chamado Aristóteles, o pai de uma nova ciência chamada

Lógica e o fundador de uma escola chamada Liceu, onde se

aprende de tudo. Com esse sábio e outros que serviam aos

imperadores Romanos, Alexandre aprendeu retórica,

política, matemática, ciências físicas e naturais, medicina,

estratégia militar, geografia e história geral, além de falar

vários idiomas e de se distinguir nas artes marciais e na

doma de cavalos.

- Aristóteles... nunca tinha ouvido falar nesse nome, mestre.

Ele era uma pessoa assim como o senhor e o mestre Abner

são para mim? Um tutor?

161

- Sim, João. Só que eu nem de longe posso me comparar à

sabedoria de Aristóteles, pois ele foi aluno de outro grande

mestre grego chamado Platão e este o melhor aluno de outro

sábio grego chamado Sócrates.

- Quer dizer que Alexandre aprendeu muito do que todos

esses sábios gregos, Platão e Sócrates lhes ensinaram, não

foi?

- Exatamente, e com muitos outros antes deles, como Thales

de Mileto, Pitágoras e Hipócrates, o pai da medicina. Dizem

que ele se tornou tão popular e querido por conta de todos

esses conhecimentos que ele aplicava nas suas campanhas

de expansão do Império Macedônio. Ele era um homem

pequenino, não media mais que 1.55 centímetros de altura e

morreu jovem, aos 33 anos.

- Como ele morreu, mestre? Em combate?

- Não foi em combate. Existem algumas versões para a

morte dele, mas, ao que tudo indica, foi uma doença, uma

grave infecção intestinal que o matou. Ele não chegou a ver

concluído o seu grande projeto, a construção dessa suntuosa

cidade que ele queria transformar no grande centro de

cultura, sabedoria e conhecimento da Terra.

- O que é aquela torre imensa lá em baixo, mestre

Malachai?

- É a famosa Torre de Alexandria. Também foi parte do

projeto de Alexandre, que ele não viu ficar pronta. Da

mesma forma, ele não viu a inauguração da maravilhosa

162

biblioteca e museu da cidade. Quando ele morreu, essas

obras só haviam começado. Foram contratados os melhores

arquitetos do mundo para realizar a obra de construção de

Alexandria. Era nessa cidade que ele queria centralizar o

seu império. Mandou construir ruas largas, casas espaçosas,

praças, jardins e fontes em todo o perímetro da cidade.

Assim, todos os moradores poderiam usufruir de uma vida

confortável, melhor até do que em Atenas e Roma. Tanto o

farol como a Biblioteca e museu foram concluídos por

Ptolomeu, um dos grandes generais de Alexandre.

- Ptolomeu então era amante das ciências, como Alexandre?

- Na verdade, era muito mais, pois ele mesmo era um sábio

e estudioso. Ele também havia estudado com Aristóteles,

que lhe influenciou profundamente. Ele foi reconhecido

pelos seus trabalhos em matemática, astrologia, astronomia,

geografia, cartografia, lentes e música. Pode-se dizer que foi

um dos grandes gênios da época e um profundo conhecedor

das estrelas.

- Eu gostaria de ser um sábio um dia, mestre? Gostaria de

ter todos esses conhecimentos...

- Agora você sabe uma das razões pelas quais eu o trouxe

para cá, João. Você vai estudar com os sábios da Biblioteca

de Alexandria. Daqui, iremos para outra cidade chamada

Pérgamo.

- Pérgamo? Nunca ouvi falar desse lugar. Onde fica?

163

- Fica do outro lado do Mediterrâneo. Lá existe uma outra

biblioteca que serviu de inspiração para Ptolomeu criar essa

daqui de Alexandria. Pérgamo é a cidade onde foram

criados os pergaminhos que nós usamos hoje para escrever

nossos livros. Antes, só havia o papiro feito pelos egípcios.

Mas o papiro se estraga muito facilmente. Já o pergaminho

feito com couro de cabra ou ovelha dura muito mais e é

mais fácil de transportar. Por isso, os nossos documentos

sagrados e outros livros usados pelos gregos e romanos e

em outras partes do mundo são chamados de pergaminhos.

Eles tiveram origem em Pérgamo, uma cidade situada na

península de Anatólia.

- E o que tem lá de tão interessante para eu ver?

- Você verá. Lá estão as obras originais de todos esses

sábios gregos de quem te falei, Sócrates, Aristóteles e

Platão. Tudo original. O que tem aqui em Alexandria são

cópias. Ptolomeu queria que fossem feitas pelo menos duas

cópias de todos os livros do mundo e guardadas aqui.

- Todos os livros do mundo?! Não era um exagero?

- Sim, muito grande, pois não haveria espaço para todos.

Mas quero te dizer que, na biblioteca de Pérgamo, existem

200 mil pergaminhos...

- Duzentos mil?! Nós não temos nem 50 em nosso Templo

em Jerusalém. Como podem ter 200 mil?

- Estou falando de Pérgamo. Não estou falando ainda de

Alexandria.

164

- O senhor está dizendo que na biblioteca daqui tem mais de

200 mil pergaminhos?

- Sim, existe uma lista de todos eles. Eu mesmo ajudei a

escrever a lista quando trabalhei aqui na juventude. Hoje

existem 800 mil pergaminhos. Está vendo aquela construção

imensa ao centro da cidade?

- Aquela que tem a forma de um circo romano, coberta com

telhas brancas?

- Isso mesmo. É a biblioteca de Alexandria, João. É lá onde

você vai trabalhar por muitos anos. Lá você poderá

enriquecer seus conhecimentos, poderá ler todos os livros

que desejar, pois você faz parte de uma classe especial de

trabalhadores. Você será um escriba.

- Um escriba? Mas eu ainda vou fazer 13 anos...

- Eu sei. Não existe nenhuma profissão que não necessite de

treino oferecido pelos mestres. Eu te passarei meus

conhecimentos e, se você for dedicado, poderá ser o meu

sucessor. Tenho poucos aprendizes, alguns foram enviados

nessa caravana pelos pais para estudarem em Alexandria.

Você os conheceu nessa viagem: Simão Pedro, André,

Tiago filho de Zebedeu, João de Betsaida, Filipe,

Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago filho de Alfeu, Judas

Tadeu, Simão e Judas Iscariotes. A Judéia não oferece

condições para estudos mais profundos. Para você se tornar

um doutor e mestre escriba terá que se dedicar dia e noite

aos estudos, não poderá se casar...

165

- Como assim, mestre? Eu vou virar um eunuco? Eu vou ser

castrado? – perguntei, alarmado.

- Calma.. calma, João... – disse-me, o mestre Malachai –

para se tornar um escriba, você não precisará retirar os seus

testículos e se tornar um eunuco. Os reis e governantes mais

antigos faziam isso para fazer com que os serviçais do sexo

masculino perdessem o interesse e o vigor para atacar

sexualmente as princesas ou rainhas.

Respirei aliviado, mas voltei a perguntar.

- Qual a razão de não poder me casar?

- A obra que você deverá realizar vai te consumir muito

tempo. Vai esgotar todas as suas energias. Não lhe sobrará

tempo para cortejar uma moça, nem para ajuda-la a criar

seus filhos. Você descobrirá que um homem precisa de

tranquilidade e paz para fazer o seu trabalho. Uma família

nem sempre permite tal coisa.

Fiquei entristecido com aquela ponderação, ao lembrar-me

de Sarah, a filha do sacerdote Moshe, agora casada e

esperando um bebê que teria o meu nome. Felizmente, eu

não mais me chamaria Matias e sim João. Matias seria

agora outra pessoa, uma homenagem feita por uma mãe em

memória de um amigo, como Alexandre deu o nome de seu

cavalo à cidade de Bucéfala.

Continuei seguindo os demais companheiros até a entrada

de Alexandria. Apesar do fascínio que a cidade começava a

exercer sobre mim, pois eu nunca vira tanta gente em um só

166

lugar, usando as mais diferentes roupas, falando as mais

diferentes línguas, lembrando a Babel contada no Torá, eu

permanecia pensativo. Lembrava-me, todo o tempo, das

palavras do mestre Malachai, que eu não deveria me casar.

Também me atormentava o fato de saber que eu era apenas

um dos 13 discípulos que ele estava conduzindo para

Alexandria. Eu pensava que era o único. Não gostei da ideia

de competir com os demais que ele mencionara. Isso

reforçava o meu desejo de fugir dali assim que fosse

possível. Assim que soubesse como voltar para casa sem a

ajuda de mestres ou guias, eu o faria. Javeh iria me mostrar

o caminho, a porta de saída. Eu não continuaria sendo

tocado de um lado para o outro como uma folha seca que

não tem controle sobre si mesma. Eu aprenderia como

controlar a minha própria vida, mesmo que Javeh não

gostasse.

167

Capítulo VIII - A Missão dos 12 + 1

Falar de coisas que aconteceram há tanto tempo, é uma

tarefa difícil para alguém em idade avançada. Minha mão

começa a tremer quando eu seguro essa pena para imprimir

nos pergaminhos os relatos da minha adolescência. Nunca

perdi a firmeza da mão ao escrever qualquer coisa e o meu

tremor de agora não diz respeito à minha idade, mas sim por

reviver as fortes emoções que senti naqueles primeiros anos,

na maior cidade do mundo ocidental, convivendo com

pessoas de diferentes nações, modo de pensar, religiões e

com costumes distintos dos meus.

Antes, na minha pacata Jerusalém, eu viajava pelo mundo

antigo pela imaginação, lendo os papiros que contêm a

história do nosso povo e da criação do mundo. Meus pais

seguiam os ensinamentos da Torá e me diziam que só havia

um Deus verdadeiro e seu nome era Javeh. Era o que os pais

dos seus pais lhes haviam ensinado.

Até chegar em Alexandria, eu aprendera que o mundo havia

sido criado por Javeh, em seis dias, tendo descansado no

sétimo. Muito embora, eu já tivesse me perguntado muitas

vezes se aqueles dias realmente correspondiam ao período

compreendido entre o nascer e por do sol ou se era o tempo

de o sol nascer e voltar a nascer. Eu não sabia se o dia,

conforme o livro de Gênesis, era um dia formado por dia e

noite ou se era considerado só o período enquanto havia sol.

168

Havia muitas perguntas que eu fizera aos rabinos do templo,

para as quais eu tive resposta, porque eles me pediam para

não questionar as coisas de Deus. Sempre falavam que os

livros continham a verdade absoluta e que, mesmo que nós

não a compreendêssemos, não deveríamos questioná-la.

Lembro-me de certa ocasião, quando, ao finalizar uma cópia

do livro de Gênesis, indaguei ao Rabino Moshe:

- Se Javeh é onipresente, onipotente e onisciente, por que

razão, quando Adão se escondeu depois de comer do fruto

proibido que Eva lhe dera, Ele entrou no Jardim do Édem

chamando: “Adão... onde estás?” – Deus não está em toda

parte? Ele não sabe de tudo? Precisava procurar por Adão e

Eva?

O rabino pareceu embaraçado com a minha pergunta e disse

apenas:

- Ora, Deus é Deus e ele pode fazer o que quiser, perguntar

o que quiser? Ou será que você agora quer dizer o que o

Senhor Altíssimo deve perguntar ou não? Quem é você?

Quem somos nós para questionarmos os atos de Deus. Não

somos nada, não sabemos de nada. Melhor você parar de

fazer essas perguntas sem sentido e apenas acreditar que foi

assim e que Deus deve ter tido uma razão para ter feito

aquilo.

Lembro-me de ter ficado decepcionado com aquela

resposta, mas não me intimidei, embora sabendo que isso

deixaria o rabino furioso.

169

- Está bem, mestre... mas será que não foi um erro de quem

escreveu esses textos?

- Não seja pretensioso, Matias. Quem escreveu foi Moisés.

Você bem sabe disso. Ele foi o autor dos cinco primeiros

livros da Torá, os quais nós chamamos de Pentateuco.

Moisés era um doutor nas leis, aprendeu no Egito, desde

pequeno, as artes, as ciências e tudo mais que um neto de

um Faraó poderia aprender. Embora a mãe dele fosse uma

judia, ele foi adotado pela filha do Faraó, cresceu no palácio

e foi escolhido por Javeh para libertar os judeus.

- Sim, eu sei da história... ele foi colocado num cestinho que

foi colocado no rio por sua mãe, para escapar da matança

das crianças judias, promovida por um rei egípcio que temia

o crescimento da população escrava. Ele temia uma futura

revolta dos escravos e ordenou que todos os filhos homens

de mulheres judias, nascidos no Egito naquela época,

fossem mortos.

- Exatamente, Matias. Javeh escolheu Moisés para libertar o

seu povo do sofrimento, pois estavam sendo escravizados

pelos egípcios por mais de 300 anos. Você tem dúvida

disso? Acha que Moisés não sabia escrever?

- Não, mestre Moshe, não tenho dúvida disso. Porém,

quando eu li num dos livros que Moisés escreveu que ele

morreu com a idade de cento e vinte anos e que “os seus

olhos nunca se escureceram, nem perdeu o seu vigor”,

170

fiquei me perguntando: como um morto pode escrever sobre

a própria morte...

- Matias... você está sendo insolente!

- Não estou, mestre Moshe. Se o senhor e todo mundo diz

que foi Moisés quem escreveu esses livros, ele não poderia

falar do dia em que morreu. Alguém escreveu isso por ele.

Em todos os livros, Genesis, Deuteronômio, Números e

Levíticos, todo o tempo se diz que Moisés fez isso, Moisés

fez aquilo... Quem foi que escreveu isso? Um escriba? Se

foi, então não poderiam ter cometido alguns erros? Eu

cometo erros todos os dias aqui, quando faço cópias dos

livros. Muitos deles, nem o senhor que é sacerdote ou o

mestre Abner que é o escriba-mor vê. Daqui a alguns anos,

só existirão as cópias novas, contendo os meus erros, e

muita gente vai lê-las. Entretanto, não se tratará mais do

texto original. Elas não representarão a fiel Palavra de Deus,

o senhor compreende?

- Seu insolente... Não existem erros nos livros sagrados.

Vou falar com o seu pai que você está duvidando da

inspiração divina dos nossos livros. Acho que foi um erro

ele o encaminhar para se tornar um aprendiz de escriba. Um

escriba não faz perguntas, não muda nada, não comete

erros, apenas escreve o que lhe mandam e nada mais.

- Pois pode dizer sim, eu não pedi para ser escriba. Queria

era ser um soldado, lutar como meu pai para expulsar os

romanos das nossas terras. Queria impedi-los de continuar

171

nos escravizando, como fizeram os egípcios há mais de mil

anos.

Naquele dia, o rabino Moshe me levou de volta para casa e

me devolveu ao meu pai, dizendo que não havia mais lugar

para mim nas classes de escritura e leitura que ele

ministrava. Meu pai ficou aborrecido comigo, mas logo

encontrou outro professor, o mestre Abner, que tinha

paciência e aceitava meus desafios intelectuais. Certa vez,

eu ainda incomodado com a história de Moisés, lhe

perguntei:

- Mestre Abner, Moisés era mesmo poderoso, não era?

- Como assim poderoso, Matias? Você está se referindo aos

castigos que ele impôs ao Faraó para deixar o povo judeu,

que era escravizado, voltar para Israel?

- Sim, isso mesmo. Foram tantas coisas que ele fez.

Lembro-me de uma passagem no livro de Êxodo onde Deus

diz assim: “Quando Faraó vos falar, dizendo: Fazei vós um

milagre, dirás a Arão: Toma a tua vara, e lança-a diante do

Faraó; e se tornará em serpente”. Isso que ele fez foi um

milagre? O que é um milagre? Uma mágica? Um truque que

as outras pessoas não sabem como é feito?

- Ora, Matias, um milagre é algo sobrenatural. Algo para o

qual não temos explicação... Não posso dizer que todos os

milagres são truques, mágicas. Sei que muitos são a pura

vontade de Deus.

172

- Todos os milagres dependem da vontade de Deus?

- Uma pergunta muito difícil de responder. Eu mesmo tenho

dúvidas sobre isso, meu rapaz. Sinceramente, ainda não

consigo entender claramente. E você, o que pensa?

- Eu acho que qualquer um pode fazer milagres, mestre.

- Explique isso melhor, Matias, por favor.

Corri para pegar o pergaminho que continha a passagem do

livro de Êxodo, bem no começo do capítulo VII, para

mostrar ao meu mestre: “Então Moisés e Arão foram ao

Faraó, e fizeram assim como o Senhor ordenara; e lançou

Arão a sua vara diante de Faraó, e diante dos seus servos, e

tornou-se em serpente. E o Faraó também chamou os sábios

e encantadores; e os magos do Egito fizeram também o

mesmo com os seus encantamentos. Porque cada um lançou

sua vara, e tornaram-se em serpentes; mas a vara de Arão

tragou as varas deles”.

- Bem interessante isso, Matias. Você está certo, diz

claramente que os magos também transformaram as varas

em serpentes... Mas as serpentes de Arão e Moisés

devoraram as dos egípcios.

- Não teria sido melhor Javeh fazer um contra-milagre e não

deixar os magos do Egito transformarem as varas deles em

serpentes? O mesmo aconteceu com as águas que se

tornaram em sangue. Os magos também realizaram esse

173

milagre sem acreditar em Javeh. Tinham outros deuses. Os

deuses egípcios. Então era um truque de mágica? Moisés

sabia mais coisas que os outros magos?

- Pode ser, Matias... Pode ter sido isso mesmo. Mas acho

que a história quer apenas nos passar uma mensagem de que

uma serpente sempre pode ser devorada por outra, tudo

depende de que lado a serpente está. Nessa história que

você acabou de relatar, com certeza, as serpentes não

estavam do lado certo e os egípcios perderam. Também

quer nos dizer que existem forças poderosas que podem ser

movidas para realizar certos milagres. Não apenas Javeh o

faz diretamente. No Egito, havia homens poderosos,

capazes de façanhas incríveis.

Egito. Sempre o Egito, cheio de sábios, magos e

encantadores. Eu nunca havia visto um. Agora eu estava em

Alexandria e teria a oportunidade de ver tudo aquilo. Era

provável que todos os magos do mundo estivessem ali. Eu

iria aprender as artes deles e fazer coisas que ninguém mais

fosse capaz de realizar. Iria operar milagres, talvez nem

contasse com a ajuda de Javeh para isso, pois, pelo visto,

por vezes ele não me atendia. Ao que parece, os magos

egípcios não precisaram dele para também transformar

varas em serpentes ou tingi de sangue as águas do Nilo.

Minha vida não foi um mar de rosas naquele começo de

nova vida em Alexandria, apesar de eu gozar de muitos

privilégios, morar com outros aprendizes numa residência

174

ampla, a apenas uma hora de caminhada até a Biblioteca.

Todas as despesas eram pagas pelo Imperador, que não

poupava esforços e recursos para dar aos estudantes a

melhor educação possível.

A habitação era localizada no alto de uma elevação, de onde

eu podia ver os barcos chegando e partindo, guiados pela

poderosa luz do primeiro farol do mundo, obra do arquiteto

grego Sóstrato de Cnido. Era uma construção fabulosa, feita

de mármore, medindo 120 metros de altura, contendo em

seu interior máquinas e instrumentos de ferro e bronze,

espelhos que eu nunca sonhara conhecer e até um

periscópio, que permitia enxergar os navios a muitas milhas

de distância. Diziam os sábios que lá trabalhavam, que, com

aqueles instrumentos, podia-se prever tempestades, ventos e

maremotos. A luz projetada pelo farol era produzida por

uma fogueira de lenha resinosa e a combinação de espelhos

côncavos fazia com que a luz fosse vista a mais de 50

quilômetros de distância, servindo para orientar os navios

em alto mar.

O edifício onde eu morava tinha três pavimentos. Era como

uma casa sobre outra e chegávamos até ela subindo por uma

escada de pedra que ficava numa das laterais. Era diferente

das nossas casas na Judeia e foram construídas por

engenheiros gregos e egípcios. A maioria das casas era feita

de pedra e não de tijolos. Pretendiam erguer edifícios ainda

mais altos, com 5 ou 10 pavimentos. Isso me lembrava a

história da Torre de Babel. Eu é que não iria arriscar a

175

minha vida morando no alto de uma torre daquela altura.

Nunca mesmo.

O edifício onde Mestre Malachai nos colocou ficava no fim

da rua principal, chamada de Canópica, a qual ia de leste a

oeste. Era uma avenida imensa, com 7 quilômetros de

extensão e 30 metros de largura, ladeada por calçadas,

jardins e palmeiras. As calçadas eram também feitas de

pedra, construídas um pouco mais altas que o nível da rua.

Essa avenida ficava em um dos quatro bairros da cidade, os

quais tinham como nome uma das primeiras letras do

alfabeto grego: Alfa, Beta, Teta e Gama. Havia também a

artéria norte-sul, que era formada por duas largas avenidas

separadas por um bosque composto de árvores originárias

de várias partes do mundo. Os sábios e demais alexandrinos

estudiosos das plantas chamavam-no de Jardim Botânico e

ali faziam suas pesquisas diárias. O aroma exalado na

primavera por aquela coleção magnífica de flores e frutos

era inebriante. Os frutos eram coletados por pessoas

designadas para aquele trabalho, as quais levavam os

produtos para serem distribuídos gratuitamente em feiras

semanais. Desse modo, todos podiam usufruir da fartura

proporcionada pelo pomar público de Alexandria. Também

havia piscinas públicas, aonde íamos, meus colegas eu, nos

domingos e dias de folga.

A água, que era abundante em toda a cidade, fora canalizada

do Rio Nilo e era disponibilizada ao público em fontes

localizadas em muitas praças, para uso local ou para suprir

as necessidades do dia a dia em nossas casas. Com isso, era

possível tomarmos um banho uma vez por dia, sem

necessidade de sair de casa. Na minha terra, a água era

176

escassa e o banho completo era um luxo para poucos. Em

Alexandria, a limpeza das ruas, das casas, dos templos e

demais edifícios era perfeita. Havia cestos espalhados pelas

ruas, onde as pessoas deveriam depositar o lixo e, no fim do

dia, homens retiravam tudo em carroças puxadas por

animais. Os dejetos eram levados para um lugar apropriado,

onde eram misturados a sal marinho e, depois de secarem ao

sol, eram triturados para uso nas áreas de plantio. Segundo

os sábios daquela época, as plantas cresciam mais viçosas,

mais fortes e em menor tempo frutificavam. Para mim,

aquilo era um grande milagre.

Os meses e os anos se passaram rapidamente. Nem parecia

que eu já estava ali há mais de três anos. Apesar do trabalho

duro na Biblioteca, dos estudos profundos com mestres de

várias partes do mundo e de uma quantidade imensa de

tarefas a cumprir diariamente, minha vida doméstica era

confortável, se comparada com a que eu tinha com meus

pais em Jerusalém. Dividia com quatro colegas um quarto

espaçoso, com janelas amplas que davam para o mar.

Tínhamos camas feitas de madeira e colchões muito macios,

feitos com junco do Nilo. Nossa comida e demais cuidados

da casa eram realizados por duas senhoras muito amáveis

que nos tratavam como filhos, uma egípcia e outra judia. O

mestre Malachai nos informou que elas também eram da

fraternidade dos essênios do grande núcleo existente no

Egito. Essa era uma das razões pelas quais não comíamos

nada que fosse de origem animal, exceto o leite, seus

derivados, ovos e mel. Muitos dos meus colegas não

essênios protestavam, mas eu já havia aprendido a

177

importância de não consumir carne de animais e de não

maltratá-los ou sacrificá-los.

Entre os meus colegas daquela época, dos que eu mais

gostava era o Mateus e o Simão, este se parecia muito com

o meu irmão Calebe. Mateus era um pouco tímido, do tipo

calado, mas muito inteligente e observador. Embora

estivesse estudando para ser também um escriba, ele se

dizia apaixonado pelas leis e pelos registros dos notários. O

outro, Simão, era filho de um zelote como eu e era corajoso,

impetuoso e sempre disposto a nos conduzir pelo meio da

multidão das ruas, em busca de aventuras. Era o nosso

defensor, embora não usasse qualquer tipo de arma, nem

mesmo uma funda, como meu irmão Calebe.

Dos 12 discípulos que vieram naquela leva com mestre

Malachai, havia dois que eu não tolerava. Um era Judas

Iscariotes, que sempre estava criando problemas e querendo

ser melhor que todos nós. Havia nele um sentimento de

superioridade que nos irritava e ele nem era tão bom assim,

apesar de disciplinado e inteligente. Nós também não

confiávamos muito nele. O outro era Tomé. Esse,

desconfiado por natureza, estava sempre tentando provar

que havia alguma coisa errada em tudo e em todos. Apesar

disso, Tomé era suportável e tinha boa índole, ao passo que

Judas não era bem aceito pelo grupo. Mesmo assim, o

mestre Malachai nos pedia para termos tolerância e

paciência com ele, pois era órfão de fariseus e tornara-se um

rapaz revoltado com a própria sorte.

178

Aos poucos, fui me acostumando àquela cidade imensa que

deslumbrava a todos. Com o passar do tempo, fui

conhecendo cada esquina de Alexandria e, quando não

estava na Biblioteca trabalhando nas incontáveis cópias de

pergaminhos que os meus mestres me ordenavam fazer ou

debruçado sobre compêndios que tratavam de história,

literatura greco-romana, línguas estrangeiras, ciências

naturais, medicina, astrologia e numerologia, eu ia para o

Heptaestádio, um porto artificial construído entre o

continente e a Ilha de Faros, que se encontrava

aproximadamente a mil metros da margem. Essa ilha foi

unida ao continente por meio de um paredão de

aproximadamente 1200 metros. Alexandre, em seu projeto,

dividiu a baía em dois portos: a leste, o porto de guerra,

onde ficariam os arsenais e estaleiros navais e o seu porto

pessoal. A oeste, o porto mercantil, também chamado de

Eunostos - que significa bom regresso. Havia duas aberturas

nos diques que permitiam aos navios passar de um porto

para o outro. Diziam que era a maior construção naval de

toda a Terra. Eu ficava lá, olhando os navios chegarem e

partirem, carregados de mantimentos, móveis, máquinas,

plantas, animais e gente. Muita gente.

Certa vez, numa tarde de folga, eu estava esperando o por

do sol, sentado no alto de uma escadaria de onde podia ver

as pessoas que desembarcavam, vi, de relance, um grupo de

pessoas que havia descido de um navio com insígnias

Judaicas. Entre aquelas pessoas, havia uma moça de cabelos

castanhos claros, de andar firme e altivo, usando um traje

179

azul púrpura, caminhando ao lado de outras duas mulheres

mais idosas e de um senhor. Dei um salto e tentei olhar

melhor para me certificar de que era mesmo a pessoa que eu

imaginava que fosse: Sarah, a filha do sacerdote Moshe.

Meu coração disparou e eu, sem me dar conta da

irracionalidade do meu ato, desci aos saltos, pulando três

degraus de cada vez, na tentativa de alcançar o grupo que se

afastava do porto indo em direção às carruagens que

transportavam os recém chegados até a cidade. Eu tinha que

chegar lá antes que partissem e se perdessem no meio da

multidão de carruagens, carregadores e pessoas que se

espremiam pela avenida que, apesar de larga, parecia

pequena para tanta gente. Enquanto corria na direção da

moça que avistara de longe, sentia imensa gratidão, pois

aquilo deveria ser um novo milagre em atendimento às

minhas orações a Javeh. Nunca me esquecera do dia em que

partira de Jerusalém deixando-a casada e grávida. Isso já

fazia mais de três anos. O que poderia ter acontecido a ela

para estar tão longe de casa? Será que soubera que eu estava

ali em Alexandria e viera à minha procura? Será que se

divorciara, como mandava a Lei de Moisés quando o

marido repudiava a mulher? Será que ela tivera um filho

varão e lhe dera de fato o nome de Matias?

O minha aflição era grande, pois, por mais que eu tentasse

correr, a multidão me comprimia, barrando meus passos. Vi

de longe, quando a moça e os demais que a acompanhava

subiram em uma carruagem. Se eu corresse com todas as

180

minhas forças conseguiria alcançá-los. Gritei, em desespero,

com todas as forças dos pulmões.

- Saaaraah!! Saaaraah!!

Mas ninguém olhou para trás. O vento soprava na direção

contrária e levou a minha voz para a direção do mar,

misturando-a às centenas de outras vozes, incluindo as dos

mercadores que ofereciam seus produtos trazidos da Ásia,

da Índia, da Pérsia e de tantos outros cantos do mundo.

Eu não a perderia de novo. Não ali, em Alexandria.

Decidi que faria o que fosse para alcançar a carruagem, que

agora era tocada pelo condutor, ladeando a calçada de pedra

da avenida principal. Foi então que a minha sandália

escorregou no chão de pedra lisa, levando-me cair aos pés

de uma multidão que imediatamente veio em meu socorro,

fazendo exatamente o que eu não queria que fizesse:

impedir o meu caminho.

- Você se machucou, meu rapaz? Indagou um senhor de

turbante branco, com uma pedra de topázio imensa presa na

altura da testa.

- Não... não... estou bem – disse, tentando levantar-me para

voltar ao meu intento de seguir a carruagem.

No entanto, já havia mais gente obstaculizando o meu

caminho do que antes. A minha queda provocara a

curiosidade de outras pessoas que pararam para ver o que

181

estava acontecendo. Com isso, minha saída do meio da

multidão resultou impossível.

Quando consegui me desvencilhar de todos, já havia tantas

carruagens circulando, que eu não sabia qual delas seguir.

Provavelmente, aquela que levava Sarah já estava fora do

meu alcance.

Passei o resto da noite à procura de Sarah. Minhas buscam

foram em vão. Reuni alguns dos meus colegas que também

a conheciam de Jerusalém e pedi para que me ajudassem na

busca. Voltaram no fim da noite desanimados. Ninguém a

havia visto. Embora eu já não orasse mais com tanto fervor

para Javeh atender aos meus pedidos, fui para o meu quarto

e me ajoelhei de mãos postas, pedindo a Ele que me fizesse

encontrar Sarah outra vez. Mesmo que fosse pela última

vez. Eu ainda a amava e se ela estava ali deveria ser por

alguma razão e eu precisava encontrá-la.

Judas Iscariotes, ao me ver orando e chorando, aproximou-

se e disse em tom de escárnio:

- Não seja tolo, João... Sarah não se casaria com você nem

em mil anos. Ela já deve ter sido oferecida a outro romano

bastardo, como era aquele marido dela, o Daniel.

- Romano bastardo?! Do que você está falando, Judas?

- Você não sabia que Daniel era o filho bastardo de um

romano com uma judia? O pai, assim que soube da gravidez

182

da mãe dele, não a quis mais e os manteve ao longe, para

não causar problemas à família oficial e aos outros filhos

legítimos.

- E porque você nunca havia me falado sobre isso?

Perguntei, cheio de ira.

- Não interessava. Até porque se ela preferiu se casar com

um bastardo judeu-romano do que com você, então...

Voei de onde estava desferindo um soco no rosto de Judas,

que caiu pesadamente e foi socorrido pelos outros dois

colegas de quarto.

- Saia daqui, seu porco imundo. Você é um imundo. Não

tem o direito de falar assim de Sarah. Não tem! Gritei a

plenos pulmões, partindo para um novo confronto com

Judas, que agora tinha a face sangrando e queria vingança.

Uma das mulheres que cuidava de nós foi chamada às

pressas e interveio, nos ameaçando de contar tudo ao mestre

Malachai assim que ele chegasse.

- Mestre Malachai!! – gritei, ao ouvir o nome do meu

mestre - sim, ele deve saber onde ela está. Ele sabe onde

está cada judeu que vem a Alexandria. Deve saber.

Quando Malachai chegou que lhe contei sobre o acontecido,

inclusive sobre minha ira desferida contra Judas, ele me

convidou para fazermos uma caminhada.

183

- João... eu sei que você ainda nutre sentimentos por aquela

moça de quem você foi se despedir no dia em que viemos

para cá. Eu sei que o verdadeiro amor não morre tão

facilmente, quando um dos amantes alimenta ainda a chama

da paixão no fundo do coração. Aconteceu com você, mas

você nem sabe se Sarah sente o mesmo. Além disso, você

nem sabe se é ela a pessoa que você disse ter visto

desembarcando hoje.

- Era sim, mestre Malachai. Eu te imploro, por favor...

ajude-me a encontrá-la?

- O que vai acontecer se você a encontrar, João?

- Eu... eu... bem... eu vou dizer a ela o que não pude dizer

no nosso último encontro. Direi que eu a amo e que vou

continuar amando-a pelo resto dos meus dias.

- E daí, João?

- E daí... não sei. Realmente não sei.

O mestre baixou o olhar e depois o ergueu para o céu

estrelado, como se buscasse lá uma resposta. Esperei

pacientemente e ele continuou.

- Eu te disse que você tinha uma missão a cumprir. Você foi

indicado para ser o escolhido. Nunca mais falamos sobre

isso, mas você tem sido acompanhado desde que chegou

aqui. Já recebeu instruções e ensinamento de dezenas de

mestres dos mais variados países. Seus conhecimentos vão

184

além do que qualquer outro aluno que eu tive até hoje.

Todos o respeitam e admiram. Sua mente percebe com

facilidade detalhes sutis, que a maioria das pessoas não

veem. As informações que recebe, você as amplifica. Você

tem o poder de expressar o que pensa por meio de histórias.

Já li muitas que você escreveu. Você ampliou a sua

criatividade nesses anos de trabalho duro, agora está na

iminência de se tornar um escriba. Talvez essa não seja a

melhor hora para procurar um casamento...

- Não estou procurando um casamento, mestre Malachai. O

senhor não entende... Sarah foi a única mulher que amei até

hoje. O que aconteceu conosco foi uma fatalidade. Eu tive

parte da culpa por ter fugido e não ter voltado para desposá-

la, como era o nosso desejo.

- Ninguém tem culpa dos acontecimentos que não consegue

controlar, meu filho. Claro que se você pudesse não teria

fugido de Jerusalém...

- Eu não fugi, eu fui levado. Já te contei como aconteceu.

Meu pai estava sendo procurado pelos romanos e o mestre

Abner nos tirou da cidade, levando-nos para um lugar onde

não pudessem nos achar.

- Isso mesmo. Vê... Você não teve controle sobre esses

acontecimentos. As coisas nesta vida são assim. Não temos

o poder de controlar tudo...

185

- Eu entendo, mas neste momento eu não estou com o poder

de consertar as coisas? Eu não tenho o poder de ir atrás dela

e começarmos tudo de onde paramos?

- João... meu bom João... As pessoas, assim como as coisas,

mudam a cada dia, num piscar de olhos. Nem a Sarah é

mais a mesma, nem você, nem eu, nem o mundo é. A vida é

como um rio, fluindo constantemente. A água que corre ali

nunca é a mesma. Quando eu fecho a minha boca após

proferir uma palavra, ela já foi... não existe mais. Fica

apenas a lembrança.

- O senhor tem razão mestre, mas qual o motivo de termos

sentimentos que não mudam com o tempo? Eu nunca deixei

de amar Sarah. Claro, talvez não a ame mais do mesmo

jeito, como o senhor diz, mas não posso tentar? Não devo

me aproximar dela enquanto posso? Se ela estiver

divorciada, se o marido morreu, se...

- Sempre o grande “se”, João. Algo só acontece porque

outras coisas já aconteceram. Tudo é uma sucessão de

acontecimentos. Estamos todo o tempo fazendo isso. Você

deu um soco em seu colega Judas. Ele pode querer uma

vingança amanhã. Um ato que praticamos pode levar a

outros atos. Você deve ter aprendido com Xerxes II, o

mestre essênio da Pérsia, que quando uma pedra é lançada

sobre a superfície da água ela provoca ondas que se

espalham em todas as direções, formando círculos.

Dependendo do peso da pedra e da força com que a

186

jogamos, essas ondas podem ir a grandes distâncias. Assim

acontece com os nossos atos, mesmo os pequeninos

provocam algum resultado. Então, existe a Grande Causa, a

Inteligência Suprema, como os nossos irmãos da escola de

Gnosis costumam chamar, Ela deu origem a tudo e nós só

precisamos continuar vivendo... nós Judeus chamamos essa

inteligência de Javeh. Mas confesso que tenho dúvidas se

ambos são a mesma coisa.

- Devemos deixar que essa inteligência nos guie, é isso

mesmo? E o que fazer com as nossas vontades, os nossos

desejos. Para que os temos, mestre?

- De certo modo, parece que essa grande força que

acreditamos seja Deus e que está por trás de todos os atos

humanos sabe mesmo o que é melhor para nós. Somos nós

que atrapalhamos esse fluxo de felicidade que deveria

acontecer naturalmente, mas os nossos desejos impedem.

Não deveríamos viver preocupados com o dia de amanhã...

O amanhã não nos pertence.

- 0 mestre Abner já me disse isso. Mas eu continuo

pensando no amanhã. Ou melhor, no hoje. Ainda quero

encontrar Sarah. Mesmo que tenha que revirar pedra sobre

pedra de Alexandria, eu irei encontrá-la, mestre – disse eu,

com veemência.

Parece que o velho mestre se impressionou com a minha

determinação.

187

- Poucas coisas há nesta vida que não possam ser vencidas

com determinação e coragem, meu filho. Agora vamos

dormir. Amanhã temos mais de 10 pergaminhos novos para

traduzir e copiar...

- Não irei à Biblioteca amanhã, mestre. Vou procurar por

Sarah, com ou sem a sua ajuda. O senhor vai me ajudar ou

não?

- Façamos assim... você irá para a biblioteca e trabalhará até

o meio dia. Enquanto isso, vou sair por aí e ver se descubro

quem são esses recém-chegados da Judeia. Na verdade, nem

sabemos se são judeus...

- São sim, mestre, vi numa das velas do navio o desenho de

um dos nossos símbolos. Com certeza, vieram da Judeia.

- Mas podem ser de outras cidades e não de Jerusalém...

- Podem, mas algo me diz que não são. Está bem, farei

como o senhor diz, mas, mesmo se não encontrar nenhuma

pista, depois do almoço eu irei procurar por minha própria

conta, está bem?

O mestre sabia como negociar. Concordei em fazer o que

ele pedia, pois sabia que, se havia alguém capaz de

encontrar um judeu em Alexandria, essa pessoa era

Malachai.

O trabalho de traduzir textos, copiar e recopiar trabalhos na

biblioteca, era maçante e nada criativo. Eu gostava mesmo

188

era de ler os tratados sobre os mais diversos assuntos,

espalhados pelas dezenas de salas, com prateleiras e

escaninhos, os quais continham rótulos de informação sobre

cada livro que lá havia, desde os escritos em madeira,

cerâmica, papiros e os modernos pergaminhos.

Também gostava de ir ao gigantesco anfiteatro, localizado

na parte dos fundos da biblioteca, onde os sábios de várias

partes do mundo faziam seus discursos, ministravam aulas

ou expunham suas novas descobertas a um público atento,

formado por mais de 5 mil pessoas. Eu jamais teria

imaginado uma sala tão grande e tão luxuosa, a qual

dispunha de escadarias circulares próprias para sentar,

parecia com um circo romano coberto. Havia nela um palco,

de onde os mestres e sábios podiam ser ouvidos e vistos por

todos. A construção fora feita de tal modo que um simples

sussurrar do palestrante podia ser ouvido em todo auditório,

sem esforço.

Eu ainda era obrigado a trabalhar seguindo as orientações

do meu mestre-tutor, mas sabia que no final daquele ano,

quando eu completasse os 17 anos e me tornasse um escriba

oficial, poderia trabalhar onde e como quisesse. Com sorte e

com as indicações certas, poderia ser nomeado escriba de

um rei ou governador. Mas esse não era o meu único sonho.

Eu queria ser um sábio e escrever meus próprios livros,

encher milhares de pergaminhos com todas as coisas que eu

vinha descobrindo desde que começara, ainda em criança, a

189

estudar os livros sagrados. Também queria me casar e ter

filhos para lhes ensinar tudo o que tinha aprendido.

Aquela manhã pareceu ser a mais longa de toda a minha

vida, pois, por mais que eu trabalhasse, as ampulhetas que

marcavam o tempo para a chegada da hora do almoço nunca

paravam de escorrer a fina areia para o receptáculo de

baixo. Meus olhos estavam fixos na entrada principal da

sala onde eu estava trabalhando com os demais colegas,

quando vi o mestre Malachai, com seu tradicional traje cor

de marfim, adentrar a biblioteca.

Procurei ver no seu rosto alguma expressão de alegria que

pudesse confirmar que ele havia encontrado alguma pista de

Sarah, mas não consegui captar nada.

- E então, mestre... o senhor encontrou alguma pista? Sabe

onde poderei encontrar Sarah?

- Não, João... não tive êxito. Eu sinto muito. Ninguém que

tenha chegado da Judeia no dia de ontem se chama Sarah.

- Mas eu a vi, mestre Malachai... eu a vi! – gritei erguendo

os braços e derrubando, sem querer, os pergaminhos que

estavam sobre minha mesa de trabalho.

- Infelizmente, eu não encontrei nenhuma pista...

- O senhor está mentindo, mestre Malachai. O senhor está

me enganando porque não quer que eu me case. Disse-me

isso ontem a noite. O senhor quer eu que cumpra essa tal

190

missão misteriosa que está na sua cabeça e de seus irmãos

da fraternidade – disse eu, avançando contra o ancião que

não se manteve impassível.

- Se é o que você pensa...

- Sim, é o que eu penso. Pois vou te dizer uma coisa...

obrigado por tudo o que me fez. Obrigado por ter me

afastado de meus pais, da minha família e me jogado aqui

nesse falso paraíso para fazer a sua vontade. Eu queria

apenas ser um homem normal, ter uma família, ter filhos,

brincar com eles... ter uma esposa...

O meu tom de voz e o meu pranto chamou a atenção das

outras pessoas que estavam na biblioteca. Logo a diretora

En-Dor, sacerdootisa egípcia, seria chamada. Ela não

tolerava tumultos, barulhos e perturbações da ordem. Ali era

um lugar de paz, de estudos e silêncio. O único lugar onde o

barulho era tolerado era no Auditorium. Lá, as pessoas

podiam gritar, aplaudir ou vaiar quem desejasse, mas o som

não saia daquele local.

- João... vamos sair daqui. Vamos conversar lá fora...

Não ouvi. Saí em desabalada carreira, deixando para trás

Malachai e alguns dos meus colegas, Mateus e Simão, que

tentaram me alcançar.

Já na rua, ainda cheio de ira, pois não tinha certeza do que

Malachai poderia ter feito. O velhote era sábio demais para

191

deixar que eu encontrasse a mulher que poderia mudar os

rumos da minha vida. Ele me dissera isso há alguns anos,

como se estivesse adivinhando o meu futuro, quando nos

encontramos pela primeira vez na sinagoga semidestruída

em Jerusalém: “não faça nada que venha atrapalhar a sua

missão”. Pois ele que ficasse com aquela missão, que já me

parecia agora uma fantasia de um ancião fora da realidade.

Iria atrás de Sarah, nem que tivesse que voltar a Jerusalém.

- João... João... espere... – eram meus colegas que gritavam

quase sem folego pelo esforço da corrida para me

alcançarem – Nós vamos ajuda-lo a procurar Sarah. Até

Judas disse que viria também.

- Não quero a ajuda daquele fariseu. Detesto fariseus! –

Disse eu, furioso.

- Mas eu sou fariseu também, João. – disse Simão, sentindo-

se ofendido.

- Você é um bom fariseu, Simão. Você é quase um

saduceu... – todos rimos.

Perambulamos pelas ruas de Alexandria e, quando sentimos

fome, fomos até um local reservado ao comércio. Paramos e

pedimos comida nas tendas que vendiam todo tipo de

alimento. Bebemos água fresca, que vinha pelo sistema de

canalização diretamente do Nilo e fomos para a escadaria

do porto ver mais um por do sol.

192

Por mais de dois dias, meus 12 colegas e eu procuramos por

Sarah em toda a cidade. Foi Judas que teve a iniciativa de

vir me pedir desculpas e oferecer ajuda. Eu aceitei a ajuda

dele. Naquela hora, toda ajuda seria importante para

alcançarmos nosso objetivo. Mestre Malachai não interferiu,

nem nos obrigou a trabalhar na biblioteca durante aqueles

dias. André, que era bom em negociar, prometeu a ele que

depois compensaríamos aqueles dias perdidos. O mestre

aceitou sem argumentar. Imaginei que ele queria compensar

sua falha em não ter encontrado Sarah ou, quem sabe,

penitenciar-se por sua deslavada mentira.

Meus pés doíam e minhas forças estavam esgotadas. Depois

de tamanho esforço, meus colegas também já não tinham

mais ânimo para prosseguir. Mas, no fundo do meu coração,

ainda existia um raio de esperança.

- Vamos procurar, pela última vez, nos arredores da cidade.

Nós ainda não procuramos nas pequenas propriedades ao

redor de Alexandria, pode ser que ela esteja lá – disse eu,

tentando animar meus companheiros.

Decidimos nos dividir para melhor aproveitarmos o último

dia que nos restava. Formamos 4 grupos de três e eu fiquei

no grupo de Judas, não confiava nele e queria ter certeza de

que ele realmente estava empenhado no que prometera.

Ao cair da tarde, já de regresso para Alexandria, com as

nossas sandálias e pernas cobertas de poeira, decidimos

parar em um agrupamento de pequenas casas. Haviam

193

acendido uma pequena fogueira e, em volta dela, algumas

pessoas conversavam. Foi então que eu vi Sarah, a minha

amada.

Minha respiração ficou suspensa e foi quando eu pedi aos

meus amigos que não se aproximassem mais. Que me

esperassem ali, até eu voltar trazendo Sarah pela mão para

comprovar que Javeh de fato atendia aos meus pedidos.

Gritei feito um louco, enquanto corria na direção da moça.

As pessoas quando me viram, correram para dentro das

casas, incluindo Sarah, e fecharam as portas. Ficou apenas o

homem idoso, o mesmo que eu havia visto com Sarah no

porto no dia em que chegaram. Acho que todos imaginaram

que estavam sendo atacados por um louco ou um bandido,

como era costume em Jerusalém, em nosso tempo.

Ao chegar perto do homem, este agarrou-me pelo braço,

impedindo-me de correr na direção da casa onde Sarah

havia entrado com as outras mulheres.

- O que está havendo, meu rapaz. Porque você está gritando

o nome de Sarah? Quem é você? – disse o homem,

segurando com força meu corpo, enquanto eu tentava me

desvencilhar dele.

- Eu sou.. eu sou... João.. ou melhor, eu sou Matias...

- Afinal, você nem sabe quem você é e está gritando por

Sarah... Você é um louco? O que você quer aqui? Acalme-

194

se, não vou machucá-lo, mas você não pode ir entrando nas

casas alheias sem ser convidado.

Meus companheiros vieram em meu socorro, para desespero

do ancião que teve certeza de tratar-se de um bando de

malfeitores. Foi André, com a sua fala mansa e bem

modulada, que explicou ao homem, que se chamava

Baruch, o que fazíamos ali.

- É uma maneira muito estranha de procurarem por uma

pessoa, não é? Esperem aqui fora que eu vou chamar a

moça.

Quando o homem voltou trazendo atrás de si a moça que eu

havia visto no porto, descobri que minha busca havia

terminado ali. Não era a minha Sarah, mas alguém que se

parecia muito com ela.

- Esta é Abigail, prima de Sarah. Elas se parecem muito

mesmo. Muitas pessoas chegaram a confundir as duas.

Estamos aqui na casa de nossos parentes que se mudaram

para Alexandria no ano passado.

- E como está Sarah? Ela continua casada? O primeiro filho

dela era um varão? Deram a ele o meu nome? Ela está feliz?

– despejei a um só tempo todas as perguntas que carregava

comigo há tanto tempo.

195

- Sim, ela teve um varão muito forte a quem deu o nome de

Matias. Depois ela teve uma filha que deu o nome Maria

Madalena...

- Ela está feliz? O marido a trata bem? – indaguei com a

esperança de que me dessem uma resposta negativa. Eu

deixaria tudo e voltaria para dar a felicidade que ela

merecia. Agora era um homem feito e não temeria a nada.

Só não ficaria com ela se ela me rejeitasse, mas eu sabia, ou

queria acreditar que ela me amava e pediria o divórcio para

se casar comigo.

A resposta não veio logo. Todos se entreolharam e foi

Abgail que se aproximou de mim e com lágrimas nos olhos

disse:

- Infelizmente, Sarah morreu quando nasceu sua filha.

Sofreu muito e as últimas coisas que ela disse foi que, se um

dia o encontrássemos, disséssemos a você que ela o

esperaria no paraíso. Quando ela engravidou da filha, seu

marido a abandonou para se casar com uma romana.

- Maltidos romanos!! Romanos maltidos!! Raça de víboras!!

Tudo isso só aconteceu por culpa deles. Eles são os

culpados pela morte de Sarah... pela fuga do meu pai, pela

separação de minha família, pela morte dos meus mestres! –

bradei furioso e dei as costas a todos.

Lembro-me de ter vagado naquela noite pelo campo durante

muito tempo até que decidi voltar para casa. Malachai havia

196

vencido. Eu agora estava pronto para começar a minha

missão, fosse o que fosse. Esperava que essa missão fosse a

de destruir completamente o império romano e tudo o que

ele representava. Desse modo, vingaria a destruição que

haviam causado a todos nós.

197

Capítulo IX - A Perseguição

Não há nenhuma força mais poderosa do que o amor ou o

ódio dentro de um ser humano. Movidos por um desses

sentimentos, somos capazes de realizar feitos inimagináveis.

Eu estava movido pelos dois. Amor imensurável ao meu

povo, aos meus familiares, aos meus entes queridos e ódio

mortal aos nossos inimigos, aqueles que nos escravizavam.

Após aquele incidente no pequeno vilarejo nos arredores de

Alexandria, quando eu vi todos os meus sonhos de ter uma

vida normal e mundana serem sucumbidos diante da

maldade dos homens, eu decidi não pensar em mais nada, a

não ser em preparar-me para cumprir fielmente a missão

que os meus mestres e a fraternidade dos essênios diziam

que eu deveria realizar. Foram meses de intensa dedicação

aos estudos, isolado de meus companheiros e apenas

concentrado em todas as orientações do mestre Malachai e

de todos os demais envolvidos na minha preparação.

Aos 20 anos, eu já havia viajado várias vezes para as mais

deslumbrantes cidades do mundo em diversos países. Pelo

mar, cheguei a Roma, depois Athenas e Tróia. Em seguida,

subi pelo rio Eufrates rumo a Assíria, alcançando depois a

famosa Babilônia e a fascinante cidade de Ur. Seguindo as

orientações dos meus mestres, penetrei em outro território

ainda mais fabuloso, a Índia, com seus dois mil deuses e

inúmeros dialetos. Tive que aprender dois deles antes de lá

chegar.

198

Nunca esqueci o efeito surpreendente que os livros sagrados

daquele povo exerceram sobre o meu espírito. Foi o mestre

hindu Rajan, a pessoa incumbida de me ensinar o que eu

desejasse saber sobre a história do seu povo, seus deuses,

seus costumes e modo de viver.

Em sua cabana no pináculo de uma montanha, mestre

Rajan, um ancião de pele escura, cabelos escorridos e

brancos como a neve, um rosto firme e bondoso,

emoldurado por sua longa barba branca, mostrava-me um

mundo completamente diferente daquele em que eu havia

nascido. Um mundo mais intenso, mais vivo, mais

complexo e infinitamente mais divertido. O povo hindu

também tinha livros, muitos dos quais haviam sido escritos

há 5 mil anos.

- Mestre Rajan, se esses livros foram escritos há 5 mil anos,

então os livros que temos em nosso país, relatando a história

dos judeus e as gerações de Adão até os nossos dias, não

estão corretos. Eles relatam que há dois mil anos, Javeh,

nosso Deus supremo, deu a Moisés as tábuas da lei. Então,

antes disso, vocês aqui na Índia já existiam? Já tinham os

seus livros, como esse Bhagavad-Gita, que conta a história

de Krishna?

199

- Sim, e, além do Bhagavad-Gita, temos também os Vedas,

os Upanixades e muitos outros de igual importância. Dentro

dos Vedas, por exemplo, existe o livro Saṃhit, que contém

os mantras sagrados.

- Mantras sagrados? Nunca havia ouvido falar sobre isso.

Do que se trata?

- O mantra é uma fórmula mística e ritual recitada ou

cantada repetidamente pelos fiéis. Essa palavra, em

sânscrito, significa controle da mente. O mantra é repetido

de forma a auxiliar a concentração durante a meditação.

Acreditamos que ao repetirmos as mesmas palavras muitas

vezes, nós mudamos a realidade de acordo com a nossa

vontade. Vocês não tem algo assim na religião de vocês na

Judeia.

- Temos sim. Não chamamos de mantra ou meditação.

Chamamos de oração. Temos um livro escrito por um sábio

chamado Davi, quem escreveu os Salmos. Nós repetimos

esses versículos durante nossas cerimônias. Também

fazemos as nossas preces com o objetivo de pedir a Deus as

coisas que precisamos.

- Ou as coisas que vocês acham que precisam, não é? -

disse o ancião, sorrindo zombeteiramente.

- Talvez seja isso mesmo, mestre. Talvez nem precisemos

de tantas coisas que pedimos em nossas orações.

- Qual é o nome do deus de vocês lá em seu país?

200

- O nome dele é Javeh. Não existe outro maior que Ele... foi

o que me ensinaram desde que nasci e está escrito nos

livros.

- Nos livros do seu povo, não é?

- Isso mesmo, os quais o senhor agora me diz que não são

os mais antigos nem os únicos. Os livros dos hindus foram

escritos milhares de anos antes. Como pude viver até hoje

sem saber disso? Por que os nossos sacerdotes não nos

ensinaram tais fatos?

- Os sacerdotes são homens inteligentes que desejam manter

o poder nas próprias mãos. Eles acham que são capazes de

conduzir o povo para um bom caminho. Na verdade, eles

têm medo de que o povo se perca. Por isso, criaram os

livros para expressar os seus desejos e não querem que os

féis leiam outras escrituras tidas como sagradas.

- O senhor está me dizendo que os livros não são inspiração

divina? São produtos da cabeça de homens como nós?

- Eu não disse isso, meu rapaz. Mas essa é a conclusão que

chegamos quando lemos os nossos livros. Cada um deles

reflete o desejo, as necessidades daquele tempo. Com o

passar das gerações, precisamos criar novas leis, novas

orientações. A mente humana é poderosa e vai encontrando

novas soluções. Então, os livros antigos devem ser

considerados como orientações que serviam para aquele

tempo e talvez não mais para os novos tempos.

201

- Se é assim, qual a razão de o senhor e milhões de outros

hindus continuarem lendo os livros antigos? Não deveriam

escrever outros novos? Jogar os antigos no lixo?

- Deveríamos sim, meu rapaz. Vejo que sua mente é muito

lúcida e objetiva. No entanto, pense da seguinte forma: um

mapa, mesmo que não seja tão bom, pode levar você ao

lugar que deseja, não é? Sem ele, as pessoas ficariam

perdidas, sem rumo. Enquanto não surgirem novos mapas,

precisamos confiar nos antigos. Infelizmente, o que ocorre é

que a maioria dos homens é preguiçosa demais para mudar

o modo de pensar e de agir. Acomoda-se usando os velhos

mapas.

- E por que razão os sábios, como o senhor e tantos outros,

não escrevem novos livros, novos mapas?

- Quem vai acreditar num velho sacerdote que vive sozinho

nas montanhas, meu rapaz? Diriam que sou louco e me

queimariam numa fogueira sagrada. Diriam que estou

possuído por divindades do mal.

- Vocês também acreditam em divindades do Bem ou do

Mal? Nossos livros antigos contam a história da criação do

mundo, dizendo que um anjo chamado Lúcifer quis ser

maior do que Deus e se corrompeu, passando para o lado do

mal. Quando Javeh criou o homem e a mulher, uma

serpente do mal enganou Eva e a induziu a provar do fruto

da ciência do bem e do mal. Eva comeu e deu a Adão e

ambos abriram seus olhos, desobedecendo a ordem que

Deus havia dado para que não comessem do fruto proibido.

202

- Sim, nós, que seguimos o bramanismo, temos muitas

histórias como essas de vocês. Acreditamos que Brahma é o

Deus principal, o onipresente e supremo, pai da Trindade

Brahman. Ou seja, temos Brahma (o criador), Vishnu (o

preservador) e Shiva (o destruidor do mal). Mas não se

preocupe com esses nomes. Mesmo eu tendo 85 anos de

idade, estudado desde criança nos principais mosteiros da

Índia, ainda não sei tudo sobre as nossas divindades. Já

disseram que é possível existirem atualmente mais de 100

mil delas por toda a Índia. Parece que cada indiano tem o

seu deus particular, mas entendemos que todos acabam

sendo manifestações de Brahma.

- Então Brahma é o Deus Supremo de sua religião? E quem

é Krishna?

- Isso mesmo, Brahma é o Espírito Cósmico e se manifesta

por meio de seus avatares, os quais assumem diferentes

formas. Krishna, por exemplo, que nasceu de uma virgem, é

a encarnação do Deus Vishnu.

- Krishna nasceu de uma virgem? Como isso foi possível?

- É o que está escrito aqui no Bhagavad-Gita, veja comigo o

que disse o oráculo sobre o que iria acontecer: "Bendita és

tu, Devaki, entre todas as mulheres, fostes escolhida para a

obra da salvação... Ele virá com uma coroa de luz e o céu e

a terra se encherão de júbilo...Virgem e mãe, nós te

saudamos, como a mãe de todos nós, pois dará à luz ao

nosso salvador, a quem darás o nome de Krishna".

- Nós também temos profecias que mencionam a vinda de

um Messias que libertará o nosso povo da opressão. Está

203

escrito no livro de Isaías, um profeta que viveu há cerca de

700 anos. E diz: "Portanto o Senhor mesmo vos dará um

sinal: eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho,

e será o seu nome Emanuel". Mas até o momento esse

salvador ainda não nasceu. Nosso povo espera por ele. Seria

muito bom se ele viesse agora. O senhor talvez não saiba,

mas estamos sofrendo muito com a invasão dos romanos.

- Eu sei, meu rapaz, eu sei. Desde que o homem anda sobre

este mundo, que existem povos subjugando povos. Os mais

fortes querem dominar os mais fracos. Aqui na Índia é

assim. De tempos em tempos, somos invadidos por povos

vizinhos que querem nossas terras, nossas mulheres e

nossas riquezas. Temos que lutar contra eles com lanças e

espadas, o que endurece os corações do nosso povo. E a

questão é: o que fazer com o nosso povo revoltado, cheio de

ódio e com desejo de vingança? como mudar o modo de

eles agirem entre si mesmos? Uma das melhores maneiras

de se fazer isso é por meio das revoluções do modo de

pensar. São as ideias que mudam o mundo. São homens

corajosos que desafiam as leis antigas e querem leis novas

que evitarão as barbáries do futuro. Se as pessoas que são

escravizadas hoje não aprenderem a cultivar a paz, o perdão

e o amor ao próximo, quando elas estiverem livres,

repetirão o mesmo erro com outros povos que estejam em

situação mais fraca e o eterno ciclo do mal permanecerá.

Parece que vamos precisar de muitos salvadores, nascidos

de virgens ou não, para mudar o mundo, não é?

- Tem razão, mestre. E como foi o nascimento de Krisnha?

Pode me contar, por favor?

204

- Isso foi há três mil e duzentos anos. Conta-nos, um dos

nossos livros sagrados, que Krisnha foi o oitavo filho da

princesa Devaki, filha do rei Kamsa. No dia do casamento

de Devaki, quando o rei a levava ao seu marido Vasudeva

para a nova moradia, escutou uma voz que dizia que o

oitavo filho de Devaki seria um Visnhu e iria levá-lo à

morte. Temeroso, o rei decidiu matar o casal, mas Vasudeva

implorou pela vida da esposa, prometendo que cada filho

que nascesse seria levado à presença de Kamsa e ele poderia

fazer o que quisesse com eles.

- E o rei Kamsa desistiu de matar a própria filha?

- Sim, desistiu, mas mandou prender Vasudeva e a esposa

no porão do castelo, sendo vigiados dia e noite por guardas.

Cada filho do casal que nascia era morto por Kamsa, que,

mesmo sabendo que a profecia se cumpriria apenas no

oitavo filho, não tinha piedade de nenhum e matava todos. E

mais, num acesso de loucura e medo, temendo que o Visnhu

pudesse nascer em qualquer outro lugar, mandou matar

todos os meninos com até dois anos de idade, a fim de

evitar o cumprimento da profecia.

- Temos uma história semelhante em nossos livros, mestre.

- Parece que os homens gostam de repetir as histórias de

tempos em tempos, não é? Ou será que as ouvem e as

reescrevem, mudando apenas os nomes dos personagens,

adaptando-as à própria realidade?

- O senhor não acredita na história do rei Kamsa?

205

- Deixe-me concluí-la e depois te direi o que penso sobre

ela. Mas prometa-me que não vai me chamar de velho

louco, está bem? – disse o ancião, sorrindo largamente.

- Não prometo nada, mestre, mas respeitarei as tradições do

seu povo da mesma forma como gosto que respeitem as

minhas, ainda que não concordemos integralmente com

elas. Eu só preciso entender a razão de elas existirem. Se o

senhor puder me ajudar com isso, ficarei feliz e partirei da

Índia com mais sabedoria.

- Pois bem, foi então que o oitavo filho de Devaki nasceu e

recebeu o nome de Bhagavan Sri Krishna. Como já te disse,

dessa vez, não foi preciso que a princesa Devaki tivesse

relações íntimas com o marido, pois o filho era a

encarnação de Visnhu. Cientes de que a vida do menino

corria risco na prisão, amigos de Vasudeva o levou para

outra cidade e o entregou a uma outra família para que o

criassem. Nanda, pai adotivo de Krishna, era o líder de uma

comunidade de pastores de gado. Existem muitas histórias

falando sobre o menino naquele lugar. São muitas as

façanhas de Krishna e aventuras com as Gopis da vila,

incluindo Radha, aventuras estas que se tornaram

conhecidas como Rasa Lila.

- Estou impressionado, mestre Rajan. Quero saber mais

sobre essas aventuras de Krisnha.

- Você mesmo poderá ler sobre elas nos livros que te

mostrarei enquanto estiver aqui comigo. Sei que você, além

de falar muito bem o sânscrito, o lê muito bem. Quem o

ensinou?

206

- Aprendi com o mestre Sri Bakthi, na Biblioteca de

Alexandria. Ele me disse que estava traduzindo os livros

sagrados dos hindus para outras línguas. Assim como ele,

eu achava que o mundo precisava conhecer outras obras,

além das que foram escritas por seu próprio povo.

- Chegará o dia em que não haverá mais necessidade de se

contar histórias. Os homens compreenderão que as histórias

foram criadas para nos ensinar, orientar e nos indicar um

caminho a seguir. Espero que elas serviram para despertar

as lembranças dos fatos que são importantes para nossa vida

e que sejam desprezos os outros sem valor. Uma pessoa que

tenha consciência do bem e do mal e escolha praticar o que

é certo não precisa de histórias mirabolantes para guiar sua

via.

- O que mais o senhor poderia me falar sobre a vida de

Krisnha?

- Aos 13 anos, o jovem Krishna deixou a companhia da mãe

adotiva e saiu para divulgar sua doutrina por toda a Índia.

Condenava a corrupção do povo e dos príncipes e dizia ter

vindo ao mundo para redimir o homem do pecado original,

para exorcizar os espíritos imundos e restaurar o reino do

bem.

- Em nossas histórias, muitos profetas realizaram curas,

ressuscitaram mortos e fizeram muitos outros prodígios em

nome de Javeh. Krisnha fez algo assim, também?

207

- Sim, ele fez muitas coisas extraordinárias, como

ressuscitar mortos, curar leprosos e aleijados, restituir visão

aos cegos e audição aos surdos.

- Conte-me sobre algum dos milagres registrados sobre vida

dele, por favor, mestre?

- Claro, meu rapaz. Com prazer. Os milagres de Krishna

eram de dois tipos. Primeiramente, para proteger as pessoas

bondosas e, em segundo lugar, para destruir o mal sob todas

as formas existentes. Conta-se que um dia uma senhora

trouxe algumas frutas envoltas em um pano para oferecer a

Krisnha. Ele recebeu e comeu as frutas ofertadas

generosamente pela mulher que era muito pobre. Então, ele

foi dentro da casa e voltou com um punhado de arroz e o

colocou dentro do pano em que a mulher trouxera as frutas.

Ela aceitou os grãos de arroz e partiu. Quando chegou em

casa, espantou-se ao abrir seu pano. Todos os grãos de arroz

tinham se transformado em diamantes brilhantes.

- Foi mesmo uma transformação milagrosa. Qual era a

principal mensagem dele? O que ele pregava?

- Krishna não desejava propagar uma nova religião, mas

simplesmente renovar a já existente, libertando-a de seus

odiosos abusos e impurezas. Ele exigia dos seus discípulos

o amor ao próximo, a dignidade, o auxílio aos pobres, a

prática de boas ações e a fé na infalível misericórdia de

Brahma, o deus supremo. Mandava pagar o mal com o bem,

amar os inimigos e proibia terminantemente a vingança.

Vivia na pobreza e dedicava-se aos desamparados e

oprimidos. Não tinha vínculos pessoais e defendia a

208

castidade, viveu por toda a vida como um peregrino

mendicante.

- Como ele morreu, mestre?

- Está escrito: “Krishna partiu certa vez para uma região

desconhecida e apenas duas de suas discípulas, Saraswati e

Nichdali, o seguiram. Após alguns dias de viagem, elas

questionaram ao mestre do porque daquela viagem. E

Krishna respondeu: É necessário que o filho de Mahadeva

morra atravessado por uma flecha, para que o mundo

acredite em sua palavra. Pediu então que todos orassem

durante sete dias. O semblante de Krishna se transfigurava e

parecia mais radiante. Após o sétimo dia, os arqueiros do rei

Kansa chegaram próximo do Mestre. Eram soldados rudes,

de rosto amarelado e negro. Ao verem a figura estática do

santo, se detiveram. Primeiro o injuriaram, depois lhe

jogaram pedras, mas Ele não saia de sua imobilidade. Logo

os arqueiros se colocaram a distancia e se puseram a atirar

sobre Ele. A primeira flecha que lhe atravessou lhe brotou o

sangue e Krishna exclamou: “Vasichta, os filhos do sol

venceram”. Quando a Segunda flecha vibrou em sua carne,

disse: “Minha mãe radiante, que os que me amam, entrem

comigo em sua luz”. E na terceira disse somente:

“Mahadeva!” (Deus Supremo) E logo, disse: ‘entrego meu

espírito’. O sol havia se escondido, um grande vento se fez,

uma tempestade de neve inundou o Himalaia. O céu se

fechou. Os assassinos fugiram e as duas mulheres caíram

desvanecidas sobre o solo. O corpo de Krishna foi

queimado por seus discípulos na cidade santa de Dwarka.

Saraswati e Nichdali se atiraram na fogueira para unirem-se

a seu dono e Mestre e a multidão acreditou ver o filho de

209

Mahadeva sair das chamas em um corpo cheio de luz,

subindo rumo ao infinito e levando consigo as duas nobres

mulheres que tanto o amavam em vida”.

- Que história interessante, mestre. Nossos sacerdotes nunca

ouviram falar de Krisnha.

- Nós também nunca ouvimos falar de Moisés ou do deus de

vocês, Javeh. Mesmo que ouvíssemos, você acha que

daríamos importância? Cada povo acha que a única

divindade verdadeira é a que eles cultuam. Rejeitam todas

as demais, mesmo que as divindades quase sempre preguem

os mesmos princípios e tenham histórias parecidas.

- Krisnha tinha algum tipo de mandamento? Ele escreveu

alguma lei?

- Não, ele não escreveu, mas seus discípulos o fizeram.

Você poderá encontrar tudo o que foi registrado sobre a

vida dele no Bhagavad-Gita, escrito há mais de 3 mil anos.

Vamos ler juntos o que diz o capítulo XVIII, 64-71.

“E disse o Senhor Krisnha: Escuta de novo, e ouve

Minha última palavra, referente ao maior de todos os

mistérios. Por seres o Meu muito amado, Eu te digo

aquilo que te convém.

Fixa tua mente em Mim; sê Meu devoto; serve-Me;

prostra-te diante de Mim, e desse modo chegarás até

Mim. Esta é a pura verdade, Eu te declaro, pois és

Meu muito amado.

210

Desiste de todas as obrigações religiosas, e toma-Me

como teu único refúgio. Eu te libertarei de todas as

dificuldades. Não te aflijas.

Disto não digas nada ao mundano, nem ao ímpio,

nem ao que não quer ouvir, nem ao que Me maldiz.

Mas quem com sublime devoção divulgar este

Segredo entre Meus devotos chegará até Mim sem

dúvida alguma.

Entre os homens ninguém poderá oferecer-Me

serviço mais grato que este, nem nenhum outro

homem será tão amado por Mim na terra.

E quem meditar neste nosso Santo Colóquio, por

meio dele Me adorará com o sacrifício da Sabedoria.

Tal é a Minha vontade.

E também o homem que, cheio de fé, o escutar tão

só sem malícia, alcançará, livre do mal, o

esplendente mundo dos justos”.

- Isso é muito bonito, mestre. Agora compreendo porque ele

se tornou adorado por tantas pessoas em seu país. Nós

nunca havíamos ouvido falar nele ou em Brahma.

- Eu sei, meu jovem aprendiz. Em outras terras também

existem divindades que nós não conhecemos. Todas

apontam caminhos para o bem, para o amor ao próximo.

Todas indicam a porta para a salvação. Parece que as

divindades querem o mesmo que nós homens queremos. O

211

problema é que, mesmo sabendo o que devemos fazer, não

fazemos e esperamos que os deuses realizem tudo por nós.

Eu acho isso um erro.

- Será que as divindades, como o senhor diz, sabem que se

seguirmos os bons princípios seremos capazes de fazer as

coisas certas?

- As divindades estão dentro de nós, meu jovem... Não estão

lá fora, como muitos pensam. Os avatares, esses homens e

mulheres que trazem uma mensagem do Divino, querem

despertar dentro de nós a sabedoria universal.

- O senhor está dizendo então que Brahma, o Deus Supremo

da sua religião, não existe? Que Krisnha não foi a

encarnação de uma das formas Dele, como diz no livro

sagrado que o senhor me mostrou?

- Brahma, Visnhu, Shiva, Javeh e todos os demais deuses

existentes nas demais religiões parecem ser nomes dados a

esse Grande Espírito que está em toda parte. Nomes, nomes,

apenas nomes. Eu acredito na Inteligência Suprema, não

importa que nome lhe damos e quais são as histórias que

contamos para transmitir os bons ensinamentos às crianças.

Sim, porque são as crianças que precisam ser ensinadas,

para que façam o bem quando estiverem adultas. Uma

criança nasce pura. São os pais e o meio onde ela vive que

fazem com que ela se torne impura, pecadora, como vocês

dizem na religião judaica.

- Então o senhor não acredita que Krisnha realmente

existiu? Foi só uma lenda, uma história para ensinar a

212

bondade, o perdão e as demais virtudes que o senhor me

mostrou nas palavras dele?

- Essa é uma boa pergunta, meu rapaz. Nascer de uma

virgem? Ora, o que poderia ser mais incrível do que isso?

Fazer milagres? Quanto poder, não é? Ser uma das três

manifestações de Brahma, não é o máximo? Então, se

alguém com tamanho poder disser qualquer coisa, não é

melhor obedecermos? Não é bom aceitarmos as orientações

de um avatar tão poderoso como Krisnha? Existirão outros

pelo mundo. Todos terão seguidores e assim o mundo irá

melhorando aos poucos. Não me importa se Krisnha teve

uma vida real ou não. Não existe provas de sua existência,

só o Bhagavad-Gita fala sobre ele.

- E quem escreveu o Bhagavad-Gita?

- Homens como eu e você. Escribas. Homens dotados de

conhecimento e sabedoria. Homens que sabiam que são as

lendas, as histórias que têm o poder de atravessar o corredor

infinito do tempo e chegar a gerações e lugares mais

distantes. Os milagres sempre existirão, independentemente

de quem os faça. Existem os milagres naturais e os que são

produzidos pela inteligência humana. Quer ver? Ou melhor,

quer ouvir? Vou pedir agora mesmo a Krisnha que diga

alguma coisa sobre você. Quero que Ele me diga qual é a

sua missão nessa vida.

E dizendo aquilo o mestre Rajan cruzou as pernas uma

sobre a outra e esticou os dois braços acima da cabeça,

juntando as palmas das mãos suavemente, depois fechou os

213

olhos e começou a produzir um som grave que ecoava por

toda a cabana, provocando-me temor:

- Óummmmmm... óummmmmm.... óummmmmmmm... –

repetiu ele várias vezes e depois se calou.

De repente, eu ouvi uma voz sobre a minha cabeça que

disse:

- João... João... você foi escolhido para ser o emissário das

boas novas ao seu povo. Você será perseguido por muitos,

mas não deve desistir até ver realizado o seu trabalho. Siga

agora para a Ásia Maior e depois volte para a Grécia. Seus

irmãos estarão esperando por você lá.

Senti um arrepio por todo o corpo, ao ouvir aquelas

palavras. Como Krisnha, um deus hindu, poderia saber a

minha missão? As palavras não saiam da boca do mestre

Rajan. Seus lábios não se moviam e a voz não era a dele.

Era uma voz sobrenatural.

Depois que a voz desapareceu o mestre começou a

gargalhar.

- Por que o senhor está rindo, mestre. Está zombando da

profecia que Krisnha acabou de falar. Creio que o senhor,

mesmo estando aí concentrado e de olhos fechados, também

ouviu cada uma palavra que ele disse. Eu nunca ouvi a voz

de Javeh, mas os profetas antigos ouviam. Não sabia que

aqui na Índia os deuses também falam aos sacerdotes.

- O que você ouviu não foi a voz de Krisnha...

214

- Como assim, não existe mais ninguém aqui nessa cabana.

Estamos apenas nós dois. A voz que ouvi foi de alguém

invisível... Eu por acaso estou ficando louco? Ouvi com

meus próprios ouvidos.

- Você ouviu uma voz sim, fique sossegado. Quem falou fui

eu mesmo. Aprendi essa técnica com um antigo mestre

hindu que andava pelo mundo aprendendo novidades.

Chama-se gastromancia ou ventroloquismo.

- É uma forma de magia? Como funciona?

- Você poderá aprender, se quiser. Tem que treinar os

músculos da garganta a produzir sons iguais aos que são

produzidos pela boca. Com um pouco de treino, isso é

possível. Assim, você pode manter os lábios fechados e

falar como se fosse uma outra pessoa.

- Então quer dizer que era assim que os sacerdotes ouviam a

voz de Deus?

- Qual Deus? O deus que seu povo chama-se Javeh. Aqui

chamam-no de Brahma. Já ouvi dizer que na China eles

adoram milhares de deuses também. Cada povo ouve a voz

dos seus desses... ou dos seus representantes. Todas as

religiões possuem sacerdotes, pessoas que mantêm contato

direto com as divindades.

- Então podemos ser facilmente enganados?

- Muitos tem feito isso aqui. Usam seus conhecimentos de

gastromancia para influenciar pessoas, reis e governantes a

215

fazerem a vontade de Deus. Sem esses poderes, eles não

conseguiriam nada. Compreende isso?

- Isso quer dizer que muitos podem usar esse conhecimento

para praticar o mal, não é?

-O melhor seria se só existissem sacerdotes e mestres

evoluídos e do bem. Mas na condição de humanos isso não

é possível. Eles são manipulados e corrompidos pela

ganância, pelo poder e até mesmo pelas riquezas que os reis

lhes oferecem. Recebem proteção deles para controlarem o

povo. Aqui na Índia, temos centenas de castas e grupos

brigando entre si. O que torna complicado para os

governantes controlarem o povo é o fato de existirem vários

deuses e muitos deles possuírem ritos e orientações

contraditórios. Uns dizem que não é bom comer carne de

animais, outros dizem que só boi é o animal sagrado e

muitos, como é o meu caso, seguem o Bramanismo, somos

totalmente vegetarianos. Nós brâmanes não matamos nem

mesmo um mosquito. A justificativa é que nele pode estar

encarnada a alma de uma avó, ou avô. Essa justificativa

pode ser aceita por qualquer criança que reverencia a

memória de uma querida avó. Mas, além disso,

compreendemos que devemos respeitar todas as vidas, pois

cada uma tem o seu propósito. Todas são criaturas divinas e

exercem o seu papel no mundo.

- O mesmo se dá com o grupo dos essênios, na Judéia. Eles

não comem alimentos de origem animal, exceto ovos, leite e

mel, porque não é necessário matar os animais para obtê-

los. Já na nossa religião, é permitido comer carne, salvo de

alguns animais que Javeh nos proibiu comer. Em meu país,

216

ainda existem pessoas que adoram outros deuses e têm

outros costumes, mas os nossos sacerdotes os condenam.

- A ideia de ter um único deus é antiga. O faraó Amenófis

IV, que governou o Egito, há mil e trezentos anos, aboliu

todos os deuses, exigindo que o povo adorasse apenas a

Atón, o Deus Sol Supremo. Essa foi uma maneira

inteligente de unir os povos debaixo de uma mesma lei.

- Estou impressionado, mestre Rajan. Obrigado por seus

ensinamentos. Eu agora estou me sentindo mais livre, mais

capaz de entender as religiões do mundo. Tenho ainda uma

pergunta: quando manifestou a voz de Krisnha, dizendo que

eu tinha uma missão. Isso foi uma adivinhação? O senhor

tem o poder de saber o futuro?

- Claro que não. Tenho bons amigos. Foi o mestre Sri

Bakthi, o mesmo com quem você aprendeu sânscrito, quem

me falou de você. No ano passado, ele esteve me visitando e

falou-me muito de um discípulo especial. Alguém que

deveria vir aqui estudar e aprender comigo para cumprir

uma missão. Ele não foi indicado por seu mestre judeu?

- Sim, é verdade? Foi o mestre Malachai que me indicou

para estudar sânscrito com ele.

- Então é assim, João. As pessoas simplesmente sabem dos

fatos por meio de outras ou fazem deduções sobre eles. Eu

posso dizer que você deve ter entre 20 e 22 anos, estou

certo? Ao ver os seus dentes, vi que você não come carne

nem ingere bebidas fortes. Ao observar o formato do seu

corpo, vi que você se exercita diariamente, então posso tirar

217

conclusões a seu respeito com facilidade, observando-o

cuidadosamente. Essa é uma nova ciência que os sábios

romanos e gregos estão desenvolvendo. Eles acreditam que

chegará um dia em que será possível, por meio de uma

breve conversa, sabermos muita coisa sobre o passado de

uma pessoa.

- Eu gostaria de saber sobre o futuro – disse eu, sorrindo.

- O futuro está sendo construído neste momento, João. No

presente. Faça o que for bom e tenha certeza de que as

chances de você ter um bom futuro são grandes. Faça o mal

e as chances de colher o mal serão grandes também.

- Entendi agora a história de Krisnha. A história dos grãos

de arroz que se transformaram em diamantes. Ela quer dizer

que um ato de bondade e generosidade acabará se

transformando em algo mais valioso depois de algum

tempo.

- Muito bom... muito bom... Você é mesmo o Escolhido! –

Disse o velho ancião, abraçando-me efusivamente. Se a

história apenas mencionasse as palavras de Krisnha, as

pessoas logo esqueceriam. Mas veja o poder do brilho dos

diamantes... arroz transformando-se em joias. Uma coisa tão

simples transformada em algo mil vezes mais valioso – isso

ninguém esquece. A sabedoria de quem escreveu aquele

texto foi essa, a de ocultar um ensinamento dentro de uma

história. Desse modo, mesmo tendo sido escrita há mais de

mil anos, chegou hoje até nós, sem grandes mudanças no

texto original. A simplicidade da história e seus elementos

são fáceis de serem memorizados. Assim, em qualquer

218

tempo, mesmo depois de mil, dois mil ou dez mil anos as

pessoas que a ouvirem poderão tirar algum proveito dela.

Confesso que, depois daquela conversa com o velho mestre

hindu, minha mente começou a fervilhar com milhões de

ideias, histórias e ensinamentos que poderiam ser entregues

ao nosso povo ou quem sabe a todos os povos do mundo

para que mudassem o modo de pensar e agir. Será que seria

essa a minha missão de que tanto falavam?

Chegou o dia de me despedir dos meus irmãos indianos e

partir para a Ásia Maior, onde deveria ficar alguns meses

aprendendo com os mestres chineses, para depois seguir

para a Grécia e de lá retornar para Alexandria. Eu estava

ansioso para voltar pra casa, onde o mestre Malachai

esperava por mim para finalmente me revelar a missão que

se tornara obsessão de minha vida, desde o dia em que o

mestre Abner me levara para conhecer a comunidade dos

essênios.

Cheguei em Loyang, capital da província de Ch´u, na

China, em pleno verão. O calor era intenso e eu tinha

dificuldade para andar com roupas típicas da Judeia. Adotei

os trajes do local que consistia em uma peça de tecido

enrolada entre as pernas e amarrada na cintura e nada mais.

Sentia-me mais leve com aquela roupa.

Nunca imaginei que existisse tanta gente em um só lugar.

Aquela deveria ser uma das maiores cidades do mundo.

Diferentemente dos indianos que tinha a pele escura, como

a de muitos que vinham de países vizinhos ao Egito, os

chineses tinham a pele amarelada e os olhos em formato de

219

amêndoas. Tinham a aparência de que estavam sempre

sorrindo.

Quem me guiou até o mosteiro de Loyang foi um discípulo

de mestre Rajan que falava o mandarin, língua que eu

também havia começado a aprender. Ficaria ali por um ano

e depois seguiria para a Grécia.

O monge taoísta que me hospedou era muito reverente e

sempre sorridente. Tratou-me como a um filho e eu seria

aceito pelo grupo como irmão depois de cumprir três

condições:

A primeira que eu raspasse totalmente o meu cabelo, barba

e bigode, pois só os mestres tinham permissão para usá-las e

não havia nenhum mestre com menos de 50 anos naquele

mosteiro.

A segunda era que eu executasse todas as atividades com os

demais monges, que consistiam em: exercícios de artes

marciais, também chamada de Tai Chi Chuan, leitura e

meditação diária do Livro Sagrado “Tao Te Ching” ou o

Livro do Caminho e da Virtude, deixado pelo profeta Lao-

Tsé; preparação das refeições; corte de lenha para abastecer

os fornos; cultivo do solo e lavagem das roupas de uso

pessoal, incluindo toalhas, cobertores e mantas. Todos se

revezavam nessas atividades.

A terceira era: sempre que eu tivesse qualquer dúvida, sobre

qualquer coisa, que perguntasse aos irmãos mais velhos e,

se eles não soubessem, perguntaria ao mestre Chen Tuang.

220

Aceitei de bom grado aquela nova vida e, por muitos meses,

vi-me mergulhado em um mundo absolutamente fascinante.

Tínhamos jogos e lutas quase todos os dias e com isso meu

corpo foi ficando mais e mais resistente. Minha mente

também foi ficando mais lúcida e atenta. Eu percebi que

meus reflexos, meus sentidos e minha disposição para a

leitura haviam aumentado. Fui ensinado a experimentar os

alimentos sem pressa e mastigá-los bastante, antes de

engolir. Fui ensinado a sentir o aroma das frutas e dos

vegetais dos quais me alimentava, mesmo antes de serem

colhidos.

Quando sentávamos para ouvir o mestre Chen, aprendíamos

muito, em pouco tempo. Ele falava calma e serenamente,

como um riacho de águas cristalinas que escorre sem pressa

sobre as pedras lisas e alcançava as nossas almas sedentas.

- O Tao nos ensina a serenidade, a não ação (wu-wei), o

vazio, a moderação dos desejos, a simplicidade, a

espontaneidade, a contemplação da natureza e os Três

Tesouros: compaixão, moderação e humildade. Todos que

desenvolvem essas virtudes entram em harmonia com o Tao

e vão viver longas e frutíferas vidas. Já os ímpios e seus

descendentes vão sofrer e terão suas vidas encurtadas.

Nessas horas eu me enchia de dúvidas e foi quando

perguntei:

- Mestre, o que é o Tao? É uma forma de Deus?

Todos riram, inclusive o mestre.

221

Ele, pacientemente, respondeu:

- Se nós que estamos estudando o Tao por mais de mil anos

ainda não sabemos direito o que ele é, como você, que

acabou de chegar, vai querer conhece-lo? O Tao não é um

deus. Nós não temos aqui um deus. O nosso modo de viver

busca apenas a harmonia com tudo o que há. Busca o

equilibro pelo sentir e pela pratica de boas ações. Nossos

atos nos conduzirão ao Tao que também pode ser visto

como a perfeição, a sabedoria suprema, o amor supremo, a

inteligência suprema.

- Sei que esse livro TaoTe Ching foi escrito pelo mestre

Lao-Tsé. O senhor poderia me falar um pouco sobre ele?

- Eu não falarei, mas pedirei a Wu Li, seu irmão mais velho,

que nos conte. Por favor, Wu Li, fale-nos sobre o mestre

Lao-Tsé.

O jovem levantou-se, fez uma reverência ao mestre e voltou

a se sentar com as pernas cruzadas, de maneira muito

parecida com a que o mestre hindu Rajan fazia. De forma

serena, o futuro mestre do mosteiro contou o que todos já

sabiam, exceto eu.

- Lao Tse nasceu na província de Na Hue, na cidade de Guo

Yang, no 25º dia da segunda lua do ano Ken-Tzen, da era

Wu-Tin, há mais de mil anos. Seu pai seria um famoso

alquimista da dinastia San, que viveu por mais de cem anos.

Sua mãe e mestra o teria concebido ao engolir uma pérola

de luz e sua gestação teria demorado 81 anos. "Lao Tse

nasceu do lado esquerdo das costelas da sagrada mãe, no

222

jardim da família, sob uma árvore de nome Li (ameixeira),

com cabelos brancos e orelhas grandes. Por isso, recebeu o

nome de Lao Tse (filho velho) e Li Er (orelha grande da

ameixeira). A união das palavras chinesas para 'velho' e

'criança' em seu nome justificam seu título de 'Senhor do

Fim e do Princípio'.

- Quais foram os principais ensinamentos do mestre Lao

Tsé, irmão Wu?

- Foram muitos. Ele, além do Tao Te Ching, também nos

deixou o Tratado Maravilhoso do Princípio Solar do

Tesouro do Espírito (Ling Bao Yuan Yang Miao Ching) que

contém milhares de ensinamentos em pequenas frases. Vou

recitar algumas das quais mais gosto: “Se deres um peixe a

um homem faminto, vais alimentá-lo por um dia, se o

ensinares a pescar, vais alimentá-lo toda a vida”; “O rio

atinge seus objetivos porque aprendeu a contornar

obstáculos”; “Pagai o mal com o bem, porque o amor é

vitorioso no ataque e invulnerável na defesa”; “Conhecer os

outros é inteligência, conhecer-se a si próprio é verdadeira

sabedoria”; “Controlar os outros é força, controlar-se a si

próprio é verdadeiro poder”; “O sábio não se exibe, por isso

brilha. Ele não se faz notar, por isso é notado. Ele não se

elogia, por isso tem mérito. E, porque não está competindo,

ninguém no mundo pode competir com ele”; “O homem

correto age por uma lei interna, não por mandamentos

externos”; “Amar não é apoderar-se do outro para

completar-se, mas dar-se ao outro para completá-lo”;

“Quem se contenta com o necessário vive numa paz

223

imperturbável”; “É fácil apagar as pegadas, difícil, porém, é

caminhar sem pisar o chão”; “Para alcançar o

conhecimento, acrescente coisas todos os dias. Para

alcançar a sabedoria, remova coisas todos os dias”; “Não

podemos exigir que os outros sejam como queremos, pois

nem nós o somos”; “O homem sábio rejeita o excesso,

rejeita a prodigalidade, rejeita a grandeza”.

Foram horas e horas em que o irmão Wu recitou centenas

de frases de Lao Tsé, muitas me caíram profundamente no

coração. Se aquele homem não era um profeta de Deus,

ninguém mais o seria. As suas palavras eram mansas e

contradiziam a dureza das palavras de Javeh que era

impiedoso com os inimigos. Eu me tornara assim, pois tinha

aprendido a pagar o mal com o mal, a matar os inimigos

sem piedade, sob as bençãos de Javeh, seguindo seus

conselhos. Diante das palavras de Lao Tsé, senti meu ódio

pelos romanos e por todos os inimigos do meu povo

evaporar-se como uma bruma. Eu queria saber mais sobre

aquele sábio chinês.

- Como foi a vida do mestre Lao, irmão Wu? Você poderia

me contar?

- Ao 13 anos, por ser extremamente inteligente e culto, ele

foi convidado pelo rei Wen para ser o responsável pela

biblioteca real e assumiu o cargo de historiador real até o

19º dia, da quinta lua, do 25º ano, da era do rei Zhao, ano

em que "iniciou sua grande viagem para o ocidente, com

intuito de chegar aos reinos além mar. Durante a viagem,

224

permaneceu algum tempo na fronteira de Yü Men e aceitou

o oficial-chefe da fronteira como discípulo. Ditou-lhe vários

escritos, entre eles o Tao Te Ching". Depois de ensinar por

muitos anos, andando de cidade em cidade, teve sua

ascensão no deserto de Gobi, durante a qual emanou raios

de luz em cinco cores, quando se transformou em um corpo

de luz dourada e desapareceu no céu.

- Isso quer dizer que o corpo de Lao-Tsé nunca foi

encontrado? – indaguei surpreso.

- Não, nunca foi.

- Isso é uma lenda, mestre Chen? – voltei-me para o monge.

- Não importa, meu jovem aprendiz. A forma como ele

viveu, o que ele ensinou e a sua obra falam mais do que as

lendas que cercam o seu nome. Um homem que decide

dedicar a vida a ensinar e ajudar aos outros fica mais

famoso depois de sua morte. Na verdade, os nossos

estudiosos descobriram que foi o próprio Lao Tsé que

instruiu aos seus discípulos a contarem essa história do seu

desaparecimento para que as demais pessoas não

começassem a lhe render culto ou homenagens. Ele sabia

que muitos iriam fazer peregrinações ao seu túmulo e, para

evitar isso, preferiu ser cremado. Uma tradição que até hoje

nós seguimos. Melhor assim, você não acha?

Concordei. Era sim uma forma inteligente de evitar que,

depois de morto, as pessoas o idolatrassem mais do que às

suas palavras. Lembrei-me do profeta Elias que fora

arrebatado em uma carruagem de fogo. Agora eu podia

225

entender melhor a origem e o fundamento de muitas

histórias do meu povo.

226

227

Capítulo X - A Proximidade da Morte

Vi um turbilhão de luzes de todas as cores, acompanhado de

zumbidos que formavam sons desconexos aos meus

ouvidos. Minhas pálpebras estavam pesadas e, por mais que

eu tentasse abrir os olhos, era impossível. Minha cabeça

latejava e, na base da minha nuca, eu sentia uma dor

extrema. Sentia como se meus membros estivessem sendo

arrancados do meu corpo por monstros e demônios com

garras afiadas e olhos de fogo. Havia murmúrio de vozes,

mas eu não conseguia distinguir o que diziam. Tentava

mover as mãos, os braços e as pernas mas não os sentia, não

obedeciam ao meu comando. As luzes iam e vinha e a dor

parecia aumentar. Queria que aquilo acabasse. Queira fugir

dali. Lembrei-me, aterrorizado, de que aquilo deveria ser o

inferno. Sim, eu deveria estar morto e adentrando os

umbrais do inferno descrito pelos profetas. Eu estava sendo

punido por meu pecado mortal. Tinha me afastado das

Sagradas Escrituras, indo para outras terras em busca de

conhecimento e sabedoria, desprezando a verdade que já

conhecia e que me fora dada por meus pais. Sim, aquilo era

Javeh me punindo, como fez a Jó, deixando Satanás enchê-

lo de doenças e impondo-o à extrema miséria. Eu estava

recebendo uma punição. Tentei gritar, chamar por socorro,

mas nenhuma palavra saiu da minha garganta. Aquilo

deveria ser a morte e o inferno. Eu queria viver. Se

escapasse daquele tormento, abandonaria tudo e voltaria

para a segurança da minha sinagoga, teria uma vida

dedicada a servir ao Senhor e esqueceria o resto do mundo.

Nada mais me interessaria. Nem filosofias, nem deuses

228

estranhos, nem modos diferentes dos meus. Eu fora

advertido pelos sacerdotes no templo. Meus pais haviam me

falado sobre os perigos de se afastar dos ensinamentos da

Lei. Eu violara e profanara os mandamentos. Estava com a

alma corrompida pelas falsas religiões do mundo. Lutei

contra os demônios que queriam a minha alma e, num

esforço supremo, clamei por misericórdia a Javeh. Só ele

poderia me salvar.

- João... João... – comecei a ouvir uma voz vinda de muito

longe.

Em seguida, ouvi passos e outras vozes se misturaram

àquela que me chamava. Agora conseguia distinguir o som

e me dei conta de que ainda estava na China. Não sabia o

que tinha acontecido comigo, pois eu de nada me lembrava

a não ser da tarde em que estava sentado com meus irmãos

no mosteiro ouvindo o irmão Wu falar sobre a vida de Lao

Tsé. Não me lembro de mais nada. Agora estava em outro

lugar e não deveria estar bem de saúde, porque o meu corpo

ardia em febre.

- Acorde irmão... acorde. Tome mais um pouco desse chá –

disse a voz suave do mestre Chen.

Aos poucos, fui abrindo os olhos, com extremo esforço, e vi

formar-se em minha frente dezenas de olhos pequeninos

sorridentes. Procurei apalpar meu bracelete de prata, do qual

jamais me separava, presente de meu pai. Se ele estava lá,

então eu ainda estava vivo. Não poderia ter levado para

outro mundo qualquer pertence.

229

Tomei, com dificuldade, o chá que o mestre me oferecia,

segurando a xícara de porcelana contra meus lábios.

- O que aconteceu? Eu não me lembro de nada... – indaguei

- Você desmaiou, João. Enquanto estávamos falando sobre a

vida de Lao Tsé, você repentinamente desmaiou e caiu para

o lado, começando a se debater, ardendo em febre. Nós o

trouxemos para a sala de tratamento e os mestres da artes

curativas foram chamados para te ajudar. Disseram que

você provavelmente foi picado por algum mosquito e seu

sangue estava infectado. Muitos de nós já passaram por

isso. A maioria sobreviveu e, ao que tudo indica, você

também sobreviverá. Deverá ficar em repouso por mais

alguns dias

Agradeci com um sorriso. Lembrei-me que, de fato, dias

antes, eu tinha sentido o corpo quente, seguido de um forte

desarranjo intestinal e um leve sangramento nas gengivas.

Tinha atribuído tais sintomas ao consumo de algumas frutas

desconhecidas que havia ingerido. Não falei a ninguém

sobre esses sintomas, contrariando inclusive as

recomendações do mestre Chen quando cheguei de que

deveria comunicar imediatamente qualquer problema de

saúde que eu tivesse. Ele disse, na ocasião, que uma doença

no começo é fácil de ser tratada e eliminada, mas, se

demorar muito, poderá espalhar-se por todo o corpo e matar

o indivíduo. Naquele dia, a doença que me veio à mente foi

a corja romana que estava adoecendo e matando o meu

povo. Primeiro foram os egípcios. Mas Moisés, orientado

por Javeh, tirou o povo do Egito e o levou para a Terra

Santa. Agora enfrentávamos os romanos que invadiram

230

nossas terras e queriam dominar o resto do mundo.

Lembrei-me da missão de que os mestres tanto me haviam

falado. Eu estava ali para aprender, para conhecer, para me

fortalecer e, ao final, realizar algo que mudaria para sempre

aquela situação difícil em que meu povo se encontrava.

Os dias se passaram, lentos e aborrecidos. Só não foram

piores, porque meus irmãos monges estavam todo o tempo

ao meu lado, cuidando de mim, mesmo para realizar as

atividades mais básicas, como tomar banho e fazer as

demais necessidades fisiológicas.

Compreendi, ao fim de algum tempo, que não fora um

castigo como eu havia pensado. Na verdade, entendi que

todos os homens poderão sofrer algum tipo de enfermidade

e nem por isso estão sendo punidos por algum pecado e que

os pais e os sacerdotes imputam tais ocorrências ao pecado

para evitar que cometamos algum outro erro e nos dizem

que, se não os obedecermos, sentiremos aquelas dores outra

vez. O medo nos faz obedecer as Leis. Falei sobre isso com

o mestre Chen, por ocasião de uma das visitas que ele me

fez.

- Todas as religiões e crenças são baseadas no medo ou no

desejo?

- Sim, são. Não há uma única que não use algum tipo de

punição ou recompensa para fazer com que seus seguidores

a aceitem e pratiquem os ensinamentos.

- Isso quer dizer que a caracterização do que é céu ou

inferno depende de cada religião?

231

- Exatamente isso. Veja, por exemplo, que Lao Tsé nunca

falou em céu ou inferno, mas falou do Bem e do Mal, como

duas forças que se opõem. Falou do Yin e Yang que

explicam a dualidade de tudo que existe no universo. São

essas duas forças fundamentais, opostas e complementares,

que se encontram em todas as coisas: o yin é o princípio

feminino, a água, a passividade, escuridão e absorção. O

yang é o princípio masculino, o fogo, a luz e atividade.

Quando uma ocorre em excesso, faz-se necessário a

intervenção da outra para manter o equilíbrio. As duas

forças existem nas mesmas proporções no universo. Para

vivermos com saúde, paz e harmonia, precisamos buscar

sempre o equilíbrio.

- Outro dia, quando andava com meus irmãos por uma

floresta, vi um grupo de monges que se dirigia para um

mosteiro. Vestiam mantos amarelos. Disseram-me que eles

seguem um outro líder espiritual chamado Buda. Quem foi

ele? Também foi um sábio chinês como Lao Tsé?

- Não, meu irmão. Muitas pessoas também pensam que

Buda era chinês, mas ele era indiano. Existem muitos livros

escritos por seus discípulos. Os ensinamentos dele se

parecem muito com os nossos, do Taoísmo.

- Conte-me um pouco sobre ele, mestre Chen, gostaria de

saber mais.

- Você poderá ler sobre ele aqui mesmo no nosso mosteiro.

Depois mostrarei a você alguns dos textos budistas que

compõem o acervo de nossa biblioteca. Aqui temos cópias

de quase todos os livros sagrados. Na verdade, todos os

232

livros cujo conteúdo é voltado para propiciar melhora da

nossa vida devem ser considerados como sagrados. Um dia

você poderá escrever livros sagrados, se continuar nesse

caminho.

Sorri desconcertado. Quem era eu para escrever livros

sagrados? Não tinha um décimo dos conhecimentos dos

meus mestres, nem dos avatares como Krisnha, Lao Tsé e

tantos outros que eu ainda queria conhecer. Embora eu

gostasse de escrever histórias, meus escritos ainda careciam

de estarem apoiados em conhecimento e sabedoria.

Precisariam ter força e poder de transmitir novas ideias a

quem os lesse.

Continuando a resposta aos meus questionamentos, o

Mestre Chen falou-me um pouco do que sabia sobre o

budismo.

- Há 560 anos, o rei da Índia, Suddhodanateve, teve um

filho a quem deu o nome de Sidharta Gautama. Logo após o

nascimento do menino, um astrólogo profetizou que o

príncipe Sidarta não iria se tornar rei e que renunciaria ao

mundo material para se tornar monge peregrino, caso ele

saísse dos portões do palácio real. Ora, o rei Suddhodana só

tinha aquele filho e queria que ele fosse seu sucessor.

Assim, fez de tudo para manter o filho dentro do palácio, o

qual era rodeado por vilas e outros castelos. Mas, apesar

dos esforços de seu pai, aos 29 anos, Sidharta, levado pela

curiosidade para conhecer o mundo exterior, saiu do palácio

e misturou-se ao povo, às pessoas comuns. Foi assim que

ele viu pela primeira vez o sofrimento dos que viviam fora

do palácio. Aquela constatação mudou o modo de viver do

233

rapaz que decidiu abandonar a opulência do palácio e ir em

busca de uma vida espiritual, vivendo como um monge

peregrino, conforme havia sido profetizado. Depois de

peregrinar por muitos anos, ele decidiu sentar-se debaixo de

uma árvore chamada figueira-dos-pagodes e só sair de lá

depois que atingisse a iluminação. Aos 33 anos, ele a

alcançou e se tornou Buda, que significa “o iluminado”.

- Iluminação? O que significa isso?

- É um estado em que a pessoa alcança a perfeita sanidade,

desperta-se para a verdadeira natureza do universo. Após

chegar a esse estágio, a pessoa se liberta do círculo do

Samsara, que é composto de: nascimento, sofrimento, morte

e renascimento.

- Nascimento, sofrimento, morte e renascimento... E como

uma pessoa poderá se libertar desse ciclo, de acordo com o

Budismo?

- Seguindo as tradições e práticas do Budismo, que são as

Três Joias: O Buda (como seu mestre), o Dharma

(ensinamentos baseados nas leis do universo) e a Sangha a

comunidade budista, que são os demais irmãos adeptos aos

princípios. Outras práticas podem incluir a renúncia a uma

vida normal, como casar, ter filhos, ter propriedades, para se

tornar um monge.

- Ele tinha poderes especiais, realizou algum milagre?

- Sim, existem centenas de histórias sobre os poderes

sobrenaturais de Buda. Conta-se que ele andou sobre as

234

águas, ressuscitou mortos, profetizou, podia ler os

pensamentos e realizou muitas curas. Ele dizia que muitos

poderes especiais poderiam ser desenvolvidos por meio do

treinamento da mente humana. Porém, aconselhou aos seus

discípulos a não exercitarem tais poderes para converter as

pessoas aos seus ensinamentos. Ele dizia que tais prodígios

poderiam atrair seguidores com interesse em se beneficiar

desse poder, mas sem abraçar a Verdade, sem mudar seu

modo de viver. Ficariam dependentes dos milagres, em vez

de buscarem a purificação espiritual pela prática do bem e

do amor ao próximo.

- Essas histórias sobre Buda são reais, mestre Chen? Elas de

fato aconteceram? Existem provas, documentos que atestam

sua veracidade?

- Existem relatos apenas. Os discípulos de Buda escreveram

e disseram que aconteceram. Não sabemos, no entanto, se

foram escritas enquanto Buda ainda estava vivo e se ele

aprovou o que escreveram sobre ele. Tenho quase certeza de

que, nem ele, nem Lao Tsé, aprovariam todas as histórias

contadas sobre suas vidas. Surgirão outros sábios, avatares,

homens santos e profetas que morrerão sem saber o que

escreverão sobre eles. O importante, no entanto, é que o

modo de viver e as parábolas contadas por Buda estão

cheias de ensinos preciosos.

- O senhor poderia me citar algumas das palavras mais

importantes do Buda, para que eu tenha uma ideia mais

clara sobre seus ensinamentos? Para que eu possa

acrescentar algo em minha vida?

235

- Claro, meu filho. Eu segui o Budismo durante muitos

anos, mas, como não gosto de certos rituais, acabei

conhecendo o Taoísmo que é mais recente que o budismo e

me converti de corpo e alma. Sinto-me bem com ele. Buda

ensinou: “Busca a iluminação e o resto te será dado por

acréscimo”. Certa vez, um homem disse a Buda: Eu quero

felicidade. Buda respondeu: Primeiro retire o Eu, que é seu

ego; depois retire o Quero, que é seu desejo. Pronto, agora

você é deixado com a felicidade. Também disse aos seus

discípulos que para alcançarem a iluminação deveriam

percorrer os 8 caminhos:

1º - Visão Correta.

É ver de acordo com realidade de que existe o

sofrimento, a sua causa, o seu fim e o caminho que

conduz a esse fim.

2º - Pensamento Correto.

Pensamento livre de sensualidade, de má vontade e

de crueldade.

3º - Linguagem Correta.

Linguagem livre de engano, insulto, malícia e

estupidez.

4º - Ação Correta.

Ação livre de assassinato, roubo, adultério, mentira e

entorpecentes.

5º - Vida Correta.

Quando o discípulo evita um comércio perverso

(adivinhação, usura, armas, seres vivos, carne,

236

entorpecentes e venenos) e ganha a vida por meios

retos e honoráveis.

6° - Esforço Correto.

Com o esforço correto, impedem-se os pensamentos

negativos e desenvolvem-se os positivos.

7º - Atenção Correta.

Quando o devoto vive atento e sabe que o corpo, os

sentimentos, a mente e os pensamentos são

passageiros e estão submetidos à decadência.

8º - Concentração Correta.

É a focalização da mente mediante a realização de

exercícios respiratórios e meditações especiais.

- Tudo isso parece formidável, mestre Chen.

- Você gostou, não foi? Pois vou te dar de presente a cópia

de um pergaminho que eu mesmo fiz, contendo as frases de

Buda de que mais gostei, quem sabe você um dia poderá vir

a usá-las em seus escritos? Sei que você é um escriba de

grande valor, precisará alimentar seu coração e sua mente

com pérolas preciosas.

O mestre Chen trouxe, dias depois, um precioso

pergaminho que eu li incontáveis vezes, até memorizar cada

palavra. Mesmo hoje, depois de tantos anos, sou capaz de

recitá-los sem mudar uma única vírgula, como se estivesse

lendo aquele precioso livro.

Eis algumas palavras de Buda:

237

“Somos o que pensamos. Tudo o que somos

surge com nossos pensamentos. Com nossos

pensamentos, fazemos o nosso mundo.

É capaz quem pensa que é capaz.

Guardar raiva é como segurar um carvão em

brasa com a intenção de atirá-lo em alguém; é

você que se queima.

A paz vem de dentro de você mesmo. Não a

procure à sua volta.

O segredo da saúde, mental e corporal, está em

não se lamentar pelo passado, não se

preocupar com o futuro, nem se adiantar aos

problemas, mas, viver sabia e seriamente o

presente.

Feliz aqueles cujo conhecimento é livre de

ilusões e superstições.

Jamais, em todo o mundo, o ódio acabou com

o ódio; o que acaba com o ódio é o amor.

Três coisas não podem ser escondidos por

muito tempo: o sol, a lua e a verdade.

Projetistas fazem canais, arqueiros preparam

flechas, artífices modelam a madeira e o

barro,

o homem sábio modela-se a si mesmo.

238

Viva na alegria, no amor, mesmo entre os que

odeiam.

Viva na alegria, na saúde, mesmo entre os

angustiados.

Viva na alegria, na paz, mesmo entre os

atormentados.

Olhe para dentro de você, fique calmo.

Livre-se do medo e do apego, conheça a doce

alegria do caminho.

A causa de todo sofrimento humano está no

desejo e no apego.

O que você pensa você cria, o que você sente,

você atrai, o que você acredita torna-se

realidade.

Feliz aquele que vence o egoísmo, alcança a

paz, encontra a verdade. A verdade liberta-nos

do mal; não há no mundo libertador igual.

Confia na verdade, mesmo que não sejais

capazes de compreendê-la, mesmo que no

começo vos pareça amarga a sua doçura.

Seja como o sândalo que perfuma o machado

que o fere”.

Quando eu estava no navio que me conduziria à Grécia,

senti um desejo de voltar para aquele convívio fraterno com

meus irmãos chineses. Quando me despedi deles, todos me

abraçaram e eu, que nunca havia visto um monge chorando,

239

vi que a maioria deles disfarçava com o sorriso o esforço

supremo para conter as lágrimas. Eu me comportei diferente

e chorei como uma criança quando se afasta da mãe. Ali,

uma vez mais, descobri que se pode ter família de verdade

em toda parte. Pais, mães e irmãos eram todos aqueles que

cuidavam de nós, se importavam conosco e nos davam

apoio, orientação, proteção e sobretudo amor. Eu fora muito

amado naquele mosteiro, assim como nos demais lugares

por onde já havia estado. Minha casa agora era o mundo.

Meus irmãos agora não seriam mais os meus compatriotas

judeus. Seriam todos os homens e mulheres do mundo. Até

os romanos. Sim, até eles seriam meus irmãos, se isso fosse

possível.

A viagem de 3 meses foi extenuante e turbulenta. Durante

quase um ano de peregrinação, fui guiado por homens

experientes, os quais me conduziram por montanhas

íngremes, pradarias verdejantes, escarpas geladas ou

pântanos traiçoeiros. Perdi alguns dos meus companheiros e

ganhei outros. Os acidentes fazem parte da vida humana. Eu

estava me habituando a eles. É incrível como durante uma

viagem o viajante pode aprender muito, em pouco tempo.

Fosse como fosse, a própria viagem era uma aprendizagem.

Conheci ainda mais a natureza humana, suas fraquezas, seus

medos e suas esperanças. Nesse processo, eu também me

redescobri.

Quando alcançamos, por terra, o Mar da Arábia, seguimos

em um grande navio rumo ao Mediterrâneo, passando pelo

caudaloso Nilo, que nele desembocava, e seguimos direto

para Grécia. Nossa embarcação, por pouco, não se chocou

contra os recifes que circundam as incontáveis ilhas

240

cercadas de águas verdes-esmeralda, traiçoeiras, capazes de

afundar a mais poderosa embarcação por um único descuido

de um navegador despreparado. Milhares de viajantes

pereceram ali naquele mar e foi por milagre que os

destroços do nosso navio não ficaram espalhados pela ilha

de Mikono, logo na entrada do Mar Egeu.

Finalmente, numa bela manhã de sol, adentramos o porto de

Atenas. Que visão magnífica eu tive daquela cidade. Cheio

de curiosidade, perguntei a um dos meus guias sobre o que

era aquele gigantesco edifício de colunas brancas no mais

alto penhasco circundado pela cidade.

- Aquele é o Partenon, um suntuoso templo construído em

honra à deusa Atena. É todo feito em mármore e ornado

com esculturas de Fídias, por determinação de Péricles.

- Deusa Atena? Então aqui eles também adoram a deusas,

como na Índia, que adoram a deusa Ganga?

- Sim, os gregos possuem doze deuses olímpicos, sendo que

alguns são do sexo feminino. Atenas também é conhecida

como Palas Atena. É a deusa da guerra, da civilização, da

sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade.

Eu não sou a melhor pessoa para te falar sobre ela. Quem

provavelmente poderá tirar todas as suas dúvidas é o

sacerdote Dardanus. Assim que desembarcarmos, ele nos

receberá no porto e meu trabalho estará encerrado.

- Só mais uma pergunta – indaguei, cheio de ansiedade - por

acaso, os gregos possuem um deus maior? ou todos são

iguais?

241

- Temos um supremo e seu o nome é Zeus. Atena seria fruto

da união da deusa Métis e Zeus. Métis é a deusa da

prudência e do bom conselho e a mais sábia dos imortais,

foi a primeira esposa de Zeus, o rei dos deuses.

- Que interessante isso, parece que esses deuses gregos

vivem de modo parecido com os humanos, têm filhos,

esposas. Será que têm netos? Em minha religião, Deus não

tem esposa, deve ser por isso que ele é tão mal humorado –

disse eu, sorrindo, ao guia que tinha viajado comigo durante

toda a expedição, desde que saímos da China com outros

seis companheiros.

Eu poderia estar brincando, mas durante aquela viagem pelo

mundo e pelos livros chamados de sagrados, adotados por

milhões de pessoas em países tão diferentes do meu, estive

refletindo a necessidade de Javeh ter uma mãe, um filho ou

filha. Dessa forma, nos sentiríamos mais próximos Dele.

Lembrava de como era mais fácil pedir alguma coisa ao

meu pai por meio de minha mãe. Do mesmo modo, meus

irmãos sempre conseguiam algo de meu pai através de mim,

que era o primogênito e por todos conhecido como o

predileto. Eu estava cheio de perguntas para fazer ao meu

novo mestre, com o qual poderia aprender tudo sobre os

deuses gregos, seus poderes e suas influências na vida sobre

a Terra.

O ancião de baixa estatura, pele bronzeada e rosto

arredondado me recebeu com amabilidade, quando

descemos da embarcação no tumultuado porto de Atenas,

que parecia em muito com o de Alexandria.

242

- Então é você o João da Judeia, o discípulo de meu irmão

Malachai? Estou a três semanas esperando por você. Tenho

vindo a este porto sempre que vejo uma grande embarcação

com bandeira da Índia ou da China aportando.

- Como o senhor sabia que eu estava chegando? – indaguei,

curioso.

- Meu irmão Malachai me envia cartas todos os meses e, de

acordo com os cálculos dele, depois que você partisse da

China, se não tivesse nenhum transtorno, chegaria aqui no

começo deste mês. Você está atrasado em três semanas.

Expliquei o que nos acontecera e seguimos por ruas muito

limpas, feitas de pedra branca e lisa; praças amplas;

edifícios colossais, com colunas feitas de mármore, até

chegarmos ao local onde mestre Dardanus vivia no alto de

um encosta.

- Como me reconheceu, mestre Dardanus? Acho que nem

mesmo o seu irmão seria capaz de me reconhecer

atualmente, pois já faz muitos anos que não nos vemos,

desde que parti de Alexandria.

- Todos que vêm esse bracelete de prata no seu braço

direito, reconhecem imediatamente a sua origem. Não

existem dois iguais a esse em nenhuma outra parte, você

sabia?

Eu não sabia. De fato, notara que todos os mestres e pessoas

que me ajudaram durante a minha jornada pelo mundo

olhavam com certa admiração para o meu bracelete, mas

243

ninguém havia me perguntado como eu o conseguira.

Apenas o mestre indiano Rajan me pediu para ler o que

estava escrito e depois sorriu. Não lhe perguntei a razão do

sorriso, pois achei que ele achava que eu sabia. Mas não

sabia. Deveria ter lhe perguntado. Talvez fosse o momento

de saber mais sobre aquele bracelete.

- O senhor conhece esse bracelete?

- Claro, ele possui alguns mantras sagrados e uma

mensagem bem clara para todos os conhecedores dos

hieróglifos zodiacais dos caldeus que habitavam a região de

Ur, na Mesopotâmia.

Eu já tinha lido alguma coisa sobre astrologia e a origem

dos signos, mas nunca dera muita importância a eles. O

mestre Dardanus pediu-me para retirar o bracelete e colocar

em suas mãos.

O ancião segurou a peça com delicadeza e deslizou os dedos

sobre os desenhos.

- Veja aqui, bem no centro dos desenhos, esse dois arcos de

costas uma para o outro cortados por uma seta. Sabe o que

significa?

- Julguei que era uma escrita em alguma língua antiga e

desconhecida. O que significa?

- É o símbolo de Peixes ou Piscis, o décimo segundo e

último signo astrológico do zodíaco, situado entre Aquárius

244

e Aires. Você certamente já ouviu falar das constelações,

não já?

- Sim, são estrelas que juntas formam desenhos no céu. Os

antigos caldeus fizeram 12 desenhos com esses grupos de

estrelas e verificou que todos eles eram regidos pelo grande

astro-rei, o Sol, e obedeciam ao seu comando.

- Exatamente, na história do nosso povo grego, há muitas

lendas falando sobre os nossos deuses. Muitos usam

medalhões, braceletes e pulseiras com a representação de

Peixes. Conta a lenda que a deusa Afrodite, que os romanos

chamam de Vênus, e seu filho Eros, chamado de Cupido

pelos romanos, estavam sentados às margens do Rio

Eufrates, quando apareceu Tifão, o deus dos ventos fortes

para destruí-los. Vênus e seu filho se jogaram no rio,

mudando suas formas para peixes. Por esse motivo, os

povos daquela região pararam de comer peixes, com medo

de perder a proteção dos deuses ou de capturar os próprios

deuses. Em sinal de respeito, usam esse símbolo que está

em seu bracelete. Existem mais coisas escritas aqui.

- Eu não sabia, mestre. Pode me dizer o que é?

- Sim, consigo ver que está escrito de forma simbólica a

seguinte frase: “o portador deste bracelete deverá ser

recebido em meu nome e a ele deverá ser prestado todo tipo

de ajuda necessária, para que sejam satisfeitas as suas

necessidades”.

245

Fiquei surpreso. Então aquele bracelete que meu pai

me dera era mais que um presente, era um salvo conduto

para que eu fosse aceito e recebesse ajuda.

- Mas quem teria tal poder no mundo para pedir ou mesmo

exigir tal coisa para outrem?

- O Sumo-sacerdote Obadiah... ele é o homem que nos

determinou ajudá-lo. É dele que recebemos as orientações

para dar apoio aos discípulos. Enquanto você esteve

viajando pela Ásia Maior, estiveram aqui Tomé e Mateus.

Outros vieram depois estudar com outros mestres. Você foi

designado a mim. Depois disso, seguirá para Roma para

finalizar seu aprendizado.

- Não conheço nenhum sumo-sacerdote com o nome de

Obadiah. Meu mentor é mestre Malachai...

- Ele é o pai de Malachai, João.

Eu estava vivendo em um mundo onde todos pareciam ter

um parente poderoso em algum lugar. No entanto, me sentia

como um joguete nas mãos deles. Não gostava daquela

sensação.

- Por que eu? Não vi nenhum bracelete nos braços de

nenhum outro dos meus colegas. Eles não tiveram a mesma

proteção que eu?

- Não. Nem todos tiveram. Só você recebeu o bracelete.

Tomé recebeu um anel e Mateus um medalhão.

246

- Mas o bracelete foi dado a mim como presente, por meu

pai...

- E quem o deu a seu pai para que te desse como presente?

Seu pai, provavelmente, foi instruído por Malachai para

nada te dizer sobre isso. Se você um dia se perdesse de

Malachai, um de nós o encontraríamos. Um presente de seu

pai, você nunca abandonaria.

- Então quer dizer que, sendo o senhor irmão de Malachai,

também é filho desse sumo-sacerdote...

- Obadiah... ele é pai de outros 11 filhos, sendo três

mulheres. Uma delas cuidou de você em Alexandria. Meu

pai viajou muito na juventude e nunca fez qualquer voto de

castidade. Ao contrário, ele acreditava que deveria espalhar

sua semente, como fazem os coqueiros com seus frutos.

Eles os lançam pela praia e de lá são levados pelas ondas do

mar para outras partes do mundo e, ao chegarem em terra

firme, germinam e produzem outros rebentos. Assim foi o

meu pai.

- Mas, pelo visto, ele nem precisou lançar cocos pelas praias

para serem levados pelas ondas do mar, não foi? Ele mesmo

foi semeá-los pelo mundo...

O mestre sorriu.

- Você é espirituoso, João da Judeia. Gosto de você. Vamos

comer algo e depois você irá descansar. Amanhã teremos

um dia cheio. Está na cidade, um filósofo romano muito

247

famoso chamado Sêneca. Você vai gostar de ouvi-lo e até

de falar com ele, pois é meu convidado e cearemos juntos.

- Sobre o que ele falará? Indaguei, cheio de curiosidade.

- Ele é um estóico, seguidor de uma filosofia criada por um

grego chamado Zenão de Citio. Zenão fundou uma escola

onde pregava que a vida deve ser vivida com a permanente

busca pelas virtudes e de acordo com as leis da natureza.

Segundo essa lei, o indivíduo que não se adaptasse às

normas de boa conduta e virtude, não teria uma condição de

vida satisfatória...

- Leis da natureza? Não seria conforme as Leis de Deus? ou

melhor, de algum deus, já que os gregos e os romanos têm

vários?

Mestre Dardanus sorriu e explicou:

- Para Zenão, assim como para Sêneca e para mim, não

existe lei melhor para guiar o homem do que as leis da

Natureza. Ela está aí todo o tempo nos dizendo o que fazer e

o que não fazer. As leis dos deuses mudam de tempos em

tempos. Parecem muito com as vontades dos homens...

- Então o senhor não acredita em nenhum deus?

- Infelizmente não posso sair dizendo isso por aí. Um

compatriota, aqui mesmo em Atenas, há 400 anos, foi

condenado a tomar um veneno mortífero, pelo fato de não

querer acreditar nos deuses gregos ou romanos. Imploraram

a ele para renegar suas teorias, mas ele zombou de todos e,

248

de bom grado, tomou cicuta e morreu nos braços de seus

discípulos. Platão foi um deles. Você já deve ter ouvido

falar de Platão, não é?

- Sim, estudei latim com um professor romano que me falou

um pouco sobre Aristóteles, Sócrates e Platão. Pelo que me

lembro, foram contemporâneos de Alexandre o Grande, não

foi?

- Sim, Aristóteles foi o grande mestre de Alexandre. Até

hoje, nós admiramos o trabalho que ele nos deixou. Seus

discípulos, Sócrates e depois Platão, completaram um belo

trabalho, desmistificando os velhos deuses e apontando aos

homens o caminho natural da vida.

- Quer dizer que esses homens duvidaram da existência de

Deus, de um Criador?

- Na verdade, eles não duvidaram da existência de algo que

é grandioso, maior que os próprios deuses...

- E o que pode ser maior que Deus?

- A Natureza...

- Perdoe-me mestre, mas eu não sei o que é isso que o

senhor está me falando... Natureza... é por acaso o nome de

uma deusa? É isso?

- Não... não, João da Judeia. Não poderei te dizer mais do

que sei, mas, antes que você volte para o convívio dos seus,

você saberá do que estamos falando.

249

E, dizendo isso, o mestre Dardanus passou a mão no meu

ombro e me conduziu para a parte superior de sua morada

que tinha uma ampla vista para o mar. A visão era

magnífica.

- Olhe tudo isso a nossa volta... árvores, mar, céu, nuvens,

pássaros... tudo isso é natural... não foi criado por nós,

homens. O conjunto dessas coisas nós chamamos de

Natureza. Tudo isso existia antes de nós habitarmos o

mundo, você entende?

- Sim, eu entendo. Foi Deus quem criou tudo. Está escrito

no nosso livro sagrado. E Deus criou o mundo em seis dias

e no sétimo ele descansou.

- Compreendo, mas isso não resolve o grande dilema: e

quem criou Deus?

- Deus não foi criado por ninguém, Ele criou a si mesmo.

- Você coloca um ponto final e encerra a história da criação

do mundo desse jeito? Com toda essa simplicidade? Não

parece ser algo escrito por alguém que não tinha uma

explicação melhor? De fato, tudo que é natural nos leva a

crer que “alguém” ou “algo” criou, não é?

- Sim, nada surge por acaso. Todas as coisas naturais, como

o senhor diz, são criações de Deus.

- Bem, depois que você conhecer o nosso panteão dos

deuses, você poderá me dizer qual deles se parece com o

250

deus do seu povo, certo? Voltaremos a esse assunto dentro

de alguns meses. Agora vamos comer, pois estou faminto.

Fui dormir naquela noite com a mente cheia de indagações

que nunca haviam me ocorrido antes. Antes eu sequer

questionava a existência de um Criador, no entanto, era

difícil dialogar com homens tão sábios e não me perguntar o

que eles tinham visto que eu não era capaz de perceber.

Falavam com uma convicção tão grande que pareciam

iluminados por uma luz que eu desconhecia.

No dia seguinte, fomos ao Aerópago, situado na Colina dos

deuses, onde uma pequena multidão estava assentada em

bancos de mármore do anfiteatro parcialmente coberto.

Eram, em sua maioria, homens. Havia poucas mulheres.

Entre elas, via-se alí algumas acompanhadas dos pais.

Um homem de estatura baixa, corpulento, já deixando

aparecer uma calvície no topo da cabeça, portando uma

túnica azul índigo e ostentando uma pequena coroa de louro

na cabeça, indicação do seu cargo de Senador Romano,

falava a um grupo de pessoas. Mestre Dardanus aproximou-

se dele e o cumprimentou. Era Sêneca. Ele respondeu o

cumprimento fazendo-lhe uma reverência.

- Ora se não é o grande Dardanus, mestre dos mestres de

Atenas. Que grande honra. Eu estava esperando por você

antes de começar a minha palestra. Por favor, venha sentar-

se no pódium, a meu lado – disse o filósofo, sorrindo.

251

- Ahh... obrigado Senador. Deixe-me lhe apresentar, este é o

meu novo discípulo João da Judeia. Foi enviado por

Obadiah...

- Obadiah, o Etrusco?! Por onde anda aquela velha raposa

do deserto? Ainda está em viagens pela Ásia, andando pelo

mundo?

- Ninguém sabe ao certo, mesmo em idade avançada, meu

pai costuma viajar e se esconder de tudo e todos...

- E eu quase ia me esquecendo de que ele é o seu pai. Eu

aprendi muito com ele quando comecei a minha carreira de

escritor em Roma. Mas acho que já não existe cidade no

mundo que caiba um homem com a genialidade de Obadiah.

Então, esse é um dos discípulos prediletos dele? Disse

Sêneca, estudando-me de alto a baixo e fixando os olhos em

meu bracelete.

- Sim, e um dos melhores. Prepare-se, pois ele é especialista

em perguntas complicadas...

- Aahahaha... por trás de uma pergunta inteligente deverá

sempre haver uma resposta ainda mais inteligente. Você me

socorrerá quando for o caso – disse o senador filósofo,

sorrindo e se encaminhando para o pódium, uma plataforma

localizada numa das laterais do anfiteatro, de onde os

oradores faziam seus discursos.

Sentei-me ao lado de outros rapazes e moças que

conversavam animadamente e se empurravam numa

algazarra típica de adolescentes. Lembrei-me de meus

252

colegas e amigos de adolescência. Acho que não seria capaz

de reconhecer nenhum deles se estivesse ali. Agora todos

éramos adultos e nossas feições estavam mudadas.

Depois de ser apresentado ao público, o filósofo falou por

mais de uma hora sobre o que defendia e em que acreditava.

- O estoicismo, essa filosofia que Zenão nos apresentou há

cerca de 300 anos, propõe que se viva de acordo com a lei

racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em

relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio é

aquele que obedece à lei natural e reconhece a si mesmo

como uma peça na grande ordem e propósito do universo.

- Como o homem deve enfrentar as adversidades? Qual é a

melhor forma para vencê-las? – indagou, um homem

sentado próximo de mim.

- Devemos manter a serenidade e a calma tanto perante as

tragédias, quanto frente aos bons acontecimentos. A

Natureza cria obstáculos para que nossas forças sejam

desenvolvidas. Como ensinava Sócrates, devemos nos

conhecer para saber quais os nossos limites. E eu digo que

devemos conhecer a Natureza, as forças naturais e aprender

como conviver em harmonia com ela. Precisamos

desenvolver a razão, pois é ela o meio de nos tornarmos

livres e felizes. Precisamos fugir da ignorância e dos

mitos....

- O senhor está dizendo que devemos esquecer as nossas

divindades? – disse um senhor em voz alta, interrompendo o

filósofo. Todos se voltaram para ele.

253

- Seja mais claro, cidadão. Por favor, de que mitos o senhor

fala?

- Ora, nós aprendemos com os nossos pais a cultuar as

divindades, elas os protegeram e ainda nos protegem. O

senhor, assim como outros filósofos querem que os

abandonemos. O que ganharemos com isso?

- Não obrigarei ninguém a abandonar seus deuses, da

mesma forma que não quero tirar das mãos de uma criança

o boneco que ele imagina ser o seu campeão e o seu herói.

No entanto, não enganarei a meu filho dizendo que é a

crença naqueles bonecos que o farão vencer uma batalha

quando ele tiver que enfrentar o inimigo de verdade. O

boneco serviu apenas de inspiração.

- O senhor quer dizer que os deuses não nos protegem, não

nos ajudam?

- Há 400 anos, os atenienses travaram uma dura batalha

contra os espartamos. O senhor deve conhecer bem a

história da Guerra do Peloponeso, ocasião em que Esparta

invadiu Atenas e matou milhares de soldados. Ora, os

deuses de Esparta eram diferentes dos deuses de Atenas?

Por acaso Zeus, o rei dos deuses, Ares, o deus da guerra,

Poseidon, o deus dos mares, Hermes, o mensageiro dos

deuses, e tantos outros não eram as mesmas divindades

adoradas por atenienses e espartamos? De que lado os

deuses estavam naquela guerra? Por que não deu a vitória

aos atenienses? Será que os atenienses não sabiam fazer

oferendas? Será que os deuses estavam cansados deles?

Reflita sobre isso.

254

- O senhor está me confundindo. Nós precisamos dos

deuses, sim. Foi isso o que nossos pais nos ensinaram.

Precisamos obedecê-los, para vivermos em harmonia. Se

não tivermos temor e respeito aos deuses, seremos

castigados.

- Se um homem precisa de sentir medo dos deuses para ser

obediente, então ele não é um homem e sim um animal

domesticado.

A plateia caiu em uma sonora gargalhada.

Sêneca continuou.

- Tudo o que eu peço aos senhores e senhoras é que

busquem o conhecimento das coisas. Aos poucos, os deuses

criados pela imaginação e ignorância desaparecerão e, no

lugar deles, surgirá uma nova religião, a ciência pura. Ela é

a nossa salvação, não os deuses. Vencerão as guerras quem

possuir melhores armas, melhores estratégias, foi isso o que

deu a vitória aos espartanos na guerra de Peloponeso, não o

mero capricho dos deuses. A prova é tanta que, anos depois,

os espartamos enfraqueceram e foram vencidos pelos

atenienses que os expulsaram daqui. Conhecimento é poder,

senhores. Conhecimento... Quem descobrir a cura para as

doenças serão os vencedores.

Foi a minha vez de fazer uma pergunta que me intrigava

desde muito tempo.

- Senador, o senhor poderia nos falar sobre o que pensa a

respeito da escravidão? Ela é justa? Eu li alguns trabalhos

255

de Aristóteles onde ele fala que alguns nascem para

comandar e outros para obedecer e que a escravidão é algo

natural. O senhor concorda com isso?

- Discordo plenamente! Discordo totalmente! – disse

Sêneca, com veemência.

A plateia ficou inflamada imediatamente. Pessoas

começaram a discutir entre si. Eu não entendia se estavam

contra ou a favor.

- Senhores.. senhores... por favor, acalmem-se, acalmem-

se... – disse o filósofo, pedindo às pessoas para se

aquietarem.

- Eu sei que muitos aqui são mestres e doutores como eu.

Muitos possuem até mais conhecimento do que eu em

muitos assuntos. Sei também que Aristóteles, assim como

seus discípulos Sócrates e Platão, são adorados por todos os

gregos e troianos. Nós também, em Roma, admiramos a

sabedoria daqueles mestres. Mas eles viveram há mais de

300 anos. A sociedade era outra. Os tempos eram outros.

Sei que a visão deles era de que o escravo era como um

bem, um patrimônio e que se tratava de alguém que tinha

nascido com uma finalidade – a de servir. Porém, eles

também defendiam que essas pessoas mereciam ser

respeitadas, não deveriam ser maltratadas e que também

eram possuidoras de direitos. Antes de Aristóteles, um

escravo não tinha direito algum. Podia ser morto por seu

dono quando ele tivesse vontade. Veja que evolução

Aristóteles trouxe para nós.

256

- Se o senhor é contra o direito de um homem possuir

escravos, quem é que lava as suas roupas, prepara a sua

comida e limpa a sua casa, senador? É o senhor mesmo? –

disse um homem.

A plateia voltou a gargalhar. Eu estava me divertindo.

- Não, não sou eu que lavo as minhas vestes ou preparo a

minha comida. Pago para que façam isso para mim. Eu não

tenho escravos. Tenho ajudantes. Da mesma forma como

um ferreiro trabalha o ferro e o aço para preparar as armas

ou os talheres que usamos à mesa... da mesma forma como

o carpinteiro trabalha a madeira para construir barcos,

portas, janelas e móveis, os trabalhadores domésticos que

lavam e cozinham para mim usam as próprias mãos para

produzir o trabalho. Se fazem bem, eu pago bem, se fazem

mal eu pago pouco ou não pago. Isso é justiça.

Um tímido aplauso irrompeu no fundo da plateia e aos

poucos ele foi aumentando e, em poucos minutos, todos

estavam aplaudindo. O filósofo continuou.

- Eu pergunto, onde estão os escravos nesta plateia? Levante

a mão quem é escravo aqui.

O filósofo esperou, mas ninguém levantou a mão. Ele

continuou.

- Eles não estão aqui porque os patrões, os donos não os

deixam vir. Muitos estão lá fora, esperando a minha palestra

terminar para conduzir os seus senhores de volta para casa,

puxando as carruagens pelas ladeiras da cidade. Isso é

257

justo? Quanto lhes pagam para fazer esse trabalho? Será que

recebem um salário digno ou apenas comida e um lugar

imundo para dormir?

As pessoas baixaram os olhos ou desviaram o olhar do

orador que estava mais e mais exaltado.

- Chegará o dia em que as pessoas não serão mais obrigadas

a servir. Farão seu trabalho com prazer, farão isso com

satisfação, pois terão uma justa recompensa. Chegará o dia

em que não teremos mais escravos no mundo e sim homens

e mulheres livres para escolherem suas profissões e seus

trabalhos. Poderão ir a qualquer lugar e vir, sem precisar

pedir permissão aos seus donos. As pessoas serão donas de

si mesmas, dos seus próprios destinos.

Eu comecei a admirar aquele homem. Tudo ficava mais

claro para mim. Senti vergonha do modo de vida que ainda

existia em minha terra, a Judeia. Nós tínhamos fugido da

escravidão do Egito pela mão de Moisés, mas, ainda assim,

continuávamos mantendo escravos aqueles que eram

prisioneiros de guerra ou os comprados nos mercados de

Jerusalém. Escravos podiam ser trocados ou vendidos ao bel

prazer de seus donos.

Quando o filósofo e senador terminou o seu discurso, foi

aclamado por todos. Meu mestre o levou para cear em sua

casa e lá pudemos conversar mais livremente. Sêneca não

escondeu a admiração que sentia por Dardanus e o convidou

para ir morar em Roma, onde poderia se tornar um senador.

258

- Embora goste de estudar política, não tenho vocação para

ser um político oficial, Sêneca. Meu lugar é aqui em Atenas,

estudando e ensinando. Aqui faço a minha política. Não

gosto de ficar preso a formalidades. Tenho ido a Alexandria

todos os anos e lá me sinto como um beduíno quando

encontra um oásis no meio do deserto. Queria poder trazer

para cá uma pequena fração do conhecimento que está

acumulado lá.

- Eu sonho com o dia em que teremos grandes bibliotecas

espalhadas em todas as cidades do mundo. Todo o

conhecimento disponível a todos. Assim, sairemos mais

depressa das trevas das superstições e caminharemos para

recolocar o homem no seu devido lugar.

- E qual é esse lugar? Perguntei, intrometendo-me na

conversa dos dois, na qual, até então, eu apenas participava

como ouvinte.

- O lugar de ser o responsável por tudo o que acontece com

ele sobre a Terra. Sem medo dos deuses ou demônios. Ele, e

somente ele, o homem, deve governar o mundo usando as

leis da Natureza que estão aí para o ajudar a viver. A

Natureza, a Mãe Gaia, essa deve ser o nosso único e

verdadeiro deus. Nossa adoração deveria ser no sentido de

conhece-la mais e mais e viver de acordo com as suas Leis.

- As Leis que Deus deu ao nosso povo é boa para nós.

Ajuda-nos a viver melhor. O povo precisou dela para chegar

aonde chegamos.

259

- Nisso, eu posso concordar com você, mas veja o que

aconteceu no passado. Quantas mortes, quanta guerra, tudo

feito em nome do deus que vocês chamam de Javeh. Eu

estudo o Talmude desde criança. Ele mandava matar

homens, mulheres e crianças quando queria. Você acha que

era justo matar pessoas idosas, mulheres e crianças, mesmo

sendo inimigos?

- O senhor está se referindo às ordens que ele dava aos

profetas?

- Sim, isso mesmo. Por favor, Dardanus, traga-nos o livro

de Jeremias e abra no capítulo VI. Vamos refrescar a

memória do moço.

Dardanus correu até um aposento que deveria ser sua

biblioteca particular e voltou com o que, em Alexandria,

chamávamos de “volumens”, retângulos de pergaminhos

costurados um sobre o outro que, quando abertos, podiam

ser folheados para frente e para trás. Esses “volumens” eram

também chamados de Códex e estavam, pouco a pouco,

substituindo os rolos de pergaminhos. Sêneca, com extrema

habilidade, foi direto ao trecho que queria me mostrar para

sustentar o seu argumento:

- Olhe, João... aqui está. Veja o que diz o profeta Jeremias.

Veja se Javeh não se parece com os deuses gregos...

8 - Ouça a minha advertência, ó Jerusalém! Do

contrário, eu me afastarei inteiramente de você e

farei de você uma desolação, uma terra desabitada.

260

9 - Assim diz o Senhor dos Exércitos: Rebusque-se o

remanescente de Israel tão completamente, como se

faz com uma videira, como faz quem colhe uvas:

repassa os ramos cacho por cacho.

10 - A quem posso eu falar ou advertir? Quem me

escutará? Os ouvidos deles são obstinados, e eles

não podem ouvir. A palavra do Senhor é para eles

desprezível, não encontram nela motivo de prazer.

11 - Mas a ira do Senhor dentro de mim transborda,

já não posso retê-la. Derrama-a sobre as crianças na

rua e sobre os jovens reunidos em grupos; pois eles

também serão pegos juntos com os maridos e as

mulheres, os velhos e os de idade bem avançada.

12 - As casas deles serão entregues a outros,

juntamente com os seus campos e as suas mulheres,

quando eu estender a minha mão contra os que

vivem nesta terra, declara o Senhor.

Ele continuou:

- Os deuses gregos também são assim como o seu Javeh,

sentem ciúmes, sentem ira, sentem amor, sentem prazer,

exigem sacrifícios. A diferença é que, lá em Israel, Moisés

conseguiu extinguir todos os demais deuses e obrigou o

povo a aceitar apenas um...

- Ele não obrigou... – interrompi.

261

- Não obrigou? Ora, se as pessoas fossem livres para adotar

qualquer deus, será que o deus de Moisés concordaria ou as

mataria.

- Provavelmente, mandaria matar, como aliás o fez muitas

vezes.

- Isso mesmo... você começa a entender. Lembra-se do

homem que me perguntou sobre a minha fé nos deuses

gregos? Ele, provavelmente, nunca ouviu falar de Javeh e,

mesmo que ouça, não dará importância. Está satisfeito com

os 12 deuses que lhe foram dados pelos pais e demais

ancestrais. Custa-lhe entender que é necessário afastar-se

das superstições, dos mitos, das fantasias e encararmos o

desafio de viver sem a ajuda dos deuses, mesmo que seja

um único, como querem os judeus.

- Sem a ajuda de Deus, como viveremos?

- Meu Deus é a Natureza, já te falei sobre isso. Mas não a

conheço ainda totalmente. É algo imenso, mas está bem

aqui ao nosso redor. O ar, a luz do sol, o mar, as plantas, os

alimentos, os animais. Tudo faz parte de um conjunto

organizado, no qual nós humanos estamos inseridos e do

qual fazemos parte. Não somos mais importantes que os

demais seres. Somos apenas parte do todo. Talvez um dia

venhamos descobrir que existem seres mais poderosos que

nós no mundo, com uma inteligência ainda maior que a

nossa. Talvez serão eles que ocuparão o lugar dos homens

no futuro. Quem sabe?

262

Calei-me. O senador deveria estar afetado pelo bom vinho

que Dardanus nos servira durante a ceia. O filósofo já havia

bebido três taças e aquela conversa certamente era fruto de

seus delírios provocados pela bebida. Mesmo assim, eu

reconhecia que, em alguns pontos, ele tinha razão. Mas

faltava um elo de ligação entre as novas e as velhas

verdades. Eu sabia que um dia acabaria por descobrir qual

era esse elo faltante.

Depois que o filósofo partiu, Dardanus investiu seu tempo

em me ensinar, de modo mais profundo, a filosofia dos

gregos que viveram antes dele. Diverti-me muito ouvindo-o

contar como o filósofo Sócrates ensinava. Segundo ele, às

vezes, o sábio, distraído, ia pregar completamente nu. Era

considerado um louco. Mas, na verdade, ele queria mesmo

era chamar a atenção para suas descobertas. Ele gostava de

chocar as pessoas. Sabia que se fosse um comum, ninguém

lhe daria ouvidos.

Dardanus contou-me a história das três peneiras, que era

contada por Sócrates:

- Um rapaz procurou Sócrates e disse-lhe que precisava

contar-lhe algo sobre alguém.

Sócrates ergueu os olhos do livro que estava lendo e

perguntou:

- O que você vai me contar já passou pelas três peneiras?

- Três peneiras? - indagou o rapaz.

263

- Sim! A primeira peneira é a verdade. O que você quer me

contar dos outros é um fato? Caso tenha ouvido falar, a

história deve morrer aqui mesmo. Suponhamos que seja

verdade. Deve, então, passar pela segunda peneira: a

bondade. O que você vai contar é uma coisa boa? Ajuda a

construir ou destruir o caminho, a fama do próximo? Se o

que você quer contar é verdade e é coisa boa, deverá passar

ainda pela terceira peneira: a necessidade. Convém contar?

Resolve alguma coisa? Ajuda a comunidade? Pode

melhorar nosso mundo?

Arremata Sócrates:

- Se passou pelas três peneiras, conte! Tanto eu, como você

e seu irmão iremos nos beneficiar. Caso contrário, esqueça e

enterre tudo. Será um mexerico a menos para envenenar o

ambiente e fomentar a discórdia entre as pessoas e o mundo

no qual vivemos.

Foram muitas as histórias narradas por Dardanus, algumas

das quais não me lembro mais. Porém, todas eram cheias de

sabedoria e muita clareza. Era fácil compreender o que elas

diziam.

- Mestre, eu gostaria de conhecer um pouco sobre as

divindades gregas do sexo feminino e saber a razão de não

existir em minha terra nenhuma grande figura feminina que

tenha se destacado.

- João, você conhece perfeitamente as escrituras e, lendo o

livro de Gênesis, você vai observar que o começo do mundo

não favoreceu muito à mulher. Primeiro, ela foi criada

264

depois do homem. Ao que se sabe, um homem não pode

gerar uma mulher. É exatamente o contrário. Só uma

mulher pode gerar, em seu ventre, um homem ou outras

mulheres. A Natureza nos mostra isso com os animais. É

sempre a fêmea dos animais mamíferos que procriam. No

livro de vocês, Deus criou o homem primeiro. Além disso,

há o problema de ter sido, Eva, a mulher a desviá-lo do bom

caminho. Ou seja, ela acabou ficando com grande parte da

culpa do mal causado à humanidade. Não é isso mesmo?

- Sim, é verdade. Os homens sempre tiveram primazia nas

histórias do meu povo.

- Diga-me, de quantas mulheres importantes mencionadas

no Talmude você se lembra ?

- Claro, já fiz esse estudo com meu antigo mestre Abner.

Além de Eva, a primeira mulher e, como o senhor disse, a

que desencaminhou Adão, tivemos Sara, a esposa de

Abraão, que era a pessoa que tomava grande parte das

decisões. Miriam, irmã de Moisés, que o salvou, permitindo

que ele crescesse e libertasse o povo judeu dos egípcios.

Raabe, uma prostituta em Jericó, que protegeu os espiões

mandados por Josué, a qual foi recompensada após a

conquista, tendo sido, Raabe e sua família, salvos e

tornaram-se parte das 10 tribos. Débora, uma sacerdotisa,

filha de Lampidote, a única juíza de Israel que liderou o

povo para a conquista dos cananeus que os oprimiram por

vinte anos. Conta a história que o general cananeu derrotado

que tentara escapar foi morto por outra mulher, Jael, que

golpeou a têmpora do inimigo com um prego de sua tenda.

Acho que essas foram as mulheres mais importantes

265

registradas no Talmude. As demais eram apenas mães,

filhas e escravas.

- Você está se esquecendo de duas rainhas...

- Ah! Sim, é isso mesmo. Como poderia esquecer da Rainha

Ester da Pérsia, que se casou com o Rei Assuero e da

Rainha de Sabá, de cujo nome não se sabe, a qual visitou o

Rei Salomão, levando toneladas de presentes para ele.

- Definitivamente, os escritores do seu povo não gostavam

muito de valorizar as mulheres, você não nota isso?

- Noto sim. Acho que é algo que deveria ser mudado.

- E como isso poderá ser mudado, João? Pelo que sei, Javeh

não fala mais aos profetas. Parece que os homens não mais

merecem ouvi-Lo.

- Tenho me feito essa mesma pergunta. Faz muitos séculos

que ninguém escreve mais nenhuma revelação de Javeh.

- Talvez seja o momento disso voltar a acontecer, você não

acha?

- Se for a vontade Dele...

- Ou dos homens...

Rimos juntos.

266

Falar de Deus com aqueles homens sábios já não parecia

algo tão sério, tão pesado e difícil. Eles tratavam os deuses,

fossem o nosso ou os deles, como humanos, cheios de

virtudes e defeitos. Para eles, os deuses eram representações

aumentadas de nossos pais e mães. Pelo menos os deuses

gregos tinham mães. Nosso Deus precisava de uma família.

Talvez, se assim fosse, seria mais compassivo, mais

bondoso e menos vingativo.

- Agora vou te mostrar um pouco sobre as mulheres de

nossa história. Aristocléa, nascida há 500 anos, foi uma

sacerdotisa grega em Delfos, aqui na Grécia. Ela foi

professora do filósofo e matemático Pitágoras. Theanã,

nascida também a mais ou menos 500 anos, foi uma

matemática, estudiosa das ciências físicas e filosóficas, foi

aluna e esposa de Pitágoras. Tiveram duas filhas que

assumiram a escola pitagórica após a morte do dele. Aspásia

de Mileto, há 470 anos, pertenceu ao círculo da elite de

Atenas, onde conheceu Péricles e com ele teve um filho.

Como sofista da época, Aspásia nada escreveu e os relatos

de sua habilidade como argumentadora e educadora, bem

como sua influência política sobre Péricles, foram

registrados na obra de Platão.

- Jamais ouvi dizer que existissem tantas mulheres famosas

na Grécia.

- Sim, havia e ainda há muitas. Lembrei-me de Diotímia de

Mantineia, que viveu há 427 e que foi apresentada a Platão

como sábia em um dos seus livros. Tivemos Asioteia de

Filos, nascida há 390 anos. Ensinou ciências na Academia

de Platão, ao lado de outras mulheres. Ela lecionou também

267

em Alexandria e Pérgamo. Hipárquia de Maroneia era uma

aristocrata, também daquela época, foi muito elogiada por

Diógenes Laértios pela cultura e raciocínio, comparando-a

com Platão

- Comparada a Platão? Nunca imaginei que tivesse existido

uma mulher assim.

- Existiu sim e ela foi autora do livro “Cartas e Tragédias”.

- E quanto aos deuses gregos, o que há de especial neles?

- De especial não sei, tudo o que sei é que eles se parecem

muito com os reis e os imperadores, sempre concedendo

favores a uns e a outros não, sendo bondoso com uns e

impiedoso com outros.

- Também tenho pensado nisso em relação ao nosso Javeh.

Ele sempre teve algumas predileções, desde o início do

mundo. Conta o nosso livro sagrado que ele gostava mais

do sacrifício que Abel fazia do que o ofertado por Caim, seu

irmão. O senhor que conhece profundamente o Talmude,

sendo um professor grego e sem envolvimento com a nossa

cultura, como avalia essa história?

- Eu entendo que os sábios daquela época, ao escrever a

história, queriam evitar que as pessoas cometessem o

mesmo erro de Deus.

- Erro de Deus? Como assim? Não entendo como pode ser

isso... – disse confuso.

268

- Vamos pensar em uma família composta por pai, mãe e

irmãos, como na história contada por seu povo. Quando

Deus deu mais atenção à oferta de Abel do que à de Caim,

como foi que Caim se sentiu?

- Cheio de ciúmes, com raiva.

- Isso mesmo. Afinal, ele era um rapaz obediente e cumpria

suas obrigações, fazia sua oferenda, conforme os

mandamentos exigidos por Deus. Não havia razão para que

Deus preferisse a oferenda do seu irmão Abel, havia?

- Não havia. Pensando como humanos, não havia.

- Mas Deus parece que não pensava assim. Por alguma

razão, ele demonstrou mais interesse pelas oferendas de

Abel. Você se lembra do que aconteceu em seguida?

- Caim, cheio de ira e ciúmes, matou o próprio irmão.

- Aqui na Grécia, em Roma, na Pérsia, na Índia ou China, as

pessoas estão agindo do mesmo modo. Na verdade, nem

precisa o pai expressar sua preferência por um filho ou filha

para ter a revolta dos demais. Os próprios filhos, ao

acharem que um é mais privilegiado que outros, fazem de

tudo para destruí-lo. Chegam ao extremo de matá-los das

formas mais tradicionais: envenenados, golpeados a espada

ou faca, afogados e de tantas outras maneiras. Caim matou o

irmão quando estavam no campo.

269

- Então é isso o que a história quer ensinar? Que os pais não

devem ter filhos prediletos para não despertar a ira, o ciúme

dos outros?

- Isso. E também para mostrar o que acontece a alguém que

mata outrem, por qualquer outra razão, especialmente pelo

ciúme. Acaba sendo afastado de todos e proscrito do grupo.

- Foi exatamente o que aconteceu a Caim.

- Você precisa compreender que muitas histórias foram

criadas para transmitir um ensinamento. Elas se tornam

ainda mais poderosas quando os autores ou autor é um deus

poderoso, como Javeh. Nós também, na Grécia, temos Zeus.

- Ele é o rei dos deuses, não é?

- Sim, quer conhecer um pouco sobre ele? Você poderá ler

depois muitos outros livros que tratam das histórias dos

nossos deuses. Infelizmente, a maioria das pessoas, o povo

inculto, é incapaz de ver que as divindades são apenas seres

criados pela imaginação humana, com o objetivo de

transmitir algum ensinamento. Tomam tudo ao pé da letra.

- Mas Javeh existe de fato. Nossos profetas e homens santos

tiveram contato com Ele...

- Os nossos sacerdotes e sacerdotisas também conversam

diariamente com os nossos deuses, João. Chegará o dia em

que as pessoas se cansarão disso e elas mesmas quererão

fazer esse contato. Dispensarão os intermediários. Deixarão

de ser manipulados pelos sacerdotes. Chegará o dia em que

270

ninguém terá o mesmo deus, pois cada um o criará dentro

de si mesmo, segundo suas próprias crenças e necessidades.

Não precisarão de livros sagrados para lhes ensinar regras

de bom viver.

- Isso não será um caos? Não será perigoso?

- Talvez, mas valerá a pena, pois os homens e mulheres

estarão livres do julgamento a ser feito em uma vida após a

morte. Poderão viver em conformidade apenas com as leis

humanas, aquelas que forem mais justas e mais adequadas.

As que proporcionarem uma vida harmoniosa, onde haja

respeito mútuo. Onde exista a compreensão de que não são

os deuses os responsáveis por nossas desgraças,

infelicidades e sofrimento, mas sim nós mesmos, todos nós,

como reflexo de nossas ações.

- Eu ouvi isso do mestre Rajan e do mestre Chen.

- Existem religiões no Extremo Oriente que são mais

evoluídas do que as nossas aqui no ocidente, João. Bom

seria se todas se fundissem. Bom seria se pudéssemos juntar

as boas e edificantes lições de cada uma delas, criássemos

uma única com essa mesclagem. Desse modo, as pessoas

poderiam entender que não existem diferenças entre os

deuses... e que, no fim de tudo, nós somos deuses.

- Eu compreendo, mas as pessoas teriam mais dificuldade

em aceitar um novo deus. Ninguém quer desprezar as suas

tradições e costumes...

271

- A não ser que vejam nessa mudança algo maior e melhor

que as façam acreditar que obterão mais vantagens, mais

felicidade e menos sofrimento.

- Fale-me sobre o rei dos deuses gregos, mestre Dardanus.

Quero aprender mais sobre ele.

- Zeus é o senhor do Olimpo, também deus do trovão. Era

filho de Cronos e Réia. Cronos tinha o hábito de devorar

seus próprios filhos para que não tomassem seu lugar no

trono. Quando Zeus nasceu, a sua mãe Réia, já aborrecida

de tanto ver sangue e sofrimento, deu a Cronos uma pedra

embrulhada no lugar do filho, salvando assim a vida de

Zeus. Réia decidiu, então, que Zeus seria o seu último filho,

para encerrar o reinado de sangue e sofrimento e que ele

tomaria o trono do pai.

- Parece que em todos os povos há sempre um Rei temendo

que alguém lhe tome o trono, não é?

- Sim, como já te falei, os deuses são uma produção

imaginativa e ampliada dos homens. Quem escreveu essas

histórias ou contou-as aos seus descendentes queria

transmitir um ensinamento, no entanto, a maioria das

pessoas acredita que tais fatos realmente aconteceram. Não

conseguem perceber que falta lógica – a tão falada lógica de

Aristóteles que derruba os mitos e as lendas. Ora, vê-se

claramente que Cronos, além de ser um deus cruel era

também um idiota, pois só um tolo se deixaria enganar

dessa maneira e não perceberia que, no lugar de criança

recém-nascida, estava recebendo uma pedra embrulhada.

272

- E o que aconteceu em seguida?

- Logo que Cronos descobriu que tinha engolido uma pedra

em vez do filho, saiu a procura de Zeus, mas não o

encontrou.

- Ahhhahaha... então ele recebeu a pedra e a engoliu? Sem

mastigar nem nada?

- Bem no início da minha descrição, você deve ter se

perguntado: esse Cronos era um canibal? Não foi mesmo?

- Sim, percebi. Mas o que aconteceu mesmo com Zeus?

- Zeus foi criado no bosque de Creta e foi alimentado com

mel e leite de cabra. Quando cresceu, foi ao encontro do pai

para combatê-lo. Após intensa batalha, Zeus venceu o pai e

o obrigou a ingerir uma bebida mágica que restituiu todos

os filhos que, no passado, Cronos tinha devorado. Foi então

que Zeus conheceu seus quatro irmãos: Deméter, Poseidon

e Hades. Havia uma outra filha que também tinha sido

poupada, Héstia. Ela também se juntou aos irmãos. Zeus

ainda liberou os ciclopes, os quais deram a ele o Raio.

Conta a história que a guerra entre Zeus e o seu pai durou

dez anos e, depois disso, ele subiu ao Olimpo, junto com

seus irmãos Poseidon e Hades, os quais o tinham ajudado a

destruir Cronos, e então comandaram o Céu, a Terra e os

demais deuses.

- Nunca tinha ouvido falar em ciclopes e Olimpo. O que

significam?

273

- Segundo dizem, ciclopes são seres muito poderosos, os

quais possuem apenas um olho na testa e são responsáveis

pela preparação dos raios que Zeus solta. Já Olimpo, seria

um monte cheio de mansões de cristais, onde moram os

doze deuses. Zeus tem o poder dos fenômenos atmosféricos

e faz relâmpagos e trovões e, com sua mão direita, lança a

chuva. O seu poder pode ser usado para destruir, mas

também para mandar chuvas para as plantações.

- Javeh é parecido com isso. Está registrado em centenas de

pergaminhos.

- Eu sei. Para finalizar seu primeiro estudo sobre nossos

deuses, preciso te dizer que Zeus casou-se três vezes. A

primeira esposa foi Métis, a deusa da prudência. Com ela,

ele teve sua filha Atenas. A segunda, foi Têmis, a deusa da

justiça. E a terceira esposa foi sua irmã Hera, com quem ele

teve o filho Ares, que é o deus da guerra. Hera era muito

ciumenta e agressiva porque Zeus desonrava sua vida com

ela, tendo muitas amantes e com as quais teve vários filhos

fora de seu casamento. Zeus usava seu poder de sedução e

até usava as mais belas metamorfoses para conquistar as

mulheres. As mais conhecidas são: o Cisne de Leda e o

Touro da Europa.

- A vida no Olimpo é muito parecida com a vida dos reis e

governantes, não é mestre? Estou surpreso.

- Sim, essa foi a razão pela qual nosso velho filósofo

Sócrates foi obrigado a beber cicuta. Ele não podia mais

acreditar nos deuses gregos. Veja você que há mais de 300

anos estudiosos já criticavam a crença nesses deuses e,

274

ainda assim, até hoje as pessoas acreditam na existência

deles.

- O senhor acredita?

- Acredito no poder das palavras. Sou um homem que

estuda as palavras, suas origens. Veja, por exemplo. Cronos

deu origem à palavra grega ‘cronologos’, que indica tempo.

Para nós filósofos, o senhor do universo é o tempo. Tudo

nele se cria e se transforma. Ele a tudo devora. Não era ele,

Cronos, que devorava seus próprios filhos? A própria

palavra Zeus pertenceu a uma língua muito antiga e

significa Pai do Céu (Dieus), pelo uso, transformou-se em

Zeus e muitos povos copiaram para Deus. Para os gregos,

Zeus simboliza o deus que dá ao homem o caminho da

razão e ensina que o verdadeiro conhecimento é obtido

apenas a partir da dor. Por essa razão, fazem-se oferendas e

prestam-se culto a ele, além de se reunirem para contar as

façanhas dele.

- Eu fiquei impressionado com as religiões da Ásia Maior.

Eles possuem deuses que nasceram de modo especial.

Como conhecedor de tantas filosofias e religiões, Mestre

Dardanus, existe algum deus ou semi-deus grego nascido de

uma virgem, como o Krisnha dos hindus?

- Temos algo ainda mais poderoso – disse o mestre,

soltando uma sonora gargalhada. Urano, o deus grego que

personifica o céu, foi gerado em Gaia, sem a intervenção de

um deus do sexo masculino. Gaia teve outros filhos, mas

Urano aprisionou os filhos dela no Tártaro, nas entranhas da

Terra, causando grande dor a Gaia. Ela forjou uma foice e

275

pediu aos filhos para castrarem Urano. Apenas o mais

jovem concordou. Ele emboscou Urano, castrou-o e lançou

os testículos cortados no mar. A partir dos testículos

lançados ao mar, nasceu Afrodite. Alguns dizem que a foice

ensanguentada foi enterrada na terra e daí nasceu a fabulosa

tribo dos Feácios. Do sangue derramado de Urano sobre a

Terra nasceram os Gigantes. Como você vê, os nossos

deuses não precisam nem mesmo de uma mulher ou de um

homem para gerar outros.

- Que história incrível, mestre Dardanus. Não podia jamais

imaginar que os gregos tivessem deuses tão fabulosos.

- Você disse tudo, meu rapaz: incrível... não-crível.

Inacreditável. No entanto, milhares de gregos não só

acreditam em Urano, como rezam diariamente pedindo-lhe

proteção e ajuda. Muitos morrem por tais deuses. Outros

são capazes de matar uma pessoa se ela lhes disser que são

tolices, crendices, ou pura superstição. Eu já fui ameaçado

de morte várias vezes quando ousei expor as minhas ideias.

Os próprios governantes acreditam nesses deuses e não acho

muito bom contrariar quem tem o poder de matá-lo.

- Javeh sempre matou quem lhe desobedecia.

- Ele mesmo descia do céu e matava ou mandava os

sacerdotes executarem suas ordens?

- Em muitos momentos mandava, mas em outros ele

mandava fogo do céu, dilúvio e pragas.

276

- Curiosamente, os deuses gregos também agem de forma

semelhante. E ninguém por aqui sabe quem é Javeh ou

Hórus.

- Hórus... acho que já ouvi esse nome. É um deus egípcio,

não é?

- Sim, quando você voltar à Alexandria, procure pesquisar

sobre ele. Há 1.400 anos, o deus Hórus foi concebido por

Isis, a deusa da fertilidade e da maternidade, quando Osíris,

seu esposo, já estava morto.

- Como assim? Um morto fecundou Isis?

- A lenda egípcia conta que Isis engravidou quando um

pássaro pousou sobre o túmulo do esposo. Assim nasceu

Hórus, a segunda pessoa da divina família egípcia,

composta por Osíris, o pai, Hórus, o filho e Ísis, a mãe.

Uma trindade perfeita.

Agora eu já tinha conhecimentos para definir o que

pretendia fazer quando voltasse a Alexandria. Na minha

mente, fervilhavam milhares de ideias. Iria discuti-las com o

mestre Malachai ou com o sumo-sacerdote, o qual eu ainda

não tivera o privilégio de conhecer. Sim, eu tentaria mostrar

a eles o quanto poderíamos contribuir para melhorar a vida

do nosso povo e das demais pessoas pelo mundo.

Os meses que passei na Grécia, visitando os templos

sagrados, assistindo aos inúmeros cultos, ouvindo as

palestras dos sábios nas praças e no Areópago, foram

inesquecíveis para mim. As casas pintadas de branco,

277

encravadas nas encostas, contrastavam com o verdezul-

esmeralda do Mar Egeu e suas centenas de ilhas. No verão,

as águas eram mornas e, no resto do ano, mesmo nos meses

mais frios, era possível tomar banhos agradáveis em piscina

naturais que se formavam entre os rochedos.

Numa manhã de sol, meu mestre avisou-me que era hora de

tomar um navio que me levaria à capital do Império, a

incomparável Roma. Confesso que, naquela época, o meu

ódio pelos romanos já não era tão grande. Eu estudara

política com Dardanus, um mestre em leis e assuntos

diplomáticos. Com ele aprendi que cada povo tem o

governo que merece. São as pessoas que precisam mudar o

modo de pensar dos governantes, não o contrário. Mas, para

isso, o povo precisa ser educado. Os inúmeros Liceus e

Academias de Ciências existentes na Grécia estavam

fazendo esse papel. Seria bom se houvesse muitas deles

espalhadas pelo mundo.

- Conhecimento é poder, meu rapaz – dizia-me ele, durante

nossas caminhadas à beira mar, ao entardecer,

contemplando a magnífica baia de Atenas.

- Como o povo pode mudar o modo de pensar dos

governantes se o povo depende deles?

- E eles dependem ainda mais do povo. O poder dos

governantes nos nossos dias reside na força bruta que sãos

os exércitos. Os soldados, capitães e generais são pagos

pelos imperadores e juram servi-los. Os governantes não

querem que o povo tenha armas, pois, numa revolta popular

em grande escala, não haveria exército capaz de proteger os

278

governantes. Devemos lembrar que muitos soldados têm

família e amigos e não iriam matá-los para salvar a pele do

rei.

- Isso quer dizer que, se o povo se revoltar, os soldados o

seguirão, abandonando a obrigação de servir ao rei. Isso

poderia levar a alguma mudança?

- Sim, a mudança deve começar de baixo para cima. Povo,

soldados, comandantes, generais até chegarmos aos

governantes: reis, imperadores e governadores, qualquer

nome que lhes deem.

- Soldados são pagos para obedecer ordens, mestre

Dardanus. O que poderia levá-los a ficar contra os

governantes?

- Quem você acha que tem mais poder sobre um soldado,

um rei, um capitão ou um general? Ou a mãe dele?

- Com toda certeza a mãe.

- As rainhas-mães têm mais poder do que o próprio rei. São

elas que tomam decisões, antes mesmo de o rei pensar a

respeito delas. São elas que fomentam as ideias nos filhos.

Se você ler a história de Alexandre o Grande e de outros

grandes líderes, entenderá o que estou falando. Foram suas

mães as maiores responsáveis por seus feitos, positivos ou

negativos.

Parti da Grécia prometendo a mim mesmo que um dia

voltaria àquele país que tanto me ensinou em tão pouco

279

tempo. Roma era agora meu próximo destino. Eu fora

advertido por Dardanus que a minha vida sofreria uma

grande mudança em Roma. Eu não sabia que seria tão

grande e tão radical.

280

281

Capítulo XI - Roma – A Capital do Império

Depois da travessia por barco pelo Mar Jônico até a cidade

de Taranto na Itália, minha caravana passou por Palermo,

Potenzo, Napolis até finalmente alcançarmos a capital do

Império Romano, a extraordinária Roma.

Não havia nenhuma cidade com a qual eu pudesse compará-

la, em beleza, fascínio, grandiosidade, luxo, extravagância e

poder. A cidade se estendia pela planície do Lácio, às

margens do rio Tibre e ficava próxima ao litoral do mar

Tirreno. Nem mesmo Alexandria poderia ser comparada

àquela gigantesca cidade com mais de um milhão de

habitantes, vindos de várias partes do mundo, desde

comerciantes, escravos, meretrizes, magos, artistas,

pintores, escultores, poetas, artesãos, sacerdotes das mais

variadas religiões, guerreiros mercenários que queriam fazer

parte do exército romano a gladiadores livres – homens em

busca de fama e fortuna que ganhavam a vida enfrentando

outros adversários ou feras no Coliseu.

Meus olhos não pararam um só momento de admirar tantas

construções, pontes, ruas, torres, palácios, jardins e pessoas.

Parecia que cada uma queria exibir-se usando os trajes mais

extravagantes, sendo que alguns homens e mulheres

andavam seminus.

Dois companheiros de viagem que me foram designados

para entregar-me ao meu novo mestre que eu ainda nem

282

sabia o nome, estavam cansados de responder às incontáveis

perguntas que eu lhes fazia.

- O que é essa muralha que cerca grande parte da cidade?

Marcus Antônio, que era romano de nascimento e fora

enviado pelos pais para estudar na Grécia com o mestre

Dardanus, apressou-se em mostrar que conhecia a história

de sua terra natal.

- Esta é a Murus Servii Tullii (Muralha Serviana), foi

erguida há 400 anos para proteger a cidade contra as

invasões. Tem quase 4 metros de espessura, 11 quilômetros

de extensão e 12 portões. Hoje ela já não tem grande

utilidade, pois o Império Romano construiu, em volta da

cidade, fortificações suficientes para manter distantes daqui

exércitos inimigos por muitos anos – disse o rapaz, cheio de

orgulho.

- O que é aquele imenso edifício branco com colunas, à

nossa direita?

- Aquele é o templo de Júpiter, que nós chamamos aqui de

Capitólio. Este é o maior templo da cidade e foi dedicado a

Júpiter, rei dos deuses na mitologia romana, e também a

Juno e Minerva, a "Tríade Capitolina". Quando você quiser

se referir àquele lugar, pode mencionar "Templo de Júpiter

Capitolino", ali é o centro da fé e da cultura romana. O

nosso imperador César Augustus vai lá, frequentemente,

render sua homenagem aos deuses.

283

- Mestre Dardanus disse que Júpiter é o mesmo Zeus na

Grécia, é isso mesmo?

- Sim, quando a Grécia foi conquistada, o império romano

trouxe para cá os sábios e eles passaram a nos apresentar

seus deuses. Claro que os imperadores romanos não

queriam que os nomes gregos fossem mantidos aqui e,

assim, mudaram os nomes dos deuses e algumas

características deles. Desse modo, os deuses romanos são

cópias dos deuses gregos...

- Quanta falta de imaginação...

- Pode ser, mas os gregos também copiaram muitos deuses

dos povos celtas, dos druidas e outros povos mais antigos

que eles conquistaram no passado. O que fizeram foi lhes

dar novos nomes e criar novas histórias. Não foi isso o que

aprendemos com o mestre Dardanus e com os demais sábios

lá em Atenas?

- E quais são esses deuses que foram remodelados, recriados

em Roma com outros nomes?

- São muitos, mas falarei dos mais importantes. Júpiter é o

Zeus grego, pai dos deuses e dos homens e principal deus

do Olimpo; Saturno é Cronos, pai de Zeus e deus do tempo;

Netuno é Posei-don, irmão de Zeus e senhor do

oceano; Plutão é Hades, irmã de Zeus e Senhora do reino

dos mortos; Vênus aqui é a mesma Afrodite grega

nascida das espumas do mar, é a deusa da beleza; Cupido é

Eros, filho de Vênus e deus do amor. Existem muitos

outros. Você precisaria de uma vida inteira para saber o

284

nome de todos eles e o que representam. De tempos em

tempos, o povo acrescenta mais uma qualidade a um deus.

- Eu entendo, Marcus. Acho curioso esses nomes dados aos

deuses... Júpiter, Saturno, Netuno... de onde vieram esses

nomes?

- Já estudei um pouco a astrologia e a astronomia que é uma

ciência muito nova. Dizem os mestres que são nomes de

estrelas já vistas há mais de 4 mil anos pelos povos caldeus

que habitavam a região da mesopotâmia. Eles observavam

muito o céu para poder se guiarem pelo deserto e também

associavam a esses astros as cheias dos rios, o movimento

das marés e as mudanças do clima.

Marcus tinha razão. Era provável que os deuses fossem isso

mesmo – uma recriação de outros. Uma tentativa humana de

melhorar os deuses do passado dando-lhes uma nova

roupagem, acrescentando alguma característica nova ou

corrigindo algum possível defeito nos antigos. Eu, sem

querer, tinha começado a duvidar do próprio Javeh, embora

dentro de mim havia uma luta muito grande para varrer do

meu espírito as dúvidas. Eu não queria mais viver com elas.

Meu companheiro de viagem e de aprendizagem, que havia

sido mandado para estudar em Atenas, era de família nobre,

a qual me recebeu como a um filho. Moravam numa

confortável morada às margens do rio Tibre, de onde se

podia ver ao longe uma construção abobodada, o Fórum

Boário, bem como o Circus Maximo, onde, segundo meu

amigo, todos os domingos, havia competições envolvendo

gladiadores. O Circus Máximo era, como pude comprovar

285

depois, a maior arena já construída de todos os tempos, pois

comportava mais de 150 mil pessoas sentadas quando foi

construída no governo de Tarquínio Prisco, há mais de 500

anos. Tempos depois foi aumentado para comportar 385 mil

pessoas. Media 600 metros de comprimento por 80 de

largura. As arquibancadas mais altas ficavam a quase 30

metros de altura. As competições esportivas, festividades e

lutas eram realizadas naquele lugar gigantesco.

- Ninguém perde uma luta de gladiadores em Roma, João –

disse-me Marcus, cheio de animação. Nós fazemos apostas

sobre quem será o novo campeão. É muito divertido.

- Quem são os gladiadores? Ouvi falar deles em várias

partes mas nunca vi um.

- Quase sempre é um escravo, um condenado ou um ex-

condenado. Homens que recebem do Imperador o direito de

se tornar cidadão livre se vencer uma série de desafios.

- Lutar contra leões, tigres e outros animais, é isso?

- Exatamente. A maioria luta contra outros gladiadores.

Existe uma escola para treiná-los. Quase sempre é uma luta

de vida ou morte, mas existem aquelas em que o gladiador

não mata o adversário, mas ganha a luta se desarmar ou

imobilizar o oponente.

- Acho que não vou gostar de ver essas lutas. Deve haver

muito sangue, não é?

286

- E qual é o problema de ter muito sangue? A gente não

mata os animais e come a carne deles com sangue? Ahh...

lembrei agora que você é vegetariano.

- Não se trata apenas disso, mas sim pelo fato disso me

parecer uma selvageria. Pessoas se atacando, se ferindo, se

mutilando...

- Você é contra o castigo? A punição? Muitas lutas são a

última chance de um homem condenado. Quando cometem

um crime grave, são julgados e sentenciados à morte por

crucificação ou decapitação. Todos os anos, o Imperador

escolhe alguns para dar a absolvição, mas eles terão que

enfrentar outros oponentes ou animais selvagens.

- De onde vêm esses animais selvagens?

- São trazidos da Índia, da Ásia Menor e de outros países. O

Império Romano é grande e é fácil encontrar animais

exóticos e trazê-los para o Circus Máximo. Você precisa ver

a animação das pessoas que gritam, aplaudem os

vencedores e pedem para que o Imperador faça um aceno

com o dedo indicador para baixo, ordenando que o perdedor

seja morto. Ou quando, se simpatizam com um gladiador,

pedem para o Imperador apontar o indicador para cima e

assim poupe a vida do mesmo.

- Parece algo bem cruel...

- Para muitos é a única diversão que possuem. O Circus

Máximo foi construído para divertir as pessoas, sejam elas

livres ou escravas. Ninguém paga para entrar lá, além de ter

287

comida e bebida de graça para todos. Tudo o que tem a

fazer é ir, sentar-se lá e torcer por alguém ou simplesmente

assistir as lutas, que duram horas.

- Imagino que pessoas mais sensíveis não vão a tais

espetáculos. As mulheres, por exemplo.

- Pois aí é que você se engana. Além de ter um lugar

especial na Arena, toda a família imperial, a corte, os altos

comerciantes, os senadores e suas esposas comparecem. Até

as Virgens Vestais possuem um camarote especial para elas.

- Virgens Vestais? São sacerdotisas ou coisa parecida?

- Sim, são as mulheres que tomam conta do templo da deusa

Vesta. As sacerdotisas são moças que foram entregues pelos

pais para serem sacerdotisas, após completarem seis anos de

idade. O rei Numa Pompílio que viveu há mais de 600 anos,

fez construiu um templo para a deusa. É um templo em

forma arredondada, localizado ao lado do Fórum de Roma.

As Virgens Vestais são encarregadas de manter aceso o

fogo sagrado que há no meio desse templo. Se, por qualquer

motivo, ele se apagasse, só poderia ser reaceso pelos raios

do sol, por meio de um conjunto espelhos.

- Fogo sagrado? Que fogo é esse?

- É uma tradição muito antiga. Diz-se que Rômulo, um dos

fundadores de Roma, instituiu, pela primeira vez, o culto ao

fogo, designando virgens sagradas, conhecidas por Vestais,

para mantê-lo aceso. De acordo com essa lenda, enquanto o

fogo permanecesse aceso, Roma sempre seria vencedora em

288

suas conquistas e o povo teria sorte e fortuna. A existência e

continuidade do fogo sagrado garante a permanência do

triunfo de Roma e do modo de vida romano; deixar o fogo

se apagar equivale a deixar o Império Romano sofrer a ira

dos deuses romanos, a qual se manifestaria em forma de

presságios.

- Qualquer menina pode se tornar uma Virgem Vestal?

- Não. Em geral só são aceitas crianças de famílias

abastadas e poderosas. Tem havido um clamor popular para

que sejam aceitas pessoas de classes mais pobres. Mas tudo

depende do Imperador. As escolhidas não podem ter

nenhum defeito físico ou mental, como surdez, gagueira ou

outra deficiência. Elas também serão obrigadas a

permanecerem virgens pelo período em que durar seus

votos, que termina ao completarem 30 anos.

- Essas mulheres possuem algum tipo de poder especial?

- Sim, possuem, são videntes e muito respeitadas aqui em

Roma. Todas recebem educação especial na Casa da

Vestais, que foi construída especialmente para elas. Lá, só

podem ir os mestres, astrólogos e outras pessoas

importantes, sempre autorizadas pela Sacerdotisa-Mor.

- Acho que é uma espécie de mosteiro como os que existem

no Oriente, só que neste caso é somente para mulheres.

- Isso, é semelhante, João. Essas Virgens Vestais têm tanto

poder que quando vão à rua estão sempre escoltadas por

guerreiros eunucos que impedem a aproximação de

289

qualquer pessoa não autorizados pela Sacerdotisa-Mor,

especialmente homens. Falar com elas é um privilégio que

só dado aos governantes, senadores e magistrados aqui em

Roma. Ao se tornarem vestais, elas estão livres do controle

dos pais, podem fazer seu próprio testamento, podem servir

como testemunhas no tribunal e, ao morrerem, são

enterradas no pomério, um lugar sagrado destinado apenas

aos Imperadores e demais governantes.

- Como conseguiram tanto poder? As demais mulheres

romanas também têm algum privilégio?

- A origem é antiga. Dizem que, no passado, eram

feiticeiras que lançavam encantamentos sobre quem elas

desejassem. Os que as desafiavam morriam

misteriosamente. Por essa razão, os reis as temiam. Elas

também têm conhecimento dos astros, curam doenças e

fazem previsões sobre as guerras. Chegam mesmo a

aconselhar o Imperador. Acredita-se que deusa Vesta lhes

confere poderes especiais em retribuição à virgindade e a

castidade que elas dedicam à santa. As mulheres romanas

não possuem os privilégios das Vestais.

- Isso não é uma lenda romana?

- Lenda ou não, as coisas são assim. Quem não acreditar

nesses mitos ou ousar desafiá-los poderá sofrer sérias

consequências e até ser condenado à morte, como sempre

acontece.

290

- As pessoas vivem com medo, Marcus... É isso que as

fazem acreditar em coisas que a razão não é capaz de

aceitar.

- Por acaso, na religião dos seus pais não existem punições

para quem duvidar, não acreditar ou desfazer das tradições?

- Sim, existem fortes punições. E hoje tenho a convicção de

que precisamos reformar esse modo de pensar. Precisamos

de deuses mais amorosos, mais pacientes com os erros

humanos. Vejo muita injustiça sendo feita em nome das

crenças.

- Você tem razão, meu amigo. Mas, até lá, temos que

continuar acreditando... ou pagar caro por não fazê-lo.

Calei-me. Fervilhava dentro de mim o desejo de uma

reforma. Aquela cidade que eu odiei na infância e durante

parte de minha adolescência, exercia um fascínio poderoso

sobre mim.

Antes de ser levado para conhecer meu novo mestre,

aproveitei para conhecer a capital do Império Romano,

cheia de vida, novidades inigualáveis, praças imensas,

calçadas com pedras negras, bosques e jardins espalhados

por todos os lugares, estátuas e palácios feitos com mármore

que formavam colunas gigantescas.

Fui conhecer os famosos aquedutos, construções que

chegavam a ter 90 quilômetros de extensão, 30 metros de

altura e tinham a finalidade de transportar água para as

casas, abastecer piscinas e fontes de Roma. Falava-se em

291

200 milhões de litros de água fornecidos por dia. Havia

quatorze aquedutos principais em Roma. A água era captada

em locais mais elevados, tais como nascentes em montanhas

e os canais, feitos com tijolos e revestidos com uma liga de

areia, cal e calcário de origem vulcânica, era levada pelo

dutos em estruturas em forma de arcos. A água chegava nas

proximidades da cidade e era despejada em reservatórios

denominados castellum. Dali, o líquido era conduzido por

tubos de chumbo ou bronze para as residências dos mais

ricos. Os pobres a recolhia nas fontes públicas, mediante o

pagamento de uma taxa. Nas principais ruas de Roma, havia

também um sistema subterrâneo de canais que conduzia os

dejetos das casas e mansões dos mais abastados para o rio.

Havia uma grande biblioteca em Roma chamada Atrium

Libertatis. Nada que se comparasse à Biblioteca de

Alexandria ou de Pérgamo, mas era magnifica. Lá, pude ler

obras de Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio e Tito Lívio, os

mais célebres escritores, poetas e filósofos romanos até

aquela época.

Naqueles meus primeiros dias na cidade, eu estava ansioso

para chegar o dia em que iria terminar os meus estudos e

voltar para Alexandria. Eu já estava com 30 anos de idade,

sendo que 17 anos tinham sido vagando de país em país, de

cidade em cidade, de mestre em mestre.

Mesmo tendo a generosidade da família de Marcus Antônio

que me acolheu com carinho, como se eu fosse um membro

da família, eu queria ter a minha casa, o meu espaço e, de

certo modo, queria deixar de ser estudante, um eterno

292

discípulo. Eu ansiava agora para passar adiante tudo que

tinha aprendido.

O que me esperava ali em Roma? Eu não sabia exatamente

quanto tempo ficaria e quem seria o meu novo mestre até

que, num final de tarde, chegou um mensageiro com a

resposta:

- O senhor deve vir comigo. Traga apenas a sua roupa e

seus instrumentos de escrita – disse-me o rapaz, que tinha

um corte de cabelo que se parecia com o de monges

orientais, em forma de cuia. Ele usava um túnica branca

com um cinto azul amarrado à cintura, sandálias de couro

envernizadas e um bracelete de ouro no pulso esquerdo.

Provavelmente, era uma pessoa de posses.

- Posso saber para onde estou indo? Indaguei.

- Não tenho ordens para isso, senhor. Apenas me

acompanhe, por favor. Não se preocupe, o senhor estará em

segurança.

Caminhamos por algum tempo pelas várias avenidas

movimentadas de Roma, passando por ruelas estreitas até

chegarmos a um descampado do qual era possível avistar-se

uma construção que havia no topo da colina, uma vila

romana.

O meu guia, que permanecera em silêncio até aquele local,

disse-me:

293

- Daqui o senhor seguirá sozinho. Vá direto para aquela

casa e lá será recebido. Desejo-lhe boa sorte. Que os deuses

o protejam.

Agradeci e continuei caminhando até iniciar a subida para

chegar à construção indicada, a qual começava a ter

contornos bem definidos. Era como se fosse um pequeno

palácio, dois pavimentos, uma torre ao centro, cercada por

um muro alto feito de pedras, tendo à frente uma alameda

de pinheiros que terminava em frente ao portão principal.

Antes mesmo que eu puxasse a argola que faria tocar um

sino para anunciar a minha presença, o portão se abriu.

- Seja bem vindo, João. Essa será a sua nova morada por

algum tempo. Queira, por favor, me acompanhar.

O rapaz que me recebera tinha compleição física de um

gladiador e se vestia como um deles. Usava uma bata cor de

marfim, saiote da mesma cor, amarrado por um cinturão

metálico e, sob ele, até a altura dos joelhos, outro saiote

feito de tiras de couro. Os punhos estavam protegidos por

braceletes de cobre e os pés envoltos por uma única peça

que formava a sandália e caneleiras de couro, as quais

chegavam até o meio da canela. Do lado esquerdo, uma

espada romana embainhada.

Enquanto caminhávamos para o interior da casa,

atravessamos um jardim formado por flores de vários

matizes, cercadas por uma relva verde muito macia. Havia

estátuas de leões ladeando o pórtico e sobre ele a inscrição:

Alea jacta est – que significa: “a sorte está lançada”. Já nas

294

proximidades da porta da casa, duas fontes jorravam água

saindo da boca de peixes feitos de mármore.

Ao adentrarmos a sala, o homem que me conduzia pediu

que eu retirasse as minhas sandálias e as colocasse num

canto. Depois disso, pediu para que eu me sentasse e

aguardasse. Obedeci.

A sala era ampla e arredondada, com janelas que davam

para todas as direções. Por elas, podia-se ver o sol já se

pondo e os belos jardins da parte externa da casa, bem como

uma piscina ladeada por palmeiras. Lembrei-me

imediatamente dos oásis da minha terra.

Nas paredes pintadas em tom pastel, havia três quadros

bucólicos, um retratando uma cachoeira e em outros dois,

animais pastando. O chão estava forrado por um tapete com

desenhos triangulados em várias cores, provavelmente

vindos da Pérsia, sobre ele, dezenas de almofadas

espalhadas. Em volta da sala, havia pedestais onde

provavelmente pequenas tochas seriam acesas durante a

noite. Ao fundo e do lado direito, havia uma escadaria que

levava ao andar superior. Quem morava ali deveria ser uma

pessoa de muitas posses, pensei.

Mil indagações me passaram pela cabeça enquanto eu

estava ali aguardando a pessoa que me convidara. Quem

seria o meu novo mestre e o que ele me ensinaria? Quanto

mais eu ainda precisava aprender para voltar para

Alexandria para rever meus amigos e meu mestre Malachai,

o qual já seria um ancião com quase setenta anos. E os meus

295

colegas, companheiros de estudos, o que teria acontecido

com cada um deles? Será que eu os reconheceria?

Ouvi passos descendo a escada. E, imediatamente, levantei-

me.

Caminhando em minha direção, vi um vulto de uma mulher

pouco a pouco se formar diante de meus olhos que, ao

contemplar tamanha beleza, não podiam acreditar que fosse

real. Seus passos eram suaves e ela parecia levitar.

Sua pele era morena e parecia sedosa, quase transparente.

Usava um vestido de seda branca que caía até os pés,

deixando expostos apenas os braços e o rosto. Na cabeça,

uma delicada tiara de ouro cravejada de diamantes adornava

os cabelos negros presos em um coque, ressaltando-lhe o

rosto pequeno e delicado. Os olhos ligeiramente

amendoados eram negros e profundos. O nariz afilado e

ligeiramente voltado para cima era pequeno e contrastava

com os lábios carnudos que se abriam num quase sorriso.

Os seios eram arredondados, bem modelados e imponentes.

Adivinhei por baixo da roupa uma cintura fina e pernas bem

torneadas e firmes. Era uma deusa, a própria Afrodite ou

Vênus personificada. Eu agora poderia entender melhor a

fascinação e adoração dos gregos e romanos pelas deusas.

Quando ela aproximou-se de mim, senti um inebriante

perfume que se espalhou pela sala, tornando ainda mais

mágica aquela aparição. Não havia visto nenhuma mulher

mais bela. Julguei que ela não deveria ter mais que 20 anos.

Eu parecia uma estátua petrificada e ela teve que me tocar

para que eu despertasse do sonho real.

296

- João da Judeia... João, você é o escolhido?

- Sim... sim... sou João... o esco... o discípulo de Malachai –

gaguejei.

- Eu estava à sua espera. Meu nome é Ariam de Glimeu sou

a Sacerdotisa-Mor e você está em uma das casas destinadas

à instrução de estrangeiros pelas Virgens Vestais.

Eu não sabia se me ajoelhava aos pés daquela deusa ou se

me prostrava beijando os seus delicados pés descalços,

como vi fiéis fazerem em alguns rituais na Índia diante de

divindades. Ela pareceu perceber o meu embaraço.

- Você não precisa ter cerimônias para comigo. Só chegam

até aqui aqueles que são especiais. Muitos são chamados,

mas poucos são os escolhidos. A partir de hoje, logo após a

ceia, nós começaremos os estudos dos astros, pois estamos

em uma época do ano com boa visão do céu. Você deverá

fazer anotações que serão muito importantes para o seu

trabalho num futuro próximo. Aquelas duas Vestais vão

cuidar de você até o dia da sua partida.

Olhei aturdido e, só naquele momento, me dei conta de que

havia na sala mais duas mulheres vestidas em túnicas

brancas, sem, no entanto, usarem a tiara na cabeça. Eram

bonitas, mas Ariam era infinitamente mais bela. Cada uma

das mulheres portava, atada à cintura, uma pequena adaga

curva que reconheci, no mesmo instante, serem iguais às

usadas pelos zelotes do meu país. O mesmo modelo que vi

nas mãos de meu pai.

297

Os momentos que se seguiram até eu ser levado aos meus

aposentos, que eram amplos e confortáveis, depois quando

fomos cear no andar superior da casa, um banquete feito de

frutas e flores das mais diversas cores e sabores, foram

marcantes para mim, pois percebi que eu era um

privilegiado e estava recebendo tratamento que poderia ser

dispensado a um príncipe. E, por mais incrível que pudesse

parecer, a minha princesa estava bem ali. Mas,

provavelmente, ela seria a última mulher que eu poderia ter,

pois as Vestais faziam um voto de castidade e seriam

punidas com a morte, se o violassem.

Observava atentamente os movimentos delicados e

estudados de Ariam. Quando ela falava, eu bebia suas

palavras como se fosse o mais puro dos néctares. Havia nela

um ar de singeleza e simplicidade que eu nunca havia

imaginado existir em uma mulher.

Durante a ceia, onde apenas ela e eu ceamos, sendo servidos

por outras Vestais e pelo homem que me recebera na porta.

Sobre o qual, disse-me Ariam que era um guerreiro eunuco,

ex-gladiador que devotara sua vida para proteger as Vestais

e conhecia todos os segredos das artes marciais. Bastaria um

simples sinal dela e ele degolaria qualquer pessoa que dela

se aproximasse sem permissão.

- Ele já executou muitos homens, Ariam?

Ela sorriu largamente e logo se formaram covinhas nos

cantos da boca, mostrando a alvura dos seus dentes de

marfim. Quando ela se aproximou de mim estendendo-me

um prato com flores pequeninas, algumas caíram no piso de

298

mármore e ela se agachou para apanhá-las. Não pude deixar

de ver parte das coxas morenas da Sacerdotisa, que erguera

distraidamente o vestido durante o movimento. Senti uma

excitação desconhecida. Meu corpo repentinamente ficou

em chamas. Por pouco não fui flagrado naquele instante em

que a admirava como se estivesse em transe. Procurei

disfarçar imediatamente iniciando uma nova conversa.

- Vocês aqui também comem flores como em alguns países

do Oriente?

- Sim, nós cultivamos muitas ervas medicinais, flores e

cogumelos especiais. Muitos usamos em nossas cerimônias.

Algumas dessas flores possuem poderes mágicos que nos

abrem as portas do passado e futuro. Nós as ingerimos

diariamente. Aqui tem flores de abóbora, pétalas de rosas,

lavanda, pétalas de girassóis, hibiscos, calêndulas e

gerânios.

- Não são venenosas?

- Nunca ouvi dizer que alguém tenha morrido por comer

flores de plantas não venenosas. Muitas pessoas não gostam

do sabor e não se habituaram a comê-las, mas estão

perdendo uma excelente oportunidade de melhorar a saúde.

A maioria das hortaliças e outras plantas que até são

consideradas plantas indesejadas em nossos jardins dão

flores que podem ajudar a curar doenças. Ingerimos aqui

mais de 50 espécies de flores.

- E quanto às plantas que provocam visões? Vocês as

cultivam aqui?

299

- Além de alguns cogumelos, temos uma erva que é

especialmente usada para despertar a visão é a Salvia

divinorum, também conhecida como Sábia Vidente ou

Adivinha. Aprendemos a usá-la com os druidas, povos

muito antigos. Aqui fazemos o chá das folhas, mas elas

também podem ser mascadas.

- Então é por isso que vocês, Virgens Vestais, têm tanto

poder sobre os governantes? Vocês usam essas ervas para

fazer profecias, é isso mesmo?

Ariam sorriu levemente e pareceu desconfortável em

responder diretamente àquela pergunta e o fez com outra.

- Por que você acha que temos poder sobre os governantes?

Não serão eles que deixam em nossas mãos esse poder? Não

serão eles que nos dão esse poder? Eles mesmos não

poderiam usar as ervas para obter as respostas que

quisessem?

- Sim poderiam, mas porque escolhem as Virgens Vestais

para lhes aconselhar e fazer previsões sobre o futuro?

- Talvez muitos já tenham tentado e tenham enlouquecido

ao virem o futuro. O porvir pode ser por demais assustador

para a maioria das pessoas. Ninguém está totalmente

preparado para vê-lo. Por isso, os deuses o oculta e vai

desenrolando-o pouco a pouco, como fazemos a um papiro.

Nós nunca revelamos tudo o que vemos. Dizemos apenas

aquilo que parece ser conveniente aos governantes e o

suficiente para que eles consigam algumas vitórias.

300

Naquela primeira noite na Segunda Casa das Vestais de

Roma, eu vi o céu de uma maneira especial.

Ariam me conduziu por uma escada em caracol até

plataforma da torre, de onde podíamos contemplar a

amplidão do céu estrelado. Ficamos ali, os dois,

embebecidos, olhando as estrelas cadentes riscarem o céu.

Uma brisa agradável soprava e nos envolvia. O disco

luminoso da lua começava a banhar a planície com seus

raios leitosos e suaves.

Ariam apontava animadamente para os grupos de estrelas,

ao tempo em que lhes dava os nomes.

- Olhe João... Como são lindas as estrelas, a Lua. Os antigos

acreditavam que a forma perfeita é a circunferência que

mede 360 graus e que esta também é a forma do universo

formado pelas estrelas – chamaram esse conjunto de

Zodíaco. Observaram, também, que havia 12 grupos de

estrelas, vários com formas de animais: Carneiro, Touro,

Leão, Caranguejo, Cabra, Escorpião, Peixes. Um deles tem

a forma de um Aquário, outro de uma Balança. Há também

um grupo que se parece com duas pessoas iguais: Gêmeos.

Temos ainda um grupo de estrelas que se parece com um

arqueiro...

- Sagitário, é o nome mitológico de um ser que era metade

gente metade animal e portava um arco, não é?

- Exatamente. Temos 11 até agora, falta um o principal.

Você sabe qual é?

301

- Virgem... Como a maravilhosa Virgem Vestal...

- Muito bem... muito bem, João. Você teve bons mestres,

pelo que vejo. Será fácil compreender as coisas que vou te

ensinar a partir de hoje. Agora você vai ver como é

interessante a relação entre a Astrologia e a Matemática. O

número 12, por exemplo, vem sendo usado desde os mais

antigos tempos da humanidade para informar aos sábios do

futuro que aquelas histórias e lendas foram criadas por eles

e eram simbólicas.

- Como assim? Não entendo o que você diz, Ariam.

- Os sábios e escribas sempre citam números em suas

escrituras como indicativo de que foram eles quem

escreveram aquelas histórias. É como se fosse uma

assinatura, sem precisar colocar o próprio nome. O número

12 sempre será usado, pois ele indica uma constelação

formada de 12 signos. Doze são os meses do ano, doze são

as horas do dia e 12 são as horas da noite, 12...

- Agora compreendo o por que de o número doze ser tão

usado na tradição do meu povo. São doze as tribos de Israel,

doze as pedras preciosas do peitoral do sumo sacerdote,

doze as portas da cidade de Jerusalém. Lembro que certa

ocasião encontrei mais de cem vezes o uso do número 12 no

Talmude.

- E assim será, João. Quando você for escrever alguma coisa

que seja de fato muito importante e que queira passar a ideia

de união, de força coletiva para se alcançar algum objetivo,

indicar a necessidade de agir, de lutar por uma causa

302

comum, use o número 12. Você também estará repetindo a

Tradição dos Escribas Sábios.

- Tradição dos Escribas Sábios? Nunca ouvi falar dela.

- Agora está. Ela existe desde que os homens descobriram

que, por meio da palavra escrita, podemos mudar o mundo,

mudar as ideias. Palavra é Verbo. Verbo é poder. Escrita é

poder tornado matéria, poder encarnado. Segundo aquela

tradição, todos deveriam usar números especiais para

transmitir ideias, pensamentos e sentimentos. Todas as

vezes que você ouvir uma história ligada a um número,

tenha certeza, ela foi escrita por alguém que conhece a

tradição. Você a conhece agora e, antes de partir, saberá

tudo o que sei desde que me tornei uma Vestal. Fui ensinada

por outros mestres.

- Fale-me mais sobre o círculo. O que ele tem de especial.

Ao dividirmos 360 por 12, que número encontraremos?

- Confesso que não gosto muito de matemática, mas acho

que posso chegar a esse resultado primeiro dividindo os

dois primeiros algarismos – claro, o maior pelo menor e vou

encontrar o número 3. Sobrará o zero... Juntando o zero com

o três, teremos 30, acertei?

- Exatamente, ora, 3 somado ao zero é igual a três mesmo,

não é? Ele é um número mágico e muito importante na

nossa vida.

303

A cada comentário, informação e ensino de Ariam, eu me

sentia mais e mais atraído por aquela bela mulher. Sua

inteligência rimavam com sua graça e beleza, formando um

triângulo mais que perfeito.

Estávamos só os dois ali, olhando as estrelas sob a

vigilância apenas das estrelas e da Lua, quando nossos

corpos se tocaram involuntariamente. Senti um calor no

rosto ao tempo em que experimentei a sensação da presença

daquele corpo magnifico junto do meu. Nossos olhares se

cruzaram e eu acreditei ver no fundo deles que Ariam

também me desejava e a abracei com força. A principio, ela

pareceu resistir e se conservou imóvel, mas, logo depois que

minhas mãos a enlaçou com ternura e a deslizei por sua

cintura alcançando-lhe as nádegas, ela se entregou ao meus

afagos e nossos lábios se tocaram e se transformaram num

beijo cujo sabor tenho guardado até hoje.

Senti suas mãos macias por baixo da minha túnica. Como se

tivéssemos sido possuídos por uma força mágica vinda das

estrelas, nos desfizemos de nossas roupas que ficaram

caídas aos nossos pés. Ela roçou o bico dos seios nus em

meus lábios, como um convite para saboreá-los e depois,

com extrema delicadeza, puxou-me para si e se abriu como

uma concha deixando-me apreciar sua pérola, agora úmida

e pulsante. Ariam movia os quadris proporcionando-me

uma prazer indescritível. Aquilo deveria ser o tão chamado

céu... mas não era ainda, pois ele chegou para nós a um só

tempo, fazendo sair de nossas gargantas um gemido

profundo, intenso, abafado por nossas próprias mãos, pelo

receio de sermos ouvidos.

304

Ficamos ali abraçados por algum tempo. Eu ficaria daquele

jeito pelo resto de minha vida. Por toda a eternidade, se

fosse possível. Foi ela quem recomeçou o diálogo.

- João... o que estamos fazendo? Você não vê que o que

estamos fazendo é impossível, meu querido? Disse ela num

lamento sentido.

- Não me importa... eu lutarei por esse sentimento. O que

senti por você desde que meus olhos a tocaram é mais forte

do que tudo. Não vou perde-la por nada...

- Querido... Querido... você não sabe o que está dizendo.

Você precisa saber que se uma única Vestal nesta casa

souber do que aconteceu aqui conosco, ela me entregará e

eu serei morta.

- Morta? Como assim? – disse eu, completamente aturdido.

- Nós fazemos um voto quando nos tornamos Virgens

Vestais que preferiremos a morte a perder a nossa

virgindade ou castidade. As que desobedecem e caem

pecado são enterradas vivas ou, se preferirem, decapitadas

em praça pública.

- Você não pode renunciar ao seu voto de castidade?

- Não, não posso. Antes de completar 30 anos, não posso

renunciar ao meu posto de Vestal. E, se for descoberta por

ter violado o meu juramento, serei colocada dentro de uma

caixa de madeira com água e comida que poderá durar no

máximo três dias. Essa caixa será colocada a uma grande

305

profundidade e jogarão terra sobre ela e assim ficarei lá até

a morte. Ninguém poderá me socorrer. Ninguém poderá

intervir, nem mesmo o Imperador. É uma tradição secular e

nada pode mudar isso.

- Pois teremos que mudar isso também – disse eu,

enfurecido.

- Eu temia o nosso encontro. Eu sempre quis adiá-lo, pois

sentia que estava vindo em minha direção algo que poderia

mudar para sempre as nossas vidas. Mas Obadiah ordenou

que eu o recebesse. O mestre Malachai, pessoalmente, veio

a Roma fazer essa recomendação.

- Mestre Malachai esteve aqui?

- Sim, ele esteve. Foi ele quem me falou sobre você. Eu já o

conhecia antes que você chegasse. Falou-me da sua história,

de como você sofreu desde que foi retirado do seio da sua

família. Meu coração se encheu de pesar por tudo e

sobretudo pelo fato de você ter sentimentos tão puros. Eu

soube também o que que aconteceu como a sua Sarah...

- O que faremos agora Ariam? O que faremos?! – indaguei,

aflito, segurando-lhe as mãos.

- Eu não sei, João... ou deveria te chamar de Matias? Gosto

mais do Matias. É um nome mais suave, mais delicado.

- Chame-me do que quiser, meu amor. Podemos fugir...

Sim, podemos fugir. Podemos ir para o Oriente, a Índia, a

China...

306

- Não seja ingênuo, Matias... nós não conseguiríamos nem

sair de Roma vivos. Esta casa é vigiada por guardas

pretorianos a mandado do Imperador. Ninguém pode se

aproximar daqui sem ser convidado. Acampados no fundo

desta vila, há um grupo de 10 homens que me acompanham

para toda parte. Qualquer mudança na rotina provocará

desconfiança.

- Você precisa consultar os astros. Descubra o que eles

dizem.

- Os astros não poderão interferir na vontade dos homens.

Somos nós que mudamos o curso de nossas vidas. As

estrelas vão permanecer lá no céu seguindo seus cursos.

- Ariam... minha querida, nós precisamos encontrar uma

forma de fugirmos daqui. Precisamos e isso tem que ser

feito logo... imediatamente.

307

Capítulo XII – Visões do Inferno

Os deuses, fossem eles gregos, romanos, hindus, chineses

ou mesmo o Senhor dos Judeus, haviam me pregado uma

peça. Todos eles juntos.

Quando voltei para o meu quarto naquela noite, não pude

deixar de amaldiçoar a todos eles, sem nenhuma exceção,

por terem uma vez mais colocado em meus ombros um peso

maior do que eu poderia suportar.

Sarah já havia ficado no passado, enterrada quase viva

durante um parto difícil, depois de ter sido roubada de mim

por um romano bastardo. Agora eu encontrara Ariam, uma

Virgem Vestal, por quem me apaixonara de modo

irreversível e que me pedia para eu ter paciência e esperar

as coisas se acalmarem até que surgisse uma solução para

podermos ficar juntos.

Ela sugeriu que mantivéssemos a discrição enquanto eu

estivesse ali. Ninguém podia desconfiar de nada nem notar

qualquer interesse recíproco que pudesse ser interpretado

como sinal de envolvimento amoroso. Disse-me também

que sempre me trataria com educação, mas, eventualmente,

com um certo rigor na presença das outras pessoas, para que

ficasse marcada a posição dela de Mestra e Sacerdotisa.

Concordei com todas as propostas, menos com uma: a de

esperar que ela completasse 30 anos, quando ficaria livre do

voto de castidade, quando então poderíamos nos casar, ter

os nossos filhos e vivermos com dignidade diante de todos.

308

- Não posso aceitar isso, Ariam...não posso. Está acima de

minhas forças. Não serei capaz de esperar oito anos. Não

esperaria nem oito semanas...

- Matias... Matias... parece que os mestres do Oriente não te

ensinaram nada sobre a arte da paciência...

- Paciência?! Eu perdi a paciência com esse mundo de

regras estúpidas, de leis sem fundamento, de obrigações, de

votos, juramentos...

- Eu compreendo... sei que muitas dessas regras são

ridículas diante da Mãe Gaia, da Mãe Natureza. Vejo

claramente que fazer um voto de castidade é ir de encontro

aos nossos instintos naturais.

- Se é assim, porque você o aceitou? – indaguei.

- Eu tinha apenas 6 anos de idade, quando fui levada por

meus pais para o templo das Virgens Vestais. Fui

convencida de que era uma criança especial, que teria

poderes mágicos e que viveria entre minhas irmãzinhas, que

teria uma mãe que cuidaria de mim e nenhum mal me

aconteceria se eu a obedecesse. Que criança não quer tais

privilégios? Eu via como as Vestais eram tratadas e

respeitadas por todos. Foi fácil aceitar. Mas você acha que

uma criança com menos de 10 anos tem capacidade de

decidir sobre sua própria vida?

- Eu sei do que você está falando, Ariam. Também fui

levado para a sinagoga por meus pais quando criança.

Aceitei a fé e a religião deles como algo valioso para mim.

309

Nunca questionei se eles estavam certos, pois sempre achei

que eles queriam o melhor para mim.

- Então fica fácil para você compreender que quando somos

crianças não temos escolhas. Elas são feitas por nossos pais.

E, no meu caso, eu aceitei ser uma Virgem Vestal para ter

os privilégios que tenho. Nenhuma outra mulher em Roma

tem mais poder do que eu, a Imperatriz e a mãe do

Imperador. Acho que, em alguns assuntos, eu tenho até mais

poder do que as duas juntas, você sabia disso?

- Não sabia. Então posso compreender melhor a razão de

você permanecer até hoje como Virgem Vestal. Seria tolice

não aceitar tantas regalias.

- Mas há algo maior que as regras sociais, os juramentos, as

promessas e as leis. Por elas, os homens e mulheres são

capazes de violar qualquer coisa... eu disse qualquer coisa,

Matias. Você sabe do que eu estou falando?

Eu sabia. Era aquele inexplicável sentimento que havia nos

arrebatado e nos envolvido a ponto de sermos capazes de

colocar em risco a nossa própria vida. Naquele momento,

nada mais importava, tudo o que queríamos era desfrutá-lo.

Chamávamos a essa força de amor.

Agora, ali com o rosto banhado em lágrimas, eu queria ser

capaz de compreender a razão de estar ali, perdido, confuso,

sem saber que caminho tomar. Eu nada poderia fazer sem o

consentimento de Ariam. Tremia só de pensar que um único

fio de cabelo dela fosse tocado. Eu agora queria ser o seu

eterno guardião, protege-la contra tudo e todos.

310

Foi o meu grande preparo espiritual adquirido com os

mestres Rajan, Chen e Dardanus que me ajudou a exercer

controle sobre os meus desejos.

Quando estava reunido com Ariam e outras Virgens Vestais

conhecedoras da Astrologia, do tratamento de doenças com

ervas medicinais, meus olhos se perdiam na contemplação

da minha amada. Acho que as outras mulheres percebiam

algo e se entreolhavam, mas a Sacerdotisa-Mor desfazia

imediatamente a possível intimidade, falando com voz firme

e direta:

- João... noto que você tem estado desconcentrado desde

que aqui chegou. Eu sei que aprender astrologia e cura de

doenças não é uma tarefa fácil. No entanto, quero te advertir

que se você não for qualificado nos testes que terá que fazer

nas próximas semanas, será mandado de volta e não terá

outra oportunidade. Sua graduação como Escriba-Mor

depende de ser aprovado por mim.

Por mil demônios... eu não sabia do que ela estava falando.

Graduação de Escriba-Mor? Mandado de volta? Ariam

provavelmente se valia do desconhecimento das demais

Virgens Vestais sobre a verdadeira razão de eu estar ali. Eu

fora mandado por Obadiah, pai de Malachai, para estudar,

nada mais do que isso. Eu já era considerado Escriba-Mor

desde que saíra de Alexandria. Fosse como fosse, eu

realmente estava me distraindo. Mal podia esperar pelo

momento de subir com ela pela escada em caracol que

levava ao topo da torre para reacendermos a chama do amor

que nos consumia.

311

Certa noite, ela me confidenciou.

- Você sabia que desde que chegou aqui tem despertado

paixões?

- A única paixão que quero ver despertada aqui é a sua.

Mas, do que você está falando?

- Flávia... a filha do senador romano, aquela de cabelos

claros que sempre está te oferecendo vinho.

- O que tem ela? – indaguei surpreso.

- Uma mulher sabe quando outra olha para um homem com

interesse. Flávia está interessada em você.

- Será verdade? Pensei que as Virgens Vestais não

sentissem desejo...

- Não deveriam sentir. Tomamos chás especiais para reduzir

o desejo carnal, mas, por vezes, ele é mais forte. Já

aconteceu no passado.

- Já ouve alguma Virgem Vestal que se sucumbiu ao desejo

e quebrou o voto de castidade?

- Sim, o nome dela era Fábia e aconteceu há pouco mais de

70 anos. Ela teve uma filha, resultado do incesto, e, devido

a inúmeros apelos da família e do povo, pois era muito

querida, foi perdoada. No entanto, depois de retornar ao

Templo das Vestais para terminar seu tempo de internato,

ela voltou a cometer o ato imperdoável. E, daquela vez,

312

apesar de inúmeros apelos, ela foi enterrada viva e o homem

que a violou foi esquartejado, tendo pedaços de seu corpo

pregados em postes espalhados por toda a cidade.

- Isso aconteceu aqui em Roma?

- Exatamente. Fábia era a minha bisavó.

- Quando eu ouvi essa história pela primeira vez, não dei

muita importância, mas parece que minha mãe sentia muita

vergonha da avó dela e fez de tudo para que eu, a primeira

filha, me tornasse uma Virgem Vestal e assim limpasse a

mancha da família dela.

- Isso parece um círculo infernal... não lhe parece?

- Sim, parece. Tenho, por vezes, a impressão de que

estamos presos a determinadas cadeias que começaram lá

atrás com os nossos ancestrais e seguem repercutindo em

nós. O que será isso, Matias? Você que já viajou tanto e já

conhece tantas coisas, tem alguma ideia?

- Sim, eu tenho. Acho que, da mesma forma que herdamos

as características dos nossos pais e avós, também herdamos

as histórias de suas vidas, seus desejos, seus vícios e suas

habilidades.

- Isso quer dizer que eu herdei a habilidade de minha

bisavó, o vício de quebrar voto de castidade?

- Não, muito pelo contrário... você herdou o dom do amor.

Você é herdeira dessa força poderosa capaz de enfrentar

313

qualquer obstáculo, até a própria morte, como sua bisavó

enfrentou. Claro que ela não queria morrer, mas não se

intimidou, do mesmo modo que você, e quebrou o voto de

castidade, mesmo sabendo das consequências que poderia

sofrer.

- E você, o que herdou dos seus pais?

- Ahhh... não sei. Mas estou descobrindo aos poucos que me

pareço também com meu pai em algumas coisas. Ele deu a

vida dele para proteger nossa família.

- Malachai me contou tudo. Seu pai é um herói. E você,

acha que estaria pronto para dar a sua vida por alguém?

- Sim, meu amor... eu daria mil vidas por você, se as tivesse.

Morreria mil vidas no seu lugar.

- Algo me diz que um dia você terá que fazer isso, Matias...

- Pois farei sim. Sem pestanejar. Sem vacilar.

Eram sempre assim as nossas conversas quando não

estávamos estudando na companhia de outras pessoas.

Naquela mesma semana em que Ariam me contou sobre

Flávia, algo muito estranho aconteceu.

Era madrugada, eu não conseguira dormir, pois, apesar de

ter amado Ariam no dia anterior, sentia-me inquieto e cheio

de desejo. Ansiava ardentemente por seu corpo naquele

momento. Foi quando percebi que alguém entrara em meu

aposento, o qual tinha como porta apenas uma cortina de

314

tafetá. Raramente alguém entrava em meus aposentos

quando eu ali estava, apenas as mulheres encarregadas da

limpeza e Claudius, o guarda-eunuco, que por vezes ia ver

se tudo estava em ordem. Ariam nunca tinha ido lá. Muito

embora, eu, todas as noites, sonhasse de olhos abertos que a

via entrando pela porta, indo deitar-se nua e perfumada a

meu lado. No entanto, eram só desejos que jamais poderiam

ser realizados ali. No corredor que dava para o meu quarto,

havia sempre um guarda armado, com o pretexto de me

proteger.

- Proteger de quê? Indaguei certa vez a Ariam, enquanto

estávamos no alto da torre depois de um momento de amor.

- Proteger você de si mesmo. Todos sabem que as Virgens

Vestais fizeram um voto de castidade. Ter homens não-

eunucos aqui dentro é um grande risco para todas nós.

Ninguém, além de mim que sou Sacerdotisa-Mor, pode ficar

a sós com um homem. Os imperadores, senadores e demais

governantes quando vêm falar comigo, aqui ou na Prima

Casa, que fica ao lado do Fórum Romano, não querem

companhia. Seria perigoso para eles compartilhar segredos

com outras mulheres ou guardas. Nem mesmo os

Imperadores podem levar generais quando estão em

audiência comigo.

- Então sou vigiado dia e noite, é isso mesmo?

- Sim, exceto aqui em cima no nosso canto secreto, onde só

pode permanecer duas pessoas, subindo uma de cada vez

pela escada e esta plataforma impede que sejamos

315

observados. É o único lugar desta casa onde nem eu ou você

somos vigiados.

- E se alguém ficar ao pé da escada? Pode nos ouvir?

- Já verifiquei, isso não é possível. O vento aqui em cima

sopra para longe a nossa voz. Somente um grito muito forte

poderia ser ouvido por alguém que estivesse lá embaixo.

- Precisamos então ter cuidado.

- Sim, você precisa aprender a se controlar... – disse ela,

colocando o dedo indicador sobre meus lábios.

- Você também - disse eu, beijando-a com ternura.

Será que Ariam havia burlado a vigilância e entrado em

meu quarto?

A escuridão não me deixou ver com clareza quem se

aproximava de minha cama. Percebi, no entanto, que era o

vulto de uma mulher. Quando ela se aproximou, senti o

aroma de um perfume conhecido. Era o de Ariam. Meu

coração disparou e senti medo misturado a um prazer

avassalador. Virei-me e a abracei fortemente...

- Ariam... Ariam... meu amor? Você veio me ver? Onde está

o guarda? Não é arriscado? – disse eu, procurando seus

lábios.

316

Quando ela me beijou, descobri que eu havia cometido um

erro fatal. A mulher que estava em meus braços não era

Ariam.

Afastei-me bruscamente e senti vontade de gritar. Mas, se o

fizesse, comprometeria para sempre o meu segredo. Eu, sem

querer, falara o nome da Sacerdotisa-Mor e revelara assim

que tínhamos um relacionamento além do esperado entre

discípulo e mestra.

A mulher, que até então nada falara, aproximou-se de mim e

colocou as mãos no meu rosto.

- Fique calmo, João. Não vou revelar o seu segredo para

ninguém, mas quero poder me beneficiar dele também. Eu

já desconfiava que você e Ariam estavam envolvidos. Havia

escutado gemidos e murmúrio de vocês quando estavam no

alto da torre. Também tenho notado, desde que aqui chegou,

que você só tem olhos para ela. Se ela pode ter você, eu

também tenho esse direito.

Naquele momento, eu estava sendo claramente chantageado

e não sabia o que fazer. Se eu negasse, poderia colocar a

vida de Ariam em risco e a minha também. A minha, não

me importava, mas a de minha amada sim, era mais valiosa

que a minha. Procurei reunir toda calma possível para

enfrentar aquela situação. Clamei, intimamente, por mestre

Dardanus e por todos os sábios gregos para me ajudarem

naquele dilema. Eles tinham o dom da palavra, conheciam a

arte da diplomacia, da retórica.

317

- Qual o seu nome? Por que está usando o perfume de

Ariam? O que aconteceu ao guarda do corredor? O que você

realmente quer de mim? Despejei, a um só tempo, um

turbilhão de perguntas.

- Eu sou Flávia, filha do Senador Pompeu. Coloquei um

pouco do perfume de Ariam para confundi-lo. Só havia essa

maneira de provar que vocês estão envolvidos. O guarda

está dormindo profundamente e só vai acordar daqui a

algumas horas, portanto, não se preocupe. Todos estão

dormindo, inclusive a sua amada. Cuidei para que todos

tomassem um delicioso chá antes de dormir. O seu e o meu,

no entanto, terão um efeito contrário. Nos manterá

acordados e cheios de desejo.

Antes mesmo que eu perguntasse alguma coisa ou falasse

algo que pudesse afastar aquele perigo, Flávia já estava

montada sobre mim, lambendo-me a boca, como se

possuída por um demônio. Quis me afastar, mas seus

braços, apesar de parecerem frágeis e delicados, tinham uma

força fora do comum. Era o demônio, reconheci. Nos

debatemos furiosamente.

A minha túnica foi arrancada e meu sexo tomado por aquela

boca quente que, sem parar, me arrancava um prazer

indescritível. Em seguida, ela esfregou o corpo úmido de

suor em mim e eu senti os seus seios roçando o meu rosto e

o meu peito.

- Por favor.... por favor... pare por favor... – gemi baixinho.

318

Flávia não me ouviu e logo senti que ela tentava agora fazer

com que a penetrasse. Lutamos um contra o outro e, depois

de algumas tentativas frustradas, ela se deteve e me disse ao

pé do ouvido:

- Foi muito bom... muito bom. Eu voltarei para você

terminar o que começou, João da Judeia. Ainda quero sentir

esse poderoso cetro de Salomão em minhas entranhas... E se

você contar a Ariam que eu estive aqui, você já sabe o que

vai acontecer...

O demônio saiu com a mesma suavidade com que entrou.

Fiquei ali desconcertado, entregue ao meu próprio destino.

O dia amanheceu e eu pedi para informarem a Ariam que eu

não passara bem a noite e que iria vê-la assim que estivesse

melhor.

Fiz minhas refeições no meu quarto e dentro de mim não

encontrava um pensamento ou ideia coerente. Tudo que eu

planejava acabava com um final infeliz.

Se eu contasse o que aconteceu a Ariam, ela entraria em

guerra contra Flávia e seria o caos. Se não contasse, teria

que conviver com a chantagem de Flávia.

Fugir seria uma alternativa, mas como fazer isso, sem

colocar em perigo a vida de minha amada? Se eu fosse

embora dali, talvez nunca mais pudesse retornar e o que

aconteceria a ela? Não... não a deixaria sozinha, nem por

um único instante. Não era isso o que eu queria fazer.

319

Mas, e se fugíssemos? Poderíamos começar uma nova vida

em algum lugar. Na Judeia? Não, lá seríamos perseguidos

também. Ninguém aceitaria que eu me casasse com uma

romana, muito menos com uma ex-virgem vestal

condenada. Talvez para Alexandria, no Egito, ou para

Atenas, na Grécia. Talvez, mas teríamos que viver ocultos,

pois lá também havia romanos que visitavam essas cidades

frequentemente. A beleza de Ariam logo seria notada e o

poder do Império iria alcançá-la e puni-la em qualquer

parte. Fugir para o Oriente poderia ser a opção mais lógica e

sensata, mas seria algo para ser feito por alguém de muitas

posses, pois eu mesmo só conseguira essa proeza por ter

sido patrocinado por Obadiah, a última pessoa no mundo a

quem eu recorreria para pedir ajuda naquelas condições.

Ele, assim como Malachai, me queriam solteiro para

realizar a missão de que tanto falavam.

Que fosse para o inferno qualquer missão. Minha missão

agora era fazer o que fosse para manter a minha amada viva

e ao meu lado, se fosse possível. Eu fui o homem

responsável pela violação de sua virgindade e era o

responsável por sua vida ou sua morte – essa última, eu

faria de tudo para evitar.

No dia seguinte, eu já estava mais calmo e decidi deixar

que as coisas fluíssem sem minha interferência imediata.

Fui encontrar Ariam e duas outras Vestais na sala principal,

onde havia compassos, astrolábios, réguas, mapas com

desenhos dos 12 signos do Zodíaco e alguns outros

pergaminhos que notei tratarem-se de astrologia.

320

- Espero que esteja se sentindo melhor, hoje, João – disse

Ariam, estudando-me com o olhar.

- Sim, mestra, sinto-me melhor. Acho que bebi muito vinho

ontem e acabei com uma indigestão.

- Isso acontece sempre. Quando for assim, avise-se e

mandarei preparar um chá de ervas para você. Hoje

estudaremos alguns números e a sua relação com os signos

do Zodíaco. O numero III representa que são três os tipos de

estados dos elementos na Natureza. Você poderia me dizer

quais são eles?

- Sim, é o estado líquido, o sólido e o gasoso – respondi sem

titubear, lembrando-me das aulas de ciências naturais dos

meus mestres em Alexandria.

- Muito bem. E quais são os três elementos essenciais que

estão sobre a terra, sem os quais não poderíamos viver?

- A água, o calor e o ar. A água existe nos rios, mares e

oceanos. O calor vem do sol e o ar está em toda parte, sem

esses três elementos não existiríamos.

- Isso mesmo. Por isso, o número três é um número

simbólico. Ele representa a completude em todas as coisas

que nos cercam. Veja, por exemplo, uma família; ela é

formada por pai e mãe, mas precisa existir uma outra pessoa

para que ela seja completa, para que tenha continuidade –

um filho ou filha. O número três aparece como essencial.

Você consegue se lembrar de mais algum exemplo em que

se verifica o número três?

321

- Sim, um mestre em Alexandria disse que existe um

triângulo do fogo.

- Nunca ouvi falar sobre isso, explique-nos, por favor.

- Segundo ele, para existir o fogo é preciso que existam três

elementos: o combustível, o material que é queimado e o

calor. Se faltar um desses três elementos, não pode haver

fogo.

- Pode nos dar um exemplo, João? Disse a Sacerdotisa-Mor,

demonstrando vivo interesse.

- Sim. Veja por exemplo aquela tocha apagada. Existe nela

uma estopa de algodão que é o material que será queimado.

O betume ou outro óleo que colocamos sobre ele é o

combustível e finalmente, para acendê-la, o calor que

trazemos de algum lugar.

- Por isso, nós a Virgens Vestais protegemos o fogo romano

para que nunca se apague. Todos os dias, colocamos o que

João acaba de nos dizer que se chama combustível. Assim

temos outra vez o três participando de algo tão fundamental.

Sem o fogo, sem o calor, nós morreríamos. Três é símbolo

de ressurreição, de renascimento, de criação, de

frutificação. A semente, depois que vai para o chão, precisa

de ar, água e calor para germinar. Os sábios quando querem

indicar a necessidade de pensarmos sobre tais coisas,

evocam o número três ou o representam em desenhos em

forma triangular. São três os reinos: animal, vegetal e

mineral. São três as divisões do tempo: passado, presente e

futuro. Também são três as partes do nosso corpo: cabeça,

322

tronco e membros. Aspectos da divindade são sempre três:

onipresença, onisciência e onipotência. O triângulo tem três

lados e cada lado simboliza os três estágios da vida:

nascimento, crescimento e morte. Todos os elementos estão

sujeitos a essas três fases.

- Ainda não havia percebido que o três fosse tão

significativo.

- Pois é, as pessoas só se dão conta mesmo quando

mostramos. No entanto, o três, assim como outros números

simbólicos estão bem aqui em nossa frente, por toda parte,

mostrando-nos a sua importância. Pitágoras foi um dos

sábios que mais estudou a relação dos números com a vida

humana. Você terá a oportunidade de estudar mais sobre

isso, se desejar, em cópias de livros que trouxe de

Alexandria.

Enquanto Ariam apresentava mapas astrológicos, mostrando

a relação entre os números e os astros, Flavia entrou na sala

trazendo vasos com suco de hortaliças. Ao aproximar-se de

mim, piscou um dos olhos e continuou distribuindo a bebida

sob o olhar vigilante de Ariam. Eu me sentia extremamente

incomodado com aquela situação. Ainda não tinha chegado

a uma decisão sobre o que fazer. Contar ou não contar a

Ariam? Se eu me silenciasse, estaria colocando a vida dela

em perigo? O que Flávia realmente queria? Punir a

Sacerdotisa-Mor? Ela teria alguma razão para isso? Que

razão poderia ser essa? Será que ela apenas queria se

aproveitar da quebra do voto de castidade de Ariam para ter

o direito de também quebrar o dela? Eu precisava saber

323

mais sobre aquela moça, antes de tomar uma decisão.

Precisava investigar sem despertar as suspeitas de Ariam.

- João, hoje você vai iniciar um processo de purificação. Já

faz um mês que você está aqui e já é o momento de avançar

no conhecimento – disse-me, Ariam.

- Processo de purificação? O que significa isso exatamente?

- A partir de hoje você irá para o claustro de purificação e

permanecerá lá por sete dias, apenas alimentando-se de

ervas e infusões. Nos primeiros dias, você sentirá alguma

fraqueza, mas depois seu corpo reagirá e você se sentirá

melhor. Não posso prever tudo que acontecerá lá, mas você

sobreviverá – completou ela com um sorriso que foi

acompanhado por todas as demais presente.

Concordei, embora contrariado, pois queria começar minha

investigação naquele dia e não teria mais tempo para fazer o

que precisava até sair do claustro. Também não podia contar

nada a Ariam, pois não sabia qual seria a reação dela e o

que faria diante daquela situação. Eu precisava ter

paciência.

O claustro da purificação era um quarto pequeno, com

paredes forradas com tapetes macios assim como o piso.

Havia almofadas espalhadas em todo canto. Não havia

janelas, apenas uma pequena claraboia no alto, por onde

entrava um réstia de luz. Havia uma pesada porta de

madeira que seria trancada por fora, logo que eu entrasse.

Na parte inferior, havia uma abertura por onde seriam

colocadas as minhas refeições diárias à base de ervas. Fui

324

informado de que na parte posterior do quarto havia uma

espécie de gaveta, contendo vasos feitos de cobre, onde eu

deveria fazer as minhas necessidades. Alguém, pelo lado de

fora, iria se encarregar de lavá-los diariamente. Uma

moringa com água também seria completada

frequentemente e por isso eu deveria deixá-la sempre na

pequena abertura existente na abertura do aposento.

- Isso mais parece uma prisão – disse eu sorrindo para

Ariam, que, junto com as demais Vestais, me conduziram

até o meu claustro, localizado nos fundos da morada.

- Sim, e é mesmo. Todos os cuidados são tomados para que

quem estiver ali não se machuque involuntariamente.

Quanto mais tranquilo você estiver, mas fácil será passar

por essa prova. Nunca deixe de tomar as bebidas que lhe

serão oferecidas, mesmo que sejam amargas e de sabor não

agradável. Você irá provar alguns cogumelos especiais e os

efeitos deles no seu corpo dependerão do que você carrega

em seu espírito. Não lute contra nada que vir ou ouvir. Não

tenha medo, apenas saiba que tudo passará. Se acontecer de

algo sair fora do seu controle, eu estarei aqui para ajudá-lo.

Senti uma irresistível vontade abraçá-la, mas não seria

aquele o melhor momento. Aceitei o meu destino e entrei na

minha clausura para passar os mais terríveis sete dias de

minhas vida.

No primeiro dia, me senti fraco, com náuseas e vertigens

constantes. Minha primeira noite foi em claro, ruminando

meus pensamentos. Quem sou eu? O que estava fazendo

ali? Eu estava louco? Estava preso para sempre por alguma

325

ninfa encantada? Não ouvia um único ruído externo, apenas

quando as minhas cuidadoras vinham colocar comida ou

recolher os meus dejetos. Nada falavam.

Os dias seguintes foram uma mistura de pesadelos

alternados por estados de extrema euforia, raiva, desespero

e dor. Uma dor profunda, insuportável, monstruosa. Eu

estava entrando no inferno. Era diferente do que pensei ter

sentido, quando adoeci na China. Era mil vezes pior. Minha

cabeça parecia ter dobrado de tamanho e eu achava que a

qualquer momento ela iria explodir. Comecei a gritar em

desespero, mas ninguém veio me socorrer. Debati-me

contra as paredes e só não me feri porque eram forradas por

grossos tapetes.

Houve um momento em que tudo serenou. Eu podia ouvir

as batidas do meu coração. Eu podia ouvir o som da minha

respiração e fui invadido por uma paz imensa. Era como se

eu estivesse me dissolvendo num oceano de luz. Não via

mais o meu corpo, apenas uma grande janela de onde era

possível contemplar o mundo. Eu era um pássaro voando

pelo firmamento, sobrevoando os mares, as montanhas e os

vales verdejantes. A luz do sol se desdobrava em centenas

de arco-íris e deles brotavam diamantes faiscantes que me

assombravam pela beleza. Ninfas vestidas em mantos

esvoaçantes e prateados corriam felizes sobre as nuvens,

sorrindo para mim e se perdiam entre as brumas. Ouvi sons

de mil harpas misturados aos de mil trombetas, as quais

eram sopradas por mil anjos. Todos me cercavam e

entoavam canções que caiam como gotas de prata sobre

uma imensa fonte de cristal.

326

Até hoje, quando me lembro daquelas visões, não tenho

certeza se foram apenas a minha imaginação incendiada

pelas ervas que eu bebia ou se de fato eu estivera

contemplando aquelas maravilhas. Aquilo deveria ser o céu.

Não havia outra explicação. Era daquele céu que falavam os

livros sagrados. Deve ser para lá que vão os que morrem, ou

quem sabe para o inferno, como dizia o Talmude.

Quando eu saí da minha clausura, sentia-me leve como uma

folha seca. Deveria estar muito fraco, pois caí aos pés de

Ariam quando ela veio ao meu encontro. Não me lembrava

de nada do que havia acontecido nos últimos dias. Eu havia

perdido a memória de tudo que tinha passado. Apenas as

lembranças do céu que eu havia experimentado, depois de

ter passado pelo inferno, estavam cintilantes em minha

mente. Eu queria voltar para lá. Não queria mais o mundo

do lado de fora. Ficar no céu era maravilhoso. Lá não havia

dor, nem sofrimento, nem morte. Tudo era perfeito.

Não sei por quanto tempo fiquei naquele estado de torpor,

entre o sono e a vigília. Lembro, vagamente, em breves

lampejos, que Ariam me aparecia e falava comigo e depois

partia. Parece que ela me fazia perguntas, mas eu não me

lembro quais foram as minhas respostas. Tudo era muito

confuso naqueles primeiros dias depois que eu saí da

clausura.

Até que um dia eu percebi que já conseguia me lembrar de

quase tudo. Ao recordar do que havia acontecido entre mim

e Flávia e do que precisava fazer para resolver o dilema,

descobri que já tinha a resposta para ele. Contaria tudo a

327

Ariam e deixaria que ela decidisse. Seja lá qual fosse a

decisão, eu estaria junto com ela.

Quando terminamos de cear na presença de algumas vestais,

indaguei a Ariam se podíamos continuar nossas lições de

astrologia na torre. Eu estava ansioso para contemplar

Vênus ou outros astros brilhantes naquela noite estrelada.

No entanto, ela me respondeu com uma certa frieza:

- Hoje não estou me sentindo bem e terei de me recolher

mais cedo. Amanhã, talvez.

Fiquei desconcertado. Será que ela não me amava mais? O

que teria acontecido durante aqueles dias em que eu estivera

no claustro?

Aproveitei o momento em que todas as vestais já haviam

saído da sala e apenas eu e ela terminávamos a ceia para

fazer-lhe algumas perguntas:

- Vocês todas já passaram pela claustro de purificação?

- Sim, todas nós já passamos. Algumas não resistiram e

tiveram que ser retiradas.

- O que aconteceria se eu não tivesse resistido?

- Sem passar pelo inferno ninguém pode alcançar o céu, é a

regra. O inferno são os medos, as dúvidas, o ódio, os

rancores e todas as coisas ruins que estão acumuladas

dentro de cada um de nós. Enquanto não nos purificarmos

delas, não seremos capazes de chegar ao céu. Quem não for

328

capaz de vencer essas coisas, permanecerá no umbral,

oscilando entre o céu e o inferno.

- Mas foram as ervas que vocês me deram que me

provocaram aquelas visões. É com chás de cogumelos que

as pessoas chegam ao céu?

Pela primeira vez depois que eu saíra da clausura, ela sorriu.

- Não, João. As ervas apenas ajudam a acelerar o processo

do conhecimento. Da mesma forma que o vinho deixa as

pessoas mais felizes e em outras causa um estado de

euforia, as ervas que te demos despertou em você as visões

que você teve. Suas visões são só suas e de mais ninguém.

Duas pessoas não podem jamais compartilhar de uma

mesma visão. É necessário que você compreenda isso.

Algumas pessoas chegam a esse estado pela meditação,

como no Oriente, e outras com jejuns e orações, como o seu

povo.

- Eu compreendo Ariam. Então você está me dizendo que o

céu não existe fora do nosso corpo e sim dentro de nós

mesmos?

- E o inferno também. Você o experimentou. Se você não

tivesse ódio, raiva, rancor, medo e tantas outras coisas ruins

no seu coração, como poderia senti-los? Por outro lado,

dentro de você também existe paz, compreensão, bondade e

amor, isso fez você experimentar o céu. Algumas pessoas

enlouquecem depois de experimentar os chás que abrem as

portas da percepção. Não estão preparadas para o que vêm

ou ouvem. Ficam presas para sempre naqueles lugares e não

329

terão mais contato com a realidade. Por isso, essa

experiência é perigosa para quem não está preparado. É

preciso limpar primeiro o coração e enchê-lo de paz e amor,

para entrar no céu com segurança e voltar à terra para

continuar vivendo.

Foi a palavra amor que me encorajou a fazer uma pergunta

que eu queria ter feito antes mas não fizera. Falei em tom

baixo para que apenas ela pudesse me ouvir, mesmo

sabendo que não havia mais ninguém na sala.

- Preciso saber se você ainda me ama, Ariam...

Ela baixou o olhar e levantou-se, fazendo sinal para que eu

a acompanhasse até a saída. Eu a segui.

Já do lado de fora andamos pelo jardim em volta da casa.

- Muita coisa aconteceu durante os dias em que você esteve

na clausura, Matias – falando meu nome que só era

compartilhado em nossa intimidade.

- O que aconteceu? Conte-me, por favor.

- Você se lembra da Flávia, a filha do senador?

- Sim, claro, me lembro. Não a vi desde que saí da clausura.

- Ela não está mais aqui. Na verdade, ela não está mais no

mundo dos vivos. Morreu alguns dias depois que você

estava no claustro.

330

Senti um golpe no peito, como se tivesse sido atingido pela

funda de meu irmão Calebe.

- Morreu?! Flávia morreu? Como assim? O que aconteceu?

- Ela foi encontrada morta em seu leito. Tudo indica que

cometeu o suicídio. Uma xícara com um poderoso veneno

misturado ao chá foi encontrada ao lado da cama dela.

- Suicídio? Isso acontece com frequência entre as Vestais?

- Sim, não é raro. Nos últimos dez anos, pelo menos cinco

moças desistiram de viver por alguma razão desconhecida.

Flávia tinha problemas desde que chegou. Sempre achava

que poderia ser a Sacerdotisa-Mor, apenas porque seu pai é

um influente senador romano.

- De quem é a decisão de escolher a Sacerdotisa-Mor?

- Em geral, ela é indicada pela Sacerdotisa mais antiga que

indica sua preferida e submete à votação de todas. Se for

aceita, se tornará a sucessora. Assim, logo que ela deixa o

cargo, a escolhida assume e o sistema continua até a eleição

da próxima que terá que cumprir suas funções até completar

30 anos.

- Compreendo. Você e Flávia tiveram alguma conversa

enquanto eu estava no claustro? – perguntei, para tirar uma

dúvida que começava a se instalar no meu coração.

331

- Sim conversamos. Converso com quase todas elas

diariamente. Qual a razão dessa pergunta? Tem alguma

coisa que eu deveria saber?

Embora eu tivesse receio em falar sobre o que acontecera

naquela noite porque não sabia que reação Ariam poderia

ter, decidi falar.

- Na verdade, tem sim. Eu queria ter contado antes de ter

ido para a clausura, mas não houve tempo.

Contei-lhe tudo. Ariam não esboçou qualquer sinal de

aborrecimento ou preocupação, mas me disse.

- Matias, eu tenho que te pedir algo agora e você não poderá

me negar. Faço isso pelo nosso amor. Prometa-me que você

atenderá meu pedido seja lá o que for... prometa-me...

Eu poderia prometer sim, mas não sabia se iria cumprir a

promessa.

- Diga-me o que quer que eu faça e eu o farei, se for para

salvar o nosso amor.

- Preciso que você volte para Alexandria imediatamente.

Mestre Malachai o espera.

- Mas... eu não deveria ficar aqui pelo menos por mais três

meses antes de regressar para Alexandria? Não foi esse o

acordo?

332

- Sim foi, mas as coisas se modificaram um pouco. A

família de Flávia não está satisfeita de ela ter morrido aqui

nesta casa e vai iniciar uma investigação. Sua estadia aqui

será questionada, mesmo que tenha sido autorizada. Outros

discípulos já estudaram aqui antes de você. No entanto, essa

morte prematura de uma Vestal poderá ser vista como um

mau presságio. Você é judeu e os romanos não gostam

muito dos judeus...

- Compreendo, vão achar que eu tenho culpa na morte de

Flávia, não é?

- Sim, poderão achar isso. Mas o pior é que Flávia, antes de

morrer, pode ter contado para outra pessoa. E se for assim...

- Se for assim, você será entregue. Você será condenada,

não será?

- Eu sei o que fazer e posso me proteger, mas você não

poderá. Se fecharem o cerco a você antes que alcance

Alexandria, tudo estará perdido para nós.

- Não deixarei você para trás, meu amor...

- Matias... Matias, escute-me... você precisa fazer o que

estou te pedindo. Mandarei selar um cavalo ao cair da tarde

e você partirá, protegido por dois guardas. Darei ordens

para que o coloquem no próximo navio que parte amanhã

cedo para o Egito. Prometa-me que você fará isso?

Senti as lágrimas queimarem a minha face. Uma vez mais o

chão me fugia sob os pés. Eu não tinha controle sobre a

333

minha própria vida. Parecia um jogo de xadrez que,

segundo o mestre Rajan, foi inventado por seu povo, no

qual, cada movimento de uma das peças do tabuleiro fazia

outras se movimentarem, criando um obstáculo ao meu

caminho. Cabia ao jogador superar os obstáculos para

vencer o jogo.

- Ariam, eu farei isso se você prometer que depois que eu

cumprir a minha missão ficaremos juntos, não importa

quanto tempo isso possa durar...

- Sim, meu amor, eu prometo.

- Tenho uma última pergunta para te fazer. Confiarei na sua

sinceridade. Preciso saber se você está envolvida com a

morte de Flávia... Bem, é que ela era uma ameaça a nós e

você pode ter descoberto o desejo dela por mim...

- Então você acha que eu seria capaz de assassinar uma irmã

por sua causa? Acha que além de cometer o pecado de

violar meu voto de castidade também cometi o pecado de

matar outra pessoa?

- Perdoe-me.. eu não sei. Realmente não sei. Só sei que se

você tivesse feito isso eu a perdoaria. Cheguei a pensar que

você teria mandando Flávia entrar em meu quarto para

testar a minha fidelidade a você. Pensei tantas coisas, mas

não posso ter certeza de nada.

- Não... eu não mandei Flávia ir ao seu quarto tenta-lo

naquela noite, nem a envenenei, como você supõe. Agora

que já tem a minha resposta, desejo que vá em paz. Você

334

cometeu um grande erro ao desconfiar de minha palavra ou

minha honestidade. Não sei se um dia eu o perdoarei por

isso. Quero que vá embora, conforme eu te pedi.

E, dizendo isso, ela afastou-se sem me olhar. Eu fiquei ali

parado no meio do jardim, desolado, sem saber o que fazer

ou para onde ir.

Não a vi mais e, ao cair da tarde, parti, conforme as

instruções dela. Já fora do portão, descendo a colina, olhei

para trás e tive a sensação de que ela estava lá a me

observar, como se quisesse se despedir de mim. Senti que

apenas meu corpo se afastava dali ao sabor do galope do

cavalo, mas meu coração havia ficado lá, no alto daquela

torre de ferro, nas mãos de minha amada Ariam de Glimeu,

a mulher que eu amaria pelo resto dos meus dias.

335

Capítulo XIII – O Retorno

A viagem, que durou quase dois meses até Alexandria, foi

tediosa. Parecia que nunca teria fim. Paramos em muitos

portos para deixar ou pegar cargas e depois partíamos outra

vez. Permaneci a maior parte do tempo encolhido em um

canto do navio, sem falar com ninguém, sem querer comer,

apesar da insistência do capitão do navio, um troiano

divertido que tentava de todas as maneiras me agradar. Eu

era a mais preciosa carga que ele transporta, dizia ele, e eu

deveria chegar são e salvo em Alexandria, ou não lhe

pagariam a outra metade do preço combinado.

Não sentia vontade de coisa alguma, além do desejo de estar

nos braços macios e aconchegantes de minha amada.

Se eu ao menos tivesse trazido algumas ervas, talvez as

usasse para mergulhar naquele paraíso e esquecer de tudo.

Eu sabia que era um grande sinal de fraqueza, mas quem se

importava. Eu era dono de minha própria vida, faria dela o

que bem entendesse. Por outro lado, eu também refletia que

o uso contínuo daquelas ervas se tornaria meu carrasco e eu

estaria condenado a viver em busca delas pelo resto da

minha vida, se ainda pudesse chamá-la de vida.

Dormia o maior tempo possível e comia quando realmente

não conseguia mais resistir aos apelos do capitão do navio.

336

Quando, do alto do caralho, o marinheiro gritou:

- Alexandria! Alexandria! Alexandria!

Despertei-me da minha letargia. Na embarcação houve

grande alvoroço. Já se podia ver-se ao longe a ponta do

farol de Alexandria. Meu coração, sem esforço, começou a

se sentir em casa outra vez.

O desembarque foi tumultuado. Uma mistura de cargas,

gente, animais, gritos de mercadores no porto. Eu estava

ansioso para rever meus amigos, o meu mestre, e poder

resolver tudo o mais depressa possível para voltar a Roma,

onde eu poderia ficar mais perto de Ariam e, quem sabe, se

tivesse sorte, esperar que ela terminasse seu tempo como

Vestal e pudesse casar-se comigo. Era tudo o que eu

desejava naqueles dias.

Vi o rosto de um ancião sorridente, caminhando apoiado em

um cajado, espichando o pescoço sobre os demais, na

esperança de me reconhecer, era do mestre Malachai, a

quem eu tinha como um verdadeiro pai.

Continuei caminhando com a intenção de passar por ele e

descobrir se ele me reconheceria do jeito que eu estava,

barbudo, 10 anos mais velho e vestido como um nobre

romano.

- João! João... gritou ele, vindo ao meu encontro.

Ele me reconhecera sem esforço.

337

Abraçou-me sorrindo, olhando-me de cima a baixo.

- Meu filho... meu filho querido. Que bom que você voltou.

Que bom. Vamos para casa, seus irmãos o esperam. Não

temos tempo a perder.

Eu estava ansioso para ter noticias deles.

- Como estão os meus irmãos? – indaguei. Tomé, Mateus,

Felipe, Judas e os demais, onde estão eles?

Mestre Malachai pareceu não ouvir. Talvez estivesse

ficando surdo. Continuou falando sobre como Alexandria

tinha crescido e como as coisas haviam mudado. O novo

governador queria ampliar a Biblioteca, construindo uma

segunda menor, para abrigar apenas cópias de livros muito

importantes, para o caso de uma enchente, terremoto ou

incêndio.

Esperei o momento de encontrar os meus irmãos, meus

velhos companheiros, mas não os encontrei.

Malachai conduziu-me para o local onde estavam várias

carruagens puxadas por cavalos e indicou para que eu

subisse ao seu lado. Deu instruções ao cocheiro e

disparamos na direção da saída da cidade.

- Para onde estamos indo, Malachai? Não vamos para a

nossa antiga casa?

338

- Não, João... faz algum tempo que saímos de lá. Agora é

morada de novos estudantes. Aqui em Alexandria é assim.

Chegam uns e partem outros. Vamos encontrar os nossos

irmãos essênios em uma vila fora da cidade.

Depois de duas horas de viagem, chegamos a um pequeno

castelo às margens do Nilo. Era uma construção primorosa,

feita de mármore branco e pedras, dois pavimentos e um

ancoradouro, onde havia um barco atracado. Curiosamente,

não havia muros. Um jardim com fontes e flores exóticas

circundavam a morada.

Um rapaz usando turbante veio nos receber à porta e nos

conduziu para o interior. Havia um grande pátio circular

gramado, tendo, ao centro, uma fonte que jorrava água da

boca de dois peixes voltados um contra o outro. Agora eu

estava observando com mais cuidado os símbolos à minha

volta. Também havia, ao fundo, estátuas de dois leões

sentados e, logo acima de uma porta que deveria ser a de

entrada para as dependências da casa, um triângulo com o

desenho de um olho ao centro.

Em volta do pátio, havia colunas que sustentavam o teto, o

qual não era totalmente fechado e deixava entrar luz por um

vão em forma circular, no alto, ao centro.

Havia exatamente 30 pessoas no recinto, entre homens e

mulheres. Entre elas, estavam todos os demais

companheiros que vieram de Jerusalém, exceto um que

estava doente. Apenas os cumprimentei com um sorriso e

339

senti-me no lugar que me fora designado. Foi um homem

em idade avançada, que parecia ser o Sacerdote-Mor da

fraternidade dos essênios, que, após fazer uma breve oração

ouvida por todos, disse:

- Irmãos e irmãs, este é um momento especial de nossas

vidas. Durante muitos anos, aguardávamos por ele. O

discípulo que alcançou o mais alto nível de conhecimento e

sabedoria nos 17 anos de aprendizagem está entre nós para

receber a missão que foi designada a ele quando ainda era

uma criança aprendiz de escriba lá em Jerusalém. Embora

acreditássemos que ele fora o escolhido, não tínhamos

certeza de que ele conseguiria vencer as duras provas que

teve de enfrentar para chegar até aqui. Por isso, trouxemos

mais 12 discípulos igualmente capazes para substituí-lo,

caso ele desistisse ou falhasse. Para a nossa satisfação, o

escolhido cumpriu todas as etapas, ultrapassando-as,

inclusive. Ele agora saberá qual é a missão que terá que

cumprir, pois o Senhor assim o requereu. João, por favor,

levante-se e sente-se no centro desta sala, 7 mestres te farão

algumas perguntas para terem certeza de que você está

preparado. Embora você tenha sido o escolhido, não será

obrigado a cumprir a sua missão. Se resolver renunciar a

ela, procederemos ao sorteio entre os doze outros que

também poderão cumpri-la.

Eu esperara por aquele momento por toda a minha vida.

Sabia que seria algo grandioso e que ajudaria a mudar o

mundo, eu só não sabia dos detalhes e certamente eles me

340

seriam revelados naquele dia. Um dos mestres, que parecia

ser de origem grega, começou fazendo-me perguntas sobre

os filósofos gregos, a minha opinião sobre eles, o que eu

tinha aprendido sobre Heródoto, Aristóteles, Pitágoras,

Sócrates e Platão. Esclareci ponto por ponto, com total

firmeza e segurança.

Para finalizar, ele perguntou:

- Você avalia que se o mundo fosse governado segundo os

princípios e ideais dos gregos que você estudou seria mais

justo e melhor?

- Sim – respondi sem titubear. O filósofo Sócrates, por

exemplo, conclamava aos cidadãos gregos e a todos os

homens a quem ensinou: “Conhece-te a ti mesmo”. Ele

defendia que, antes de tudo, devemos conhecer a nós

mesmos. Para ele, quanto mais o homem conhecesse a si

mesmo, mais poderia usar o poder que possuía, poderia

corrigir seus próprios erros e tornar-se um ser humano

melhor. Para ele, a verdadeira descoberta estava no interior

da alma humana e não fora dela.

Vários sábios e eruditos me fizeram perguntas sobre

assuntos que eu havia aprendido ao longo de minha

peregrinação pelo mundo. Não tinha certeza se estava me

saindo bem, mas me esforçava para não deixar uma única

pergunta sem resposta. Algumas provocavam gargalhadas

na plateia.

341

Depois foi a vez de um mestre que falou em latim. Eu nunca

o havia visto antes e, seguramente, era um doutor em leis

romanas e dominava com profundidade a história dos

povos. Ele fez inúmeras perguntas, muitas das quais não me

recordo com exatidão, mas posso mencionar parte do debate

que tivemos naquele dia.

- Você acredita que todos os romanos são maus ou apenas

alguns governantes?

- Não posso julgar a todos os romanos, mas sei que existe

um grupo de homens chamados Senadores e são eles que

aprovam ou rejeitam a maior parte das decisões do

imperador. Quem elege os senadores são pessoas do povo.

Eles alegam que o governo deve servir ao povo, mas, na

prática, é o povo que os serve. É o povo que acaba sendo

massacrado pelos erros que eles cometem.

- Você é judeu, nasceu em uma família judia. Você entende

que as terras que os seus ancestrais, Arão, Abraão, Moisés,

Davi e Salomão conquistaram teve algum valor para o seu

povo?

- Depende de quem era esse povo. Sei que, ainda hoje, os

grupos se dividem e cada um deles quer dominar e subjugar

o outro. Na minha avaliação, as tribos deveriam repartir as

terras, os recursos, entre si, de acordo com as necessidades

de cada um.

342

- Você acredita que todos aceitariam de bom grado fazer

uma divisão? Como fazer com que cada pessoa se conforme

com a parte que lhe cabe e não deseje mais do que é

necessário para si ou sua família?

- Entendo que precisam ser criadas leis mais rigorosas nesse

sentido. Os governantes deveriam cuidar disso – respondi.

- Governantes? Quais governantes? Os que invadem as

nações alheias e tomam tudo? Veja aqui nesta sala, estão

lado a lado, romanos, egípcios, gregos, troianos, etruscos e

outras nações. Como acha que conseguimos esse milagre?

- Eu sinceramente não sei.

- Pois deveria saber. De que valeu toda a sua aprendizagem

viajando pelo mundo, recebendo orientação dos melhores

mestres, se você não sabe como as pessoas podem trabalhar

juntas pelo bem comum?

- Penso que elas se juntam para se tornarem mais fortes.

Assim, apresentam ideias semelhantes que contribuam para

mudar as leis e os governos. É isso mesmo?

- Sim, essa é a melhor resposta, João. Você acha que um

grupo como o nosso será capaz de mudar a vontade de um

Imperador, obrigá-lo a nos deixar em paz e ficar dentro do

próprio território? Você acha que bastará que nós peçamos a

eles que saiam do Egito e de tantos outros lugares que já

invadiram, para que eles o façam?

343

- Creio que, com persistência, buscando a união do povo,

talvez consigamos.

- O povo! sim o povo, que mal sabe de que lado sopra o

vento. O povo é manipulado, enganado, conduzido pelos

que têm poder. Basta que lhe acenem a promessa de

melhorias e o povo os segue até a morte. O povo não vai se

juntar a um bando de iluminados como nós que nem mesmo

somos aceitos no nosso país de origem.

- O senhor então acha que existe uma outra solução?

- Parece que você aprendeu bem a arte da retórica, não foi?

Todos riram.

- Tive um bom mestre, Dardanus, o grego.

- Ele deveria estar aqui também hoje, mas não está.

Precisamos de homens e mulheres capazes de nos apoiar na

grande empreitada que estamos prestes a realizar. Mas é

preciso que você saiba que ela depende de sua decisão. A

sua missão lhe será entregue hoje, porém será necessário

que você faça o Juramento Sagrado dos Essênios. Você

acredita que está apto para fazê-lo agora?

- Posso pelo menos saber sobre a que irei jurar?

- Você vai ouvir as palavras do Sumo Sacerdote e as

repetirá. Caso não se sinta confortável, não aceite, ou tenha

344

dúvida, não precisará repetir e a cerimônia será encerrada.

Outro discípulo será escolhido por sorteio. Está bem assim?

O que tinha eu a perder? tudo o que eu mais queria era

cumprir logo a minha missão e voltar para Roma. Lá eu

tinha a única missão que queria cumprir pelo resto de minha

vida, viver feliz ao lado de minha amada.

Em seguida, fez-se um grande silêncio e uma cortina se

abriu, saindo de trás dela a figura de um homem idoso, alto,

longa barba branca dividida em duas partes que alcançavam

o peito. Usava uma túnica branca de seda e no peito havia

um medalhão com inscrições que eu não consegui ler. Nos

braços, usava braceletes de ouro e, na mão direita, um anel

de prata com uma esmeralda engastada. Com andar altivo,

ele caminhou até o centro da sala onde eu estava assentado,

aproximou-se de mim e segurou-me com as duas mãos,

olhando-me nos olhos.

- João, eu sou o Sumo Sacerdote da fraternidade dos

Essênios. Você já deve ter ouvido falar em meu nome. Sou

Obadiah, o responsável por sua educação e preparo para a

missão que lhe será dada após o seu juramento. Está

preparado? – disse ele, com voz grave, pausada e profunda.

- Sim, eu estou - disse eu, um pouco trêmulo, diante

daquele homem imponente.

- Então ajoelhe-se e repita comigo, conforme já foi

orientado pelo mestre de cerimônias.

345

Ele prosseguiu, colocando a mão esquerda sobre minha

cabeça e a direita sobre o coração, pedindo-me para que eu

colocasse a minha direita sobre meu peito e a esquerda

sobre a testa, com a palma voltada para fora.

- Eu juro em nome de Deus, em nome dos anjos, em nome

dos seres que habitam o invisível que, de hoje em diante,

serei um guardião da tradição dos Essênios e tudo farei para

aprender mais sobre seu modo de viver, respeitando suas

tradições e ensinamentos.

Repeti frase, após frase, confirmando o juramento.

- Juro que jamais relevarei a quem não pertencer à

fraternidade qualquer ensinamento, decisões ou

mandamentos que não forem autorizados pelo Sumo

Sacerdote, depois de ouvir o conselho.

- Juro que não comerei alimentos mortos de origem animal

de nenhuma espécie, a não ser em caso de extrema

necessidade de sobrevivência.

- Juro que lutarei para proteger o reino animal, vegetal e

mineral, conservando-os para uso de todos.

- Juro que não acumularei bens a não ser aqueles que

possam ser usados para obras de aprimoramento espiritual e

voltados para as ciências naturais. Repartirei sempre com os

que necessitarem o que herdar ou receber de outrem.

346

- Juro que jamais molestarei crianças, doentes, grávidas ou

idosos, nem cometerei qualquer ato de violência contra

quem quer que seja, a não ser em legítima defesa dos que

necessitarem serem defendidos.

- Juro que cumprirei todas as missões que me forem

designadas, as quais serão determinadas pelo conselho, e

guardarei sigilo sobre elas enquanto viver. Não as revelarei

a nenhum membro de minha família, pai, mãe, filhos,

irmãos ou quaisquer outros, sob pena de ser banido da

fraternidade, ter os meus bens confiscados e distribuídos aos

que necessitarem, como punição pela quebra do juramento.

- Assim sendo, eu, 25º Sumo sacerdote da Ordem dos

Essênios, declaro que João da Judeia está sendo consagrado

como membro da nossa fraternidade e deverá ser aceito,

respeitado, ajudado e amado em qualquer parte que for

encontrado.

Todos proferiram em uníssono: que assim seja!

Os participantes da cerimônia vieram me cumprimentar,

incluindo meus velhos amigos, então já adultos como eu.

Choramos todos juntos naquele reencontro memorável.

Cada um tinha perguntas para me fazer, histórias para me

contar. Eu prometi que teria tempo para falar tudo o que

tinha me acontecido – ou quase tudo. Também queria saber

das suas histórias.

347

O Sumo Sacerdote determinou que, depois dos

cumprimentos, todos voltassem aos seus lugares e apenas eu

permanecesse ali, pois naquele dia eu receberia a minha

missão.

Todos aguardaram em silêncio e o ancião, dirigindo-se a

mim, indagou:

- Irmão, você está disposto a cumprir a missão que temos

reservado para ti desde muitos anos?

- Sim, mestre – respondi.

- Então essa será a sua missão. Logo que tenhamos tudo

resolvido, o que não deve demorar mais que um mês a partir

de hoje, você será levado de volta para Roma, será recebido

por Vipsânia Agripina, mulher do Imperador Tibério

Cláudio Nero César.

Fiquei atordoado.

- Vipsânia Agripina!? A esposa do Imperador Romano? Por

quê? O que farei lá?

- Sua missão é granjear a confiança de Agripina, pois você

foi indicado por um dos nossos, que é professor do pequeno

Júlio Cesar Druzo, filho deles. Se for aprovado por

Agripina, você também será mestre dele. O menino precisa

aprender a escrever para se tornar doutor como você. Seus

conhecimentos de filosofia, de história, astrologia,

348

numerologia e tantos outros conhecimentos impressionarão

Agripina e ela provavelmente o aceitará.

- Mas eu sou judeu... acha que eles me aceitarão para

ensinar o próprio filho?

- Você não é mais judeu, João. Você foi criado pelo mundo,

já perdeu a sua identidade e já nem fala como um judeu da

Palestina ou da Judeia.

- E qual é o objetivo dessa missão? O que deverei ensinar ao

menino, se for aceito?

- Você deverá ensiná-lo o que aprendeu. Ele crescerá vendo

o mundo por seu olhos. Você lhe contará histórias, você o

ensinará como ninguém e ele crescerá pensando diferente

do pai. Quando chegar ao trono, Roma estará sendo

governada por um homem que tem princípios, não por um

bárbaro selvagem e dominador.

- Mas ele sozinho não poderá mudar o estado de ganância e

crueldade que se instalou no coração dos generais e até dos

senadores que seguem o Imperador.

- Sim, mas estamos trabalhando nessa direção. Hoje temos

mais de 100 escribas como você e os seus irmãos,

conhecedores de todas as ciências do passado e do presente.

Todos capacitados para serem professores. Quanto a vocês

13 que estão aqui, seguirão apoiando uns aos outros em

Roma e lá permanecerão até que tudo esteja concluído.

349

Receberão orientações de meus emissários sempre que for

necessário realizar alguma ação de emergência. Eles se

identificarão a vocês mediante a apresentação da figura de

um peixe.

- Um peixe? Uma marca no próprio corpo?

- Não apenas, João – pode ser até mesmo uma pintura

discreta, um pingente preso à uma pulseira ou colar, um

anel ou argola. Um entalhe em um bracelete, como este que

você está usando agora, ou mesmo um desenho rabiscado na

areia. Esse será o sinal para que você saiba que o portador é

um dos nossos. Se você, algum dia, tiver dúvida se o

emissário é um dos nossos, deve perguntar a ele quantas são

as tribos de Israel. Se a resposta for doze, é um impostor.

Se, no entanto, a pessoa disser que são treze, então é um dos

nossos. E, se ainda assim persistir a dúvida, pergunte ao

emissário quantas vezes se deve perdoar um irmão. A

resposta deve ser 70 x 7. Por isso jamais revelamos nossos

segredos a quem não fez o juramento aqui. Alguém fora do

nosso grupo poderia usar esses códigos para nos confundir

ou destruir. Não se esqueça disso.

- Está bem, mestre – respondi, buscando memorizar aquelas

valiosas informações. O ancião prosseguiu.

- Seus irmãos, da mesma forma que você, irão para Roma,

onde ensinarão os filhos dos generais, dos senadores e dos

demais homens e mulheres influentes do Império. Em

breve, florescerá uma nova geração de pessoas com

350

capacidade para pensar melhor, de modo mais inteligente,

buscando propiciar melhor qualidade de vida a todos. Sua

missão é a mais importante porque você terá em suas mãos

o futuro Imperador Romano. Você será o responsável pela

formação dele. Você terá a missão de fazê-lo pensar como

você. Essa é a sua grande missão.

- Vocês querem me dizer que fui escolhido para fazer isso

desde o tempo que vivia em Jerusalém com os meus pais?

- Sim, nós sempre procuramos meninos que despontam

grande inteligência desde os primeiros anos de vida. Você

foi descoberto pelo seu antigo mestre Abner. Ele e outros

membros da fraternidade essênia o conheceram e

confirmaram seus dons para falar, escrever e aprender. Você

foi escolhido para ser o educador do próximo Imperador

Romano. Essa será a nossa única saída para mudar,

definitivamente, essa forma de administração que esmaga os

povos oprimidos.

- Sou totalmente contra essa forma de agir! – berrou um dos

anciões que estava ao lado do mestre Malachai.

- Sabemos da sua opinião, mestre Neemias. Sei que essa

decisão não é unânime aqui, por isso temos um conselho. E,

como o senhor sabe, essa opção foi a vencedora no

Conselho dos 13 com oito votos a favor e cinco contra.

- Esse método de tartaruga não levará a nada. Enquanto os

filhos dos imperadores estiverem recebendo educação e se

351

preparando para ser um novo governante, nosso povo estará

sendo massacrado, torturado e morto. Precisamos fazer

alguma coisa agora. Precisamos intervir agora mesmo. Não

podemos esperar mais tempo.

- Irmão, você sabe que o uso da força bruta pode escravizar

por um tempo, pode manter um povo dominado, mas um

dia a revolta surgirá, como ocorre com um domador que

mantém um leão aprisionado, que bastará um único

descuido e a fera lhe arrancará a cabeça – rebateu o Sumo

Sacerdote.

A discussão se tornou acalorada e eu comecei a sonhar com

o meu retorno para Roma. Eu recebera uma missão das mais

nobres e grandiosas que um judeu poderia receber.

Qualquer homem na Terra gostaria de dizer que foi o

professor de um Imperador e melhor seria se ele fosse

alguém de coração bondoso, libertador dos pobres e

oprimidos. Eu agora entendia o significado oculto das

palavras do mestre Abner quando me disse: “Você foi

escolhido para nos ajudar em uma tarefa que só alguém com

a sua habilidade em manejar as palavras, memória

prodigiosa e poder de criação, poderá realiza-la com

facilidade. O trabalho que você terá que fazer é imenso, mas

você será recompensado por isso”.

Agora eu podia ver com mais clareza que não se tratava

apenas de escrever um livro, mas mudar o curso da história

do povo judeu, libertando-o da opressão, por meio da

352

mudança dos governantes. Eu teria o poder de influenciar a

mente de uma criança que se tornaria Imperador para que,

ao fim de algum tempo, ela realizasse o que tanto

desejávamos. Não deveria ser com o uso de lanças e

espadas que iríamos conquistar a nossa liberdade e ajudar a

libertar outros povos. Seria com o uso da inteligência, por

meio da filosofia e da ciência.

Lembrei-me de que, em outra ocasião, quando estava

visitando pela primeira vez a comunidade dos essênios no

deserto, o mestre Abner me apresentou a todos e falou: ”Ele

aprenderá as mais variadas ciências e será o escriba que nos

ajudará a escrever uma nova história para o nosso povo e

para o mundo que tanto necessita de algo novo para mudar

o destino da humanidade”. Sim, ele estava certo. Mudando

o pensamento do Imperador Romano, o qual teria nas mãos

o poder sobre grande parte do mundo, eu teria feito o meu

trabalho. Teria concluído a minha missão. E como bem

dissera o mestre Abner, meu nome não iria aparecer, eu não

ficaria conhecido no mundo, mas os meus irmãos saberiam

que eu fora o escolhido.

Depois de concluída a reunião, que nem me lembro mais

como terminou, eu sorria por todos os cantos da boca e fui

abraçar meus companheiros. Todos estavam felizes em me

rever. Judas nem mais parecia o mesmo. Estava um pouco

calvo e bem mais magro que a maioria dos outros que

estavam fortes e bem nutridos. Foi Judas que me fez a

pergunta que deixou a todos surpresos.

353

- E então João, você encontrou alguma deusa grega ou

romana em suas viagens?

Eu não podia compartilhar o meu segredo com ninguém. Eu

havia encontrado sim, só que era uma mulher proibida, era

uma Virgem Vestal que eu condenara à morte. Naquele

momento, meu coração entristeceu ao pensar que meu

segredo não poderia ser relevado a ninguém.

- Mulheres lindas, maravilhosas, verdadeira deusas... sim,

encontrei muitas... – respondi com animação.

- Muitas?! E quantas encontraram você? Na verdade, você

só precisava escolher uma e trazê-la com você, João – disse

Tomé, em tom de zombaria.

- Você sempre duvidando, não é Tomé? Mas você está

certo, eu só precisava encontrar uma, mas ainda não chegou

o momento certo. Um dia, quem sabe. Indo viver

definitivamente em Roma, eu provavelmente encontrarei a

minha princesa, casarei-me com ela e teremos muitos filhos.

Durante a grande ceia que Obadiah ofereceu a todos os

convidados, cada um dos meus colegas contaram suas

aventuras pelo mundo. Alguns haviam passado pelas

mesmas cidades em que passei e ido até mais longe no

Oriente. Simão Pedro havia morado mais de um ano em

Roma e lecionado nossa língua a filhos de senadores. André

viajara por todo o Egito e Pérsia, era especialista em história

dos povos e religiões. Tiago, filho de Zebedeu, tornara-se

354

professor de matemática e ciências. Ficara quase dois anos

em Atenas e Esparta, estudando com os mestres gregos.

João de Betsaida tornara-se matemático e mestre em

ciências; Filipe e Bartolomeu eram rabinos e conhecedores

de vários livros sagrados. Tinham viajado pela Índia e

China. Tomé era especialista em artes navais e excelente

músico. Mateus tornara-se habilidoso comerciante e era

doutor em leis; Tiago, filho de Alfeu e Judas Tadeu,

tornaram-se mestres em engenharia e agricultura. Simão

havia viajado por muitos países do ocidente, indo até a

Antióquia, Síria e Cecília, era especialista em estratégias

militares e Judas Iscariotes havia estudado várias línguas,

era doutor em astrologia e história egípcia.

Enfim, depois de tantos anos, meus doze companheiros e eu

estávamos outra vez reunidos. No entanto, percebi que nem

todos estavam satisfeitos com o plano. Simão era um deles.

- João, eu acho que não podemos esperar tanto tempo para

libertar o nosso povo. O mestre Neemias tem razão. Estou

do lado dele e de todos que acreditam que precisamos

enfrentar os romanos com todas as nossas forças. Disse-me

ele, buscando apoio em mim.

- Eu compreendo Simão, você é um guerreiro, agora é um

mestre em estratégias de guerra, você é filho de um zelote,

da mesma ideologia de meu pai. Mas pense grande, pense

alto, pense longe. Não temos armas...

- Poderemos comprá-las... tomá-las.

355

- Vê, você acabará fazendo exatamente o que hoje condena.

Você deve saber que só se combate uma ideia com outra

melhor. Nós precisamos oferecer uma mudança real ao

povo. Não podemos instigar vingança, ódio ou revolta. O

mal só atrai o mal.

- Isso é tudo filosofia dos fracos. Você parece se esquecer

que Javeh sempre lutou ao nosso lado...

- E onde está Javeh agora? Do lado dos romanos? –

indaguei, contra atacando.

- Eu não sei... realmente não sei. Será que não fomos

punidos por nossa falta de fé?

- Ou de harmonia entre nós mesmos?

Simão se calou e não disse mais nada. Eu podia notar que

ele, assim como outros dois companheiros, não estavam

satisfeitos com a decisão que fora tomada. Consideravam

que não tinham tempo para esperar que o Imperador Tibério

Cláudio Nero César morresse e que seu filho, orientado por

mim e por outros emissários, assumisse o trono e decidisse

mudar a história do nosso povo. Talvez eles tivessem razão,

mas eu tinha que tentar. Gostava da ideia de estar em Roma

e ao lado de Ariam. Oito anos se passariam rapidamente. Eu

esperaria por ela, mesmo que fosse por uma eternidade.

Por algumas semanas, esqueci da minha missão, das minhas

responsabilidades e preocupações. Além de frequentar

356

regularmente a biblioteca de Alexandria e mergulhar nas

mais edificantes leituras de minha vida, eu sempre saía para

nadar ou navegar com meus amigos pelo Nilo, visitando as

vilas ribeirinhas. Havia fartura em toda parte. Os plantios de

pomares, hortas e cereais eram abundantes nos arredores da

cidade e havia trabalho para todos. Os egípcios construíram

canais que levavam água abundantemente para as regiões

mais secas, irrigando o plantio. Desse modo, era possível

cultivar em terras que antes eram desérticas.

Quando eu estava sozinho, ficava de olhos abertos olhando

o céu estrelado e lembrando que aquele era o mesmo céu

que meses antes eu aprendera a contemplar do alto da torre

na casa das Virgens Vestais. O que será que Airam estaria

fazendo naquele momento. Será que pensava em mim? Será

que havia perdoado e esquecido a velada acusação que eu

lhe fizera em relação à morte de sua companheira Flávia?

Eu não deveria ter desconfiado dela. Não deveria sequer ter

pensado sobre aquela possibilidade, pois Ariam se revelara

uma mulher generosa, bondosa, uma verdadeira deusa

incapaz de causar qualquer mal a alguém. Ou será que as

deusas também poderiam causar algum mal como matar,

por exemplo? Javeh não hesitava em matar ou mandar

matar aqueles que lhe desobedeciam. Será que Ariam

recebera, da deusa Vestal, ordem para matar quem a

ameaçasse? Será que ela não quis compartilhar aquela morte

com receio de que eu não mais a amasse? Se fosse assim,

ela deveria ter confiado em mim. Eu não só a perdoaria,

357

como também a defenderia, se fosse preciso, com a minha

própria vida.

Queria ir logo para Roma. Parecia que tudo que eu

aprendera com os mestres Chen e Rajan não me serviam

para nada naqueles momentos de dúvida e angústia. Eu

havia aprendido a serenar a mente, evitar os pensamentos

que pudessem me trazer ansiedade, preocupação, medo ou

desejo. Se eu conseguisse tal proeza, eu estaria em paz

comigo mesmo e seria um homem tranquilo e

imperturbável. A verdade é que eu gostava de pensar em

Ariam e queria resolver os problemas imaginários. Com

isso eu roubava a minha paz de espírito, passava as noites

em claro e até me desconcentrava nas minhas leituras.

O que estava acontecendo para eu ter de esperar tanto

tempo? Porque não chegava logo a ordem para eu embarcar

para Roma?

Foi o mestre Malachai que, um dia, vendo-me aflito, me

informou que eu viajaria naquele fim de semana. Estavam

esperando que passassem as fortes chuvas da estação. Não

era seguro viajar por mares revoltos. Naquelas condições,

muitas embarcações encontravam seus destinos no fundo

dos oceanos.

Com efeito, dois dias depois, ele me avisou que eu deveria

partir na companhia de Simão, os demais iriam ao longo do

ano. Não poderíamos levantar suspeitas. Todos que

chegavam a Roma eram registrados e devidamente avaliado.

358

O Império não queria ter surpresas desagradáveis, pois

havia muitos mercenários e espiões com más intenções

desejando entrar no país inimigo. Embora todos nós

fôssemos bem recomendados, poderia despertar suspeitas,

13 mestres e doutores vindos de Alexandria desembarcarem

de uma só vez em algum porto do Império Romano.

Obadiah conhecia as artimanhas da política e do poder. Por

isso, deu ordens para quem viajássemos de dois em dois, ou

de três em três, no máximo, por vez. Assim, em um ano,

todos estaríamos ocupando posições de influência na

sociedade romana e instruindo os futuros governantes. Eu

me encarregaria do filho do Imperador.

Sentia o coração palpitando, quando me despedi do meu

querido mestre Malachai e dos demais que foram ao porto

se despedirem de mim e me levarem seus presentes.

- João, nesse pote tem tinta para você reescrever o Talmude.

Vê se faz bom uso dele, disse-me, Judas Tadeu, entregando-

me seu presente.

- Meu irmão – disse-me, Tiago – aqui nessa caixa estão as

mais finas penas de todo o Egito. Você poderá escrever

letras da espessura de um fio de cabelo...

- Que não seja do meu que é crespo – disse, Simão –

desatando-se a rir.

Era maravilhoso ver todos os meus amigos de infância ali

reunidos nos desejando uma boa viagem. Fizeram uma

359

fervorosa oração, nos abraçamos, choramos e partimos. Em

um mês, se não houvesse muitas paradas pelas ilhas,

chegaríamos ao porto de Napoli e de lá seguiríamos por

terra até a capital do Império.

360

361

Capítulo XIV – Uma Mudança de Rumos

Simão Pedro, meu companheiro de viagem, era muito

divertido e entretinha a todos contando histórias e suas

aventuras nas viagens pelo ocidente. Sua pele escura e seu

cabelo crespo indicavam que seus ancestrais pertenciam à

Tribo de Dan, uma das dozes de Israel. Eu gostava dele,

talvez mais do que dos demais colegas, porque se parecia

com meu irmão Calebe, exceto pela cor da pele.

Ao pensar na minha família, sempre tinha dentro de mim

uma grande interrogação. Onde estariam eles? Como estaria

a minha mãe. Ela teria aceitado a proposta do tio Eliabe? O

que fora feito de meu pai? Era curioso como depois de

tantos anos as coisas pareciam muito menos complicada e

mais fáceis de resolver.

Quando perguntei ao mestre Malachai sobre meus

familiares, a resposta foi vazia. Ele desculpou-se, dizendo

que não tinha notícias de Jerusalém há muito anos e que,

provavelmente, todos estariam bem. Tive que aceitar. Da

mesma forma que se passou comigo, nenhum dos meus

colegas haviam voltado lá. Havia expressa proibição que

qualquer um de nós mantivesse contato com a nossa família,

para evitar problemas com os romanos. Se alguém

descobrisse os planos dos essênios no futuro e nos ligasse

aos nossos familiares, eles sofreriam as consequências.

O navio em que Simão e eu viajávamos era de grande porte

e transportava todo tipo de carga, recolhida em diversos

portos, para abastecer a capital do Império. Roma e

Alexandria eram as duas grandes capitais da época e

362

maiores compradoras. Durante nossas viagens, cruzávamos

com centenas de embarcações de todos os tipos, desde

esquadras de romanos que patrulhavam e guardavam os

navios mercantes contra piratas que infestavam os mares

naquela época em busca das preciosas cargas, a grandes

navios de carga.

Muitos navios levavam os mais variados tipos de alimentos

como trigo, cevada, sal, peixe seco, frutos, vinho, azeite e

especiarias, as quais, por vezes, tinham mais valor que o

próprio ouro e vinham do Oriente assim como os perfumes.

Grandes embarcações levavam mármore, instrumentos para

serem usados na agricultura, madeira, ferro, estanho, cobre,

ouro, prata, resina, breu e betume.

Via-se, também, inúmeras embarcações que seguiam para

Roma levando animais para o Circus Máximo, leões, tigres,

elefantes, macacos, papagaios e muitos outros.

O mar, naquela época do ano, permitia uma navegação

tranquila. Mas, quando se distanciava do continente, vez por

outra, éramos apanhados por tempestades violentas que

requeriam esforços da tripulação e do comandante para

manter o nosso barco estável até atracarmos no porto mais

próximo, para esperar que as condições do tempo fossem

favoráveis para continuar a jornada.

Em uma madrugada, fui acordado com gritos vindo do

tombadilho. O marinheiro que estava no alto do mastro vira

relâmpagos muito fortes ao norte e a aproximação de uma

grande tempestade.

Ouvia-se o capitão gritando ordens à tripulação.

363

As velas teriam que ser baixadas, pois os ventos fortes

poderiam quebrar os mastros e rasgar as velas, o que nos

deixaria fora de controle. Navegaríamos ao sabor das

correntezas e contra as rochas traiçoeiras que existiam

naquele mar. Eu podia sentir que as ondas do mar batiam

contra o casco do nosso navio, fazendo-o ranger.

Simão, que estava sempre ao meu lado e não perdia a

oportunidade de brincar, ao seu modo, tentava me distrair.

- Você não aprendeu a nadar no rio Jordão? Sempre se

gabou de ser um excelente nadador e mergulhador, agora

terá a sua chance de provar isso.

- Deixe de brincadeiras Simão, nessa hora não seria melhor

estarmos orando para Javeh nos proteger?

- Não seria melhor orar a Netuno, o deus dos Oceanos? –

disse ele, sorrindo.

- Você também acredita em deuses gregos ou romanos?

Virou um idólatra?

- Claro que você sabe do que eu estou falando, João. Não

são os deuses que nos protegem, como costumávamos

pensar, somos nós homens que devemos nos preparar para

enfrentar os nossos próprios desafios. Já pensou se os

deuses ficassem todo o tempo interferindo em nossos atos, o

que seríamos? Uma marionete como as do teatro grego ou

coisa pior. Veja por exemplo os animais. Quando foi que

você viu um deles orando para obter alguma coisa?

- Eles não precisam, pois Deus os protege de todo o mal...

364

- Protege de todo o mal? E porque os animais são melhores

que nós? Nós precisamos pedir a Deus ou, como querem os

gregos, egípcios ou romanos, aos deuses, para nos proteger.

Eu te digo que todos somos iguais. Todos, meu irmão. A

aranha faz a sua teia para apanhar as moscas e não existe

um deus-mosca para protegê-las da viscosa teia da aranha,

ou terá a aranha uma deusa-aranha também para lhe mostrar

onde apanhar moscas suculentas?

Simão era assim. Direto, objetivo, claro. Eu também

pensava como eles às vezes, mas, quando voltava ao

convívio com meus irmãos essênios que preservavam ainda

a religião do nosso povo, retornava aos velhos conceitos do

Talmude. Eu queria ter a liberdade de Simão para conciliar

os dois conhecimentos. Ele poderia estar certo, mas as

pessoas precisavam se agarrar a alguma fé, algum princípio,

para seguirem suas vidas. Uma tábua de salvação, para

quando os mares as quisessem tragar para o fundo dos

abismos.

Conforme fora anunciado, a tempestade alcançou nossa

embarcação e as ondas fortes faziam o navio parecer uma

folha de oliveira sendo tocada pelo vento.

- Precisamos jogar carga ao mar... Ajudem-nos, por favor –

gritou o capitão pelo vão do alçapão do tombadilho para

baixo, onde duas dezenas de passageiros se espremiam uns

contra os outros, tentando se proteger dos solavancos

vigorosos que a embarcação sofria.

Havia um outro compartimento ao lado do nosso onde a

preciosa carga era transportada. Em momentos como

aqueles, as vidas e o navio valiam mais que qualquer carga,

365

mesmo que o preço que pagariam por ela fosse suficiente

para comprar dez embarcações como aquela. A vida

humana estava em jogo e seu valor, portanto, era

inestimável.

Simão e eu nos juntamos ao grupo de homens que subiram

ao tombadilho. Na parte de baixo, ficaram apenas algumas

mulheres e crianças. O assoalho do navio estava

escorregadio e molhado pela chuva que caía

impiedosamente sobre o navio. O céu era riscado por raios,

acompanhados de trovões ensurdecedores. Para os gregos e

romanos, Zeus ou Júpiter estava revoltado.

Jogamos ao mar tudo o que foi possível. Fardos de lã, sacas

de cereais, barris de vinho e azeite. Apesar disso, mesmo

com metade da carga lançada fora, a embarcação parecia

prestes a adernar.

- Trinta graus a boreste! Trinta graus a boreste! – gritava o

capitão ao timoneiro que, com a ajuda do contramestre,

tentava controlar o timão com todas as suas forças.

Esperamos aflitos as novas ordens do comandante. Ele foi

até o compartimento de carga e, entre o ribombar dos

trovões que quase não nos deixava ouvir o que ele falava,

disse-nos o que deveria ser feito.

- Não temos escolha... nosso navio não vai resistir por muito

tempo. Vamos descer os dois barcos de atracagem, cada um

levará um marinheiro treinado. No entanto, cada barco só

comporta dez pessoas ao todo. Somos quarenta. Vinte terão

que ficar, incluindo a mim. Afundarei com o navio, se o

pior acontecer. Faremos um sorteio para ver quem deverá

366

permanecer no navio e, se for o caso, se jogarem em alto

mar no último momento.

- E como será feita a escolha, capitão? – gritou Simão,

tentando se fazer ouvir.

- Todas as crianças irão com seus pais, se estes estiverem a

bordo. As mulheres, mesmo as que estiverem

desacompanhadas também irão. Depois disso, se ainda

houver lugar disponível em um dos barcos, faremos um

sorteio com os que sobrarem. O timoneiro, o contramestre e

eu não entramos na contagem, ficaremos no navio, é a lei do

mar. Os demais da tripulação, exceto os dois que

acompanharão os passageiros, serão colocados no sorteio.

Não temos tempo a perder. Voltem para o compartimento

de passageiros, pois o procedimento de descida dos barcos

menores já começou.

Quem seriam os escolhidos? Quem iria provavelmente

perecer na embarcação, como tantas vezes aconteceu

naqueles e em tantos outros mares? Logo saberíamos.

A descida dos dois barcos de atracagem foi penosa e difícil,

ante os ventos e as ondas que impediam que eles tocassem a

superfície da água de modo adequado. O pior, no entanto,

seria o momento em que as pessoas desceriam pela escada

presa ao casco do navio, a qual tinha cerca de dez metros de

altura. O menor descuido e poderiam ser arremessadas ao

mar.

Houve um grande tumulto no compartimento de

passageiros. Havia dezesseis pessoas, ao todo, que

formavam famílias, compostas por pai, mãe e filhos. Assim,

restava lugar para mais quatro pessoas.

367

- Eii... Você que está escrevendo o tempo todo desde que

saímos de Alexandria, escreva em pequenos pedaços de

papiro os nomes das outras pessoas que sobraram e peça

para uma criança retirar da sua mão quatro nomes. Estes

serão os escolhidos para seguir nos barcos – ordenou o

capitão.

Imediatamente, fiz o que me foi solicitado. Minha caixa de

couro contendo meus papiros e material de escrita estavam

sempre ao meu lado para onde quer que eu fosse.

Com os nomes dos passageiros e membros da tripulação

que não pertenciam a nenhuma família ali, pedi a uma

criança que retirasse os quatro nomes e desse ao capitão

para ler. O que ninguém sabia é que eu não escrevi o meu

próprio nome. Era um direito que eu tinha e ninguém

precisava saber. Não sabia exatamente a razão de estar

fazendo aquilo, muito embora eu também quisesse salvar a

minha vida. Acho que me compadeci ao olhar o semblante

cheio de medo e angústia daqueles homens que, como eu,

não tinham familiares à bordo. Eu me conservava tranquilo

e confiante e por isso tive coragem de dar o meu lugar a

qualquer um deles. Deixando o meu nome de fora, eu fizera

a escolha de ficar na embarcação e permitiria que outra

pessoa fosse em meu lugar. Eu sabia que, caso fosse

escolhido, daria o meu lugar a alguém, mas não queria ter

qualquer participação direta naquela escolha. Deixaria que a

sorte de cada um decidisse.

O capitão, com as mãos molhadas e trêmulas, pois a chuva

não cessava um só instante, leu em voz alta:

368

- Vão para o barco... Miquéias, Jonatas, Yosef e Simão.

Vamos depressa, precisam deixar o navio imediatamente.

Nos barcos haverá água doce e uma pequena ração que

permitirá a sobrevivência de todos por algum tempo, até que

sejam socorridos por alguma outra embarcação ou consigam

chegar em terra firme. Há muitas ilhas nessa região e pode

ser que cheguem a uma delas... se Proteu lhes permitir.

Simão me olhou e, voltando-se para o capitão, disse:

- Escolha outro nome, capitão... Eu ficarei com o meu irmão

João. Não vamos a nenhum lugar sem o outro.

Aquele era Simão, meu velho amigo, tão amoroso quanto

meu irmão Calebe e sempre pronto a me defender. Eu teria

feito o mesmo por ele.

O capitão não perdeu tempo e escolheu outro nome. Os

sorteados correram para o tombadilho e os ajudamos a

descer pela escada de cordas que baloiçava perigosamente

ao sabor dos fortes ventos. Um a um foram embarcados no

meio da noite negra, rumo a um destino que eu nunca

saberei qual foi.

Com menos peso, o navio parecia ter chances de continuar

navegando. Jogamos toda a carga restante ao mar e, quando

o dia já estava amanhecendo, o previsto aconteceu. O navio

foi arremessado contra rochedos e se partiu em pedaços.

Simão, mais três companheiros e eu havíamos combinado

uma estratégia de sobrevivência que seria a de nos

mantermos atados a uma corda ao cairmos ao mar. Assim,

ficaríamos sempre em contato uns com os outros. Cada um

de nós colocou em sua bolsa algum tipo de comida e água

369

doce. Atamos aos nossos corpos pranchas de madeira leve e

acreditávamos que, se a tempestade não nos empurrasse

para o alto mar, acabaríamos chegando a alguma ilha, como

de fato aconteceu no quinto dia.

Nossas roupas estavam em frangalhos. Estávamos exaustos,

pois remávamos com o auxílio de destroços que vimos se

perder no meio da noite. Estávamos famintos e sedentos, já

que a comida e a água acabaram bem mais cedo do que

tínhamos previsto. Fomos jogados contra uma praia de

águas mansas e ali ficamos chorando e sorrindo,

agradecendo, cada um ao seu próprio deus, o milagre da

nossa salvação.

- Temos que procurar água doce ou morreremos de sede

bem aqui diante do mar – disse Simão, tomando a dianteira.

Um dos homens estava em situação muito crítica e,

certamente, não conseguiria andar conosco rumo à espessa

vegetação que havia à nossa frente. Sugerimos que alguém

ficasse com ele e assim seguiríamos os três que estávamos

em melhores condições físicas. Prometemos que

voltaríamos com água e comida, assim que as

encontrássemos.

Não demoramos a encontrar frutos silvestres que

reconhecemos serem comestíveis, além de coqueiros, dos

quais colhemos cocos e comemos, para aplacar a nossa

fome. Uma pequena nascente correndo em direção ao mar

deu-nos água doce e logo voltamos para levar as boas novas

aos nossos companheiros e alimentá-los. Foi o começo de

uma agradável vivência naquela ilha, sobre a qual

descobrimos depois de alguns dias, quando fomos

encontrados por nativos que ali habitavam, tratar-se da Ilha

370

de Patmos ou Ilha dos Deterrados. Era para lá que iam os

homens e mulheres inimigos de Roma. Havia centenas deles

vivendo ali. Não havia lá qualquer embarcação que

permitisse a alguém sair daquela ilha. Uma vez ao ano,

desembarcava em Patmos um novo carregamento de

desterrados e ninguém voltava.

Os moradores ficaram curiosos a nosso respeito e nos deram

toda a ajuda possível, acolhendo-nos em suas cabanas

rústicas. Grande parte dos homens que estavam ali eram

pessoas instruídas, políticos que lutavam contra o regime,

filósofos e outros que desacreditavam os deuses romanos ou

zombavam deles. O Império os mandava para lá como sinal

de piedade. Meus quatro companheiros e eu fôramos

exilados pelo destino.

Os primeiros meses na Ilha de Patmos foram difíceis, pois

ficávamos todo o tempo andando pelas praias, na esperança

de que algum navio passasse por ali e nos levasse de volta

para casa. Fomos informados que dali a quatro meses,

aproximadamente, Roma mandaria mais exilados e que, se

fôssemos convincentes, talvez nos deixassem voltar. Mas,

até lá, tínhamos que nos manter vivos.

Não tardei a explorar a ilha e, um dia, em uma dessas

caminhadas exploratórias, encontrei alguns cogumelos

similares aos que Ariam havia me mostrado e que foram

usados em infusões que bebi durante o tempo em que fiquei

no claustro e tive alucinações. Colhi alguns e, quando falei

a respeito deles com Simão, ele me repreendeu firmemente.

- Eu sei que esses cogumelos e outras ervas causam efeitos

terríveis em quem faz uso deles. Jamais os usaria, pois meu

371

coração está sempre cheio de coisas impuras e acho que

enlouqueceria, se os ingerisse. Você também não deveria

fazer usos deles.

- Eu sei, já usei uma vez e me senti como se passasse do

inferno ao céu no mesmo dia, tive visões nunca

experimentadas antes. Mas talvez eu não tenha outra

oportunidade de repetir essa experiência. Por isso, preciso

de sua ajuda para o caso de alguma coisa errada me

acontecer. Eu gostaria de ver mais, de saber mais sobre o

futuro. Ariam me disse que a ingestão da infusão de

algumas ervas misturadas aos cogumelos pode me provocar

visões maravilhosas – insisti com meu amigo.

- Você é quem sabe, João. Eu desaconselho, mas se você o

fizer, te darei o apoio que for necessário. Deixarei umas

cordas prontas, para o caso de você enlouquecer e eu

precisar amarrá-lo fortemente – disse ele, brincando.

Havia dias naquela ilha em que uma terrível solidão tomava

conta de mim, embora eu estivesse rodeado por meus

amigos, novos e velhos, como Simão e os companheiros de

viagem. Eu vagava pelas montanhas da ilha, sempre

acompanhado da vigilante companhia de Simão, até que um

dia encontrei uma caverna e decidimos passar a noite ali.

Foi naquele dia que eu preparei uma infusão com

cogumelos e ervas que trouxera em minha bolsa e ingeri.

Antes de fazê-lo, disse a Simão que mantivesse meus

papiros virgens, tinta e caneta à mão para registar tudo o

que eu pudesse lhe dizer, se eu não fosse capaz de escrever

por mim mesmo.

372

Quando veio a noite, decidi tomar uma poção das ervas e

tentei descansar. De tudo o que me aconteceu naquela noite

e nos dez dias seguintes, eu só posso dizer que foram os

mais inacreditáveis que vivi e que eu seria incapaz de

descrever tudo que passei, muito embora eu de nada me

lembre. Tudo o que vi, ouvi e senti foi registrado em muitos

pergaminhos, conforme me relatou meu amigo Simão

quando despertei. Semanas depois, quando eu já estava

recuperado daquela forte convulsão por que passara,

indaguei a Simão o que acontecera.

- Acordei no meio da madrugada com você ora chorando,

ora sorrindo, com os olhos esbugalhados, gesticulando e

caminhando de um lado para outro dentro da caverna onde

havíamos nos abrigado.

- O que eu falava, Simão? Era possível compreender?

- Sim, muitas coisas eu não conseguia distinguir e por isso

pedi para que você escrevesse. Era muito difícil porque não

tínhamos iluminação adequada, mas você parecia nem

precisar de qualquer luz. Seus olhos brilhavam e sua mão

deslizava sobre o papiro, deixando registrado o que você

repetia inúmeras vezes. Eu fiquei muito assustado e julguei

que você realmente havia enlouquecido.

- O que aconteceu no dia seguinte?

- Você, depois de escrever vários rolos, caiu em sono

profundo e, quando o dia amanheceu, quis ingerir mais da

infusão. Tive que lutar contra você para que você não o

fizesse. Mas você começou a urrar tão forte, como se

estivesse possuído por algum demônio, que eu mesmo

preparei um novo chá e te dei. Só então você se acalmou,

373

mas voltou a falar coisas que não faziam qualquer sentido.

Falou sobre sete selos, sete anjos, sete igrejas, vinte e quatro

anciãos e sobre muitos outros temas desconexos. Quando eu

te indagava o que significava aquilo, você não respondia e

permanecia no transe, como se estivesse de fato possuído.

- Não sentiu vontade de me amarrar?

- Claro que sim, mas, no terceiro dia, vi que seria melhor

deixar você terminar o seu trabalho. Caso contrário, você

enlouqueceria de vez, tamanha era a vontade que

demonstrava em querer registrar tudo. Tive que voltar para

a aldeia várias vezes para recolher todo e qualquer papiro

que lá existisse. Lembro-me que em uma das ocasiões você

me pediu que não falasse nada a ninguém. Eu até me

perguntei o porque de você estar escrevendo tudo aquilo se

não queria que ninguém lesse. Mas obedeci sua orientação e

guardei tudo em um local onde dificilmente alguém poderia

encontrar, se não tivesse o mapa que eu mesmo fiz.

- Em algum momento você ficou muito assustado com as

coisas que eu falava ou escrevia, Simão?

- Sim, principalmente quando você começou a falar sobre

dragões e besta que surgiam do mar e tinham sete cabeças e

dez chifres e sobre os seus chifres dez diademas e sobre as

suas cabeças um nome de blasfêmia. Afinal, o que era

aquilo, João?

- Não sei, meu amigo. Realmente não sei e nem me lembro

de nada. Tenho apenas fragmentos daqueles momentos, mas

não me recordo de nada, muito menos sou capaz de

entender o significado dessas visões. Talvez um dia eu

374

possa compreende-las ou, quem sabe, outras pessoas

poderão decifrá-las – respondi, encabulado.

- Você não se lembra do dia em que ficou falando sobre

algo que parecia ser o juízo final? Naquele dia, eu realmente

achei que você tinha perdido o juízo.

- Juízo final? Eu falei isso?

- Não diretamente, mas descreveu algo que parecia ser.

Pessoas sendo julgadas segundo as suas obras. Muitas sendo

lançadas num lago de fogo e enxofre. Parecia mesmo um

inferno.

- Lamento muito, Simão, mas não me lembro de coisa

alguma.

Foi daquele modo que eu tive minha segunda e última

experiência com aquelas ervas que causavam alucinações.

Foi quando escrevi coisas das quais não me lembro e nem

mesmo as reli, pois Simão tratou de esconder tudo dentro da

caverna, com a promessa de que, se um dia saíssemos

daquela ilha, ele levaria aqueles papiros conosco e os

entregaria a alguém que pudesse interpretá-los.

Apesar das saudades que eu sentia de minha amada Ariam e

de tudo o que ela representava para mim, eu entendi que

talvez Deus me quisesse ali naquela ilha para alguma

missão especial. A missão de escrever um livro com

revelações sobre o futuro.

Se eu tivesse voltado a Roma no tempo que me fora

designado, eu poderia causar problemas a Ariam. O nosso

relacionamento poderia ser descoberto e tudo cairia por

375

terra. Se ficasse naquela ilha por cinco ou seis anos, então,

quando retornasse a Roma, já estaria próximo do momento

em que ela se desobrigaria dos votos, ao completar seus 30

anos. Ainda teríamos tempo para termos os nossos filhos e

constituirmos uma família.

Um belo dia, Simão me informou que um navio estava se

aproximando da praia e que deveria ser uma nova leva de

exilados enviados para Patmos pelo Império Romano.

- Você vai tentar voltar para Roma, João? Você tem o poder

da retórica e pode convencer a qualquer um. Talvez consiga

um passe para nós dois?

- Duvido muito. Eu não tenho nada para negociar. Dizer ao

capitão do navio que não sou um exilado, provavelmente,

não o convencerá. Você se lembra de que estamos sem

nossos papéis? Nem mesmo nossos nomes podem ser

conferidos. Ninguém nos dará ouvidos. Melhor esperarmos

um pouco mais.

- Não pensei que você fosse desistir tão facilmente, João.

Faça isso por mim. Lembre-se de que eu o ajudei naquela

sua maluquice de beber chás alucinógenos e fiquei do seu

lado. Você me deve isso?

- Está me cobrando favores agora, Simão. Você sim, está

agindo como um grande e persuasivo cobrador de dívidas –

disse eu, brincando.

- Por favor, João. Faça isso por mim. Eu não aguento mais

essa ilha. Sinto saudades das novidades de Roma e, se você

quer saber, no tempo em que vivi lá conheci uma grega dos

deuses...

376

- Ahh... agora está explicado o seu desejo. Uma deusa grega

o espera em Roma. Está bem meu amigo, vou ver o que

consigo com os soldados romanos quando eles atracarem.

O navio trazia cerca de cinquenta novos exilados, sendo

homens, mulheres e crianças. Era permitido a eles trazer

também alguns dos seus bens, que incluía animais de

estimação ou para reprodução e consumo. O navio trazia

ainda algumas roupas, sementes e utensílios domésticos,

enviados por familiares aos desterrados. Havia pelo menos

cem soldados romanos com seus trajes típicos, portando

lanças e espadas. Desembarcaram e iniciaram a armar suas

tendas nas proximidades da praia. Provavelmente,

passariam uma noite ali e retornariam.

Preferi esperar que estivessem mais tranquilos, para poder

procurar o comandante e lhe falar sobre meu pedido.

Era costume dos exilados da ilha levar comida para os

soldados romanos e servi-lhes do melhor modo possível,

enquanto estivessem ali. Afinal, tinham esperança de um dia

serem libertos e voltarem para casa.

Deixei Simão entretido com os novos exilados e fui

conversar com os soldados. Ao me virem aproximar das

tendas, me interceptaram bruscamente.

- Você não pode passar desse perímetro, exilado – disse um

dos soldados, retirando a espada da bainha.

- Eu gostaria de falar com o comandante de vocês. Tenho

algo importante para falar – disse eu, sem temor.

377

- E o que há de tão importante para falar ao comandante.

Pode nos dizer e falaremos com ele – replicou o soldado,

aproximando-se de mim e me examinando.

- Está bem. Diga a ele que não sou um exilado. Eu e mais

alguns companheiros estávamos em um barco que

naufragou há alguns meses, quando seguia para Roma. Nós

cinco escapamos e viemos parar nesta ilha.

- Aahahaha... – riram, ruidosamente, os dois soldados –

então você acha que iremos cair nessa sua conversa. Todas

as vezes que vimos a Patmos, tem sempre um náufrago ou

homem inocente querendo voltar para Roma. Eu lamento

muito, exilado, o nosso comandante não está interessado

nessa história. Você tem outra melhor?

- Diga a ele que sou João da Judeia, discípulo de Obadiah

que vive em Alexandria. Se ele me levar de volta junto com

um dos meus amigos que também é homem livre, ele será

muito bem recompensado. O meu mestre provavelmente

pensa que eu estou morto. Vá, diga isso a ele.

- Sua história está ficando interessante, exilado. Você tem

uma prova do que está dizendo ou será que ela também

naufragou com o seu barquinho? – indagou o romano, em

tom de zombaria.

Retirei o bracelete de prata que trazia comigo e o entreguei

a um dos soldados. Ele pegou o objeto e demonstrou uma

certa curiosidade.

- Onde você roubou isso? Ninguém pode trazer joias para

essa ilha. Todos os bens de algum valor deverão ser

confiscados em nome do Imperador Romano.

378

- Não roubei, me foi dado por meu pai. Uso-o desde criança.

Peço-lhe que faça o que estou te pedindo, pois, se o fizer,

será um homem rico ao me levar de volta ao meu mestre

Obadiah.

O soldado pareceu momentaneamente convencido e

afastou-se levando o meu bracelete. Naquele momento,

Simão, que estivera me procurando, aproximou-se.

Expliquei-lhe o que havia acontecido.

- João, você enlouqueceu – disse-me ele, em hebraico,

confiando que o soldado romano que ficara de guarnição

não compreendia – a maioria desses homens são vândalos e

ladrões. Vão ficar com o seu bracelete que é valioso.

- Eu sei, Simão, mas tive que arriscar. Não tinha mais nada

de valor para oferecer. Vamos esperar que o comandante

aceite a minha oferta.

Quando o soldado voltou, estava sorrindo.

Lamento lhe informar, mas o nosso comandante não está

interessado em sua história e disse que ficará com o seu

bracelete. Joias não são permitidas nessa ilha aos exilados e,

até que provem o contrário, você é um deles.

- Ladrões... vocês são uns ladrões, uns vândalos – disse

Simão, exaltado.

Vários soldados ouviram e se aproximaram de nós.

- Simão, vamos sair daqui. Eles vão nos matar – disse eu,

arrastando meu amigo encolerizado que se debatia contra

mim e soltava insultos aos soldados.

379

Quando ele se acalmou, eu lhe disse que não havia perdido

nada, apenas um bracelete. Talvez um dia eu compraria

outro. Mas Simão estava inconformado.

- Quando dormirem, vou lá pegar seu bracelete de volta.

Eles partirão cedo e você não vai deixar esses selvagens

ficarem com o que é seu.

- Simão, foi você mesmo que pediu para eu ir falar com

eles. Então, agora temos que aguentar as consequências.

Vamos deixar nas mãos de Javeh. Não faça nenhuma tolice.

Você vai acabar nos matando aqui na ilha de Patmos.

Fiquei de olho em Simão, que não dormiu bem naquela

noite e, naquela manhã de primavera, vimos o navio romano

se afastar da praia rumo ao mar. Nossa choupana ficava

sobre uma elevação, de onde podíamos ver, ao longe, as

velas da embarcação serem infladas pelo vento. Senti

lágrimas escorrerem por meu rosto. Era um imenso

sentimento de impotência diante da vida. Em um momento

tínhamos algo, no instante seguinte o perdíamos.

Vencíamos uma batalha e perdíamos outras. Será que isso

foi a vida que Javeh quis dar aos homens sobre a Terra?

Fechei os olhos e orei com todas as forças, pedindo aos

céus, a Javeh, a qualquer que fosse o deus, a todos eles

juntos para que fizessem algo para nos tirar dali. Eu pedia

por um milagre.

- João! João! veja, o navio está voltando para praia. Vê

aquelas bandeiras? Estão sinalizando para que desçamos até

eles. Alguma coisa aconteceu – disse-me Simão, que era

conhecedor dos códigos do mar, por ter estudado estratégias

militares.

380

Corremos em direção à praia, ao tempo em que um pequeno

barco com dois soldados romanos remavam em nossa

direção.

Quando os alcançamos, um dos soldados perguntou:

- Quem é o dono do bracelete de prata que foi entregue ao

outro soldado?

- Sou eu, senhor...

- Queira me acompanhar até o barco. O comandante quer

vê-lo. O senhor deverá seguir para Roma conosco.

- Eu só irei se o meu companheiro for comigo – disse eu,

resolutamente.

O soldado pensou um pouco e perguntou:

- Seu amigo sabe nadar? É melhor que ele saiba, porque, se

o comandante decidir não levá-lo, não haverá barco para

trazê-lo de volta à praia. Ele deverá voltar a nado.

Nem eu nem Simão esperamos um segundo. Acenamos para

os outros companheiros exilados que haviam descido para a

praia e entramos no barco que, em poucos minutos,

alcançou o grande navio.

Já no tombadilho, o comandante veio falar comigo.

- De quem é o bracelete de prata que o soldado romano

recebeu ontem na praia?

- É meu, comandante – disse eu, com tremor na voz.

- Onde o encontrou?

381

- Ganhei do meu mestre Obadiah, o Etrusco, em Alexandria

– disse, resumindo a história.

- Muito bem. Ontem, um soldado foi me procurar dizendo

que havia um exilado portando este bracelete de prata e que

queria negociá-lo para voltar para Roma. Mandei dizer que

não haveria negócio. Nós somos representantes do

Imperador e não negociamos as ordens dele. No entanto,

quando cheguei ao navio esta manhã, deixei-o casualmente

sobre a minha mesa. Meu escriba oficial, ao vê-lo e ler o

que estava inscrito nele, informou-me que o portador

daquele bracelete deveria ser atendido em qualquer

necessidade, onde quer que estivesse, sobretudo, se

estivesse em perigo ou em dificuldade. Porém, disse-me que

o portador dele deveria responder a uma pergunta para

comprovar que era de fato merecedor de carregá-lo e que

não o havia roubado de alguém. Ele vai te fazer essa

pergunta. Se você responder corretamente, seguirá conosco.

Caso contrário, será atirado em alto mar, como punição por

roubo. O seu amigo também será jogado junto com você.

Senti o coração saltar pela boca. Uma pergunta? Que

pergunta seria essa? Será que eu saberia a resposta? Eu

sentia vontade de rezar para todos os deuses do Olimpo para

acertar a resposta. Ela salvaria a minha vida e a de meu

amigo Simão Pedro.

382

383

Capítulo XV – O Grande Enigma

O capitão indicou-me o caminho para a escada que dava

acesso ao porão do navio, onde ficava os aposentos do

capitão. O escriba-mor já estava lá à minha espera.

Simão fora amarrado pelos soldados que aguardariam a

ordem do comandante da embarcação para jogá-lo ao mar,

caso eu errasse a resposta da pergunta que me seria feita.

Enquanto descia a escotilha, pensava se a minha vida

acabaria ali em alto mar, próximo à Ilha de Patmos, ou se eu

ainda tinha alguma missão por realizar.

O escriba-mor era um homem de meia idade, de origem

egípcia, portando duas braçadeiras na altura dos bíceps.

Quando entrei, ele estava de pé, ao lado da mesa sobre a

qual, ao centro, estava o meu bracelete.

O capitão, o escriba e mais dois soldados postaram-se à

minha frente, enquanto eu fiquei à espera do enigma que

exigiria solução. Foi o capitão quem deu início à cerimônia

que poria fim à minha vida ou me absolveria de qualquer

culpa.

E se o escriba me fizesse uma pergunta que estivesse além

dos meus conhecimentos? Eu não conhecia todas as

informações que estavam gravadas em meu bracelete,

exceto aquelas que já me haviam sido revelados pelo mestre

Dardanus.

- Exilado, o escriba-mor já escreveu a resposta da pergunta

que lhe fará e eu a tenho comigo. Você não terá duas

384

chances. Ele me assegurou que somente alguém que

mereceu esse bracelete saberá a resposta. Reze aos seus

deuses, para que eles te ajudem. Você está pronto? – disse-

me o capitão, com voz firme.

- Sim, eu estou – respondi, respirando fundo.

O escriba olhou-me nos olhos e perguntou:

- Qual é o número do homem a quem foi dado o poder para

ser chefe dos magos, dos adivinhos, dos encantadores, dos

astrólogos e de todos os místicos?

Fechei os olhos na esperança de que minha memória não me

traísse. Vasculhei todos os recantos dela para encontrar a

resposta. Apareciam em minha mente milhares de nomes,

números, estrelas, imagens de animais, plantas. Procurei

me concentrar e lembrar de algum evento. Sim, a resposta

deveria estar relacionada a algum acontecimento no

passado. Magos, adivinhos, astrólogos... Babilônia! Lá,

sempre existiram esses homens, os quais eram conselheiros

dos reis. Nabucodonosor... o grande rei Babilônio quem, há

600 anos, havia dominado o Egito, a Judeia e milhares de

outras terras, tornando-se o rei dos reis. O maior imperador

de que já se teve notícia. Procurei concentrar-me. Ali

estaria a solução. Mas quem fora o indicado? Qual era o

número da pessoa que fora nomeada chefe dos astrólogos e

místicos? Sim, houve um homem que se tornou governador

e foi o indicado pelo rei.... Sim, achei a resposta. Foi Daniel.

Daniel, o profeta que interpretou os sonhos do rei e recebeu

muitas recompensas. Bem, agora era só encontrar o número

de Daniel. O escriba que elaborara o enigma era de origem

egípcia, mas vivia como um romano, deveria ter estudado

385

com os gregos, quase todos o faziam, pois, além do latim, o

grego era a língua dos negócios naquela época. Ora, mas

parece muito fácil. Fácil demais. Se eu usasse o método de

Pitágoras, ao substituir cada letra da palavra Daniel por seu

número correspondente e somar tudo, até encontrar um

número entre 1 e 9, eu desvendaria o enigma. Nunca fui

bom em cálculos, muito menos para fazê-los de memória.

Pedi ao escriba uma pena e um pedaço de papiro. Mas,

antes de escrever o nome, pensei uma vez mais. Se fosse

mesmo Daniel, o enigma seria solucionado muito

facilmente. Qualquer leitor do Talmude saberia disso.

Aquele enigma deveria exigir um outro conhecimento além

daquele. Sim... havia... eu quase cometi o erro de calcular os

números de Daniel. O nome dele foi mudado para

Beltessazar. Esse nome implicaria mais letras e aumentaria

o grau de dificuldade. Estava certo de que somente alguém

que conhecesse o sistema da numerologia Pitagórica

poderia decifrar o enigma. Eu o conhecia e comecei a

escrever cautelosamente cada uma das letras. E, logo abaixo

de cada uma delas, coloquei os números que Pitágoras

encontrou para cada letra do alfabeto greco-romano.

B e l t e s s a z a r

2 5 3 2 5 1 1 1 8 1 9

Depois, somei todos os números e obtive o total de 38. Mas

esse ainda não era o número desejado. Somei esses dois

algarismos e deu 11 e, finalmente, somei 1 + 1 e encontrei o

número 2.

386

Olhei para o escriba e não percebi no seu rosto nenhuma

expressão que indicasse que eu havia acertado a resposta. O

capitão também nada indicava. Apenas os soldados olhavam

ansiosos e eu não sabia se eles torciam para que eu errasse

para terem o prazer de me atirarem ao mar junto com o

Simão ou se desejavam poupar a minha vida. Eu achei que a

primeira opção seria, para eles, muito mais divertida. Eu

não era um romano e só seria mais um para dividir a comida

que eles tinham no navio.

- Você terminou a sua tarefa, exilado? O número dois é a

sua resposta? – indagou o capitão, examinando o papel onde

eu escrevera.

- Sim, essa é a minha resposta, capitão.

- Ele caminhou até uma bola de couro que estava jogada

sobre um catre, abriu-a e dela retirou um pedaço de

pergaminho dobrado e, depois de olhar outra vez para o

meu, proferiu:

- Eu, Adriano Paulus, capitão-chefe da guarda pretoriana do

Império Romano, investido pelo Imperador Tibério Cláudio

Nero César, declaro que o portador deste bracelete de prata,

o qual lhe será devolvido agora, será escoltado até Roma e

que, enquanto estiver neste navio, será um protegido do

Império e deverá ser tratado com dignidade, respeito e

cortesia. Não será obrigado a trabalhar e só fará aquilo que

for necessário à própria sobrevivência...

- Incluindo seu amigo e irmão Simão Pedro... – acrescentei,

corajosamente.

387

- Incluindo o seu amigo Simão Pedro – acrescentou o

capitão, olhando para os soldados, os quais demonstraram

visível descontentamento.

- Como quer ser tratado de agora em diante mestre? –

indagou-me, ele.

Pensei em vários nomes, mas nenhum deles me ocorreu ser

adequado. Matias, João, João da Judeia... nenhum deles me

parecia apropriado. Eu desejava ter um nome escolhido por

mim mesmo e que não fosse emprestado de ninguém.

- Escriba, senhor. Quero ser chamado apenas de Escriba de

Alexandria, é o que sou.

Quando subi ao tombadilho, Simão estava ajoelhado com as

mãos postas, olhando o céu. Dois soldados, portando

espadas, estavam ao lado dele. Quando o toquei, ele tomou

um susto, mas logo compreendeu que estávamos salvos.

Nos abraçamos. Expliquei-lhe que havíamos passado de

náufragos exilados a convidados do Império Romano.

Seríamos entregues a um Consul Romano e ele decidiria

sobre nossa vida. Caberia a nós provar a ele que éramos

pessoas de bem e homens livres. Acreditávamos que muitos

dos nossos companheiros já estavam em Roma cumprindo

as missões deles e seria fácil contatá-los. O nosso mentor

Malachai e o Sumo Sacerdote Obadiah também tinham

amigos em Roma.

Eu só não pude falar com Simão que tinha também Ariam

de Glimeu, uma Virgem Vestal, que endossaria qualquer

coisa que eu dissesse, pois já me conhecia. Aquele era um

trunfo que eu guardaria para usar no último caso, se surgisse

algum problema com o Consul Romano.

388

Eu ficara curioso para saber como o escriba romano havia

elaborado o enigma. Quando tive oportunidade de

perguntar-lhe, ele me disse:

- Quando vi o bracelete de prata nos aposentos do

comandante no momento em que começaria a redigir o

diário de bordo, verifiquei que havia nele muitas inscrições,

vou te mostrar agora.

Eu retirei o bracelete e o escriba continuou:

- Veja aqui essa linha. É a linha do tempo. Mostra a sua

idade e os lugares que você deveria conhecer, os estudos

que teria de realizar. Pela descrição dos soldados, você

deveria ter entre 28 e 33 anos, portanto, se fosse de fato um

escriba já teria estudado astrologia, conheceria as histórias

dos magos e astrólogos e por isso saberia decifrar o enigma.

Se fosse um impostor, seria desmascarado.

- Eu não teria uma segunda chance? Não haveria um outro

teste?

- Eu poderia fazer tantos testes quanto o capitão permitisse,

mas essa seria a decisão dele, não a minha. Você sabe, nós

escribas obedecemos ordens, fazemos o que nos mandam

fazer. Para isso somos pagos.

A viagem até Roma naquele colossal navio de guerra foi

tranquila. Depois da primeira semana convivendo com os

soldados romanos, aprendi mais sobre eles do que podia

imaginar. Eram homens simples que haviam se tornado

guerreiros implacáveis, máquinas de guerra. Muitos sequer

sabiam falar direito o idioma do país onde nascera, mas

foram treinados para combater sob uma ordem. Eram como

389

os animais amestrados do Circus Máximo que eram

exibidos por mágicos e encantadores. O que os motivava a

permanecer no exército romano era a segurança de terem

comida quente e vinho no final do dia. Recebiam também

um pequeno soldo que era enviado para a família dos que

fossem casados ou aos pais idosos, caso os tivessem. Muitos

sonhavam em se tornarem soldados graduados, chefes de

patrulhas e até capitães. O capitão sonhava ser um general

da guarda romana ou mesmo da real guarda pretoriana.

Já em terra, fomos encaminhados ao Cônsul Romano, o

qual praticamente nem nos olhou. Parecia estar mais

preocupado com outros assuntos imperiais do que com dois

exilados que se diziam escribas. Simplesmente disse ao

capitão da guarda que estava tudo bem e que nós podíamos

receber permissão para viajar para onde quiséssemos. Ele

mesmo iria assinar os documentos e nos dar algumas

moedas, o suficiente para comprarmos alimentos por uma

semana.

De fato, obtivemos tudo sem esforço. Foi um outro escriba

que, depois de nos fazer algumas perguntas para confirmar

nossos conhecimentos, nos redigiu novos registros,

acrescentando que ambos éramos mestres em línguas,

doutores nas artes da escrita, leitura e ensino e notórios

escribas de origem egípcia. Não o informamos nossas

origens reais, seguindo as recomendações de Malachai,

visto que nem sempre nosso povo era bem recebido nos

altos círculos do Império Romano. No meu novo

documento, constava apenas o ano do meu nascimento, meu

ofício e o meu nome: Escriba de Alexandria. Um nome era

só um nome. Simão Pedro também aproveitou para mudar o

próprio nome e escolheu ser chamado de Petrus de Roma.

390

- Eu sou uma pedra, Escriba, e um dia servirei de base para

construir um templo... – disse ele, gargalhando, quando já

estávamos no meio da multidão que lotava as ruas de Roma.

Eu estava ansioso para ir até a Segunda Casa da Virgens

Vestais que ficava nos arredores da cidade. Queria falar

com Ariam e saber o que havia acontecido nesse período em

que estivemos separados.

Deixei Petrus no mercado e encaminhei-me até o local onde

havia deixado Ariam há pouco mais de um ano. Ao me

aproximar do lugar, notei que havia algumas mudanças. A

residência parecia abandonada. Não havia guardas ou

qualquer outra pessoa nos arredores.

Bati com a argola de ferro contra o portão de madeira e,

depois de algum tempo, uma mulher de meia idade veio

abrir. Não se parecia com nenhuma das pessoas que eu

conhecera durante a minha estada ali.

- Senhora – disse-lhe, espiando pelo vão da porta para

dentro do jardim que agora estava descuidado – eu procuro

pela Sacerdotisa-Mor... Sou o Escriba de Alexandria,

também conhecido como João da Judeia.

A mulher pareceu me estudar cuidadosamente e depois

respondeu.

- O senhor é parente dela?

- Não... não sou. Fui discípulo dela aqui há cerca de um ano.

O que aconteceu aqui. A casa parece deserta. Onde estão as

Virgens Vestais?

391

- A casa foi fechada há cerca de um ano, senhor. Elas agora

estão todas na Casa do Templo que fica ao lado do Fórum.

Depois das coisas horríveis que aconteceram aqui, o

Imperador mandou fechar esta casa. Eu só tomo conta dela

sozinha – disse-me, enquanto abria o portão para me deixar

ver o estado da casa.

Olhei entristecido. Não era mais aquele magnífico pequeno

palácio onde eu vivera os melhores dias de minha vida.

Curtos, porém intensos. Pedi para entrar e a senhora

permitiu e me acompanhou pelo lugar. Havia muito mato,

entulho e poças de lama no piso semidestruído pelas chuvas

e pela falta de cuidados. O salão esplendoroso, onde eu me

sentara tantas vezes para cear com Ariam e as demais

Vestais, estava irreconhecível. Não havia mais móveis, nem

quadros e a pintura estava mofada. Um cheiro acre exalava

do lugar.

- O que aconteceu aqui de tão ruim, senhora? Indaguei

curioso.

- O senhor não é daqui, não é?

- Não, sou de Alexandria. Conte-me o que houve, por favor.

- Olhe, não sei os detalhes. Mas o povo conta que uma

maldição entrou nesta casa e duas Virgens Vestais

morreram em pouco tempo...

- Duas Virgens? A senhora sabe o nome delas? – indaguei-

a, sentindo uma grande aflição.

392

- Não sei, senhor. Só sei que uma era a principal daqui.

Uma moça muito bonita. Eu já a tinha visto no Circo, bem

ao lado do Imperador...

- Por acaso o nome dela é Ariam de Glimeu?

- Sim, é isso mesmo. Ariam... é um nome muito bonito.

Tenho uma neta com esse nome. Foi ela mesmo... morreu

aqui dentro queimada. Dizem que foi o fogo do inferno por

causa da maldição. Imagino que elas fizeram alguma coisa

muito errada. Elas fazem um voto de castidade, não é?

Dizem que a principal engravidou e, para não ser enterrada

viva, se matou. Mas antes, uma outra já tinha morrido

envenenada. Pobrezinhas, tão lindas, tão jovens... São as

tentações... os demônios. Eles querem levar as moças para o

inferno, para o lodo...

Eu senti a cabeça girar e percebi que ia desmaiar, era como

se tivesse recebido um soco de Sansão no meio do

estômago.

- O senhor esta passando mal? – Por favor, sente-se, vou

buscar uma água fresca.. é o calor. Está muito quente esses

dias – disse a mulher, afastando-se para o interior da casa

que agora parecia um túmulo.

Saí para o que um dia fora um jardim e vomitei. Meu

estômago revoltado não queria aceitar o que eu acabara de

ingerir: veneno, morte e dor.

Quando a mulher voltou com o copo d’água, eu já estava

mais calmo e resolvi investigar melhor tudo aquilo. Poderia

ser um mal entendido, poderia ter sido uma outra Virgem.

393

Fosse como fosse, era uma história macabra e eu precisava

saber dos detalhes.

- Dizem que a chefe da moças... a principal e uma outra

conheceram um moço e se engravidaram dele. Ele fugiu e

elas ficaram muito desgostosas. Uma bebeu veneno.

Contam que a outra não quis se envenenar e se matou

passando betume e ateando fogo nela mesma. Encontraram

só os ossos queimados.

- Como sabiam que era a chefe das Sacerdotisas? A senhora

tem certeza disso? – questionei, na esperança de que ela

tivesse se enganado.

- Olhe moço, certeza, certeza eu não tenho, mas ouço o

povo dizer que era ela sim, porque encontraram os

braceletes e outras joias dela quase derretidos juntos aos

ossos queimados. O quarto onde ela foi encontrada

queimada é lá no fundo... está tudo revirado, mas ainda está

tudo lá. Todo o dia o intendente diz que vai mandar limpá-

lo, mas nunca vem.

Segui a guardiã por aquele corredor que conhecia tão bem.

Ainda podia me lembrar do doce perfume de Ariam, quando

me acompanhou até o claustro.

A senhora empurrou a porta e vi, horrorizado, que ela tinha

razão. Alguém tinha ateado fogo àquele lugar. Havia marcas

de fumaça em todo quarto. A porta, apesar de muito grossa,

estava visivelmente queimada por dentro. O que fora

assoalho e tetos forrados por tapetes não mais existiam. No

lugar, havia apenas cinzas. Cinzas da mulher que amei e por

quem estava vivo até aquele dia.

394

Saí daquele local correndo feito louco e vaguei por muitas

horas pela ruas de Roma até que decidi confirmar aquela

história que parecia absurda. Assim como, às vezes, me

pareciam absurdas as histórias contadas nos livros do meu

povo.

Parei em frente ao Templo das Vestais que estava bem

guardado por soldados fortemente armados, prontos para

repelir qualquer intruso. Aproximei-me de um dos guardas e

perguntei se ele sabia o nome da Sacerdotisa-Mor das

Vestais e ele me disse chamar-se Lucila de Galeso.

- O senhor conhece uma Sacerdotisa de nome Ariam de

Glimeu? Indaguei ansioso por obter uma resposta positiva.

- Ariam de Glimeu, a que morreu queimada como uma

bruxa? Sim, lembro dela. Era a mais bonita de todas as

Vestais que já vi por aqui. Quando ela morreu, eu já

trabalhava aqui, mas a vi várias vezes entrando e saindo por

esse portão.

- O senhor sabe o que aconteceu? Sabe como foi isso? Foi

um acidente?

- Dizem que ela estava dormindo e o vento jogou uma tocha

sobre o tapete. Ela não teve tempo de ser socorrida. Alguns

apontam que foi uma maldição. Mas eu só sei o que me

contaram.

Não será possível descrever aqui qual foi o tamanho do meu

sofrimento com a confirmação daquela tragédia. Mas digo-

lhes que foi maior que aquele sentido pelos condenados que

são chicoteados cem vezes, que arrastam pelas ruas um

poste onde são crucificados e lá ficam até morrerem e serem

395

devorados pelos abutres. Pior do que o sofrimento daqueles

que são amarrados em uma pilha de erva seca para serem

devorados pelo fogo que é ateado sobre eles. Meu

sofrimento era indescritível. Procurei meu bom amigo e lhe

contei tudo, desde o começo, sem omitir nenhum detalhe.

Foi Simão Pedro, o Petrus, que me salvou de mim mesmo,

já que, na minha cabeça, tudo o que eu queria fazer era

aniquilar a minha própria existência, para, assim, silenciar

os gritos de horror de Ariam no dia do seu auto suplício,

que não saiam da minha cabeça.

- Você precisa entender que a vontade de Deus não é a

nossa vontade, Matias. Disse-me Pedro, tentando me fazer

lembrar de quem eu realmente era.

- Vontade de Deus? Que vontade de Deus louca é essa

Pedro? Responda-me?! Deus nos enche de esperanças e de

uma hora para outra nos retira tudo e nos faz parecer meras

marionetes de um circo! Que Deus sem coração e egoísta é

esse? É só a vontade dele que conta? Então para que temos

vontade, desejos?!

- Confesso que não sei, Matias. Realmente não sei.

- Se eu não tivesse sido covarde e fugido... Se eu não tivesse

ido para Alexandria, nada disso teria acontecido.

- Talvez os dois estivessem mortos. Se ela estava grávida de

um filho seu, como você diz, logo descobririam. Acho que

ela fez o que achou certo e poupou a sua vida. Você sabe

que o homem que viola uma Virgem Vestal é morto

também.

396

- Teria sido melhor morrer. Mas talvez nós tivéssemos

conseguido fugir. Tantas pessoas fogem para escapar de

uma perseguição. Por que nós não conseguiríamos?

poderíamos ter ido para longe, para outras terras, onde

poderíamos ter nossos filhos e vivermos em paz.

- Vocês sempre viveriam em aflição e assustados ante o

menor sinal de perseguição, Matias. Tudo e qualquer coisa

lhes pareceriam o algoz caçando-os para puni-los. Acredita

que isso é viver?

- Você tem razão, poderia ser assim mesmo. Então temos

que amaldiçoar os nossos algozes. Sim, esta cidade... Roma,

seus cruéis ditadores com suas leis perversas. Devem ser

destruídos, Pedro... – disse eu, cheio de ira.

- Pode ser... Como você vê, na verdade, não é Deus que nos

castiga, mas os homens com suas leis estúpidas.

- Eu sempre soube que todo esse sofrimento e caos que

estamos vivendo tem um culpado.

- Não apenas um culpado, meu irmão. Não são os

Imperadores Romanos os únicos responsáveis por isso.

Nossos governantes também têm culpa. Eles se venderam,

se corromperam.

- Pois deveriam morrer também. Todos eles deveriam ser

queimados, destruídos – explodi, cheio de ódio.

Pedro ficou pensativo e, depois de um tempo, indagou-me:

- O que você vai fazer agora? podemos voltar para

Alexandria. Ou para Jerusalém. O que acha? Não deixarei

você sozinho. Estarei do seu lado.

397

- Melhor cada um seguir seu caminho, Pedro. Você tem

uma missão a cumprir. A minha está acabada.

- Talvez não esteja, Matias. Talvez eu deva agora te contar

toda a verdade.

- Toda a verdade? O que quer dizer com isso? O que existe

mais para eu saber?

- Enquanto você esteve ausente de Alexandria, Obadiah e os

demais mestres e sacerdotes essênios elaboraram um plano

para destruir o Imperador...

- Destruir o Imperador? Como assim? Enviando-nos pra cá

para educar seus filhos, seus herdeiros?

- Não, Matias... isso é apenas parte do grande plano. Na

verdade, eles nos prepararam para nos infiltrar no palácio.

Como professores e mestres dos filhos dos governantes e

generais, podemos, secretamente, repassar informações

detalhadas de tudo que se passa lá dentro. Por isso fui

aprender artes e estratégias militares e línguas.

- Quer dizer que eu fui colocado numa missão suicida?

Ensinar o filho do Imperador era só um pretexto? –

perguntei, alarmado.

- Não é missão suicida, Matias. Obadiah tem preparado

espiões há muitos anos e os coloca dentro do palácio para

acompanhar os passos dos generais. Servir de ouvidos e

olhos para o nosso povo. Estamos em uma guerra e vencerá

quem possuir melhores espiões. Eu sou a pessoa que deverei

dar cabo do Imperador, se tudo mais falhar.

398

- Você está dizendo que vai se tornar um assassino, Pedro?

É isso mesmo?

- Meu irmão, você pode me chamar como quiser, não me

importo. Milhares de nossos irmãos estão sendo

massacrados enquanto nós estamos aqui em Roma. Fomos

treinados para cumprir uma missão e você faz parte dela.

- Então aquela história de educar um futuro Imperador era

só um pretexto para que eu, não só tenha acesso ao filho de

Tibério Cláudio Nero César, mas conheça também os

segredos do palácio e passe informações aos demais

espiões, é isso mesmo?

- Exatamente isso, meu irmão. Se contássemos a você antes,

certamente, você rejeitaria. No entanto, Obadiah sabe que

quanto mais você se aproximasse do Imperador e de sua

família mais os odiaria e isso tornaria você a pessoa

indicada para fazer o que precisa ser feito. Sua inteligência,

capacidade de tomar decisões e determinação serão as

principais armas para vencermos essa luta.

- Matar um Imperador resolve tudo? É simples assim?

- Claro que não, mas desestabiliza qualquer governo a morte

súbita de um Imperador, sobretudo agora que ele se prepara

para novas ofensivas no extremo oriente.

Fiquei pensativo. A raiva que estava sentindo por ter visto o

mundo desmoronar debaixo dos meus pés parecia me dar

força para continuar a minha missão. Só que agora eu já

sabia exatamente o que deveria fazer e talvez o fizesse

melhor do que Obadiah havia planejado.

399

- Qual é o passo seguinte Petrus – disse eu, chamando o

nome romano do meu amigo que sorriu e, imediatamente,

chamou-me por meu novo nome também.

- Assim é que se fala Escriba de Alexandria. Já tenho tudo

pronto. Existe uma pessoa que trabalha no palácio como

governanta de Vipsânia e ela está esperando que você seja

contratado pela mulher do Imperador e te apoiará. Se for

convincente, será contratado para ensinar hebraico ao filho

de Vipsânia, Júlio Cesar Druzo, um dos possíveis herdeiros

do Império, muito embora isso agora pouco importa. Como

você já sabe, nosso objetivo é outro.

- Seguirei o plano, mas tomarei a liberdade de fazer

algumas mudanças, Petrus. E quanto a você.

- Depois que você estiver dentro do palácio, passará a me

dar informações sobre a movimentação de soldados,

quantos são os pretorianos que vigiam o Imperador, a

mulher e o filho. Você me informará sobre a rotina deles,

sempre que nos encontrarmos. Provavelmente, você ficará

hospedado no palácio para poder atender às necessidades

educacionais do menino, mas, como homem livre, poderá

sair de lá quando desejar. Te direi onde nos encontraremos e

mudaremos o lugar de tempo em tempos, pra não levantar

suspeitas.

Simão Pedro era mesmo um estrategista. Minha surpresa só

não foi maior pelo fato de saber que na história do nosso

povo sempre usávamos espiões para obter informações

valiosas que nos ajudavam a vencer as batalhas. Naquele

momento, não seria diferente. Entendi que uma rede de

homens e mulheres que haviam sido preparados por um

400

grupo de sábios em uma cidade distante de Roma estavam

iniciando uma mudança de cenário que envolvia sangue,

traição e assassinatos.

O desejo de vingança pela morte prematura de Ariam e

possivelmente do meu filho que ela carregava no ventre

estava latente em mim, o que me dava forças para seguir em

frente. Eu iria ajudar a realizar os planos de Obadiah,

fossem eles quais fossem e o faria melhor ainda do que fora

planejado. Eu agora, secretamente, planejava assassinar o

próprio Imperador a mulher dele, seu filho, bem como todos

os que morassem no Palácio, sem qualquer dó ou piedade,

afinal, foi para isso que eu havia sido escolhido.

401

Capítulo XVI – A Difícil Decisão

Em minha mente só havia dois sentimentos que se

agigantavam a cada dia: ódio e vingança. Eu queria destruir

o poder dos meus algozes e carrascos do meu povo. A

melhor maneira de alcançar esse objetivo era esperar o

momento certo para atacá-los. Meu plano era acertar o

coração do Império Romano e, para isso, talvez eu

precisasse contar com a ajuda de homens e mulheres

preparados para matar ou morrer em combate. Eu tinha

coragem para liderá-los.

O encontro com Vipsânia Agripina, a mulher do Imperador,

ocorreu conforme o esperado. Ela era uma mulher bonita,

de estrutura delicada, envolta em roupas e adornos

suntuosos vindos do Oriente. Sorria todo o tempo, como se

estivesse em permanente estado de embriaguez. Fez-me

uma série de perguntas estúpidas sobre meus hábitos, minha

família e meus estudos. Ao final, pareceu satisfeita e

encarregou-me de, três vezes por semana, ensinar hebraico e

história ao pequeno Druso, um menino de cabelos e olhos

claros, franzino e muito parecido com a mãe. Não parecia

ter oito anos de idade, era bastante tímido e, não fosse pela

nobreza de suas vestes, jamais alguém pensaria que ele era

filho de Tibério, o Imperador de Roma.

Foi me dado um quarto dentro do palácio, na ala reservada

aos hóspedes e demais mestres e doutores que prestavam

serviço ao Imperador. Nesse grupo, havia outros escribas,

geógrafos, médicos, arquitetos, engenheiros militares e

especialistas em botânica e animais.

402

O salário que me foi oferecido era bem maior do que eu

havia imaginado e poderia ser comparado ao soldo de um

capitão da guarda pretoriana, o qual só era menor do que os

proventos dos generais. Em alguns anos, seria possível

acumular uma fortuna, não tanto quanto poderiam fazer os

comandantes, já que eles recebiam uma parte dos bens que

pilhavam dos povos conquistados. Era agindo assim que

capitães, generais e imperadores enriqueciam – às custas do

povo. Eu estava ali para dar um fim a tudo aquilo. Sabia que

a morte de algumas centenas de pessoas, incluindo o

Imperador, sua família e demais membros da família real,

não resolveria de uma vez por todas os problemas seculares

que meu povo e demais conquistados haviam acumulado,

mas ao menos criaria uma grande desestabilização naquele

império nefasto, construído com o sangue, o suor e as

lágrimas de milhões de inocentes.

Pelos conhecimentos que eu tinha sobre história dos povos,

sabia que um império dividido tende a se enfraquecer e cair.

Com a morte do Imperador e de seus prováveis sucessores,

os generais iriam se debater entre si para dividir o Império e

seria o começo do caos. O senado também se enfraqueceria

e provavelmente haveria muita disputa pelo poder. Nada

pode ser mais frutífero para o povo do que ver suas velhas e

incompetentes instituições desmanteladas. Era necessário

destruir as velhas pra que nascessem as novas. Naquele

momento da história, não haveria melhor maneira de

destruir o Império Romano. Obadiah e seus agentes

infiltrados, entre os quais eu me encontrava, agora

consciente de tudo, elaborara durante décadas aquele plano,

exceto a parte que eu tinha decidido acrescentar, tomado

pelo extremo ódio a tudo que simbolizasse Roma, seus

403

deuses infantis, suas leis estúpidas e sua luxúria

abominável.

Quanto mais eu andava pelo palácio e conhecia outros

membros da família real, como o depravado Caio Júlio

César Augusto Germânico, também apelidado por

“Calígula”, um dos netos de Tibério, mais repugnância eu

sentia por todos eles.

Confesso que ao testemunhar o tamanho da depravação que

havia dentro do palácio, eu sentia vontade de expor tudo

que se passava lá dentro ao povo de Roma, homens e

mulheres de bem que adoravam o Imperador como se ele

fosse um verdadeiro deus.

Eu sentia que o meu Deus, o verdadeiro Deus, estava me

usando para dar um fim àquele antro de perdição, do mesmo

modo como um dia Ele destruiu Sodoma e Gomorra; ou

quando, com o grande dilúvio, dizimou grande parte dos

seres que habitavam a Terra, salvando apenas os que

estavam na arca com Noé e sua família. Afinal, se Javeh

fizera aquilo no passado, o que o impedia de fazer outra

vez? Talvez agora Ele esperasse que homens como nós

fizéssemos aquilo que Ele já nos ensinara desde os tempos

primitivos: matar, destruir todos os que blasfemavam contra

Deus e viviam em pecado.

O que os romanos estavam fazendo com nosso povo por

quase cem anos, era abominável, intolerável e hediondo.

Todos os massacres e destruição que eles tinham causado

mereciam uma reparação. Se Deus já não mandava fogo do

céu para destruí-los, cabia a nós homens aqui embaixo, a

404

tarefa de dizimá-los com igual habilidade, mas fazendo uso

dos nossos próprios meios.

Depois de cumprir as minhas tarefas com o desatento filho

do Imperador, eu ia encontrar meus companheiros,

passando-lhes as informações sobre a movimentação das

tropas reais dentro e fora do palácio, o número de guardas,

os locais onde guardavam as armas e demais fatos de que eu

tinha conhecimento lá dentro. Passava-lhes, também, mapa

detalhado dos aposentos reais, para o caso de uma invasão.

Com a liberdade que aos poucos fui adquirindo, granjeei a

simpatia dos generais e demais capitães da guarda

pretoriana, tendo a oportunidade de chegar muito perto de

Tibério, um homem senil, com aparência cadavérica, cheio

de manchas no rosto que o deixavam com uma aparência de

leproso. Um verme abominável. Provavelmente, se eu

pudesse usar uma espada dentro do palácio, o teria

decapitado em uma das poucas vezes em que fui obrigado a

fingir ter-lhe afeto, deitando-me no mesmo ambiente que

ele e outros mestres e generais, para participar de alguns dos

extravagantes banquetes do imperador.

Na verdade, o que me importava era aproveitar aquelas

oportunidades para estudar a melhor maneira para eliminar

centenas de pessoas dentro daquele palácio ao mesmo

tempo. Um incêndio seria formidável. Eu chegava a

imaginar as imensas labaredas varrendo os salões

atapetados e devorando cortinas de seda onde os devassos

se escondiam. Gostava de imaginar vê-los queimando na

grande fogueira, um inferno criado aqui mesmo para puni-

los por suas maldades. Todos eram culpados. Ninguém

deveria escapar.

405

Quando meu coração parecia querer fraquejar, eu lia o

Talmude e assinalava todas as passagens que conhecia sobre

o modo como Javeh aniquilava os que o desobedeciam.

Houve momentos em que eu achei que a punição de Javeh

parecia muito severa. Mas, os romanos não faziam coisas

piores? Não estupravam nossas mulheres e crianças? Não

mutilavam nossos soldados e escravizavam o nosso povo?

Eram como erva daninha que infestava os campos de trigo e

precisavam ser ceifadas, arrancadas pela raiz. O nosso livro

sagrado estava cheio de exemplos do modo como o Senhor

tratava e mandava tratar os inimigos de Israel. Qualquer

atitude que eu tomasse, certamente receberia o aval de

Deus, pois era em nome Dele que eu estaria agindo, para

salvar os inocentes das garras do opressor. Li, incontáveis

vezes, os versículos do Talmude que mostravam de modo

inequívoco a ira de Javeh e a forma como Ele sempre

resolvia os problemas do seu povo:

Ezequiel 5:8-10 Como punição, o Senhor fez com

que as pessoas comessem a carne de seus próprios

filhos, filhas, pais e amigos.

Números 15:32-36 Estando, pois, os filhos de Israel

no deserto, acharam um homem apanhando lenha no

dia de sábado. Disse, pois, o Senhor a Moisés:

Certamente morrerá aquele homem; toda a

congregação o apedrejará fora do arraial.

Números 16:49 Uma praga enviada por Deus matou

14.700 pessoas.

Números 25:9 Outra praga divina mata 24.000

pessoas.

406

Números 21:35 Javeh manda que os Israelitas

matem todos os Amorreus, seus filhos e filhas até

não haver sequer um sobrevivente.

Números 25:4 Disse Deus a Moisés: Toma todos os

cabeças do povo e enforca-os ao Senhor diante do

Sol e o ardor da ira do Senhor se retirará de Israel.

Deuteronômio 20:16 Das cidades destas nações, os

heteus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os

heveus e os jebuseus que o Senhor teu Deus te dá em

herança, nenhuma coisa que tem fôlego deixarás

com vida.

Josué 6:21-27 E o Senhor manda a Josué passar ao

fio da espada todos os homens, mulheres e crianças

da cidade de Jericó.

Josué 8:22-25 Josué destrói todo o povo de Ai,

matando 12.000 homens e mulheres, sem que

nenhum escapasse.

Josué 10:40 Assim feriu Josué toda aquela terra, as

montanhas, o sul, e as campinas, e as descidas das

águas, e a todos os seus reis. Nada deixou de resto;

mas tudo o que tinha fôlego destruiu, como ordenara

o Senhor Deus de Israel.

Josué 11:6 O Senhor ordena o mutilamento (corte

dos tendões das pernas) dos cavalos.

Isaias 14:21-22 Preparai a matança para os filhos por

causa da maldade de seus pais.

407

Ezequiel 9:4-6 E disse-lhe o Senhor: sem

compaixão... matai velhos, mancebos, e virgens, e

meninos, e mulheres, até exterminá-los.

Ezequiel 21:3-4 E disse o Senhor: exterminarei

tanto o justo quanto o ímpio, ferindo-lhes a carne

com sua espada.

Os romanos eram idólatras, não guardavam o sábado, eram

ladrões e sanguinários. A nada temiam, nem aos seus

próprios deuses mentirosos. Se eu realizasse o meu plano,

estaria não apenas punindo com justiça todo o mal que

haviam cometido, como também impedindo que eles

continuassem cometendo novas atrocidades. Qualquer novo

governante teria mais cautela e prudência ao lidar com o

povo judeu dali por diante. Aquele seria o recado dos judeus

ao Império Romano.

Incêndio ou envenenamento? Sim, talvez uma dose mortal

de veneno poderia dizimar milhares de pessoas de uma só

vez. Bebida e comida seriam os veículos perfeitos para

Javeh cumprir o seu castigo divino por minhas mãos. Eu

teria que começar a planejar tudo antes da grande festa dos

Jogos Romanos em honra ao deus Júpiter, que sempre era

realizada entre os dias 5 e 19 de Setembro de cada ano.

Faltava pouco mais de um mês e a data seria perfeita. Eu

sabia que, no primeiro dia dos jogos, o Imperador daria um

grande banquete aos seus generais e convidados que vinham

de várias províncias e países. Alguns do meu povo também

estariam lá ao lado dele, servis e amansados pelo poder.

Morreriam todos. Todos aqueles que se deitavam com o

inimigo e comiam em suas mesas. Eu, embora também o

fizesse, não estava ali para banquetear-me com os homens

408

maus, mas sim para planejar a execução de uma obra que

havia tomado em minhas próprias mãos.

Cheguei a pensar várias vezes em confidenciar o meu

segredo a Simão Pedro, mas temi que ele pudesse ser

contrário, pois era ele a pessoa incumbida de assassinar o

Imperador e eu poderia atrapalhar os planos de Obadiah ou

quem mais estivesse envolvido. Portanto, eu teria de

trabalhar sozinho para alcançar o meu objetivo e,

provavelmente, o de todos os meus companheiros.

Graças aos meus conhecimentos de botânica obtidos na

Biblioteca de Alexandria com o mestre grego Dardanus e

aperfeiçoado com a Vestal Ariam de Glimeu, eu sabia como

preparar um veneno mortífero.

Sócrates, há 400 anos, havia sido morto ingerindo gotas de

cicuta, veneno extraído da planta com mesmo nome,

altamente tóxica, capaz de matar um homem em poucos

minutos por paralisia dos membros. Após ingerir gotas de

cicuta, a vítima não morria imediatamente, ficava

consciente até que todos os músculos parassem de

funcionar, incluindo os do coração e pulmão. Havia outro

poderoso veneno conhecido como acônito que, ao ser

ingerido misturado em uma bebida ou em um alimento,

provocava arritmia cardíaca e morte por sufocamento.

Bastavam algumas gotas de acônito para matar uma pessoa,

sem chances de salvação.

Eu pensei em misturar os dois venenos. Não daria chance de

escapatória aos inimigos. Qualquer antídoto seria ineficaz.

Meu plano era me infiltrar na cozinha no primeiro dia da

grande festa e colocar gotas da minha poção mortífera nas

409

panelas de alimentos que seriam servidos ao Imperador, sua

família, convidados e demais generais. Eu já estivera lá

várias vezes, com o pretexto de ensinar aos cozinheiros

reais como preparar pratos exóticos que aprendi fazer

quando estive no Oriente. Os guardas já não se

incomodavam com a minha presença em qualquer lugar do

palácio e por isso seria muito fácil executar o meu plano. Só

havia dois problemas que eu ainda não conseguira resolver

– o primeiro era como iria avisar aos demais companheiros

escribas e mestres que estariam no palácio naquele dia para

que não bebessem ou comessem nada durante a festa no

palácio. O segundo era a forma de colocar o veneno nos

alimentos, já que era um costume da época, antes que

qualquer alimento fosse levado aos membros da família real

e ao Imperador, os guardas escolherem, ao acaso, alguns

empregados da cozinha para prová-los e aguardavam alguns

minutos antes de continuar a servir, o que só ocorria se tudo

estivesse bem. Foi dessa forma que muitos governantes

foram poupados de morrerem envenenados. A comida e a

bebida eram sempre veículos muito fáceis de serem

manipulados e contaminados.

No primeiro dia da grande festa, muitos dos meus

companheiros levariam seus familiares e amigos para o

palácio porque haveria exibição de dança e apresentação de

músicos. Simão Pedro seria um deles, além de Tiago, filho

de Zebedeu e Tomé, que ensinava música ao filho do

Imperador. Além deles, havia outros infiltrados no palácio

que eu sequer conhecia. Simão nunca me disse exatamente

quem eram eles, para não comprometer a segurança dos

mesmos.

410

- Quanto menos você souber, melhor, Escriba. Nós

podemos ser apanhados a qualquer momento, em caso de

traição. Sob tortura, alguém pode delatar uns aos outros e

todos perecerão – disse-me ele, certa ocasião.

- Eu compreendo, Petrus. E quando será o dia em que você

vai executar o seu plano de assassinar o Imperador? Onde

será isso? – indaguei.

- Não vai demorar muito, Escriba. Estou aguardando ordens

de Obadiah. Ele quer que seja algumas semanas depois dos

Jogos de Roma, quando a vigilância ao Imperador já será

reduzida. Você sabe que, durante os jogos, Roma recebe

mais de trezentas mil pessoas e que gente de todas as partes

do mundo trazem seus campeões para lutarem na arena do

Circus Máximo. A cidade fica superlotada de estrangeiros.

O risco de atentado ao Imperador ou a algum membro de

sua família é muito grande, pois ele tem inimigos por toda

parte. Então, não seria fácil matar Tibério durante essas

festividades. Mas, depois da festa, a guarda pretoriana

relaxará e será nesse momento que entrarei em ação – disse-

me Simão Pedro, sussurrando no meu ouvido.

Ouvi tudo e permaneci silencioso, sorrindo por dentro, pois

ele estava enganado. Eu faria o trabalho completo muito

antes dele e com todo requinte de perfeição que o caso

requeria.

Passei a guardar a minha poção mágica dentro da própria

cozinha do palácio. Foi esse o nome que dei à mistura de

cicuta e acônito. Havia muitas ratazanas pelas ruas de Roma

e eu testei várias vezes, colocando gotas da mistura em

pedaços de queijo de cabra ou pão para que os ratos

411

comessem. Vi satisfeito que, antes mesmo de eles

terminarem de ingerir o alimento envenenado, caiam se

debatendo e morriam asfixiados em poucos instantes. Eu

não falharia em meu intento, se conseguisse resolver os dois

problemas que tinha nas mãos: avisar aos meus

companheiros para não comerem nada que fosse servido no

banquete e como envenenar os alimentos depois que estes já

tivessem sido provados pelos guardas e empregados

designados.

O primeiro dilema seria mais fácil, pois eu poderia avisar a

Simão Pedro no dia em que estivesse pronto para executar o

meu plano e ele se encarregaria de avisar aos demais. Só ele

os conhecia. O segundo problema dependeria de um pouco

de sorte e empenho de minha parte. Era necessário um

trabalho de investigação delicado.

Circulando discretamente pela cozinha para não despertar

suspeitas, percebi qual era a rotina do serviço de servir

alimentos à família real. Um capitão pretoriano escolhia ao

acaso, diariamente, dois cozinheiros e os fazia provar cada

um dos alimentos e bebidas que seriam levadas ao

Imperador ou convidados ilustres. Depois que a comida era

testada, ficavam dois guardas dentro da cozinha para

protege-la, por medida de segurança.

Ali estaria a possibilidade de uma falha. Eu só precisaria

criar algo que distraísse os guardas enquanto a poção

mágica fosse colocada nas panelas e na bebida. Teria que

ser criada uma distração que desse tempo suficiente para a

consumação do envenenamento.

412

A minha presença na cozinha despertaria suspeitas sobre

mim, então, seria melhor eu subornar alguém da própria

cozinha, pois, exceto o chefe e dois auxiliares, todos os

demais eram escravos qualificados. Mas quem?

Naquela época, eu já era um homem com algumas posses,

pois, mesmo naquele curto período de tempo em que estava

trabalhando para a família do Imperador, havia recebido

excelentes salários e fizera inúmeros trabalhos extras como

escriba particular de ricos comerciantes, transcrevendo

documentos, elaborando biografias e resumos históricos,

inclusive ao lado de Flávio Josefo, historiador que havia

documentado a vida em Jerusalém durante o tempo de

Herodes, além de ter relatado a vida de alguns Imperadores.

Também conheci Públio Cornélio Tácito, um importante

orador, historiador e filósofo romano. Eram homens

inteligentes e visionários. Nas ocasiões em que trabalhamos

juntos na tradução de alguns documentos, ambos

demonstravam acreditar que em poucos anos haveria

mudanças radicais no Império Romano e que o mundo seria

bem diferente daquele em que vivíamos.

Eu queria mudanças imediatas. Não tinha tempo para

esperar dez, vinte ou trinta anos. Por isso, deveria me

concentrar nos preparativos para o grande dia do banquete

oficial. Com sorte, eu poderia subornar um cozinheiro para

completar o meu trabalho. O único risco que eu corria era se

escolhesse o homem errado. Se fosse assim, tudo estaria

perdido e o meu corpo seria apenas mais uma vida a servir

de alimento para os leões do Circus Máximo, durante os

jogos de Roma.

413

Fui consultar Simão Pedro, na esperança de que ele me

falasse de algum infiltrado que estivesse trabalhando na

cozinha do palácio. Por três vezes, ele negou conhecer

alguém, mas, ao fim de algum tempo, ele acabou

informando que havia uma pessoa na cozinha que não era

infiltrado, mais era filho de um judeu e de uma romana. Seu

nome era Trazíbulo, deveria ter não mais que vinte e cinco

anos e era um especialista em vinhos. Pedro me disse que

talvez ele pudesse ser subornado.

- Afinal, para que você precisa dessa informação, Escriba?

O que está tramando? Indagou Pedro, desconfiado.

- Na verdade, eu sempre quis saber quais eram as pessoas

que trabalhavam na cozinha do Imperador, imagino que

seria muito fácil alguém envenená-lo, não seria? Falei,

tentando ampliar a conversa.

- Envenenar um imperador não é nada fácil. Requer calma,

estudo e determinação. Muitos já tentaram, mas não

conseguiram. No passado, algumas poucas tentativas

tiveram sucesso. Tibério não será morto por um veneno... é

muito suave... ele precisa ter a cabeça decepada por uma

espada genuinamente judaica e enfiada numa estaca e

exposta em praça pública, como ele tem mandado fazer com

os nossos irmãos judeus.

Gostava de ver Pedro falando daquele jeito. Remetia-me à

lembrança do ódio aos romanos que professava Calebe, meu

amado irmão, do qual eu nunca mais tivera notícias e nem

dos meus demais familiares.

Eu estava prestes a realizar algo que meu irmão sentiria

orgulho de mim, se soubesse.

414

A possibilidade de falha na segurança do pessoal

encarregado de servir alimentação ao Imperador já havia

sido identificada. Com cautela e poder de convencimento,

talvez eu conseguiria convencer o rapaz da cozinha a seguir

meu plano. E se ele não aceitasse? Deveria matá-lo para que

não me denunciasse? Ora, estávamos em uma guerra. E

quando se trata de uma guerra declarada, sempre haverá

baixas, mortos e feridos. Não havia outra maneira de

romper com a dominação do Império. Uma força tão grande

precisava ser domada com o uso da inteligência e com

alguma força bruta, quando fosse o caso. Não teria peso na

consciência, se tivesse que agir de modo radical. Mais

radicais do que os modos romanos de lidar com as pessoas,

não existia.

Esperei o momento em que Trazíbulo saiu do palácio,

depois da sua dura jornada de trabalho que era de doze

horas, e o segui pelas ruas de Roma até a casa dele, que

ficava num dos bairros pobres da cidade. Lá não havia a

famosa Cloaca Máxima, sistema de canalização que servia

para levar os dejetos das casas para o rio. Nem mesmo havia

fontes de águas trazidas pelos aquedutos que abundavam na

região das moradas dos abastados cidadãos romanos,

senadores e generais. O mau cheiro das ruas era quase

insuportável para alguém que, como eu, já me habituara à

limpeza das ruas do centro da cidade e ao aroma dos

perfumes palacianos.

Eu o seguira disfarçado, pois as minhas roupas de seda

indiana denunciariam a minha origem. Eu adquirira roupas

comuns que eram usadas pelo povo, para compor o meu

disfarce.

415

Observei a morada de Trazíbulo e, do lugar onde eu me

postara, podia ver o movimento de pessoas entrando e

saindo da casa. Havia duas moças que deveriam ter entre 19

e 20 anos e um outro rapaz que parecia ser um irmão mais

moço de Trazíbulo. Descobri que cultivavam a religião

judaica, já que frequentavam uma sinagoga durante o

Sabah. Era uma família pobre e, portanto, qualquer ajuda

seria benéfica. Mas, e se pensassem em lucrar mais,

entregando-me à guarda pretoriana? Nesse caso, eu estaria

em sérias dificuldades. Poderia tentar suborná-lo sim, mas

precisava também conhecer mais detalhes da vida dele para

deixar uma ameaça explicita, caso não concordasse com

minha proposta ou se me traísse.

Completei as minhas investigações e decidi que era o

momento para abordar Trazíbulo. Esperei que ele estivesse

na rua para cumprimentá-lo casualmente.

- Olá Trazíbulo, posso falar com você um momento? - disse

eu sorrindo, ao me aproximar do rapaz que imediatamente

me reconheceu.

- Olá Escriba... claro, pode sim. Do que se trata?

Levei-o para um local mais afastado da praça Navona e nos

sentamos em um banco de mármore.

Perguntei inicialmente o que ele fazia no palácio e a quanto

tempo. Ele confirmou que era uma espécie de provador de

vinhos e também auxiliava no preparo de alimentos quando

necessário. A tarefa dele era selecionar os vinhos prediletos

de cada general e do Imperador. Sempre que o Império

recebia um lote de vinho, era ele, junto com outros colegas

que testavam a qualidade e selecionavam os melhores para

416

o palácio. Indaguei-lhe sobre quanto recebia pelo trabalho e

se gostava do que fazia.

- No começo eu não gostava, mas depois fui me

acostumando. O que ganho dá para viver. Sou órfão de mãe

e só o meu pai trabalha no campo com meu irmão mais

moço. Tenho duas irmãs que também trabalham como

serviçais.

Quis saber qual era a opinião dele sobre o Imperador

Tibério e seus generais.

- Eu não me meto com assuntos de política – disse ele se

esquivando e me olhando com certa desconfiança.

- Tenha calma, Trazíbulo. Não sou um espião do Imperador.

Quero saber o que você pensa sobre as coisas que vê dentro

do palácio. Você gostaria que algo fosse mudado?

- Sim... quer dizer... Sim e não. Mudar de Imperador não

resolve tudo, o senhor não acha? Cada um que entra faz

coisas boas e coisas ruins. Minha mãe, que era romana,

sempre esperou o dia em que Roma teria um Imperador que

fosse bom para o povo.

- E quanto ao atual Imperador, você gosta dele?

- Acho que nem ele gosta de si mesmo... – disse o rapaz

sorrindo.

- Então não gosta? Se tivesse que fazer alguma coisa para

dar chance a algum outro melhor, você faria?

- O senhor está falando em matar Tibério?! – perguntou o

rapaz, alarmado.

417

- Sim, isso mesmo, matar o imperador Tibério. Mas não

apenas ele, todos os que o cercam, inclusive os generais.

Seu pai é judeu, não é?

- Sim, como o senhor sabe disso?

- Tenho amigos que conhecem a sua família, onde você

mora, onde seu pai trabalha e tudo mais. Na verdade, nós

precisamos de sua ajuda para fazer um trabalho que vai

libertar o povo de Roma e os judeus da opressão e da

pobreza. Esse grupo de pessoas planeja mudar

completamente o cenário atual e dar a chance para que o

Senado, que melhor representa a vontade do povo, possa

eleger um novo governante. Sabemos que se apenas Tibério

for morto, o filho ou outro familiar assumirá o trono. Por

isso, estamos prontos para desferir um golpe mortal contra a

família do Imperador, seus generais carrascos e tudo de

ruim que eles representam.

O rapaz não respondeu. Baixou a cabeça e ficou pensativo.

Não deveria ter mais que vinte cinco anos e tinha uma boa

cultura, pois convivera com mestres da cozinha romana e

conhecedores de vinho de outras partes do mundo. Ele

entendera tudo o que eu havia dito. Depois de alguns

minutos, ele ergueu os olhos e me disse pausadamente.

- Sinto muito, senhor Escriba, mas não vou participar de um

assassinato de um imperador. Não quero ser culpado pela

morte de inocentes. O banquete será oferecido para

quinhentas pessoas, entre familiares do Imperador, generais

e convidados de honra. O senhor acha que eu quero

participar do assassinato dessas pessoas?

418

Percebi que era um rapaz de bom coração e que

provavelmente não havia sofrido como eu, apesar de ser

órfão de mãe. Entendi que dissuadi-lo pelo convencimento

não seria suficiente. Tentaria a segunda fórmula. Precisava

usar a dialética de Platão que o mestre Dardanus havia me

ensinado tão bem.

- Eu entendo, Trazíbulo. Você está certo em um ponto, não

é correto matar inocentes... Mas, se você conhece o

Talmude, deve saber...

- Eu não estou interessado no Talmude. Não estou

interessado em mais mortes. Não estou interessado em

arriscar a minha vida ou da minha família para entregar o

poder do meu país a um outro louco qualquer. Se o senhor

não tem mais nada a falar, tenho que ir, meus irmãos me

esperam – disse o rapaz, levantando-se.

- Pois se você realmente ama os seus irmãos e o seu pai,

deveria sentar e me ouvir. Meus amigos não vão gostar

muito de saber que você está me ameaçando...

- Eu não estou ameaçando a senhor. Apenas estou dizendo

que não vou participar do seu plano ou dos seus amigos.

- Talvez você agora queira me entregar para a Guarda

Pretoriana, não é Trazíbulo? Acha que eles vão te premiar

por isso? Talvez lhe deem 10 moedas de prata sujas e um

tapinha no seu ombro. Meus amigos e eu podemos te

oferecer muito mais. A verdade é que agora que você já

sabe que iremos matar a todos naquele palácio, você se

tornou um cúmplice, se não me entregar. Caso você se

recuse a colaborar, o plano será executado assim mesmo. E,

se você me entregar aos romanos, eu não posso garantir pela

419

vida dos seus irmãos nem do seu pai. Nem mesmo a sua, a

partir de agora.

O rapaz sentou-se e começou a chorar com a cabeça entre as

pernas. Ele estava rendido. Era o momento de oferecer a

recompensa. Uma vez mais, a filosofia grega que usava as

ideias e argumentação lógica como instrumento para se

obter uma mudança de opinião, estava funcionando. Só se

pode vencer uma argumentação com outra e, naquele

momento, o rapaz não tinha escolha.

- Escute Trazíbulo, você será um homem muito rico e

poderá ajudar a sua família. Depois que a limpeza for feita,

você poderá ir se juntar aos seus familiares longe de Roma e

terem uma vida digna. Poderão comprar terras e viverem em

liberdade. Você poderá ensinar a sua arte aos que quiserem

aprender e será um homem respeitado.

- Se alguma coisa de mal acontecer à minha família, eu juro

por todos os deuses que matarei você e quem mais estiver

por trás dessa trama imunda.

- Não se preocupe, ninguém fará mal à sua família. Tudo o

que você precisa fazer, será feito na próxima semana.

Primeiro te darei algum dinheiro para que você retire seus

familiares de Roma. Existem vilas próximas daqui, com

casas confortáveis. Providencie para que eles fiquem bem.

Diga-lhes que você tem um patrono, alguém que quer ajudá-

lo. Não diga nada sobre o nosso plano...

- Nosso plano?! Não temos um nosso, aqui, senhor. Tenho o

seu plano...

420

- Tenha calma, Trazíbulo. Você saberá o que fazer no dia

exato. Por enquanto, tudo o que precisa saber é isso. Você

está de acordo com os meus termos?

- Ou...

- Não vou ser cínico com você... acho que você já sabe o

que acontecerá a você e aos seus familiares se você me

entregar aos romanos. Se, por outro lado, cumprir a missão

que lhe daremos, será recompensado e de quebra ficará livre

dessa corja...

- Agora posso ir, senhor?

Deixei que fosse e rezei fervorosamente para que ele se

mantivesse calmo e aceitasse o desafio que agora também

lhe era uma chantagem com ameaça de morte. Até onde

teríamos que chegar para conseguirmos mudar o mundo,

mudar os governantes? Eu iria até o inferno, se preciso

fosse, até porque eu já me sentia dentro dele.

Não dormi muito bem naquela noite. Mesmo não estando

no palácio, me sentia apreensivo e tinha a sensação de que

mãos invisíveis estivessem me perseguindo, tentando me

alcançar. Acordei cansado e fui cumprir a minha tarefa

palaciana – instruir ao jovem Druso, que se mostrava a cada

dia menos interessado em aprender hebraico ou história dos

povos. O que ele queria mesmo era saber das minhas

aventuras pelo mundo e era conversando sobre isso que

matávamos o tempo. Minha chegada ao palácio pareceu

normal, eu cumprimentei a todos e nenhum soldado romano

me impediu de chegar ao aposento onde o príncipe herdeiro

estava à minha espera.

421

- Escriba... Escriba... eu tive um sonho esta noite. Você sabe

interpretar sonhos? – disse-me ele, ao me vir entrar.

- Claro, sei sim. Conte-me qual foi o seu sonho – disse,

aproximando-me do menino.

Ele me contou. Era uma mistura de medos infantis com

desejos de grandeza. No sonho, ele usava uma espada de

fogo para lutar contra os ciclopes que o arrastavam para o

fosso cheio de enxofre. Ele os enfrentava destemidamente,

cortando-lhes as cabeças. Mas, no fim, monstros vindo do

mar o perseguiam. Embora ele gritasse por socorro, não saia

som da sua boca e os monstros o sufocavam até que ele se

viu na escuridão e acordou cheio de terror correndo para o

quarto da mãe.

Eu fiz uma interpretação que satisfez ao menino, muito

embora eu tivesse percebido que, com certeza, ele tivera um

sonho profético. Ele tinha profetizado a própria morte. Era

por sufocamento que a minha poção mágica iria dar cabo de

sua triste vida. Seria um Imperador a menos na Roma

pecaminosa.

Fui à cozinha ver se Trazíbulo tinha ido trabalhar naquele

dia e, para a minha satisfação, ele estava lá, diligente e

sorridente como sempre. Ao me ver, a expressão de alegria

se apagou do seu rosto e ele veio falar comigo.

- Eu farei o que o senhor quiser, mas, por favor, não faça

mal à minha família. Ela é a única coisa boa que tenho. Por

favor... – disse baixinho o rapaz, em tom de súplica.

Agora sabia que eu tinha um cúmplice, mas não tinha

certeza de que ele seria capaz de fazer o que eu iria lhe

422

pedir no dia escolhido. Também não estava certo de que

tudo daria certo com a distração que eu criaria na cozinha

para fazer os soldados se afastarem o tempo suficiente para

que fossem despejadas poções do líquido venenoso em

todas as grandes panelas e vasos com vinho.

Meu plano era instruir Trazíbulo para que, no dia em que eu

lhe entregasse a poção mágica,, após os guardas provarem a

comida, ele me desse um sinal por uma das janelas da

cozinha que dava para um pátio interno, jogando um

punhado de folhas. Eu, imediatamente, jogaria dentro da

cozinha, por uma das janelas, três ratazanas gigantescas que

havia recolhido das ruas e as mantinha em uma gaiola em

meu quarto. O tumulto causado pelos ratos deveria distrair

os guardas o tempo suficiente para que a comida fosse

envenenada. Quando os ratos fossem capturados, se fossem,

o processo de envenenamento dos alimentos deveria estar

concluído. A comida seria levada aos convidados para o

banquete sem maiores suspeitas e o plano chegaria ao fim.

Trazíbulo deveria sair imediatamente do palácio e ir se

juntar aos seus familiares. Para provar minha boa fé, no dia

anterior ao dia da ação planejada, eu daria a ele uma bolsa

contendo o dinheiro cujo valor correspondia a dez vezes

mais o que ele ganhava por ano como provador de vinhos

do palácio. Eu esperava que isso garantisse a fidelidade dele

ao nosso acordo.

Minha ansiedade aumentava à medida que se aproximava o

grande dia.

Poção mágica testada, ratazanas aprisionadas e bem

alimentadas, Trazíbulo informado do que deveria fazer,

convidados de todas as partes enchendo as dependências do

423

palácio, guardas fortemente armados, correndo de um lado

para o outro sobre os gritos dos comandantes, meu coração

a mil, esperando o grande momento.

Dois dias antes da data em que eu havia programado para

levar a cabo meu intento, Pedro invadiu meu quarto

eufórico.

- Escriba! Escriba!! Acho que tenho uma novidade para

você. Hoje conheci um homem que veio da Judeia, mais

precisamente de Jerusalém. Ele disse que aqui em Roma

existe uma pessoa que conhece a sua família. Acho que ele

tem informações sobre o paradeiro dos seus irmãos.

Meu coração disparou de felicidade.

- Que maravilha essa, Pedro. E onde está essa pessoa?

- Amanhã, por volta do meio dia, ele levará essa pessoa ao

mercado para te apresentar.

- Amanhã?! Não pode ser hoje? você sabe, amanhã é o dia

da abertura dos Jogos de Roma, podem precisar de minha

ajuda aqui no palácio.

- Então você prefere ficar no palácio para a festa do

Imperador a ir ter notícias de sua família? indagou Pedro,

desconfiado.

- Não é isso, meu bom amigo. O problema é que eu já tinha

planejado algumas coisas...

- Que coisas, Escriba? Pode me dizer o que é mais

importante do que ter notícias de sua família?

424

Eu não poderia revelar meu plano naquele momento. E,

mesmo querendo muito ter notícias dos meus familiares,

decidi que isso poderia esperar. Por isso, simulei concordar

com Pedro.

- Claro que não há nada mais importante que minha família.

Amanhã iremos ver esse tal homem. Encontre-me no portão

principal do mercado central, por volta do meio dia. Vamos

ver o que essa pessoa tem a me dizer.

Dentro de mim não havia dúvida de que eu não iria

retroceder no meu propósito de realizar a tarefa que me fora

incumbida pelo Senhor. Pelo menos era assim que eu

acreditava naquele momento. Tudo já estava acertado.

Trazíbulo já tinha em mãos uma garrafa de cerâmica

contendo a poção mágica para despejar nos principais

alimentos e bebidas que seriam servidas no grande banquete

do dia da abertura do jogos. Depois de concluir minha

missão, eu iria ao encontro de quem quer que fosse para ter

notícias de meus familiares. Então, se fosse possível

encontrá-los, eu os premiaria com a revelação de que fora

eu o homem que, de uma só vez, dizimou centenas de

carrascos, incluindo o Imperador e todos os seus familiares.

Quando Pedro foi embora, saí para dar uma volta pela

cidade e refazer meus planos de fuga. Havia comprado um

cavalo e o mantinha em um sitio de outro mestre que eu

conhecera. Assim que concretizasse o meu plano, sairia por

um túnel que descobrira em uma das minhas explorações do

palácio e chegaria ao sitio que ficava a apenas meia hora de

caminhada rápida. À cavalo, rumaria rumo ao norte até o

Porto de la Vechia, de onde seguiria para a Síria ou Egito.

Eu sabia que havia muitos barcos ancorados lá e não seria

425

difícil embarcar em um dos que transportavam mercadorias.

Eu tinha dinheiro suficiente para convencer a qualquer

capitão. Meu plano era perfeito. Eu havia também elaborado

um plano secundário. Eu tinha sempre em mente os

ensinamentos de Mestre Dardanus, quem me ensinou a arte

de resolver problemas. Dizia ele:

- Primeiro fixe o objetivo a ser alcançado. Faça todos os

planos possíveis para o alcance de suas metas. Examine

todas as possibilidades de erro e acerto. Corrija os erros.

Depois de tudo pronto, crie um plano secundário para o

caso de ocorrer algum imprevisto com o primeiro plano.

Eu tinha não apenas um plano secundário, mas também um

terciário que era extremamente radical. Um deles era atear

fogo ao palácio e para isso eu já havia localizado os barris

de betume e óleo que eram usados nas tochas e lamparinas.

Possuía cópia da chave do local onde os barris eram

guardados. Bastaria uma pequena distração com ratos

espalhados pelo palácio, para eu ter tempo de atear fogo e,

no meio do tumulto, escapar pelo túnel cuja tampa de saída

para os fundos eu já havia removido dias antes. Um bom

plano requer muito trabalho e paciência. O plano radical era

ainda mais audacioso, eu iria aproveitar um momento de

distração dos guardas dos aposentos reais, entrar nele

durante a festa e esperar por Tibério. Eu ainda sabia

manejar bem uma espada pela aprendizagem que tive com

mestre Chen Tuang e a minha estava pronta para usar

quando chegasse a hora. Talvez eu não saísse com vida do

palácio depois de matar o imperador, mas lutaria até a

morte, disso eu tinha certeza.

426

Quando o dia amanheceu, fui direto inspecionar a cozinha

para ter certeza de que Trazíbulo estava lá e pronto para

cumprir o que tínhamos combinado. Havíamos conversado

dois dias antes e ele estava resoluto pelo fato de saber que

eu cumprira o trato de beneficiar e proteger a família dele,

levando-a para um local afastado onde começaram uma

nova vida, aceitando a ajuda de um benfeitor, como ele lhes

dissera. Tudo o que ele queria era acabar logo com aquela

tarefa maldita e fugir do palácio depois de envenenar os

alimentos. Ele sabia que não poderia permanecer nas

dependências do palácio quando as pessoas começassem a

morrer. Ele teria não mais que meia hora para alcançar os

portões e chegar à rua e dali seguir em uma carroça alugada

para a vila onde a família o esperava.

Ao passar pelo pátio central do palácio, vi um grupo de

homens e mulheres chegando. Todos pareciam ser pessoas

abastadas, pois, além de terem guardas pessoais, traziam

muita bagagem e usavam roupas finas. Havia pelo menos

trinta pessoas entre homens e mulheres. Esperei que

passassem por mim e tive que arregalar os olhos para

confirmar que um dos homens que ali chegara era o Sumo

Sacerdote Essênio, Obadiah.

Não sabia se ficava feliz ou desapontado com aquela

descoberta. Eu já havia sido informado que muitos homens

respeitados pelo Imperador eram convidados para aquela

grande festa. Obadiah, até onde eu sabia, era um homem

muito rico, dono de muitos navios mercantes espalhados por

vários países. Deveria ser dono de muitas propriedades e

fazendas. A presença dele ali poderia ser um jogo político.

O único problema seria que, se ele participasse do grande

banquete oferecido pelo imperador, morreria junto com ele.

427

Eu poderia avisá-lo ou deixá-lo morrer. Quem se mistura

aos cães, dos ossos se servem. Eu havia aprendido essa lição

com os antigos.

Obadiah sabia que eu estava vivendo no palácio desde que

me enviara com uma falsa missão. Porém, ele não sabia que

eu decidira resolver as coisas ao meu próprio modo,

antecipando a morte de Tibério.

Voltei para o meu quarto e encontrei Simão que esperava

por mim.

- Escriba, por onde você andou? Estava à sua procura desde

cedo – disse ele, afobadamente. Vamos, temos que ir agora

encontrar a pessoa que tem notícias de seus familiares.

- Mas eu te disse que estaria no mercado ao meio dia...

- Sim, mas você se esqueceu de que deve estar aqui para o

grande banquete. Sua presença será importante. Obadiah,

Malachai e todos os nossos irmãos foram convidados e

estarão presentes. Eles querem olhar na face do Imperador

Tibério pela última vez.

Eu fiquei perplexo.

- Quer dizer que todos participarão do banquete que será

oferecido hoje? Então os nossos mestres e irmãos escribas

serão parte dos quinhentos convidados reais na festa de

hoje?

- Sim, e até eu serei um deles. Estarei face a face com o

homem que não mais atormentará o nosso povo dentro de

algumas semanas. Esse talvez seja o mais importante

banquete de minha vida.

428

- Mas..

- Não tem mas... vamos correndo, pois temos pouco tempo

para irmos ao mercado e voltarmos. Todos querem

encontrar um lugar no Circus Máximo que estará lotado no

começo da tarde para assistir a abertura dos jogos depois do

banquete – disse Pedro, puxando-me pela túnica.

- Pedro... Pedro! Espere... não posso ir agora – disse eu,

relutante. Tenho algo muito importante para fazer agora. Vá

na frente e eu irei em seguida. Por favor, eu te peço. Não me

faça perguntas. É muito importante o que preciso fazer

agora.

Pedro me soltou, mas me olhou no fundo dos olhos. Ele

sabia que eu estava mentindo. Ele sabia que alguma coisa

estava acontecendo, mas, ainda assim, ele apenas me disse

com a sua voz grave e profunda.

- Está bem Matias... Eu confio em você. Por favor, não me

desaponte. Eu irei na frente e pegarei as informações sobre

seus familiares e voltarei a tempo para participar do

banquete. Não coma toda a salada de verduras... deixe um

pouco para seu velho amigo, está bem?

Pedro saiu e eu respirei aliviado. Só quando ele já estava

longe das minhas vistas é que me dei conta de que talvez

não houvesse tempo para que ele informasse aos demais

infiltrados no palácio para não comer nada do baquete

naquele dia. Eu apenas desejei que ele voltasse rapidamente

antes que o banquete fosse servido. Caso contrário, todos os

meus planos iriam falhar. Como avisar a Malachai ou

Obadiah do perigo que corriam? Então, ao pensar neles,

lembrei que, se Pedro sabia quem eram os agentes

429

infiltrados no palácio, Obadiah e Malachai também sabiam

e teriam um modo rápido de se comunicar com eles.

Corri depressa para a ala destinada às autoridades visitantes

mas fui barrado por um pelotão de soldados.

- Preciso falar urgentemente com mestre Obadiah... deixe-

me passar, sou o Escriba de Alexandria, tutor do filho do

Imperador. Disse-lhes, mostrando um anel de ouro com o

símbolo do império que eu só usava em ocasiões especiais

para abrir portas.

- Ninguém pode entrar aqui, senhor. O senhor precisa da

autorização do nosso comandante Adriano Paulus...

- Adriano Paulus?! Pois ele me conhece. Leve-me até ele,

por favor.

Eu estava com sorte. Adriano Paulus fora o capitão do navio

que me trouxera da Ilha de Patmos para Roma. Ele me daria

passe-livre, eu tinha certeza.

Quando o comandante autorizou a minha entrada na ala

destinada às autoridades ilustres, corri pelos corredores

procurando por Obadiah ou Malachai. Havia muitas pessoas

nos corredores, ocupando três andares do palácio.

- João?! João?! Ouvi uma voz conhecida vinda do meio da

pequena multidão. Era Malachai.

- Por onde você andou meu filho? Estávamos à sua procura

– Disse o velho ancião, abraçando-me fortemente.

430

- Eu também os procurava mestre Malachai. Tenho algo a

lhe dizer que requer a sua mais profunda atenção... – disse

eu, ofegante.

- Calma... calma... primeiro eu tenho que te levar a um lugar

e depois ouvirei o que você tem a dizer. Pode ser? O que eu

tenho para te mostrar é urgente e não pode esperar nem

mais um instante – disse o mestre, arrastando-me pelo

corredor, ao tempo em que pedia licença aos que se

acotovelavam num ir e vir frenético, transportando malas,

caixotes, roupas e outros estranhos objetos.

Não havia outro jeito. Tive que me deixar conduzir.

Malachai parou diante de um dos quartos em que havia dois

guardas de sentinela à porta, um egípcio e outro romano.

- João... espere aqui. Feche os seus olhos e não abra

enquanto eu não mandar, está bem? Por favor, não abra... –

disse-me ele, arquejante pelo esforço da caminhada e pela

visível excitação na voz.

Esperei. Será que algum dos meus mestres da Índia, China

ou Grécia estava ali? Sêneca ou outro filósofo importante?

Deveria ser alguém muito importante, pois raramente um

visitante podia dispor de sentinelas em seus aposentos.

Após alguns instantes, senti uma mão suave e macia

tocando o meu rosto. Depois, suavemente ela deslizou por

meu cabelo e desceu até os meus ombros. Depois foram as

duas mãos envolvendo o meu rosto. Senti vontade de abrir

os olhos, mas continuava resistindo conforme havia

prometido a Malachai.

431

- Matias... Matias... Matias... meu irmão querido...

Abri os olhos e vi diante de mim a face de uma mulher que

lembrava em tudo a minha mãe, mas era ainda mais bonita.

- Mírian?! Mírian?! É você, minha irmãzinha querida? É

mesmo você?! – nos abraçamos sorrindo e chorando.

Ficamos ali nos admirando sem nos dar conta de que uma

pequena multidão assistia a tudo emocionada.

Foi Malachai que dispersou a multidão e nos fez entrar nos

aposentos da minha irmã que estava acompanhada de outras

mulheres. Depois nos deixou a sós. Um reencontro de

irmãos após 20 anos, merecia privacidade.

- O que aconteceu, minha irmã? Conte-me tudo. Eu sempre

esperei por esse dia. Sempre quis saber o que tinha

acontecido depois que eu fugi de casa deixando você, meus

irmãos e minha mãe com o tio Eliabe. Como estão eles? E o

meu pai? Tem notícias de meu pai?

As perguntas jorravam aos borbotões de minha boca e eu

nem conseguia esperar pelas respostas. Minha irmã Mírian

ali em minha frente era um milagre.

- Eu julgava que vocês estariam mortos sob a espada dos

romanos. Fale-me, Mírian, o que aconteceu?

- Meu irmão, tenha calma... eu te contarei tudo. Primeiro

preciso te dizer que hoje eu sou uma cidadã romana...

- Cidadã romana?! Como assim? – indaguei, surpreso.

- Muitas coisas aconteceram nos últimos vinte anos, desde a

sua partida. Tio Eliabe morreu repentinamente e nós

432

tivemos que vender tudo e nos mudarmos para Cesaréia, às

margens do Mediterrâneo.

- Minha mãe se casou outra vez?

- Sim, ela conheceu um comerciante de tecidos da Síria e se

casaram. Ele foi tão bom para nós como o nosso próprio

pai. Nos protegeu e nos ajudou em tudo. Ao 16 anos, eu

ajudava minha mãe no bazar que tínhamos e foi quando eu

conheci um capitão da guarda romana que acampava em

Cesareia e que sempre ia comprar tecidos para os

familiares. Apesar de sempre odiarmos os romanos,

Vinicius era diferente. Tratava-nos com respeito e até nos

protegia. Por ser o comandante das tropas da região, nós

gozávamos de toda a proteção possível e ninguém ousava

nos molestar.

- Quer dizer que você se casou com um capitão romano? –

indaguei, estupefato.

- Sim, mas ele agora não é mais um capitão é general e foi

enviado para Roma para ajudar na proteção da cidade. Por

isso, eu estou aqui. Já estivemos várias vezes aqui e temos

uma bela casa em Nápolis. Tenho 4 filhos, dois meninos e

duas meninas. Você tem muitos sobrinhos, Matias.

Eu fiquei totalmente sem chão. Lembrei-me do que estava

planejando realizar naquele dia e, por pouco, não levaria

minha irmã e muitas outras pessoas queridas no meu ato de

vingança. Seria aquilo um sinal de Deus para que eu

recuasse? Mas se fosse assim, por que razão Ele havia me

dado inspiração para preparar tudo, organizar tudo,

seguindo sempre o método antigo que Ele mesmo vinha

usando desde que criara o ser humano? Dizimar, destruir,

433

massacrar, mutilar e ferir os inimigos. Será que Deus estava

mudando o modo de agir? Ou será que seria nós quem

devíamos fazê-lo? E se fosse assim, aquela estratégia que eu

planejara e que também meus mestres haviam elaborado,

estava errada?

- Matias... você parece não estar me ouvindo... parece

perdido, olhando para o vazio. Alguma coisa aconteceu a

você? Parece desolado... – ouvi a voz da minha irmã que

parecia vir de longe, mas ela estava ali sentada ao meu lado,

segurando as minhas mãos e contando-me tudo o que eu

gostaria de ter ouvido com clareza.

- Tenho algo terrível para te contar, Mírian. Mas precisa

jurar que não revelará isso a ninguém.

- O que há de tão terrível, meu irmão. Conte-me? – disse

Mirian apreensiva.

Contei-lhe tudo.

Minha irmã ouviu tudo estarrecida e a única coisa que ela

conseguiu fazer, com os olhos banhados em lágrima, foi

ajoelhar-se aos meus pés.

- Meu irmão querido... meu amado Matias... por favor, eu te

peço em nome de Javeh, em nome de todos os deuses que

você conheceu, em nome de minha mãe e meu pai, em

nome dos nossos irmãos, em nome de todas as pessoas boas

que estão ao nosso lado, por favor, desista desse plano.

Desista disso agora mesmo... eu te imploro! Eu te imploro.

434

435

Capítulo XVII - A Sorte Está Lançada

Provavelmente, os poucos leitores destes meus papiros, em

qualquer época em que eles sejam encontrados, saberão

quão intensa e profunda é a sensação de reencontrar entes

queridos, com os quais não se tinha contato por muitos

anos, como foi o meu caso.

Os acontecimentos que se sucederam naquele primeiro dia

dos Jogos de Roma sob o governo do Imperador Tibério

Cláudio Nero César, jamais sairão da minha memória.

Em outra ocasião, narrarei as notícias que tive sobre meus

irmãos, meu pai e minha mãe e os seus destinos, conforme

me relatou minha adorada irmã, que naquele dia fora

enviada pelo Senhor para me salvar da perdição eterna, caso

eu cometesse aquele assassinato em massa, condenando

também à morte, meus entes queridos, alguns dos meus

irmãos escribas e muitas pessoas que fizeram diferença no

mundo por estarem vivas atualmente.

Já em idade avançada, eu pude acompanhar, mesmo ao

longe, o trágico fim dos imperadores romanos. Em poucos

anos, os Imperadores foram vítimas de toda sorte de

desgraças: doenças graves, mortes por envenenamento ou a

golpes de espada por seus próprios guardiões. Poucos

tiveram mortes naturais. Tibério não fora assassinado por

Simão Pedro que, como eu, também recebeu ordens para

retornar para Alexandria, como todos os demais infiltrados.

Tibério morreu aos 73 anos de uma doença estranha e todo

deformado. Quem o sucedeu foi o depravado neto de nome

Caio Júlio César Augusto Germânico, o “Calígula”, que

436

mandou matar dois tios e um sobrinho e foi assassinado aos

28 anos pelo soldado da guarda pretoriana, de nome

Cherrea, o qual também matou a esposa de Calígula,

Milônia Cesônia, e, ainda, a filha do casal, Júlia Drusila.

Depois disso, subiu ao trono, Tibério Cláudio César

Augusto Germânico, tio de Calígula, o qual desposou

Messalina, uma mulher vulgar que se prostituía abertamente

dentro e fora do palácio e que acabou sendo condenada à

morte por suicídio pelo próprio marido, ao descobrir que ela

planejava matá-lo. Como Messalina não teve coragem de se

suicidar, um guarda a matou na frente de todos. Tibério

Germânico foi envenenado por sua outra esposa de nome

Agripina. O imperador seguinte foi Nero Cláudio César

Augusto Germânico, que ocupou o trono aos 16 anos. Nero

teve como conselheiro, no início do seu governo que

começou muito bom, o filósofo Sêneca, aquele que conheci

em Atenas. Apesar do bom começo, Nero, tomado pela

arrogância e prepotência próprias de um jovem imperador,

certa ocasião, em um acesso de fúria, mandou matar sua

mãe, seu tutor, suas esposas, senadores, entre outros. Esse

homem foi o responsável pela grande perseguição aos

judeus. Também foi sob as ordens dele que meu amado

companheiro Pedro foi brutalmente torturado e crucificado

de cabeça para baixo em Roma. Certa vez, Nero, com o

propósito de instigar a ira da população de Roma contra os

judeus que propagavam uma nova religião, ordenou a seus

empregados que ateassem fogo na cidade para que

culpassem os judeus. O incêndio causou a destruição de

cerca de dois terços de Roma e milhares de mortes. O

Templo de Júpiter e o Palácio das Virgens Vestais foram

completamente destruídos. Nero sempre negou ter sido ele o

autor do grande incêndio. Seja como for, sempre houve

437

pessoas interessadas em destruir aquele antro de

prostituição e idolatria. Eu mesmo já havia pensado em algo

assim, há muitos anos, quando também pensara em

envenenar o Imperador junto com toda a sua família.

De todas as atrocidades cometidas por Nero, a pior foi a

impiedosa perseguição aos seguidores da nova religião que

um companheiro de nome Paulo de Tarso ajudou a propagar

em Roma e em várias partes do mundo. Paulo foi torturado

e decapitado em plena praça central da cidade, durante o

governo de Nero.

E é sobre isso que eu pretendo falar agora. Pelo menos

aquilo que eu conseguir me lembrar. Entendo que a leitura

de tantos pergaminhos pode se tornar cansativa, mas eu

peço a sua paciência e atenção para o que eu irei relatar

nestes que podem ser meus últimos escritos.

Sei que para muitos parecerá que eu enlouqueci ou que

estou sob o efeito de ervas alucinógenas. Não, não estou. Já

não preciso ter visões incompreensíveis ou sensações

anormais para me sentir bem. Descobri, sem esforço, que o

céu pode ser alcançado sem qualquer ingestão de ervas,

bebidas ou chás de cogumelos. Podemos alcançar um estado

de êxtase colocando em prática os ensinamentos oferecidos

pelos mestres de várias partes do mundo. Podemos aprender

a limpar a nossa mente e coração das impurezas,

expurgando deles o ódio, a revolta e os desejos vingança.

Espero que este meu último trabalho possa contribuir para a

melhoria da humanidade, melhoria essa na qual eu

humildemente me incluo, como homem transformado pela

aceitação da sabedoria divina, uma vez que, no momento

438

em que eu passei a colocar em prática uma nova maneira de

viver no meu cotidiano, baseada no princípio do amor, do

bem e da paz, notei que uma grande transformação ocorreu

em minha volta.

Sei que, infelizmente, essa minha mensagem não será aceita

por todos que dela tiver conhecimento. Muitos até dirão que

se trata de uma panaceia, algo sem valor e que não produz

qualquer resultado verdadeiro.

Mas eu espero que você seja capaz de ao menos

experimentar. Se você o fizer, então o milagre acontecerá.

Você será abençoado pela paz, uma paz interior infinita e

nunca mais a deixará escapar. O reino dos céus descerá ao

seu coração e você será uma pessoa abençoada.

Naquele dia em que eu reencontrei Mírian, a minha irmã e,

posteriormente, o seu esposo, que era um general Romano,

e eles me convidaram para sentar em sua mesa ao lado de

todos os demais mestres e irmãos escribas, eu percebi que

não seria capaz de levar adiante o meu plano macabro para

destruir a vida de Tibério e de sua família. Deveria existir

uma outra forma de lutar contra eles. Foi o que minha sábia

irmã me disse naquela manhã, quando me implorou para

que desistisse da minha ideia fixa de envenenar o imperador

romano e sua família.

Concordei com ela e, imediatamente, avisei ao Trazíbulo

que nada fizesse porque eu havia mudado de planos. Percebi

um grande alívio no rosto do rapaz, quando o desobriguei

de prosseguir na empreitada.

439

- E quanto a minha família? E o dinheiro que o senhor me

deu? Eu não tenho como devolvê-lo, senhor – disse-me ele,

preocupado.

- Não se preocupe. Você não me pediu nada. Considere o

dinheiro uma benção dos céus. Use-o para fazer o bem e

tudo estará resolvido. Eu não vou precisar mais daquele

dinheiro – disse-lhe, retirando-me da cozinha e indo

encontrar meus irmãos que me esperavam no grande salão

onde o banquete seria servido.

Enquanto todos comiam, bebiam, conversavam e sorriam,

eu fiquei imaginando o que teria acontecido naquele dia se

Mírian não estivesse ali. Que mão mágica e misteriosa havia

por trás dos bastidores da vida que nos impulsionava a

tomar decisões ou desistir delas? Quais seriam as forças

mobilizadoras do bem e do mal, da felicidade ou da

infelicidade, fiquei me perguntando.

Naquele dia, porém, eu consegui, sem esforço, descobrir

algo muito importante: o amor genuíno é capaz de mudar

tudo.

Foi o amor por minha irmã, minha família e meus amigos

que me fez desistir do plano de vingança. Se eu não os

amasse, teria prosseguido com meu plano de vingança aos

romanos. Não fosse o amor por minha irmã, provavelmente,

eu nem mesmo teria lhe revelado o meu terrível segredo.

Mas, nós havíamos sido criados em uma família de pessoas

que se amavam, se protegiam e desejavam a felicidade uns

dos outros e eu não agiria de forma diferente.

Meu irmão Calebe seria capaz de dar a própria vida para

nos salvar. Eu faria o mesmo por todos eles. Então estava

440

ali a grande resposta para todos os dilemas humanos. O

amor era a salvação.

Então, a questão era, como poderíamos ensinar às crianças

desde pequeninas a amar uns aos outros? Como poderíamos

fazer com que se tornassem invulneráveis ao ódio, aos

desejos de vingança e destruição? Que sementes deveríamos

plantar em suas mentes férteis para que, após algum tempo,

germinassem, crescessem e produzissem bons frutos? Eu

percebi, com clareza, que foram as semente de amor,

harmonia, paz e companheirismo dadas a mim e aos meus

irmãos por nossos pais, na infância, que nos fizeram tão

fortes. Certamente, a falta daquelas sementes levavam à

desagregação das famílias, a destruição dos grupos e,

consequentemente, ao enfraquecimento das cidades e dos

países.

Se um dia fosse possível ensinar a todas as crianças a

pensarem de modo positivo e voltadas para a construção do

bem comum, então não mais existiriam povos

conquistadores e povos conquistados. Não mais existiriam

senhores e escravos. Se fosse possível implantar

profundamente nas mentes das crianças as noções de amor

ao próximo, a ideia de uma família humana onde todos

fossemos irmãos, o mundo estaria salvo. Caso contrário, nós

mesmos nos autodestruiríamos. Quem faria mal ao próprio

irmão? Eu passei a me concentrar na formulação de um

plano por meio do qual fosse possível influenciar as

gerações vindouras. Porque talvez aquela em que eu estava

vivendo já estivesse perdida.

Na mesa, tinha, à direita, minha irmã e Pedro à minha

esquerda, enquanto comíamos e celebrávamos o reencontro.

441

Eu estava, outra vez, me sentindo em casa e aliviado por

não estar presenciando a morte de ninguém naquele

momento. A menos que Trazíbulo tivesse mudado de ideia e

resolvido nos envenenar... mas isso estava fora de

cogitação. Eu não fizera concretamente nenhum mal a ele

ou a sua família, portanto, não teria o que temer. Afastei

aquele mau pensamento de minha mente.

- Matias... eu procurei você por todo o palácio até saber por

Malachai que você havia encontrado sua irmã. Pois foi essa

mesma informação que recebi no mercado de uma mulher

conhecida por Xanroa Kamm, sacerdotisa de origem

germânica que conheceu sua irmã Mírian em Cesareia.

Vieram no mesmo barco da Judeia para os Jogos de Roma.

Sua irmã sempre falava nos irmãos e mencionou que você

teria sido levado por um mestre e sacerdote Judeu chamado

Malachai.

Voltei-me para Mírian que sorria feliz ao lado do marido

que a servia como um verdadeiro escravo, vencido pela

beleza de minha irmã. Um general romano aos pés de uma

plebeia judia. Comentou ela.

- Depois que me casei com Vinicius tive oportunidade de ir

várias vezes à Jerusalém. Fui ao nosso antigo templo e lá

obtive informações de que o mestre Malachai havia partido

com um grupo de meninos para estudar em outras terras.

Não tinham certeza, mas tudo indicava que você estaria

naquele grupo de viajantes.

- Vocês desistiram de me procurar? Indaguei.

- Tive muita vontade de fazer isso. Mas eram tempos

difíceis. Logo depois que me casei, engravidei e, você

442

talvez não saiba, mais crianças dão muito trabalho. Foram

cinco filhos em menos de dez anos...

- Pensei ter ouvido você dizer que tinha quatro filhos...

- Sim, mas infelizmente eu perdi um, o último. Mas saiba

que todo o tempo eu estava procurando por uma pista sua.

Até que, há alguns dias, meu marido estava olhando a lista

de convidados importantes que viriam para os Jogos de

Roma e lembrou que eu lhe falara sobre o mestre Malachai.

Ora, um nome desses ninguém esquece. Foi a pista que eu

precisava para vir até você. Malachai certamente poderia

dizer onde você estava. Tive que deixar meus filhos com a

minha mãe para poder fazer essa longa viagem.

- E como está a nossa amada mãe? Ela não teve mais

notícias de meu pai?

- Nossa mãe está como sempre muito linda e saudável. Ela

soube que meu pai havia sido morto por soldados ro... por

soldados... mas nem temos certeza. Afinal, ele escolhera

aquele caminho e sempre disse que morreria lutando por

aquilo em que acreditava.

Minha irmã não era como eu. Tinha vivido mais tempo com

a nossa mãe e aprendera com ela a perdoar os inimigos, a

manter a família unida e a buscar o bem de todos. Eu,

mesmo tendo vivido entre sábios e mestres, tinha muita

teoria e pouca prática. Talvez fosse a hora de mudar aquela

situação. Talvez fosse o momento de agir conforme sentia

ser o modo correto, sem mais me preocupar com as leis

ultrapassadas, com princípios que depunham contra o bom

viver. Muita coisa dos velhos livros me pareciam agora

meros desejos de homens vingativos se passando por Deus

443

ou deuses. Provavelmente, o Criador de tudo e todos estava

muito mais distante daqueles que falavam em seu nome e

queriam abrigar a todos a segui-los, usando como

argumento a força da palavra que chamavam de sagrada.

Afinal, o que havia de sagrado em matar animais e oferecer

a Deus? O que havia de sagrado em assassinar crianças

inocentes, apenas por que elas eram das tribos inimigas? O

que havia de sagrado em pagar o mal com o mal?

- E quanto aos meus irmãos Calebe e Benjamin? Indaguei,

saindo do meu devaneio momentâneo.

- Você sabe, o sonho dele era se tornar um membro do

grupo especial de Fundibulários zelotes. Hoje é capitão da

guarda do destacamento de soldados baseados em Belém.

Quase não nos vemos mais. Ele aparece e desaparece. Não

gostou do meu casamento com um romano, nem do novo

marido de nossa mãe. Não compareceu a nenhuma das

nossas cerimônias. Diz até que somos traidoras do nosso

povo.

- Eu hoje compreendo melhor a revolta de Calebe. Talvez

um dia ele mude de ideia. Eu estou começando a mudar

meu modo de pensar, minha irmã. E quanto a Benjamin?

- Benjamin é um amor de irmão. Tornou-se sacerdote e

mestre em línguas. Ensina Latin e Hebraico em Cafarnaum.

Casou-se e tem seis filhos. São meninos e meninas

adoráveis. Ele vai gostar de reencontrá-lo, Matias.

- Eu também não vejo a hora de voltar para casa e abraçá-

los. Vamos fazer uma grande festa. Arrastaremos até o

Calebe, nem que seja à força.

444

- Tenho certeza de que ele não rejeitará um convite seu.

Nossa mãe vai ficar muito feliz. Todos ficarão muito felizes

– disse minha irmã, beijando-me a face.

Quando o general Vinícius se afastou, Pedro aproveitou

para fazer-me um comunicado urgente.

- Matias, Malachai pediu para te avisar que amanhã

deveremos nos encontrar para uma reunião secreta. O local

será informado ainda esta noite. Ele não quer que

despertemos suspeitas. Obadiah não irá, para não chamar a

atenção dos espiões romanos que estão de olhos abertos a

qualquer movimento suspeito.

- Estão tramando alguma coisa, Pedro? – indaguei.

- Não sei. Só saberemos amanhã. Mas que irmã linda você

tem, Matias. Sempre que me falava dela eu a imaginava

uma garotinha magricela e sardenta. Mas vejo que estava

enganado. Eu seria capaz de matar um general romano para

ficar com ela. Já pensou?

- Ter você como cunhado seria uma honra, Pedro, mas foi o

Vinicius, o general romano, que ela escolheu e, até que ela

mude de ideia, a defenderei até a morte, mesmo se tiver de

enfrentar meia dúzia de zelotes grandalhões como você.

Rimos até quase nos engasgar.

Tíbério fez um discurso longo e monótono. Falou sobre as

mudanças que pretendia levar à cabo nos próximos anos,

modernizar a cidade, ampliar a biblioteca, construir novos

templos para os deuses romanos e de outros povos. Falou

que os representantes das nações amigas seriam

445

beneficiados se continuassem cooperando com o Império

Romano e reforçou a megalomania, própria dos

gananciosos: o Império Romano se alastraria por toda a

Terra e, dentro de alguns anos, só haveria um governo, o de

Roma, a cidade Eterna.

Ouviram-se urros e vivas. Os quinhentos convidados

aplaudiram o Imperador. Olhei para a minha irmã e ela

também o aplaudia. Eu não sabia se ela o fazia pelo marido,

por ela mesma ou por todos nós.

A reunião secreta ocorreu no porão da casa de um

comerciante grego que ficava afastada poucos quilômetros

de Roma. Malachai havia dito que era importante que todos

estivessem lá, pois uma grande decisão havia sido tomada e

nós deveríamos ser informados sobre ela.

Contei quantos éramos. Vinte e cinco ao todo, incluído

cinco mulheres. Algumas eu sequer suspeitaria que eram

espiãs infiltradas no palácio. Entre eles, havia um rapaz que

eu nunca havia visto antes, era bem falante e demonstrava

muita convicção em suas ideias. Foi ele que, depois de ouvir

a decisão que Obadiah havia tomado e que afetaria a todos

nós, levantou-se e disse:

- Meus queridos irmãos, eu vos saúdo com a paz. Sei que

muitos de vocês estão me vendo pela primeira vez. Eu

também sou um escriba e andei por vários lugares como a

maioria de vocês e hoje vivo em Belém. Eu concordo com

grande parte da decisão proposta pelo nossos líderes, no

entanto, quero dizer que não acredito que tenhamos sucesso

se nos dispersarmos agora.

446

- Crestus, nós precisamos recuar antes que todos nós

sejamos descobertos. Obadiah quer apenas que regressemos

a Alexandria e a outras grandes cidades até cessar o perigo

– disse Malachai.

- Recuar... recuar... nós sempre fizemos isso. Recuamos e

onde estamos agora? Precisamos iniciar imediatamente o

movimento de revolta popular. Precisamos mostrar nossa

força e o nosso poder – voltou a falar o escriba, com

veemência.

Judas Iscariotes, que até então se mantivera calado, ergueu a

mão.

- Eu concordo com Crestus e também acho que este seria o

momento ideal para iniciarmos um recrutamento de homens

e mulheres em todas as cidades onde existirem romanos,

para destruí-los. Podemos usar todas as armas que temos

para isso.

- Quais são essas armas, Judas? Indaguei curioso.

- Ora, João... segredos, informações, venenos, destruição de

documentos importantes, bloqueio de navios mercantes,

destruição de munições e armas, incêndios e nossas espadas.

- Não creio que desse modo será possível destruirmos o

império romano, meu amado irmão. Existe uma outra

forma, mas é provável que vocês me achem louco...

- Podemos saber qual é essa forma mágica, João da Judéia?

– disse Judas, olhando-me com desdém.

- Primeiro, precisamos pensar com visão de futuro. Não

podemos buscar resultados imediatos. Se olharmos bem

447

para o que está acontecendo no momento, veremos que

nossa geração está perdida. Podemos, no entanto, salvar as

próximas.

- Parece que o cunhado do general Vinícius quer proteger a

corja de romanos que está massacrando os nossos irmãos –

disse, zombeteiramente, Judas.

- Calma meus filhos... tenham calma. Vamos ouvir o que

João tem a nos dizer. Fale João, seja breve, temos que voltar

para o palácio antes que percebam a nossa ausência.

Obadiah ficou lá para não nos comprometer. Tudo que for

resolvido aqui será informado a ele – disse mestre Malachai,

tentando amainar os ânimos.

- Eu estive pensando, estudando e observando que o nosso

povo desde há muito está esperando um Messias, um

Salvador, alguém que trará paz ao mundo e o encherá de

amor...

- Ora, vamos parar com essas ideias ultrapassadas, João.

Profeta salvador? Messias? Do que você está falando afinal?

– Disse Judas, cheio de ira.

- Espere Judas... João, por favor continue – disse Malachai.

- Todos aqui conhecem as profecias de Isaías. Há 700 anos

ele já profetizara dizendo:

“Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a

virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu

nome Emanuel. Manteiga e mel comerá, quando ele souber

rejeitar o mal e escolher o bem. Na verdade, antes que este

448

menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, a terra, de que

te enfadas, será desamparada dos seus dois reis”.

- Conhecemos a passagem do Talmude, João. O que mais

tem a nos dizer? – insistiu Malachai.

- O profeta Miquéias também dissera: “E tu, Belém-Efrata,

pequena demais para figurar como grupo de milhares de

Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas

origens são desde os tempos antigos, desde os dias da

eternidade”.

- Belém? Esse lugar existe? Não era nada há 700 anos e

continua do mesmo jeito. Nem aparece nos mapas de tão

pequena que é. Então, é de lá que nascerá o rei de Israel?

Escarneceu Judas.

- Eu sou de Belém e não admito que falem assim de minha

cidade? Disse Crestus, levantando-se e cheio de ira.

- Posso terminar, mestre Malachai? Indaguei para

interromper uma nova discussão entre Judas e Crestus que

estava visivelmente aborrecido.

Malachai assentiu e eu prossegui.

- Sabemos que o Talmude nos aponta para a vinda de um

homem que poria fim ao sofrimento do nosso povo.

Lembram-se do que disse o profeta Zacarias nesse

versículo? “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha

de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador,

humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de

jumenta”.

449

- Ahahahaha... parece que nem os profetas pareciam saber

exatamente como o tal rei irá nascer. Acho que João da

Judéia foi contaminado com as ideias do outro João, o

Batista. Não é ele que diz pelos desertos da Judéia que todos

devem se arrepender pois está próximo o reino dos céus?

Simão Pedro, que até então permanecera calado, levantou o

seu vozeirão.

- Judas, se você não calar a sua boca eu vou aí enchê-la com

capim e jogá-lo no meio da rua. Deixe João terminar e não o

interrompa mais.

Aí, o porão onde estávamos amontoados ficou em silêncio e

eu continuei.

- Existem outras indicações feitas no Talmude que apontam

para a vinda de um messias, alguém que iria libertar o nosso

povo. E acho que nós podemos ser esse libertador. Nós

podemos criar a mudança que poderá salvar não apenas a

nós, judeus, mas a todos os homens e mulheres da Terra.

- Você é um sonhador, João. Eu compreendo as suas

palavras, meu irmão, mas como você acha que nós

poderíamos fazer tal façanha. Onde está o Messias? Onde

está o nosso Salvador. Ele já nasceu? O que ele nos dirá?

Como ele vai nos libertar? Indagou André.

- Sim, como poderemos fazer isso? Diga-nos, João...

precisamos que nos diga como acha que isso será possível?

Diziam os meus companheiros, iniciando um pequeno

tumulto.

Malachai levantou-se e nos falou pausadamente.

450

- Eu acho que entendi o que o nosso irmão João quer dizer.

Ele quer que comecemos a criar novas leis, novos modos de

agir, novas atitudes e a ensinemos aos nossos filhos, aos

nossos alunos. enfim, preguemos essas novas ideias,

formando, desse modo, o espírito do Messias. É isso

mesmo, João?

- Sim, é essa a ideia central. Primeiro precisamos elaborar

novas regras de bem viver. Diferentes das que existem,

porque elas não tem nos ajudado. Ontem mesmo eu era um

homem cheio de ódio e revolta contra os romanos, mas, pela

força poderosa do amor, eu deixei de odiá-los...

- Só resta você dizer que quando um romano o esbofetear

você vai dar a outra face, não é? Disse Judas,

debochadamente.

- Não sei se isso poderá um dia acontecer, mas tudo o que

sei é que não poderemos jamais construir um mundo melhor

por meio do ódio e da vingança. Se matarmos o nosso

inimigo, só alimentaremos o ciclo de ódio e atrocidades que

nos rodeia.

- E o que deveremos fazer, Escriba de Alexandria? Deixar

que estuprem as nossas mulheres impunemente? Deixar que

roubem nossas propriedades e nos manteremos calados?

Bradou Crestus.

- Não Crestus. Não devemos ficar calados. Devemos

primeiro saber o que queremos mudar e o façamos de modo

coletivo, bem planejado. Precisamos agir como agem as

formigas ou as abelhas. Primeiro precisamos estabelecer as

regras e depois cada um faz o seu trabalho de reproduzir as

ideias.

451

- Mas filho... – ponderou Malachai – somos poucos. O povo

está amedrontado. Os romanos estão por toda parte. Se

começarmos a criar uma nova filosofia ou modo de viver

com base no amor, como você diz, rirão de nós e se

aproveitarão de nossa fraqueza.

- Perdoe-me mestre, mas o senhor está enganado. Eu

também pensava assim até saber que a minha irmã, que

sempre odiou os romanos, estava casada com um general

que, em vez de maltratá-la, a protege....

- Então deveríamos dar as nossas filhas para que se casem

com soldados romanos, para que, apenas assim, sejam

respeitadas e protegidas, João? É isso o que você está

dizendo? – gritou Mateus que era pai de quatro filhas e que

até então escutava tudo em silêncio.

- Não estou dizendo isso, meu bom Mateus. Estou falando

que fazer o bem só traz paz, combatendo a guerra. Estou

dizendo que semear o amor faz nascer o amor. Se

insistirmos nisso, pouco a pouco, conquistaremos os

romanos e eles ficarão do nosso lado.

- É uma alucinação, João... pode nos dizer o que andou

bebendo? O vinho do palácio que você bebeu destruiu a sua

razão? Debochou Judas, uma vez mais.

Uma das mulheres, de estatura alta, bem acima da média

das mulheres judias, de olhos esverdeados e voz grave,

levantou a mão, pedindo a palavra.

- Meus irmãos, João está certo. Talvez esse seja o momento

de mudarmos o modo como estamos ensinando os nossos

filhos e filhas. Enquanto não dissermos a eles que homens e

452

mulheres possuem os mesmos direitos e deveres. Enquanto

nós, os pais, não nos tratarmos como irmãos, respeitando-

nos uns aos outros, eles só reproduzirão no futuro o que

aprenderam. Se lhes ensinarmos o amor ao próximo...

- A senhora parece desconhecer o Talmude. Deveria se

lembrar do que está escrito nos Dez Mandamentos. “Honra

a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias

na terra que o Senhor teu Deus te dá. Não matarás. Não

adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra

o teu próximo. Não cobiçarás a casa do teu próximo, não

cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a

sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa

alguma do teu próximo". – Interrompeu Judas Iscariotes,

arrogantemente.

A mulher não se perturbou. Levantou-se de onde estava e

caminhou resolutamente em direção a Judas, que

imediatamente recuou, temendo ser agredido.

- Está se sentindo ameaçado? Eu sou apenas uma

sacerdotisa, uma mulher. Vejo medo em seu olhos. Nem

mesmo uma adaga eu estou portando. O seu temor é reflexo

do seu modo agressivo de falar com os outros. Se não fosse

tão arrogante, tão insolente e falasse com mansidão e calma

como o mestre Malachai ou como nosso irmão João, não

temeria uma agressão. É sobre isso que eu estou falando. Se

quer falar sobre o Talmude, a Torá, o Livro dos Mortos dos

Egípcios, o Bagvathgita ou sobre os filósofos, terei o maior

prazer. Não matarás?! E o que estamos fazendo a milhares

de anos? Matando, destruindo, aniquilando as pessoas que

chamamos de inimigos. Não furtarás?! Pense sobre as

inúmeras ocasiões em que nosso povo se apropriou de bens

453

alheios dizendo que lhes pertenciam. E sobre cobiçar a

mulher do teu próximo?! É curioso que nada se fala sobre

cobiçar o homem da minha próxima... Quer dizer que eu

posso cobiçar?

Todos riram fartamente, acalmando os ânimos.

- A senhora está distorcendo os mandamentos sagrados...

- Distorcendo? Pense em qual é a punição para uma mulher

adúltera. Morte por apedrejamento, não é? A lei serve para

os dois? Quantos homens têm sido apedrejados por

cometerem esse pecado? E quanto a escravidão? Nós

estamos lutando para libertar nossos países da opressão

romana, mas nós ainda assim mantemos pessoas

escravizadas. Dois pesos e duas medidas. Não deveríamos

dar liberdade aos nossos escravos também?

- Eu sempre fui contra deixar mulheres participarem de

reuniões importantes como essas. As mulheres distorcem

tudo, invertem tudo. Não sabem se colocar no lugar em que

o Senhor as colocou... – disse Judas, replicando.

- E qual foi esse lugar, irmão Judas? Pode nos dizer? –

insistiu a sacerdotisa germânica, a qual Pedro sussurrou ao

meu ouvido ser a mesma que havia lhe dado informações

sobre a minha irmã, Mírian.

- Deus criou o homem a sua imagem e semelhança. Não diz

que criou a mulher, pois esta foi criada depois, de uma

costela do homem. Uma ajudadora... – insistiu Judas.

Eu estava gostando daquela discussão, pois sempre tivera

muitas dúvidas sobre a precisão dos escribas quando eles

454

escreveram o livro de Gênesis, a única teoria sobre a criação

do mundo em que o povo judeu acreditava. Havia muitas

falhas nele e a sacerdotisa agora estava tendo a

oportunidade de confrontá-las diante de uma plateia

formada por uma expressiva maioria masculina.

- E disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem,

conforme a nossa semelhança. E criou Deus o homem à sua

imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os

criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e

multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre

todo o animal que se move sobre a terra”. Ora, meu caro

Judas, afinal, se as escrituras dizem que homem e mulher os

criou, não vejo razão para o homem se achar mais

importante que nós mulheres. Nunca ouvi dizer que um

homem pode gerar uma criança, pois, segundo o texto, Deus

disse que deveriam se multiplicar e encher a terra. O senhor

já se imaginou grávido?

Dessa vez a plateia riu abundantemente. A sacerdotisa

Xanroa Kamm era uma excelente oradora e sabia ser

espirituosa em seus comentários. Isso fez com que os

ânimos se acalmassem, exceto o de Judas que permanecia

mais e mais furioso.

- Não se esqueça de que foi Eva quem desencaminhou o

homem, levando-o à perdição. – contra atacou, ele.

- Então o pobre do Adão foi enganado por uma mulher?

Quer dizer que as mulheres sempre foram mais astutas, é

isso mesmo? Adão não resistiu à sedução de Eva e preferiu

desobedecer ao Senhor? Ele pediu uma companhia, Deus

455

lhe deu, ela lhe ofereceu o fruto proibido e ele

inocentemente comeu. Acho que se existe algum culpado

nessa história, certamente, não é a mulher. Eu tenho dúvidas

de que essa seja uma história real. Existe um outro

significado oculto no texto, o que os gregos chamam de

metáfora. A história é só uma forma de levar uma

mensagem e as palavras têm outros significados...

- Conversa tola! A senhora está ofendendo os nossos livros

sagrados. Se a senhora fosse uma judia de verdade, jamais

pensaria em desobedecer uma vírgula do nosso livro. Sei

das suas origens pagãs. Cesareia está cheia de feiticeiras....

- Vamos nos acalmar meus filhos. Estamos saindo

completamente do objetivo dessa reunião. Sugiro que

façamos uma outra em outro lugar para aprofundarmos

esses assuntos. Não é o que nós essênios fazemos há

séculos? Este é o nosso maior trabalho, depurar a escrituras,

encontrar outros caminhos e aperfeiçoar as leis. Confesso

que a ideia de João é no mínimo extravagante. Requer que

pensemos melhor. Terei que consultar Obadiah. Enquanto

isso, estejam preparados para partir para Alexandria,

Atenas, Damasco, Jerusalém e outras cidades onde teremos

muita coisa a fazer. O plano que deveria ser executado por

Simão Pedro está definitivamente cancelado. No entanto,

ele deverá ficar em Roma para dar prosseguimento ao novo

plano de ação que será apresentado em alguns meses.

Obadiah e outros líderes querem costurar uma aliança

comercial com Roma, com redução no preço dos produtos

que nos vendem, bem como acabar com certos impostos

exorbitantes. Muitos governadores e comerciantes estão

envolvidos. O Império precisa de nossos produtos e

456

Obadiah é mestre na arte de negociação. A morte de Tibério

agora iria enfraquecer as negociações.

- Então vamos sempre negociar a nossa paz, é isso mesmo,

mestre Malachai? Protestou Crestus.

- Isso mesmo. Negociar a nossa paz. Existe algum mal

nisso? Existe algum prejuízo em reduzir o sofrimento do

nosso povo e dar a ele melhores condições de trabalho?

Respondeu Malachai.

- Pois eu estou cheio de tantas negociações. Eu pretendo

voltar tão logo possa para Belém. Sou um homem sozinho,

meus pais estão mortos e eu nem conheci meus avós. Fui

criado dentro da comunidade essênia desde os oito anos e

estou agora com trinta anos e acho que não fiz nada por meu

povo. Talvez eu deva fazer alguma coisa de verdade – disse

Crestus, com voz firme e cheio de convicção.

- Talvez não seja uma boa ideia, meu filho. Talvez você

deva esperar, por algum tempo, as orientações de nossos

líderes?

- Quem são nossos líderes, mestre Malachai? Aqueles que

estão agora mesmo se banqueteando com o Imperador e

seus generais, enquanto nós estamos aqui escondidos como

ratos... os nossos familiares na Judeia e em outros lugares

do mundo subjugados pelos romanos? Eu estou cheio disso.

De que adiantou tantos estudos que fizemos? Tantos

mestres nos ensinando a arte da argumentação, novas

línguas, os segredos dos astros, tantos outros conhecimentos

da ciência, para quê? Para nada? Já tomei a minha decisão.

Tenho outros irmãos essênios na Judeia que me seguirão.

457

Não se preocupem comigo, eu estarei bem. Vocês terão

notícias minhas.

- Tudo o que você fizer a partir de hoje sem a autorização

dos nossos líderes será um problema seu, Crestus. Não

comece sozinho uma revolução. Você sabe o que está

reservado aos que se rebelam abertamente contra os

romanos – ponderou, Malachai.

- Eu sei sim. Mas não serei o último a ser chicoteado,

decapitado ou crucificado, como fizeram com o meu primo

João Batista há alguns anos.

- Você sabe que, na Judéia, Herodes não tolera ninguém que

fique pregando uma rebelião ou anunciando a chegada de

um messias salvador. Nenhum governador romano tem

piedade para com aqueles que querem enfrentar o Império.

- Eu sei, mestre Malachai, mas eu não estarei sozinho. Se

me matarem, não tenho nada a perder. Seguirei apenas o

mesmo destino de meu primo e, quem sabe, outros e mais

outros farão o mesmo. Essa sim é a revolução que eu quero.

Eles terão que matar a todos nós e não restará ninguém para

lhes servir. É assim que eu penso – replicou, Crestus.

A reunião terminou e todos nós voltamos angustiados para o

palácio. Pedro, Tomé e eu decidimos caminhar pelas ruas de

Roma, que estava apinhada de pessoas ansiosas para

lotarem o Circus Máximo e assistirem os duelos dos

gladiadores. Eu me recusava a assistir aquela selvageria.

Homens matando homens ou animais. Animais devorando

homens vivos. Um inferno a céu aberto. Um dia tudo aquilo

teria que terminar. Se as pessoas amassem mais uns aos

outros, se amassem os animais, se perdoassem os inimigos,

458

torná-los-ia amigos e viveríamos em paz. Era essa a lógica

que eu queria que todos os meus irmãos entendesse. Pelo

menos alguns não conseguiram entender. Talvez o sumo

sacerdote dos Essênios, Obadiah, entenderia. Era o que eu

esperava que acontecesse.

Os dias que se seguiram até a minha irmã regressar,

fazendo-me prometer que logo que possível eu iria

encontrá-la em Cesareia, onde poderia rever minha mãe e

meus sobrinhos, foram uma mistura de felicidade e

ansiedade.

Até que, numa manhã, enquanto Pedro e eu líamos na

biblioteca de Roma, Malachai nos encontrou para dizer que

Obadiah já havia tomado uma decisão, depois de consultar

os demais anciões. Eles já estavam prontos para me dar uma

resposta. No final daquele dia, haveria uma reunião na

mesma casa onde fizéramos, dias antes, o encontro secreto.

Não foi uma reunião cheia de rituais e protocolos como eu

já havia presenciado várias vezes. Parecia uma reunião de

negócios, onde as decisões eram tomadas com base na

necessidade de resolver problemas. O Sumo Sacerdote dos

Essênios parecia mais velho e abatido. Talvez a comida do

palácio não lhe fizera muito bem. Apesar de saber que ele

não comia qualquer tipo de comida de origem animal, sabia

que ele era adepto ao vinho e outras bebidas fortes, que

eram abundantes no palácio.

- Senhores e senhoras aqui presentes... Alguns não puderam

estar aqui hoje, pois regressaram a suas terras, como foi o

caso de Crestus e Arimatéia. Eu represento o conselho dos

anciões e que quero lhes dizer é que, a partir desta data, nós

459

começaremos a propagar uma nova maneira de viver com

base nos sete juramentos sagrados de nossa fraternidade.

Apenas o sétimo foi alterado para que possamos alcançar a

nossa finalidade. Esses sete juramentos deverão ser

ampliados e escritos por Mateus, Marcos, João Betsaida e

Lucas, sob a supervisão de João da Judéia.

- Mestre, posso fazer mais duas indicações? – disse eu, ao

lembrar que gostaria de ter mais dois poderosos aliados.

- Sim, claro... submeterei suas escolhas aos presentes e, se a

maioria concordar, eu também concordarei.

- Gostaria que a Sacerdotisa Xanroa Kamm fizesse parte de

nosso grupo de trabalho assim como o meu dileto irmão

Simão Pedro.

- Protesto! Não acho que uma mulher seja mais capaz do

que um homem para fazer um trabalho dessa dimensão –

bradou Judas, furioso.

- Seu voto será contado, Judas. Alguém mais discorda dos

nomes que o irmão João sugeriu? – indagou, o Sumo

Sacerdote.

Voto vencido. Ninguém além de Judas ergueu o braço, o

qual, aos poucos, foi baixando-o até o colo e assim ele

permaneceu até o fim de nossa reunião. Ele não deu mais

uma única palavra, isolando-se de tudo e de todos. O

sacerdote continuou.

- Aceita a inclusão dos dois nomes, mas tenho uma

sugestão: que a sacerdotisa escolha um outro nome para

assinar os seus escritos. Receio que muitas pessoas não

460

saberão pronunciar esse nome de origem germânica. A

partir de hoje, os escribas designados trabalharão juntos em

uma casa que fica em Canopus no Egito. Alexandria está

por demais tumultuada e vocês precisarão de muita

concentração. O trabalho deve ficar pronto dentro de seis

meses e, depois que ficar pronto, nós faremos tantas cópias

quantas forem possíveis e as levaremos para os grupos de

divulgação das boas novas que já estão espalhados por mais

de oitenta cidades. Esse será o começo de uma nova era.

Deixaremos para trás os séculos de ódio, de vingança e de

atrocidades. Pregaremos a paz, o bem e o amor como forma

de mudar o mundo. Por isso, quero que vocês escrevam em

parábolas. Usem todo o conhecimento e sabedoria que

adquiriram. Usem a linguagem mais simples que puder. Tão

simples que uma criança possa facilmente entender.

Lembrem-se de que no Talmude há muita coisa boa que

pode ser usada, mas temos que ir mais longe. Peçam

inspiração divina e escrevam. Vocês são escribas e escribas

o que fazem?

- Escrevem! – repetimos todos em coro e sorrindo.

- Tenho orgulho em dizer que vocês são, na verdade, os

melhores escribas que jamais existiram, foram treinados

pelos mais talentosos mestres do mundo e são capazes de

fazer prodígios com a arte de escrever. Vocês criarão

histórias inesquecíveis que serão contadas e recontadas por

muitos séculos. Quero que escrevam de modo a inspirar os

leitores a desejarem mudar suas vidas. Concentrem-se no

foco principal. João já nos deu uma poderosa motivação: o

amor ao próximo. Que sejam todas as histórias, todas as

parábolas, uma reflexão a esse sentimento. Ele deverá ser

tão grande como o primeiro mandamento que é o de amar a

461

Deus sobre todas as coisas. O segundo grande mandamento

será o de amar ao próximo como a nós mesmos.

Eu estava exultante. Finalmente havia encontrado uma

missão para a minha vida. Eu já sabia como elaborar uma

história que envolvesse toda sabedoria dos livros antigos e

que, ao mesmo tempo, conclamasse para uma nova maneira

de agir, com base no perdão, no companheirismo e no amor.

Obadiah prosseguiu.

- Sei que todos vocês conhecem os nossos sete juramentos

sagrados, mas vamos revê-los. Apenas o primeiro e o último

serão alterados para se tornarem também lemas do nosso

novo trabalho. O primeiro é a promessa de que amaremos a

Deus e ao próximo sobre todas as coisas. O segundo diz

respeito aos nossos segredos que não devem ser

compartilhados com pessoas que não sejam membros

verdadeiros da nossa fraternidade. O terceiro se refere aos

alimentos que não devemos comer a não ser em caso de

extrema necessidade de sobrevivência. O quarto está

relacionado com a proteção da Terra que recebemos como

presente de Deus e que devemos proteger em todas as suas

formas, o reino animal, vegetal e mineral, conservando-os

para uso de todos. O quinto fala sobre o viver sem o desejo

de acumular bens e que, aqueles que forem adquiridos,

sejam compartilhados e usados para promover o bem e a

prosperidade de todos. O sexto juramento sagrado

complementa o primeiro, ao prometermos jamais molestar

crianças, doentes, grávidas ou idosos, nem cometer qualquer

ato de violência contra quem quer que seja, a não ser em

legítima defesa dos que necessitarem serem defendidos. E o

último terá uma total inversão na parte final. A primeira

462

parte será mantida, pois diz respeito ao cumprimento de

todas as missões que nos forem designadas. Já o final, que

diz respeito a guardar segredo, será modificado porque não

mais guardaremos sigilo do nosso trabalho, ao contrário,

chegou a hora de mostrarmos ao mundo o que queremos.

Iremos espalhar essas boas novas a todos, sem qualquer

exceção. Todos estão de acordo?

Judas foi o único que não levantou a mão. Nós já

esperávamos por isso. Foi ele também o primeiro a deixar a

casa sem sequer se despedir de nós.

Obadiah, que era um homem experiente, avisou-nos que, a

partir daquele dia, teríamos não apenas mais um dissidente,

mas talvez um que comprometesse tudo o que estávamos

fazendo. Talvez Judas pudesse se tornar um traidor e revelar

aos romanos todos os locais de nossas reuniões, os nomes

dos nossos espiões infiltrados e nossos mais bem guardados

segredos.

463

Capítulo XVIII – O Grande Reencontro

Após três meses de viagem, chegamos a Canopus, no Egito,

uma cidade tranquila localizada às margem do Mar

Mediterrâneo. Éramos, Mateus, Marcos, João de Betsaida,

Lucas, Simão Pedro e eu. Havia uma única mulher, Xanroa

Kamm, que decidimos mudar o seu nome para Maria

Madalena. A casa que nos foi destinada, ficava localizada

em uma falésia um pouco afastada da cidade. Era grande,

possuía dois andares e tinha varanda por todos os lados. A

que dava para o leste oferecia-nos a imensidão do mar

verde-azulado à frente. Um dos aposentos foi destinado à

nossa biblioteca particular. O peso de nossa bagagem, além

das poucas roupas, foram mais de 400 rolos de papiros que

trouxemos, pois precisaríamos de toda informação essencial

ao nosso trabalho e não queríamos ter a necessidade de ir

com frequência à Alexandria.

Quando lá chegamos, fomos recebidos pelo Mestre

Radamés, um egípcio baixinho, de pele bronzeada,

corpulento e muito sorridente. Também havia dois guardas

que fariam um revezamento diário para nos dar proteção. O

trabalho que iríamos realizar ali era valioso e não deveria

sofrer qualquer tipo de interferência.

Combinamos que faríamos duas reuniões diárias, uma pela

manhã e outra no final do dia, para avaliarmos o nosso

progresso. O objetivo era que pudéssemos ter o maior

número possível de referências positivas dos mais variados

textos de filosofia, de várias religiões e mesmo de

conhecimentos científicos. O ponto de convergência seria

sempre o de criarmos parábolas que transmitissem algum

464

tipo de significado. Usaríamos novas palavras como Reino

dos Céuss, ou Reino de Deus, para simbolizar o

conhecimento e a sabedoria que conduziria os homens à

verdadeira paz.

Foi Mateus, o primeiro a nos apresentar a parábola do grão

de mostarda, que é para nós a menor das sementes e que

sempre usamos para compará-las a coisas pequeninas.

- Veja meus irmãos o que escrevi hoje: O Reino de Deus é

como um grão de mostarda que, quando se semeia na terra,

é a mais pequena de todas as sementes que há na Terra.

Mas, tendo sido semeada cresce, e faz-se a maior de todas

as hortaliças e cria grandes ramos, de tal maneira que as

aves do céu podem aninhar-se debaixo de sua sombra.

- Muito bem, Mateus. Você quer dizer que o bom

conhecimento quando semeado cresce mesmo que a

princípio seja só uma pequenina semente, mas depois se

torna imensa, é isso mesmo? – Indaguei, satisfeito com a

parábola.

- Sim, e também quer dizer que é importante agirmos.

Semearmos, plantarmos. A semente tem poder mas precisa

ser jogada em solo fértil para que brote e produza algo

valioso.

- Isso me deu inspiração para escrever outra parábola –

disse Marcos, animado. Acho que posso escrever uma

história também com semente... O reino de Deus é assim

como se um homem lançasse semente à terra. E dormisse, e

se levantasse de noite ou de dia, e a semente brotasse e

crescesse, não sabendo ele como. Porque a terra por si

mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga, por último

465

o grão cheio da espiga. E quando já o fruto se mostra, mete-

lhe logo a foice, porque está chegada a ceifa.

- Está bem, Marcos. Um pouco confuso. Procure melhorar

isso. Tente ser mais direto como Mateus foi. Seja como for,

é uma boa imagem. O ato de semeadura produz resultados

inesperados. Sua parábola reforça a parábola do Mateus –

disse eu, no papel de organizador das ideias para produção

de um texto final.

Maria Madalena, a sacerdotisa de quem mudamos o nome,

apresentou-nos uma parábola que envolvia compaixão e

perdão que nos deixou deslumbrados. Disse-nos, lendo o

que escrevera:

“O reino dos céus pode comparar-se a um certo rei que quis

fazer contas com os seus servos. E, começando a fazer

contas, foi-lhe apresentado um que devia dez mil talentos.

E, não tendo ele com que pagar, o senhor mandou que ele, e

sua mulher, e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto

tinha, para que a dívida se lhe pagasse. Então, aquele servo,

prostrando-se o reverenciava, dizendo: Senhor, sê generoso

para comigo, e tudo te pagarei. Então, o senhor daquele

servo, movido de íntima compaixão, soltou-o e perdoou-lhe

a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos

seus conservos que lhe devia cem dinheiros, e lançando mão

dele sufocava-o, dizendo: Paga-me o que me deves. Então o

seu companheiro, prostrando-se a seus pés, rogava-lhe

dizendo: Sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Ele,

porém, não quis, antes foi encerra-lo na prisão, até que

pagasse a dívida. Vendo pois os seus conservos, o que

acontecia, contristaram-se muito, e foram declarar ao seu

senhor tudo o que se passara. Então o seu senhor,

466

chamando-o à sua presença, disse-lhe: Servo malvado,

perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste. Não

devias tu igualmente ter compaixão do teu companheiro,

como eu tive misericórdia de ti? E, indignado, o seu senhor

o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que

devia. Assim vos fará também meu Pai celestial, se do

coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas

ofensas".

Todos aplaudimos o texto e pedimos que ela escrevesse

mais alguma coisa que envolvesse a mulher. Ela prometeu

que já estava pensando em alguma coisa marcante, mas que

ainda não estava pronto.

Era assim o nosso trabalho diário. Conversávamos,

discutíamos e até brigávamos quando havia pontos de

discórdia. Mas, ao final, sempre acabávamos sorrindo e

chegando a um ponto comum ou deixando que cada um

escrevesse o que desejasse, se não houvesse um consenso.

Eventualmente, recebíamos a visita surpresa de Malachai,

que vinha ver como as coisas estavam caminhando e nos dar

informações dos acontecimentos mais importantes.

No segundo mês de trabalho, já tínhamos produzido mais de

quarenta parábolas e uns 200 rolos de pergaminho e uns 100

volumens. Nossa diversão era ler e escrever. Colocar toda a

nossa experiência em forma de parábolas que iriamos copiar

e distribuir em todos os lugares onde nossos emissários

estivessem. Era daquele modo que esperávamos espalhar as

Boas Novas. Mas eu sentia que faltava alguma coisa. Com

todas as vivências que eu havia tido pelo mundo, eu sempre

vi que as pessoas aceitavam, sem questionar, qualquer

orientação, por mais infantil que pudesse parecer, se fosse

467

dito que tinha sido enviada por algum tipo de divindade, ou

de um Deus como Javeh, que considerávamos o único

existente. Se a mensagem que queríamos semear fosse

destinada essencialmente ao nosso povo, era necessário que

ela tivesse o selo divino. Mas nós não tínhamos esse selo.

Nós, nem mesmo éramos aceitos pelos rabinos judeus que

nos consideravam dissidentes. Nossa comunidade essênia

era perseguida abertamente por nossos próprios irmãos.

Essa era a razão de estarmos baseados em outras cidades

como Canopus, Alexandria, Menphis, Damasco, Roma,

Atenas e mesmo na Arábia e Índia.

No segundo mês de trabalho, todos estávamos exaustos com

as costas e as mãos doloridas de tanto escrever e ler. Eu

havia prometido a minha irmã Mírian ir visitá-la em

Cesareia e avisei a Malachai que gostaria que ele

providenciasse a minha viagem na companhia do meu bom

amigo Pedro, que fazia questão de acompanhar-me aonde

quer que eu fosse. Eu estava ansioso para rever os meus

familiares.

Chegamos ao porto de Cesareia no começo do verão. Era

uma cidade agradável, soprada pelos ventos do

Mediterrâneo. Aquela era uma das cidades que recebeu o

nome do Imperador Cesar, quando o senado romano

proclamou Herodes rei da Judeia. O rei, para agradar a

Roma, mandou construir grandes palácios fortificados,

templos, anfiteatros e aquedutos, a exemplo do que havia

em Roma. Herodes também construiu um belíssimo porto,

um templo dedicado a César Augusto, um anfiteatro que

cabia 5 mil pessoas sentadas, um teatro, um hipódromo e

piscinas para banho, tudo revestido de mármore branco. O

abastecimento de água potável da cidade era feito por um

468

aqueduto com cerca de oito quilômetros de extensão, que

levava água doce de uma nascente para a cidade beira-mar.

Eu jamais imaginara que existisse na Judeia uma cidade

como aquela. Era como se fosse uma miniatura de

Alexandria, no Egito. Eu podia agora entender a razão de

minha mãe e meus irmãos terem escolhido Cesareia para

viver.

Não foi difícil encontrar a casa onde minha irmã morava.

Indagamos a um grupo de soldados romanos, que

patrulhavam o porto da cidade, onde era a residência do

comandante Vinícius de Firenzi. Um dos soldados, depois

de nos examinar cuidadosamente, indagou quem queria

saber. Disse o meu nome e o da minha irmã e expliquei que

eu era cunhado do comandante e essa senha foi suficiente

para que imediatamente um grupo de soldados tomassem as

nossas bagagens e nos escoltassem até a bela morada de

dois andares debruçada sobre o mar numa encosta de fácil

acesso.

Um dos soldados tinha corrido à frente para avisar da nossa

chegada, assim, antes mesmo de alcançarmos o portão

principal da casa, minha irmã, seu esposo e meus lindos

sobrinhos vieram correndo nos abraçar. Foi uma alegria

indescritível. Cada um dos meus sobrinhos era mais lindo

do que o outro. Uma mistura de italiano com judeus, não

poderia ser uma raça mais bonita.

Distribuímos os presentes que havíamos comprado para eles

e minha irmã informou que todos iríamos fazer uma

surpresa à nossa mãe que morava nas proximidades e foi o

que fizemos. Eu não sabia qual seria a emoção de

469

reencontrar a minha mãe depois de tantos anos. Por minha

cabeça passaram as imagens da nossa última conversa.

Ainda conseguia ouvir o som da sua bofetada em meu rosto,

bem merecida, agora eu reconhecia, quando eu,

insolentemente, a enfrentei. Ela merecia o meu respeito,

pois, fizesse o que fizesse, era a minha mãe, amorosa,

carinhosa e capaz de dar a própria vida para nos proteger.

O tempo parou para mim naquele encontro de amor. Minha

mãe, apesar de seus cabelos brancos despontando-lhe nas

têmporas, conservava a beleza da juventude. A voz agora

parecia ainda mais doce e suave assim como seus

movimentos, quando passou os dedos acariciando o meu

cabelo tendo os olhos banhados de lágrimas.

- Meu filho... meu querido filho... eu te esperei tanto. Rezei

tanto para que Javeh o protegesse, para que o trouxesse de

volta e agora você está aqui, são e salvo. Eu quero te pedir

perdão... Por favor, perdoe-me pelo mal que eu te fiz...

- Não, minha mãe, a senhora não me fez mal algum. Foi eu

quem a desonrei com a minha rebeldia. Fui covarde, deveria

ter ficado e ajudado a senhora a cuidar dos meus irmãos. Eu

era um menino cheio de vontade e senhor de mim. Sou eu

quem peço perdão à senhora. Por favor, perdoe-me...

perdoe-me...

Pedro, aquele homenzarrão forte e duro, chorava feito

criança assim como os demais que presenciavam a cena,

vendo-nos abraçados e ajoelhados no meio da sala. Eu não

me lembro de ter visto Pedro chorar antes por qualquer

outra razão.

470

- Quero lhe apresentar o homem que cuidou de mim e me

ajudou a criar os seus irmãos... – disse minha mãe, tomando

a minha mão e se encaminhando na direção de um ancião de

barba e cabelos grisalhos, vestido com uma túnica azul de

seda indiana e portando um medalhão de ouro preso a um

cordão também de ouro. Eu já tinha visto um medalhão

parecido com aquele em algum lugar. Mas não me

recordava onde. Ele me abraçou fortemente e me disse que

minha mãe nunca perdera as esperanças de me reencontrar

um dia.

- Uma mãe jamais perde as esperanças de reencontrar um

filho perdido. É como o bom pastor que, mesmo tendo todas

as suas ovelhas abrigadas, não descansa enquanto não tem

perto de si aquela desgarrada. Você sempre foi amado por

sua mãe e ela todos os dias esperava a sua volta. Seja bem

vindo Matias – disse Aaron.

- Obrigado... muito obrigado senhor Aaron. Eu também

nunca esqueci de minha mãe e dos meus irmãos. Tenho uma

curiosidade... Esse medalhão com essas inscrições. O

senhor o comprou onde? O que significam?

- Ahh... esse medalhão foi um presente de treze anos que

meu pai me deu. Ele disse que eu deveria guardá-lo por toda

a minha vida e nunca vendê-lo ou trocá-lo por nada, pois era

muito valioso. E, de fato, isso foi verdadeiro, pois, durante

toda a minha vida, esse medalhão teve o poder de me abrir

portas, sem o qual eu estaria perdido. Veja essas inscrições

aqui... – disse-me Aaron, cheio de orgulho e exibindo o

medalhão.

471

- O portador deste bracelete deverá ser recebido em meu

nome e a ele deverá ser prestado todo tipo de ajuda

necessária, para que sejam satisfeitas as suas necessidades...

– Disse eu, interrompendo-o.

- Como você sabia o que está escrito aqui, Matias. Eu

mesmo levei muito tempo até descobrir – indagou-me o

ancião, surpreso.

- Eu tenho a mesma inscrição neste bracelete – disse eu,

mostrando-o a todos.

- Que magnífico! Isso quer dizer que esses objetos provêm

da mesma fonte... de uma mesma pessoa ou autoridade... –

disse-me, Aaron.

- Obadiah! – repetimos ao mesmo tempo.

- Então Obadiah é seu pai? O senhor é irmão do mestre

Malachai? O senhor é um dos 11 filhos dele?

- Onze filhos?! Não seriam onze mil filhos?! – riu

largamente, Aaron – sim, eu sou um dos filhos de Obadiah.

Na verdade, só o conheci aos 12 anos quando minha mãe,

que já não está mais entre nós, insistiu para que eu fosse

conhecê-lo em Jerusalém. Ele era um comerciante muito

rico, dono de muitas terras e deu a minha mãe uma pequena

propriedade aqui em Cesareia. Cresci e me tornei um

comerciante de tecidos. Foi na minha loja que conheci sua

mãe. Ela era uma empregada tão dedicada e eficiente que

logo a promovi para ser a administradora de tudo. Meus

negócios prosperaram como nunca e, como eu era um

472

homem viúvo e sua mãe também, nos casamos. O resto da

história você já deve saber.

- Então foi só uma coincidência vocês se encontrarem em

Cesareia? O que a trouxe para cá, minha mãe?

- Ora, com o desaparecimento de seu pai e o seu quase na

mesma época e depois da morte do seu tio Eliabe em Jericó,

eu fui muitas vezes a Jerusalém na esperança de encontrar

alguma pista sua, pois sabia que você tinha lá a sua

escolhida... Sarah. Mas ela havia se casado com um romano

e estava grávida. Disse-me que você fora lá falar com ela e

nunca mais teve noticias suas. Pedi às pessoas que nos

conheciam que me dessem notícias suas se soubessem, até

que um dia, alguém do templo me disse que procurasse uma

mulher que estava de partida para Cesareia. Ela sabia de

alguma coisa sobre o seu paradeiro.

- E quem era essa mulher e o que ela sabia?

- O nome dela é Ana, não mora mais em Cesareia. Mudou-

se com o marido para a Síria. Quando fui encontrá-la, ela

me disse que alguém lhe falara sobre um mestre de nome

Malachai que levara um grupo de rapazes para estudar em

outras terras, a mando de seus pais. Jerusalém estava

perigosa para todos. As pessoas de posses temiam que seus

filhos fossem escravizados ou mortos a qualquer momento.

Assim, confiavam os filhos a mestres e rabinos renomados

que se encarregariam da educação deles fora da Judeia.

- Mas Malachai não morava em Cesareia, morava? –

indaguei, tentando entender o que de fato havia acontecido.

473

- Não. Ele nasceu em Nazaré e depois fora a Jerusalém se

encarregar dos meninos que deveria retirar do Judeia – disse

minha mãe. Ana me disse que talvez um irmão de Malachai

soubesse onde ele estava. Assim, se o encontrasse saberia

do seu paradeiro.

Aaron tomou a palavra.

- Eu estava viúvo e morava em Cesareia desde pequenino e

nunca soube quem eram meus irmãos. Sabia que tinha

muitos espalhados como areia do mar. Sabia que tinha um

pai, mas quem cuidou de mim foi outro homem com quem a

minha mãe se casou. Ela me fez prometer que jamais eu iria

aborrecer Obadiah. Ele já lhe dera o suficiente para viver.

Nossa vida prosseguiria com o que conseguíssemos

conquistar com nossos próprios esforços. Depois de um

tempo, meus negócios não iam tão bem e foi então que uma

mulher jovem, muito linda, apareceu em meu bazar à

procura de emprego. Eu pensei em negar,, mas avaliei que,

com aquela voz e beleza, ela certamente iria me ajudar nos

negócios...

- Seu mentiroso... você ficou foi imediatamente apaixonado

por mim, confesse... – disse minha mãe, sorrindo.

- Bem.. quer dizer, eu era um homem muito mais velho e

seria um sonho me casar de novo e com uma mulher tão

jovem e bonita. Mas o Senhor tinha um propósito que nós

desconhecíamos.

- Por favor, prossiga minha mãe. Quero saber o que a

senhora conseguiu obter de informações a meu respeito por

meio de Aaron.

474

- Nada... absolutamente nada. Ele sequer sabia da existência

de um irmão com esse nome. Fiquei muito frustrada e

aborrecida. Mas, o emprego era bom e Aaron me tratou com

respeito e carinho. Começou a ser um novo pai para seus

irmãos. Eu sabia que ele tinha interesse por mim, pois

ficava muito irado quando os soldados romanos enchiam o

bazar com o pretexto de comprarem tecidos. Então,

quebrando o costume do nosso povo, eu mesma tomei a

iniciativa de pedir Aaron em casamento.

- Pediu Aaron em casamento? Que coisa mais incrível isso,

minha mãe. Nunca imaginei que uma mulher judia fosse

capaz de algo assim, pois em geral são todas prometidas

pelos pais e as viúvas esperam pacientemente que alguém

tome a iniciativa de desposá-las outra vez.

- Pois foi assim mesmo, meu filho. Ele quase desmaiou

quando eu lhe fiz a proposta e imediatamente começou os

preparativos para o nosso casamento.

- Mas sempre que estávamos falando sobre famílias, sua

mãe me questionava sobre esse tal de Malachai que eu

nunca conheci. Acho que, se um dia todos os filhos de

Obadiah se encontrassem, teríamos que colocá-los no

anfiteatro de Cesareia... – disse Aaron, abraçando a minha

mãe.

- Ou quem sabe no Circus Máximo.... Lá, cabem mais de

100 mil pessoas... - disse Simão Pedro, que até então ouvia

tudo, encantado com a história de minha família.

Todos rimos.

475

Comuniquei a todos que gostaria de ir a Jerusalém ver

Benjamin e Calebe tão logo pudesse e os traria comigo para

uma grande festa e depois teríamos que voltar para o Egito,

onde um grande trabalho nos esperava.

- Que trabalho é esse? Indagou, minha irmã.

- Uma obra da qual você e todos os meus irmãos e demais

compatriotas se orgulharão. É uma obra gigantesca que vai

colocar nas mãos das pessoas uma nova maneira de viver.

Com mais justiça, com mais harmonia, com mais tolerância

e sobretudo com mais amor. Assim que ela estiver pronta,

distribuiremos copias nos núcleos das boas novas que estão

sendo criados em cada cidade do mundo. Será desse modo

que conseguiremos mudar a nossa situação frente aos

romanos e também no modo de viver do nosso povo que

tem sido banhado por sangue durante milhares de anos.

Eu falei tudo o que era permitido falar sobre o nosso plano

e, após algumas semanas de convívio com os meus entes

amados, Simão e eu partimos para Jerusalém para

visitarmos meus dois irmãos. Aaron nos emprestou uma

carruagem maravilhosa e cavalos extras para que a nossa

viagem fosse mais rápida e segura possível. O comandante

Vinicius mandou uma escolta de soldados para nos

acompanhar até Jerusalém e nos trazer de volta em

segurança. Eu nunca poderia imaginar, nem em mil anos,

que um dia eu iria precisar viajar por minha própria terra

escoltado por nossos inimigos. Aos poucos, eu estava me

acostumando com os desígnios do destino, do Senhor, dos

deuses ou de quem mais pudesse estar envolvido naquela

trama humana, absolutamente inacreditável e

deslumbrantemente milagrosa.

476

As estradas que nos levavam de Cesareia a Jerusalém não

eram boas e em muitos trechos onde havia chovido nossa

carruagem teve dificuldade para atravessar. Eram muitos

quilômetros de lama e que escondiam crateras imensas. Foi

numa delas que duas rodas do nosso veículo se partiram e

tivemos que pernoitar no meio do nada, à espera de socorro.

Dois dos cinco soldados que faziam parte de nossa escolta

foram na frente a Jerusalém, que distava cerca de cem

quilômetros. Voltariam com uma nova roda e assim

poderíamos seguir viagem. Montamos acampamento sob

forte chuva e rezamos para que ela nos desse alguma trégua.

Tínhamos comida e bebida suficiente, mas havia um perigo

sobre o qual fôramos alertados pelo comandante Vinícius

quando eu recusei a escolta armada.

- Vocês vão precisar de escolta sim. Nessas estradas,

existem muitos bandidos e assaltantes. Ao virem uma

carruagem como a de vocês, vão tentar assaltar. Por isso, é

melhor prevenir. Meus homens lhes darão a segurança

necessária para fazerem uma viagem de ida e volta. Sua

irmã não me perdoaria se alguma coisa ruim lhes

acontecesse – disse ele, resoluto.

Apesar daquele absurdo, aceitamos. No meio da madrugada,

fomos acordados por gritos e pelo tinir de espadas.

- Salteadores! Salteadores! – gritava o chefe da escolta,

naquele momento, reduzida a três.

Pedro, que nunca deixara de portar a sua afiada espada

curva atravessada ao cinto, pulou com agilidade da

carruagem e se precipitou para o grupo de homens que

lutavam por suas vidas. Um dos soldados romanos jazia

477

esvaindo-se em sangue no meio da lama. Somente a luz dos

relâmpagos, faiscando no breu da noite, nos iluminava e eu

podia ver que logo perderíamos a batalha, pois o número de

assaltantes era muito maior do que nosso grupo.

- Para a carruagem... cerquem a carruagem. Gritou o que

parecia ser o líder do bando.

Eu sabia manejar uma espada, mas estava destreinado. Os

meses de prática de artes marciais com os meus irmãos

chineses poderiam ser úteis naquele momento, mas resolvi

não pegá-la. Talvez eu conseguisse salvar as nossas vidas

naquela noite. Não eram os romanos. Os homens que nos

assaltavam eram do meu próprio povo.

- Levem tudo de valor que tiverem... se esse judeu

fantasiado de romano continuar resistindo, cortem a

garganta dele. Judeus sujos que se misturam com romanos

são piores do que eles – falou em aramaico o homem que se

aproximava da carruagem onde eu ainda me encontrava

oculto. Podia ouvir os gritos de Pedro lá fora se debatendo

nas mãos dos assaltantes que tentavam dominá-lo.

Eu tentava pensar em uma solução para aquele problema,

mas minha mente estava confusa. Não sabia se deveria pedir

pela vida do meu companheiro e entregar tudo o que

tínhamos ou se deveria sacar a minha espada e enfrentá-los.

Se eu ao menos pudesse saber quantos eram?

Provavelmente, os romanos já estavam mortos e só Pedro e

eu ainda estávamos vivos. Lembrei-me de Benjamin, o

negociador. Se ele estivesse ali, com certeza encontraria

uma saída, mas ele não estava.

478

O homem usando uma máscara preta arrebentou a porta da

carruagem e espiou para dentro, à procura de mais alguém.

Eu ainda estava escondido no canto, imóvel como uma

estátua.

- Vasculhem todos os pertences e desamarrem os cavalos.

Peguem armas, escudos, roupas, dinheiro... tudo o que

encontrarem. Parece que não há mais ninguém aqui – gritou

o homem, ao tempo em que entrava na carruagem para

melhor examinar o interior.

- Esse homem aqui está dando muito trabalho, o que

fazemos com ele? – gritou um dos ladrões que,

provavelmente, estava tentando amarrar Pedro.

- Matem-no. Degolem-no e dividam suas roupas. Esse porco

vai ter o que merece por ser um traidor – disse o homem

que deveria ser o líder.

- Não! por favor, não façam isso! – disse eu, saltando do

meio dos tecidos espalhados no interior da carruagem, os

quais me mantiveram oculto, até então.

O líder do bando, apanhado de surpresa, sacou sua faca

curva e jogou-se sobre mim como um felino.

- Então o covarde aqui estava esperando a hora de agir, não

é? Pois vamos matar os dois – disse o homem, arrastando-

me para fora da carruagem e me jogando na lama fria.

Naquela hora, Pedro e eu estávamos juntos ajoelhados e nos

olhávamos aterrorizados. Nosso fim estava mais próximo

do que tínhamos imaginado. Se não ocorresse um milagre,

479

morreríamos ali no meio do nada, como tantos outros

judeus e romanos morreram.

- Por favor, senhor..., se nos deixarem vivos, podem obter

uma boa recompensa por nossas cabeças – disse eu,

lembrando-me do meu irmão Benjamin. Ele nunca desistiria

de negociar. Eu havia aprendido alguma coisa com ele.

- Negociar?! não negociamos com judeus traidores. Vão

morrer como todos os demais – disse o líder, que agora

brandia a lâmina de sua espada em frente aos nossos rostos

enlameados.

- Se me deixar livre e me der um cavalo, eu irei a Jerusalém

e trarei 200 moedas de ouro e as trocarei por meu irmão

Pedro. Vocês podem ficar com ele até eu voltar, como

garantia. Pensem bem, 200 moedas de ouro sem fazer mais

nenhum esforço. Ele nem vale tudo isso...

Os homens riram. Fazer rir é uma arte. Quando uma pessoa

sorri, ela muda o estado de espírito e fica mais aberta, mais

sensível. Eu tocara na sensibilidade daqueles brutos.

- Hummm... e que tal 300 moedas de ouro? Seu amigo

agora acabou de ficar ainda mais valorizado, disse o líder

aproximando-se do meu rosto.

- Está bem... 300 moedas de ouro... eu trarei. Diga onde

devo deixá-las e depois vocês soltam o meu amigo. Não

contarei a ninguém sobre o que aconteceu aqui.

- Claro que você não vai contar a ninguém, pois, se o fizer,

seu amigo morrerá e você também. Você deve ser muito

rico... tem amigos em Jerusalém... quem é o romano que vai

480

lhe dar esse ouro todo, judeu bastardo? – indagou, o

homem.

- Não é um romano, é o meu irmão. Ele é judeu como nós.

Ele é um mestre e sacerdote, seu nome é Benjamin. Ele é

muito conhecido lá e será ele quem vai me dar esse

dinheiro.

Houve um grande silêncio, embora eu conseguisse ouvir a

respiração ofegante de Pedro e as batidas do meu coração.

O líder ajoelhou-se em frente a nós e aproximou o seu rosto

do meu, quase tocando os nossos narizes.

- Afinal, quem é você?! você é irmão de Benjamin? Você é

o covarde fujão do Matias? fale?! você é o ingrato do

Matias?!

- Calebe?! é você o ladrão bastardo do meu irmão? – falei,

erguendo-me diante dele.

Uma vez mais, eu estava salvo pelo amor. Uma salvação só

possível quando se está entre irmãos, os quais, independente

de que lado estejam, se amam verdadeiramente.

481

Capítulo XIX – Traição e Crucificação

As emoções que experimentei ao longo da minha vida de

peregrino foram intensas, o que me faz querer compartilhar

com todos aqueles que lerão os meus papiros. Talvez eu

exagere um pouco, quando falo dos laços de afeto entre

meus familiares e eu, mas eles de fato são as minhas

melhores referências do mundo. Só quem teve uma família

composta por pai, mãe e irmãos vivendo em harmonia,

lutando pelo bem uns dos outros, sabe a importância dessa

experiência. Quisera eu que, em todos os cantos do mundo,

as famílias se parecessem com a que eu tive. Meu grande

sonho é que não apenas irmãos de sangue pudessem

partilhar do sentimento de união e mútua proteção que

dispensávamos uns aos outros, mas que também fossemos

capazes de ver os demais como irmãos de vida, formando

uma grande fraternidade em busca da paz comum.

Partilhando a Terra, como partilhávamos o pão em família.

Calebe, o líder do bando de assaltantes que viviam entre

Belém e Jerusalém, assaltando e roubando romanos, era

também o capitão da guarda de fundibulários, como minha

irmã havia me dito. Sua vida dupla o obrigava a usar uma

máscara e só agir durante a noite.

Depois que nos reconhecemos, nos abraçamos e choramos

juntos. Pedro também chorava e sorria diante daquela cena

inusitada, onde de vítimas passamos a ser hóspedes de

honra.

Fazendo valer meu posto de irmão mais velho, repreendi

Calebe, com veemência.

482

- Não posso aceitar que você creia que o você está fazendo é

justo e humano Calebe. Você é um homem de bem, eu o

conheço desde criança. Você não pode ter se tornado um ser

do mal.

- Não me tornei um ser do mal, meu querido Matias. Foram

eles, os romanos, que me ensinaram a sobreviver no mundo

em que eles mesmos criaram para nós. Dente por dente,

olho por olho. Eu não mato crianças, mulheres grávidas,

idosos ou gente inocente, como eles fazem. Ataco caravanas

que tenham símbolos romanos ou que estão sendo

escoltadas por poucos soldados deles. Os lobos não fazem

assim? Atacam suas vítimas quando estão em pequenos

grupos. Tomo deles ouro, armas, roupas, cavalos e tudo

mais que possa servir à nossa causa. Não é para o

enriquecimento pessoal de nenhum de nós. Eu distribuo

parte do que recuperamos com os mais pobres. Eles tem

causado muita desgraça e infelicidade ao nosso povo. Foi

por isso que criei um grupo de Serpentes da Noite, para

pegarmos de volta o que eles tem nos tirado há tantos anos –

disse meu irmão, com ira.

- Eu compreendo... compreendo mesmo. Já pensei como

você. Por culpa deles, eu perdi meu pai, duas mulheres que

foram os amores de minha vida e vivi tanto tempo afastado

de vocês, que são a minha família. Mas talvez exista um

modo melhor de fazermos as coisas mudarem. Você estaria

disposto a me ouvir?

Calebe não estava disposto a ouvir. Despediu-se de nós e

partiu no meio da madrugada, deixando-nos com os corpos

de três soldados romanos para serem enterrados.

483

O nosso socorro só chegou no fim do dia seguinte.

Explicamos aos soldados o que nos acontecera e, apesar de

eles não terem ficado convencidos, continuaram a nos

escoltar. Afinal, estavam sob as ordens do comandante

Vinicus de Firenzi e uma desobediência lhes custaria a vida.

Eles sabiam que tínhamos sido atacados por judeus e que

tínhamos sido poupados por sermos judeus também. Só não

sabiam que o líder do bando era o meu próprio irmão.

Entramos em Jerusalém, a cidade me pareceu mais velha e

mais triste. Havia soldados romanos por toda parte. Fui

direto encontrar meu irmão Benjamin, que demonstrou

muita alegria em me receber, mas ponderou que talvez eu

tivesse chegado em uma má hora. Disse-me que, alguns dias

antes da minha chegada, tinham começado a procurar um

homem conhecido como Crestus, que vivia de cidade em

cidade, pregando o que parecia aos judeus e aos romanos

uma incitação à rebelião. De acordo com Benjamim, havia

um grupo de homens que seguiam Crestus e eles também

estavam sendo perseguidos.

- E o que esse Crestus prega, meu irmão? indaguei curioso,

ao lembrar que ele fora um dos nossos que estivera meses

antes em Roma, participando de nossa reunião secreta e

que, assim como Judas, saíra dias depois, por não concordar

com as decisões tomadas pela maioria.

- Eu sei que ele anda desafiando as leis. Outro dia, ele

entrou no templo e causou um grande tumulto, porque havia

pessoas vendendo mercadorias durante as cerimônias.

Tomou um chicote e expulsou os vendedores do templo,

dizendo que ali era a casa do Senhor e não lugar para se

484

fazer comércio. Eu acho que ele tem razão, mas o povo não

gostou e ficou contra ele.

- Você é um rabino e líder judaico, Benjamin, está contra

ele também?

- Não estou nem contra nem a favor. Meus colegas e, até

mesmo Caifás, o nosso sumo sacerdote, estão contra ele e

quer evitar que os romanos pensem que ele é um dos

nossos...

- Ele está falando em revolução ou coisa semelhante?

- Não, exatamente, mas fala que não veio trazer a paz e sim

a espada e que virá um reino para libertar o povo da

opressão. Você sabe que basta isso chegar aos ouvidos do

prefeito Pôncio Pilatos e a resposta será mais opressão ao

nosso povo. Se Crestus for encontrado, será julgado e

condenado por conspiração. Ninguém do Templo estará

disposto a defende-lo, pois ele se afastou do nosso convívio

a algum tempo e passou a fazer parte daquele grupo de

dissidentes que se acham melhores que nós.

Calei-me. Não seria bom, naquele momento de reencontro

com meu querido Benjamin, entrarmos em uma discussão

sobre o meu povo. Benjamin era um guardião do Talmude e

da Torá. Tinha se especializado naqueles livros e não havia,

para ele, outra verdade além daquelas obras seculares.

Por outro lado, eu estava preocupado com a possível captura

de Crestus. Ele era um essênio e sabia de quase todos os

locais onde a fraternidade se reunia. Sabia também o nome

dos principais espiões em Roma, que circulavam livremente

no palácio imperial. E o mais grave, se ele nos delatasse,

485

todos nós, sem exceção, estaríamos perdidos. Ele sabia do

plano que Obadiah estava executando. Além disso, embora

ele não tivesse concordado com todos os pontos da decisão,

ele queria o bem do nosso povo e tinha respeito à

fraternidade. Eu precisava chegar até ele, antes que os

romanos o fizesse.

Decidi, juntamente com Simão Pedro, ir falar com José de

Arimatéia, um rico comerciante judeu, também essênio,

outro que também havia saído da reunião secreta em Roma,

em companhia de Crestus.

Em princípio, Arimateia desconversou, mas quando eu lhe

disse do receio que sentia, caso Crestus fosse apanhado, ele

me disse:

- Matias... Crestus pode ter enlouquecido pela revolta contra

os romanos, mas não é um traidor. Ele jamais nos

denunciará.

- E quanto a Judas? Ele está com Crestus?

- Sim, ele está, mas é um covarde. Não teria coragem de

fazer isso, pois tem mulher e filhos. Ao contrário de

Crestus, que optou pelo celibato e não tem qualquer parente

vivo que possa ser usado para pressioná-lo.

Depois de algum tempo, Arimateia concordou em nos levar

para falar com Crestus. Ele estava escondido na casa de um

homem chamado Zebedeu.

Ele se mostrou feliz em nos ver, porque achou que nós,

finalmente, tínhamos nos juntado a ele. Judas também

estava lá, mas não demonstrou qualquer alegria em nos ver.

486

Conversamos muito e eu tentei dissuadir Crestus de

continuar com aquela pregação. O convidei para fazer parte

do nosso grupo de divulgação das boas novas que

estávamos elaborando em Canopus, mas ele foi taxativo.

- Perdoe-me, meu bom amigo e irmão... mas meu destino já

está selado. Eu vou continuar pregando o que acredito e

assumirei as consequências. Não quero ser um mártir, mas

se precisar morrer por aquilo em que eu acredito, eu farei

isso. Fiquem conosco essa noite, pois quero orar com vocês

no meu local predileto, o jardim Getsêmani. Amanhã

voltarei a pregar pelo deserto, longe de Jerusalém, quem

sabe lá me ouvirão.

Sabíamos que Crestus estava determinado a continuar a

missão que ele mesmo havia tomado em suas próprias

mãos. Nada lhe falei sobre o nosso receio de ele ser

apanhado e ser forçado a nos entregar. Eu sabia que ele

manteria guardado o juramento essênio de nada revelar

sobre os nossos segredos. Pelo menos eu esperava que ele

fosse capaz de resistir a uma tortura brutal, se fosse o caso.

As cenas que irei descrever resumidamente a seguir, você,

amado leitor, verá nos documentos que circularão pelo

mundo, pois é assim que eu espero que aconteça. Não

falarei muito, pois, quando me recordo daquela semana

sombria, gostaria de nunca ter presenciado tamanha

brutalidade e selvageria. Mesmo que eu já tivesse

presenciado cenas muito fortes de tortura e violência, talvez

por estar ainda sensibilizado pelo reencontro com meus

familiares, vi aquela semana como uma das mais marcantes

em minha vida.

487

Conforme combinado, depois de cearmos, fomos em um

pequeno grupo, no qual nem Judas nem Arimatéia estavam,

para o jardim Getsêmani e lá permanecemos ouvindo

Crestus falar depois de orarmos. Foi então que ouvimos um

rumor de vozes e logo fomos cercados por soldados

romanos e guardas judeus armados que procuravam por

Crestus. Judas tinha sido trazido amarrado pelas mãos.

Tomei a iniciativa de falar, mas fui interrompido pelo

próprio Crestus que indagou a Judas face a face.

- Quanto te pagaram para nos trair Judas? Como pode um

homem ser tão covarde como você?

Judas não respondeu. Os soldados logo compreenderam que

Crestus era o líder. Se eu tivesse falado, talvez tivesse sido

eu o prisioneiro, se ninguém interviesse.

Crestus foi levado, enquanto os guardas tentavam nos

conter com suas lanças e espadas. Pedro já estava com sua

espada pronta para desferir um golpe mortal em um dos

soldados, quando eu o impedi.

- Pedro... abaixe essa espada, o que temos para fazer é

maior do que a morte de um soldado romano. Basta de

mortes aqui. Vamos deixar as coisas acalmarem.

Pedro me obedeceu. Crestus ainda me lançou um olhar que

dizia tudo. Ele não nos entregaria, mesmo que tivesse que

morrer. Será que ele daria a vida dele para nos salvar? Eu

custava a crer que ele fosse capaz de fazer isso.

Naquela noite, ninguém dormiu. Arimatéia nos acolheu a

todos em sua grande mansão nos arredores de Jerusalém e lá

488

pensamos em mil formas de salvar a vida de Crestus, mas

nenhuma delas nos pareceu efetiva. Pensamos em oferecer

dinheiro para que o soltassem, mas sabíamos que, no

momento em que estivesse livre, Crestus voltaria a pregar

com mais veemência do que antes. Ele tinha condenado a si

mesmo.

Quando já estávamos de volta, senti falta de Pedro e Judas e

indaguei por eles. Disseram-me que ambos haviam ficado

para trás depois da prisão de Crestus no Getsêmani e que,

provavelmente, se juntariam a nós mais tarde. Mas, no final

da noite, só Pedro voltou.

Eu nunca tive total certeza sobre o que direi agora. Pedro

também nunca confirmou a minha suspeita, mas Judas

amanheceu enforcado em uma árvore na manhã daquele dia.

Disseram que ele havia se suicidado. Poderia ter sido isso

mesmo. Mas, sempre me pergunto porque ele se enforcaria

depois de haver entregue Crestus aos romanos. Ele mesmo

não poderia ter vendido os nossos segredos que eram bem

mais valiosos e recebido uma verdadeira fortuna do próprio

Imperador? Em meu coração, Pedro foi o autor do

enforcamento de Judas, pois sabia que ele sim, seria capaz

de nos trair e colocar a culpa em Crestus, que havia sido

preso e que certamente seria torturado até a morte, mas nada

diria. Talvez os romanos o tivessem pressionado usando sua

mulher e os filhos. Sobre isso, não teremos certeza. Nos

evangelhos, nós preferimos dizer que Judas cometeu o

suicídio, pois isso encerraria as especulações.

Os dias seguintes foram terríveis. Nós, todos nós, queríamos

que Crestus fosse castigado e depois exilado, como faziam a

muitos que lutavam abertamente contra o Império. Mas

489

Crestus não se mostrou colaborativo. Pessoas que

trabalhavam na prisão onde ele foi jogado disseram que,

durante dois dias, os romanos torturaram Crestus de todas

as formas possíveis para que ele lhes desse os nomes dos

conspiradores, dos espiões judeus que podiam estar

infiltrados nos palácios, mas Crestus não abriu a boca em

um único momento.

Naquela época, era comum torturarem presos em Jerusalém

e fazê-los arrastar a própria cruz pelas ruas da cidade, sob

vigorosas chibatadas até chegar ao Monte Gólgota, para

serem crucificados. Com Crestus não foi diferente e ele foi

mais uma das vitimas de romanos. E, no caso dele, havia

também judeus que estavam insatisfeitos com sua nova

pregação. Assim, ele foi condenado por isso e por não

delatar os demais companheiros. Crestus morreu para nos

salvar, para nos permitir continuar um trabalho que mudará

o mundo. Ele derramou seu sangue numa cruz, como mártir

e, naquele dia, eu obtive o que precisava para escrever a

mais fascinante história que o mundo iria conhecer.

Foi José de Arimateia que, sob a minha orientação, retirou o

corpo de Crestus da cruz, depois de morto, e o cremamos no

Monte das Oliveiras, local onde eu costumava brincar com

meus irmãos. O costume dos Judeus em relação a seus

mortos não era esse, mas Crestus não era mais um seguidor

do judaísmo, nem Pedro, nem eu. Acordamos que ali seria

um bom lugar para nos lembrarmos dele.

Decidi não mais voltar para Cesareia para reencontrar meus

familiares. Minha mente estava fervilhando com novas

ideias e eu precisava comunicar imediatamente a Malachai a

grande chance que agora tínhamos para produzir uma obra

490

que poderia ser a mais bela história da raça humana, com a

qual seria possível ensinar às futuras gerações tudo o que

desejávamos. Em nossa primeira reunião eu falei o que

tinha em mente.

- Veja, mestre Malachai, já temos as parábolas, temos os

ensinamentos acumulados da nossa fraternidade essênia e

agora temos um mártir, Crestus. Podemos colocar tudo isso

em uma nova história. Podemos apontá-lo como o Messias

esperado e, por meio dele, ensinaremos tudo que queremos

– disse eu, eufórico e atropelando as palavras, naquele

primeiro encontro com Malachai em Canopus.

- Parece formidável, João. Parece uma boa ideia. Mas, quem

irá confirmar esses fatos? Você está sugerindo que

apontemos Crestus como o messias, aquele que o povo

judeu espera há muitos anos. Mas isso nunca será

confirmado pela história. Você se esquece de que os

romanos tem escritores anotando tudo o que acontece nas

cidades do Império? Você mesmo conhece o escriba-mor

deles, o Flávio Josefo e também o Seutônio e Públio

Cornélio Tácito que escrevem sobre tudo que acontece ao

nosso povo. Eles nada falarão sobre esse personagem que

você quer descrever, logo, esse fato jamais poderá ser

confirmado no futuro.

- Eu sei, Malachai, mas isso não terá tanta importância.

Dentro de cinquenta ou sessenta anos, a maioria das pessoas

que estão vivas hoje já estarão mortas e nada poderão

testemunhar. Provavelmente, esses historiadores escreverão

sobre as revoltas que estão ocorrendo, mencionarão que um

homem chamado Crestus foi crucificado porque ele incitava

uma rebelião e outras coisas que não sabemos. Assim, os

491

livros que escreveremos só irão confirmar tudo de forma

detalhada.

- Mas você disse que escreverá que Crestus realizou

milagres, que fez maravilhas... isso não é verdade.

- Mas isso não depende de comprovação para que o povo

aceite, Malachai. As histórias dos grandes homens como

Krhisna, Buda, Lao Tsé e tantos outros mestres do passado

também relatam que eles fizeram milagres, mas não

comprovam nada e o povo passou a acreditar neles assim

mesmo, porque querem se beneficiar desse poder. Um poder

maior do que o dos homens. Nós não estamos fazendo a

mesma coisa a séculos? há milhares de anos, nós não

estamos pedindo milagres a um deus invisível? Moisés não

fez milagres? Elias e Eliseu não fizeram milagres? Quem

está vivo para comprovar? Apesar de não existirem

quaisquer provas sobre isso, nós temos vivido acreditando

nessas histórias.

_ Será que não estaríamos enganando os seguidores dessa

nova fé que você e os seus colegas querem escrever?

- De modo algum. Afinal, essa é a nossa oportunidade de

mostrar que cada pessoa pode realizar milagres, sem

precisar de rabinos e profetas, como no passado. Nós não

acreditamos que Deus colocou dentro de nós o poder para

realizar milagres como se fossemos nós mesmos

verdadeiros deuses?

- Sim, isso é verdade. Mas será que as pessoas saberão usar

esse poder? entenderão que é isso o que devem fazer?

desenvolver, pela fé, o imenso poder que o nosso Criador

492

nos deu para realizar o que muitos chamam agora de

milagres?

- Eu acredito nisso, mestre. Claro que nem todos alcançarão

esse estágio tão desenvolvido, mas alguns, sim, poderão

realizar coisas assombrosas, se acreditarem que poderão.

Iremos falar sobre o poder da fé, capaz de transportar

montanhas, realizar prodígios.

- Eu admito que isso é fascinante. Vejo mesmo que você

ultrapassou em conhecimento a maioria dos seus mestres.

Siga em frente, vamos ver como essa história pode ser

construída. Mas tenho uma pergunta que vem me corroendo

há muito tempo. Então você não acredita mais em Javeh?

- Não é isso, meu bom mestre. Eu apenas cresci e já não

preciso mais de histórias de crianças para saber discernir o

bem e o mal. Não preciso mais da ajuda dos deuses para

viver a minha vida de forma correta. Acredito em uma

Inteligência Suprema, em algo muito poderoso que está

acima de todos os deuses. Aprendi que o maior milagre

existente é a vida em todas as suas formas. Isso é milagroso.

Estou certo de que muitos dos acontecimentos que hoje

temos como milagrosos, no futuro, serão considerados

banais e terão uma explicação menos fantasiosa.

- Meu filho, o que foi que fizemos a você... por onde você

andou? – disse Malachai, me afagando a cabeça e sorrindo.

- Eu não sei mestre. Só sei que devo a você e a Obadiah

tudo o que sou hoje, pois vocês me deram a oportunidade de

aprender o que eu jamais saberia sozinho. Agora, por favor,

confie em mim. Deixe que meus companheiros e eu

escrevamos essa história e depois o senhor mesmo se

493

encarregará de esconder os pergaminhos em lugares que

dificilmente possam ser encontrados. Enquanto isso,

continuaremos a espalhar essa noticia de boca a boca. O

senhor sabe que as pessoas costumam acreditar naquilo que

os líderes contam, sem se questionarem muito. Se

divulgarmos esses fatos, em pouco tempo a notícia se

espalhará e as boas novas irão junto.

- Está bem, meu filho. Você me convenceu, mas lembre-se

de que ainda preciso falar com Obadiah. É ele que está

financiando o nosso projeto. Se ele concordar, iremos em

frente, eu prometo te ajudar no que for preciso.

- Se ele não concordar, nós continuaremos sem ele,

Malachai. O senhor também entrará para a história...

Meus colegas de trabalho adoraram a nova tarefa. Todos os

dias, e mesmo durante a noite sob a luz das lamparinas,

nossas penas cobriam centenas de papiros, muitos dos quais

seriam destruídos depois de uma revisão meticulosa. Muitas

vezes não chegávamos à mesma opinião sobre um fato que

queríamos narrar.

- O nome do Messias não pode ser algo comum. Deverá ser

forte e ligado ao nosso Deus Javeh. Eu tenho pensado em

usar o nome “Jesus” que tem como base hebraica o

tetragrama inefável "JHVH", que significa a "Eternidade de

Deus". Como vocês sabem, HVH é o infinitivo do verbo ser

em hebraico e o prefixo J transpõe os verbos hebraicos para

o futuro. Dois de nós escreverá também em aramaico e,

assim, o termo "Yeshu ha Notzri” indicará a expressão

“Jesus Cristo, o Messias". Marcos e Lucas, que escreverão

em grego, poderão usar as letras "IHSUS", Jesus Salvador

494

dos Homens. Ao criamos esse nome, estaremos

aproveitando a existência do Pai que é Javeh para gerar um

filho, um salvador da humanidade. Diremos que Deus

ofereceu seu único filho para salvar a humanidade. Diremos

que todo aquele que acreditar e seguir as palavras do Seu

Filho Jesus, será salvo e encontrará o Reino dos Céus.

- Ótimo. Eu estou de acordo. Quer dizer que teremos que

escrever as mesmas coisas em grego, hebraico e aramaico?

– indagou, Marcos.

- Sim, e também em latim, pois essa é a língua universal no

momento. Todos precisam ler sobre essa nossa história.

Sugeri que a história do Messias, o ser que veio trazer uma

nova mensagem de amor aos homens, para ser forte, não

poderia ter um pai e uma mãe terrenos. No máximo, uma

mãe humana. Isso o faria ser superior a Moisés e aos demais

profetas.

- Como assim, João? Você está dizendo que o Messias

deverá nascer da mesma forma como Krisna, Lao Tsé ou

outras divindades hindús?

- Sim, isso dá mais poder. Dá mais confiabilidade. Homens

podem falhar, mais alguém, como por exemplo, o próprio

filho de Deus, será respeitado e adorado. Todos quererão

seguir as suas palavras.

- Eu concordo plenamente. Vamos então seguir esse

pensamento. O menino nascerá de uma virgem e lhe

chamarão de Emanuel, que significa “Deus conosco”. –

disse Mateus, cheio de animação.

495

- Lembrem-se de que as pessoas que lerão estes livros são

pessoas simples, que precisam de imagens fáceis de serem

guardadas. Os nomes também precisam ser comuns: Maria,

José...

- E se eu escrever que foi o anjo Gabriel que avisou a Maria

que ela estava grávida mesmo sem ter coabitado com José...

- Anjo Gabriel? de onde você tirou isso, Mateus?

- Ora, do livro de Daniel. Um anjo com esse nome apareceu

a ele, então porque não poderia aparecer a Maria e ao

marido dela José, para lhes contar do milagre?

- Tenham cuidado. Não inventem muita coisa, pois isso

pode tirar a credibilidade do que escrevermos...

- Mas foi você mesmo que nos disse para soltarmos a nossa

imaginação. E isso é o que não nos falta... – disse, Maria

Madalena, sorrindo.

Dias depois, eu tinha um esboço de temas relacionados com

a fé, minha especialidade dentro dos evangelhos.

- E disse Jesus: Tenham fé em Deus. Tudo aquilo que vocês

desejarem do fundo do coração e da alma e não tiverem

nenhuma dúvida, assim será feito. Poderão até mesmo dizer

a um monte, levanta daqui e vai para o mar, e assim será

feito – o que acham disso? Perguntei aos meus

companheiros.

- Parece forte e muito poderoso. Mas isso é verdade? –

Indagou, Pedro.

496

- Pedro, meu bom Pedro... veja quantas montanhas estamos

movendo de um lado para outro com a nossa fé, com o

nosso esforço. Olhe as construções gigantescas que

conhecemos. Tudo feito por nós humanos. As imensas

pirâmides, os templos e a Biblioteca de Alexandria. Os

templos e castelos de Roma e Atenas. Esses monumentos

foram criados pela imaginação de um ou de vários homens.

Claro que pedir para uma montanha se erguer e ir para o

mar não é algo tão fácil de se fazer hoje. Quem sabe no

futuro? Mas aqui eu quero dizer que se as pessoas

acreditarem que são capazes de algo tão grandioso,

acabarão por realizar. Falarei também que a fé é como um

grão de mostarda que, ao germinar, pode se tornar uma

grande planta.

Combinamos que, dentro do possível, usaríamos nossas

marcas nos textos para, no futuro, possibilitar a quem

conhecesse de astrologia, numerologia e outras ciências

secretas, facilmente perceber que essênios haviam escrito

aqueles textos e, como tal, deveriam ser interpretados, não

ao pé da letra, mas buscando o seu significado oculto.

- Nascimento de Jesus, uma estrela indica o caminho a três

reis para ir visitá-lo, levando três presentes – ouro, incenso e

perfume. Podemos usar o três também em outros momentos

da vida dele. Três pessoas reunidas em nome de Jesus fará

com que Ele esteja presente. Três dias para edificar o

templo. Três dias para ressuscitar. Três vezes Jesus será

negado por Pedro.

- Logo, eu? – Protestou Pedro, sorrindo.

497

- Sim, você não se lembra que certa ocasião eu te pedi ajuda

e você me negou três vezes?

- Ahhh... então você agora vai ser o próprio Messias, é isso?

- Na verdade, todos nós iremos pensar como o Filho de

Deus, como o Messias prometido. Temos que pensar nas

coisas que ele faria ou diria. Essa será a nossa mensagem

para o mundo.

- Podemos usar também o quarenta? Jesus vai ficar 40 dias

no deserto. Como Moisés ficou 40 anos no deserto com o

povo.

- Ótimo. Vamos usar também o número 12. Ele tem sido

usado no Talmude abundantemente. Serão doze os

discípulos de Jesus, como são doze as tribos de Judá.

E foi assim que construímos capítulo a capítulo, versículo a

versículo, uma história totalmente baseada em lugares reais,

com personagens reais misturados aos fictícios o que

tornaria impossível de, no futuro, ser comprovada a real

existência dos personagens. Mesmo as pessoas reais que

constam em nossos livros não sabiam que seus nomes foram

usados para compor a nossa trama, a qual tem como única

finalidade levar uma mensagem de paz e de amor aos

homens, por meio do sacrifício de um ser especial, chamado

de Filho de Deus.

O Jesus representa o redentor da humanidade, simboliza o

perdão, o repartir do pão e o amor incondicional. Assim,

avaliamos que ele seria amado por todos que lessem a sua

história e idolatrado como Filho de Deus que veio ao

mundo trazer uma nova mensagem aos homens, foi

498

sacrificado e, depois, ressuscitou e foi elevado aos céus.

Assim, Jesus será mais poderoso que os demais profetas

milagrosos e até mais que Elias que também fez milagres e

foi arrebatado aos céus.

- Eu elaborei uma história de uma mulher adúltera que

estava sendo apedrejada. Jesus, ao ver aquilo, pergunta aos

homens que ali estavam – aquele que não tiver pecado

algum, que atire a primeira pedra.

- Muito bom, muito bom Madalena. Use o seu próprio nome

na história e torne-se uma fiel seguidora de Jesus.

Mostraremos que Jesus respeitava as mulheres.

Ao final, tínhamos escrito mais de 50 parábolas que seriam

a essência dos ensinos dos essênios. Todas estavam repletas

de exemplos simples e normas de conduta que gostaríamos

de ver no mundo. Consta nelas exemplos de compaixão,

amor, perdão tolerância, respeito a propriedade do outro,

uso da inteligência e dos recursos naturais da Terra,

valorização da vida e muitos outros temas que ajudarão o

homem a viver como irmãos. Aprimoramos os textos e

concluímos que 40 parábolas seriam suficientes para

transmitir as mensagens que elaboramos. Foram elas assim

denominadas:

Parábola da Dracma Perdida

Parábola da Figueira Estéril

Parábola da Ovelha Perdida

Parábola da Pérola

Parábola da Rede

499

Parábola da Semente

Parábola das Bodas

Parábola das Dez Virgens

Parábola das Varas da Videira

Parábola do Amigo Importuno a Rogar Por Pão

Parábola do Bom Pastor

Parábola do Bom Samaritano

Parábola do Credor Incompassivo

Parábola do Edificador da Torre

Parábola do Fermento

Parábola do Filho Pródigo

Parábola do Grão de Mostarda

Parábola do Joio

Parábola do Juiz Iníquo

Parábola do Mordomo Infiel

Parábola do Pai que Guarda Coisas Novas e Velhas

Parábola do Perdão às Ofensas

Parábola do Publicano e o Fariseu

Parábola do Rei Pelejando a Guerra

500

Parábola do Rico e Lázaro

Parábola do Rico Insensato

Parábola do Semeado

Parábola do Tesouro Escondido

Parábola dos Dois Filhos

Parábola dos Lavradores Maus

Parábola dos Servos Aguardando o Senhor

Parábola dos Talentos

Parábola dos Trabalhadores e das Diversas Horas de

Trabalho

Parábolas da Bem-Aventurança de Deus

Parábolas da Responsabilidade do Homem

Parábolas da Sensatez e da Oração

Parábolas das Boas Obras

Parábolas das Virtudes

Quando Obadiah chegou a Canopus para ouvir as nossas

histórias, ouviu tudo em silêncio e depois nos disse:

- Eu estou muito orgulhoso de vocês. O que vocês fizeram é

uma obra gigantesca, muito maior do que eu tinha

concebido. Esses livros vão se chamar Evangelhos, que quer

dizer “Boas Novas”. Vocês deverão fazer 7 cópias de cada

um, em cada uma das quatro línguas, aramaico, grego,

501

hebraico e latim. No futuro, quando esses papiros forem

encontrados, verão que se trata dos Evangelhos escritos por

Matias, Marcos, Lucas, João, Pedro, Mateus e Maria

Madalena e irão corroborar as boas novas pregadas pelos

nossos irmãos. Quando estiverem todos prontos e

devidamente protegidos contra a umidade e calor, nós os

colocaremos em potes de cerâmica e os enterraremos em

cavernas. Conheço um lugar perfeito para escondê-los.

Trata-se das cavernas de Qumran, que fica entre Jerusalém e

Jericó. Também levarei alguns pergaminhos para outros

lugares onde dificilmente serão encontrados.

- Mas mestre, se nunca forem encontrados, como as pessoas

saberão dessa história? Como ela será divulgada? indaguei,

curioso.

- Não se preocupe, meu filho. Nós começaremos,

imediatamente, a divulgar essa mensagem. Primeiro de boca

a boca. Um contando para o outro e, em pouco tempo, as

pessoas começarão a acreditar. Os livros servirão para as

gerações vindouras, caso a nossa tentativa falhe.

- Quer dizer que não revelaremos nada no momento?

Indagou, Maria Madalena.

- Não, seria perigoso e perderíamos a credibilidade. Farei

com que umas poucas pessoas saibam que existem esses

pergaminhos e que ele serão ocultos. Dentro de alguns

anos... talvez cinquenta ou sessenta anos, eles

providenciarão para que sejam encontrados casualmente. A

credibilidade ocorrerá quando forem encontrados outros e

mais outros falando sobre a mesma história. Por isso, quero

que revisem tudo, ponto por ponto. Cada um escreverá de

502

memória o que foi acordado, mas lembrem-se de mencionar

os mesmos fatos, porém de outra maneira. Imaginem que

vocês vivenciaram tudo aquilo. Sintam-se parte dos dramas.

Vivam intensamente a história, pois só assim poderão torna-

la crível. O mais importante, porém, é que vocês jurem mil

vezes que jamais contarão esse nosso segredo a quem quer

que seja e sobre nenhuma forma. Se o fizerem, o nosso

plano será completamente desacreditado.

Concordamos com tudo o que o sumo sacerdote essênio nos

dizia.

Nosso povo era mestre na arte de escrever e criar histórias.

E agora nós, os novos escribas, teríamos a honra de

reescrever uma outra história cheia de dramas, paixão,

milagres, sabedoria, compaixão, traição, morte e

ressurreição. Não haveria um deus igual em toda a Terra. O

nosso seria uma mistura de todos eles e a sua pregação teria

o poder de mudar o mundo pelo amor.

Repassamos incontáveis vezes o nosso enredo.

- Depois do nascimento, José e Maria fogem para o Egito e

só voltam para a Judeia depois da morte de Herodes que

queria matar as crianças recém nascidas...

- Mas isso aconteceu com Moisés...

- Exatamente, faremos muitas comparações de Jesus com

Moisés. Precisamos usar a crença que já existe nesses

profetas antigos para que as pessoas acreditem no Messias

como filho de Deus, superior a todos eles.

503

- Vida em família, grande inteligência e depois ele

desaparecerá. Vai estudar com os essênios e depois só volta

aos 30 anos.

- Mas não ficará estranho falar que ele foi estudar com

essênios, se ele já nascera com graça e sabedoria?

- Tem razão, melhor cortar essa parte. Deixaremos esse

período de 17 anos como se ele apenas tivesse ficado por ali

mesmo na cidade onde nascera – disse, Lucas.

- Mas isso não seria contraditório? pois li o seu texto

dizendo que quando Jesus voltou a pregar as pessoas

indagavam se ele era filho de Maria. Ora, em uma cidade

tão pequena como Nazaré, todos o conheceriam, não é? a

menos que ele tivesse ficado muitos anos fora.

- Tem razão, Pedro. Você está certo. Depois farei essa

alteração.

E foi no começo do verão do terceiro ano de trabalho que

terminamos a nossa obra e nos sentíamos orgulhosos dela.

Vez por outra, corrigíamos uma informação, para que todos

os evangelhos formassem um só corpo e não divergissem

entre si. Sabíamos que uma história da qual não existam

testemunhas vivas, ao ser contada por muitas pessoas, era

necessário eliminar ao máximo as divergências, caso

contrário, alguém estaria enganado, mentindo ou sendo

impreciso. Nós tentamos eliminar todas as discordâncias,

por menores que fossem, mas, mesmo assim, não tínhamos

certeza de que nossa história sobreviveria a uma

investigação mais profunda.

504

Quando Obadiah chegou para levar os pergaminhos, nós

estávamos exaustos. Ele nos disse que seria bom se

viajássemos um pouco e depois voltássemos para

Alexandria, pois lá poderíamos viver uma vida mais

adequada aos conhecimentos que tínhamos. Mas destacou

que essa decisão caberia a nós. Poderíamos também nos

tornar líderes itinerantes, proclamadores das boas novas,

divulgadores da história que queríamos que no futuro fosse

comprovada pelos livros que escrevemos.

Pedro decidiu viajar com Maria Madalena. Tudo indicava

que, durante aqueles anos de convívio, eles desenvolveram

um relacionamento que era maior que simples colegas de

trabalho envolvidos em uma obra coletiva. Eu o encorajei a

seguir em frente e eles seguiram para Nápolis, onde

pretendiam viver e ter filhos.

- João, eu tenho uma última tarefa para você na Grécia.

Depois disso, você estará livre. É algo muito importante e

tenho certeza de que você se desincumbirá dela com

eficiência – disse-me, Obadiah.

- Posso saber do que se trata, mestre?

- Não, não pode. Entre nós sempre existirão segredos bem

guardados, portanto, quero que você parta imediatamente

para Atenas. Haverá um navio amanhã cedo. Ao chegar lá,

procure por um homem chamado Archimedes. Não terá

dificuldades para encontrá-lo. Ele te dirá o que precisa

fazer.

Depois daquela tarefa que nos consumiu tantos anos de

esforços, eu me sentia exausto e queria mesmo descansar.

Uma nova tarefa não estava nos meus planos, mas o sumo

505

sacerdote disse que seria a última e eu sentia que devia

aquele favor ao homem que me conduzira tão bem até

aquele dia. Meu coração, apesar de tranquilo e sereno,

estava vazio. Aos 38 anos, era um homem solitário e sem

novos rumos. Ainda não sabia direito o que fazer da minha

vida. Talvez voltaria para o Oriente, para o mosteiro dos

meus irmãos zen-budistas e terminasse por lá os meus dias.

Ou talvez ficasse na Grécia dando aulas para os novos

alunos que chegavam em busca de conhecimento e

sabedoria. Definitivamente, não ficaria na Judeia. Lá não

havia mais espaço para mim, apesar de estar lá a minha

família.

Quando me despedi dos meus irmãos em Canopus e segui

no navio rumo a Grécia, eu me deixei navegar sem qualquer

expectativa. Sentia-me estranhamente vazio, um vazio que

talvez nunca viesse a ser preenchido por nada ou por

ninguém. Um vazio que talvez nem precisasse ser

preenchido.

506

507

Capítulo XX – Uma Paz Possível

Ao escrever esses pergaminhos contando a história da

criação dos personagens que compuseram o início do

cristianismo, denominação que provém do nome Cristo,

uma adaptação feita ao nome do nosso irmão Crestus, que

deu a vida por nós, para nos manter a salvo, eu fui obrigado

a contar um pouco mais sobre a minha própria história.

Hoje, aos 85 anos, sou um homem que se sente plenamente

realizado, abençoado pela Inteligência Infinita que muitos

chamam de Deus. Constituí uma família composta de 8

filhos e 27 netos. Tive uma companheira paciente, amiga,

compreensiva e carinhosa durante toda a minha vida, o

sonho de qualquer homem. Ela me ajudou a criar os nossos

filhos e me apoiou em todas as minhas empreitadas. É certo

que vivemos viajando de cidade em cidade, de porto em

porto, por muitos anos, sobretudo nos primeiros anos de

vida comum. Qual a razão de vivermos assim por muitos

anos? Precisávamos fugir para nos esconder daqueles que

nos perseguiam.

Os primeiros cristãos, os que seguiram os ensinamentos de

Cristo, desvirtuaram os princípios essenciais do bom viver

que definimos naqueles papiros. Apesar de terem nas mãos

uma boa parte do que denominamos Boas Novas e também

as cartas de Paulo de Tarso, homem que se converteu ao

cristianismo e divulgava a palavra por meio cartas, muitos

ainda achavam que era preciso usar a força bruta e as armas

para enfrentar os romanos.

508

Antes de se converter, Paulo era centurião da guarda

romana e combatia ferozmente aquele movimento que meus

irmãos e eu havíamos desencadeado logo após a

crucificação de Crestus e que ganhou corpo em todas as

cidades importantes como Alexandria, Jerusalém, Roma,

Atenas e tantas outras. O Império Romano, ao perceber que

o povo estava aderindo àquela nova religião a qual

anunciava a vinda de um novo reino, determinou que

fossem mortos todos os que se reunissem para adorar o

novo deus que estava sendo aclamado: Jesus Cristo. Por

essa razão, milhares de pessoas foram perseguidas e tiveram

de se esconder em cavernas e catacumbas em Roma.

Nero foi um dos Imperadores daquela época que combateu

com maior agressividade os cristãos. Ele foi o responsável

pela morte do meu bom amigo Pedro e, posteriormente, pela

de Paulo, os quais, destemidamente, pregavam a chegada de

um reino de paz, de justiça e de amor.

Paulo de Tarso, após se converter, escreveu cartas dirigidas

aos demais líderes que viviam nas várias cidades onde o

cristianismo se propagava, mesmo com a perseguição dos

romanos. Eu mesmo recebi uma cópia de uma das suas

cartas, na qual ele conclamava a todos a buscar o amor,

acima de qualquer coisa. Paulo não queria que os nossos

irmãos lutassem com espadas, mas sim, usassem a palavra

como principal instrumento de mudança. Ele escreveu uma

das mais belas epístolas enviada aos Coríntios que, no

capítulo XIII, dizia:

1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos

anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que

soa ou como o sino que tine.

509

2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e

conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e

ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que

transportasse os montes, e não tivesse amor, nada

seria.

3 E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para

sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu

corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada

disso me aproveitaria.

4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é

invejoso; o amor não trata com leviandade, não se

ensoberbece.

5 Não se porta com indecência, não busca os seus

interesses, não se irrita, não suspeita mal;

6 Não folga com a injustiça, mas folga com a

verdade;

7 Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão

aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo

ciência, desaparecerá;

9 Porque, em parte, conhecemos, e em parte

profetizamos;

10 Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o

é em parte será aniquilado.

11 Quando eu era menino, falava como menino,

sentia como menino, discorria como menino, mas,

510

logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas

de menino.

12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas

então veremos face a face; agora conheço em parte,

mas então conhecerei como também sou conhecido.

13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o

amor, estes três, mas o maior destes é o amor.

Anos depois, houve o grande massacre de Massada que eu

já relatei no início do meu texto. Foi dele que meu irmão

Calebe conseguiu escapar usando o ardil de parecer ser um

louco e sua vida foi poupada. Calebe nunca desistiu de lutar

por seu povo e acabou sendo morto pelo romanos.

Estive várias vezes visitando os meus familiares em

Cesareia. Depois da morte de Calebe em Jerusalém, meu

irmão Benjamin mudou-se com a família para junto de

nossa irmã Mírian. Foram muitas as oportunidades que tive,

ao longo de muitos anos, de conviver com o que restara de

minha família. Minha mãe, que faleceu em idade avançada

meses depois da morte de Aaron, seu esposo, conservou a

beleza e a mansidão até os últimos dias de vida.

Na Judeia, assim como em todos os outros lugares onde a

semente do cristianismo fora semeada, começava a brotar a

nova religião e, por essa razão, a perseguição aos

proclamadores dela aumentou violentamente.

Certa ocasião, quando eu morava em Atenas, fui informado

por um dos meus irmãos que havia um mandado de busca à

minha casa, pois suspeitavam que eu participara da

elaboração de pergaminhos usados pelos propagadores do

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cristianismo. E com efeito, eu era sim. Na verdade, grande

parte de todos os pergaminhos que foram transportados nos

navios, dentro de sacos de alimentos, em barris de vinho ou

sob o lastro das embarcações eram feitos por mim.

Lembrava-me sempre do que Obadiah me dizia: Um

escriba, escreve. E foi o que fiz durante toda a minha vida.

Minha amada esposa foi capaz de criar os nossos filhos na

minha ausência quando, recluso, eu passava noites em claro

copiando e reescrevendo aquilo que eu acreditava que

mudaria o mundo de alguma forma.

Essa foi uma das razões pela quais eu fui perseguido. Mas,

sempre contava com a providência divina e amor dos meus

irmãos que me avisavam momentos antes de os romanos

invadirem minha casa para tirar a minha vida e a dos meus

familiares.

Vivíamos aos sobressaltos. No começo, foi fácil, quando só

tínhamos três filhos, mas quando veio o quarto e o quinto,

tornou-se quase impossível correr às pressas, montanhas

acima ou abaixo, para escapar de uma eventual perseguição.

Os nossos filhos foram o motivo para que nos afastássemos

das grandes cidades e buscássemos o sossego das

montanhas, longe de tudo e todos.

Mas, mesmo assim, depois de algum tempo, alguém, por

pura maldade, nos denunciou e outra vez tivemos que fugir

para mais longe de tudo e todos.

Soube que os romanos, ao descobrir quem eram os líderes

do movimento, mandou decapitar no mesmo dia os meus

amados mestres Malachai e Obadiah. Em seguida, pegaram

as cabeças deles e cravaram cada uma em uma estaca e as

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colocaram expostas na principal praça de Roma. Os corpos

foram presos a cavalos e arrastados até nada mais restar. Os

romanos queriam continuar impondo o terror e o controle e

usavam de requinte de crueldade para isso. Mas, com tais

atos, só provocavam mais e mais a revolta popular. Talvez

eu não viva para ver o Império destruído, mas espero que a

luta continue e que, no futuro, meus irmãos consigam

mudar a mentalidade dos imperadores. Por vezes, eu

cheguei a ter visões de que chegaria um dia em que um

imperador romano iria se converter ao cristianismo e ele

mesmo iria ajudar a difundi-lo pelo mundo, com isso, o

nome de Cristo se tornava o mais conhecido por toda a

Terra e a mensagem de perdão, de compaixão e de amor ao

próximo era levada a todos os corações. Quando contava-as

à minha esposa, ela me dizia que tais visões eram só

alucinações de um escriba.

As perseguições que eu sofri não foram somente aquelas

que já relatei. Sofri muitas outras.

Além das perseguições que temos sofrido, soube, depois de

algum tempo, que dentro da fraternidade essênia havia um

grupo dissidente e que alguns deles tencionavam destruir os

pergaminhos que Obadiah havia enterrado em Qram. Só não

o fizeram porque a região era sempre sacudida por grandes

terremotos e, provavelmente, os vasos contendo os

pergaminhos jaziam sob toneladas de pedras e areia.

Se querem saber se fui um homem feliz no meu ofício como

escriba, eu direi que sim. Escrevi muito mais do que jamais

havia sonhado um dia.

513

Apesar disso, dentro de mim sempre houve o desejo de

contar mais sobre aquele processo de criação da história do

Messias, na qual participei intensamente. Eu queria, de

algum modo, poder revelar a verdade, acima de qualquer

outra coisa. Mas eu sabia que seria perigoso, se o meu relato

tratando dessa história chegasse ao conhecimento das

pessoas antes de serem divulgados os evangelhos que

Marcos, Mateus, Lucas, João, Pedro e Maria Madalena,

tudo cairia por terra. Nosso trabalho de tantos anos e

esforços teria sido inútil. Mesmo assim, eu resolvi escrever

este pergaminho esclarecedor e decidi que deveria escondê-

lo, da mesma forma como os evangelhos haviam sido

escondidos, talvez até mais oculto que aqueles, para não

correr o risco de ser encontrado antes da divulgação dos

evangelhos.

Esperávamos que os evangelhos fossem encontrados só no

futuro, por acaso, e, assim, confirmariam a história que já

havia circulado de boa em boca, desde a época em que

Crestus fora crucificado, tornando-se um mártir para

muitos.

Assim, iniciei a escrever o meu próprio evangelho.

Diferenciado dos demais, já que não apresenta a mesma

história que meus companheiros de trabalho e eu

escrevemos naquela época. Eu decidi contar o que havia por

trás da história e, por isso, sei que, de certo modo, eu me

tornei um traidor de meus companheiros.

Eu havia jurado que nunca revelaria nada do que havíamos

feito na nossa biblioteca improvisada em Canopus, no

Egito. Agora, depois de tantos anos, eu me vi compelido a

contar toda a verdade e, fazer isso, foi para mim como abrir

514

um baú de ossos, fazendo-os ressuscitar, mas, ao final,

sinto-me aliviado.

E agora me pergunto, será que os leitores acreditarão em

mim ou nos outros evangelhos? Se acreditarem, espero não

comprometer o resultado que esperávamos alcançar com a

transmissão das mensagens de amor escritas nos evangelhos

dos meus demais companheiros, os quais espero terem sido

encontrados antes deste meu.

Em qualquer dos casos, será muito difícil alguém conseguir

provar que quem existiu foi Jesus Cristo e não Crestus, pois

não há, até o momento, nenhum outro documento escrito

por romanos, gregos, persas ou judeus, fora da nossa

fraternidade dos essênios, que mencione a existência de

Jesus Cristo.

O que eu realmente desejo é que a verdade seja revelada a

todos os homens e mulheres de boa vontade. Tudo que peço

é que, independentemente das crenças, das religiões e

filosofias que tiverem, abracem com fé a certeza de que só o

verdadeiro amor é capaz de transcender as diferenças, evitar

as guerras e tornar este mundo um verdadeiro paraíso. Sem

o amor autêntico e verdadeiro, viveremos sempre açoitados

de um lado para o outro, como um barco à deriva num mar

de lágrimas e sofrimento.

Eu conheci o amor em todas as suas formas, de mãe, de pai,

de irmãos, de amigos, de protetores, de mestres e de

estranhos. Também conheci o amor incomparável de uma

mulher, aquela que me deu filhos e filhas e me propiciou os

meios para que eu realizasse a minha obra. Mas essa talvez

515

seja uma história para eu contar em outra ocasião, se eu

ainda tive tempo.

Quero encerrar meu texto contando como foi a minha

chegada à Atenas, cidade onde anos antes eu estivera

estudando com o mestre Dardanus e para onde retornei,

quando concluímos os trabalhos no Egito.

Ao chegar ao porto da cidade, procurei pelo mestre

Archimedes. Eu estava ansioso para saber qual seria a

última missão que eu teria que realizar em terras tão

distantes. Um moço muito solícito disse-me que me levaria

até a residência do mestre que eu procurava.

Saímos do porto na direção norte da cidade, pela rua Real,

passando pelo templo de Zeus, depois pelo Circus Tholos,

armado permanentemente naquele local. Em seguida,

subimos por uma avenida larga e arborizada, indo em

direção a palacetes localizados na encosta mais ao alto.

Durante a caminhada, de vez em quando eu parava para

olhar para trás e contemplar o mar que ficara às nossas

costas.

O esforço da caminhada foi compensado pela paisagem

magnífica que descortinei lá do alto. O rapaz apontou-me

para uma morada de dois pisos, localizada entre carvalhos e

castanheiras. Era uma mansão ampla, revestida de mármore

branco, tendo ao centro uma torre, da qual imaginei pudesse

oferecer uma magnífica visão do mar lá embaixo.

O mestre Archimedes deveria ser um homem muito rico,

pois suas vestes eram nobres, assim como as joias que trazia

nos dedos, pendurada ao pescoço e nos punhos. O interior

da casa lembrava muito as mansões romanas, que eu

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conhecia tão bem, mas tinha um toque refinado dos gregos,

com esculturas finas, quadros e cortinas de seda. Havia duas

mulheres e um homem vestidos como serviçais sempre à

espera das ordens do patrão.

Ao receber-me, o mestre cumprimentou-me com reverência

extrema e disse-me que eu deveria me sentir em casa.

Instalou-me em um quarto confortável, no andar superior,

de onde eu pude melhor contemplar o mar em toda a sua

plenitude. A vista era privilegiada e eu comecei a gostar

daquele lugar. Seria perfeito para eu continuar escrevendo,

seja sobre qual fosse o tema.

Depois de aceitar o convite para banhar-me na piscina que

ficava no lado oeste da morada, mestre Archimedes disse-

me que eu estava sendo esperado há algum tempo para

realizar uma missão que a ninguém mais seria possível.

- O senhor está me deixando curioso, mestre Archimedes. O

que há de tão importante para eu fazer aqui em Atenas?

- Logo mais a noite você saberá. Temos tempo – disse-me o

mestre, sorrindo e fazendo sinal a uma das serviçais para

que nos servisse suco de frutas e amêndoas.

Mestre Archimedes falava comigo em latim. Conversamos

sobre tudo. A resistência do povo grego à dominação

romana, os filósofos, as pregações sobre as boas novas que

já tinham chegado do além-mar. Falamos até sobre o sexo

dos anjos. Archimedes era um homem espirituoso, bem

falante e de modos gentis.

O por do sol era um espetáculo de rara beleza. Raios

alaranjados do poente escorriam suaves por entre nuvens de

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cetim, emolduradas num céu purpúreo, cálido, despedindo-

se sem pressa da luz do dia, adivinhando a noite que logo

chegaria. Sobre o mar azul-turquesa, baloiçavam, ao longe,

as embarcações cansadas das viagens sem fim. Era esse o

meu por do sol grego. O primeiro dos vários que eu veria

enquanto ali estivesse.

- Papa! Papa!

Ouvi chamar baixinho atrás de mim e, quando me virei, vi

duas crianças, duas meninas de mãos dadas, ambas vestidas

com túnicas azuis. Eram lindas e pareceu-me dois anjinhos

descidos do céu. Calculei que tivessem no máximo 5 anos.

Fiquei surpreso, pois nem sabia que Archimedes tivesse

filhos. Elas, provavelmente, estavam perdidas procurando

pelo pai.

Aproximei-me delas e percebi que eram gêmeas. Agachei-

me e lhes disse que o pai delas não estava ali e que iríamos

procurá-lo. A mansão tinha muitos quartos e eu mal tivera

tempo de conhecer todas as dependências.

Falei em grego com elas, mas pareceram não me entender

direito e sorriram uma para a outra. Eu sabia escrever em

grego, imaginei que minha pronúncia provavelmente era

muito ruim, por isso elas não me entendiam. Tomei-as pelas

mãos e segui pelo corredor que dava para as demais

dependências, chamando por Archimedes. Estranhamente,

ninguém respondeu. Voltei a chamar mais alto e dirigi-me

até ao lugar que parecia ser a cozinha. Lá, provavelmente,

encontraria os empregados, mas não havia ninguém. As

crianças pareciam estar se divertindo.

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- Seu papai parece que não está aqui. Pode me dizer o nome

de vocês? Onde está a mãe de vocês... – perguntei,

soletrando as palavras.

- Meu nome é Mariana – disse sorrindo e mostrando as

janelinhas entre os dentes.

- O meu é Paloma – disse-me a outra, ocultando com a mão

o sorriso.

- Muito bem... Meu nome é Matias. Onde está a mãe de

vocês? Pode me levar até ela?

Ambas puxaram-me pela mão ao mesmo tempo e me

conduziram por uma porta. Quando abri e passei por ela, as

meninas a fecharam atrás de mim, deixando-me diante de

uma escada em caracol, o caminho para a torre.

Minhas pernas estavam trêmulas quando eu comecei a subir

por aquela escada que me fazia lembrar com absoluta

nitidez o que tinha acontecido há muitos anos atrás. Era

incrível a semelhança entre aquele lugar e a casa das

Virgens Vestais, onde eu conhecera Ariam de Glimeu.

Quando quase chegava ao topo, imaginei que estava lá em

Roma, como fazia sempre ao fim do dia, indo encontrá-la,

linda, vestida em uma túnica branca, esvoaçante, de braços

abertos à minha espera. Por isso, antes de alcançar o último

degrau, fechei os olhos e terminei a subida desse modo.

Não sei por quanto tempo fiquei ali de olhos fechados,

sentindo a brisa tocar meu rosto. A lembrança daquele

tempo que vivi com Ariam e que eu já havia sepultado junto

com suas cinzas, voltaram com força. Eu agora podia

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compreender a razão de estar ali. Era uma obra de Malachai

ou Obadiah que, sabendo da minha solidão, enviara alguém,

uma mulher, provavelmente uma viúva com duas crianças,

para que eu cuidasse delas como a minha última missão.

Planejaram meticulosamente tudo. Provavelmente, Pedro,

quando ficava a sós com Malachai em nossa casa em

Canopus, deve ter contado a ele tudo o que se passara

comigo quando estive na casa das Vestais. Não existe

segredo quando mais de uma pessoa o conhece. Eu não

sabia se estava preparado para essa última missão. Ainda de

olhos fechados, eu sentia que havia uma mulher ali. Não

sabia quem seria essa mulher, mas havia ali um mistério... o

perfume era o mesmo que Ariam usava. Como Pedro ou

Malachai poderiam saber qual era o perfume dela, se eu

nunca lhes havia mostrado?

Quando abri os olhos, descobri que Ariam de Glimeu, como

a fênix da mitologia grega, havia ressurgido das cinzas.

Não é possível descrever em palavras a sensação daquele

abraço. Nem em mil papiros eu seria capaz de escrever as

emoções que sentimos naquela tarde. Só paramos de nos

beijar e abraçar, quando percebemos que havia mais pessoas

nos olhando. Mestre Archimedes e minhas duas filhas.

- Eu.. eu não consigo entender, meu amor. O que

aconteceu? Como foi possível você ficar longe de mim

tanto tempo? – indaguei confuso, querendo ter certeza de

que era ela, a mulher que eu julgava morta, queimada em

um claustro há muitos anos.

- Tenha calma, meu amado... eu te contarei tudo. Temos

tempo agora. Temos muito tempo. Primeiro tenha certeza de

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que isso não é um sonho e me beije outra vez. Tenho

saudades desses seus lábios carnudos e macios.

Nos beijamos outra vez. Archimedes decidiu levar as

crianças para baixo.

- Quando você partiu naquele dia para Alexandria, eu tinha

certeza de que estava grávida. Meu corpo estava me dando

sensações muito estranhas e eu sabia que logo seria

descoberta. Eu sabia que precisava de mais oito anos até

completar a idade de 30 anos e assim quebrar meu voto

como Vestal. Grávida, eu seria enterrada viva com nossas

filhas e você jamais saberia. Tomei a decisão de simular a

minha morte. Você se lembra de que Flávia havia se

suicidado?

- Ela realmente se suicidou? – indaguei.

- Na verdade, eu também acho que não. Creio que ela foi

envenenada por uma colega que queria muito ocupar o meu

lugar e era inimiga mortal de Flávia. Essa colega era Lucila

de Galeso. Eu contei a ela o que tinha acontecido entre nós

e que tinha sido ameaçada por Flávia. Lucila disse que

tomaria as providências. E, no dia seguinte, Flávia foi

encontrada morta.

- Eu me sinto envergonhado agora por ter pensado mal a seu

respeito.

- Eu já o perdoei, Matias. Eu também não poderia afirmar

nada, pois Lucila nunca confessou ter matado Flávia. Mas

ela foi muito generosa comigo, ao me ajudar no meu plano

de fuga. Durante a noite, retiramos o corpo de Flávia que

estava embalsamado na cripta da casa. Levamos o corpo

521

para o claustro, colocamos meus anéis e braceletes que não

seriam derretidos com o calor e ateamos fogo no quarto.

Durante a confusão do incêndio, eu fugi a cavalo no meio

da noite.

- Que escape perfeito, meu amor. E para onde você foi?

- Meu tio-avô foi informado de que eu escaparia e

organizou a minha fuga para a Síria... Lá eu estaria segura

com outros familiares e, definitivamente, livre da punição

por ter violado meus votos e também não mais o envolveria

nisso. Afinal, meu tio iria precisar de você para

desempenhar uma grande missão, como ele me disse. Essa

casa é um presente dele e de Obadiah, para você.

Archimedes é o meu tutor aqui na Grécia e esperava a sua

chegada para se mudar. Apenas os empregados ficarão para

nos auxiliar no que precisarmos.

- Seu, tio? E quem afinal é o seu tio?

- Você nunca desconfiou? Malachai é o meu tio-avô.

- Que miserável! Como pude ser enganado tanto tempo.

- Malachai ama você Matias e sabia que você faria qualquer

coisa para estar comigo, por isso nada lhe contou, porque

sabia que, se o fizesse, você até desistiria da sua missão.

Mas não pense que ele não esteve te vigiando todo o tempo.

Qualquer mulher que se aproximasse de você seria

eliminada.

- Eu jamais entregaria meu coração para outra mulher,

Ariam, pois ele sempre esteve preenchido por você.

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- Você é um mentiroso muito convincente... eu vou levar

uns 40 anos para acreditar nisso...

- Espero que só se convença quando já tivermos 80 anos

vivendo juntos... assim não terá mais dúvida e teremos

vivido bastante.

Essa é a primeira parte do relato que eu queria terminar. Se

tiver forças, pois, como já disse, sou uma ancião e ainda

tenho muita coisa para fazer, prometo escrever como foi a

minha vida ao lado dessa mulher que me deu mais 6 filhos e

viveu ao meu lado os melhores e mais fantásticos dias de

minha vida. Também espero poder contar a razão pela qual

inclui meu nome nos Evangelhos como Matias, o escolhido,

que assumiu o lugar de Judas no grupo de apóstolos. Digo-

lhes, também, que fui o autor de um livro de revelações ou

Apocalipse.

Quanto às personagens que mencionei, com as quais você se

comoveu, ou das quais você sentiu raiva, desprezo, sorriu e,

até mesmo, as amou, durante os meus relatos, você sempre

terá dúvida se elas de fato existiram ou não. Isso importa?

Sobre o Autor:

Mathias Gonzalez, brasileiro, naturalizado australiano, é Mestre

em Tecnologia da Comunicação e Informação, Psicopedagogo,

Especialista em Educação a Distância, Psicólogo Clínico e

Escolar. Sua obra voltada para temas motivacionais,

educacionais, psicológicos e ambientalistas alcança a marca de

140 livros publicados no Brasil e exterior. Durante muitos anos

vem estudando as filosofias orientais e decodificando-as para o

Ocidente, tornando possível a qualquer pessoa entender e praticar

os ensinamentos dos grandes mestres.

Contato com o autor:

e-mail e MSN: [email protected]

https://clubedeautores.com.br/authors/42814