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UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU – FURB CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CCE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE MESTRADO EM EDUCAÇÃO O CURRÍCULO NA VOZ DOS PROFESSORES: UM ESTUDO DE CASO À LUZ DA EPISTEMOLOGIA SOCIAL CARIN CARVALHO BLUMENAU 2006

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UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU – FURB

CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CCE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

O CURRÍCULO NA VOZ DOS PROFESSORES:

UM ESTUDO DE CASO À LUZ DA EPISTEMOLOGIA SOCIAL

CARIN CARVALHO

BLUMENAU 2006

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CARIN CARVALHO

O CURRÍCULO NA VOZ DOS PROFESSORES:

UM ESTUDO DE CASO À LUZ DA EPISTEMOLOGIA SOCIAL

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação, ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Ciências da Educação, da Universidade Regional de Blumenau – FURB.

Orientador: Prof. Dr. Adolfo Ramos Lamar

BLUMENAU 2006

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor e Orientador Adolfo Ramos Lamar, admiração pelo mestre que é. E porque me concedeu autonomia necessária e oportunizou a concretização da pesquisa que aqui apresento.

A todos os professores do programa de mestrado e, em especial, à professora Maria Stela Meneghel e ao professor Ernesto Jacob Keim, pela contribuição na organização deste trabalho;

Aos amigos do mestrado e, em especial, os amigos do grupo de pesquisa Educógitans e a Célia, pela possibilidade de partilha nas dúvidas e descobertas;

Aos professores, direção e coordenação pedagógica da escola campo de pesquisa, meu agradecimento e sincero apreço;

Ao Douglas, pelo incentivo, companheirismo e paciência nas minhas ausências;

Aos meus pais, Sílvio e Edite, irmãos Carla, Caroline e Claudemir, pela torcida, estímulo e auxílio nas horas difíceis;

À Leonida e aos meus atuais e antigos amigos pelo apoio e contentamento;

À Capes, pelo auxílio financeiro.

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Nem caçador, Nem pescador Caminhante...

Talvez um guia, Que conhece um certo trecho da estrada.

Talvez um tocador de flauta. Buscando um ritmo para o caminho.

Fernando Pessoa

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RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo compreender os principais significados do currículo para um grupo de professores de uma escola pública do município de Blumenau, SC, na perspectiva da Epistemologia Social de Thomas Popkewitz, cujas pesquisas buscam compreender os sistemas de raciocínio e conhecimento subsistem na escolarização e organizam a forma como os professores vêem o currículo e o transformam em ação. Com o intuito de conduzir esta pesquisa, procurou-se, de modo mais específico, resgatar a constituição histórica da educação do referido município, identificar as concepções curriculares presentes nos documentos oficiais da educação, analisar quais sistemas de raciocínio e conhecimento orientam as concepções e práticas curriculares de um grupo de professores e investigar as relações existentes entre a constituição histórica do município, as políticas curriculares oficiais e os principais significados do currículo para os professores participantes da pesquisa. Para atingir os objetivos propostos, realizou-se um estudo de caso tendo, como instrumentos de coleta de dados documentos, observação do cotidiano e entrevista semi-estruturada. A pesquisa de campo, que se deu de março a julho de 2005, teve a participação de 14 professores. A análise dos dados, realizada de forma qualitativa, apontou para o currículo como lugar/espaço de regulação, de uma política do conhecimento e da prática. Apontou, também, para uma perspectiva de currículo conteudista e disciplinar e, no que concerne à prática, para as estratégias regulatórias das políticas públicas que, historicamente, têm levado à divisão dos processos de concepção e de execução das políticas educacionais, ficando o último aos cuidados dos professores.

Palavras-Chave: Educação. Currículo. Epistemologia Social.

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ABSTRACT

This research had as main goal to reach the meaning of a curriculum to a group of teachers from a public school in Blumenau, SC, in the perspective of social epistemology from Thomas Popkewitz, which researches reach to understand what are the systems of knowledge and reasoning that are found in school and organize the way teachers see the curriculum and transform it into action. With the objective of leading this research, I looked, in a more accurate way, to understand the historical formation of education in Blumenau, identify the curriculum conception that are in attendance in the educational bureaucrat document, analyze which are the reasoning’s and knowledges systems that guide the conceptions and practice of a certain group of teachers and investigate the relations between the historical constitution of the municipality, the curriculum politics and meanings regarding the teachers who participated on the research. To reach the application goals, we have done a case study, having instruments such as documents, daily observation and structured interviews. A field research, that happened between March until July 2005, had a participation of 14 teachers. The data analysis, done in a quantity way, showing to a curriculum as place/set as to create a politic knowledge and practice. It has also shown a perspective of a content disciplinary curriculum and to all strategies that led to regulate public politics, which historically, has taken to a conception process of division and execution of educational politics, being this last one to the teachers concern. Key words: Education. Curriculum. Social Epistemology.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 09

2 O CURRÍCULO: APONTAMENTOS SOBRE SUA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E PERSPECTIVAS TEÓRICAS....................................................

22

2.1 O Currículo: Construções Teóricas e Desdobramentos Históricos ................ 2.1.1 As Teorias Tradicionais e o Contexto Brasileiro............................................

2.1.2 As Teorias Críticas e o Contexto Brasileiro...................................................

2.1.3 As Teorias Pós-Críticas e o Contexto Brasileiro............................................

24 29

46

55

2.2 O Currículo e a Epistemologia Social de Thomaz Popkewitz.......................... 65

3 A EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO DE BLUMENAU/SC E A ESCOLA CAMPO DE PESQUISA: DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS E PERSPECTIVAS CURRICULARES....................................................................................................

75

3.1 A Construção Educacional e Curricular do Município de Blumenau – SC.... 3.1.1 O Documento Curricular em Vigência e Transição........................................

3.2 A Escola Campo de Pesquisa............................................................................... 3.2.1 O Projeto Político-Pedagógico .......................................................................

76 96

108 112

4 CURRÍCULO COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL E NORMALIZAÇÃO DE UMA ORDEM PARTICULAR DE PENSAMENTO E AÇÃO.............................

4.1 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação................................................4.1.1 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação da Escola............................

4.1.2 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação dos Alunos, Pais e Professores.....................................................................................................

4.1.3 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação Disciplinar.........................

4.2 O Currículo Como Lugar/Espaço de Uma Política do Conhecimento............

4.3 O Currículo Como Lugar/Espaço da Prática.....................................................

120

121

123

129

138

143

153

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................

REFERÊNCIAS .............................................................................................................

APÊNDICES...................................................................................................................

ANEXOS.........................................................................................................................

163

169

174

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1 INTRODUÇÃO

Os estudos acerca das políticas curriculares, seus pressupostos1 e desdobramentos

teórico-práticos têm contribuído sobremaneira para a compreensão do campo2 curricular no

Brasil, tendo em vista que permitem investigar a sua configuração atual, seus limites,

possibilidades e aspectos contingentes.

No Brasil, o currículo escolar tem sido objeto de estudo para um grande número de

pesquisadores, bem como tema para colóquios nacionais e internacionais, para um dos grupos

de trabalho (GTs) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

(ANPED)3, para grupos de pesquisa de Programas de Pós-Graduação e para discussão política

em todo o país. Esses espaços objetivam, entre outras coisas, traçar um mapa das discussões

atuais e desenvolver teorias e perspectivas que permitam manter em movimento o campo e

encontrar espaços alternativos de interlocução sobre descobertas, dúvidas e novas questões

que se descortinam quotidianamente.

Em relação à forma de investigar os processos curriculares e suas problemáticas, Silva

(1999) afirma que esta tem sofrido modificações. Pode-se dizer que o campo da teoria

curricular é relativamente novo e dinâmico. Nascido com o intuito de elaboração de políticas

e propostas curriculares, com o passar do tempo, assumiu um caráter cada vez mais político e

de compreensão das influências, práticas, interesses, relações e resistências que afetam e

determinam a escolarização.

Ainda segundo Silva (1999), os estudos referentes ao currículo tiveram sua origem nos

Estados Unidos, no início do século XX. Naquele momento, todo o investimento, tanto

intelectual como financeiro, visava encontrar alternativas mais adequadas de apresentação

prática e organizacional do currículo. A ênfase permaneceu quase que exclusivamente na

elaboração eficiente de programas e na formação técnica e especializada. Em outras palavras,

na atividade técnica de como fazer o currículo. 1 “Algo que se toma como previamente estabelecido, como base ou ponto de partida para um raciocínio ou argumento. Um pressuposto pode ser explícito, como as premissas de um silogismo, que servem de base para a conclusão. Pode ser também implícito, no sentido de crenças, interesses, valores, que influenciam nossas ações e decisões sem que tenhamos consciência disso.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.220). 2 Entende-se campo da forma como enunciado por Moreira (2001, p.14), ou seja, “formado por pessoas que escrevem textos a partir de limites historicamente estabelecidos e de tradições, regras e princípios que seus antecessores estabeleceram como razoáveis. [...] que se modificam de modo não linear, em velocidades que variam e são avaliadas distintamente conforme as circunstâncias e agentes sociais envolvidos no processo. Em meio a essas mudanças, rupturas ocorrem, tradições se deslocam e se reagrupam em novas problemáticas.”. 3 A ANPEd é uma sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em 1976 por alguns Programas de Pós-Graduação da área da educação. A finalidade da associação é a busca do desenvolvimento e da consolidação do

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No final dos anos de 1960, sob a influência dos estudos em sociologia da educação, o

currículo como campo de estudos teóricos sofreu um abalo. As perspectivas teóricas desse

período conduziram a um domínio eminentemente político e propuseram o questionamento da

estrutura social e das formas dominantes de conhecimento. Silva (1999) explica que essas

teorias se voltaram para compreender o que o currículo fazia e, em especial, para

compreender os arranjos sociais de poder, ideologia, reprodução e resistência que permeiam

as relações escolares. A partir de então, a escola passou a ser percebida não mais como um

espaço neutro de transmissão desinteressada dos conhecimentos, mas como produto social a

serviço dos interesses da classe dominante.

Nas décadas que se seguiram, o campo da teoria curricular não parou de se

movimentar. A partir da década de 1980, as teorias curriculares acrescentaram ao seu escopo

de investigação novos elementos de leitura do currículo. Buscava-se, então, compreender o

currículo sob a hipótese de sua construção discursiva. Esse novo cenário ganhou contornos do

que se pode chamar de hibridização de perspectivas teóricas4. Pode-se mencionar a

emergência, na referida década, de debates relativos ao exercício sutil do poder presente nas

questões relativas a gênero, raça e sexualidade, resumidas sob a perspectiva dos estudos

culturais e de todo o conjunto das teorias pós-modernas5 e pós-estruturalistas6.

Essa teorização, baseada em formas de análises textuais e discursivas, buscou a

produção de novos sentidos para o campo curricular. No Brasil, autores como Alice Casimiro

Lopes, Alfredo Veiga-Neto, Antônio Flávio Moreira, Marisa Vorraber, Elizabeth Macedo,

Tomaz Tadeu da Silva, entre outros, têm apontado o currículo e suas problemáticas como uma

ensino de pós-graduação e da pesquisa na área. Ao longo dos anos, tem se projetado como um importante fórum de debates e acompanhamento das questões científicas e políticas da área educacional. 4 Entendemos por hibridização da mesma forma que Lopes e Macedo (2002), ou seja, como conjunto de “[...] tendências teóricas que vem definindo esse campo. Um campo assinalado, [...] mais pela diversidade orgânica do que pela uniformidade. Um campo em que diferentes discursos são reterritorizalizados. Um campo habitado por sujeitos que são em si mesmos híbridos culturais. [...] um campo contestado em que se misturam influências, interdependências, rejeições” (LOPES; MACEDO, 2002, p.47). 5 “Movimento nas artes, na arquitetura, na teoria social e na filosofia ligado à idéia de que várias transformações culturais e sociais permitem descrever o presente período histórico como suficientemente diferente do período conhecido como Modernidade. [...] Entre as características que distinguem a Pós-Modernidade da Modernidade apontam-se, entre outras: incredulidade relativamente às metanarrativas; deslegitimação de fontes tradicionais e autorizadas de conhecimento [...]; descrédito relativamente a significados universalizantes e transcendentais; crise da representação e predomínio dos simulacros; fragmentação e descentramento de identidades culturais e sociais. [...] também pode ser visto como uma perspectiva teórica ligada a práticas textuais, teóricas e sociais tais como [...] o cruzamento de fronteiras culturais e identitárias, preferência pela mistura e pelo hibridismo; a celebração da contingência da provisoriedade; a tolerância para com a indeterminação e a incerteza.” (SILVA, 2000, p.94). 6 “Termo abrangente, cunhado para nomear uma série de análises e teorias que ampliam e modificam certos pressupostos e procedimentos da análise estruturalista. [...] a teorização pós-estruturalista [...] desloca a preocupação estruturalista com estruturas e processos fixos e rígidos de significação. Para a teorização pós-estruturalista, o processo de significação é incerto, indeterminado e instável.” (SILVA, 2000, p.92).

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invenção social. Suas investigações levam a compreender o currículo escolar como uma

construção social e histórica, na qual circulam e se produzem saberes, relações de poder e

subjetividades determinadas.

Considerando o apresentado até o momento, esta pesquisa partiu do pressuposto de

que o currículo escolar não é o resultado de asserções mais adequadas sobre como organizar a

escolarização, mas, como argumenta Goodson (1995), é um artefato social e cultural que

envolve formas particulares de organizar os conhecimentos, os tempos e os espaços escolares

e tem, como objetivo, disciplinar e criar normas e padrões para o pensar e agir dos sujeitos

envolvidos nesse processo. Em outras palavras,

Uma perspectiva que vê o conhecimento corporificado no currículo escolar como um artefato social e cultural [...] deve tentar explicitar como esse determinado artefato veio a se tornar o que é, descrevendo a dinâmica social que o moldou dessa forma. [...] Isso implica não ver o currículo como resultado de um processo social necessário de transmissão de valores, conhecimentos e habilidades, em torno dos quais haja um acordo geral, mas como um processo constituído de conflitos e lutas entre diferentes tradições e diferentes concepções sociais. (SILVA, 1996, p.78).

Diante do exposto, pode-se entender que as políticas curriculares, apresentadas em

forma de projetos e documentos, são cartas de intenções imbuídas de decisões políticas e

administrativas, que são “[...] sempre parte de uma tradição seletiva de alguém, da visão de

algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo [...] produto de tensões, conflitos e

concessões culturais, políticas e econômicas” (APPLE, 2002, p.59). Não são, portanto,

neutras, mas produtos de escolhas nas quais se travam disputas e se demarcam lugares e

relações de poder.

É importante pensar também que dentro do conjunto de conhecimento escolar, o que é incluído e o que se exclui, o que tem importância e o que não tem, também serve em geral a uma finalidade ideológica; significa dizer que o currículo não é um instrumento passivo, mas uma força ativa que pode, inclusive, servir para legitimar as ideologias e os sistemas sociais e econômicos tão estreitamente ligados à escola. (COPPETE, 2003, p.21).

Pelos motivos mencionados, ao investigar as propostas curriculares oficiais, os seus

pressupostos político-ideológicos e a ação que delas decorre, é pertinente compreender sua

articulação com o contexto exterior à escolarização. De acordo com Cortella (2003), é

ingênuo considerar que a escola possui uma autonomia absoluta na sua inserção social, livre

dos determinantes econômicos, sociais e culturais. Mais ingênuo ainda, é pensar que os

sujeitos envolvidos na escolarização estão isentos dessas influências, ou seja, das influências

de escolhas também políticas e ideologicamente determinadas pelos discursos exteriores à

escolarização.

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Nesta direção, no cenário das teorias e análises curriculares, surgem perspectivas de

cunho epistemológico. Essas perspectivas vêm indicando que, para compreender as políticas

curriculares e suas formas de seleção e organização dos conhecimentos, suas regras e normas,

seus interesses, suas contradições e relações de poder, necessariamente se deve passar pela

investigação dos sistemas de raciocínio e de conhecimentos7 que dirigem o pensar e o agir

dos sujeitos envolvidos na escolarização.

Tais perspectivas estão, particularmente, interessadas em compreender como se

começou a pensar e a agir da forma como se pensa e age.

As verdades e os valores da educação, da pedagogia e do currículo são tornados objetos de problematização. Afinal não importa mais perguntar se determinada abordagem, determinado conhecimento ou conteúdo é verdadeiro ou falso. Importa saber como determinados conhecimentos vieram a ser considerados mais verdadeiros que outros. Importa saber os processos, os procedimentos, a feitura, a fabricação. [...] Explicitam os processos pelos quais as verdades são produzidas e os valores inventados [...] e questionam os processos que nos levam a considerar certos tipos de conhecimentos mais desejáveis que outros e alguns valores preferíveis a outros. (PARAÍSO, 2005, p.10).

Nesta linha, um dos pesquisadores, conhecido por seu interesse na investigação de

reformas curriculares, é Thomaz S. Popkewitz. Sua proposta, fundamentada em pressupostos

epistemológicos8, tem se ocupado pouco com a prescrição de modelos de reforma curricular

e, muito mais, com a investigação dos sistemas de conhecimentos que as envolvem.

Para Popkewitz (2001), a investigação dos discursos que circulam na escolarização é

uma possibilidade para se chegar aos sistemas de raciocínio e de conhecimentos que se

produzem socialmente sobre a educação. Esses sistemas devem ser encarados como práticas

sociais que têm o poder de produzir pensamentos, ações e subjetividades.

O poder desse conhecimento está no fato de não ser apenas conhecimento. As idéias funcionam para modelar a maneira como participamos [...]. Tal fusão do conhecimento público/pessoal que disciplina nossas escolhas e possibilidades pode ser pensada como efeitos de poder. [...] o próprio conhecimento que organiza o ensino, a aprendizagem, o manejo da classe e o currículo imprime uma certa

7 Para Pokewitz (1994), “podemos ver os sistemas de idéia, raciocínio, inscritos na escolarização como tecnologias sociais. Por tecnologia social entendo um conjunto de métodos e estratégias que guiam e legitimam o que é razoável/não razoável como pensamento, ação e auto-reflexão”. (POPKEWTZ, 1994, p.193) O autor também afirma que “Grande parte da vida moderna é preparada por sistemas de conhecimentos especializados que disciplinam a maneira como as pessoas participam e agem”. (POPKEWITZ, 2001, p.13). Nesse processo interagem, constantemente, interesses e relações de poder. 8 “(do gr. episteme: ciência, e logos: teoria) Disciplina que toma o conhecimento e as ciências como objeto de investigação. [...] Seu problema central, e que define seu estatuto geral, consiste em estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um puro registro, pelo sujeito, dos dados já anteriormente organizados independente dele no mundo exterior, ou se o sujeito poderá intervir ativamente no conhecimento dos objetos. Em outras palavras, ela se interessa pelo problema do crescimento dos conhecimentos científicos.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.84).

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seletividade naquilo que os professores ‘vêem’, pensam, sentem e conversam sobre as crianças e as matérias escolares. (POPKEWITZ, 2001, p.13).

Para englobar todas as questões que aponta, Popkewitz (1997) utiliza o conceito de

Epistemologia Social. De modo mais específico, sua perspectiva de análise visa compreender

as conexões entre o conhecimento e poder presentes nas relações sociais e institucionais. O

próprio Popkewitz se manifesta sobre a Epistemologia Social:

Tenho usado a frase Epistemologia Social referindo-me à linha de análise que orienta

este estudo: a relação do conhecimento, instituições e poder. Uso epistemologia como

conceito histórico, social e pragmático. [...] Com a filosofia pragmática, afirmo que não há

base comum onde possamos colocar um verdadeiro consenso ou um modelo neutro

permanente, segundo o qual seja possível avaliar um argumento racional. Não há esquemas

universais de raciocínio e racionalidade, mas somente epistemologias socialmente construídas

que representam e incorporam relações sociais. (POPKEWITZ, 1997, p.39).

Considera-se que a Epistemologia Social pronunciada por Thomas Popkewitz

apresenta-se como alternativa para análise dos processos escolares porque permite

compreender que as teorias curriculares e as ações que delas decorrem não estão num “campo

puramente neutro epistemologicamente, mas num campo epistemológico social” (SILVA,

1999, p.16), em que os conhecimentos que se produzem acerca da escolarização e, neste caso

específico, do currículo, podem ser interpretados como práticas sociais que produzem efeitos

normativos.

Popkewitz (1994) ainda explicita seu entendimento a respeito da possível contribuição

de uma epistemologia social na análise do currículo.

Exploro os efeitos do currículo através daquilo que chamo de Epistemologia Social da escolarização. Uso o conceito de espistemologia para me referir à forma como o conhecimento, no processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de responder ao mundo e as concepções de eu. O ‘social’ que qualifica ‘epistemologia’ enfatiza a implicação relacional e social do conhecimento, em contraste com as preocupações [...] como a busca de asserções de conhecimentos universais sobre a natureza, as origens e os limites do conhecimento. (POPKEWITZ, 1994, p.174).

O mesmo autor ainda acrescenta que sua “preferência pelo termo ‘Epistemologia

Social’ tem a intenção de historicizar o processo de escolarização de uma forma que a maior

parte das teorias discursivas não o faz”. (POPKEWITZ, 1994, p.175).

A investigação histórica da escolarização, para Popkewitz (1994), tem o intuito de

auxiliar a compreensão de como foram sendo construídos historicamente, nas instituições

escolares, os sistemas de raciocínio e de conhecimento que constroem as normas e padrões

para o pensar e o agir dos sujeitos que nelas circulam, como também seus efeitos de poder.

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Em outras palavras, objetiva investigar como se articulam sistemas de raciocínio, sistemas de

conhecimento, práticas discursivas e relações de poder ao longo do tempo. Para o autor, a

investigação histórica da escolarização pode ser uma forma de, criticamente, depreender os

discursos que proclamam propostas de conhecimentos verdadeiros e racionais sobre as

crianças, os professores e os processos pedagógicos.

O esvaziamento da história, no conhecimento da pedagogia e da infância em discursos da reforma, produz uma memória que funciona para normalizar e produzir sistemas de inclusão e exclusão [...] princípios para ação e participação. A falta de historicidade, relacionada com a construção da ‘razão’ em políticas educacionais e na pesquisa educacional, também é sua ironia. A construção da memória e do esquecimento pressupõe continuamente que as políticas e pesquisas sejam guiadas por propósitos normativos, sem refletir sobre como essas construções normativas de propósitos e satisfações representam os efeitos do poder. (POPKEWITZ, 2004, p.123).

Para tanto, Popkewitz (2001) propõe a análise de discurso dos sujeitos/atores que

agem na escolarização para identificar os significados e o quê/como eles são construídos e

interferem nas práticas educativas. A investigação dos processos curriculares e seus discursos

pode se constituir, para Popkewitz (2001), uma possibilidade de compreensão das formas de

regulação9 social, ou seja, das regras e padrões que organizam as percepções dos professores

e alunos sobre o mundo e seus regimes de verdade10, sobre o bom e o mau professor, o bom e

o mau aluno, a boa e a má escola, o currículo ideal, etc. Portanto, é uma possibilidade de

compreender os determinantes sociais, históricos, políticos e culturais que conduzem as

percepções dos professores e alunos.

Esse conjunto de modificações que vem envolvendo os processos curriculares e os

debates que as acompanharam, em especial, os estudos realizados por Popkewitz, ora

apresentados, cercou toda a formação da autora desta dissertação como pesquisadora no

Programa de Pós-Graduação. Influenciaram na delimitação do objeto de pesquisa e pelo

período de coleta de dados e análise, chegando até a textualização do resultado. De forma não

diferente, estão relacionados com sua história de vida enquanto educadora. Durante sua

formação e atuação profissional, tem acompanhado um crescente movimento de reflexão e

implantação de reformas e mudanças11 educacionais.

9 Encontra-se nos livros de Popkewitz (1994) o conceito regulação o qual se pode entender da mesma forma que controle. 10 “Expressão cunhada por Michel Foucault, para quem ‘cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros e falsos; a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. (FOUCAULT apud SILVA, 2000, p.96). 11 Thomaz Popkewitz (1997) utiliza em suas pesquisas os dois conceitos como tendo sentidos distintos. Para ele, o “senso comum considera a reforma e as intervenções como progresso”. (POPKEWITZ, 1997, p.11). Contudo,

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Uma das mudanças educacionais que se acompanhou ocorreu no início da década de

1990 em diante, quando o conjunto de professores da rede municipal de educação de

Blumenau, Santa Catarina, pôde participar de uma intensa discussão acerca da pertinência das

reformas educacionais. A gestão municipal de 1993, aos cuidados do governo do Partido do

Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), promoveu um dos primeiros movimentos de

interesse em gestão democrática da política educacional no município, o qual se estendeu até

as eleições de 1997, que colocou o Partido dos Trabalhadores (PT) na gestão do município. A

partir daí, a Prefeitura Municipal de Blumenau organizou sua política educacional por

Ciclos12, tomando como principal objetivo a Reorientação Curricular, que ficou conhecida

como Escola Sem Fronteiras.

Durante os anos 8 anos em que gestão de 1997 este à frente da Prefeitura Municipal de

Blumenau, por intermédio da Secretaria Municipal de Educação, periodicamente foram

oferecidos aos seus professores espaços coletivos de reflexão nas escolas, além de oficinas,

grupos de pesquisa e, anualmente, seminários, congressos ou fóruns de debate. De acordo

com Andrade (2002, p.59), as temáticas que permearam os encontros de formação voltaram-

se para “recentes teorias, de diferentes áreas, processos de renovação pedagógica, o papel da

escola e sua organização, estrutura curricular e práticas pedagógicas”.

Essas temáticas mencionadas por Andrade (2002) permearam a política educacional

do município de Blumenau até o final de 2004, ano em que também saiu da gestão do

município o PT, e a proposta Escola Sem Fronteiras foi substituída pelo retorno ao regime

seriado.

A imersão da autora desta dissertação neste contexto, inicialmente como professora

das séries iniciais e, posteriormente, como coordenadora pedagógica do ensino fundamental

da Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, no período de 2002 a 2003, suscitou a

pesquisadora. O contato quotidiano com professores e suas expectativas, anseios e angústias,

levantava questões como: O que é mesmo currículo? O que o caracteriza? Como proporcionar

a reforma deve ser compreendida como “parte de um processo de regulação social” (POPKEWITZ, 1997, p.12), tendo em vista que “faz referência à mobilização dos públicos e às relações de poder na definição do espaço público” (POPKEWITZ, 1997, p.11). Já a mudança possui um caráter menos normativo. “O estudo da mudança social representa um esforço para entender como a tradição e as transformações interagem através de processos de produção e reprodução social. Refere-se ao confronto entre ruptura com o passado e com o que parece estável e ‘natural’ em nossa vida social. Além disso, para fins de discussão, o confronto entre as interrupções e a continuidade da mudança social implica uma atenção sistemática às relações de conhecimento e poder que estruturam nossas percepções e organizam nossas práticas sociais”. (POPKEWITZ, 1997, p.11). 12 De acordo com Andrade (2002), pode-se dizer que é uma proposta de organização do trabalho escolar, garantida na Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, que se opõe à lógica de uma organização de estrutura rígida. Em Blumenau, objetivou a reestruturação do trabalho escolar, em especial, a ruptura da centralidade nos conteúdos e tempos/espaços rígidos para a centralidade nas temporalidades humanas (ciclos da vida) e organização de tempos/espaços flexíveis.

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16

uma reforma curricular que possibilite a relação teórico-prática? Como organizar espaços de

formação coletiva que possibilitem o questionamento e a ruptura com uma cultura curricular

tão fortemente estabelecida? Como historicizar e desnaturalizar os currículos, a ação que

deles decorre, os conteúdos escolarizados e a organização dos tempos e dos espaços

escolares?

Todos esses anseios e expectativas foram os propulsores para a busca do Mestrado e a

construção desta pesquisa. Foi o processo de não saber ao certo quais influências, relações e

interesses se fazem presentes na construção dos conhecimentos e práticas que envolvem a

elaboração de um currículo e que “jogos”, estratégias sociais e culturais o determinam que

levou esta pesquisadora a pensar sobre questões nas quais, até então, não havia pensado e que

lhes eram, portanto, desconhecidas.

O ingresso nos estudos em currículo, em especial, as leituras do autor Thomas S.

Popkkewitz, fizeram com que se percebesse que a investigação das questões epistemológicas

que envolvem o processo de escolarização pode apontar alternativas para a compreensão de

como todo o aparato escolar, ou maquinaria escolar, de acordo com Varella e Alvares-Uria

(1992), é posto em movimento e se apresenta como algo “natural”, e não, como resultado de

escolhas. Almejando encontrar respostas para as questões levantadas, este trabalho de

pesquisa norteou-se pelo seguinte problema ou questão principal de pesquisa: Quais são os

principais significados do currículo para um grupo de professores de uma escola pública do

município de Blumenau, SC, a partir da Epistemologia Social?

Deste ponto de partida, esta pesquisa definiu como questões específicas: Quais

sistemas de conhecimento e práticas discursivas orientaram a constituição histórica da

educação do município de Blumenau? Quais sistemas de conhecimento e práticas discursivas

orientam as concepções curriculares dos documentos oficiais da educação do município de

Blumenau, SC? Quais sistemas de conhecimento e práticas discursivas orientam as

concepções e as práticas curriculares dos professores de uma escola pública do município de

Blumenau, SC?

A partir das questões levantadas, elencaram-se os objetivos geral e específicos para

esta pesquisa.

1.1 Objetivos

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17

1.1.1 Objetivo Geral

Compreender o significado do currículo para um grupo de professores de uma escola

pública do município de Blumenau, SC, na perspectiva da Epistemologia Social.

1.1.2 Objetivos Específicos

Compreender a constituição histórica da educação e do currículo do município de

Blumenau, SC, em seus aspectos sociais e políticos;

Identificar quais sistemas de raciocínio e conhecimento orientam as concepções

curriculares dos documentos oficiais da educação do município de Blumenau, SC;

Analisar quais sistemas de raciocínio e conhecimento orientam as concepções e práticas

curriculares de um grupo de professores de uma escola pública do município de

Blumenau, SC;

Investigar as relações existentes entre a constituição histórica do município, as políticas

curriculares oficiais e as práticas discursivas dos docentes da escola investigada, em

especial, quais fatores sociais e políticos as influenciam.

A investigação das relações existentes entre construção histórica da educação do

Município, concepções curriculares presentes nos documentos oficiais e principais

significados do currículo presentes nos discursos dos professores visa compreender como,

social e historicamente, os conhecimentos sobre a escolarização (sua epistemologia social) e

seus regimes de verdade produzem relações de poder e, conseqüentemente, a construção

curricular de um determinado tempo/lugar.

Se compreendidos como funcionam os sistemas de raciocínio e conhecimentos que

norteiam, desde a função social que se atribui à escola até as concepções que se têm sobre

educação, infância, currículo e planejamento, é possível problematizar, desnaturalizar e

questionar a forma como se chegam a construir os regimes de verdade, ou seja: Por que se

defendem certas formas de organizar o trabalho pedagógico e outras não? Por que se

selecionam alguns conteúdos e outros não? Por que se classificam as capacidades dos alunos,

das famílias e dos próprios professores?

Em um contexto no qual a educação está cada vez mais sendo envolvida pelas

influências e interesses que se convencionou chamar, depois da década de 1980, de

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globalização13, considera-se que a investigação dos sistemas de conhecimento e práticas

discursivas que norteiam os pensamentos e ações docentes seja uma possibilidade de

resistência frente aos mecanismos de regulação e poder cada vez mais sutis e um espaço

alternativo de análise da própria práxis pedagógica do(a) professor(a). Quiçá, uma

possibilidade para a construção de espaços alternativos de escolarização.

1.2 Procedimentos Metodológicos

Pesquisar as políticas curriculares, suas práticas, seus significados e, em especial, seus

sistemas de conhecimento e mecanismos de regulação exige um conjunto de ações que

permita compreender o fenômeno dentro de um determinado contexto de relações.

Nesta direção, optou-se por um estudo de caso de uma escola pública do município de

Blumenau, SC, com enfoque em seu grupo de professores (as) de pré a quarta série com o

intuito de compreender qual o significado do currículo para os (as) mesmos (as).

Esta pesquisa entende por estudo de caso o interesse em investigar uma determinada

realidade de forma completa “procurando revelar a multiplicidade de dimensões presentes

numa determinada situação”. (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p.19). Além disso, é uma pesquisa

que, segundo Goldenberg (1997),

[...] reúne o maior número de informações detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pesquisa, com o objetivo de apreender a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso completo. Através de um mergulho profundo e exaustivo em um objeto delimitado. (GOLDENBERG, 1997, p.34).

Bogdan e Biklen (1994) explicam que “estes estudos incidem sobre uma organização

específica, ao longo de determinado tempo, relatando o seu desenvolvimento”. A organização

específica mencionada pelos autores é, no caso desta pesquisa, a escola e seu grupo de

professores.

13 “Embora a tendência histórica do capitalismo tenha sido a de funcionar como um sistema mundial, é apenas nos anos 80 do século XX que se começa a utilizar o termo ‘globalização’ para se referir à aceleração e aprofundamento desse processo, sobretudo no contexto da emergência e desenvolvimento das políticas econômicas conhecidas como ‘neoliberais’. Mais especificamente, o termo ‘globalização’ refere-se, primariamente, aos processos econômicos pelos quais o capital tende a agir globalmente – na criação e desenvolvimento de mercados de bens, no recrutamento de força de trabalho e no fluxo de capitais financeiros. Nesse processo, as instituições políticas do estado-nação tendem a perder o controle sobre a regulação econômica em favor das instituições financeiras internacionais e do poder econômico das grandes corporações industriais e financeiras. [...] os críticos desse processo tendem a questionar sua inevitabilidade bem como ressaltar seus efeitos perversos, sobretudo daqueles ligados ao aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais tanto entre nações quanto entre classes e grupos sociais e [...] à uniformização e à homogeneização cultural, sobretudo àquelas efetuadas por meio da mídia [...] em favor da difusão de uma cultural global que reflete, sobretudo os gostos, os valores e as características culturais da cultura de massa dos países centrais do capitalismo”. (SILVA, 2000, p.63).

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A pesquisa de campo se deu de março a julho de 2005, período em que professores,

alunos e comunidade estava sob o impacto do fim do projeto Escola Sem Fronteiras,

anunciado pela nova Secretária de Educação em janeiro de 2005. Durante o período de

permanência na escola para coleta de dados, procurou-se reunir o maior número possível de

informações que permitisse compreender quando e como esse grupo de professores (as)

interage, como elabora suas práticas curriculares, quais são seus espaços de qualificação

profissional, a que tipos de materiais pedagógicos tem acesso, quais materiais pedagógicos e

quais referências teóricas utiliza, quais suas concepções curriculares, que documentos

curriculares do Município chegam à escola, etc.

Para compreender os aspectos mencionados, esta pesquisa se valeu de diferentes

instrumentos de coleta de dados: (1) documentos (livro ata de reuniões pedagógicas, Projeto

Político-Pedagógico, histórico da escola escolhida e propostas curriculares oficiais); (2)

observação do cotidiano da escola, dos (as) professores (as) e de sala de aula; e (3) entrevista

semi-estruturada14. Para registro da observação, utilizou-se diário de campo e, para registro

das entrevistas, gravação em fitas K7.

A escolha da escola e do grupo de professores (as), dentre as 50 do município de

Blumenau, se deu por diversos fatores. Em primeiro lugar, devido ao fato de esse grupo de

professores (as) ter aderido, desde 1998, ao projeto Escola sem Fronteiras. Na época, a

implantação do projeto ocorreu de forma gradativa e se deu por opção das instituições via

votação interna. A escola selecionada representou uma das “28 escolas” (BLUMENAU, 2004,

p.9) que optou, naquele primeiro ano, pela implantação do primeiro ciclo e por um projeto de

reorientação curricular. Além disso, o grupo de professores (as) que participou da pesquisa foi

coeso em sua opção, e boa parte dele permaneceu na escola até 2005. A maioria dos (as)

professores (as) que participou da pesquisa atua nessa mesma escola de 05 a 20 anos.

Durante os anos de 1998 a 2004, o grupo viveu muitos momentos de discussão

curricular coletiva e de reestruturação da escola. Fora isso, também foi decisivo nesse

processo o fato de a pesquisadora já conhecer a instituição e os (as) professores (as) e ter certa

liberdade para inserção no seu cotidiano e facilidade de acesso aos documentos.

O grupo de professores (as) que trabalhava de pré a quarta série totalizava até a

realização da coleta de dados. Desses 17 professores (as), 14 concordaram em participar da

pesquisa, sendo que a eles aplicou-se uma entrevista semi-estruturada, e 03 preferiram não

participar. Além da aplicação da entrevista, fez-se observação do cotidiano de sala de aula de

14 A entrevista utilizada encontra-se no Apêndice A. Visando salvaguardar a integridade dos sujeitos e da escola que participou desta pesquisa, omite-se o nome dos mesmos.

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02 professores (as) que a autorizaram. Quanto à qualificação profissional dos (as) professores

(as) que participaram da pesquisa, 01 cursou até o Magistério, 05 estavam em fase de

conclusão do Ensino Superior em Pedagogia, 04 cursaram até o Ensino Superior, 02 cursavam

a Especialização e 04 já a tinham concluído.

Para melhor compreensão de como se desenvolveu este trabalho, é importante

esclarecer que, para a sua realização, dividiu-se o mesmo em cinco etapas. Num primeiro

momento, fez-se contato com a escola e com os (as) professores (as) para apresentação do

projeto de pesquisa e convite à participação; num segundo momento, ocorreu a realização das

entrevistas individuais; no terceiro, procedeu-se à observação do cotidiano de sala de aula de

duas turmas; no quarto, realizou-se a seleção dos documentos utilizados para a compreensão

da proposta curricular do Município, da construção curricular da escola, suas concepções e

dos significados de currículo dos(as) professores (as)15; e, finalizando, fez-se a análise dos

dados e a construção do texto aqui apresentado.

Uma vez coletados os dados, fez-se a análise dos mesmos de maneira qualitativa,

organizada em dois momentos distintos, mas complementares. Inicialmente, fez-se a

transcrição das entrevistas e, de posse dessas, organizaram-se os dados da seguinte forma:

realizou-se o agrupamento das respostas dos entrevistados conforme perguntas principais;

após o agrupamento, fez-se, por várias vezes, a leitura do que o conjunto de professores (as)

respondeu sobre cada questão da entrevista. Durante essas leituras, se buscou compreender os

principais significados/idéias do conjunto de professores (as) (respostas mais freqüentes) e se

havia algum(a) professor(a) que sinalizava uma forma diferenciada de pensamento sobre a

mesma questão. Por final, se retirou o conjunto dos significados/idéias que se fazia mais

freqüente.

Com o cruzamento dessas informações, objetivou-se compreender quais os

significados de currículo que mais se evidenciaram para, assim, estabelecer relações com os

documentos curriculares oficiais do Município e a proposta curricular da escola. Buscou-se,

com isso, compreender o “fio” que conduz os discursos.

À medida que se investigaram os dados, se identificaram temas, se construíram

relações e se delimitaram novos espaços de sentido. Durante esse processo, foi possível

construir argumentos explicativos e novas indagações, algumas das quais se explicitam

15 É importante ressaltar que a seleção dos documentos foi feita durante todos os meses em que se permaneceu na escola. Contudo, foi neste momento que se dedicou um tempo maior e se intensificou a seleção. Além disso, para compreender a construção da proposta educacional e curricular do município, a pesquisadora contou com documentos da Biblioteca Municipal Dr. Fritz Muller.

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durante o relato; outras se deixaram para futuras inquirições por não pertencerem ao objetivo

desta pesquisa.

Apresentam-se as análises e resultados deste trabalho em três momentos, além do

primeiro capítulo (Introdução), no qual se contextualizou o problema de pesquisa e apresentou

os motivos para sua realização. No segundo capítulo, apresenta-se o tema desta pesquisa em

suas especificidades. Nesta trajetória, inicialmente, apresenta-se o currículo, sua construção

histórica, perspectivas teóricas e principais representantes. Na seqüência, o que se entende por

Epistemologia Social e sua contribuição como perspectiva de análise do currículo.

O terceiro capítulo trata da trajetória da construção curricular do município de

Blumenau e, em especial, do projeto Escola Sem Fronteiras. Na continuidade, apresenta a

construção político-pedagógica da escola investigada. Nesse capítulo, se começa a delinear as

primeiras relações entre as propostas curriculares oficiais, os documentos da escola e os

discursos docentes.

O quarto capítulo apresenta os dados da pesquisa, ou seja, o “fio” que conduz o

discurso dos(as) professores (as), seus significados e as relações com a política educacional

do Município e da escola e com o contexto social, histórico e político. Por fim, pontuam-se as

considerações que retratam o olhar da pesquisadora sobre a construção curricular do

Município e sobre os sentidos presentes nos discursos docentes.

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2 O CURRÍCULO: APONTAMENTOS SOBRE SUA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E PERSPECTIVAS TEÓRICAS

Esforços para organizar o conhecimento escolar, como o currículo, constituem formas de regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de raciocínio. Aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação – a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e ‘ver’ o mundo e o ‘eu’. (POPKEWITZ, 1994, p. 174).

Este capítulo apresenta a construção histórica do currículo, suas principais

perspectivas teóricas, ou seja, sua episteme16, e as modificações que esta tem sofrido ao longo

do tempo. Para tal, contextualiza o currículo trazendo os estudos que o envolvem a partir do

século XX e, em paralelo, o contexto brasileiro a ele relacionado.

Goodson (1995, p.27) relaciona o currículo com a invenção de uma tradição, termo

que está relacionado com o que Hobsbawn (apud GOODSON, 1995, p.27) chama de

“tradição inventada”. Para Hobsbawn (apud GOODSON, 1995), a tradição inventada pode ser

compreendida como um conjunto de práticas e rituais que, circulando implícita ou

explicitamente nos grupos sociais, são formalmente instituídos ou emergem e circulam em um

período de tempo breve e datável. São de natureza simbólica, fazendo circular valores e

normas para o comportamento.

O interesse que se tem pela história do currículo não consiste em reconhecer como se

estruturava e selecionava o conhecimento escolar nem conhecer os tempos/espaços escolares

do passado, mas compreender como essa forma de organização curricular de um determinado

tempo/lugar social foi sendo construída e alcançou o presente influenciando as práticas e

concepções de ensino.

O processo de fabricação do currículo não é um processo lógico, mas um processo social, no qual convivem lado a lado com fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais, determinantes sociais menos ‘nobres’ e menos ‘formais’ tais como interesses, rituais, conflitos simbólicos e culturais, necessidades de legitimação e de

16 “O termo grego episteme, que significa ciência, por oposição a doxa (opinião) e a techné (arte, habilidade), foi reintroduzido na linguagem filosófica por Michel Foucault com um novo sentido, para designar o ‘espaço’ historicamente situado onde se reparte o conjunto dos enunciados que se referem os territórios empíricos constituindo o objeto de um conhecimento. Fazer a arqueologia dessas episteme é descobrir as regras de organização mantidas por tais enunciados”. (JAPIASSÚ; MARCONDES,1996, p.84) Para complementar, por episteme, Foucault designa, um conjunto de relações que liga tipos de discursos que corresponde a uma determinada época histórica: “ são todos fenômenos de relações entre as ciências ou entre os diferentes discursos científicos que constituem aquilo que se denomina de episteme de uma época. [...] a episteme não é uma espécie de grande teoria subjacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto [...]. Mais do que um forma geral da consciência, Foucault descreve, portanto, um feixe de relações e de deslocamentos; não um sistema, mas a proliferação e a articulação de múltiplos sistemas que remetem uns aos outros”. (REVEL, 2005, p.41) De acordo com Veiga-Neto (2003), “Foucault usa a palavra episteme para designar o conjunto básico de regras que governam a produção de discursos numa determinada época; entre outras palavras, [...] um conjunto de condições, de princípios, de enunciados e regras que regem sua distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que algo seja pensado numa determinada época”. (VEIGA-NETO, 2003, p.115).

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controle, propósitos de dominação dirigidos por fatores sociais ligados à classe, à raça, ao gênero. A fabricação do currículo não é nunca apenas o resultado de propósitos ‘puros’ de conhecimento [...]. O currículo não é constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos. (SILVA,1996, p.79).

Neste sentido, este capítulo visa investigar como certas verdades sobre o currículo e a

escolarização se constituíram e como seus sistemas de conhecimento, ou seja, suas teorias,

saberes e discursos compõem sua apresentação para os indivíduos que fazem parte desse

processo. Objetiva, mais especificamente, oferecer subsídios que possibilitem compreender o

currículo em suas relações e as implicações dele para a escolarização.

É central na [...] tarefa de investigação do currículo [...] uma perspectiva que tenha um foco histórico. A contingência e a historicidade dos presentes arranjos curriculares só serão postas em relevo por uma análise que flagre os momentos históricos em que esses arranjos foram concebidos e tornaram-se naturais. (MOREIRA; SILVA, 2002, p.31).

Para apresentar a história do currículo ocidental que se apresenta neste capítulo,

buscou-se suporte em autores como Alice Casimiro Lopes, Alfredo Veiga-Neto, Antônio

Flávio Moreira, David Hamilton, Elizabeth Macedo, Ivor Goodson, Solange Aparecida Zotti,

Tomaz Tadeu da Silva e Thomaz S. Popkewitz. A escolha dos autores se deu pelo fato de

permitirem uma leitura crítica da história dos currículos e de suas perspectivas teóricas.

Tem-se a clareza de que tanto os autores utilizados como a construção da síntese que

se apresenta na continuidade significam uma possível leitura da história do currículo. Por isso,

não se tem a pretensão de um estudo conclusivo nem de uma metanarrativa17 do currículo.

Pretende-se compreender o campo, contribuir com o debate e incitar novas discussões sobre o

tema.

Na continuidade, o capítulo apresenta o currículo na perspectiva da Epistemologia

Social e sua contribuição para a análise dos processos de escolarização. A Epistemologia

Social cunhada por Thomas Popkewitz é uma tentativa de inserção crítica nos discursos e

significados historicamente construídos e que constituem as práticas curriculares.

O interesse do autor está em compreender como se constituem socialmente, na

“relação do conhecimento, das instituições e do poder” (POPKEWITZ,1997, p.39), as normas

e regras para o pensar e o agir na escolarização. Popkewitz (2001) propõe, mais

especificamente, investigar as condições históricas dentro das quais essas normas e regras,

tidas como práticas sociais, se constituem e se configuram como naturais e como resultado 17 Entende-se a metanarrativa, principalmente a partir das teorizações pós-modernas, como uma crítica aos sistemas teóricos ou filosóficos que tem pretensões de fornecer descrições ou explicações abrangentes e

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das práticas discursivas e relações de poder/saber18 presentes nos jogos de forças e nos

interesses sociais, históricos, políticos e culturais.

2.1 O Currículo: Construções Teóricas e Desdobramentos Históricos

Para Silva (1999, p. 11), até bem pouco tempo, falar em teoria pressupunha, em geral,

a noção de que “a teoria descobre o real. Que a teoria é uma representação, uma imagem, um

reflexo, [...] de uma realidade que a precede”. De acordo com este autor, o currículo já estaria

em algum lugar à espera da teoria que somente o descreve e explicita.

Em oposição a essa forma de compreensão, as recentes teorias do currículo, de acordo

com as teorias e propostas de análise pós-estruturalistas, têm entendido que é impossível

separar a descrição simbólica, lingüística da realidade - isto é, a teoria - de seus “efeitos de

realidade“. (SILVA, 1999, p.11) Para dizer de outra forma, as teorias sobre o currículo, ao

descrevê-lo e explicá-lo, o estão constantemente produzindo, criando socialmente.

Nesta perspectiva, que vê as ‘teorias’ do currículo a partir da noção de discurso, as definições de currículo não são utilizadas para capturar, finalmente, o verdadeiro significado de currículo, para decidir qual delas mais se aproxima daquilo que o currículo essencialmente é, mas, em vez disso, para mostrar que aquilo que o currículo é depende precisamente da forma como ele é definido pelos diferentes autores e teorias. Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é. (SILVA, 1999, p.14).

Segundo Silva, (1996, p.77), “o interesse pelas teorias e história do currículo remonta

à primeira fase da Chamada Nova Sociologia da Educação” dos anos 60 do século passado.

Na época, o propósito era tentar captar o processo evolutivo do currículo e também suas

rupturas, descontinuidades e incontingências, o que permaneceu em aberto. Contudo, a partir

de 1990, essa perspectiva de análise e essa compreensão do currículo e de seus processos

teórico-práticos têm ganhado vitalidade.

Investigar o currículo e seus desdobramentos tentando vislumbrar quais fatores

permanecem e quais se modificam ao longo do tempo constitui importante alternativa para

compreender as seleções que se fazem e que relações tais seleções têm com o contexto maior.

totalizantes do mundo ou da vida social. Há autores que utilizam as expressões “grande narrativa” ou “narrativa mestra” ao invés de meta narrativa. 18 A expressão saber/poder pode ser encontrada em Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir. O autor propõe a renuncia de toda uma tradição que “imagina que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas”. Para Foucault “temos que admitir que [...] saber e poder estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”. (FOUCAULT, 2004, p.27).

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Sob a ótica de Popkewitz (1994, p. 186), “a imposição (do que entra ou não no

currículo) não é feita através da força bruta, mas através da inscrição de sistemas simbólicos

de acordo com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir”.

Dentre essas inscrições mencionadas por Popkewitz, as perspectiva de análise

histórica ou de uma história radical e a epistemologia social encontrada em Veiga-Neto (1996,

2001a) e Popkewitz (1994) têm-se apresentado como uma dessas tentativas, dentre outras, de

historicizar o currículo e apresentá-lo como um artefato suscetível a mudanças e

transformações.

De acordo com Popkewitz (1994), o currículo da forma como se conhece é uma

invenção da sociedade ocidental. Para ele, os estudos comparados entre diferentes países e

culturas permitem mostrar que há formas diferentes de organização das aprendizagens e dos

currículos em outras sociedades.

No caso do ocidente, “o currículo [...] pode ser visto como uma invenção da

modernidade, a qual envolve formas de conhecimento cujas funções consistem em regular e

disciplinar o indivíduo”. (POPKEWITZ, 1994, p.186).

Por volta dos séculos XVIII e XIX, houve um distanciamento das entidades religiosas

do gerenciamento do ensino, e o Estado passou a assumir essa tarefa. Petitat (1994) apresenta

os sentimentos da época, utilizando as palavras do francês La Chalotais que, justificando essa

medida, apresenta:

O ensino das leis divinas é assunto da Igreja, mas o ensino da moral é atributo do estado. [...] Como se pode ter pensado que homens que não são vinculados ao estado, que estão acostumados a colocar um religioso acima do chefe do estado (fala dos Jesuítas que orientaram o ensino na Europa por todo o século XVI, XVII e uma parte do XVIII) [...] seriam capazes de educar e de instruir a juventude de um reino? [...] Assim, o ensino de toda a nação, esta porção da legislação que é a base e o fundamento dos estados, permanece sob a direção imediata de um regime cujo centro se encontra para além dos Alpes, necessariamente inimigo das nossas leis. Que inconseqüência e que escândalo. (PETITAT, 1994, p. 141).

O exemplo trazido por Petitat nos permite compreender que a estatização da escola foi

indissociável do movimento secular de emergência dos estados–nação que desabrochou nos

séculos XVIII e XIX. Para essa emergência, Rousseau (apud PETITAT, 1994, p.142) também

contribuiu quando explicitou que “o estado já não pode delegar a outros o cuidado de formar

cidadãos”. Nesse ponto, Rousseau e outros pensadores da época estavam tomados de um

sentido quase nacionalista. Para Rousseau (apud PETITAT, 1994), a educação é o meio para

dar às almas sua forma nacional e dirigir suas opiniões e gostos em direção a um sentimento

patriota, por paixão e necessidade.

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Nesse momento histórico dos séculos XVIII e XIX, a nação e o cidadão se forjavam

na escola. “O estado firma-se definitivamente no ensino por ocasião da revolução industrial,

da supressão dos ofícios e da emancipação do capital industrial” (PETITAT, 1994, p.142).

Entretanto, nesse cenário, se configurou uma contradição: os partidários da teoria do laisser-

faire, que propunham a menor participação do Estado na gerência da economia, apoiavam sua

total intervenção no ensino.

Conforme Petitat (1994), a garantia do direito privado do capital, seja com relação à

liberdade de trabalho, de troca, de cultura e de utilização da terra, exigia do Estado a criação

de leis que velassem pela preservação dos indivíduos contra os atentados à propriedade e às

liberdades a ela relacionadas. Nesse ponto, o papel da instrução pública exigiu novos

contornos, ficando estreitamente vinculada ao papel do Estado.

A este é confiada a missão de garantir a segurança, essencialmente necessária à propriedade e à liberdade. O estado dispõe da força para manter a ordem natural, cujos princípios não se impõem por si próprios à consciência dos indivíduos. Mas esta força sozinha é impotente; e a educação representará então a parte essencial da ação persuasiva e preventiva do Estado. (PETITAT, 1994, p.143, grifo nosso).

Segundo essa lógica econômica, a instrução pública passou a ser o instrumento e

mecanismo do Estado para a garantia do cuidado e a imposição da liberdade privada. O

ensino era considerado a melhor forma de legitimação e convencimento dos homens de que

essa ordem social era a mais adequada para torná-los todos iguais em termos de liberdade,

igualdade e justiça. A compreensão dessa “arquitetura” nos permite perceber como os

interesses econômicos, sociais e políticos interferem na composição da escolarização.

Os estudos de Popkewitz sobre os movimentos de reforma e mudança curricular tem

contribuído sobremaneira para a compreensão da escolarização como uma invenção que

atende a interesses sociais, políticos e históricos. Este autor, quando arrola o currículo como

uma forma de mecanismo e de instrumento de poder no qual se produzem regras e padrões de

verdade para guiar e governar os sujeitos, atenta para a maneira como, por meio da forma de

organização dos conhecimentos e dos tempos/espaços escolares, se constroem sistemas de

raciocínio e conhecimentos especializados que permitam administrar as formas de pensar e de

agir dos sujeitos, isto é, seu Self (eu)19.

Para Popkewitz (2001), nesse “jogo”, aqueles que têm força e ocupam espaços

considerados legítimos em um determinado momento histórico e social, isto é, os sujeitos que

dirigem as políticas públicas, as instituições privadas, o capital econômico, a religião, a

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universidade, as ciências sociais, etc., dizem o que vale, ou seja, ditam as regras e as normas

do que contam como verdade para o pensar e o agir dos sujeitos envolvidos na escolarização.

Por isso, o currículo é um instrumento de regulação social, tendo em vista que é um

artefato de seu tempo histórico e que suas formas de governo são simbólicas agindo na

constituição dos sujeitos e de sua individualidade. Esse governo se nutre da imposição de

normas para os horários, para a apresentação dos conteúdos, para as regras de convivência e

uso do tempo/espaço, tudo relacionado com interesses sociais mais amplos, sejam de ordem

política, científica, religiosa, econômica ou cultural.

O domínio do self (eu) também é uma função da pedagogia. O desenvolvimento da escola no século XX conectou o escopo e as aspirações dos poderes públicos com a capacidade pessoal e subjetiva dos indivíduos. A educação vinculou os novos objetivos do bem-estar social do estado com uma forma particular de especialização científica que organizou as subjetividades – os princípios gerados para organizar o pensamento, o sentimento, as esperanças e a capacidade de ‘conhecimento’ do cidadão produtivo. O ensino e a aprendizagem (os dois estão ligados) produzem uma individualidade autogovernada. (POPKEWITZ, 2001, p.27).

Na direção apontada por Popkewitz, não é mais possível vislumbrar o currículo como

instrumento neutro de transmissão de conhecimentos e valores em torno do qual se pode

transitar livremente sem as influências de seu tempo histórico e das relações de poder que

circulam no contexto social mais amplo.

Uma história do currículo que pretenda ser uma história social do currículo não pode esquecer que o currículo está construído para ter efeitos (e tem efeitos) sobre as pessoas. [...] diferentes currículos produzem diferentes pessoas, mas naturalmente essas diferenças não são meras diferenças individuais, mas diferenças sociais, ligadas à classe, à raça, ao gênero. Dessa forma, uma história do currículo não deve estar focalizada apenas no currículo em si, mas também no currículo enquanto fator de produção de sujeitos dotados de classe, raça, gênero. Nessa perspectiva, o currículo deve ser visto não apenas como expressão ou representação ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. O currículo não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou a exclusão na sociedade. (SILVA, 1996, p.81).

Entende-se que seja necessária uma incursão pelas teorias e história do currículo, pelos

seus representantes e perspectivas, pelas suas continuidades e ruptura, para compreender

como esta Epistemologia Social do currículo foi construída e modificada ao longo dos anos. É

um exercício de desnaturalização dos currículos, de problematização de seus discursos, de

suas verdades, de suas seleções e de suas metanarrativas que, implícita ou explicitamente,

19O conceito Self, utilizado com freqüência pelo autor Popkewitz, contém a idéia de administração social do “eu”. Para o autor, o governo do Self, ou o governo do eu, do indivíduo, de sua forma de pensar e agir socialmente constitui-se estratégia de poder da religião, do estado, das ciências sociais.

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proclamam o currículo ideal, a boa ou a má escola, o bom e o mau professor, o bom e o mau

aluno.

As preocupações com a organização das atividades educacionais e dos tempos/

espaços escolares e com o ensinar são muito antigas. Segundo Hamilton (1992), há uma

escassez de discussões sobre a origem do termo curriculum. Em seus estudos, o autor toma

como ponto de partida os registros da Universidade de Leiden, de 1582, e o Oxford English

Dictionary, de 1633, da Universidade de Glasgow, num atestado concebido a um mestre

quando da sua graduação.

Para Hamilton (1992), a questão histórica que se coloca é: por que Leiden e Glasgow?

“A conexão mais óbvia entre essas duas instituições é que, durante o século XVI, ambas

foram fortemente influenciadas por idéias calvinistas” (HAMILTON, 1992, p.42). Leiden,

fundada em 1575, estava destinada a treinar pedagogos protestantes, e a reconstituição de

Glasgow, no mesmo período, atendeu a objetivos similares.

Mas porque a teoria educacional calvinista adotou uma palavra latina que significa ‘corrida’ ou ‘pista de corrida’? Mais especificamente, que novas aspirações educacionais eram atendidas pela adoção do termo ‘currículum’? A resposta a última questão é sugerida pelos usos originais de curriculum. [...] ‘Curriculum’ referia-se ao curso inteiro de vários anos seguido por cada estudante, não a qualquer unidade pedagógica mais curta. (HAMILTON, 1992, p.42)

Relacionada ao curso de vários anos seguido por cada estudante, não a qualquer

unidade pedagógica mais curta, o currículo, neste sentido, deve ser tratado como um conjunto

de estudos, um percurso atingido por um estudante, não como diferentes elementos de um

curso educacional. Assim, falar de curriculum, no século XVI, representava falar de uma

entidade educacional em sua globalidade estrutural e completude seqüencial. Um curriculum

deveria não apenas ser seguido; deveria, também, ser completado. Assim, o autor sugere que a

emergência de curriculum trouxe um sentido maior de controle tanto ao ensino quanto à

aprendizagem.

Contudo, o sentido que hoje se atribui ao currículo é diverso do o que se tinha em

Leiden e Glasgow. Atualmente, o conceito de currículo está relacionado com um campo

especializado de estudos que surgiu no início do século XX. Dos anos de 1900 aos dias atuais,

o próprio campo, seus pressupostos, teorias e problemáticas sofreram modificações em função

das modificações que também aconteceram no contexto social, político, econômico e cultural.

Na continuidade, se apresentam, de acordo com Silva (1999), as modificações que o

campo sofreu e, conseqüentemente, a forma como se passou a ver, a pensar e a organizar a

educação sob as novas perspectivas.

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2.1.1 As Teorias Tradicionais e o Contexto Brasileiro

O currículo e a sua constituição como campo especializado de estudos, no qual se

investe intelectual e financeiramente, é recente. Conforme Silva (1999), a questão curricular

tornou-se espaço de debate somente a partir do início do século XX. Esses estudos surgiram

sob a influência americana e tiveram como precursores Bobbitt, Tyler e Dewey. Ambos

sinalizaram para questões relacionadas à organização, técnica, objetivos, finalidades e

disciplinas. Esse conjunto de teorias ficou conhecido como “teorias tradicionais” e estavam

preocupadas, centralmente, com a atividade técnica de como fazer o currículo.

As teorias tradicionais surgiram como reação ao currículo clássico humanista que se

caracterizou como movimento, na Idade Média e Renascimento, de resgate dos ideais de

educação da Antigüidade Clássica. Todo esforço, do ponto de vista intelectual, centrava-se no

desenvolvimento de atividades literárias e acadêmicas que correspondiam aos ideais do

homem culto. Nesse período, a atenção estava na formação dos homens letrados e eruditos.

Como se sabe, esse currículo era herdeiro do currículo das chamadas ‘artes liberais’ que, vindo da Antiguidade Clássica, se estabelecera na educação universitária da Idade Média e do Renascimento, na forma dos chamados Trivium (gramática, retórica, dialética) e quadrivium (astronomia, geometria, música, artimética). [...] Basicamente, nesse modelo, o objetivo era introduzir os estudantes ao repertório das grandes obras literárias e artísticas das heranças clássicas grega e latina, incluindo o domínio das respectivas línguas. Supostamente, essas obras encarnavam as melhores realizações e os mais altos ideais do espírito humano. (SILVA, 1999, p.26, grifo do autor).

Silva (1999, p.21) explica que o surgimento do termo currículo “no sentido que hoje

lhe damos, só passou a ser utilizado nos países europeus, como França, Alemanha, Espanha,

Portugal, sob a influência da literatura educacional americana” para designar um campo

especializado de estudos.

Naquele momento, segundo Silva (1999), contribuíram para o fortalecimento do

currículo como campo profissional e especializado de estudos: o crescente movimento de

industrialização e urbanização, a formação de um corpo profissional de especialistas no

assunto, a configuração da educação como objeto de estudo científico, a criação de disciplinas

e departamentos universitários sobre o assunto, a institucionalização de departamentos

especializados sobre assuntos da educação nas secretarias do Estado, a forte preocupação com

a manutenção de uma identidade nacional em vista das crescentes ondas de imigração e a

massificação da educação.

Foi nesse cenário que surgiram as primeiras teorias do currículo. Esse conjunto de

estudos encontrou sua máxima expressão no livro de Bobbitt, The Curriculum, publicado em

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1918. O modelo de escola proposto por Bobbitt, no início do século XX, encontrou inspiração

na indústria e na economia. Imbuído da teoria da administração científica de Frederick Taylor,

tinha como palavra-chave eficiência. Para Bobbitt, a escolarização pode encontrar melhores

resultados se seu currículo conseguir especificar precisamente objetivos, procedimentos e

métodos que permitam a obtenção de resultados para mensurar, com precisão, se suas

finalidades foram realmente alcançadas.

Em consonância com Braverman (1980), o princípio da gerência científica de Taylor

era algo novo no início do século XX e marcou uma reversão na forma de compreender a

produção e execução do trabalho na indústria. Diferentemente do que havia até então, ao que

ele chamava de uma gerência comum (na qual o patrão era tido como um animador, e o

operário, aquele que demarcava, conforme sua capacidade, o controle e a fixação do processo

de trabalho), a gerência científica de Taylor propôs que o patrão, a fim de atingir seus

objetivos e maior produtividade em menor tempo, deve demarcar e controlar a fixação do

processo de trabalho. Assim, é o patrão quem deve dizer qual o modo e o ritmo ideal de

trabalho com base no melhor ritmo de alguns dos melhores trabalhadores.

Para Braverman (1980, p.98, grifo nosso), “o mérito dessa gerência moderna era o

controle do trabalho através do controle das decisões que são tomadas no curso do trabalho”.

Foi nesse sentido que Bobbitt se utilizou da administração científica de Taylor para propor a

forma de administração da educação. Sua inclinação era, claramente, para o controle dos

processos educacionais por meio do modelo que se colocava na economia e na

industrialização.

A educação, neste contexto, deveria ser instrumento auxiliar na formação dos

profissionais para a vida adulta. A escola deveria funcionar como qualquer empresa. A

transformação do sistema educacional para atender aos interesses da economia dependeria do

controle e do planejamento de objetivos e metodologias adequadas, por parte do corpo de

especialistas da educação, a fim de garantir o desenvolvimento das habilidades necessárias à

formação de profissionais eficientes para o mercado de trabalho. “Esta teoria se dá num

momento da história da educação em que diferentes forças econômicas, políticas e culturais

procuram moldar os objetivos e as formas da educação de massa de acordo com suas

diferentes e particulares visões”. (SILVA, 1999, p.22)

Concorrendo com essa visão de educação, havia vertentes consideradas mais

progressistas. Uma delas era a liderada por John Dewey, que também escreveu um livro que

tinha no título a palavra currículo. O livro, intitulado The Child and The Curriculum,

explicitava que a preocupação do autor se dava mais com a construção da democracia que

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com o funcionamento da economia. Para ele, o planejamento curricular deveria levar em

consideração os interesses e as experiências das crianças e jovens, e aos professores caberia o

engajamento com a formação de uma vida social mais apropriada.

Para Dewey, a educação não deveria ocupar-se tanto com a preparação para a vida

futura, mas com a constituição de um local que permitisse a vivência e a experimentação

direta com princípios democráticos. Moreira (1995, p.54) explica que Dewey empenhava-se

em transformar a escola “em uma forma de vida social, uma comunidade em miniatura”. O

currículo progressista considerava que professores e alunos, por meio do diálogo, devessem

determinar o que estudar para atingir crescimento individual e progresso social.

Contudo, para Moreira (1995), a proposta de Dewey também foi uma tentativa de

responder às necessidades socioeconômicas provocadas pelo processo de urbanização e

industrialização nos Estados Unidos. Para Dewey, que acompanhava todo um processo de

desenvolvimento industrial e econômico característico do seu tempo, início do século XX, a

escola deveria transformar-se e organizar-se cientificamente de modo a encontrar soluções

para os problemas da sociedade mais ampla.

O desenvolvimento do espírito científico, para Dewey e outros autores da época,

poderia contribuir para a resolução inteligente dos problemas causados pela economia e para a

criação de uma sociedade democrática com justiça social. Tal tarefa, de democratização, só

poderia ser realizada por especialistas. É nesse ponto que, para Moreira (1995), a proposta de

Dewey apresenta uma mistura de interesses. Ao mesmo tempo em que aponta para uma

educação dialógica e de compreensão, também vislumbra interesse em controle e

normalização quando propõe, para a educação, a “construção de um ambiente instrucional

científico, simplificado, ordenado, equilibrado e purificado dos males sociais”. (MOREIRA,

1995, p.56)

Moreira (1995) aponta, ainda, que as idéias de Dewey tiveram grande influência para

o desenvolvimento dos ideais escolanovistas e para a consolidação da Escola Nova,

dominantes no período de 1945 a 1960 no Brasil. Para Dewey e seus seguidores, a educação

deveria constituir-se fonte de progresso e reforma social. Nessa direção, chamou a atenção

para a importância do cultivo comum de interesses, valores, condutas e conhecimento

sistematizado, ao mesmo tempo em que propuseram diversidade, flexibilidade e inovações.

As transformações sociais, econômicas, científicas e culturais por quais passou o

mundo no início do século XX chegaram ao Brasil por volta de 1920. Havia um nítido

declínio da sociedade agrária, ou seja, das oligarquias cafeeiras, entrando em cena a sociedade

urbano-industrial. Nos anos da década de 1920, o Brasil já contava com um considerável

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parque industrial e emergiam como forças políticas, nesse contexto, a burguesia industrial, o

proletariado e a classe média. Essa nova configuração econômica influenciou

significativamente diversos setores da sociedade, dentre eles, a educação. Esse período, a

década de 1920, foi decisivo para a entrada dos ideais escolanovistas no Brasil.

Diferente do que acontecia até o início do século XX, quando era comum a elite

cafeeira pagar preceptores para a instrução elementar de seus filhos, não havendo, por isso, o

interesse na organização de um sistema nacional de ensino, a partir de 1920, a educação

passou a ser foco de interesse, sendo que objetivava a criação de escolas de educação superior

e de um ensino secundário de caráter preparatório para o vestibular.

Já as décadas de 1920 e 1930 guardaram um grande interesse pela educação. Nesse

período, iniciaram-se as discussões sobre a importância da democratização da cultura e

ampliação dos quadros escolares. A expansão das camadas médias resultou o aumento da

demanda por educação. Naquele momento, para a burguesia, a educação representava um

meio de ascensão social, ao mesmo tempo em que a expansão industrial exigia a preparação

de mão-de-obra qualificada.

A educação, perante o novo modelo econômico, passa a ser vista de outra forma; fica

explícita a clara relação entre desenvolvimento econômico (agora industrial) e modelo

educacional. No contexto da industrialização/urbanização, a educação escolar vai fazendo-se

necessária a um número maior de pessoas, dada a complexificação do campo econômico,

político e cultural. Além disso, numa sociedade em que é mantida a contradição fundamental

entre os que detêm e os que não detêm o poder econômico, perpetua-se também o

direcionamento da educação de acordo com os interesses da minoria privilegiada. (ZOTTI,

2004, p.88).

Esse cenário intensificou o que se pode chamar de uma pressão à política educacional

do país. De um lado, estava a elite interessada na garantia da organização do ensino superior e

de outro, os educadores conhecidos como pioneiros, reunidos num movimento coletivo de

entusiasmo pela educação ou otimismo pedagógico, com base nas formulações pedagógicas

escolanovistas20, defendendo a necessidade de pensar o ensino popular. Os pioneiros

propunham a instituição de um sistema nacional para educação, articulando desde o ensino

primário ao superior. Nessa época, a educação era vista como grande responsável pelo

progresso do país.

20 Movimento que ficou conhecido no Brasil como proposta de educação popular e democrática inspirada em autores pragmatistas americanos, em especial Dewey e Kilpatrick. Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo são considerados os principais teóricos e educadores desse movimento no Brasil.

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Moreira (1995, p.91) explicita que “as reformas elaboradas pelos pioneiros

representaram um importante rompimento com a escola que se tinha até então”. Segundo este

autor, na década de 1920, os pioneiros organizaram reforma em diferentes estados, com

destaque para a de São Paulo, sob a coordenação de Antônio de Sampaio Dória; na Bahia,

com Anísio Teixeira; em Minas Gerais, com Francisco Campos e Mário Casassanta; e no

Distrito Federal, com Fernando de Azevedo.

Contudo,

as reformas elaboradas pelos pioneiros [...]. Apesar da expressa preocupação com reconstrução social, a maior contribuição das reformas acabou por limitar-se a novos métodos e técnicas. Essa ambigüidade pode ser interpretada como refletindo, em certo grau, as necessidades da ordem industrial emergente, as idéias liberais dominantes e a influência do processo de modernização das escolas americanas e européias. (MOREIRA, 1995, p.91).

É por todo esse movimento que, para Moreira (1995), o campo de estudos em

currículo, no Brasil, pode estar relacionado com os anos de 1920. Para ele, embora as

propostas não tenham chegado a propor procedimentos detalhados de planejamento curricular,

houve, nessa época, uma ênfase na elaboração de metodologias que representaram as

primeiras diretrizes para a prática curricular no Brasil.

A concepção e os princípios de elaboração do currículo adotados no Brasil pelos

pioneiros podem ser encontrados em Anísio Teixeira, no livro Pequena Introdução à

Filosofia da Educação – a escola progressiva ou a transformação da escola, publicado pela

primeira vez em 1934.

No Brasil, as idéias escolanovistas estavam baseadas em “um interesse em

compreensão”. (MOREIRA, 1995, p.92). Os pioneiros defendiam um currículo centrado na

criança. Havia um enorme respeito pela personalidade infantil. Sua crença estava em que “o

homem se desenvolve naturalmente em direção a um ajustamento social perfeito”.

(MOREIRA, 1995, p.92), o que justificava sua confiança ilimitada no espírito infantil.

Ainda segundo esse autor, previa a educação como processo de crescimento para toda

a vida. Na escola se depositava um enorme poder transformador. Para os escolanovistas, a

transformação do homem e da sociedade possibilitaria a transformação da vida também.

Nessa direção, o currículo deveria centrar-se em atividades, projetos e problemas extraídos

das atividades e problemas presentes na sociedade. (MOREIRA, 1995).

Entretanto, para Moreira (1995), é importante destacar que a proposta da Escola Nova

também representava um interesse em controle social. Considera que, assim como na teoria de

Dewey, Anísio Teixeira, no Brasil, tinha um interesse em controle técnico, particularmente na

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construção de um ambiente instrucional cientificamente organizado. O método científico, para

Anísio Teixeira, era o melhor caminho para orientar a vida diária e os julgamentos morais.

Por isso, a perspectiva curricular da Escola Nova, mesmo denominada como

progressista, também é considerada tradicional. De acordo com Zotti (2004), sua contradição

foi apostar na possibilidade da renovação educacional sem levar em consideração o

questionamento da estrutura da sociedade capitalista. O movimento acabou por propor, em

última instância, a adequação do sistema educacional à nova ordem econômica e política, e

sua concepção de planejamento curricular se constituiu em uma teoria de controle social e

técnico, tão característico do início do século XX e da adequação da educação ao modelo da

ciência positiva.

Os crescentes conflitos de ordem social, econômica e política levaram à revolução de

1930. Esse contexto foi marcado pela efetiva industrialização do país e pela compreensão de

que a mesma era necessária para o desenvolvimento econômico e autonomia do país. O poder

estatal passou à burguesia e à liderança carismática de Vargas, sendo que esse período viveu

um crescente sentimento de nacionalização que durou até 1937.

Nos anos de 1930, a influência dos pioneiros chegou ao Ministério da Educação e

Saúde e ao Conselho Nacional, criados, respectivamente, em 1930 e 1931. Moreira (1995)

ainda acrescenta que os pioneiros participaram de importantes eventos educacionais do

período, como a reforma Francisco Campos, a criação da Universidade de São Paulo, sob

influência de Fernando de Azevedo, a criação da Universidade do Distrito Federal, sob a

organização de Anísio Teixeira, além da contribuição na definição final dos preceitos

constitucionais de 1934 sobre educação.

A Reforma Francisco Campos (Decreto nº. 19.890, de 18 de abril de 1931), que

recebeu o nome do ministro do recém-criado Ministério da Educação e Saúde, ficou

conhecida por sua proposta de currículos e programas rigidamente prescritos, em especial

para o ensino secundário. A reforma defendia o ensino religioso como instrumento de

formação moral da juventude e um sistema bastante centralizado e controlador foi instalado.

Exemplo disso é que, nesse período, foram contratados inspetores federais para visitar

“escolas e inspecionar e controlar diretores, professores e alunos”. (MOREIRA, 1995, p.97).

Além disso, a reforma previa como finalidade do ensino a formação do homem para

todos os grandes setores da atividade nacional. “O resultado foi uma matriz curricular

enciclopédica [...] abrangendo finalidades ligadas à formação geral e específica, com o intuito

de prepará-lo para determinadas profissões” (ZOTTI, 2004, p.103), como também o currículo

seriado organizado em dois ciclos distintos, fundamental e complementar.

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A Constituição de 1934 foi marcada por um luta em torno de duas posições

educacionais: de um lado, “os educadores religiosos advogavam uma educação subordinada à

doutrina religiosa, e de outro, os pioneiros da Escola Nova a favor de uma escola universal,

única, gratuita e obrigatória” (MOREIRA, 1995, p.97). Em 1932, os pioneiros apresentaram o

que ficou conhecido como o Manifesto. Para Moreira (1995), a luta se demarcava entre o

grupo intelectual tradicional (clero), ligado às oligarquias agrário-exportadoras, e o grupo de

intelectuais modernos, mais progressistas, a favor de uma nova ordem moderna e urbana

ligada às elites industriais emergentes. Em síntese, o texto da Constituição final representou

os interesses dos dois grupos.

A Constituição de 1934 estabeleceu que competia à união traçar as diretrizes da

educação nacional, fixar o plano nacional de educação para todos os graus e modalidades de

ensino e coordenar e fiscalizar a sua execução em todo o país. Além disso, pela primeira vez,

se escreveu um capítulo especial dedicado à educação que, entre várias coisas, estabelecia a

educação como direito de todos e os princípios da obrigatoriedade e da gratuidade no ensino

primário.

Para Zotti (2004, p.90), “as diretrizes deram início à construção de um sistema

nacional de educação, mas que se constitui numa organização burocrática, profundamente

centralizadora, com ênfase em aspectos legais, normativos e de controle”.

Em 1937, Vargas, forçado a terminar a tentativa de regime democrático, iniciou o

período autoritário conhecido como Estado Novo. O Golpe não perdeu de vista o

desenvolvimento urbano-industrial, e a educação, considerada importante instrumento para o

desenvolvimento do país, viu encerrados os debates educacionais e a influência da sociedade

civil nos rumos da educação e controle passar para o Estado.

Nesse período, uma das primeiras medidas foi a redação de uma nova constituição. A

Constituição de 1937, considerada antidemocrática por sua imposição à população, segundo

Zotti (2004), desobrigava o Estado da educação pública, o qual assumia um papel subsidiário,

além de mascarar a gratuidade do ensino institucionalizando o ensino público pago

(Constituição de 1937, art. 130), de retirar a obrigatoriedade da nação de traçar as diretrizes

da educação nacional e de estabelecer parceria entre indústria e Estado na organização do

ensino profissionalizante.

A Constituição de 1937 apresenta um outro aspecto de extrema importância para ser analisado: deixa explícita a dualidade educacional, através da ênfase que dá ao trabalho manual. Os ricos proveriam seus estudos como melhor convinha, no sistema público ou particular, como objetivo propedêutico. Os pobres deveriam destinar-se às escolas profissionalizantes. (ZOTTI, 2004, p.93).

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Uma postura conservadora retomou a cena. O estado ditatorial, então, tomou a política

educacional e a entregou ao controle da sociedade política. Conforme Zotti, (2004, p.92),

“este período foi de criação das leis orgânicas21 do ensino, significando concretamente o

início da intervenção mais efetiva do estado na organização da educação brasileira”.

Em 1945, um novo Golpe retirou Vargas do poder. A redemocratização, os

movimentos populares e os debates educacionais voltaram à tona. A fase que foi de 1945 a

1960 pode ser considerada um estado populista-desenvolvimentista. Segundo Zotti (2004),

havia uma aliança relativamente estável entre o empresariado nacional e os setores populares

na industrialização capitalista do país. Havia, também, um grande investimento do capital

estrangeiro que, nesse momento, não era tido como uma ameaça (necessária) ao projeto

nacional desenvolvimentista.

Esse movimento resultou em uma nova constituição: a Constituição de 1946, de

caráter democratizante, que retomou a idéia de educação como direito de todos, a escola

primária como obrigatória e gratuita para o nível primário e, para os demais níveis, que se

provassem insuficiência de meios. Foi atribuída novamente à União a tarefa de traçar

diretrizes e bases para a educação nacional. Essa constituição também manteve o ensino

religioso, mas o tornou de matrícula facultativa.

Durante esse período, entrou em vigor a Reforma Capanema (resultado da Lei

Orgânica do Ensino Primário, Decreto-Lei n. 8.529 de 2/1/1946) que reorganizou todos os

níveis de ensino do sistema educacional. Segundo Zotti (2004, p.114), “foi a primeira

iniciativa concreta do governo federal no intuito de traçar diretrizes gerais para esse nível de

ensino”. A Reforma de Capanema prescreveu rigidamente currículos enciclopédicos, deu

ênfase ao ensino profissionalizante e aos especialistas educacionais, como supervisores,

administradores, orientadores e inspetores.

A lei orgânica, que instituiu o ensino primário gratuito e obrigatório, entrou em vigor num momento de crise política, caracterizado pelo fim do estado novo e retorno à democracia. Contudo, nem por isso deixa de existir a tendência autoritária presente nos decretos anteriores. (ZOTTI, 2004, p.114).

O texto da Lei Orgânica do Ensino Primário conduziu a uma educação patriótica e ao

exercício das virtudes morais e cívicas tão características da época. Entretanto, para Zotti

(2004), de acordo com as propostas escolanovistas, seus objetivos começaram a ser

direcionados para o desenvolvimento do ensino de modo sistemático e graduado, levando em 21 “Lei Orgânica do Ensino Industrial (decreto-lei n. 4.073 de 30/1/1942); Lei Orgânica do Ensino Secundário (decreto-lei n. 4.244 de 9/4/1942); Lei Orgânica do Ensino Comercial (decreto-lei n. 6.141 de 28/12/1943); Lei

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consideração os interesses e o desenvolvimento da infância. A didática e as metodologias

deveriam primar pelas atividades dos próprios alunos, levando em conta a realidade em que a

escola está inserida. Havia, igualmente, uma preocupação com a cultura, com os

conhecimentos úteis para a vida em sociedade e com a preparação para o mundo do trabalho,

que se tornava mais complexo nesse período.

Com base nestes objetivos e princípios norteadores, a escolarização foi dividida em fundamental e supletiva. A fundamental era destinada para crianças de 7 a 12 anos e compreendia 5 anos de curso preparatório ao exame de admissão no ginásio. O ensino primário supletivo era destinado aos adolescentes e adultos que não haviam recebido esse nível de educação em idade adequada, com duração de 2 anos. (ZOTTI, 2004, p. 116).

A Reforma Capanema organizou o currículo em disciplinas tradicionais (linguagem,

matemática e estudos sociais) e disciplinas de caráter pragmático que objetivavam tratar da

formação social do indivíduo. Nela se previam a vida social, a saúde, a arte e a educação

física, além da formação para o trabalho, conhecimento das atividades econômicas da região e

trabalhos manuais. Nesse norte, o desenvolvimento do currículo deveria levar em

consideração os interesses e sugestões do próprio meio a que a escola servia.

Nesse período também se iniciou o debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases (LDB)

para a Educação Nacional, sendo o documento final promulgado em 1961 sob a Lei n.

4.024/61. Para o ensino primário, a LDB previa a duração de quatro anos, podendo se

estender para seis. Zotti (2004) argumenta que, em relação às orientações curriculares, a

referida lei foi flexível se levar em consideração as anteriores, pois não previu grandes linhas

para composição da matriz curricular; apenas previu a obrigatoriedade da Educação Física em

todos os níveis e graus de escolaridade. De maneira geral, a matriz curricular adotada nos

estados e municípios previa: leitura e linguagem oral e escrita; aritmética; geografia e história

do Brasil; ciências; canto orfeônico; educação física; e ensino religioso, de matrícula

facultativa.

Além disso, a nova LDB previa que caberia aos estados e Distrito Federal a

determinação do currículo e dos programas das escolas, levando em consideração as

peculiaridades de cada região. Para Zotti, (2004, p.120), em síntese, “a orientação e o

conteúdo de ensino não diferem muito nos estados, sendo o enfoque no ensino da escrita,

leitura e cálculo, com a utilização de uma metodologia tradicional e verbalista”.

Orgânica do Ensino Primário (decreto-lei n. 8.529 de 2/1/1946); Lei Orgânica do Ensino Normal (decreto-lei n. 8.530 de 2/1/1946); Lei Orgânica do Ensino Agrícola (decreto-lei n. 9613 de 20/8/46)”. (ZOTTI, 2004, p.92).

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Dos anos de 1940 aos anos de 1960, ainda permaneceu a educação brasileira sob a

influência das idéias progressistas. No início dos anos de 1940, foi criado o Instituto Nacional

de Ensino e Pesquisa (INEP22), marcando o início de um espaço de estudos mais sistemáticos

em currículo com contornos mais investigativos.

Sob a coordenação de Lourenço Filho, em 1944, e de Anísio Teixeira, em 1952, o

INEP permaneceu como campo de estudos em currículo inspirado nas idéias progressistas até

final dos anos de 1960. Entretanto, ao mesmo tempo em que era percebida a necessidade de

organizar o currículo a partir das experiências infantis, havia um crescente interesse por

colocá-lo em harmonia com objetivos e modos científicos de elaborar o currículo científico.

Para Moreira (1995), essa tendência pode ser considerada, no Brasil, como abertura para o

pensamento americano de Bobbit e Tyler voltado ao interesse em controle técnico.

Em 1955, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República. Sua promessa era

de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5. Com apoio de diferentes setores da sociedade, da

burguesia industrial e agrária ao operariado sindicalizado, adotou uma política nacional

menos nacionalista e mais desenvolvimentista. O capital estrangeiro passou a ser seu maior

aliado.

A política educacional adotada nesse período, atrelava a educação às necessidades do desenvolvimento, significando uma supervalorização do ensino profissionalizante, não só no ensino médio, mas até mesmo o primário teria de se obrigar a educar para o trabalho, atrelando a escola às necessidades do mercado de trabalho. (ZOTTI, 2004, p.98).

O governo Kubitschek passou a receber ajuda estrangeira, e um escritório técnico de

programas de ajuda americana abrangendo diversas áreas foi implementado. Conforme

Moreira (1995), com relação à educação, no que se refere a currículos e programas, foi

assinado um acordo em 1956 entre Brasil e Estados Unidos, que previa a implantação do

Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE). O programa

previa o treinamento de supervisores para o ensino primário e de professores de escolas

normais e cursos de aperfeiçoamento do magistério; produção, adaptação e distribuição de

material didático; e seleção de professores competentes para formação nos Estados Unidos.

O programa também ofereceu cursos de formação e capacitação para supervisores e

cursos sobre currículo e supervisão nos estados. Tais cursos tinham o objetivo de levar os (as)

professores (as) a compreenderem o currículo e sua organização como instrumento de ordem

22 O INEP foi criado para funcionar como centro de estudos educacionais. No Brasil, sua criação foi importante para a consolidação dos estudos sobre currículo a partir da década de 40. O instituto foi instrumento para discussão dos problemas educacionais e divulgador, por meio de cursos e publicações, do pensamento curricular emergente.

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técnica e científica, bem como respeito à função do especialista (supervisor) como o

orientador desse processo.

Para Moreira (1995, p.111, grifo nosso),

Podemos verificar que as disciplinas previam o como planejar e desenvolver currículos, isto é, o ‘como fazer’. Podemos também observar a associação entre currículo e supervisão, o que sugere a intenção de instrumentalizar o supervisor para ajudar o professor a executar bem o programa de ensino, ou, em outras palavras, para melhor controlar o processo curricular. A preocupação como métodos, técnicas, recursos e habilidades é, assim, compreensível.

Assim como o INEP, o PABAEE não só contribuiu para a efetivação dos estudos em

currículo no Brasil, como também para a introdução de métodos, de idéias tecnicistas e do

ideário americano de viver.

De 1962 a 1964, o país viveu um processo de crises políticas sucessivas. Jânio

Quadros renunciou, Jango Goulart assumiu o governo e prometeu reformas de base: reforma

agrária, reforma do sistema tributário, reforma do sistema bancário, reforma do sistema

eleitoral e reforma universitária. Esse contexto acirrou as lutas de classe, e começou pressão

dos estudantes por reformas de base. Emergiu uma infinidade de campanhas e de movimentos

de educação e cultura popular com propostas de conscientização política e social do povo.

Dentre elas, a de Paulo Freire.

A educação, nesse período, teve seu investimento aumentado, e o governo lançou o

Plano Nacional de Educação (PNE), que determinava o investimento na educação de 12% dos

impostos arrecadados. O plano tinha metas quantitativas e qualitativas para 08 anos. A elite,

sentindo-se ameaçada e pressionada pela organização popular e, temendo a aprovação das

reformas de base, procurou apoio na classe média, nos meios de comunicação e na igreja

católica para consolidar o Golpe de 1964. Após uma semana do Golpe, o PNE foi engavetado.

De acordo com Moreira (1995), no Brasil, a primeira metade do século XX constituiu

uma mistura de diferentes interesses. O desenvolvimento industrial e a implantação de uma

política nacionalista e desenvolvimentista desencadearam diversas discussões e reformas na

educação. Foram ressaltados interesses de formação patriótica e o desenvolvimento dos

conhecimentos úteis à vida e ao trabalho. A influência americana (Dewey, Bobbitt e Tyler)

conferiu à educação brasileira ideais de ordem tecnicista e progressista que, combinados com

a tradição religiosa, direcionaram a educação brasileira para um interesse em controle técnico

com ênfase a técnicas de elaboração de currículos.

Silva (1999) esclarece que as idéias de Dewey não tiveram tanta influência nos

Estados Unidos como tiveram no Brasil. Lá, as idéias de Bobbitt foram muito mais influentes

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para a formação do currículo como campo de estudos. A atração e a influência pelas idéias de

Bobbitt deveram-se, provavelmente, ao fato de que sua proposta parecia permitir à educação

tornar-se mais científica.

Sobre Dewey, Popkewitz (1997) afirma:

A posição intelectual de Dewey não se afastou da sua visão profissional, universalista de uma democracia criativa. Postulava uma comunidade homogênea na qual os conflitos de estrutura e poder eram aperfeiçoados somente através do debate. A mudança social é vista como um processo gradual baseado nos conteúdos pedagógicos. [...] Embora o pragmatismo de Dewey tivesse gerado um extenso programa pedagógico, o seu impacto limitou-se a poucos programas escolares. A sua epistemologia continha uma incerteza intelectual difícil de ser avaliada, o que dificultou sua implantação na escolarização de massa [...] o que ocorreu foi a transformação do pragmatismo em exercícios técnicos de planejamento das unidades e um currículo centrado na criança, que se concentrava mais na criação de significados individuais que na construção social do conhecimento. [...] tratava-se de um pragmatismo não-histórico que baseava-se na internalização das normas externas como parte da disciplina do Self. Sua visão evolutiva da mudança e sua noção de solução de problemas negaram o papel da história na formação da reflexão e a possibilidade foi reduzida à solução de problemas sobre aquilo que já existia. (POPKEWITZ, 1997, p.73).

Por volta da metade do século XX, as idéias e o modelo curricular de Bobbitt

encontraram sua afirmação no livro Princípios Básicos de Currículo e Ensino, de Ralph Tyler,

publicado em 1949, nos Estados Unidos. As idéias de Tyler ganharam força e passaram a

dominar o campo do currículo com influência em diversos países, inclusive no Brasil, pelas

quatro décadas seguintes.

O modelo de currículo proposto por Tyler consolidou definitivamente os estudos do

currículo em torno das questões de organização e desenvolvimento. Para Tyler, o currículo é,

essencialmente, uma questão técnica, sendo que, por isso, faz parte do movimento que ficou

conhecido como modelo tecnicista de currículo na década de 1960. Embora o autor indique

interesse pelas questões ligadas ao desenvolvimento social e melhor qualidade de vida, sua

proposta de currículo não apresentou perspectivas de ações em direção a uma sociedade

diferente da capitalista.

Para Tyler, a atividade educacional deveria ser dividida em três dimensões: currículo,

ensino e instrução e avaliação. Além disso, propunha que o planejamento curricular

respondesse a quatro questões tidas como fundamentais.

Que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir? Que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos? Como organizar eficientemente essas experiências educacionais? Como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados? (TYLER, 1974, p.01).

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Tyler (1974) tinha “um modo de encarar um programa de ensino como instrumento

eficiente de educação” (TYLER, 1974, p.1) De base racional, previa que os estudantes

deveriam ser instigados a pensar e investigar sobre diferentes bases racionais e desenvolver a

sua concepção pessoal dos elementos e relações implicados num bom currículo. As

necessidades dos alunos e da sociedade eram consideradas, mas o papel do professor limitava-

se à implementação de objetivos.

Gesser (2002, p.76) argumenta que Tyler “apresentava a seqüência e os procedimentos

para planejarmos, organizarmos e avaliarmos os currículos com base em objetivos ou

propósitos pré-determinados por especialistas”. De fato, para Tyler, “Os objetivos devem ser

claramente definidos e estabelecidos” (SILVA, 1999, p.25), principalmente em termos de

comportamento explícito. A opção comportamentalista do autor se radicaliza por volta dos

anos 60, juntamente com a emergência do tecnicismo. O planejamento curricular deveria

prever a especificação precisa de objetivos a atingir e padrões de referência a alcançar.

Os estudos de Tyler sobre currículo buscaram na especificação de objetivos e fins da

educação um modelo pautado na eficiência e eficácia. O que Ralf Tyler fez foi formular uma

proposta racional e tecnicista de currículo, buscando suporte em fontes como as disciplinas

acadêmicas e a psicologia da aprendizagem.

Nos anos 50, uma das principais preocupações com o currículo veio com o lançamento do satélite Russo, o Sputnik (1957) e com a Guerra Fria, que conduziram a um declínio do currículo tecnicista em que o conhecimento se centrava nas disciplinas básicas do ensino. [...] Esses eventos históricos representaram uma ameaça ao desenvolvimento tecnológico dos estados unidos e, sendo assim, o controle do currículo tornou-se um assunto de preocupação nacional. O grande empurrão veio do governo para um currículo centrado nas disciplinas voltadas à ciência, tais como a física, a biologia, a química e a matemática. [...] o currículo se tornou um assunto relegado aos especialistas das disciplinas acadêmicas. (GESSER, 2002, p.77).

Esse descontentamento que Gesser explicita ter se instalado entre os norte-americanos

levou muitos a culparem os educadores e, principalmente, a proposta de educação progressista

pela derrota americana na corrida espacial. O resultado disso foi um investimento maciço do

governo federal americano na reforma dos currículos nas áreas disciplinares e na elaboração

de novos programas, materiais, estratégias de ensino e propostas de treinamento de

professores. O objetivo maior era recuperar o prestígio na ciência, por meio da ênfase à

descoberta e à investigação científica. (MOREIRA; SILVA, 2002).

As idéias de Tyler entraram no Brasil nos anos de 1970 como uma das medidas para a

educação após o golpe militar de 1964. Dos anos de 1940 aos anos 1970, surgiu no país uma

multiplicidade de iniciativas em estudos curriculares, indo desde a implantação do INEP e

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PABAEE, a introdução da disciplina Currículo e Programas no curso de Pedagogia e de

formação de supervisores até o surgimento dos primeiros mestrados em currículo. Conforme

Moreira (1995) iniciaram suas atividades a partir dos anos de 1970 na Universidade Federal

de Santa Maria (UFSM), na Universidade Federal do Paraná (UFPR), na Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade de Brasília (UNB).

Para Moreira (1995, p.122),

As condições estruturais no início dos anos sessenta favoreceram o surgimento de teorias e práticas pedagógicas críticas e, além disso, a combinação inconsciente de orientações divergentes. Após o golpe de 1964, as transformações políticas, econômicas e ideológicas, juntamente com a influência internacional, contribuíram para a adoção e a predominância da tendência tecnicista; a Reforma Universitária de 1968 e a reorganização do curso de pedagogia em 1969 ofereceram as condições para que a base institucional universitária do campo do currículo se consolidasse de fato; e apesar da dominância da tendência tecnicista durante a maior parte do período, idéias progressistas estiveram também presentes no pensamento curricular brasileiro.

De 1960 a 1964, se instalou nos Estados Unidos um enorme medo relacionado a uma

possível revolução socialista em todo o mundo. Diante disso, se acirrou o desenvolvimento de

mecanismos de influência americana na América Latina. Após a eleição de Kennedy, foi

adotada uma política de assistência planejada. A Aliança Para o Progresso, United States

Agency for International Development (USAID), encarregou-se de organizar e administrar a

assistência técnica, financeira e militar dada pelos Estados Unidos.

O programa foi rapidamente implantado no Brasil, durante a renúncia de Quadros. A

aliança não aprovava a orientação esquerdista do novo governo de Jango, mas, mesmo assim,

muitos acordos foram assinados, e os governos contrários a Jango, em especial, foram

favorecidos.

Em conformidade com Moreira (1995), durante a Ditadura Militar, houve inúmeros

acordos entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a USAID (MEC-USAID). Esses

acordos previam a contribuição de especialistas americanos na formulação de relatórios e

planos relativos à organização do sistema de ensino brasileiro. O objetivo era o apoio técnico

e financeiro, e a influência americana contribuiu para que, nesse período, o tecnicismo se

tornasse dominante no pensamento educacional brasileiro.

Em consonância com centenas de intelectuais, professores, cientistas, técnicos e

artistas brasileiros deixavam o país por causa de perseguições políticas, falta de trabalho ou

ambas as coisas, de acordo como Zotti (2004), uma infinidade de consultores norte-

americanos aqui chegavam como agentes de desenvolvimento e modernização.

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O golpe militar de 1964 levou ao poder uma nova aliança. A burguesia local associou-

se às empresas estrangeiras e à tecnocracia civil-militar. Para Moreira (1995), essa aliança

excluiu do poder econômico e político os trabalhadores, amplos setores da classe média

assalariada e a pequena burguesia. O interesse propulsor era pelo capital estrangeiro. A

entrada de multinacionais na economia brasileira representava uma economia voltada para um

interesse dependente e desenvolvimentista. Já o interesse estrangeiro era pela capacidade

interna de um país dependente.

Durante os anos de ditadura militar, cujo objetivo maior era ajustar a ideologia ao

interesse econômico, o país sofreu um período de intenso autoritarismo e violência. Os

militares fortaleceram seu poder com a criação de 5 atos institucionais (AI23) promulgados

pelo Poder Executivo, que objetivavam um completo controle do Estado, inclusive dando

plenos direitos ao governo de impedir o funcionamento do Legislativo frente à punição com

medidas arbitrárias.

A aliança que o país fez com o capital internacional resultou no “alinhamento com os

Estados Unidos, considerado um modelo a ser copiado” (ZOTTI, 2004, p.140). A orientação

do novo modelo econômico pode ser sintetizada pelo uso da teoria do bolo24.

O período em que vigorou a ditadura militar representou para a política educacional a

dominação burguesa sob o apoio dos militares. A educação também passou por diversas

reformas institucionais. Sua direção, explícita nos pronunciamentos oficiais e nos planos e leis

educacionais, foi novamente alinhada para atender aos interesses econômicos. Segundo Zotti

(2004), os rumos da educação se tornaram claros após declarações do Presidente Castelo

Branco ao Secretario de Educação, em meados de 1964. Para o então presidente, o objetivo do

seu governo seria restabelecer a ordem e a tranqüilidade entre estudantes, intelectuais,

operários e militares.

Além dos acordos MEC-USAID, a política educacional do governo militar, prevendo

a construção de medidas práticas para a adequação do sistema educacional aos modelos de

desenvolvimento econômico, estabeleceu a “reforma do ensino de 1º e 2º graus, que resultou

na Lei 5692/71”25 (ZOTTI, 2004, p.143). Mesmo frente ao crescente poder autoritário do

23 O AI 1 foi criado em 9/4/1964, o AI 2 em 17/10/1964, o AI 3 no dia 6/2/1966, o AI 4 no dia 7/12/1966 e o AI 5 no dia 13/12/1968. 24 O princípio desta teoria era que, primeiramente, os capazes de investir e fazer o bolo crescer concentrariam a renda para, depois, distribuir com equidade os frutos do desenvolvimento. Isso resultou uma crescente concentração de renda e exclusão social da maioria. 25 Segundo Zotti (2004), além da reforma do ensino de 1º e 2º graus, a política educacional do período encontra-se nas seguintes legislações: Lei n. 5.540/68 – reforma do ensino superior; decreto – Lei n. 5.379/67 – institucionalização do movimento brasileiro de alfabetização (MOBRAL); Decreto-Lei n. 71.737 – institucionalização do ensino supletivo, previsto na Lei 5.692/71. (ZOTTI, 2004, p. 143).

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governo, nasceu, em 1969, uma oposição armada formada por estudantes, intelectuais de

esquerda, lideranças operárias e camponesas.

Entretanto, segundo Zotti (2004), nem esse movimento impediu que a Lei 5.692/71,

elaborada por um grupo de “notáveis intelectuais” do regime, fosse recebida com entusiasmo

pelos educadores e aprovada no Congresso Nacional por parlamentares da Aliança

Renovadora Nacional (ARENA) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Essa Lei,

com o apoio da nova constituição de 1967, em síntese, assegurava o fortalecimento e o

investimento no ensino particular, promovia a obrigatoriedade do ensino primário de quatro

para oito anos e afirmava o princípio da gratuidade. Contudo, novamente, não apresentava

propostas concretas de investimento financeiro para as políticas educacionais públicas.

A ampliação do ensino primário, ou da escolaridade obrigatória de quatro para oito

anos, esteve relacionada, de acordo com ZOTTI, (2004, p.164), “ao discurso do ‘Brasil-

potência’, pois não só o analfabetismo era um entrave ao desenvolvimento, como também a

baixa média de escolaridade do ‘cidadão’ brasileiro”.

A intenção de ajustar os níveis de ensino à realidade política e econômica vigente

tornou-se explícita na Lei 5692/71 já em seu objetivo geral. O seu Art 1º previu que o ensino

de 1º e 2º graus26 tem, por objetivo geral, proporcionar ao educando a formação necessária ao

desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para

o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania.

Além disso, em conformidade com Zotti (2004), a lei manteve a obrigatoriedade da

educação física, educação artística, programa de saúde, ensino religioso de caráter facultativo

e ensino de moral e cívica, inclusive para o ensino primário, com ênfase a posturas

harmônicas baseadas no lema Deus, Pátria e Família, na noção de cidadão cumpridor de seus

deveres e no ensino dos símbolos da pátria, fundamental para manutenção da ideologia

dominante.

A reestruturação do funcionamento do ensino foi outra inovação da lei, definindo, no seu art. 4º, que os currículos de 1º e 2º graus terão um núcleo comum obrigatório em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender, conforme necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais; aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos. Além disso, a definição dos conteúdos curriculares, no que diz respeito à fixação das matérias do núcleo comum, continuou como função do Conselho Federal de Educação. Aos conselhos estaduais coube relacionar as matérias que constituíram a parte diversificada da matriz curricular, dentre as quais as escolas de cada estado escolheriam o que era de interesse. As escolas também poderiam definir matérias que não constassem nas listas do

26 Na atual LDB 9394/96, por ensino de 1º grau entende-se ensino fundamental e, por ensino de 2º grau, entende-se ensino médio.

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Conselho Estadual, conforme as necessidades e com a aprovação do Conselho. (ZOTTI, 2004, p.165).

Quanto ao tratamento metodológico, a lei propunha que as matérias fossem

trabalhadas em “forma de atividades nas primeiras séries, em forma de áreas de estudo nas

séries finais do 1º grau e em forma de disciplinas no 2º grau” (ZOTTI, 2004, p.173). Ainda

havia repressão aos professores e alunos “indesejáveis” ao regime, e o Estado via na educação

a possibilidade de ajuste ideológico e repressivo, quando previu a eliminação de qualquer

exercício da crítica social e política.

No que diz respeito ao programa de ensino primário, foi afirmado o princípio da

formação moral e cívica. O conteúdo programático previa uma seqüência que levava em

consideração aquilo que é próximo da criança, o papel da família e da escola para,

posteriormente, passar ao estudo da comunidade, país e mundo. Para Zotti (2004), o conteúdo

programático objetivava, em síntese, o ajuste e a formação comportamental da criança, da

família e da escola por meio da formação de bons hábitos de convivência e atitude,

consciência dos deveres para a conquista dos direitos, noção de Deus e religião, noção de

autoridade e liderança, responsabilidade para com a defesa da propriedade pública, respeito

aos símbolos e líderes da pátria, noções de caráter, espírito comunitário, etc.

Todavia, um dos pontos centrais da reforma efetuada pela Lei 5692/71 foi a parte que

atendeu ao princípio da terminalidade. Ao segundo grau ficou resguardada a oferta de ensino

de núcleo comum com base na continuidade e o ensino profissionalizante para a inserção no

mercado de trabalho o que, na lei, ficou conhecido como educação geral e educação de

formação profissional especial, respectivamente. Em suma: à educação geral caberia a

formação de base sólida, de cultura geral, formação literária e científica e à formação

profissional, a sondagem de aptidões e iniciação ao trabalho e habilitação profissional.

A Lei 5.692/71 foi alterada somente em 1982 pela Lei 7.044/82 que reviu a exigência

da oferta, nas escolas, de ensino profissionalizante. A oferta ficou a cargo das necessidades

das instituições. Conforme Zotti (2004), o termo qualificação para o trabalho foi substituído

por preparação para o trabalho, “frisando a obrigatoriedade da preparação para o trabalho,

resguardando, assim, as relações entre escola e trabalho” (ZOTTI, 2004, p.195). O núcleo

comum continuou sendo fixado pelo Conselho Federal de Educação, e a parte diversificada

pelos conselhos locais de educação e estabelecimentos de ensino.

Com o advento da Nova República, ou abertura política, em 1984, novas perspectivas

de estudos curriculares já estavam em cena. As discussões priorizaram a denúncia dos

modelos curriculares tecnicistas. Neste contexto, é preciso destacar, entre outros, o trabalho

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dos pesquisadores Tomaz Tadeu da Silva e Antônio Flávio Moreira que, a partir de 1980,

quando começaram a publicar seus trabalhos e análises de cunho crítico, além de produzirem

grandes obras e traduzirem outras tantas.

Pode-se afirmar que todo esse conjunto de perspectivas teóricas que fundou os estudos

de currículo, ou teorias tradicionais, pautou-se na perspectiva da Escola Redentora. De acordo

com Cortella (2003), esse período pode ser considerado como

otimismo ingênuo, que atribui à escola uma missão salvífica, [...] nessa concepção o educador se assemelharia a um sacerdote, teria uma tarefa quase religiosa, e por isso, seria portador de uma vocação. Na relação com a sociedade, a compreensão é a de que a educação seria a alavanca do desenvolvimento e do progresso. (CORTELLA, 2003, p.131).

No Brasil, a teoria tradicional teve grande influência na construção do modelo de

escolarização do início do século XX, e seus resultados podem ser percebidos até hoje. O

otimismo e a redenção estão relacionados com o ideário que se instalou durante esse período

em que a educação, por seu caráter tecnocrático e científico, tinha uma autonomia absoluta e

um trânsito livre das influências e dos interesses políticos e econômicos que o país vivia.

Quanto aos professores, como ainda se percebe presente em alguns espaços

pedagógicos de hoje, os mesmos construíram, por meio dos discursos políticos, um sistema de

conhecimento que os reportava a um chamamento missionário, apartado do mundo

profissional. Não foi sem deixar marcas que se construiu no imaginário docente que, por seu

caráter missionário, deveria estar distante dos movimentos sindicais ou corporativos, imune às

interferências do campo material, econômico e político.

Este também foi um período que, apesar dos calorosos debates em defesa da garantia

de uma política educacional para todos, não se vislumbraram medidas efetivas do poder

político para eliminar o caráter dual do ensino no Brasil que já se instalava desde o século

XVI. Em síntese, as teorias tradicionais dissimularam a reprodução social e serviram aos

privilégios das classes elitistas. Pode-se dizer que o currículo, nesse período, buscou, por meio

da organização de seus programas e conteúdos, veicular de forma homogênea a cultura

dominante.

2.1.2 As Teorias Críticas e o Contexto Brasileiro

No contexto internacional, a partir da década de 1960, surgiram teorias de currículo

que previam o questionamento das tendências tradicionais. As Teorias Críticas do currículo

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emergiram em várias partes do mundo, resultado dos movimentos sociais e dos estudos que

surgiram, principalmente, nas ciências sociais da segunda metade do século XX.

A década de 60 foi uma década de grandes agitações e transformações. Os movimentos de independência das antigas colônias européias; os protestos estudantis na França e em vários outros países; a continuação do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietnã; os movimentos de contracultura; o movimento feminista; a liberação sexual; as lutas contra a ditadura no Brasil: são apenas alguns dos movimentos sociais e culturais que caracterizaram os anos 60. [...] Foi também nessa década que surgiram livros, ensaios, teorizações que colocavam em xeque o pensamento e a estrutura educacional tradicionais. (SILVA, 1999, p.29).

Para Silva (1999, p.30), “em descompasso com as Teorias Tradicionais, as Teorias

Críticas voltam-se para compreender o que o currículo faz e, em especial, as relações de

poder, ideologia, reprodução e resistência que permeiam as relações escolares”.

Ao final da década de 1970, o olhar não era mais para questões de investimento em

planejamento, supervisão e controle dos currículos, ênfase na elaboração de objetivos

comportamentais e procedimentos científicos de avaliação.

O olhar se volta para o exame das relações entre currículo e estrutura social, currículo e cultura, currículo e poder, currículo e ideologia, currículo e controle social. O objetivo passou a ser, entender a favor de quem o currículo trabalhava e como fazê-lo trabalhar a favor dos grupos e classes oprimidos. [...] buscando-se formas para desenvolver seu potencial libertador. (MOREIRA; SILVA, 2002, p.16).

Assim, as teorias tradicionais de currículo, tanto as de cunho tecnocrático quanto as

progressistas, foram definitivamente contestadas. Segundo Silva (1999), nos Estados Unidos,

esse movimento ficou conhecido como reconceptualização do currículo e esteve relacionado,

principalmente, às obras de William Pinar. Além disso, ainda nos Estados Unidos, houve as

contribuições dos autores Michael Apple e Henry Giroux, de vertente neomarxista, que não se

identificavam como reconceptualistas. Já na Inglaterra, os sociólogos ingleses Michael Young

e Basil Bernstein iniciaram o movimento que ficou conhecido como Nova Sociologia da

Educação. No Brasil, esse movimento eclodiu com as importantes contribuições de Paulo

Freire, enquanto os franceses atribuíram aos ensaios de Althusser, Bourdieu e Passeron,

Baudelot e Establet a participação nesse movimento de questionamento e de renovação do

pensamento curricular.

Esse conjunto de teorias lançou violentas críticas sobre as escolas e se uniu

centralmente pela desconfiança do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e

injustiças sociais. Tomando a educação e a escola como espaço de investigação, tais teorias

propuseram desvelar quais dos elementos nelas presentes ajudaram no que se refere à

reprodução das relações sociais de produção e contribuíram para a manutenção das

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desigualdades sociais. De uma forma ou de outra, se ativeram à análise dos mecanismos de

reprodução das relações de dominação e poder.

Tidas como propulsoras de todo um conjunto de estudos e investigações do currículo

escolar, as teorias críticas do currículo, na argumentação de Moreira e Silva (2002), foram

guiadas por questões sociológicas, políticas e epistemológicas, nas quais o questionamento

sobre o porquê das formas de organização do conhecimento escolar se tornaram centrais. Por

conseguinte,

nessa perspectiva, o currículo é [...] colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual. O currículo não é mais um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação. (MOREIRA; SILVA, 2002, p.7)

O conjunto das teorias críticas do currículo esteve particularmente interessado no

questionamento dos conhecimentos e de suas formas de seleção. No conjunto, suas

investigações apontavam para a sua relação com a manutenção do status quo. Suas análises

permitiram compreender que os currículos, por meio do conhecimento de suas formas de

organização dos tempos/espaços escolares e de suas regras para o comportamento,

reproduzem e produzem efeitos sociais em direção à manutenção das relações de produção e

desigualdades sociais. Depois dessas teorias, a forma de compreender as relações de poder,

ideologia, reprodução e resistência que circulavam no interior das escolas foi modificada.

O conceito “política do saber escolar” utilizado pelo autor Young (FORQUIN, 1995)

ou o conceito “política do conhecimento oficial” utilizado por Apple (2002) expressam bem o

sentimento da época. O conjunto das teorias críticas objetivou trazer à tona

O que conta como conhecimento, as formas como ele está organizado, quem tem autoridade para transmiti-lo, o que é considerado como evidência apropriada de aprendizagem [...], quem pode perguntar e responder a todas essas questões, tudo isso, está diretamente relacionado à maneira como o domínio e subordinação são reproduzidos e alterados nesta sociedade. (APPLE, 2002, p.60).

Portanto, as teorias críticas começaram a perceber que o conhecimento

“corporificado” como currículo educacional não poderia ser analisado fora de sua constituição

social. Para essa perspectiva, não caberia mais às teorias curriculares o papel de apenas

organizar os conhecimentos escolares. “O currículo, ou seja, o conhecimento organizado para

ser transmitido nas instituições educacionais, passa a ser visto como implicado na produção

de relações assimétricas de poder no interior da escola e da sociedade” (MOREIRA;SILVA,

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2002, p.21). O currículo passou a ser visto como arena política, como uma política do

conhecimento.

Outro conceito incorporado pela teoria crítica foi a noção de “currículo oculto”. De

acordo com Silva (1999), o conceito teve sua origem no campo da sociologia funcionalista e

foi utilizado pela primeira vez por Philip Jackson em 1968. Esse conceito surgiu para

representar que “a utilização do elogio e do poder que se combinam para dar um sabor

distinto à vida de sala de aula, coletivamente, formam um currículo oculto que cada estudante

e cada professor deve dominar se quiser se dar bem na escola” (SILVA, 1999, p.77).

Os teóricos que vieram após Jackson ampliaram e desenvolveram maiores estudos em

torno desse conceito. Alguns deles, em especial, Michael Apple, ao se referir ao currículo

oculto, o entende como “constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem

fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens

sociais relevantes”. (SILVA, 1999, p.78).

Nessa direção, as pesquisas sobre o currículo oculto se ocuparam de investigar e

compreender o quê se aprende no currículo oculto e por intermédio de quais meios. Tais

pesquisas chegaram a interessantes percepções sobre atitudes, valores e comportamentos que,

sem fazerem parte explícita da elaboração dos planejamentos curriculares, são implicitamente

ensinados por meio das relações sociais, das práticas, das normas, dos rituais, das regras, dos

regulamentos, da organização dos tempos/espaços escolares e das categorias de divisão, como

capacidades individuais, qualidades, gênero, etnia, etc.

Para a perspectiva crítica, o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às estruturas e às pautas de funcionamento, consideradas injustas e antidemocráticas e, portanto, indesejáveis, da sociedade capitalista. [...] Em particular, as crianças das classes operárias aprendem as atitudes próprias ao seu papel de subordinação, enquanto as crianças das classes proprietárias aprendem os traços sociais apropriados ao seu papel de dominação. Numa perspectiva mais ampla, aprende-se, através do currículo oculto, atitudes, valores próprios de outras esferas sociais, como, por exemplo, aqueles ligados à nacionalidade. Mais recentemente, nas análises que consideram também as dimensões do gênero, da sexualidade ou da raça, aprende-se, no currículo oculto, como ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça ou etnia. (SILVA, 1999, p.79).

No Brasil, a emergência da teoria curricular crítica se deu ao final da década de 1970

com a abertura política e redemocratização do país. Todavia, a primeira década dos anos de

1970 não sofreu muita influência das teorias da reprodução e das abordagens sociológicas.

Nem mesmo as obras de Freire receberam atenção dos autores brasileiros. “Os estudos desse

período representaram, mais esforços de criticar as diretrizes curriculares dos anos de 1970,

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que de reformular e fortalecer o campo e acelerar as transformações”. (MOREIRA, 2001,

p.15).

O regime autoritário, abalado pelas transformações que ocorreram no contexto social,

econômico e político, perdeu sua legitimidade. Em termos econômicos, se colocou um cenário

de altíssimos índices de inflação. O capitalismo dependente agravou-se, e rompeu-se a aliança

da burguesia com a classe militar. As crises e desacertos do governo conduziram o novo

Presidente, Tancredo Neves, à direção do país, após 20 anos de ditadura. Novas alianças

foram estabelecidas, e a vitória se confirmou para os estados mais industrializados do país e

deputados e senadores oposicionistas.

No entanto, os anos que se seguiram sofreram profundas crises. De acordo com

Moreira (1995, p.158), “Inflação desenfreada, aumento da dívida externa, agravamento das

desigualdades, recessão, desemprego, desvalorização dos salários, aumento da violência,

deteriorização dos serviços públicos, greves, corrupção”.

Ressalta-se que, nesse cenário, emergiram dos anos de silêncio os movimentos de

massas. Organizaram-se livremente sindicatos, associações, centros acadêmicos e debates

sobre os principais problemas da educação, e houve o retorno ao país dos educadores exilados

pelos militares. Nesse contexto, emergiu a literatura crítica, inicialmente sob a influência de

autores como Marx e Gramsci.

O pesquisador brasileiro José Luiz Domingues apresentou, por esses tempos, sua

compreensão do currículo nesse período. Ao estudar a produção brasileira, “caracteriza-a

mais pela intenção de desarticular o modelo de Tyler que pela explicitação de uma nova

proposta curricular” (MOREIRA, 2001, p.16). O autor Domingues apontou a presença de

duas vertentes críticas no Brasil: uma associada à pedagogia Crítico-Social dos conteúdos e

aos nomes de Demerval Saviani, Guiomar Namo de Mello e José Carlos Libâneo e outra

associada à proposta de educação popular e ao nome de Paulo Freire. O autor registrou, ainda,

o início da difusão das idéias de Giroux e Apple no Brasil, em grande parte responsável pelo

desenvolvimento da sociologia do currículo no país.

Os estudos e debates apresentavam uma intensa preocupação com os conteúdos

curriculares, principalmente da escola de primeiro grau. Mesmo concordando com a

importância da escola para as camadas populares, os “curriculistas” discordavam quanto aos

conteúdos e métodos a serem empregados. “Há os defensores de um conhecimento universal e

objetivo e há os que propõem uma escola alternativa que integre construção de conhecimento

e conscientização”. (MOREIRA, 2001, p.16).

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Para Moreira (1995), mesmo diante de uma efervescência política e intelectual, ao

final dos anos de 1980, o Brasil ainda carecia de um ensino básico universal de boa qualidade

e uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O presidente Sarney, em 1985, apresentou

o documento “Educação para Todos”. Nesse documento ficou expressa a preocupação com a

universalização e obrigatoriedade da educação e se enfatizou o compromisso com a

construção da democracia e justiça social. A educação foi considerada meio para amenizar a

dívida social com o povo brasileiro.

Segundo Zotti (2004), ao caráter técnico da educação se acrescentou o caráter

sociopolítico. Houve um realçar da importância do conteúdo curricular e da relação deste com

a realidade da família das crianças. Percebe-se que houve uma ênfase na importância da

relação do conhecimento com a cultura do aluno visando a “melhores condições de vida e

preparação consciente para a prática da cidadania” (ZOTTI, 2004, p.197).

Essa época viu emergir uma diversidade de programas que apontavam para a

possibilidade de eliminar a pobreza com a participação da sociedade. Essa iniciativa pôde ser

caracterizada como de descentralização e regionalização dos serviços públicos, dentre eles, da

educação. Para Zotti, (2004, p.197), “o que caracterizou a política foi a retórica ‘tudo pelo

social’, baseada em três pontos fortes: clientelismo, tutela e assistencialismo, pouco se

diferenciando dos governos militares”.

Em 1986, na IX Reunião da ANPEd, o GT sobre currículo iniciou suas atividades.

Nesse encontro, apresentaram-se destacados nomes do campo no Brasil e discutiram-se

intensamente os rumos do pensamento curricular brasileiro. Entrou na pauta de discussão a

importância do ensino de currículo nas universidades, bem como os conteúdos curriculares

das escolas de primeiro grau. Oscilou-se entre a pedagogia dos conteúdos e a educação

popular, orientando os debates para a influência das análises sociológicas inglesas e

americanas.

Esse encontro possibilitou perceber que, no Brasil, crescia o interesse pelas teorias da

sociologia do currículo em face dos autores mais utilizados, entre eles, Giroux, Apple, Young,

Fourquin, da filosofia, Marx, Gramsci, Bourdieu, Habermas, Bachelar e um sutil recurso a

Foucault, Derrida, Deleuze e Guatarri. Os estudos curiosos em aspectos administrativo-

científicos foram sendo superados. A literatura cedeu lugar para análises de currículo de

cunho eminentemente político, e os trabalhos buscavam, em sua maioria, a compreensão do

currículo como espaço de relações de poder.

As reivindicações, principalmente dos setores populares e sindicais, por políticas de

caráter mais transparente e participativo, objetivando a democratização do estado, permearam

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a construção do texto da Constituição de 1988. Foi a primeira constituição brasileira que

inseriu em seu texto boa parte do conjunto de interesses da sociedade civil que lutou pela

possibilidade de participação e voz nos setores de decisão colegiada das instituições públicas,

com exceção das instituições privadas que se viram livres para decidir os rumos de sua

política educacional.

Também em 1988, foi a primeira vez que se tornou explícita a importância de garantir

igualdade de condições de acesso à escola, permanência na mesma e gratuidade do ensino

público nos estabelecimentos oficiais desde o primário ao superior. Foi somente na

Constituição de 1988 que ficaram resguardados a obrigatoriedade e o compromisso do Estado

com o acesso de todas as crianças ao ensino fundamental. Da mesma forma foram respaldas a

oferta de educação infantil pelos sistemas de ensino e a garantia de uma parcela da

arrecadação de impostos para o financiamento da educação.

No entanto, o art. 205 da Constituição de 1988 (BRASIL, 2000, p.118, grifo nosso)

explicitou o jogo de interesses que circundou sua redação. Mesmo frente à pressão pública, o

Estado se eximiu do papel absoluto de garantir a todos a oferta e a obrigatoriedade do ensino,

alegando que a educação de “direito de todos e dever do estado e da família” deveria ser

promovida e incentivada “em colaboração com a sociedade”. Na seqüência do texto,

percebe-se a continuidade de seu caráter preparatório para o trabalho, ao considerar a

educação um meio para o preparo da cidadania e qualificação para o trabalho.

No que diz respeito ao currículo, a Constituição de 1988 deixou aos cuidados do

Conselho Federal de Educação (CFE) a fixação dos conteúdos mínimos para o ensino

fundamental com o intuito de assegurar a formação básica nacional e o respeito aos valores

culturais e artísticos nacionais e regionais. O ensino religioso foi constituído de caráter

facultativo e foi estabelecido que o ensino deveria ser ministrado em língua portuguesa, com

exceção nas comunidades indígenas, às quais ficou garantido o direito à utilização, também,

de sua língua materna.

Vale ressaltar que uma das mais importantes contribuições da Constituição de 1988 foi

assegurar a construção de um Plano Nacional de Educação. A efetivação de um plano

nacional representava o compromisso com o debate coletivo no estabelecimento das

prioridades e necessidades nacionais, bem como na articulação de ações do poder público.

Essa constituição previu como metas iniciais: a erradicação do analfabetismo; a

universalização do atendimento escolar; a melhoria da qualidade do ensino; a formação para o

trabalho; e a promoção humanística, científica e tecnológica do país.

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Contudo, somente no ano de 200, o Plano Nacional de Educação foi efetivamente

aprovado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, com duração para dez anos. Não

é foco desta pesquisa, mas é importante ressaltar que o texto final foi resultado de anos de

discussão e que muitas das medidas que beneficiavam a sociedade civil foram vetadas pelo

Presidente.

Para Zotti (2004, p.206), os documentos oficiais continuaram a entender o currículo

como a organização da matriz ou grade curricular. Nesse sentido, se percebe um pequeno

avanço nas discussões que “contemplassem uma análise crítica do currículo legal e real e das

implicações do que se ensina na escola”.

Em contrapartida, os estudiosos em currículo, nos anos de 1980 buscaram uma

orientação mais autônoma para a educação do país e uma desvalorização dos modelos

educacionais do governo militar. A tarefa colocada para os estudiosos em currículo era

superar o modelo curricular americano e suas perspectivas teóricas. Esse período foi marcado

por um profundo questionamento da divisão do trabalho pedagógico, dos especialistas, dos

modelos tradicionais de elaboração curricular e da avaliação. Houve uma ênfase à

reformulação dos programas de pós-graduação para a superação da dependência americana.

Para Lopes e Macedo (2002), uma importante contribuição para o campo dos estudos

em currículo foi o Núcleo de Estudos de Currículo (NEC), da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ), sob a coordenação do pesquisador Antônio Flávio B. Moreira. Esse núcleo

teve como interesse de pesquisa a compreensão do desenvolvimento do campo curricular no

Brasil por meio do estudo de seu desembaraçar histórico. Os trabalhos do NEC

encaminharam-se para duas linhas principais: o estudo do pensamento curricular brasileiro e o

estudo das disciplinas escolares. Seu foco de análise esteve em investigar os movimentos de

constituição do campo curricular no Brasil e a influência das teorizações estrangeiras nessa

constituição.

A efetivação desse grupo se deu por meio de uma contribuição de Antônio Flávio

Moreira, entre 1984 e 1988. Seus estudos buscavam compreender o campo curricular no

Brasil desde sua emergência, no final dos anos de 1980, e as influências estrangeiras presentes

nas teorias e práticas que se desenvolveram. Desenvolveu, assim, o conceito transferência

educacional. Para o autor, era “interpretação simplista reduzir a produção brasileira à simples

cópia do tecnicismo que se elaborava nos Estados Unidos. Seu trabalho acentuou as

interações, mediações e resistências verificadas neste processo”. (LOPES; MACEDO, 2002,

p.40).

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De acordo com Moreira (1995), o INEP, nos anos de 1980, ofereceu uma outra

importante e abrangente pesquisa sob o título O Currículo do Ensino de Primeiro Grau. Essa

pesquisa investigou o currículo do ensino de primeiro grau diante das novas propostas da

política educacional. O estudo apresentou a situação do currículo a partir dos anos 70 e,

utilizando temas tratados pela sociologia do currículo, teve 3 eixos de análise: a busca do

saber comum e universal; as possibilidades de intervenção imediata; e o resgate da história do

pensar curricular.

Segundo Zotti, (2004), as leis e propostas curriculares surgidas após a abertura política

careceram dos debates críticos que os programas de pós-graduação, teóricos e educadores

trouxeram à tona durante todo esse tempo. As discussões priorizaram a denúncia dos modelos

curriculares tecnicistas, mas “os autores brasileiros críticos são vistos como não tendo

conseguido superar de todo a fase da denúncia e elaborar propostas alternativas que reflitam

adequadamente seus posicionamentos teóricos”. (ZOTTI, 2004, p.206).

Para Cortella (2003, p. 133), durante esses anos, a educação passou pelo que se pode

chamar de um “pessimismo ingênuo”. Entrou em cena uma perspectiva “apoiada na noção

central de que a educação tem, isso sim, a tarefa primordial de servir ao poder e [...], por isso,

não é nada mais do que um instrumento da dominação”.

Em contraposição à teoria tradicional, as teorias críticas viam na educação o papel de

reprodutora das desigualdades sociais. Instalou-se, com as contribuições dos franceses, como

Althusser e Bourdieu, com suas análises da escola como aparelho ideológico do Estado e de

reprodução da cultura das classes dominantes e de todos os demais teóricos da nova

sociologia, o ideário de que o educador é o agente da ideologia dominante, um mero

instrumento a favor das elites.

Como resultado, houve uma constante suspeita em relação a qualquer forma de

intervenção e inovação pedagógica. Embora houvesse uma efervescência de debates e, até, o

despontar de duas novas tendências, a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a educação

popular, pode-se dizer que se instalou, no que se refere aos professores, um descontentamento

com a discriminação que, tanto eles como a escola, vinham sofrendo.

Em contrapartida, nas décadas de 1970 e 1980, ainda havia um grande número de

adultos analfabetos e de crianças que não tinham acesso à escola. Além disso, para as que a

freqüentavam, havia um preocupante processo de retenção e evasão. Diante dos dados

alarmantes, a sociedade civil almejava alternativas para garantir as suas crianças e adultos a

escolarização, que era considerada porta de entrada para a igualdade de condições, ascensão

profissional, acesso à cultura e aos conhecimentos, respeito social, etc.

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Em síntese, a grande contribuição das teorias críticas foi chamar a atenção para o fato

de a educação não ser uma atividade socialmente neutra, de o educador ser um profissional

político (saiba ele disso ou não) e de os conteúdos e suas formas de seleção servirem a um

interesse ideológico e de poder. Nesse período, o ideal de currículo e prática pedagógica era o

que permitisse a conscientização, a emancipação, a libertação, a autonomia e a justiça social,

ou seja, práticas que trabalhassem a favor dos excluídos.

2.1.3 AS Teorias Pós-Críticas e o Contexto Brasileiro

Tanto no Brasil, como fora do país, as teorias críticas, ao investigarem os efeitos

sociais do currículo, serviram de fundamento para novas pesquisas no campo educacional. As

novas pesquisas voltaram sua análise para os elementos textuais e discursivos do currículo. A

investigação desses elementos foi tida como mais um espaço para compreender o currículo

escolar como construção social e histórica na qual circulam e se produzem saberes, relações

de poder e subjetividades determinadas. Assim, a partir de 1980, surgiram as chamadas

teorias pós-críticas do currículo.

Esse novo contexto compreendeu o que se pode chamar de hibridização de

perspectivas teóricas. Essas teorias trouxeram novos elementos de análise do currículo e

apontaram para a necessidade de investigar o exercício sutil do poder presente nas questões

relativas à identidade, a gênero, à classe, à raça, à sexualidade, o que se engloba como o

conjunto dos estudos culturais e feministas e todo o conjunto das teorias pós-modernas e pós-

estruturalistas.

As teorias pós-críticas também estenderam nossa compreensão dos processos de dominação. [...] a análise da dinâmica de poder envolvida nas relações de gênero, etnia, raça e sexualidade nos fornece um mapa muito mais completo e complexo das relações sociais de dominação do que aquele que as teorias críticas, com sua ênfase quase exclusiva na classe social, nos tinham anteriormente fornecido. (SILVA, 1999, p.146).

A compreensão apontada por Silva é resultado da crítica que essas novas teorias

começaram a fazer, principalmente ao conceito de ideologia propagado pelas teorias críticas.

Para estas, havia, marcadamente, uma oposição entre ciência e ideologia. Depois de Foucault,

essa oposição simplesmente se desfez. As novas críticas vieram contra a posição “verdadeiro-

falso” que a antiga oposição carregava. Para as teorias críticas, desvelar os interesses e as

relações de poder presentes no conhecimento garantiria o surgimento de um novo

conhecimento, de uma nova ciência desprovida de ideologia. “Se a ideologia cedesse lugar ao

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verdadeiro conhecimento, o currículo e a sociedade seriam finalmente emancipados e

libertos” (SILVA, 1999, p.149).

O que as teorias críticas não previram foi que as teorizações pós-críticas colocariam

sob suspeita os discursos acerca do surgimento de uma nova verdade, desprovida de ideologia

e interesses sociais. “Ao deslocar a questão da verdade para aquilo que é considerado verdade,

tornam o campo ainda mais politizado. A ciência e o conhecimento, longe de serem o outro

do poder, são também campos de luta em torno da verdade”. (SILVA, 1999, p.146).

Esses novos debates, influenciados pela chamada virada-lingüística27, pelas teorias da

pós-modernidade e do pós-estruturalismo, propuseram o questionamento das pretensões

totalizantes das grandes narrativas (metanarrativas), dos arranjos e dispositivos de controle

social, da idéia de sujeito centrado e autônomo tão proclamado pelas narrativas modernas, dos

mecanismos de hegemonia e homogeneização, dos discursos emancipatórios e progressistas

de certas pedagogias críticas e das perspectivas colonialistas e estruturalistas em currículo.

Pode-se dizer que foi uma teorização que se baseou na análise dos textos e discursos

escolares, chamando a atenção para o caráter construído dos objetos culturais e sociais, entre

eles o currículo.

A aparente disjunção entre uma teoria crítica e uma teoria pós-crítica do currículo tem sido descrita como uma disjunção entre uma análise fundamentada numa economia política do poder e uma teorização que se baseia em formas textuais e discursivas de análise. Ou ainda, entre uma análise materialista, no sentido marxista, e uma análise textualista. (SILVA, 1999, p.145).

O interesse de investigação pelos efeitos discursivos não objetivava definir o currículo

nem dele capturar o verdadeiro significado, mas revelar o que é definido pelas teorias e

autores. Essa contribuição permitiu compreender que, à medida que uma teoria tenta dizer o

que o currículo deve ser, está irremediavelmente implicada em relações de poder,

privilegiando certos conhecimentos para a garantia de consensos e obtenção de hegemonia.

Foi nesse contexto que o currículo passou de uma perspectiva de modo de fazer universal,

centrado em objetivos e planejamentos racionais, para uma perspectiva de invenção social e

histórica.

Além disso, contribuiu para a emergência desse movimento todo um conjunto de

fatores relacionados às novas formas de compreender a ciência e a produção do 27 “Na análise pós-estruturalista, o momento no qual o discurso e a linguagem passaram a ser considerados como centrais na teorização social. Com a chamada ‘virada lingüística’, ganha importância a idéia de que os elementos da vida social são discursiva e lingüisticamente construídos. Noções como as de ‘verdade’, ‘identidade’ e ‘sujeito’ passam a ser vistas como dependentes dos recursos retóricos pelos quais elas são construídas, sem correspondência com objetos que supostamente teriam uma existência externa e independente de sua representação lingüística e discursiva.” (SILVA, 2000, p.111).

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conhecimento. Essa ruptura surgiu quando do questionamento do Iluminismo28 e da tendência

analítica29 de análise da ciência. Com base nos estudos de alguns historiadores da ciência,

como Khun, Bachelard e Feyerabend, o que se começou a colocar sob suspeita foram os

discursos que proclamavam verdades universais, racionalidade científica e neutralidade da

ciência.

Ainda é relevante lembrar os estudos pós-estruturalistas e as contribuições de

Foucault, Derrida, Deleuze e Guatarri. Mesmo que não tenham tratado do currículo

especificamente, suas contribuições foram importantes para o desvelamento das relações e

efeitos do poder existentes na educação.

Contudo, para Silva (1999), o legado das teorias críticas não pode ser completamente

negado. Não se pode dizer que os processos de dominação, baseados na exploração

econômica e nas lutas de classe, tenham desaparecido. Pelo contrário. O que as teorias pós-

críticas acrescentam é que não se pode mais compreender o poder como algo centrado no

Estado. Para elas, o poder está em toda parte, é multiforme e multifacetado e está espalhado

por toda a rede social. Até pode se transformar, mas nunca desaparecer.

Para as teorias pós-críticas, não há discursos neutros. O conhecimento não está

desprovido de poder. O conhecimento é parte inerente do poder. Essa noção foi aprendida

com Foucault e seu conceito de saber/poder. Em contraste com as teorias críticas, que

“limitam a análise do poder ao campo das relações econômicas do capitalismo” (SILVA,

1999, p.149), as teorias pós-críticas ampliaram o mapa do poder, incluindo os processos de

dominação também na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade.

Popkewitz (1994), ao incorporar em suas pesquisas as contribuições das teorias pós-

modernas, permite que se compreenda que qualquer proposta de currículo é sempre uma

forma de regulação. O currículo como mecanismo da escolarização, além de impor o que deve

ser conhecido, qual conhecimento deve ser tido como válido e qual a forma como este deve

ser adquirido e organizado para a reflexão e a prática, possui

28 “Movimento filosófico, também conhecido como esclarecimento, ilustração ou século das luzes, que se desenvolve particularmente na França, Alemanha e Inglaterra no século XVIII. Caracteriza-se pela defesa da ciência e da racionalidade crítica, contra a fé, a superstição e o dogma religioso”. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.137). Conhecida também como uma das principais expressões da modernidade, proclamava o poder absoluto da razão humana e da cientificidade como emancipadoras e portadoras do progresso. 29 Essa tendência, conhecida como principal representante do Círculo de Viena, fundado em 1929, reuniu pesquisadores de áreas distintas da física, matemática, lógica, filosofia, etc., em torno de um objetivo comum: proceder à investigação e realizar a divulgação da concepção científica de mundo. Incorporando o princípio básico da filosofia empirista e positivista, objetivava chegar a uma unificação do conhecimento científico por meio da análise lógica da linguagem (demarcação) que distingue ciência de metafísica. Teve como representantes Duhem, Poincaré, Carnap e Popper. (BOMBASSARO, 1997).

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um nível diferente de regulação, [...] é o de que a seleção de conhecimento implica não apenas informação, mas regras e padrões que guiam os indivíduos ao produzir seu conhecimento sobre o mundo. [...] O processo de escolarização incorpora estratégias e tecnologias que dirigem a forma como os estudantes pensam sobre o mundo em geral e sobre o seu ‘eu’ nesse mundo. [...] aprender informações no processo de escolarização é também aprender uma determinada maneira, assim como maneiras de conhecer, compreender e interpretar. Podemos ver as práticas escolares como formas politicamente sancionadas para os indivíduos organizarem suas visões do ‘eu”. Aqui os estudos feministas podem ser úteis para focalizar a forma como as práticas lingüísticas não são apenas representativas de coisas no mundo, mas também elementos importantes de poder. No caso do gênero, os discursos e os desempenhos do processo de escolarização normalizam não apenas distinções sobre o que as meninas podem fazer em comparação com o que os meninos podem fazer – a aprendizagem escolar implica também distinções, diferenciações e sensibilidades que inscrevem emoções e atitudes apropriadas. [...] à medida que corporificam movimentos que caracterizam nosso andar, nossa fala e nossas interações com outras pessoas. (POPKEWITZ, 1994, p.192).

O que Popkewitz objetiva problematizar é como os discursos que circulam na escola

sobre gênero, classe, etnia, sexualidade, rendimento, comportamento, etc., podem se constituir

um exercício muito sutil de poder, num “currículo oculto” que serve de instrumento de

regulação por meio dos conhecimentos, das regras, das normas e dos padrões que se impõem

ao pensar e ao agir das crianças e adolescentes.

Para Popkewitz (1994, p.193), “estes sistemas de idéias são tecnologias sociais30”.

Essas “tecnologias” incorporam formas de pensar e agir que, normalmente, não são

questionadas pelos sujeitos que compõem a escolarização. Na maioria das vezes, as formas

como se lida com o outro, com o “eu” e com as regras e normas que ditam como deve ser a

construção social das identidades e subjetividades não são questionadas. Nesse processo,

dificilmente se coloca sob suspeita a quem interessam essas regras de convívio social, essa

forma de lidar com o outro e com o “eu”. Somente são tomadas como naturais e necessárias.

Nessa direção, as teorias pós-críticas, num exercício radical de deslocamento do que

se tinha como ideal, rejeitam a hipótese de uma consciência coerente, centrada, unitária.

Desconfiam dos discursos que propõem um modelo de sujeito, um ideal de consciência

coerente. Nada mais escapa ao escrutínio dos que se arrogam um discurso idealizado, uma

verdade a ser atingida, um ideal de homem a ser construído pela escolarização. Não há mais

como capturar e abolir o poder. O poder não se tem, não se possui; se exerce.

Logo, nenhuma teoria sobre currículo é neutra, científica ou desinteressada, mas está

irremediavelmente implicada em relações de poder. Por conseguinte, a noção de discurso que

orienta as pesquisas pós-críticas de currículo possibilitou compreender que, Bobbitt e Tyler,

quando propuseram uma forma de currículo, estavam criando uma noção particular de

30 “Por tecnologia social entendo um conjunto de métodos e estratégias que guiam e legitimam o que é razoável/não razoável como pensamento, ação e auto-reflexão”. (POPKEWITZ, 1994, p.193).

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currículo. O que eles diziam que deveria ser o currículo, passou a ser o currículo; tornou-se

realidade.

Por isso, as teorias pós-críticas não se limitaram a perguntar “como” Sua questão

central seria, pois, por quê? para que? e para quem. “Por quê que esse conhecimento e não

outro? Quais interesses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo? A

quem interessa privilegiar um determinado tipo de identidade ou subjetividade e não outra?”.

(SILVA, 1999, p.16).

Para as teorias pós-críticas, o currículo é sempre o resultado de uma seleção que busca

modificar as pessoas que “seguirão” aquele currículo, formar o tipo de ser humano desejável

para um determinado tipo de sociedade. Normalmente, as propostas curriculares se apressam

em apresentar os conhecimentos que serão ensinados esquecendo que estes estão

“inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvidos naquilo que somos, naquilo que nos

tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade”. (SILVA, 1999, p.15).

Por isso, as teorias pós-críticas de currículo tomam como instrumento de análise os

textos e os discursos produzidos na escolarização. São estes que, num exercício profundo de

investigação, poderão revelar os “regimes de verdade/linguagens” sobre a escolarização, os

sujeitos que a compõem e o currículo que circula num determinado momento social e cultural.

Corazza (2001), em uma importante contribuição às pesquisas pós-críticas de

currículo, argumenta

[que] seu discurso (currículo) fornece apenas uma das tantas maneiras de formular o mundo, de interpretar o mundo, e de atribuir-lhe sentidos. Que sua sintaxe e semântica têm uma função constitutiva daquilo que enuncia como sendo ‘escola’, ‘aluno/a’, ‘professor/a’, ‘pedagogia’, e inclusive ‘currículo’. Que as palavras que um currículo utiliza para nomear as ‘coisas’, ‘fatos’, ‘realidade’, ‘sujeitos’ são produtos de seu sistema de significação, ou de significações, que disputa com outros sistemas. Que um currículo, como linguagem, é uma prática social, discursiva e não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito. (CORAZZA, 2001, p.10).

No Brasil, merecem destaque no desenvolvimento de pesquisas e análises de currículo

na perspectiva pós-moderna autores como Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-Neto, Gelsa

Knijnik, Antônio Flávio Moreira31, Marisa Vorraber Costa, Sandra Corazza, Alice Casimiro

Lopes, Elizabeth Macedo, entre outros. Para Silva, (1999, p. 150),

31 No Brasil, o NEC, sob a coordenação de Antônio Flávio B. Moreira, vem dando continuidade a estudos sobre currículo que considerem em suas análises as perspectivas pós-modernas. Lopes e Macedo (2002) argumentam que o grupo tem ampliado a discussão sobre o conceito de “transferência” com o auxílio de outros conceitos, como globalização, hibridização cultural e cosmopolitismo. Além disso, em estudos recentes, o grupo tem buscado analisar a entrada da temática do multiculturalismo na produção curricular brasileira.

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em suma, depois das teorias críticas e pós-críticas, não podemos mais olhar para o currículo com a mesma inocência de antes. [...] o currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, Curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.

Em 1990, Tomaz Tadeu da Silva apresentou um importante estudo sobre as lições

aprendidas nos últimos 20 anos com a teoria crítica de currículo. De acordo com Moreira

(2001), a intenção de Tomaz Tadeu da Silva foi refletir sobre a contribuição do currículo para

uma sociedade democrática. Os artigos publicados a partir de 1990, num “enfoque

nitidamente sociológico, apresentam uma imersão nas análises do conhecimento escolar e

enfatizam a necessidade de considerar a cultura do aluno na seleção dos conteúdos”.

(MOREIRA, 2001, p.18).

Mas, foi mais especificamente no fim da primeira metade da década de 1990 que a

teorização curricular brasileira passou a incorporar o pensamento de Foucault, Deleuze,

Guatarri, Morin e Stuart Hall. De uma intensa produção, destaca-se, sob a liderança de Tomaz

Tadeu da Silva, a dos autores associados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) para ampliação e disseminação no Brasil dessas perspectivas de análises de

currículo e do pensamento educacional brasileiro. Para Lopes e Macedo (2002, p.20), “o fato

de o pesquisador Tomaz Tadeu da Silva editar e traduzir autores internacionais tem

contribuído para ampliação do pensamento pós-estruturalista no Brasil”.

Para Moreira (2001), no Brasil, também se tem destacado a influência dos autores

americanos Giroux, Mclaren, Popkewitz e Cherryholmes, por sua ênfase ao pensamento pós-

moderno e pós-estrutural. Contudo, para Lopes e Macedo (2002), não se pode entender esse

processo como um direcionamento único do campo. As teorizações de cunho globalizante,

seja das vertentes funcionalistas, seja de teorização crítica marxista, vêm se misturando e

compondo a multiplicidade característica da contemporaneidade. O hibridismo do campo

parece ser uma marca do Brasil que, na segunda metade da década de 1990, apontou o

interesse mais para pontes e fusões do que para delimitação de territórios disciplinares.

Uma das principais marcas do pensamento curricular brasileiro [...] é mescla entre o discurso pós-moderno e o foco político na teorização crítica. Nesse sentido, são associadas à perspectiva teleológica de um futuro de mudanças, fundamentada [...] na valorização do conhecimento como produtor dos sujeitos críticos e autônomos, com o descentramento do sujeito, a constituição discursiva da realidade e a vinculação constitutiva entre saber e poder. (LOPES;MACEDO, 2002, p.47).

Em meio aos debates que emergiram na década de 1990, nasceram a Lei de Diretrizes

e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), o Plano Nacional de Educação (PNE), o

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Conselho Nacional de Educação (CNE), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as

Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Todo este conjunto de leis e medidas constitui-se

na explicitação das exigências postas pela Constituição Nacional de 1988.

Vários atores políticos, governamentais e não-governamentais, participaram dos

debates acerca dos rumos que tomaria a composição curricular nacional. Em 1995, quando da

criação do Conselho Nacional de Educação, sob a Lei 9131/95, a ele se atribuiu a tarefa de

deliberar sobre as diretrizes curriculares nacionais em função de seu papel consultivo e

também deliberativo, em contraponto ao MEC. Em 1996, resultante de inúmeros debates e

relações de força, nasceram os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que já estavam em

discussão desde o início de 1990. Nesse ano, também resultado de alguns seminários,

negociações e pressões, entrou em vigor a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB 9394/96).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais não constituem obrigatoriedade de

implementação nas escolas. O nome em si já diz: parâmetros, indicações. O objetivo que

norteou sua criação, em um momento em que se ansiava por construir uma proposta nacional

de educação, foi proporcionar aos sistemas de ensino, particularmente aos professores,

subsídios à elaboração e/ou reelaboração do currículo visando à construção de seus projetos

pedagógicos.

A elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais procurou, de um lado, respeitar

diversidades regionais, culturais e políticas existentes no país e, de outro, considerar a

necessidade de construir referências nacionais, comuns ao processo educativo em todo o

Brasil. A ideologia que permeou sua construção foi criar condições, nas escolas, que

permitissem aos jovens terem acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e

reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania e qualificação para o mundo do

trabalho.

Os Parâmetros trouxeram sugestões, objetivos, conteúdos e fundamentação teórica

dentro de cada área, com o intuito de subsidiar o trabalho docente. Optou-se por um

tratamento específico das áreas, também contemplando a integração entre elas. Incorporaram-

se às áreas as questões sociais relevantes, como ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual

e pluralidade cultural, tratadas como temas transversais.

Em 1998, o Conselho Nacional de Educação apresentou as Diretrizes Curriculares

Nacionais (DCN). A lei, de caráter obrigatório, deliberou sobre os programas, princípios e

diretrizes curriculares nacionais. De acordo com Cury (2002), o interessante é que esse

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documento passou a vigorar após a deliberação dos PCNs. O Conselho Nacional de Educação,

na elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais, fez um importante estudo dos PCNs para

compreender seus limites e possibilidades a fim de definir as DCNs.

Nascidas de muito descenso e unificadas pelo diálogo, as DCNs traçam a formação

básica comum, assegurada a todos os estudantes. Sua composição institui direção para o

ensino fundamental, médio, normal, educação de jovens e adultos, comunidades indígenas,

portadores de necessidades especiais, educação profissional e de nível técnico. Além disso, as

diretrizes não configuram um currículo único ou mínimo. Segundo orientações tradicionais, as

diretrizes identificam as competências a serem desenvolvidas por todos os alunos da educação

básica deslocando o foco do ensino para a aprendizagem.

O conjunto das definições das DCNs traça amplas direções obrigatórias e deixa, a

cargo dos sistemas de ensino, traçar os planos curriculares com conteúdos ou disciplinas

específicas, cargas horárias, métodos de ensino e formas de avaliação, em nome da garantia

de uma unidade em torno do que os alunos devem aprender e da diversidade de escolhas de

acordo com as necessidades e características de diferentes regiões.

Da educação infantil ao ensino médio, as DCNs traçam princípios filosóficos de

ordem estética, política e ética, como também princípios de ordem político-educacional, como

flexibilidade, direito à aprendizagem e autonomia dos entes federados. Quanto aos princípios

pedagógicos, priorizam a preparação para a vida cidadã, a aprendizagem com sentido prático,

a contextualização e a transversalidade, o ensino por projetos e interdisciplinares, as relações

dos conteúdos curriculares com o trabalho, as comunidades local, regional e planetária e o

desenvolvimento de competências.

As áreas do conhecimento de obrigatoriedade são a língua portuguesa, língua materna

para populações indígenas e imigrantes, matemática, ciência, geografia, história, língua

estrangeira, educação artística, educação física e educação religiosa, de ordem facultativa.

Contudo, é explícito que todos esses conjuntos de medidas ainda não garantem a

resolução de uma infinidade de problemas presentes na educação nacional. Garcia (2002), em

uma importante reflexão sobre a situação da educação brasileira na virada do século XIX,

lembra que a política nacional de educação, ao propor formas de implementação de um

currículo básico nacional e de uma proposta de avaliação nacional, desvia nossa atenção dos

problemas reais.

Para Garcia (2002), é mais pertinente permear os debates sobre a denúncia de questões

como o desrespeito aos profissionais da educação diante dos baixos salários, o descaso com a

ampliação do investimento financeiro na educação, a falta de recursos para os programas de

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pós-graduação ampliarem pesquisas críticas em educação, a política descentralizada e

neoliberal, o incentivo às políticas de caráter privatizado e a não-implementação de uma

política nacional de educação, deixando a cargo dos governos locais as políticas públicas de

educação e o desrespeito à diversidade do povo brasileiro e as suas reais necessidades.

Embora parecendo perceptível a tendência dos estudos sobre currículo, a partir de

1990, para a importância de relacionar a educação e o currículo com os processos culturais

mais amplos na prática, ainda se percebia um enfoque curricular centrado na lógica

disciplinar. Para Moreira (2001), a intensificação dos debates a partir da década de 1980

ainda não conseguiu superar o distanciamento entre a produção teórica e a realidade vivida no

cotidiano escolar. Para o autor, os estudos do campo até o momento atual não conseguiram

propor alternativas suficientemente eficazes para o processo de construção de uma escola

diferente no Brasil.

Na mesma direção, o GP de Currículo da ANPED, nos anos de 1995 e 1996, fez um

relevante mergulho nas questões referentes à realidade brasileira. Nesses anos, realizou

importantes discussões sobre currículo e conhecimento, objetivando lançar um olhar para os

Parâmetros Curriculares Nacionais. Em seus encontros, expressou o descontentamento com a

postura do governo de controlar, por meio dos PCNs e de “mecanismos de avaliação, a escola

pública brasileira, a fim de imprimir-lhe a qualidade de que careceria”. (MOREIRA, 2001,

p.19).

Observa-se como as pesquisas aqui mencionadas vêm apontando uma ruptura com o

que as perspectivas, tanto tradicionais como críticas, defendiam: a defesa por um modelo de

educação, por um currículo ideal. Acreditava-se de toda forma, com uma concepção “otimista

ingênua” ou com uma concepção “pessimista ingênua”, na possibilidade de solução frente à

construção de modelo de escola, de um modelo de currículo, seja tecnicista, seja libertário.

Contudo, o que se vê, no cenário educacional, político, social e histórico, é que os modelos

de educação e de currículo são sempre parte de uma seleção que busca formar um ideal de

sujeito e de sociedade. São modelos que, imbuídos de poder e determinados modos de pensar

(saberes), proclamam, por meio dos discursos, concepções sempre idealizadas e parciais de

escola, de currículo, de aluno, de professor, etc.

Segundo Corazza (2002),

Princípio fictício, fabricado pelo etnocentrismo dos grupos privilegiados e posto em funcionamento pelo aparato disciplinar do estado. Princípio estratégico que, embora reconheça os diferentes e fale de suas diferenças, utiliza tal identidade nacional para tratá-los como desvios ou ameaças. [...] princípio obediente [...] por meio da

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transformação de cada diferença e de cada diferente em objeto de ação curricular-estatal, a ser corrigido ou eliminado. (CORAZZA, 2002, p.104).

Na direção apontada por Corazza, é possível argumentar que, em oposição aos ideais

das teorias tradicionais e críticas, a garantia de escola para todos e de um currículo mínimo e

comum, objetivo de luta de muitos, não tem levado a melhores condições sociais nem a

condições de igualdade para as diferentes classes sociais, culturas, grupos étnicos e minorias

sociais, nos diversos espaços e segmentos da sociedade. Acrescenta-se que essas conquistas

foram importantes, mas que, entretanto, há novas questões a se considerar quando se pensa

sobre um currículo pós-moderno.

Para Veiga-Neto (2003), o que se vive são tempos de incerteza. São tempos em que há

uma ruptura dos paradigmas que guiavam os discursos educacionais, ou seja, das certezas que

se tinha. Estão em crise, a própria maneira de viver e significar o tempo, os espaços, os

regimes de verdade, as ciências, os modelos institucionais, etc. Na medida da urgência prática

e, até, dos limites relacionados ao que se conseguia ver até bem pouco tempo e das

problemáticas até aqui levantadas sobre o currículo, acabou-se buscando alternativas por

vezes imediatistas, como novas tecnologias, novos recursos pedagógicos, novas metodologias,

nova listagem e forma de apresentação dos conteúdos, tidas como remédios para superar a

crise da escola moderna.

Diante de uma organização social e econômica globalizada e de políticas neoliberais

em educação, é preciso um olhar muito mais atento e acurado para os mecanismos de

homogeneização e hegemonia que, sutilmente, invadem e se incorporam aos nossos discursos

sobre educação, sobre o perfil dos sujeitos que se objetiva formar, sobre as novas

possibilidades de currículo e de mercado de trabalho, “distribuição [...] dos recursos

simbólicos e materiais, sobre a privatização e mercantilização da educação”. (CORAZZA,

2002, p.104).

Um currículo pós-crítico não defende um currículo nacional, nem que a diferença,

nesse currículo seja a culpada ou a vítima que é preciso diagnosticar e registrar, incluir e

dominar, controlar e regular, hegemonizar e normalizar. Para um currículo pós-crítico, um

currículo nacional

funciona apenas como um astucioso ponto de partida para a prática curricular. [...] Vendo essa prática por meio dos parâmetros e diretrizes, guias e normas, textos e livros didáticos, materiais paradidáticos e audiovisuais, um currículo pós-crítico julga que tais padrões comuns não são inocentes. Devido a seu caráter unificador, esses padrões operam como perversos instrumentos para conceder ou negar recursos, recompensar ou castigar instituições, aprofundar as divisões existentes, reforçar as desigualdades, discriminar ou suprimir as vozes e histórias dos diferentes. (CORAZZA, 2002, p.106).

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Nesse norte, os debates que envolvem um currículo pós-crítico consideram mais

necessário discutir e produzir políticas e práticas curriculares contra-hegemônicas que, de

acordo com Corazza (2002), visem à valorização social e econômica do magistério,

distribuição de recursos aos marginalizados, políticas de eliminação de todas as desigualdades

de oportunidades e de desempenhos, dinâmicas de valorização da diferença e de experiências

de alteridade, ou seja, a formulação de muitos currículos como forma de luta social que não

mais silenciem ou marginalizem os diferentes.

Em síntese, as teorias pós-críticas, num deslocamento radical do que se tinha como

ideal, rejeitam os modelos unitários de currículo. Nada mais escapa a sua suspeita, em

especial, os discursos e as propostas que se arrogam uma verdade a ser atingida, um ideal de

homem, um ideal de conteúdo, um ideal de sociedade. Para as teorias pós-críticas, qualquer

proposta educacional que privilegia apenas uma compreensão do mundo, dos elementos que o

compõem e de como este deve ser organizado, é exercício de poder.

Assim, um currículo pós-crítico propõe a compreensão das influências que se exercem

e se sofrem. Não há mais a defesa por modelos ideais; o que há são possibilidades de

organização curricular. O que cabe a cada educador, a cada gestor educacional é: diante da

elaboração de propostas educacionais, pensar que escola se quer, para que se quer e a serviço

de quem ela está. Cabe compreender quais são as forças sociais, culturais, políticas,

econômicas e históricas que determinam e orientam o pensar e agir curricular. Talvez, assim,

se possa encontrar espaços alternativos de questionamento e investigação de nossos próprios

discursos e práticas curriculares.

Por sua experimentação, um pós-currículo nada promete aos educadores e educandos,

mas garante-lhes que terão intensificadas a sua condição de analistas críticos das culturas, a

sua polissemia de animadores transculturais e a sua potência de intelectuais públicos, cada vez

mais agenciadores da educação pública. Uma educação que é sempre de muitos, que pertence

a todos nós que lutamos movidos pela insatisfação com o existente, jamais de alguns poucos.

(CORAZZA, 2002, p. 110)

2.2 O Currículo e a Epistemologia Social de Thomaz Popkewitz

O termo Epistemologia Social surgiu, aparentemente, entre os estudiosos da

Biblioteconomia, Jesse Shera e Margaret Egan, por volta de 1950, preocupados, entre outras

questões, em identificar a função social da Biblioteca e do bibliotecário. Shera e Egan foram

os primeiros a utilizar esta terminologia para fornecer uma estrutura para a investigação do

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complexo problema da relação entre ciência e sociedade. Para eles, a investigação da função e

organização da biblioteca, do bibliotecário e do conhecimento estaria determinada por uma

espécie de acordo social. Por isso, consideravam que as funções e formas de “conservação e

transmissão do conteúdo intelectual da cultura são determinadas pela sociedade”. (LAMAR,

2002, p.36).

Lamar (2002) ainda esclarece que o termo Epistemologia Social pode ser encontrado,

por volta dos anos de 1980, em trabalhos de Steve Fuller. Em sua obra, Fuller destacou o

caráter social do conhecimento, em especial, as relações sociais internas à ciência e as

relações políticas a esta. Diferentemente da Biblioteconomia, seus estudos objetivavam

investigar as influências do social na construção da ciência, ou seja, os estilos de pensamento,

a organização do trabalho, o intercâmbio de idéias, as polêmicas e as rupturas que,

influenciados também pelas estruturas sociais externas à ciência, determinam o entendimento

de como e o quê conhecemos como ciência.

Na pesquisa educacional, têm surgido trabalhos relativos à Epistemologia Social,

muitos deles associados a Thomaz Popkewitz32. Para Popkewitz (2001), a forma como o

indivíduo organiza o mundo, se conhece, age, pensa, se relaciona com o outro e consigo

mesmo é construção social e histórica em permanente movimento. Para o autor, esta

construção pode ser compreendida pela análise da vida moderna e de seus mecanismos de

regulação social. Em seus estudos, tornou visíveis e explícitos esses mecanismos de regulação

social quando, pela análise dos movimentos de reforma e mudança social, apresentou um

estudo histórico do surgimento do Estado moderno, das práticas institucionais, dos

conhecimentos especializados, em especial, das ciências sociais, da psicologia e da moral

religiosa.

Cabe esclarecer que o autor fez sua investigação sobre a reforma educacional nos

Estados Unidos. Por isso, muito do que encontrou não se aplica ao Brasil. Contudo, sua

grande contribuição reside em explicitar como são tecidos socialmente os mecanismos de

controle social e seus dispositivos por meio da relação entre conhecimento e poder. “[...] o

próprio conhecimento que organiza o ensino, a aprendizagem, o manejo das classes e o

currículo imprime uma certa seletividade no que os professores ‘vêem’, pensam, sentem e

conversam sobre as crianças e as matérias escolares.” (POPKEWITZ, 2001, p.13). 32 Professor da Universidade de Winsconsin-Madison, tem dedicado especial atenção ao estudo da epistemologia e da sociologia política do conhecimento que envolve a educação, o currículo, as reformas educacionais, os processos de mudança na educação e a formação de professores. Influenciado pelas contribuições de Michel Foucault, dentre outros, seus trabalhos “dedicam atenção sistemática às relações de

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A fim de apresentar como o conhecimento produzido nas relações sociais funciona

como efeito de poder, Popkewitz explicita:

Grande parte da vida moderna é preparada por sistemas de conhecimento especializados que disciplinam a maneira como pessoas participam e agem. De modo geral, o conhecimento especializado modela o ‘nosso’ pensamento e a ‘nossa’ ação sobre o modo como raciocinamos sobre as coisas do mundo e o outro. Esses pensamentos assumidos como naturais não são naturais; são construídos a partir de sistemas de conhecimento especializado. O poder desse conhecimento especializado está no fato de não apenas ser conhecimento. As idéias funcionam para modelar a maneira como participamos como indivíduos ativos e responsáveis. (POPKEWITZ, 2001, p. 13)

O interesse de investigação de Popkewitz tem sido compreender como os sistemas de

raciocínio e de conhecimento, produzidos nas relações sociais e institucionais, chegam às

escolas. Para o autor, entender como esses sistemas de raciocínio e de conhecimentos chegam

às escolas e nela funcionam constitui importante estratégia para vislumbrar como, por meio

deles, se exerce o poder para qualificar e desqualificar o que se entende por uma boa aula, um

bom professor, um bom aluno, uma participação adequada, etc.

De acordo com Popkewitz (2001), esses sistemas que organizam a escolarização

resultam da confluência dos conhecimentos vindos das diversas áreas e de suas práticas

institucionais. O autor cita áreas como ciências sociais, psicologia, religião, política,

economia, etc. Buscados pela pedagogia, esses conhecimentos são utilizados para pensar sua

própria área e construir alternativas práticas em educação. Por isso, são entendidos como

resultado das diversas práticas institucionais e das relações de saber/poder. Sobre esta

compreensão, Popkewitz afirma:

Minha estratégia de investigação consiste em tornar a razão e a racionalidade objetos de questionamento; isto é, consiste em explorar os sistemas particulares de idéias e regras de raciocínio que estão entranhados nas práticas da escola. Não podemos tomar a razão e a racionalidade como um sistema unificado pelo qual podemos falar sobre o que é verdadeiro e falso, mas como sistemas historicamente contingentes de relações cujos efeitos produzem poder. (POPKEWITZ, 1994, p.185).

Popkewitz (1994; 1997; 2001), em suas investigações sobre a construção, nos séculos

XVIII e XIX, da escola que se conhece hoje, com seus objetivos e sua forma de organização,

apresenta que a mesma foi gestada de acordo com as necessidades e interesses do contexto,

naquele momento, de emergência estatal e do que se pode chamar de modernidade33 e de

conhecimento e poder que estruturam nossas percepções e organizam nossas práticas sociais”. (POPKEWITZ, 1997, p.12). 33 Entende-se modernidade por “Característica daquilo que é moderno. Em um sentido geral, a modernidade se opõe ao classicismo, ao apego aos valores tradicionais, identificando-se com o racionalismo, especialmente

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confiança no uso da razão (racionalidade). Com base neste entendimento, tem colocado sob

suspeita as formas de raciocínio que se tem sobre a escola e sobre seus princípios de

ordenação do tempo, dos espaços, dos conhecimentos, das capacidades, etc. Durante esse

processo, ele reporta a escolarização a espaços cada vez mais contingentes, históricos e

suscetíveis a crítica.

À luz desse movimento, Popkewitz compreende tanto a escolarização como o

currículo e seus sistemas de raciocínio e conhecimento como mecanismo de regulação social.

Vê desta forma porque argumenta que

o currículo (e todo seu conjunto: conteúdos, atividades, estratégias disciplinares, formas de avaliação, etc.) é uma imposição do conhecimento do ‘eu’ e do mundo que propicia ordem e disciplina aos indivíduos. A imposição não é feita através da força bruta, mas através da inscrição de sistemas simbólicos de acordo com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir. (POKEWITZ, 1994, p. 186)

Assim, a fim de investir na compreensão da construção, desenvolvimento e/ou

alteração dos sistemas de raciocínio e conhecimento (razão) que estão presentes na

escolarização e a determinam, Popkewitz vem buscando suporte nas teorias da virada-

lingüística e da pós-modernidade. Com a ajuda dessas teorias, o autor construiu sua proposta

de investigação da escolarização, isto é, construiu sua Epistemologia Social. A importância

da Epistemologia se dá, em última instância, porque a mesma propõe investigar o

conhecimento pedagógico, em especial, como se estabelecem na constituição da escolarização

e do que é permitido ou não como pensamento e ação curricular, as relações entre

conhecimento, poder e práticas sociais e históricas.

Para Popkewitz, a análise mais detida dos sistemas de raciocínio e conhecimento que

circulam nas instituições escolares e compõem o currículo escolar pode lançar um olhar mais

atento para as estratégias e mecanismos normativos e disciplinares presentes nos processos de

escolarização. Para a Epistemologia Social, o currículo não é algo natural, mas invenção de

um determinado tempo/lugar, sempre em movimento, e produto de interesses, escolhas e

relações de poder.

É essa concepção de Popkewitz que faz com que a Epistemologia Social constitua

importante meio/estratégia para análise dos processos de escolarização, de reforma e de

quanto ao espírito crítico, e com as idéias de progresso e renovação, pregando a libertação do indivíduo do obscurantismo (do espírito medieval) e da ignorância através da difusão da ciência, da razão e da cultura em geral. A questão da modernidade [...] envolve questões filosóficas de interpretação da sociedade, da arte e da cultura”. Para Lyotard “a idéia da condição pós-moderna aparece como uma necessidade para superação da modernidade, sobretudo da crença na ciência e na razão emancipadora, considerando que estas são, ao contrário, responsáveis pela continuação da subjugação do indivíduo”. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.185).

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mudança curricular. Sua proposta, tanto teórica quanto metodológica, chama a atenção para a

importância de compreender quais são e como se constituem, coletivamente, na articulação

dos sistemas de raciocínio e do conhecimento, as práticas discursivas e as relações de

saber/poder, os regimes de verdade que orientam o pensamento e ação curricular dos sujeitos

envolvidos na escolarização. Em particular, chama a atenção para quais são os fatores que

influenciam o surgimento, a continuidade e a alteração desses regimes de verdade.

O objetivo de Popkewitz (1997) é apresentar um “método de epistemologia social [...]

para interpretar os modos nos quais a reforma é construída histórica e sociologicamente nas

práticas contemporâneas de escolarização”. (POPKEWITZ, 1997, p.14). Para ele, a

configuração da escolarização, ou a alteração desta, está relacionada com a alteração nas

relações estruturais34, nos sistemas de raciocínio e de conhecimento e, conseqüentemente, nas

práticas35 sociais, históricas e discursivas, todas permeadas por relações de poder.

Popkewitz (1994) complementa que não é mais possível pensar em modelos neutros e

permanentes de racionalidade e em propostas mais adequadas de apresentação e organização

da escolarização, mas sim, em Epistemologias Sociais, em formas de conhecimento e práticas

descontínuas, mutáveis, em permanentes rupturas. A Epistemologia Social visa, mais

especificamente, investigar como os sujeitos que compõem a escolarização, gestores de

políticas educacionais, professores e alunos, pensam sobre suas capacidades, sobre as formas

de se relacionar, sobre as formas de selecionar os conteúdos escolares, sobre os processos

avaliativos, sobre as classificações e sobre as formas de organizar os tempos/ espaços

escolares, etc. e como agem.

A fim de proporcionar maior apreensão e inserção nesse debate, em especial, nos

fundamentos da Epistemologia Social, Popkewitz (1994) acrescenta que sua perspectiva está

de acordo com uma proposta de investigação histórica do conhecimento. Essa proposta pode

ser encontrada tanto em Thomas S. Popkewitz (1994) quanto em Veiga-Neto (1996, 2001a)

por meio do que os mesmos chamam de uma história radical.

A história radical marca oposição ao que Popkewitz chama de historicismo tradicional

ou filosofia da consciência. Para Veiga-Neto (1996), o historicismo que atingiu a humanidade

34 Por estrutura se entende, de acordo com Japiassú e Marcondes (1996), o “Conjunto de elementos que formam um sistema, um todo ordenado de acordo com certos princípios fundamentais. A forma ou modo de ordenação desse sistema, considerado em abstrato. Ex: a estrutura do átomo, a estrutura da língua portuguesa, a estrutura da sociedade. [...] Na teoria da Gestalt, a estrutura é a própria forma de organização de determinados elementos que adquirem sentidos apenas quando fazem parte de um conjunto”. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.92). 35 Por prática se entende da mesma forma que Japiassú e Marcondes (1996), “Que diz respeito à ação. Ação que o homem exerce sobre as coisas, aplicação de um conhecimento em uma ação concreta, efetiva. Ex.: ‘saber prático’. Conhecimento empírico, saber fazer algo. Ex.: ‘prática pedagógica, ‘prática médica’”. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p.218).

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no século XVIII está relacionado com uma filosofia da consciência. Popkewitz (1994) afirma

que essa filosofia persistiu nas ciências sociais pelo menos durante os últimos cem anos e que

pode ser vista como uma invenção do Iluminismo. Seus pressupostos “centram na

investigação dos atores, eventos e mudanças.” (POPKEWITZ, 1994, p.182).

Para a filosofia da consciência, as mudanças, entendidas como sucessivas e

progressivas, graças ao uso da razão, dependem da identificação primeira dos atores e da

ordenação cronológica de eventos. Para esta filosofia, “as interpretações dos atores e eventos

fornecem um mecanismo ‘condutor’ que guia e dirige as ações das pessoas à medida que elas

se esforçam para ser mais eficientes, mais eficazes” (POPKEWITZ, 1994, p.182).

O progresso é assumido como inerente à história e esta, numa epistemologia centrada

fortemente na razão, entra apenas como narrativa que tem o papel de apresentar o passado,

explicar o presente e possibilitar a previsão e o controle do futuro. A linguagem, nessa

filosofia, é vista como veículo de revelação ou de representação do mundo real. “A filosofia

da consciência vê o mundo como constituído de estruturas vinculadas que funcionam em

relação umas às outras numa sucessão”; em que se “[...] concebe a soberania aos atores e à

agência humana nas explicações da mudança naquelas estruturas.” (POPKEWITZ, 1994,

p.180).

Já a história radical, quando propõe a investigação histórica do conhecimento, filia-se

com o que se pode chamar de virada-lingüística. Esta, em síntese, parte do entendimento de

que “os objetos da vida social são discursivamente construídos” (POPKEWITZ, 1994, p.

180). Isto é também encontrado em Veiga-Neto (1996), no que se pode chamar de uma virada

epistemológica. Essa virada epistemológica, também encontrada em Popkewitz por meio do

que ele chama de Epistemologia Social, pode ser considerada um novo entendimento da

epistemologia que, articulada com o pensamento pós-moderno, propõe

[...] incorporar a temporalidade à epistemologia. Isso, em outras palavras, significa tanto tirar a história de uma posição lateral ao conhecimento para fundi-los num único ‘elemento’, quanto trazer o conhecimento para o mundo concreto, social, das relações de forças e interesses. (VEIGA-NETO, 1996, p.50).

A virada epistemológica, ou a Epistemologia Social, quando propõe fundir a história

ao conhecimento, passa a compreender que o mesmo é interpelado e constituído no e pelo

tempo/momento histórico em que se situa. Conseqüentemente, não está imune aos interesses,

ideologias e relações de poder presentes no contexto histórico. (VEIGA-NETO, 1996) Essa

reversão na forma de compreender a construção do conhecimento, jogando-o no tempo, teve

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como conseqüência a crescente suspeita em relação às promessas e discursos que proclamam

propostas de conhecimento verdadeiro, racionais e universalizantes.

A incorporação radical da temporalidade ao conhecimento entende que esse é constituído em todos os sentidos, íntima e necessariamente, no tempo. Nesse caso, o tempo não é compreendido como ‘categoria’ ao longo do qual se desenvolve esse ou aquele conhecimento, essa ou aquela forma de pensar, mas sim como um constitutivo intrínseco de qualquer conhecimento. Uma tal virada epistemológica pode ser vista como uma tentativa de recuperar a conexão entre o espaço e o tempo que [...] a modernidade rompeu e, em alguns casos, rearranjou. (VEIGA-NETO, 1996, p. 50).

Essa forma de compreender a constituição do conhecimento e também dos sujeitos,

não mais como uma a priori, mas como um produto do tempo, permitiu à vertente de análise

historicista, que Popkewitz (1994) denomina de radical, deslocar o foco da análise do sujeito

para “a forma como as idéias são corporificadas na organização do conhecimento escolar”

(POPKEWITZ, 1994, p.183).

Esse deslocamento dos sujeitos não os exclui como agentes de possíveis mudanças,

mas propõe desnaturalizar a dimensão de fundador de uma episteme isenta das influências e

relações de poder/saber do tempo/lugar social em que se situa. A história passa a ser o a

priori, na qual o sujeito é visto como “fundado/constituído numa episteme mais geral [...]

como função da episteme”. (VEIGA-NETO, 1996, p.51).

Abordar o conhecimento como prática material, constitutivo daquilo mesmo que ele

criou, contribuiu para a consolidação da Epistemologia Social. Ao deslocar o foco de análise

dos sujeitos, centrou a curiosidade nas práticas discursivas, consideradas por Popkewitz

(2001, p.14) “práticas sociais”. É a partir deste entendimento que Popkewitz acrescenta as

suas investigações que a análise das práticas discursivas deve ser considerada importante

meio para compreender como, por meio delas, circulam e se constroem, nas práticas

institucionais de escolarização, os sistemas de raciocínios e conhecimentos, ou seja, as formas

de pensar e agir, delimitar e classificar o que se entende por uma boa ou má escola, bom ou

mau aluno, boa ou má aula, etc.

Meu enfoque no ‘fazer’ do professor e da criança deslocou para análise das preocupações anteriores com o que os professores querem dizer quando falam sobre o seu trabalho, para as regras e padrões através dos quais esse significado é construído. [...] A história que conto passou a dizer [...] mais dos discursos do ensino, da infância, da realização e das matérias que andam junto com a educação. [...] Meu interesse teórico é explorar como as práticas discursivas produzem [...]. (POPKEWITZ, 2001, p.11).

Para Veiga-Neto, a Epistemologia Social

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[...] não está tão interessada em investigar os mecanismos pelos quais a escola reproduz os arranjos sociais, mas está interessada em colocar em questão como a escola participa na constituição dessa realidade e como nossos discursos sobre a escola e sobre isso que chamamos de realidade social, ao fim, as constituem [...]. Está no horizonte da epistemologia social uma auto-reflexividade que implica o escrutínio sistemático e a crítica profunda e permanente. (VEIGA-NETO,1996,p.51).

O desafio tem sido desconstruir a tendência natural de atribuir aos discursos e práticas

da escolarização um desenvolvimento livre dos interesses políticos e ideológicos, bem como

da idéia de neutralidade e isenção da participação destas na constituição da realidade. Para

Popkewitz (1994), analisar o currículo na perspectiva da Epistemologia Social é uma tentativa

de inserção crítica nos discursos e significados, histórica e socialmente construídos, os quais

vêm influenciando a organização e o desenvolvimento das práticas curriculares. Em especial,

é analisar como esses discursos são construídos, circulam e produzem efeitos.

É por isso que, para as teorias pós-críticas e para a Epistemologia Social, “faria mais

sentido falar não em teorias do currículo, mas em discursos ou textos” (SILVA, 1999, p.11) a

serem compreendidos em suas condições históricas. A partir desse olhar, de uma perspectiva

do “discurso”, não há uma verdade, um currículo racional, ideal a ser seguido e revelado pela

teoria, mas um ideal de currículo construído na e pela teoria; um ideal que regula e disciplina,

por meio das práticas discursivas, a maneira como os sujeitos envolvidos na escolarização

podem participar, pensar e agir na escolarização.

Embora as teorias tradicionais tenham acreditado que o currículo fosse um processo

inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento, as teorias críticas, pós-

críticas e a Epistemologia Social têm permitido compreender que a seleção dos

conhecimentos e a organização dos tempos/espaços escolares e seus processos constituem

estilos privilegiados de raciocínio e de regulação social ligados à classe social, à raça, ao

gênero, à cultura, etc., e aos interesses e relações de poder que aí circulam.

Assim, os discursos sobre a boa escola, o currículo, os processos de ensino-

aprendizagem, os professores, os alunos e os conhecimentos devem ser vistos como práticas

discursivas, constitutivas de significados convenientes a projetos políticos, sociais e culturais

hegemônicos que, colocando em funcionamento políticas de governo, produzem

normalizações, ou seja, normas e regras de classificação dos sujeitos e das formas de pensar e

agir na escolarização.

Longe de propor um modelo único de análise dos movimentos de reforma e mudança

curricular, Popkewitz (1997) vem propondo investigar as condições históricas, as práticas

institucionais e as epistemologias sociais que envolvem a construção dos currículos. Propõe,

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mais especificamente, investigar a historicização da escolarização e de seus conhecimentos a

fim de compreender, em seu desenvolvimento, como se articulam sistemas de raciocínio,

conhecimentos, práticas discursivas, relações de poder e mudanças ao longo do tempo.

A partir das idéias de Popkewitz (1994), aumentam as suspeitas no que se refere às

promessas e discursos que proclamam propostas de conhecimentos verdadeiros, racionais e

universalizantes. Para Popkewitz (1994), o homem não só produz conhecimento, pois, ao

mesmo tempo em que produz, é produto desses sistemas de conhecimentos (regimes de

verdade) que organizam as formas de ver, pensar e agir no mundo. Por isso, a compreensão do

conhecimento como construção social aponta para a investigação das condições históricas

dentro das quais essas normas e regras, tidas como práticas sociais, se constituem e

configuram como naturais e não como resultado das práticas discursivas e das relações de

poder.

A partir desses exemplos de historicização do conhecimento escolar, podemos construir um mapeamento social das mudanças epistemológicas nas práticas da escolarização. Fazemos isso a fim de compreender as regras e padrões anteriores pelos quais (e as condições nas quais) a verdade sobre o ensino e as crianças no processo de escolarização é dita e como essas regras mudam ao longo do tempo. A preocupação histórica descentra os atores particulares a fim de interpretar como as práticas sociais e as subjetividades são construídas. (POPKEWITZ, 1994, p.202).

A investigação da historicização do conhecimento escolar é vista como uma forma de

compreender criticamente como “as práticas discursivas da pedagogia constroem o sujeito e

geram os princípios da ação e da participação”. (POPKEWITZ, 2001, p.143).

O currículo torna-se, a partir desse ponto de vista, parte de um espaço discursivo no qual os sujeitos do ensino (o professor e a criança) são diferencialmente construídos como indivíduos para se auto-regularem, auto-disciplinarem e refletirem sobre si mesmo como membros de uma comunidade/sociedade. (POPKEWITZ, 2001, p.38).

Nessa direção, o currículo assume a dimensão, para Popkewitz (1994), de uma forma

de construção política do espaço, da organização dos conhecimentos, da forma de conceber as

crianças, a pedagogia e os professores. O currículo, como instrumento de regulação social,

não deixa de ser a produção de uma ordem moral que inclui e exclui o que não considera

normal ou razoável como pensamento e ação, seja de professores, seja de alunos.

Vejo o currículo como um conhecimento particular, historicamente formado, sobre o modo como as crianças tornam o mundo inteligível. Como tal, esforços para organizar o conhecimento escolar como o currículo constituem formas de regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de raciocínio. Aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação – a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e ‘ver’ o mundo e o ‘eu’. (POPKEWITZ, 1994, p.174).

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Nesse sentido, o autor incita a pensar que as propostas de investigação do currículo

devem considerá-lo como produto e problema de seu tempo histórico. As análises devem

levar em consideração que a forma de organização escolar, as finalidades, as necessidades, as

seleções dos conhecimentos que entram no currículo, suas regras de funcionamento e o que

conta como verdade são efeitos de poder, não construções naturais independentes dos

interesses sociais, políticos, econômicos e culturais do contexto social.

Assim, “olhar” o currículo a partir da Epistemologia Social compreende a análise dos

discursos dos sujeitos/atores, identificando significados de o que e como eles são construídos,

fruto de processos sócio-histórico-culturais. Para Popkewitz (2001), a investigação das

práticas discursivas é meio para compreender a construção e a circulação dos sistemas de

raciocínio e conhecimento e suas implicações com o poder: poder de imprimir nos professores

e alunos formas de ver, pensar, sentir e agir na escolarização. “Argumento que a

epistemologia social é uma prática tanto conceitual quanto política”, afirma Popkewitz (1994,

p.206).

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3 A EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO DE BLUMENAU/SC E A ESCOLA CAMPO DE PESQUISA: DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS E PERSPECTIVAS CURRICULARES

A história da educação institucionalizada mostra que o objetivo de produzir (novos) cidadãos acabou sempre implicado em novas e, talvez, mais sutis formas de regulação e padrões de controle e governo. (POPKEWITZ, apud, SILVA, 1996, p. 95).

Neste terceiro capítulo, inicialmente se faz uma incursão pela história da educação do

município de Blumenau para compreender, nesse percurso, como se caracterizou sua

construção curricular ao longo do tempo e quais sistemas de raciocínio e de conhecimento

(principais idéias) orientaram esse processo. Faz-se, também, na continuidade, uma incursão

pela escola campo de pesquisa e seu Projeto Político-Pedagógico.

Partindo do entendimento de que os objetos e suas problemáticas são social e

discursivamente construídos em função das seleções que fazem, dos eventos que detalham e

dos atores e documentos que ouvem, esta pesquisa entende que a construção deste capítulo

tem seus limites. Por isso, não se pretende que seja conclusivo nem portador de uma verdade.

Pretende-se, sim, constituir um possível entendimento da política educacional e curricular do

município de Blumenau e da escola investigada.

Consoante com um estudo de caso, objetiva-se, neste capítulo, intensificar a dimensão

particular e detalhada do município e da escola investigada visando, mais especificamente,

compreender a multiplicidade de situações que permeiam o cotidiano das práticas docentes e

dos significados que os (as) professores (as) atribuem ao currículo. Em outras palavras, se

visa compreender que fatores e relações de ordem histórica, política, social, cultural e

econômica vêm influenciando os significados que os (as) professores (as) têm construído

sobre o currículo e suas práticas.

Para Popkewitz (2004), a maneira como determinados sistemas de idéias e de

conhecimentos, entranhados nas organizações pedagógicas, chegam como disposições

naturais está relacionada com

[...] o esvaziamento da história, assim, são consideradas e tratadas como sendo universais e apropriadas para todos. Entretanto, as idéias que circulam como sendo globais a respeito da criança, da reforma escolar e do ensino, não são globais no sentido de estarem livres de valores particularistas e princípios sociais. O esvaziamento da história, no conhecimento da pedagogia e da infância em discursos da reforma, produz uma memória que funciona para normalizar e produzir sistemas de inclusão e exclusão quando essas idéias universais são devolvidas para certos locais como princípios de ação e participação. A falta de historicidade, relacionada com a construção da ‘razão’ em políticas educacionais e na pesquisa educacional,

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também é sua ironia. A construção da memória e do esquecimento pressupõe continuamente que as políticas e pesquisas sejam guiadas por propósitos normativos, sem refletir sobre como essas construções normativas de propósito e satisfação representam os efeitos do poder. (POPKEWITZ, 2004, p.122).

Embora este trabalho não proponha interrogar o passado, ele está de acordo com uma

perspectiva de análise que considera a incursão pelo mesmo como necessária para

problematizar as formas específicas de raciocínio de um determinado tempo histórico, tidas

como naturais e não, como construções sociais. Na maioria das vezes, a literatura educacional

apresenta soluções para a educação como formas de salvação para os indivíduos e como meio

de conversão e solução de todos os problemas. Essas promessas devem ser constantemente

interrogadas como práticas de governo e efeitos de poder que produzem sempre inclusões e

exclusões, métodos disciplinados e normatizações para o pensar e o agir na educação.

Entendemos que a breve incursão pela história da educação de Blumenau e de suas

propostas pedagógicas, possibilita compreender e problematizar seus discursos, seus regimes

de verdade, suas formas de inscrever sujeitos capacitados, sua lógica de desenvolvimento

curricular, seus interesses, seus conhecimentos especializados e suas relações de poder. Deste

lugar, objetiva-se “colher pistas” que possibilitem compreender a construção dos discursos

docentes e seus regimes de verdade no que diz respeito ao currículo, à escola e seus objetivos,

aos alunos e a sua própria construção profissional.

3.1 A Construção Educacional e Curricular do Município de Blumenau - SC

Em 1850, chegaram à região que logo seria chamada de Blumenau os primeiros

imigrantes alemães, denominados teuto-brasileiros. A imigração se deu como resultado da lei

assinada por D. João VI, que foi quem iniciou o processo de abertura e concessão de terras a

pessoas de outras nacionalidades que se dedicassem à atividade agrícola e ao povoamento.

A colonização de Blumenau, liderada por Hermann Blumenau, floresceu às margens

do rio Itajaí-Açu e foi resultado, de acordo com Mailer (2003), do pensamento da elite

brasileira, de políticos e de intelectuais do governo que consideravam os alemães um povo

ideal para ocupar as terras brasileiras e produzir nas pequenas propriedades.

Além disso, Fiori (1984) argumenta que os rumos da expansão das correntes

imigratórias, nos séculos XIX e XX, estão relacionados com a afirmação do capitalismo

europeu e, na sociedade brasileira, às transformações que estavam ocorrendo no modelo de

trabalho, em especial, à substituição do trabalho escravo pelo livre. Para o governo brasileiro,

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os trabalhadores dessas terras eram ineficientes para o trabalho agrícola, o que resultou na sua

exclusão dos projetos de assentamento.

Ao chegarem ao Brasil, os alemães se viram frente a um governo que não os podia

apoiar financeiramente. Mailer (2003, p.17) argumenta que a deficiência dos projetos de

colonização e “a omissão do governo brasileiro para com a garantia de direitos básicos como

educação, saúde e religião” levaram o povo teuto-brasileiro à construção de instituições

comunitárias, como associações culturais e recreativas, igreja36, escolas comunitárias sem fins

lucrativos e escolas particulares católicas e evangélicas.

Então, no ano de 1863, surgiram as primeiras escolas na colônia de Blumenau – as

Schulgemeinde. Esses estabelecimentos eram destinados ao ensino elementar e, segundo

Mailer (2003), seu currículo enfatizava a cultura e a história alemãs e eram elaborados por

associações escolares que recebiam orientação da Alemanha.

Como sentiam o isolamento em que se achavam os núcleos coloniais com relação à sociedade mais ampla, os colonos alemães tinham necessidade de estabelecer um mínimo de integração, mesmo que fosse apenas ao nível local. [...], a educação integrava-os numa comunidade germânica, mas contribuía para isolá-los ainda mais da vida da Província e da Nação. A escola criada e mantida pelos colonos visava atender às necessidades internas da comunidade. O professor era membro da mesma, e sua tarefa não se restringia à atividade docente. Tinha a seu cargo a direção do coro, nas sessões religiosas, assim como a organização de atividades festivas e recreativas da colônia. Chegava muitas vezes a exercer as funções de conselheiro, médico e juiz dos colonos. (RISTOW, 1999, p.39).

De acordo com Ristow (1999), no ano de 1917, havia, em Blumenau, 10 escolas

públicas e 113 particulares. Além disso, depois de 1900, os descendentes de imigrantes

passaram a considerar necessária a formação para os (as) professores (as) de suas escolas, o

que, até então, não era uma preocupação.

O grande número de escolas particulares em Blumenau – mais de cem – levou à fundação, em abril de 1900, da ‘Associação das Escolas e Professores de Blumenau’ (Lehrer-und Schulverein der Kolonie Blumenau), que objetivava a unificação das normas de ensino e a orientação pedagógica aos professores, bem como a facilitação na compra de material escolar e a assistência aos professores doentes e idosos. Em 1904, ampliou-se para todo o estado transformando-se na ‘Sociedade das Escolas Alemãs para Santa Catarina’ (Deutscher Schulverein für Santa Catarina). (MAILER, 2003, p.39, grifo do autor).

Quanto ao financiamento, uma parte das escolas particulares era beneficiada com

subvenções municipais. Outras, em especial as escolas rurais maiores, solicitavam auxílio de

36 De acordo com Mailer (2003), cerca de 98% dos imigrantes que chegaram a Blumenau eram luteranos. Entende-se aqui por luteranos aqueles que compartilhavam sua fé “ [...] na igreja evangélica, aquela fundada por Lutero na Alemanha por ocasião da Reforma Protestante (1517). No Brasil ela recebe o nome de Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil”. (MAILER, 2003, p. 23)

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associações filantrópicas, ordens religiosas ou de instituições culturais alemãs. Essas ajudas

contribuíam para aquisição de material, construção dos prédios escolares, suplemento salarial

e formação de professores (as).

As considerações feitas até o momento permitem dizer que o início da educação em

Blumenau esteve relacionada com o interesse do povo que aqui se instalou. De acordo com

Mailer (2003), “na segunda metade do século XIX a escola pública já era obrigatória em

vários estados alemães”. (MAILER, 2003, p.17). Isso foi uma conseqüência das

transformações, tanto sociais quanto políticas e econômicas, pelas quais passava a Europa

desde o século XVI.

A burguesia, em ascensão, passou a reivindicar a superação do modelo de educação

dogmática, objetivando uma educação que lhes desse condições de dominar a natureza. Dessa

forma, as antigas escolas monásticas do período medieval37 foram sendo gradativamente

substituídas, não sem conflitos38, pelas escolas que permitissem uma instrução democrática,

calcada em modelos populares e modernos, que possibilitassem ao homem lidar com os novos

modos de produção.

Como já citado, o gérmen da instrução pública esteve relacionado com o

distanciamento da igreja do gerenciamento do ensino. De acordo com Alves (2001), desde o

século XVI, em toda a Europa, houve um crescente interesse pela elaboração de propostas

educativas que, de acordo com a divisão do trabalho que ocorria na economia, possibilitassem

a objetivação e a simplificação do trabalho pedagógico39 e a adequação deste aos interesses

37 Período medieval, ou Idade das Trevas, prolongou-se do século V ao Século XV. Esse período ficou conhecido como de uma nova era na história, marcada pelo enfraquecimento do Império e pelo surgimento e desenvolvimento do cristianismo e de seus dogmas como força social, política e econômica. A igreja católica e o Papa, ganharam hegemonia e se estabeleceu aí a ligação entre Estado e igreja, sendo que a igreja passou a legitimar o poder do Estado, atribuindo-lhe uma origem divina. Começa aí uma longa aliança entre fé e razão que se estende por toda Idade Média em que a razão é considerada auxiliar da fé e a ela subordinada. O Império passa a dividir sua força com diversos reinos bárbaros e mais tarde com a nova ordem feudal. “Neste contexto de extrema fragmentação política e descentralização do poder, a igreja exerce enorme influência, na medida em que mantém o monopólio do saber”. (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 199). 38 Surgiu, nesse período, a defesa por dois modelos de educação. Uma, a já instalada, lutava por seu propósito de salvação das almas por meio do restabelecimento da disciplina e do ensino do cristianismo. Outra “briga” por seu propósito de domínio das ciências, letras e instrumentos de produção. O homem, em seu descolamento dos dogmas da igreja, se descobre como indivíduo capaz de, pelo conhecimento e uso da razão, transformar a realidade segundo seus interesses. 39 Um bom exemplo disso é Comenius. De acordo com Alves (2001), o educador Morávio, que viveu de 1592 a 1657, é considerado importante educador e pedagogista do século XVII. Pressupunha uma organização para a atividade do ensino que, a exemplo da ordem vigente de divisão do trabalho, pautava-se na divisão do trabalho pedagógico segundo um plano prévio e intencional. Para ele, se esse plano fosse desenvolvido com rigorosidade controlada, poderia produzir resultados com economia de tempo, de fadiga e de recursos. O barateamento dos serviços escolares só poderia decorrer, em grande medida, da simplificação e da objetivação do trabalho didático. Assim, escreveu o que ficou conhecido como “Didática Magna”. Sua proposta previa que a arte de ensinar, se contasse como uma habilidosa repartição do tempo, das matérias e do método, poderia ensinar tudo à juventude escolar. Por isso, é considerado o “pai da didática”, e sua proposta é considerada um tratado completo

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econômicos, sociais e políticos daquele momento. Entrou em cena o interesse por uma escola

leiga, gratuita e para todos.

Segundo Almeida (2005), a educação moderna e todo seu sistema de raciocínios e de

conhecimentos foram influenciados por educadores como João Amós Comênio (1592-657),

Jean Jacques Rousseau (1712-1772), Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), na Alemanha,

Friedrich Fröebel (1782 – 1852), entre outros. Todos eles tinham em comum a defesa pela

universalização dos conteúdos da instrução, a elaboração e a aplicação de propostas e

metodologias de caráter moderno e científico, didática revolucionária, articulação da

instrução com o trabalho e a vida na sociedade e reflexões sobre as particularidades da

infância e possibilidades de intervenção sobre a mesma.

Por todo o conjunto de fatores apresentado, a ocupação na colônia de Blumenau não

foi tranqüila, ou seja, foi marcada por diversos conflitos de ordem étnica, política, religiosa e

cultural. No Brasil, não havia o interesse na construção e consolidação de um sistema de

educação pública. O interesse do governo de Portugal era a ocupação das terras e a ampliação

da atividade agrícola. A Europa do século XIX estava mergulhada na crescente ampliação da

industrialização, constituição dos estados-nação e ideais de progresso; o Brasil, no modelo

agroexportador-latifundiário e Imperial. Por isso, para decepção dos que aqui chegaram, não

foi oferecida escola nem um sistema educacional e formação para os (as) professores (as).

Ristow (1999) argumenta que a designação escola alemã representava, em Blumenau,

uma multiplicidade de escolas, tanto na forma como na função. Os dados não apontam se todo

o ensino era ministrado na língua alemã ou se só algumas matérias. O que se pode dizer é que

havia escolas que ensinavam todas as matérias em alemão, muitas orientadas pelos próprios

pais que as construíam comunitariamente em suas comunidades.

Para manutenção de sua cultura e como espaço de encontro e vivência dessa cultura,

foi construído em Blumenau um modelo de educação comunitária de acordo com os interesses

das comunidades que aqui viviam. Contudo, a partir do século XX, essa realidade foi

radicalmente modificada. A educação, como também espaço de controle estatal, acabou

claramente articulada aos mandos e desmandos econômicos, sociais e políticos.

As campanhas de nacionalização e as grandes guerras marcaram o início de conflitos e

resistência em relação à cultura alemã no Brasil. No início do século XX, desencadearam-se

sobre o ensinar e o aprender. Nesse processo, propõe uma inovação ao manuais didáticos. Para ele, os manuais didáticos seriam um recurso interessante para a síntese dos conhecimentos humanos de forma adequada ao desenvolvimento e assimilação das crianças e jovens. Contudo, é importante lembrar que sua proposta de ensino, além dos conhecimentos científicos, previa o ensino rigoroso da moral cristã, base que permeou toda sua obra.

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“medidas de retaliação política e econômica contra o município de Blumenau” (MAILER,

2003, p.39) e o povo alemão.

Foi o governo de Vidal Ramos (1910-1914) que iniciou o processo de nacionalização

do ensino em Santa Catarina, sob a coordenação do professor paulista Orestes Guimarães. A

proposta de Orestes Guimarães (1911) pautou-se no aumento de escolas públicas isoladas a

fim de resguardar o atendimento para um número cada vez maior de imigrantes, na imposição

do ensino em português nas escolas particulares de imigrantes e na pedagogia do ensinar a

fazer.

O jornal de Santa Catarina em um encarte especial (JORNAL DE SANTA

CATARINA, 1997, p.3) apresenta que

No primeiro semestre de 1911, Vidal Ramos planta uma revolução no sistema de ensino público estadual. À frente de todo o processo, Orestes Guimarães remodela a Educação do Estado com a reforma, primeiro, da escola normal de Florianópolis, destinada a preparar professores [...]. Para ensinar como se ensina, a escola normal aplica especial atenção às disciplinas formadoras de um profissional do magistério: pedagogia, psicologia, desenho, ginástica, música, com abundância de cantos e hinos e trabalhos manuais. [...] A decisão parece evidente: para ser professor normalista em Santa Catarina, é preciso aprender como se ensina e aprender como se faz.

Para a época, a nova filosofia aplicada às escolas era considerada uma revolução. De

acordo com Luzuriaga (2001), a pedagogia do ensinar a fazer esteve relacionada com o

surgimento das pedagogias reformadoras da contemporaneidade. Para ele, em alguns países

da Europa e da América (Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos e outros) aconteceram

tentativas de construção e aplicação de novas idéias, que podem ser englobadas sob a

denominação Escola Nova ou Escola Ativa. “Por educação nova entendemos a corrente que

trata de mudar o rumo da educação tradicional, intelectualista e livresca, dando-lhe sentido

vivo e ativo”. (LUZURIAGA, 2001, p.228).

Com a Reforma de Orestes, a escola primária do Estado passou a ser chamada Grupo

Escolar ou Escola Isolada. Foram criados sete grupos escolares divididos entre as cidades

mais populosas do estado. As escolas ofereciam as três primeiras séries em uma única sala e

com um (a) único (a) professor (a). As novas escolas tinham uma divisão do trabalho muito

semelhante à seriação do ensino.

Em 1913, as escolas já estavam em funcionamento, em prédios construídos para esse

fim. O sistema de raciocínio e os conhecimentos que pautaram a nova proposta de educação

era a filosofia do ensinar a fazer que previa

[...] a curiosidade do aluno e não a autoridade do professor; a convivência com exercícios práticos adequados à idade do aprendiz e não, apenas, o conhecimento, ou

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as metodologias do mestre; a compreensão, e não a memorização. Substitui-se o aluno que repete, pela criança que faz. E é defendida a idéia de que é mais fácil compreender e executar quando se vê do que quando, apenas, se lê. [...] a reforma Orestes Guimarães vai alimentar a instrução pública de Santa Catarina ao longo de duas gerações. (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1997, p. 3)

Contudo, a dificuldade para encontrar professores (as) com competência lingüística

para o ensino de português nas zonas de imigração levou Orestes Guimarães a considerar o

ensino bilingüe. Às novas escolas públicas ficou resguardada a contratação de professores (as)

que dominassem a língua vernácula40. Esse fato, no caso de Blumenau, tornou o ensino

dificultoso devido à não-aprendizagem de muitas crianças da língua portuguesa, o que gerou

uma enorme desconfiança dos pais em relação à rede pública de ensino.

Mailer (2003) acrescenta que, em novembro de 1917, devido à guerra, todas as 113

escolas particulares fundadas pelos colonos foram fechadas. Como o número de escolas

públicas era demasiado insuficiente, muitas crianças teuto-brasileiras ficaram sem escolas. A

associação de professores e a imprensa também interromperam suas atividades. As escolas

somente reabriram com a autorização do governo, que passou a construir medidas legais para

promover o ensino em português nas escolas particulares. Até 1925, já havia reaberto 109

escolas e, em 1939, esse número havia se elevado a 173.

Mesmo diante dos obstáculos, as escolas particulares continuaram, nesse período, a

representar a maior parcela da educação do município, sendo que

Os governos estadual e federal passaram a subvencionar as escolas particulares que ensinassem em português e depois de algum tempo muitas delas foram transformadas em escolas públicas com um acordo firmado entre município e sociedades escolares. (MAILER, 2003, p.41).

Em síntese, de 1910 até 1930, ocorreu o que se pode chamar de primeira tentativa de

organização de uma política educacional em Santa Catarina, a qual Blumenau estava

subordinada. No contexto nacional, o Brasil passava, do final do século XIX até 1930, do

Império à Primeira República. A substituição do Império pelo regime Republicano esteve

relacionada com as profundas transformações pelas quais a sociedade brasileira passava. A

expansão da lavoura cafeeira, remodelação material do país (redes telegráficas, instalações

portuárias, ferrovias, urbanização), crescimento industrial, fim do regime de escravidão e

adoção do trabalho assalariado previam a condução do país à modernização e ao progresso.

Segundo Ghiraldelli Jr. (1992), após a Primeira Guerra Mundial, o Brasil ampliou suas

relações comerciais e financeiras. Tradicionalmente cliente dos bancos ingleses, passou a dar

preferência aos relacionamentos norte-americanos. Assim, juntamente com as mudanças

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econômicas, vieram as transformações culturais, inclusive nos campos educacional e

pedagógico. E foi por essa via que chegaram ao Brasil os sistemas de raciocínio e

conhecimento da Escola Nova, tanto influenciando a já citada Reforma Orestes, como tantas

outras que ocorreram em vários estados brasileiros, levadas adiante por jovens intelectuais no

início do século.

O movimento da escola nova enfatizou os ‘métodos ativos’ de ensino-aprendizagem, deu importância substancial à liberdade da criança e ao interesse do educando, adotou métodos de trabalho em grupo e incentivou a prática de trabalhos manuais nas escolas; além disso, valorizou os estudos de psicologia experimental e, finalmente, procurou colocar a criança ( e não mais o professor) no centro do processo educacional. (GHIRALDELLI Jr., 1992, p. 26)

Acrescenta-se que, no caso de Blumenau, havia um número considerável de crianças

atendidas pelas escolas particulares. Contudo, essas escolas só se mantiveram porque

aceitaram os preceitos do novo governo nacionalista e de sua perspectiva educacional. Ao

mesmo tempo em que a política educativa do Estado previa o incentivo aos movimentos

renovadores, sua ação no que se refere à educação apontou para dois interesses principais:

criar mecanismos para a condução das políticas educacionais de acordo com os interesses

políticos e econômicos do contexto maior e disseminar teorias que visassem à construção de

normas e padrões de pensamento e ação para os (as) professores (as).

A campanha de nacionalização organizada por Orestes Guimarães não alcançou êxito

devido às condições colocadas: falta de financiamento para a abertura, manutenção das

escolas e formação dos (as) professores (as). Assim, foi lançada a segunda campanha de

nacionalização do ensino. Então, conforme Mailer (2003, p.43), criou-se a chamada Liga Pró-

Língua Nacional, que tinha como objetivo promover nos alunos o interesse pela defesa e

difusão dos valores nacionais.

A partir de 1931, as escolas particulares do Estado de Santa Catarina passaram a ser

regidas pelo Decreto nº 58, de 28 de janeiro de 1931 (RISTOW, 1999). Esse decreto,

considerado por Ristow funcionamento liberal das escolas particulares, antes do Estado Novo,

trazia em seu Art. 2º que as escolas primárias estrangeiras e licenciadas continuariam a

funcionar se mantivessem um (a) professor (a) habilitado (a) para o ensino, na língua

vernácula, das matérias de português, geografia do Brasil, corografia do Estado, história

pátria, educação moral, educação cívica e cantos pátrios.

O Decreto nº 58, que vigorou até 1937, quando da instituição do Estado Novo,

determinava, ainda, que o programa de ensino das disciplinas deveria seguir o das escolas

40 Referente ao idioma próprio de um país.

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oficiais do Estado e que o diretor deveria falar corretamente a língua vernácula. (RISTOW,

1999).

Ristow (1999, p.45) lembra que “em seguida à instituição do Estado Novo, o Doutor

Nereu Ramos foi nomeado Interventor Federal do Estado de Santa Catarina, cargo em que

permaneceu até 1945”. O cargo na Secretaria do Interior e Justiça, depois denominada

Secretaria da Justiça, Educação e Saúde, foi ocupado pelo Dr. Ivo D’Áquino que, já no início

de seu mandato, promulgou o Decreto-Lei nº 88, que estabeleceu normas para o ensino

primário em escolas particulares do Estado de Santa Catarina, visando uniformizar o ensino

privado de acordo com as necessidades e orientação social e política do Estado Novo.

A orientação principal do Decreto-Lei nº. 88 foi a “verticalização” da nacionalização

do ensino. Ristow (1999), em estudo a respeito da justificativa para tal decreto, encontrou

uma publicação da época. Essa publicação do Dr. Ivo d’Aquino, intitulada Nacionalização do

Ensino – Aspectos Políticos, ponderava que a nacionalização do ensino se constituía

necessária frente à política atual do mundo.

Ivo D’Áquino, na referida publicação, citando autores como John Dewey e Fernando

de Azevedo, ressaltava a importância do Estado na organização de políticas educacionais

visando à prática de novas idéias em favor da democracia. Complementava, ainda, que era

inevitável a criação de escolas públicas para a formação dos cidadãos. Para ele, os sujeitos

nascidos no Brasil deveriam ser ensinados e educados como cidadãos brasileiros e, como

brasileiros, a falar e a sentir.

Assim, o Decreto-Lei nº. 88 levou a efeito a nacionalização do ensino primário no

Estado e acirrou ainda mais meios para regulação desta medida. A mesma previa o ensino

totalmente em português e a defesa do civismo nacional. A educação era considerada

instrumento para continuidade da pátria e de seus preceitos cívicos e morais. Também era

considerado dever do Estado tutelar a educação da infância e da juventude brasileiras,

afirmando o culto às tradições, à língua, aos costumes, às instituições nacionais e à inserção

nos diretos e deveres do cidadão brasileiro.

Além disso, o Decreto-Lei regulamentava que as instituições de ensino primário só

poderiam funcionar com licença do Estado e que deveriam adotar livros aprovados

oficialmente; usar exclusivamente a língua nacional para a escrita; ensaiar hinos nacionais e

homenagear a bandeira; organizar comemorações cívicas; organizar uma biblioteca de obras

nacionais; colocar a bandeira em local de destaque; e ensinar a língua nacional, história da

civilização e do Brasil, geografia e educação moral e cívica. Além disso, só poderiam

permanecer abertos os estabelecimentos que comprovassem a sua manutenção com a

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contribuição ou auxílio dos alunos e os estabelecimentos que respeitassem e cumprissem a

fiscalização e a intervenções do inspetor estadual.

O que se pode dizer é que esse período foi marcado por movimentos de centralização e

formalismo. Houve uma multiplicação de leis e regulamentos, dando à educação um caráter

de fiscalização e regulamentação. Fiori (1975) lembra que houve o estabelecimento de

minuciosos padrões de planejamento e execução escolar. As reuniões pedagógicas deveriam

tratar de temas sugeridos pelo Departamento de Educação, e os planos de aula deveriam ser

tão bem elaborados a ponto de prever, inclusive, as perguntas e as respostas dos alunos.

Na educação de Santa Catarina, o processo de nacionalização, utilizando como

justificativa preceitos democráticos e reformas, quando analisado em seus objetivos e ações,

revelou o crescente investimento no controle das práticas escolares e docentes. Esse processo

foi assumindo, cada vez mais, um caráter de distanciamento dos (as) professores (as) das

discussões políticas e teóricas visando à aplicação prática. Ao Estado e a todo seu aparato

educacional caberia a condução das diretrizes educacionais e aos professores, a execução

prática.

Em 1944, sob a coordenação do Dr. Nereu Ramos, entrou em vigor o Decreto-Lei nº

2.991, que deixou explícito que a política educacional do Estado e os currículos deveriam se

adequar, imediatamente, aos preceitos da Escola Nova. Fiori (1975, p.152) argumenta que “a

chamada escola nova afastava o tradicional ensino baseado na memorização dos alunos;

apelava para a participação ativa e o desenvolvimento do pensamento reflexivo e criador dos

discentes”.

Contudo, esse Decreto-Lei que previa oficialmente a renovação pedagógica acabou se

constituindo, novamente, num dispositivo de cunho centralizador e autoritário. Como

conseqüência, a renovação não passou de lei. Para Fiori (1975), essa decisão esteve

relacionada com o interesse do Estado em adequar suas medidas educacionais às instituições

federais. Na época, o governo federal, por meio do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

(INEP) do Ministério da Educação divulgava apoio a idéias pedagógicas renovadas.

Em 1946, Elpídio Barbosa, então diretor do Departamento de Educação, dirigiu nova

reestruturação do ensino em Santa Catarina. Essa reestruturação ficou conhecida como

Reforma Elpídio Barbosa. A reforma tomou diretrizes bastante semelhantes às da reforma

implantada no governo de Vidal Ramos, sob a coordenação de Orestes Guimarães em 1911.

Além disso, no mesmo ano, o governo federal dispôs de decretos que objetivava

tornar, em âmbito nacional, Lei Orgânica do Ensino Primário e Ensino Normal. O Estado de

Santa Catarina, acelerando seu cumprimento, estabeleceu uma reforma de ensino nos moldes

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do que previam essas leis. Então, a base da reforma foi a adaptação do sistema de ensino

estadual às leis federais (Reforma Capanema) e, também, uma retomada das “longínquas

raízes históricas da reforma adotada em 1911” por Orestes Guimarães. (FIORI, 1975, p.179).

Outra medida de Elpídio Barbosa foi a ampliação, em todo o Estado, da oferta de

cursos normais. Tal preocupação estava relacionada com a quase falta de professores (as) com

qualificação profissional. Além disso, a industrialização e a crescente urbanização

reclamavam por mão-de-obra técnica, o que levou o governo a pensar estratégias para o

aumento da qualificação docente de acordo com um ensino de enfoque profissionalizante às

classes menos favorecidas.

A reforma de Elpídio Barbosa resultou o Decreto Estadual nº. 298 de 1946. Esse

Decreto era destinado ao Ensino Primário Fundamental e ao Ensino Primário Supletivo.

Previa que o ensino primário deveria se organizar em curso elementar com duração de quatro

anos e curso complementar com duração de um ano. No total, representava 5 anos de curso

para crianças de 7 a 12 anos. O curso supletivo era destinado aos maiores de treze anos.

O referido decreto era destinado tanto ao ensino público de Santa Catarina como ao

particular. Conforme Fiori (1975), esse decreto apontava o interesse de controle do governo

no que tange a metodologias e processos, uniformização dos grupos escolares com auxílio do

diretor escolar, abolição do ensino pela “decoreba”, desenvolvimento de uma proposta de

ensino e conteúdo que vislumbrasse a vida prática, o meio social imediato e o grupo social a

que pertenciam os educandos.

Mesmo de caráter centralizador, o Decreto Estadual nº. 298 buscou subsídios nas

propostas pedagógicas da Escola Nova. Tomava como base para o desenvolvimento dos

conhecimentos a observação e a experiência pessoal do aluno, atividades que estimulassem

trabalho de cooperação, atividade manual, jogos educativos, excursões escolares, atividades

extra classe. Ainda de acordo com esse decreto, os manuais escolares deveriam servir apenas

como instrumentos auxiliares, cedendo gradativamente aos exercícios que desenvolvessem o

poder de criação, investigação e crítica do aluno.

A proposta de reforma trazida pelo Decreto nº. 298 também apresentou um grande

enfoque no serviço de Inspeção Escolar. O inspetor era responsável por fiscalizar desde a

apresentação dos prédios escolares, materiais pedagógicos, documentos, planos de aula,

aplicação das provas e cadernos dos alunos até a organização dos tempos/espaços escolares.

Aos inspetores cabia desde o que concerne à técnica até a eficiência do ensino. Contudo, Fiori

(1975) esclarece que não era oferecido aos inspetores um quadro de referência ou

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delineamento dos objetivos do ensino em termos operacionais, ficando a cargo dos mesmos,

conforme sua compreensão, a fiscalização dos estabelecimentos de ensino.

Em um panorama geral, a política educacional de Santa Catarina, mesmo diante de

consecutivas tentativas de inovação curricular nos moldes da Escola Nova, até os anos 70, se

caracterizou como de formalismo intelectualista, rígido centralismo administrativo e expansão

quantitativa do ensino, com escasso indicativo de avanço qualitativo.

O caráter centralizador do ensino foi cedendo lugar à descentralização dos serviços de

inspeção escolar. Segundo Fiori (1975), em 1970, entrou em vigor o Plano Estadual de

Educação que introduziu uma nova estrutura escolar e reorganizou a Secretaria de Educação e

Cultura. Esta passou a se chamar Secretaria da Educação, e surgiram 12 Coordenadorias

Regionais da Educação aos cuidados de Coordenadores Regionais, subordinadas ao Secretário

da Educação.

Os chamados Grupos Escolares transformaram-se em Escolas Básicas, nas quais se

passou a ministrar educação fundamental. O tempo de cinco anos foi ampliado para 8 anos de

escolaridade continuada, obrigatória e gratuita. A avaliação passou a ser realizada em função

do que ficou conhecido como avanço progressivo 41, houve reformulação dos currículos, dos

programas e das formas de treinamento de pessoal, foram criados novos cargos e novas

formas de controle do ensino, agora regionais, e ocorreu o aumento do financiamento à

educação.

Para que melhor se compreenda a situação vivenciada em Santa Catarina na época,

buscou-se apoio em Popkewitz (1997), especificamente na leitura política que o autor faz do

movimento progressista ou da Escola Nova nos Estados Unidos:

Chamada de Idade da Reforma, as inovações mais importantes da Era Progressista incluíram a formação e administração do estado para coordenar, monitorar e regulamentar segmentos importantes da sociedade. Estruturas de gestão foram criadas para o bem-estar social, governo, transporte e escolarização de massa. Embora com contradições, o período promoveu a convicção de que as reformas institucionais eram intervenções positivas para a alteração e melhoria da vida social. A reforma tornou-se cada vez mais uma parte da regulação normal da vida social. (POPKEWITZ, 1997, p.55).

Relacionadas com o movimento de reforma progressista nos Estados Unidos, as

palavras de Popkewitz (1997, p.55), se trazidas para pensar o contexto catarinense, permitem

compreender que os movimentos de reforma serviram, sobretudo, como estratégias do Estado

41 “Substituição dos critérios de verificação do rendimento escolar, pautado na tradicional aprovação reprovação do aluno, baseando-se na idéia de que a dosagem do ensino deve acompanhar o desenvolvimento do aluno”. (FIORI, 1975, p.200).

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para controle e governo dos sujeitos, agora de uma nova ordem de organização social,

econômica e política.

A reconstituição do estado exigiu não somente uma modernização do sistema político, mas também novas formas de participação, interpretação, gestão social e melhoramentos, que freqüentemente incorporam contradições e tensões. [...] As agências de bem-estar social tornaram-se responsáveis pelo trabalho infantil, saúde, educação e planejamento social; essas agências estabeleceram o vínculo entre os programas ‘macro’ do governo do estado e as organizações ‘micro’ da família e da escola. (POPKEWITZ, 1997, p.56).

A afirmação de Popkewitz revela que as reformas tidas como construções naturais,

necessárias ao bem-estar social, escondem práticas de governo, formas de intervenção nos

espaços privados de vida dos sujeitos. Agem para construção de novas formas de ação e

pensamento no mundo, para construção de sujeitos regulados pelo Estado e a serviço dele.

Os movimentos de reforma aplicados ao Estado de Santa Catarina podem ser vistos

como um bom exemplo disso. Ao mesmo tempo em que apresentavam discursos inovadores,

previam o constante controle das ações dos sujeitos envolvidos na escolarização. Pode-se

dizer que as reformas possuem um caráter normativo, pois seus objetivos têm sempre,

implícita ou explicitamente, o interesse em alterar uma determinada ordem para atender a

necessidades sociais, políticas ou econômicas, além de sua constante ação direcionada para a

“imposição” de modelos únicos para o pensar e o fazer educação Esse controle, ou exercício

do poder, se faz possível por meio da imposição de leis, decretos e regulamentos que,

imbuídos de referenciais teóricos e justificativas racionais, tiram de cena seu caráter

manipulativo fazendo parecer naturais e, até, necessários ao bem-estar de todos.

No que se refere ao Município de Blumenau, sua política educacional se distanciou da

orientação e coordenação do Estado após a criação da Secretaria Municipal de Educação em

1973. Publicações e documentos que tratam da construção educacional e curricular de

Blumenau nesse período são escassos. Contudo, diante do material coletado, é possível

compreender que esse acontecimento marcou o início da implantação do ensino de 1º grau em

âmbito local.

Com a Lei 5692/71, os antigos cursos primário e ginasial foram reunidos sob a

denominação de ensino de 1º grau para o atendimento das crianças e jovens de 7 a 14 anos.

Até então, o que se tinha em Blumenau era somente escolas de 1ª a 4ª série e as orientações

pedagógicas vinham da Secretaria Estadual de Educação. A formação dos professores (as) se

dava por meio de acordos ou convênios entre Secretaria Municipal, Secretaria Estadual e

Universidade Regional de Blumenau, fundada em 1967. De acordo com Silva, (2002), o

primeiro setor criado pela nova Secretaria Municipal de Educação foi o da Classe Especial e

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Educação Infantil. Em 1979, foram criados os setores de alfabetização, língua portuguesa e

matemática, cada setor atendendo a sua especificidade.

Um dos primeiros encontros entre educadores realizados em Blumenau foi o 1º

Encontro de Professores de Santa Catarina, promovido pela Associação dos Licenciados de

Santa Catarina (ALISC) em 16 de abril de 1986. O encontro objetivou refletir sobre a situação

educacional do município e teve como tema Direitos do Professor e Realidade Catarinense.

No ano seguinte, 1987, na mesma época, de acordo com Silva (2002), com o objetivo

de discutir a avaliação e o avanço progressivo implantados no Estado, foi promovido, pela

Secretaria Municipal de Educação, Associação dos Professores do Médio Vale do Itajaí e

ALISC, um Seminário Nacional sobre a Lei 5692/71. O evento contou com educadores como

Guiomar Namo de Mello, Sonia Kramer, Zaia Brandão, Vanilda Paiva, Moacir Gadotti, Luiz

Antonio Cunha, entre outros. Além disso, se fizeram presentes ex-ministros, secretários de

educação de diversos municípios e estados. (SILVA, 2002)

Os anos seguintes foram de investimento sistemático nas séries iniciais, em especial,

em políticas de alfabetização. Contudo, isso não impediu que as outras áreas, como de língua

portuguesa e matemática, começassem a elaborar suas propostas pedagógicas e curriculares

em parceria com a Secretaria Estadual de Educação e a Universidade Regional de Blumenau

(FURB).

Pode-se dizer que, de 1970 até 1980, a política educacional de Blumenau viveu um

momento de consolidação das perspectivas disciplinares em educação. Em conformidade com

o cenário nacional, a Escola Nova, em face do novo governo militar, acabou “cedendo” lugar

para perspectivas curriculares tecnicistas. Durante esse período, o objetivo era a construção de

departamentos disciplinares para assistência técnica aos professores(as) de alfabetização até

os de 5ª a 8ª série. Essa assistência ao como fazer o currículo se constituiu novidade para a

gestão do município.

Assim, os pressupostos curriculares de Tyler chegaram aos (às) professores (as) de

Blumenau. O tecnicismo previa a criação de departamentos para oferecer aos educadores

orientação técnica e metodológica quanto aos conteúdos que deveriam ser trabalhados em

cada área de conhecimento, ao planejamento, às formas de organização dos tempos/espaços

escolares, às formas de intervenção e relação professor(a)/aluno, aos modos de apresentação

dos conteúdos, aos meios de avaliação do processo, etc. Nesse momento, foram oferecidos

aos (às) professores (as) de Blumenau espaços coletivos de discussão. No entanto, a idéia, até

esse momento, não era oferecer oportunidades de debates sobre as necessidades dos alunos,

da comunidade e a realidade social e, sim, sobre padrões de referência a alcançar.

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Em face do discurso “Brasil-Potência” que permeou todo esse período, década de

1970, o fim do analfabetismo e a ampliação da escolaridade representariam um país em pleno

desenvolvimento. Assim, a Lei 5692/71 objetivou encontrar alternativas para ajustar a

educação à política econômica vigente, ou seja, ajustar às demandas do mercado de trabalho e

aos novos acordos que o governo vinha fazendo com os Estados Unidos, o que ficou

conhecido como acordos MEC-USAID, já explicitados nesta dissertação.

De acordo com Zotti (2004), a Lei 5692/71 fixou conteúdos obrigatórios, deixou aos

cuidados dos conselhos estaduais e municípios a inclusão de sua parte diversificada e ofereceu

apoio financeiro e técnico para essa elaboração. Essa medida, ao construir meios para

organizar políticas únicas para pensar a educação deixou explícito um interesse em controle,

característico do período autoritário e de regime militar que vivia o país. Durante esse

período, houve uma intensa formação de especialistas.

Novamente, da mesma forma como ocorreu com as reformas pautadas nos ideais da

Escola Nova, nesse momento, foram os “especialistas” que, com o auxílio dos conhecimentos

produzidos na universidade e nas ciências sociais, elaboraram metodologias, conteúdos e

objetivos para nortear as políticas educacionais. Esse conjunto de conhecimento, ou sistema

de conhecimentos, chegou ao cotidiano pedagógico como instrumento portador de uma

verdade única sobre a educação, legitimando socialmente quais deveriam ser as formas mais

adequadas de organização educacional e curricular, isto é, chegou como instrumento de poder

a serviço dos interesses sociais, econômicos e políticos.

O ideário fortemente estabelecido nesse período esteve relacionado à escola como

espaço de formação para o mercado de trabalho, aos especialistas como sujeitos mais

adequados para pensar a organização da escolarização e à seleção dos conteúdos e aos (às)

professores (as) como executores de planos, metas e objetivos devidamente preestabelecidos.

Assim, a responsabilidade pelo planejamento e avaliação pertencia ao estado centralizador;

não, ao (à) professor (a). Acrescenta-se que se instalou, também, o ideário de que os

conteúdos apresentados pelos especialistas ou gestores das políticas públicas se constituem

uma seleção “neutra” e um conjunto “ideal” para uma formação científica dos sujeitos que

fazem parte da escolarização.

De acordo com Popkewitz (2001), os conhecimentos ou conteúdos que devem ser

trabalhados na escolarização chegam às escolas como pacotes fechados, como escolhas

“naturais” do que deve ser ensinado. Dificilmente são questionados como escolhas

contingentes e provisórias de um determinado espaço social e a serviço dele, nem sempre

condizentes com os conhecimentos ditos produzidos e retirados da ciência. Esses

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conhecimentos, na ciência, estão sempre em movimento, complexificando-se e renovando-se

de acordo com novas descobertas, com o que os sujeitos que os produzem conseguem

“compreender” naquele determinado tempo/lugar histórico e, também, de acordo com as

relações de poder que circulam nos espaços científicos. Popkewitz, em uma leitura crítica dos

conhecimentos que chegam à escola, chama esse processo de alquimia das matérias

escolares.

A redemocratização do país, nos anos 80, resultante do encerramento do regime

militar trouxe muitas mudanças políticas, econômicas e sociais. Essas mudanças se refletiram

no Sistema Municipal de Ensino de Blumenau, sendo que, a partir desse período, o princípio

da democratização das escolas e do ensino tornou-se objetivo da gestão municipal. Nesse

sentido, uma série de encontros, palestras e seminários que objetivava a construção de uma

educação para todos e que permitisse a democratização do país foi realizada.

Segundo Silva (2002), no ano de 1983, foram criados diversos departamentos na

Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, o que ficou conhecido como “Equipe

Multidisciplinar”, acompanhando a tendência interdisciplinar que se sucedia em âmbito

nacional. A direção apontava para a utilização social do conhecimento. No entanto, a

concepção curricular era ainda marcadamente disciplinar.

Silva (2002) manifesta que, em vista da democratização das ações pedagógicas, houve

uma reformulação do cargo de direção das escolas que passou a ser ocupado por eleição direta

nas comunidades. Além disso, em Blumenau, houve um crescente interesse pelas teorias

construtivistas que revolucionaram a década de 1980. Igualmente se começaram a questionar

o uso do livro didático e as cartilhas de alfabetização. O município, nos movimentos de

formação docente, passou a construir seus livros e apostilas didáticos.

No campo da educação de Blumenau, os anos da década de 1980 marcaram o início

das transformações com relação ao que se tinha até o momento como ideal de educação. As

concepções educacionais e curriculares que organizaram a constituição educacional de Santa

Catarina, a Escola Nova e, após, o tecnicismo à frente da política educacional de Blumenau,

considerados, segundo Silva (1999), teorias tradicionais de currículo, foram gradativamente

substituídas por novas perspectivas. O contexto político, em face do novo momento social e

econômico, discursava a necessidade de políticas públicas mais democráticas e

descentralizadas.

A queda do regime militar, a redemocratização do país, o advento da nova

Constituição de 88, as novas formas de trabalho e de relações comerciais globalizadas

trouxeram um novo modelo de gerenciamento dos serviços públicos em todo o país. Além

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disso, frente à retomada dos movimentos estudantis, lutas sindicais, novas reivindicações

educacionais, o Estado, até então centralizador, se viu forçado a encontrar novas estratégias

de governo, representadas pelas políticas neoliberais42.

De acordo com Silva (1998), em muitos municípios brasileiros, novas propostas de

educação, influenciadas pelas teorias críticas e libertárias, fizeram uso das tendências

construtivistas no anseio de encontrar respostas para questões educacionais ainda não

solucionadas pela teoria tradicional. Em Blumenau, essa tentativa objetivava encontrar

alternativas, tanto teóricas quanto práticas, para garantir a inclusão, a permanência e a

aprendizagem de todas as crianças que, após a Constituição de 1988, chegavam às escolas.

Silva (1998), numa leitura crítica deste movimento, aponta que:

Na esfera educacional, as pedagogias psi se inscrevem num conjunto mais extenso de pedagogias libertárias, autonomistas e emancipatórias que partilham do pressuposto de uma oposição entre as estruturas de poder e dominação, de um lado, e a ação autônoma e livre do indivíduo ou grupo, de outro. Nessa perspectiva, a consciência e a ação do sujeito podem ser momentaneamente bloqueadas, impedidas, imobilizadas, pelos efeitos da ação das estruturas de poder e opressão [...] desde que, em última análise, utilizadas as devidas estratégias de desbloqueamento (o papel, precisamente, das pedagogias emancipatórias). [...] É esse pressuposto que certas perspectivas pós-estruturalistas [...] têm questionado. [...] As pedagogias emancipatórias que se fundamentam no pressuposto da filosofia da consciência tomam, pois, como fonte original de oposição precisamente aquilo que deveria ser, antes de mais nada, problematizado. [...] a criança construtivista não é um fato da natureza, descoberta por Piaget e pelos pesquisadores construtivistas. A criança construtivista não está ali apenas esperando para ser cientificamente descoberta. Ela é o resultado não apenas de estratégias discursivas, de práticas e convenções lingüísticas, mas de uma série de aparatos materiais que fazem ‘aparecer’ a criança construtivista na sala de aula. [...] ao produzir essa criança, esse indivíduo raciocinante ‘normal’, essa criatura cognitiva, racional, o construtivismo, como mostra também Popkewitz, efetua processos vitais de inclusão e exclusão. [...] o construtivismo não normaliza apenas a criança: o construtivismo normaliza a própria professora (construtivista). (SILVA, 1998, p.9).

42 Esta pesquisa entende por neoliberal, de acordo com Burbules e Torres (2004), a mudança que ocorreu na implementação das políticas públicas. Até os anos 80, havia a compreensão de que o Estado possuía o papel central na gerência dos serviços públicos para garantia da justiça social, igualdade de oportunidades e desenvolvimento econômico. Contudo, essa compreensão foi modificada e novas formas de gestão da política pública entenderam que “a omissão do estado de sua responsabilidade de administrar os recursos públicos para promover a justiça social, está sendo substituída por uma fé [...] no mercado (por exemplo, nos apelos por mais privatização de escolas) e na esperança de que o crescimento econômico gere um excedente para ajudar o pobre, ou que a caridade privada assuma aquilo que os programas estatais deixam de fora. Apesar dos apelos da direita para desmantelar ou reduzir o tamanho do estado, observadores céticos da redução estatal afirmam que a principal questão não é o tamanho do estado, ou os seus gastos, mas a forma de suas intervenções e investimentos [...] O estado neoliberal, particularmente nas sociedades mais desenvolvidas, e nos países em desenvolvimento que lutam para imitá-las, caracteriza-se por redução drástica em gastos sociais, pela destruição desenfreada do ambiente, por revisões regressivas do sistema fiscal, limites frouxos para o crescimento empresarial, ataques amplos contra o trabalho organizado e mais gastos com ‘infra-estrutura’ militar”. (BURBULES; TORRES, 2004, p.15) Para Burbules e Torres (2004), “a reestruturação econômica [...] resultou na redução do estado de bem-estar social e na crescente privatização dos serviços sociais, de saúde, habitação e da educação”. (BURBULES; TORRES, 2004, p.14).

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A citação de Silva permite compreender que as novas propostas educativas e

curriculares, mesmo na defesa de projetos que visavam à emancipação e à libertação, não

deixaram de produzir novos sistemas de conhecimento e de raciocínio que objetivavam, por

meio de seus discursos, intervir e produzir novos regimes de verdade e novas normas para

orientar o pensamento e a ação dos (as) professores (as). Nesse momento, em nome da

democracia e da garantia de educação para todos, surgiram, para conduzir o campo da

educação, novas formas práticas especializadas, nesse caso, as teorias da psicologia.

Ao propor uma análise mais detalhada desse processo, o que Silva (1998) vislumbra é

apresentar como as teorias construtivistas contribuíram para construir novas relações de

poder, novas formas de governo das subjetividades pelo uso dos conhecimentos produzidos na

psicologia e trazidos para a educação pelos novos experts ou especialistas da conduta humana.

Nesse sentido, os/as especialistas nas psicologias construtivistas e na psicopedagogia [...] ganharam proeminência, na medida em que se tornaram os/as especialistas privilegiados/as nas reformas educacionais e curriculares patrocinadas pelas políticas neoliberais. À medida que os especialistas nos processos contemporâneos de regulação da conduta humana ganham centralidade, outros saberes, menos codificados, menos especializados, [...] são deslocados e desclassificados. [...] No caso mais amplo das reformas educacionais e curriculares, não são apenas saberes pouco codificados que são deslocados e substituídos. A centralidade de uma pedagogia como a construtivista, representada como verdade científica sobre a criança e educação, funciona para desacreditar, desautorizar e deslegitimar outras formas de descrição, análise e intervenção educacionais. (SILVA, 1998, p.12).

Assim, pode-se dizer que, mesmo em face das novas teorias curriculares críticas,

emancipatórias e democráticas, os efeitos do poder se fazem presentes enquanto houver um

interesse em controle. A política educacional de Blumenau conduziu sua reestruturação

educacional e curricular baseando-se na possibilidade de apresentar modelos ideais de

intervenção nas aprendizagens das crianças. Os (As) professores (as) mais adequados eram

aqueles que, de acordo com o ideário maior, tivessem o domínio das teorias construtivistas e,

em especial, de suas formas de intervenção com as crianças.

Sacristán (2005) é outro autor que contribui para compreensão desta questão quando

explicita

A visão psicológica dominante procurou nos fazer ver o desenvolvimento humano como um processo natural [...]. De alguma maneira, toda visão sobre como o menor evolui em qualquer de suas facetas (física, intelectual, social, afetiva ou moral) é idealizada e se transforma em um modelo normativo para a educação, procurando assinalar o ritmo normal e anormal da evolução, quais são os tratamentos adequados para cada fase ou etapa, etc. (SACRISTÁN, 2005, p. 63)

Os novos rumos que a educação municipal viveu a partir de 1980 iniciaram o

questionamento dos livros didáticos, das formas de apresentação dos conhecimentos

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disciplinares e da centralidade docente. Contudo, foram também regulatórios, pois

apresentaram novas metanarrativas sobre as formas mais adequadas de intervenção nas

aprendizagens infantis, na organização dos espaços/tempos pedagógicos e de construção e

apresentação dos conhecimentos. Os ideais de criança e de educação, elaborados pelas teorias

construtivistas, foram tomados como naturais a ponto de nem serem questionados.

Nos anos de 1990, a educação, marcada pelo crescente interesse pelas questões

sociais, começou a investir nos conhecimentos a serviço do social, levando em consideração a

cultura do aluno. Silva (2002) aponta que a Blumenau dos anos 90 apresentava uma

capacitação docente voltada para a construção do conhecimento coletivo. Os seminários, os

eventos, as palestras e os encontros tomaram uma direção coletiva, não mais para áreas de

conhecimento, e eram permeados por temáticas que apontavam para a importância de pensar a

educação como um todo.

A gestão de 1993, investindo na capacitação dos gestores e professores (as), tomou

como perspectiva de trabalho o sucesso do aluno e a importância da relação teórico-prática.

Sua perspectiva pedagógica enfocou a competência técnica aliada a uma atuação pedagógica

de compromisso social com o aluno. Destaca-se que, até esse período, a educação de

Blumenau ainda convivia com altos índices de retenção e evasão. A função social da escola

passou a ser a construção e a socialização do conhecimento a partir da realidade concreta do

aluno.

No ano de 1996, foi produzido um documento intitulado Ações Coletivas: conquista

da gestão democrática, pela Secretaria Municipal de Educação de Blumenau. Esse documento

é uma síntese da gestão de 1993 a 1996 e indica seus principais objetivos e direções. Na

introdução do mesmo (BLUMENAU, 1996, p. 12), a Diretora do Departamento de

Educação43, Profª Carmem Conceição Lobe Rodrigues, explicita:

O plano de governo apontava, claramente, para a gestão democrática, evidenciando a eleição de diretores como suporte para o processo democrático nas comunidades escolares. Precisávamos socializar nossos conhecimentos e construir uma proposta pedagógica norteadora para o ensino na Rede Municipal. Foi assim que se constituiu o Plano Político-Pedagógico, fundamentado nos princípios democráticos de educação. [...] Estava lançado nosso maior desafio: transformar uma equipe num grupo democrático, capaz de, coletivamente, cooperar com os profissionais da Rede Municipal de Ensino, na construção da gestão democrática e da proposta pedagógica de cada unidade. (BLUMENAU, 1996, p.12).

Tendo como principal objetivo construir uma proposta pedagógica para a educação

pública municipal, a referida gestão priorizou momentos coletivos de debates, 43 Esse termo representativo da função de Coordenador do Departamento de Ensino e auxiliar direto do(a) Secretário(a) de Educação foi substituído por Superintendente de Ensino, vigorando até outubro de 2005.

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compreendendo que esses seriam o melhor caminho para possíveis mudanças substanciais no

pensar e fazer a prática educativa. Assim, construiu um Plano Político-Pedagógico que

priorizava

a garantia de acesso à educação infantil e ao ensino fundamental; assegurar a permanência e o sucesso do educando na escola; melhoria da qualidade de ensino; política de valorização do profissional da educação; implementação da gestão democrática nas unidades de ensino; e reestruturação organizacional da Secretaria Municipal de Educação. (BLUMENAU, 1996, p.23).

Além disso, respeitando as diretrizes estabelecidas pela política educacional nacional

(Constituição de 1988) que, em vista de uma formação básica comum, também previa a

formulação de propostas pedagógicas locais, a já referida gestão, tendo como meta a

descentralização crescente, o trabalho de parceria, a flexibilidade, a autonomia das Unidades

de Ensino (escolas públicas municipais), a valorização profissional e a garantia da satisfação

das necessidades locais, encaminhou o primeiro movimento de construção do Projeto

Político-Pedagógico das suas Unidades de Ensino.

Para garantir sucesso e claro encaminhamento na construção dos Projetos Político-

Pedagógicos, a Secretaria de Educação oportunizou encontros de formação e assessoria às

instituições de ensino. O que norteou o movimento, nas Unidades Escolares, foi a construção

do seu diagnóstico local, de sua filosofia, de seus objetivos e de suas propostas de ação e

direcionamento pedagógico. Em 1996, o que representou os primeiros Projetos Político-

Pedagógicos das Unidades de Ensino da rede municipal de educação de Blumenau foi

entregue à Secretaria Municipal de Educação.

Segundo Silva (2002), as propostas de formação e capacitação dos (as) professores

(as) apontavam para a necessidade de refletir sua ação tendo como parâmetro a realidade de

sala de aula. O objetivo era a construção de uma prática transformadora e de qualidade. Por

esses tempos, houve um nítido direcionamento não mais para os conteúdos, mas, sim, para o

aluno como centro do processo pedagógico, bem como para a idéia de professor reflexivo,

pesquisador e sujeito de sua formação.

O governo que assumiu em 1993 iniciou o processo de autonomia e gestão democrática que culminou com a construção do Projeto Político-Pedagógico em cada instituição de ensino do município. Em nível de reforma, pode-se destacar a importância que se deu no gerenciamento das instituições e responsabilidade dos gestores frente ao processo. Entretanto, a questão curricular não foi revista, apesar da necessidade de as escolas organizarem em seus projetos questões relacionadas ao currículo. (CORRÊA, 2002, p. 44)

Por todas as concepções e ações que orientaram a gestão de 1993, é possível dizer que

esta representou a primeira “ruptura”, ou seja, o surgimento de novas orientações para a

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educação de Blumenau. Apesar de, segundo Corrêa (2002), não ter conseguido fazer uma

revisão curricular, conseguiu modificar a tendência que se tinha, até então, de atribuir ao

especialista o papel de condutor legítimo da política educacional do município, como também

de modificar a noção de educação como espaço destinado a vivências democráticas dentro da

sala de aula para a noção de educação como lugar/espaço de relações democráticas com toda a

comunidade escolar, inclusive com os espaços para além dos muros da escola.

Foi nesse período, de 1993 a 1996, que ocorreram, efetivamente, as primeiras

tentativas de uma gestão democrática e de discussão coletiva acerca das necessidades,

expectativas e novos rumos para a política educacional do município. Isto se deu nos próprios

espaços escolares que organizaram encontros de interação e reflexão curricular entre escola,

professores (as), demais funcionários e comunidade. Pode-se dizer que esses momentos

modificaram, radicalmente, a relação dos (as) professores (as) com as questões teórico-

práticas da educação, pois estes (as) foram convidados (as) a pensar sobre questões até então

tidas como de responsabilidade exclusiva dos gestores das políticas públicas e dos

especialistas.

Não é possível negar que as propostas de políticas descentralizadas surgiram em face

das políticas neoliberais. Termos como flexibilidade, autonomia, cidadania e privatização

fazem parte da agenda dos interesses econômicos e políticos diante dos novos modos de

relação com o trabalho, com o consumo e com o mundo globalizado.

Porém, ao mesmo tempo em que a globalização representou a ampliação dos poderes

internacionais e de colonizadores dos países de primeiro mundo, também ampliou as

fronteiras de compreensão dos (as) professores (as) acerca da multiplicidade de culturas,

crenças, etnias e saberes, de formas de organização social, política e econômica e de relações

com a sexualidade e com o gênero que compõem e constituem o mundo. Diante desse

contexto, entrou em debate a necessidade de construir alternativas para lidar com as novas

formas de pensar o mundo e, nele, a escola.

O ideário que passou a orientar a administração de 1993 e, conseqüentemente, os

pensamentos e ações docentes, constituiu-se de discursos que previam a escola como

espaço/lugar para a discussão das questões de ordem social e política; o aluno, sua cultura e

seus significados, como centro do processo; o (a) professor (a), como sujeito da práxis

pedagógica; os coordenadores da gestão pública, professores (as) e comunidade, como co-

participantes responsáveis pela gestão e elaboração das políticas públicas. Previa, da mesma

forma, a ruptura com a questão do conhecimento disciplinar.

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No entanto, de acordo como Corrêa (2002), no que concerne à reforma, a gestão de

1993 não conseguiu “mexer” com questões que possibilitassem mudanças substanciais. Como

exemplo, cita-se que não foi proposto discutir e alterar: as relações estruturais; os

tempos/espaços pedagógicos; os muitos eixos de poder presentes nas práticas da

escolarização, nos currículos oficiais e ocultos; as formas de seleção dos conhecimentos

escolares em suas relações de poder e, em especial, seus objetivos e a serviço de quem estes

trabalham; as questões de classe, de cultura; os binarismos44 que, funcionando como

classificação, colocam o outro no espaço de oposição e inferioridade; as propostas de

currículos únicos e seus efeitos homogeneizantes, etc.

A Equipe da Secretaria Municipal de Educação que organizou essa proposta

pedagógica permaneceu até o ano de 1996 e, em 1997, o Partido dos Trabalhadores assumiu a

gestão municipal. A nova gestão, diante de um movimento de renovação já iniciado,

encontrou um terreno profícuo para realizar uma das maiores e mais profundas

transformações na educação do município: substituiu os regimes seriados por ciclados, alterou

a estrutura e os tempos/espaços escolares e investiu prioritariamente na formação docente e na

reorientação curricular. Esse período propiciou às (aos) professores (as) um grande número de

congressos, oficinas, eventos, seminários, reuniões e grupos de estudo.

3.1.1 O Documento Curricular em Vigência e Transição

O governo que assumiu em 1997 investiu na alteração da política educacional do

município e, por isso, fez mudanças significativas na educação de Blumenau. Durante

primeiro ano de gestão, foram realizados encontros com educadores, diretores, coordenadores

pedagógicos e comunidade para a apresentação da proposta de mudança curricular intitulada

Escola Sem Fronteiras. A Proposta Político-Pedagógica dessa administração visava à

44 O autor Popkewitz (2001) tem contribuído para compreender os “binarismos” como um efeito social e de poder que visa classificar, dividir e agir sobre os sujeitos que compõem a escolarização: “Especificamente, concentro a minha atenção nos diferentes binários produzidos nos discursos do professor. Em uma extremidade de cada um dos binários, estão normas de inteligência e competência. Na outra extremidade, estão as crianças [...] em espaço de oposição à razão. Por exemplo: há binários que organizam a separação das crianças em branco/negro [...] inteligente/nécio, ambicioso/indiferente. Os dois pólos dividem o que é avaliado como sucesso ou fracasso nas escolas. [...] A estrutura dos binários não parece constituída de separações, mas de um contínuo de valores em que um lado das distinções é privilegiado, à medida que o conjunto ‘cria’ o que é ‘bom’ e normal. A construção dos binários é obscurecida à medida que é considerada a aplicação dos valores universais quando se pensa sobre alcances e padrões de desenvolvimento de todas as crianças. [...] Esses valores universais, supostamente os mesmos para todas as crianças, são ficções, as quais estão incorporadas nas práticas pedagógicas que ‘criam’ as diferenças e a diversidade a partir das normas universais de igualdade”. (POPKEWITZ, 2001, p.48).

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“mudança na escola e não [...] reforma. Pensar uma escola de acordo com a realidade e com

vistas à transformação desta realidade”, conforme podemos verificar no anexo I (p. 6).

Popkewitz (1997), dedicando atenção aos movimentos de reforma e mudança na

educação americana, explicita:

À medida que eu examinava as conceituações de reforma na pesquisa educacional, identifiquei uma clara ênfase na estabilidade, na harmonia e na continuação de acordos institucionais existentes – não na mudança. [...] o assunto tem, por muito tempo, se concentrado na forma como as coisas funcionam e no que pode ser feito para que elas funcionem melhor; essa abordagem acredita que os objetivos das relações sociais existentes são apropriados e somente precisam tornar-se mais claros. [...] Neste contexto, precisamos somente aplicar o modelo às situações de ensino com a finalidade de efetuar a mudança; a evidência do uso do modelo pelos professores é considerada uma evidência da melhora da qualidade. (POPKEWITZ, 1997, p.25).

Popkewitz (1997, p. 27) também aponta que “limitar a curiosidade ao presente e ao

funcional é antiintelectual e até mesmo anticientífico”. Realizar a mudança foi, por muito

tempo, considerado pelos gestores das políticas públicas como o redirecionamento do

pensamento e comportamento dos (as) professores (as) dentro de padrões considerados mais

racionais e historicamente neutros. Com base nesse entendimento, a oferta de conhecimentos

especializados e as intervenções sistemáticas foram utilizadas como a melhor forma para

administrar e controlar as organizações sociais.

Para Popkewitz (2004), políticas públicas que se proponham intensificar a reflexão

dos (as) professores (as) sobre o seu pensar e as suas ações, bem como as suas formas de

organizar as escolas, não têm sido oferecidas, tampouco se tem oportunizado uma referência

filosófica ou um contexto histórico que facilite a compreensão de como, por que, o quê está

ocorrendo e a quem serve essa forma de educação e não outra. Para o autor, é preciso mais

espaços de discussão e de análises que busquem investigar como essas questões - como, por

que e o quê - estão relacionadas com processos históricos, estruturais e epistemológicos, pois,

para ele, talvez, assim, se possam encontrar algumas alternativas para mudanças na educação.

Em 1997, a Secretaria Municipal de Educação foi mobilizada para discutir, nos locais

de trabalho, as expectativas, as prioridades, os anseios e os desejos da rede municipal, bem

como apresentar o projeto Escola Sem Fronteiras, que previa reorganizar as escolas

municipais em ciclos45. De acordo com a Lei 9394/96, em seu Art. 23,

45 Os ciclos são uma proposta de estruturação pedagógica da escola. Visam opor-se à estrutura e às concepções de escola tradicional e seriada. De acordo com Andrade (2002), sua origem esteve relacionada com os estudos e pesquisas que surgiram na década de 50 sobre educação e currículo no Brasil. As pesquisas apresentavam índices alarmantes de fracasso escolar. Almejando modificar radicalmente esse cenário, as propostas de mudança que surgiram a partir dos anos 80 e que ficaram conhecidas como ciclos, entenderam que seria necessário interferir na estrutura escolar. Nesse sentido, visaram alterar as concepções de educação, de ser humano, de avaliação, de

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A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. (BRASIL, 2005, online).

Durante o primeiro ano de governo, o professor Miguel Arroyo prestou assessoria à

Secretaria Municipal de Educação de Blumenau. Segundo Corrêa (2002), com ele os

coordenadores pedagógicos da Secretaria de Educação e, em alguns encontros, diretores e

coordenadores pedagógicos das escolas, estudaram a implantação da organização por ciclos

aos moldes da proposta de Escola Plural, organizada pelo mesmo, quando Secretário de

Educação em Belo Horizonte. Um dos relatos da Ata de Reunião pedagógica da escola

pesquisada torna explícito esse acontecimento. Na Ata do dia 02 de julho de 1997 (p.46),

encontra-se escrito: A Diretora fez os repasses sobre a palestra do Miguel Arroyo que

comentou sobre o ciclo básico. Outra Ata, do dia 11 de novembro de 1997 (p.48), explicita

um encontro que ocorreu na própria unidade de ensino:

Reuniram-se (na escola) professores de pré a quarta-série e pessoal

administrativo para uma reunião com a Diretora do Departamento de Ensino Cecília

Dolzan. [...] que fez os seguintes esclarecimentos: [...] as salas terão o mesmo número

de crianças. O professor poderá trocar experiências no dia de atividades. O professor

regente trabalha quatro dias com a turma e o auxiliar um dia. [...] oitenta por cento

aulas e vinte por cento estudos. [...] a aceleração, em noventa e oito, será para

crianças que apresentam defasagem de dois ou mais anos. Um ano será assegurado

repetência, o aluno terá uma ficha esclarecendo a defasagem. [...] Os conteúdos serão

iniciados com os mesmos, depois será construído a partir do que foi feito em noventa e

sete.

Em conformidade com Corrêa (2002, p.47), no ano de 1997, a Secretaria Municipal de

Educação, além da organização de encontros nas escolas e comunidades, organizou

seminários por regiões para discussão da implantação do projeto Escola Sem Fronteiras. Os

seminários aconteceram de 9 a 24 de setembro de 1997, e o resultado foi a formação de currículo e de função da escola. Além disso, visavam flexibilizar os tempos/espaços escolares e ressignificar as práticas pedagógicas. Os primeiros ciclos ficaram conhecidos como ciclos básicos porque previam a duração de dois anos, correspondentes às séries iniciais. Foram implementados em 1984, em São Paulo; em 1985, em Minas Gerais; e em 1988, no Paraná e Goiás. Em São Paulo, foi implementado em 1989, sob a coordenação do Prof. Paulo Freire. Em 1991/92, no município do Rio de Janeiro e, em 1994, no estado do Rio de Janeiro, agora de 5 anos. Em 1995, em Belo Horizonte (Escola Plural), após em Porto Alegre (Escola Cidadã), Distrito Federal (Escola Candanga), Blumenau (Escola Sem Fronteiras), ampliando para 9 anos. Em síntese, objetiva eliminar o

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grupos de estudo formados por professores (as) e coordenadores pedagógicos da Secretaria

Municipal de Educação de Blumenau para discutirem a proposta. Também aconteceu de

Unidades Escolares, com ou sem a presença da equipe dirigente, organizarem grupos de

estudo para decidirem se iriam, ou não, optar pela implantação da proposta por ciclos.

Assim, no ano de 1998, algumas escolas da rede municipal iniciaram com a

implantação do projeto Escola Sem Fronteiras, dentre as quais, a escola campo de pesquisa. A

adesão foi feita mediante aprovação do coletivo docente, iniciando-se o ano letivo com a

implantação do 1º ciclo. A continuidade, na escola pesquisada, foi gradativa mediante a

aprovação do coletivo docente.

Em Blumenau, os ciclos foram organizados em três grandes grupos/ciclos que

abrangem o ciclo da infância (6, 7 e 8 anos), o ciclo da pré-adolescência (9, 10 e 11 anos) e o

ciclo da adolescência (12, 13 e 14 anos). No total, a proposta da Escola Sem Fronteiras previa

9 anos de ensino fundamental.

A Secretaria Municipal de Educação construiu a Proposta Político-Pedagógica da

Escola Sem Fronteiras, conforme anexo I (p.6), “fundamentada no materialismo histórico-

dialético numa perspectiva histórico-cultural” e tomou como eixos norteadores: Gestão

Democrática, Acesso, Permanência e Sucesso e Qualidade Social da Educação.

Conforme o anexo II, a Reorientação Curricular em desacordo com políticas públicas

que, imbuídas de um discurso da Qualidade Total na Educação servem ao mercado e às

determinações do Banco Mundial, a proposta pedagógica da Escola Sem Fronteiras buscou

contrapor-se ao modelo de currículo tecnicista e de estrutura rígida que organizou a educação

durante o governo militar nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil.

Com esse pensamento, o referido projeto propunha pensar a escola não como fim em

si mesmo ou como meio preparatório para o mercado de trabalho, mas como espaço de

formação humana e de transformação e intervenção no meio do social. Dessa forma, a Escola

sem Fronteiras promoveu “[...] um repensar dos tempos e espaços escolares como momentos

de interação, vivência e aprendizagens tanto para os educandos como para os educadores,

propondo que fossem organizados nos Ciclos de Formação Humana”. (BLUMENAU, 2004,

p.8). Por conseguinte, a Secretaria Municipal de Educação baseou sua concepção pedagógica

nos seguintes princípios:

Estudante como sujeito da ação educativa; educador como mediador do processo pedagógico; avaliação como processo; conhecimento construído através da

fracasso escolar e surgiu nos diferentes lugares com designações (promoção automática, avanço progressivo, ciclos de aprendizagem, ciclo básico, ciclos de formação) e propostas variadas.

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interação; escola como catalisadora das diversas culturas e saberes; aprendizagem como processo do desenvolvimento humano e de tempos, espaços e ritmos diferenciados; sujeitos como ser biológico, psicológico, social, histórico e cultural; educação como processo dialógico. (BLUMENAU, s/da, p.9).

No período anterior a essa gestão, já havia uma preocupação com os índices de

repetência e evasão escolar. É sabido que o interesse em reduzir os índices de fracasso está,

também, relacionado com os prejuízos que esses índices trazem ao governo. Contudo, a

garantia da escolaridade e da permanência na escola já era uma luta dos educadores

preocupados com a forma como a escola vinha se organizando de maneira a atender e garantir

o sucesso e a terminalidade somente para um pequeno grupo de alunos.

Todo o conjunto das teorias críticas, nesse período, já denunciava as práticas seletivas,

de exclusão social e autoritárias da educação. No Brasil, e também fora dele, o educador

Paulo Freire era considerado referência quando se debatia sobre as causas do fracasso escolar

e sobre todos os fatores que mantinham a perspectiva desigual de educação no país. Entre

esses fatores estavam questões de ordem social, econômica, política, histórica e, também,

pedagógica.

Conforme relata Andrade (2002, p.16), para Paulo Freire, era preciso uma “proposta

que mudasse a cara da escola, do ponto de vista também de sua alma, uma escola geradora de

alegria, alegria de ensinar-aprender. A necessidade de reinventá-la, de democratizá-la, de

superar seu elitismo autoritário”.

Diante desse contexto e, opondo-se à lógica disciplinar, a gestão de 1997 tomou como

centralidade do processo ensino-aprendizagem o desenvolvimento humano, bem como a

compreensão da escola como espaço dinâmico, vivo, comprometida com as “infâncias” e

“adolescências” e seus tempos de vida. Além disso, previa a instrumentalização para o pleno

exercício da cidadania, direito à vida e entendimento do contexto social no qual se está

inserido.

Para Lima (2002),

Ciclo de formação não é uma novidade pedagógica. É equivocada a noção de que ciclo signifique simplesmente uma nova proposta pedagógica, pois ele é, na verdade, uma proposta de estruturação da escola, que envolve, de maneira fundamental, a gestão: o gerenciamento do tempo, da utilização do espaço, dos instrumentos culturais, da coletividade que se reúne em torno do espaço escolar e, finalmente, da socialização do conhecimento. (LIMA, 2002, p. 8)

Quando Lima (2002) argumenta que ciclo é uma proposta de estruturação da escola e

que envolve de maneira fundamental a gestão, está propondo a apresentação de uma outra

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maneira de fazer educação. Por isso, toma como ponto de partida uma redefinição do trabalho

docente e a construção de uma outra forma de cultura do trabalho educativo.

Para materialização dessa outra organização de escola, a Escola Sem Fronteiras, a

Secretaria Municipal de Educação construiu um documento de reorganização curricular no

ano de 1999, conforme podemos observar no anexo II. Prevendo novos referenciais teórico-

práticos e a reorientação dos tempos/espaços escolares, almejou, por meio desse documento,

oferecer subsídios para as escolas e para as práticas docentes.

O documento de reorientação curricular da Escola Sem Fronteiras apontou para uma

concepção curricular [...] dentro de um conceito de globalidade baseando-se na história de

vida das comunidades, explicitando a sua historicidade, contextualizando-a e estabelecendo

relações entre os diferentes fenômenos levando-nos a um ‘enfoque dinâmico-dialógico’ que

produza transformações individuais e, consecutivamente, sociais. Reorientar o currículo

define-se, portanto, como a construção de novas formas de relações entre os seres humanos e

deles com a natureza. Reorientar o currículo é repensar a reprodução social em voga na

estrutura escolar, é repensar os tempos e espaços escolares, de acordo com o anexo II.

Assim, na busca por uma “outra” escola e pelo estabelecimento de novas relações

entre os sujeitos, o documento pautou-se numa concepção curricular que previa a importância

da transformação, tanto individual como coletiva, por meio da socialização e da compreensão

dos conhecimentos produzidos nas comunidades e trazidos pelas crianças, sua cultura, seus

significados, o respeito à construção coletiva do conhecimento e a seleção destes prevendo a

construção de novas relações dos educando com o mundo.

Nesta proposição, escola e comunidade rompem com a estrutura de que uma é detentora e a outra é a receptora do conhecimento. Escola e comunidade se organizam neste contexto construindo um respeitoso ‘ouvir recíproco’ onde o conhecimento sistematizado e os valores das comunidades estarão presentes na construção da organização social e dos conhecimentos. (BLUMENAU, s/da, p. 14).

Portanto, a Secretaria Municipal de Educação, atenta à superação da lógica disciplinar

e conteudista, apostou no currículo como lugar de discussão e construção de possíveis

“caminhos metodológicos e não na definição de conteúdos curriculares fechados”, conforme

anexo II.

O texto do anexo II deste trabalho afirma que o currículo não pode ser uma listagem

estática, linear com conteúdos e métodos pré-definidos em uma ‘grade’. Currículo deve ser

dinâmico como a sociedade. Deve estar inteirado ao processo histórico e ser sujeito na

construção deste processo. Pergunte-se como educador, se o currículo serve à valores sociais

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emergentes ou possibilita uma visualização de outra estrutura social. Questione se o currículo

tem contribuído na construção da cidadania feita por seres humanos criadores, ativos,

inventivos, transformadores ou reforça a manutenção do Status Quo vigente [...]. Portanto,

reorientar o currículo é parte de um processo que pretende repensar a estrutura escolar [...].

Nesse sentido, com auxílio das teorias críticas e das teorias das “diferentes áreas das

ciências humanas, como a psicologias, biologia, neurologia, antrologia” (ANDRADE, 2002,

p.132), a reorientação curricular objetivava romper com a lógica da escola como espaço de

reprodução social. Almejava compreender a seleção dos conhecimentos e seus usos, como

espaço não-neutro, inclusive, como lugar de interesses, relações de poder e luta de classes.

Além disso, no que diz respeito à gestão dos tempos/espaços escolares, os compreendia como

elementos pedagógicos que deveriam ser discutidos e definidos a partir das necessidades

locais e dos objetivos do planejamento educacional.

Para a Secretaria Municipal de Educação, essa “era uma oportunidade ímpar de

construir coletivamente uma escola compromissada com todos, garantindo-a como um espaço

de direitos. Direito ao ensino fundamental, direito ao seu tempo de vida, direito à

aprendizagem e ao pleno desenvolvimento” (BLUMENAU, 2004, p.9). A partir desse

entendimento, a estrutura curricular dos ciclos de Blumenau, ou proposta Escola Sem

Fronteiras, foi dividida em três grandes áreas do conhecimento: comunicação e expressão

(português/língua estrangeira/artes/educação física); ciências sócio-históricas

(história/geografia/religião) e ciências naturais e exatas (matemática e ciências).

Entendia-se que o número de horas destinado a cada disciplina deveria ser o mesmo, e

a forma de organização e distribuição destas disciplinas e dos (as) professores (as), nas

turmas, deveria ficar aos cuidados da escola, podendo a mesma flexibilizar horários e

reorganizar os tempos internos, conforme seu planejamento. Esta estrutura almejou o

desenvolvimento de um trabalho integrado entre os (as) professores (as) e, destes, com

planejamento da escola.

Para compreender melhor como a proposta por ciclos se materializou, é fundamental

entender que, no caso de Blumenau, para cada ciclo, havia uma proposta de organização dos

(as) professores (as) que trabalhariam com as turmas. O objetivo era atingir a construção de

um coletivo de professores (as) que, envolvidos com algumas turmas, trabalhariam

coletivamente para atender às necessidades, interesses e especificidades daqueles grupos.

No Quadro 1, apresenta-se a forma de organização do coletivo de professores (as) para

cada ciclo na Escola Sem Fronteiras.

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Quadro I. Organização do Coletivo de Professores (as) na Escola Sem Fronteiras

1º ciclo 2º ciclo 3º ciclo

Professor (a) Regente; Professor (a) Apoio; Professor (a) de Educação física

Professor (a) Regente; Professor (a) de Artes; Professor(a) de Língua Estrangeira; Professor(a) Educação Física

Professor(a) Português e Língua Estrangeira; Professor(a) de Matemática e Ciências; Professor(a) de História, Geografia e Ensino Religioso; Professor (a) de Artes; Professor (a) de Educação Física46

Fonte: Elaborado pela autora (2006).

Tomando o cuidado para garantir, nessa restruturação curricular, tempos e espaços de

discussão e planejamentos coletivos, a gestão de 1997 organizou o que ficou conhecido como

tempos de estudo e pesquisa coletivos. Esses tempos/espaços, organizados dentro da jornada

de trabalho, estavam divididos em:

♦ Dia de estudo – um dia de estudo por semana ou 20% da jornada de trabalho

dos (as) professores (as) para estudo, pesquisa, reflexão, planejamento, avaliação,

socialização de experiências, interação entre docentes na própria escola ou na Escola de

Formação Permanente Paulo Freire47;

♦ Encontros quinzenais ou mensais – reunião do coletivo de educadores,

mediante dispensa dos alunos, para avaliar e planejar/replanejar seu projeto pedagógico;

♦ Grupos de formação continuada e socialização de experiência – encontros

realizados na Escola de Formação Permanente, dentro da jornada de trabalho ou em 46 Ressalta-se que, do coletivo de professores que trabalhavam com o terceiro ciclo, poderia um deles lecionar somente uma disciplina e contratava-se mais um professor (a) habilitado (a) na área do conhecimento. O objetivo era organizar um coletivo de 6 professores (as) para cada 3 turmas. Além disso, como a maioria das escolas tem um laboratório de informática, exceto algumas isoladas, cada uma também conta com um (a) professor (a) de informática, chamado (a) Monitor (a) de Informática. 47 Espaço criado e mantido pela Secretaria Municipal de Educação, em funcionamento desde 1997, destinado ao planejamento da política de formação permanente dos professores da rede municipal. Da gestão de 1997 a 2004, esse espaço destinava-se ao encontro de grupos de estudo e à realização de fóruns, seminários, oficinas e ciclos de debate. A estrutura física contava com Biblioteca, Videoteca, Laboratório de Informática e Banco de imagens e sons. No ano de 2005, devido à mudança de governo, o local passou por alterações na forma de organização do espaço e proposta. Seu nome passou para Centro Municipal de Estudos Pedagógico e, para a nova gestão, não é mais considerado espaço para pensar a política de formação docente dos professores. Essa tarefa passou a ser de responsabilidade dos coordenadores pedagógicos dos departamentos de ensino. Nesse sentido, sua manutenção destinou-se a executor das determinações dos departamentos de ensino. Além disso, a Biblioteca, a Videoteca, o Laboratório de Informática e o Banco de Imagens e Sons, os grupos de estudo, fóruns, seminários, oficinas e

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horário diverso, com o objetivo de criar espaços de reflexão, socialização de

experiências, compartilhamento de projetos e delineamento de propostas, visando à

construção coletiva de um saber pedagógico inovador.

Além desses tempos, havia os Tempos do Ciclo ou Tempos da Escola, que surgiram

como alternativa para garantir meios de reorganizar os tempos/espaços escolares, tão

engessados pelas rotinas de organização dos tempos/espaços seriados. Para o grupo gestor,

esses movimentos foram pensados para promoção de novas e diversificadas interações e

aprendizagens. São eles:

♦ Reorganização de turmas – movimentos contínuos e previamente planejados para

interação entre os diferentes grupos de alunos e professores (as). A reorganização

poderia se dar de duas formas: vertical, com alunos das diferentes idades do mesmo

ciclo ou ciclo diferente; horizontal, com alunos das mesmas idades no ciclo;

♦ Projeto tarefa a distância48 – projeto que compreende outros tempos de aprender e

articular conhecimentos para além do tempo em que se está na escola. Um dia por mês,

os alunos levavam atividades para desenvolver com seus familiares ou comunidade.

Nesse dia, os alunos desenvolviam atividades de pesquisa e investigação dos

conhecimentos existentes na comunidade e em outros contextos. Havia escolas que

desenvolviam, até, projetos de investigação e intervenção nas problemáticas da

comunidade;

♦ Conselho de classe participativo – encontro destinado à participação, discussão,

avaliação e tomada de decisões coletiva (alunos, professores, pais e funcionários) sobre

o desenvolvimento do trabalho pedagógico e dos processos de ensino-aprendizagem.

Quanto à avaliação, o projeto da Escola Sem Fronteiras a compreendia como meio e

não fim de um processo educativo. Buscando coerência com os pressupostos de uma

avaliação processual, participativa, investigativa e redimensionadora da prática pedagógica, a

Secretaria Municipal de Educação definiu a avaliação descritiva, em regime semestral, como

melhor opção para reflexão, análise e registro do que foi vivido durante o processo de ensino-

aprendizagem. Além disso, indicava como instrumentos de avaliação cotidiana: observações,

registros, auto-avaliação, entre outros.

ciclos de debate foram desativados desde fevereiro de 2005. Conforme informações recebidas em outubro de 2005, serão reativados alguns desses serviços no ano de 2006, em novo local a ser alugado pela Prefeitura. 48 Regulamentada pelo Conselho Municipal de Educação a Tarefa a Distância compreende 32 horas anuais, distribuídas mensalmente. Este tempo também é utilizado pelos educadores para planejamento e avaliação do trabalho pedagógico na escola.

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Além de promover movimentos para a reflexão e debate coletivo, como seminários,

grupos de estudo, ciclos de debate e oficinas, ainda foram organizados, juntamente com a

Universidade Regional de Blumenau (FURB), três Congressos de Reorientação Curricular.

Esses congressos, compreendidos pela gestão municipal como espaços de formação

continuada, objetivaram colocar em movimento a discussão curricular do município, ampliar

os debates e socializar novas tendências, teorias, pesquisas e experiências para traçar

coletivamente os rumos da política educacional do município.

Almejando a gestão democrática, a efetivação da reorientação curricular e a

consolidação do Projeto Político-Pedagógico, Escola Sem Fronteiras, a nova gestão

contribuiu para consolidação do Conselho Municipal de Educação (COMED), criado em

1994. Criou, também, em 1998, seu próprio Sistema de Ensino sob a Lei nº. 5.196 que,

construída em parceria com o governo estadual e respeitando o cumprimento das leis

nacionais, permitiu maior autonomia aos municípios para organizar e regulamentar o ensino

em instituições públicas municipais e de educação infantil privadas.

A Lei Municipal nº. 5.196 (BLUMENAU, s/db, p.11), em seu Art. 10º, delibera que o

Ensino Fundamental de Blumenau tem por objetivos específicos

O domínio progressivo da leitura, escrita e do cálculo, portanto instrumentos para a compreensão e solução dos problemas humanos e o acesso sistemático aos conhecimentos; a compreensão das leis que regem a natureza e as relações sociais na sociedade contemporânea; o desenvolvimento da capacidade de reflexão e criação, em busca de uma participação consciente e transformadora do meio físico, político e social.

Apoiada por essa mesma lei, a Secretaria Municipal de Educação determinou que,

gradativamente, a rede municipal de ensino se comprometerá com uma reorientação

curricular. Isso está explícito em seu Art. 17 que assim preceitua:

A Rede Municipal de Ensino deverá, através de assessoramento da Secretaria Municipal de Educação e aprovação do Conselho Municipal de Educação, transformar gradativamente seus currículos, observando as normas da Lei de Diretrizes e Bases (nº. 9396/94), os parâmetros curriculares nacionais e estaduais e o sistema Municipal de Ensino, respeitando a realidade de cada comunidade onde se insere a Unidade Escolar. (BLUMENAU, s/db, p.11).

Cabe destacar que todo esse processo de implantação do projeto Escola Sem

Fronteiras vivido pela comunidade educacional de Blumenau não foi sempre tranqüilo ou

sem conflitos. A proposta previa coisas novas, nunca vistas, o que necessitou de muito estudo

e rupturas. Rupturas com costumes, crenças, rotinas, toda uma cultura escolar, todo um

conjunto de práticas pedagógicas já há muito tempo instaladas. Além disso, houve muita

resistência, angústia e ansiedade.

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A partir do que se explicitou e, levando em consideração a trajetória educacional do

município, se ousa dizer que o projeto Escola Sem Fronteiras foi um “marco” para a

educação do município. Marco porque foi a primeira proposta que “mexeu” com o aspecto

estrutural e com a flexibilidade dos tempos/espaços de acordo com os planejamentos locais,

propôs a ruptura radical com o tecnicismo, investiu na formação teórico-prática dos(as)

docentes e ofereceu espaços de estudo e pesquisa, bem como um local de encontro entre

pares, a Escola de Formação Permanente Paulo Freire .

Além disso, investiu na reorientação curricular e, pela primeira vez, se pensou nos

conhecimentos escolares e em sua seleção sem fazer a distinção entre conhecimentos

científicos e conhecimentos de senso comum, compreendendo que a articulação entre ambos é

necessária para a formação e a aprendizagem do educando, como também para a compreensão

do mundo, inserção crítica e transformação social.

A observação do cotidiano da escola campo de pesquisa, assim como a entrevista com

os (as) professores (as), permitiram compreender que a questão dos conteúdos foi uma das

questões mais difíceis de compreensão para os (as) professores (as), tendo recaído sobre ela

freqüentes queixas contra a gestão de 1997. O descontentamento era para com a “falta de

orientação” da Secretaria Municipal de Educação por não oferecer a listagem dos conteúdos,

ditos ideais, que deveriam ser trabalhados anualmente. Esse ideário se justifica se levar em

consideração a política de educação tradicional que, por muitos anos, levou à frente do

processo, gestores e especialistas como os “mais indicados” para oferecerem a relação de

conteúdos “mais adequados”.

O ideário que norteou a implantação dos ciclos no Brasil, trazidos pela renovação

pedagógica da década de 1980, visava, em especial ao questionamento dos conhecimentos

pedagógicos e suas formas de seleção, a organização rígida dos tempos/espaços escolares e os

índices de retenção e evasão. Nesse sentido, seu objetivo era oferecer espaços de educação

inclusiva e gestão democrática. Essa tendência, que já fazia parte das discussões antes mesmo

da gestão de 1997, exigiu opções desta face de sua implantação e conseqüente gestão.

Logo, na busca por subsídios teóricos, a gestão de 1997 encontrou respaldo nas teorias

críticas e na psicologia para pensar a escolarização e suas problemáticas. Assim, de acordo

com a perspectiva sócio-histórica, em especial, na perspectiva de Vygotsky, e almejando

encontrar respostas para garantir a todas as crianças sucesso na aprendizagem, não deixou de

traçar um ideal de sujeito, de forma de aprendizagem, de assimilação do contexto social, de

interação e de organização da escolaridade.

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Nesse sentido, ao mesmo tempo em que encontrou alternativas para romper com um

grande número de questões até então tidas como tranqüilas e, até, naturais, também não

deixou de oferecer uma proposta que visava a uma determinada forma de pensar educação, o

processo de ensino-aprendizagem e a postura docente. Ao propor o ciclo a partir das

temporalidades humanas, a gestão municipal de 1997 também delineou sua forma de

compreender como deve ser a organização da escolarização. Conseqüentemente, ofereceu

pistas e conduziu o pensar e o agir dos (as) professores (as) para que, ao elaborarem seu

planejamento e suas intervenções, levassem em consideração as categorias da psicologia

sócio-histórica. Assim, o (a) professor (a) adequado era aquele (a) que buscasse subsídios

nessas orientações e soubesse como conduzir a prática cotidiana a partir delas.

É necessária uma outra organização do trabalho docente que possibilite tempos de planejamento, avaliação e estudo coletivos, pois uma educação pautada em uma concepção sócio-histórica pressupõe uma cultura da interação também para os adultos, ou seja, os profissionais da educação. [...] Ser um educador comprometido na garantia dos direitos dos educando é algo bastante complexo, que exige paciência, reflexão, humildade, ousadia, determinação e vontade política. [...] É, portanto, uma opção. Uma opção de uma concepção de homem e mulher, de vida, de sociedade e de uma postura que se contrapõe à [...] exclusão e segregação da maioria dos educandos pobres. (BLUMENAU, 2004, p.9).

No ano de 2003, houve eleições municipais, e o partido dos trabalhadores perdeu. A

nova gestão, já em janeiro de 2004, decretou o retorno do regime seriado para todas as

escolas, conforme anexo III, o fim dos tempos de estudo e pesquisa internos e a jornada de

trabalho e prometeu enviar às escolas uma nova proposta curricular49.

Conforme dados retirados do documento Ensino Fundamental: vivenciando tempos e

espaços, organizado pela Secretaria Municipal de Educação e publicado em junho de 2004, as

escolas estavam estruturadas da seguinte maneira: 19 escolas com todos os três ciclos, 7

escolas com somente os dois primeiros ciclos, 7 escolas com somente o primeiro ciclo, 6

escolas totalmente seriadas e 11 escolas multisseriadas50 (isoladas).

Assim, no que diz respeito ao ensino fundamental, Blumenau conta, hoje, com 50

escolas, dentre as quais 39 estão situadas por toda Blumenau e são consideradas Escolas de

Educação Básica Municipal e 11 estão situadas nas zonas mais afastadas, sendo, por isso,

chamadas de multisseriadas. Até fevereiro de 2006, a Secretaria Municipal de Educação de

49 Quanto à redefinição da proposta curricular, de acordo com as informações recebidas na escola campo de pesquisa, até o mês de outubro de 2005 ainda não havia chegado. O que aconteceram durante o ano foram alguns encontros, por área de conhecimento, promovidos pela Secretaria Municipal de Educação para elaboração de um currículo por área e séries. 50 As escolas multisseriadas representam as escolas criadas em comunidades mais afastadas do centro de Blumenau. Contam com um professor que trabalha com as turmas de pré-escolar a quarta-série e uma merendeira.

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Blumenau responde pela Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação de Jovens e

Adultos e Educação Especial. Conforme censo escolar de março de 2005, a Rede Municipal

de Ensino atendia, até outubro de 2005 e de acordo com informações da Secretaria Municipal

de Educação de Blumenau, a 23.929 alunos no ensino fundamental.

3.2 A Escola Campo de Pesquisa

Esta parte da dissertação objetiva apresentar a escola campo de pesquisa, situando-a

no município e no bairro, numa tentativa de compreender sua construção e trajetória político-

educacional. Para isso, consultaram-se o Histórico, atas de reuniões pedagógicas e o Projeto

Político-Pedagógico da escola.

A escola campo de pesquisa está situada na cidade de Blumenau, como já

mencionado, Rua Florânia, 464, Bairro da Velha51, que era uma das colônias que pertencia ao

Dr. Hermann Bruno Otto Blumenau. Sua criação se deu pelo Decreto Municipal nº.1349, e as

aulas iniciaram no dia 15 de março de 1979. Chamada Escola Reunida quando de sua

abertura, atendia somente a turmas de 1ª a 4ª série.

No dia 05 de maio de 1979, realizou a primeira reunião de pais e professores (as) na

qual foram tomadas as decisões de promover festa de inauguração, fazer compra e instalação

de uma placa de bronze marcando a criação da escola e proceder à organização da eleição

para a primeira diretoria da Associação de Pais e Professores (APP).

Desde sua instalação até o ano de 1981, a escola esteve sob a responsabilidade do

professor Romeu Hass, sendo que, a partir disso, passou a contar com diretores indicados.

Quando inaugurada, possuía 02 salas de aula, secretaria, gabinete, instalações sanitárias para

alunos e professores (as), 01 cozinha e 01 galpão. Desde essa data, até outubro de 2005, a

escola tem sido gradativamente ampliada para atender à crescente procura pela comunidade

local.

Com a Portaria nº. 212 de 11 de outubro de 1983, a escola fica autorizada a funcionar

como Escola Básica Municipal, estendendo assim o atendimento a todo o Ensino

Fundamental.

51 O Bairro da Velha tem como suas principais sustentações econômicas a indústria e o comércio, nele estando instaladas desde grandes empresas à empresas de pequeno porte, como de confecções. Além disso, o Bairro é conhecido por sediar o complexo da PROEB, onde é realizado desde a Oktoberfest até exposições, feiras, constituindo-se num importante centro de circulação da população blumenauense. O bairro também mantém tradições como grupos folclóricos, festas de tiro com a consagração de reis e rainhas, festas de igreja e, espaços de convívio social como Centros de Caça e Tiro, Associações de Moradores e Clubes Desportivos.

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Desde 1990, a escola realiza eleições diretas para a escolha da direção, conforme

Decreto nº. 3340 de 1989, segundo o qual as escolas municipais, a partir de março de 1989,

devem constituir assembléias a fim de organizar suas comissões eleitorais compostas por

professores (as), pais e alunos.

Conforme seu Projeto Político-Pedagógico (2004, p.12), a escola atende a uma

comunidade formada, em sua maioria, por filhos de operários, pedreiros, autônomos,

professores (as), comerciantes e trabalhadores de serviços gerais. Do documento também

consta que na, maioria das famílias, o pai e a mãe estão inseridos no mercado de trabalho para

a melhor manutenção do lar.

O Projeto Político-Pedagógico ainda registra que a maioria dos alunos tem o apoio e

auxílio dos pais na realização das tarefas escolares e no acompanhamento da aprendizagem.

Para a escola, esse acompanhamento constitui uma das vantagens para a realização de um

trabalho participativo com a comunidade.

Durante seus anos de existência, a escola aqui enfocada tem participado dos desfiles

da cidade, dos Jogos da Primavera52, havendo época em que ofereceu canto coral e aulas de

balé. Instalou sua Biblioteca em 1990 e fundou seu Clube de Ciências em 1992. Realiza

homenagens cívicas, festas de integração com a comunidade e arrecadação de fundos e

demais eventos culturais.

A escola campo de pesquisa optou pela implantação dos ciclos de forma gradativa. Em

1998, juntamente com mais 28 escolas do município, implantou o primeiro ciclo; em 2001, o

segundo ciclo (9, 10 e 11 anos); no ano de 2002, o terceiro ciclo, turma de 12 anos; em 2003,

turma de 13 anos; e, em 2004, efetivou o terceiro ciclo, com a implantação na turma de 14

anos.

O ciclo, na escola campo de pesquisa, a exemplo do que ocorreu em outras, não

constituiu movimento tranqüilo: a cada implantação ocorreram debates, defesas e resistências.

Como a adesão e a gradativa implantação se deram por meio de votação, uma parte dos

educadores aprovou e outra não. Esses conflitos podem ser percebidos nas falas de duas

professoras, quando explicitaram:

52 Os Jogos da Primavera de Blumenau (JEPB) foi idealizado por José Maria Nunes, ex-fundista e campeão dos Jogos Abertos de Santa Catarina. Esta idéia surgiu do interesse em congregar estudantes de todas as escolas da cidade. Até 2005, foi considerado o maior evento poliesportivo estudantil do sul do país. Sua primeira edição foi em 1974 a qual contou com a participação de 15 escolas, envolvendo 500 alunos/atletas. Na edição de setembro de 2005, contou com a participação de 64 escolas e 8.000 atletas que competiram em 17 diferentes modalidades esportivas.

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S353 - Aqui em Blumenau muitas pessoas não queriam a proposta por ciclo. Então, a

maioria se voltou ao ciclo. [...] E teve escolas que não foram ciclo. Não aceitaram o

ciclo porque acreditavam que tinha que ter uma preparação, todo um estudo para estar

mudando.

S4 - Eu acho que nestes 8 anos de Escola Sem Fronteiras a gente teve um avanço

grande. Da gente pensar coletivamente [...] porque todo mundo a gente via que dava de

tudo [...] é uma pena que quebrou radicalmente. Isso eu não espera [...] Eu acho que a

gente ‘patinou’ bastante. A gente teve discussões ‘normais’ em termos de ciclo, que não

é fácil. Mas eu acho que todo mundo cresceu bastante.

A partir de 2005, a escola voltou ao regime seriado devido à mudança de governo

municipal. Os tempos de estudo e pesquisa e os tempos do ciclo ou tempos da escola foram

retirados e ficou resguardada aos (às) professores (as) a possibilidade de se encontrarem para

discutir, planejar, avaliar e replanejar nos encontros de reunião pedagógica que, agora, são

somente cinco por ano. Além disso, retornou a avaliação por notas e de regime bimestral.

A Ata de reuniões pedagógicas do dia 09 de fevereiro de 2005 (p.98) tem registrados

os encaminhamentos da nova administração municipal:

A diretora fez os repasses da reunião de diretores, [...] colocou as metas da Secretaria

de Educação: revisão do currículo, plano de cargos e salários, organização da parte

administrativa, obras com qualidade, mudança para média sete.

É interessante apresentar que, mesmo com a retirada dos tempos de estudo e pesquisa,

o coletivo de professores (as) da escola, juntamente com os coordenadores pedagógicos, vem

construindo formas de interação para estudo e discussão coletivas. Para além dos encontros

pedagógicos, ficou estipulado que, uma vez a cada quinze dias, nas aulas de educação física,

os (as) professores (as) que trabalham com as mesmas turmas/séries, juntamente com os

coordenadores pedagógicos, farão encontros para planejamento e avaliação coletivos.

Este combinado merece destaque, pois, mesmo em face de uma nova gestão que

decreta o fim dos ciclos e a retirada de todos os tempos/espaços de estudo e pesquisa internos

à jornada de trabalho, o coletivo de educadores encontra alternativas dentro de uma estrutura,

novamente rígida, para dar continuidade aos encontros coletivos de planejamento e discussão

das práticas docentes. Diante disso, nota-se que, para este coletivo de educadores, os

53 Por medida de preservação da identidade dos professores que fizeram parte desta pesquisa, utilizou-se a letra S acompanhada de número para identificação dos mesmos.

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espaços/tempos de estudo e pesquisa eram considerados importantes para reflexão da prática,

construção coletiva dos conhecimentos, garantia das aprendizagens e gestão democrática.

Neste sentido, arrisca-se dizer que esse sistema de raciocínio foi uma das mudanças

que a gestão de 1997 conseguiu implementar. O combinado assumido pelo coletivo escolar

mostra que, nesse ponto, os educadores modificaram sua forma de pensar e agir com relação

aos planejamentos escolares e aos tempos rígidos. A tentativa de “mexer” e “reorganizar” os

tempos/espaços em favor dos interesses coletivos e da articulação teórico-prática é um bom

exemplo disso.

Em entrevista, uma professora, falou sobre os sentidos que ficaram com a retirada dos

tempos/espaços de estudo e pesquisa coletivos:

S4: O movimento que a gente tinha [...] era muito legal. Eu sinto falta porque nestes

movimentos a gente foi construindo junto: aluno, professor, comunidade. [...] Eu acho

que foi uma proposta que ousou fazer uma coisa diferente. Não tem mais oficinas, não

tem mais o dia de estudo para estar elaborando uma coisa especial, sabe? Estar

fazendo o planejamento juntos. [...] O implantado aqui na escola é assim: a gente se

encontra com as coordenadoras nesses poucos espaços que a gente tem de educação

física, para estar discutindo como é que está o planejamento, o que poderia melhorar, o

que a escola pode conseguir. [...] Eu acho que é no coletivo que a gente troca muitas

experiências, muitas idéias [...] no sentido de a gente crescer junto. [...] A gente tirava

as dúvidas, as angústias, a gente estudava muito, muito! E isso é uma grande

dificuldade porque a gente não tem mais o tempo para nada na escola.

Além disso, vale apontar que o coletivo de educadores da escola investigada vem

fazendo o acompanhamento das novas direções políticas da educação no Município e, em

especial, o interesse em compreender quais as novas diretrizes que a gestão de 2005 propõe

para a garantia do sucesso, permanência e aprendizagem dos alunos. Isto está explícito na Ata

de reunião pedagógica do dia 09 de fevereiro de 2005 (p.98):

A [...] colocou que acha que o fim do ciclo foi uma decisão política. Colocou as

preocupações em relação à avaliação e que a discussão deve estar pautada na

aprendizagem. Todos devem se dar as mãos para garantir a aprendizagem dos alunos.

Essa preocupação manifestada pelos (as) professores (as) merece atenção. Aponta para

uma leitura crítica e política acerca dos novos rumos da educação do Município e representa,

ainda, a preocupação desse coletivo com a garantia das aprendizagens. Neste ponto, a leitura

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que se faz está relacionada com o movimento que a educação de Blumenau viveu durante a

gestão de 1993 e que se radicalizou em 1997. Esse movimento foi representativo da ruptura

com o modelo de educação centralizadora; da naturalidade diante dos altos índices de

retenção e evasão, símbolos de uma educação excludente; e do papel de meros cumpridores

de tarefa, atribuído aos (às) professores (as), destituindo-os de sua ação política.

Além disso, quanto a avaliação, percebe-se que os (as) professores (as) a consideram

instrumento de questionamento, em especial quanto ao seu papel e função. De acordo com o

Projeto Político-Pedagógico da Escola Sem Fronteiras, o papel da avaliação é de

redimensionadora da prática, e não de punição.

A escola, até outubro de 2005, contava com 604 alunos e 56 funcionários, dos quais

392 alunos das séries iniciais e 17 professores (as) que trabalham com esses grupos. O

coletivo que atende às séries iniciais é composto de 12 professores (as) regentes, 3 de

educação física, 1 monitor de informática e 1 professor (a) de reforço.

3.2.1 O Projeto Político-Pedagógico

A escola investigada construiu e sistematizou seu primeiro Projeto Político-

Pedagógico em 1996. O livro Ata de Reuniões Pedagógicas e o Histórico apresentam que esse

foi um momento intensamente vivido pela escola. Segundo o Histórico, em fevereiro de 1995,

teve início a discussão do Projeto Político-Pedagógico com os (as) professores (as).

O pensamento que permeou o início dessa construção coletiva carrega o ideário que,

para o sucesso do mesmo, é preciso juntar esforços, persistência e organização da equipe

escolar. A importância que naquele momento se atribuía à construção coletiva do

conhecimento está presente em outra passagem do Histórico:

Quando a gente sonha sozinho, não passa de um sonho. Quando a gente sonha junto é

a realidade que começa. [...] O projeto não nasce pronto, não começa de uma só vez,

inicia às vezes com um pequeno grupo de pessoas – professores - ele vai acontecendo

[...] rumo a uma escola boa, com ensino de qualidade.

Além disso, uma passagem do livro Ata de Reuniões Pedagógicas permite perceber

que a escola já vinha discutindo a importância de organizar coletivamente sua proposta. Isso

está explícito no registro da primeira reunião pedagógica do ano de 1995, ano em que a

sistematização do Projeto Político-Pedagógico aconteceu em toda a rede. Na Ata do dia 10 de

fevereiro de 1995, (p.26) encontra-se:

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A diretora [...] colocou a proposta para os trabalhos do dia dirigidos ao Projeto

Político-Pedagógico. Falou que todo o material recebido no curso já vinha ao encontro

do que era discutido nos nossos encontros, na elaboração de nossa filosofia, objetivos,

cronograma, já estávamos iniciando o nosso projeto pedagógico [...] a seu ver, o grupo

presente já está pronto para partir para os encaminhamentos.

Em março de 1995, foi organizado o primeiro encontro com os pais. Esse encontro,

conforme consta no Histórico escolar, era um desafio à gestão democrática. O objetivo foi,

respeitando a comunidade e a convidando para a tomada de decisões, chegar à construção de

uma proposta educativa de qualidade.

A filosofia que permeou a construção do primeiro Projeto Político-Pedagógico foi a

que já se vinha sendo traçada pelo coletivo desde 1993: Criar condições para o educando

construir sua própria história como ser participante e transformador da realidade. A partir

dessa filosofia, foi construído todo o conjunto de objetivos, ações e organogramas que

permeariam a consolidação do Projeto em 1996.

Durante os encontros de 1995, o que norteou a construção do Projeto Político-

Pedagógico foi a necessidade de refletir sobre a escola que “se tem”, a escola que “se quer” e

as ações necessárias à escola que “se almeja”. A leitura das atas permitiu compreender que,

em síntese, a escola que “se tem” foi elaborada a partir dos índices de reprovação e

repetência. A partir disso, a reflexão sobre a escola que “se quer” indicou a necessidade da

reformulação do currículo básico. O objetivo, respeitando a filosofia da escola, foi traçar os

conteúdos a serem trabalhados para que, ao final do processo, todos os alunos atingissem o

mesmo nível de conhecimentos.

Nesse momento, não era feito o questionamento sobre os tempos/espaços rígidos, as

formas de seleção dos conhecimentos, os critérios de classificação dos alunos nem as

propostas de educação que não consideravam as particularidades dos sujeitos envolvidos no

processo de ensino-aprendizagem. A preocupação estava, centralmente, em reduzir os índices

de repetência e evasão. Para isso, era considerado que uma seleção adequada dos

conhecimentos seria a solução. Considera-se que esse sistema de raciocínio seja resultado da

política educacional que existia no município até então. Assim, ao mesmo tempo em que se

objetivava encontrar alternativas para a inclusão, continuava o processo de exclusão das

crianças que não apresentavam sucesso escolar conforme padrão criado pela escola.

Proporcionando uma análise mais apurada da elaboração de índices de reprovação e

repetência em políticas públicas, Popkewitz (2001) leva à compreensão de que estas são

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formas aplicadas de classificação, visando proporcionar meios para leitura e controle

populacional. Esse mecanismo, chamado de racionalidade populacional, surgiu na gerência

dos estados-nação como alternativa racional para administrar, controlar e organizar as grandes

populações. Trazidas para a educação, essas classificações funcionaram como estratégias para

melhor administrar as infâncias e como forma para dividir, atribuir níveis de competência e

padrões para o pensamento e ação, não levando em consideração particularidades,

individualidades e diferenças.

A racionalidade aplicada à população é parte da lógica criteriosa da escolarização. Não é mais desenvolvida apenas como um raciocínio do Estado ou administrativo, mas como um raciocínio pessoal do professor sobre a maneira como deve dispor e identificar as crianças. As probabilidades estatísticas parecem ser atributos individuais essenciais de uma criança. (POPKEWITZ, 2001, p.54).

Essas formas de racionalidade populacional não surgem para questionar os padrões de

referência que se utilizam para incluir e excluir, classificar e atribuir níveis de competência.

Pelo contrário, “Os discursos sobre o fracasso aparece tendo como base comportamentos

‘corretos’ [...] que arrolam alguns princípios normativos morais, sociais e universais sobre o

modo como uma pessoa deve agir”. (POPKEWITZ, 2001, p.55).

Nesse processo, os alunos não são percebidos em suas individualidades, mas a partir

de categorias e diferenciações que os colocam em conjuntos normativos. Esses conjuntos

normativos, quando chegam às escolas, agem como categorias “racionais” e “naturais” a

partir das quais constroem classificações e traçam formas para o pensar e o agir, tanto de

alunos como de professores (as). As análises de Popkewitz deixam a descoberto que é preciso

uma leitura mais criteriosa das formas que se utilizam para justificar a reorientação curricular.

A Ata de reuniões pedagógicas do dia 10 de fevereiro de 1995 (p.27) apresenta o

ideário que orientou a reorientação curricular durante a construção e sistematização do Projeto

Político-Pedagógico de 1996:

Será priorizado o ensino básico replanejando os conteúdos trabalhados desde o pré até

a oitava série para que haja uma seqüência e que seja trabalhado o conteúdo básico;

Procurar em atividades ou nas próprias explicações fazer com que o aluno participe

ativamente; Desenvolver o senso crítico do aluno; melhorar cada vez mais a relação

professor X professor e professor X aluno; Planejar as atividades integrando as várias

disciplinas; [...] Adequar os conhecimentos a realidade.

Além do exposto, na continuidade da mesma (p.27), também há o registro das normas,

tidas como ideais, para o pensamento e a ação dos (as) professores (as).

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[...] responsabilidade profissional, assiduidade, pontualidade, organização,

preservação, comprometimento, trabalho de equipe e disciplina. Em seguida (a

diretora) falou sobre o respeito à individualidade, não julgar as atitudes dos colegas,

[...] agir com coerência.

A análise desse processo permite afirmar que o período de elaboração do Projeto

Político-Pedagógico foi um importante momento de organização dos objetivos e ações a

serem atingidas. Contudo, também sinaliza que o objetivo era a construção de padrões de

referência a seguir, ou seja, que emergisse nos discursos educacionais a necessidade de

repensar as formas de transmissão e seleção dos conhecimentos, a apresentação das

atividades, as formas de relação e interação, os objetivos educacionais, etc. Naquele

momento, não havia o questionamento sobre os meios que justificavam as reformas, as formas

de seleção dos conhecimentos, as formas rígidas de organização dos tempos/espaços escolares

e as normas e padrões de orientavam o pensar e o agir, tanto de professores (as) como de

alunos.

A ênfase estava na elaboração, na organização e na seleção de conteúdos a serem

trabalhados e na construção de padrões de referência para as ações. A Ata do dia 25 de maio

de 1995 (p.29) apresenta que os conteúdos a serem trabalhados nas séries iniciais partiram da

indicação dos (as) professores (as) de 5ª a 8ª série:

A diretora iniciou colocando o trabalho que vem sendo realizado de integração que

vem ao encontro do nosso plano político-pedagógico. Solicitou à supervisora que

colocasse o que foi sugerido pelos professores de quinta a oitava série, que deveria ser

trabalhado mais de primeira a quarta série. Nas disciplinas ciências seriam: ar, água e

solo com interpretação de textos. Matemática: problemas envolvendo as quatro

operações e conjuntos. Português: estrutura das palavras, verbo (tempo verbal) na

terceira série em diante. Desenvolvendo a interpretação, leitura e escrita. [...] Estudos

Sociais: interpretação.

Nesse contexto, percebe-se como o poder de seleção dos conteúdos mínimos foi

deixando de ser dos especialistas para serem assumidos pelos (as) professores (as) de 5ª a 8ª

série, considerados especialistas na área de conhecimento. Por essa época, os Parâmetros

Curriculares Nacionais, em discussão, enfocavam a necessidade da estipulação de um

currículo mínimo, um ensino que levasse em consideração a participação ativa do aluno e a

elaboração de conteúdos que considerassem a realidade dos alunos e as particularidades de

sua localidade.

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No ano de 2001, o Projeto Político-Pedagógico foi reformulado. Em 2004, aconteceu

sua segunda reformulação, decorrente de uma determinação do Conselho Municipal de

Educação.

Tanto o Projeto Político-Pedagógico de 2001, como o de 2004, foram reformulados

em uma escola que já se encontrava organizada por ciclos. Após reestruturação da escola por

ciclos, o coletivo docente começou a levar em consideração, em seus planejamentos e

encaminhamentos, a flexibilidade que permite os novos tempos e espaços do ciclo

(possibilidade de reorganizar os grupos, conselhos participativos, projeto Tarefa a Distância,

novas formas de avaliação). Nesse ponto, a investigação permitiu compreender que o coletivo

passou a perceber esses novos tempos/espaços também como lugar de ensino-aprendizagem.

Os momentos de reuniões pedagógicas e de estudo e pesquisa objetivavam o planejar,

o avaliar e o replanejar as ações. Nesses encontros, as pautas indicavam o interesse por

localizar os entraves à ação educativa, construir formas mais adequadas de atendimento e

atentar para a elaboração de um trabalho que levasse em consideração os tempos de vida e o

desenvolvimento dos educandos. Os sistemas de raciocínio que nortearam esses

tempos/espaços indicavam a importância da articulação teórico-prática e a compreensão dos

(as) professores (as) como sujeitos atores deste processo.

Ressalta-se que a escola, após implantação do projeto Escola Sem Fronteiras,

seguindo orientação da Secretaria Municipal de Educação, passou a elaborar seu currículo

levando em consideração o que se chama “perfil dos educandos”. Todo ano, no início e no

final do ano, os (as) professores (as) responsáveis pelas turmas deveriam elaborar um perfil

dos grupos. Esses perfis serviam de orientação para o planejamento anual e como indicativo

para o planejamento do ano seguinte.

Os perfis buscavam contemplar: Qual a realidade social, econômica e cultural desses

grupos? Como se apresentam as relações familiares? O que sabem os alunos? O que

gostariam de aprender? Quais valores apresentam? Quais necessidades, sonhos, angústias,

expectativas, vivências, interesses? Quais as características das turmas quanto às formas como

aprendem?

Esses perfis representavam, na Escola Sem Fronteiras, uma alternativa para

articulação da escola e seus conteúdos com a realidade dos alunos e seus significados. De

posse desses perfis, a indicação era que a organização do planejamento, a partir deles, levasse

em consideração, entre outras, as seguintes questões: Onde estamos? O que precisamos?

Quais conteúdos e situações de aprendizagem favorecer para garantir o desenvolvimento dos

grupos? Como avaliar? Que tempos e espaços diferenciados de aprendizagem oferecer?

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As atas de reuniões pedagógicas também indicam que, a partir de 2002, o coletivo de

educadores considerou mais adequado outras formas de planejamento, como, por exemplo, os

projetos de trabalho. Isso, desde o 1º ao 3º ciclo. Para esse coletivo, essa forma de

planejamento permitiria os meios mais adequados para um trabalho de enfoque na construção

coletiva dos conhecimentos, bem como de participação ativa dos educandos nos processos de

aprendizagem.

Na leitura e análise do Projeto Político-Pedagógico de 2004, chamou a atenção da

pesquisadora o fato de que não havia mais uma “filosofia” norteando as ações da escola. Essa,

inclusive, nem consta do mesmo; o que consta são objetivos. O objetivo geral apresentado

pelo Projeto Político-Pedagógico (2004, p.5):

Este projeto político-pedagógico tem por objetivo nortear a ação pedagógica, partindo do trabalho coletivo dos professores, reorganizando, adequando os conteúdos à realidade do educando, garantindo uma concepção de homem crítico, transformador, criativo, honesto, saudável, que tenha conhecimento científico, capaz de mudar o mundo, com valores éticos e morais equilibrados, num mundo justo, igualitário, conscientes de seus deveres e direitos.

Também consta do projeto a concepção de uma escola que:

[...] atenda às reais necessidades do aluno. Uma escola que se proponha participativa, comprometida com um saber significativo, crítico e que tenha relação com a vida do educando e favoreça tomada de decisões coerentes sobre si mesmo e o mundo. [...] Queremos uma sociedade democrática, cujos princípios da democracia precisam ser exercitados na prática cotidiana. (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2004, p.17).

O Projeto Político-Pedagógico de 2004 também apresentou a indicação de que alunos

a escola almeja formar, que tipo de aulas proporcionará, como organizará os conselhos de

classe, o processo avaliativo e, de uma forma bem minuciosa, os objetivos gerais e específicos

de cada ciclo. Tudo isso na tentativa de se adequar aos preceitos do projeto Escola Sem

Fronteiras.

O Projeto Político-Pedagógico indica uma escola comprometida com um saber

significativo, crítico e transformador, para a importância de repensar os tempos/espaços

escolares, para a necessidade da participação e exercício democrático, para a seleção e

organização dos conhecimentos de acordo com os conhecimentos prévios dos alunos, tendo

como referencial sua realidade.

Contudo, uma nova leitura de sua concepção e objetivo permite dizer que, mesmo

objetivando trabalhar com conteúdos que façam relação com a realidade dos alunos e seus

significados, não deixou de marcar, explicitamente, um ideal de sujeito portador de

conhecimento científico, com valores “morais equilibrados”, que possam tomar decisões

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“coerentes” sobre si e o mundo. Pertinente a esse ponto, argumenta-se que, embora se

apresente “sutil”, essa opção constrói classificações acerca do sujeito permitido e do outro que

está em espaço de oposição.

Salienta-se, também, que não se percebe uma reflexão acerca dos conhecimentos que

se tem selecionado, do por que dessas seleções, e não outras, nem a quem servem as seleções.

Além disso, não se vislumbram debates que se ocupem em compreender como funcionam o

currículo oculto e suas relações de poder na escola, tampouco questões como relações de

gênero, classe, etnia e sexualidade.

Na ata de reuniões pedagógica do dia 04 de setembro de 2003, há a indicação feita

pela coordenação pedagógica da inclusão, no Projeto Político-Pedagógico, das mudanças

ocorridas na escola. Por outro lado, em entrevista com educadores, quando a eles se perguntou

se conheciam o Projeto Político-Pedagógico da escola, indicaram:

S2 - Não, esse não. Eu acho que a gente deveria estar por dentro. [...] Eu acho que

numa primeira reunião do ano isso deveria ser passado... [...]. Embora a gente também

poderia ir atrás, lógico. Mas, como é papel enquanto escola apresentar o Projeto

Político-Pedagógico, seria bom.

S10 - Conheço vagamente. [...] já sugeri que tivesse xerox desse material, mas não sei,

nunca houve interesse. [...] Para falar a verdade, a última vez que eu lembro desse

PPP, nos sentamos os professores, com direção e discutimos. Isso foi, eu acho que

quando foi implantado o ciclo. E depois disso eu ouvi dizer que foram feitas algumas

alterações, mas quem fez, que grupo fez, não foi o grupo todo. Que eu acho que é o

mais correto.

As entrevistas levam a compreender que os professores (as) desconhecem o Projeto

Político-Pedagógico da escola ou não participaram de sua elaboração no que se refere à

sistematização dos propósitos e objetivos educacionais, pois, quando questionados (as) sobre

o Projeto Político-Pedagógico, não souberam indicar o seu conteúdo.

No que diz respeito ao planejamento de início de ano, em entrevista, os (as)

professores (as) indicaram que foi feito por série uma lista dos conteúdos que seriam

trabalhados durante o ano, sem retorno ao Projeto Político-Pedagógico de escola, conforme

mostra S3:

S3 – Não, assim, [...] a única coisa que exigiram da gente é que a gente apresentasse

um plano anual de trabalho com aquela determinada faixa etária da criança. [...] não

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foi colocado quais são as necessidades, quais são as realidades. [...] olha, em uma

primeira reunião, o PPP deveria ser colocado, [...] o perfil da nossa comunidade

escolar. [...] Mas, não foi apresentado nada...

Não só não houve um retorno ao Projeto Político-Pedagógico da escola, como também

parece haver uma incerteza com relação aos novos rumos da educação para o ano de 2005.

Assim, por indicação da gestão de 2005, de acordo com as informações colhidas durante as

entrevistas, o planejamento foi a eleição dos conteúdos/disciplinas a serem trabalhados em

cada série. Alguns(mas) professores (as) indicaram retirar os conteúdos de livros didáticos;

outros, das escolas em que trabalham no período oposto; alguns, da sugestão da professora

com mais anos de trabalho naquela série/turma; ou, ainda, como no caso das turmas de 4ª

série, da relação oferecida pelos (as) professores (as) de 5ª série.

As palavras de S11 constituem um exemplo de como foi o planejamento em 2005:

S11- Nós tivemos um espaço de discussão de professor por série.[...] os professores de

3a planejavam juntos, de 1a juntos, professores de 2a juntos, de 4a juntos. [...] Por

exemplo, professor de 4a série, veio dois professores da 5a série. [...] então eles

chegaram para nós e falaram: - O aluno da 4a série tem que sair sabendo isso, isso,

isso e isso. Eu acho que vocês deveriam trabalhar isso, isso, isso e tem estes livros aqui.

Essa foi a única discussão. [...] Eles estavam com livros de 5a série na mão, livros que

são de área.

Nas atas do mês de agosto de 2005, há a indicação da necessidade de começar a incluir

no Projeto Político-Pedagógico as necessidades da escola e as novas direções.

Uma suposição que está por trás de grande parte dos discursos contemporâneos sobre o ensino é que há caminhos racionais [...] a escola eficaz, o professor eficiente e autêntico. O mundo é visto como baseado na certeza e em práticas organizadas com lógica. Porém, quando examinamos as práticas de reformulação de políticas e pesquisa, não encontramos segurança moral, política e cultural. A promessa de pesquisa e avaliação na escola não está em prognosticar o que deve ser feito para ajudar os ‘outros’, mas em compreender a política do conhecimento que produz os temas da reforma. (POPKEWITZ, 2001, p.15).

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4 CURRÍCULO COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL E NORMALIZAÇÃO DE UMA ORDEM PARTICULAR DE PENSAMENTO E AÇÃO

Meu passo inicial consistiu em focalizar o currículo como um problema histórico particular a fim de compreender como o poder produzido através da produção de regras e padrões de verdade. Nessa concepção, a história do currículo [...] consiste em investigar o que conta como evidência, as regras pelas quais a verdade é estabelecida e os efeitos de se ter algumas coisas contando como evidência e verdade enquanto outras coisas são desautorizadas e consideradas falsas. (POPKEWITZ, 1994, p.205).

Este capítulo objetiva apresentar quais são as principais idéias sobre o currículo

presentes nos discursos dos (as) professores (as) de uma escola do município de Blumenau,

SC. Objetiva-se, mais especificamente, com o auxílio do referencial teórico de Thomaz

Popkewitz, entender como as idéias presentes nos currículos chegam aos (às) professores (as)

determinando o significado que os (as) mesmos (as) atribuem a ele e os (as) fazem

transformá-lo em prática institucional para, então, se compreender o currículo da escola.

Para se chegar a essa compreensão, construiu-se a análise pelo estabelecimento de

relações entre o currículo da escola enfocada e o histórico das tendências curriculares no

Brasil, as políticas oficiais de currículo de Blumenau, SC, os principais sistemas de

raciocínios e de conhecimentos que se percebem presentes nos discursos docentes, as

observações de campo e o Projeto Político-Pedagógico da escola campo de pesquisa.

A investigação de como funcionam as relações mencionadas visa compreender como,

social e historicamente, os conhecimentos sobre a escolarização e o currículo (sua

epistemologia social), seus regimes de verdade e suas práticas institucionais são produzidos e

permeados por relações de poder. Para Popkewitz, a análise da escolarização, da reforma e do

currículo, a partir da Epistemologia Social, possibilita

Chegar mais perto de uma metodologia que analisa a intersecção do conhecimento, do poder e das práticas situadas historicamente. Neste contexto, torna-se aparente que a aquisição e a alteração do conhecimento (epistemologia social) ocorrem quando as continuidades e descontinuidades das relações estruturais se associam às práticas e fatos institucionais. (POPKEWITZ, 1997, p.39).

Longe de propor um modelo único de análise do currículo, Popkewitz vem

aprofundando seu estudo na compreensão das epistemologias sociais, práticas institucionais,

condições históricas e relações de poder que envolvem a construção do currículo. De acordo

com suas investigações, a alteração nos regimes de verdade está relacionada a mudanças nas

relações estruturais e a influências sociais, políticas, econômicas e culturais.

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Assim, para apresentar as principais idéias de currículo presentes nos discursos

docentes da escola pesquisada, seus sentidos e seus efeitos, dividiu-se este capítulo em três

partes. Neste percurso, apresenta-se o discurso dos (as) professores (as) em relação à

construção do currículo como lugar/espaço de regulação, como lugar/espaço de uma política

do conhecimento e como lugar/espaço da prática.

4.1 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação

Esta pesquisa entende currículo como lugar/espaço de regulação, da mesma forma que

Popkewitz. O referido autor (1997), como já citado, ajuda a compreender que a escola de

massa surgiu com o desenvolvimento do moderno Estado-Nação. Naquele momento, os

discursos previam que a garantia da escolarização serviria ao bem-estar social e à produção de

uma sociedade melhor e mais justa.

Contudo, a criação do currículo também necessitou de um conjunto de teorias e

estratégias para auxiliar no cuidado e governo da infância. Assim, pode-se dizer que a escola

moderna acabou se constituindo lugar de intervenção das ciências (psicologia, medicina,

política, economia), almejando construir uma outra escola em oposição à igreja que, até boa

parte do século XIX, esteve na gerência da escolarização. Assim, ao mesmo tempo em que

objetivava distanciar o ensino e, conseqüentemente, os indivíduos das intervenções e

determinações divinas, criou novos mecanismos para regular e disciplinar os sujeitos de

acordo com as necessidades de uma sociedade moderna e estatal.

Durante o século XIX e início do século XX, justificando os movimentos de reforma,

o ideário propagado era:

A mudança precisava ser evolutiva, incorporando noções racionais [...]. Acreditava-se que o controle da natureza, o desenvolvimento industrial e o aperfeiçoamento social trariam um novo mundo de perfeição. [...] Esta noção de progresso é fundamental para o pensamento pedagógico. [...] transmitiram a convicção de que deve haver formas de organização social bem ordenadas [...]. O conhecimento pedagógico visava proporcionar sistemas mais eficientes de supervisão moral e organização do trabalho. Os sistemas de aulas, notas, currículo e métodos de ensino passaram a formar parte da ordem escolar. (POPKEWITZ, 1997, p. 43)

Foi nesse contexto que cientistas e filósofos da educação, entre eles John Dewey,

começaram a elaborar teorias para a educação. Para Dewey, o controle racional da natureza e

das pessoas levaria ao progresso e à inovação da sociedade. Popkewitz (1994), buscando

subsídio nas teorias de Foucault, afirma que todo o processo de construção da escola moderna

e seu saberes, ou regimes de verdade, podem ser compreendidos como vontade de poder.

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Para Varela (1994), a escola de massa é resultado da ampla reorganização que as

políticas de Estado exercem sobre os saberes. Novas formas de organização social e de

relações nascem com a criação das instituições e agentes legitimados (entre eles, os

professores) para governo dos sujeitos, pondo-os a serviço do Estado. Nesse contexto, uma

outra forma de exercício do poder entra em cena: o poder disciplinar.

Nessa direção, é mister compreender que a escola surge com a concepção de que

“governar é fornecer estratégias através das quais o desenvolvimento e a disciplina possam ser

combinadas em nome do bem-estar social”. (POPKEWITZ, 1997, p.44). Para Popkewitz

(1997), todo o conjunto de aparatos da escola moderna, como regras, normas, instrumentos,

técnicas, horários, programas, uso dos tempos/espaços, práticas, estratégias de avaliação e

classificação da infância, etc., acabou se constituindo como “natural” e, até, necessário em

face dos sistemas de raciocínio e conhecimentos que o legitimaram naquele momento.

O que sabemos sobre a educação escolar (ou as crenças que temos nela), o que sabemos fazer para educar outra pessoa e as valorações e os motivos que elaboramos para agir com os demais enquanto educadores formam um conglomerado de componentes que acumularam uma longa experiência histórica da espécie humana em cada cultura ou em cada sociedade. Em todas elas existe essa pulsão de querer dirigir os menores com algum propósito que incorporou como significado o verbo educar. Uma de suas acepções (a de educare) é a de dirigir e encaminhar. As manifestações práticas do poder de “pôr a caminho” os menores [...]. É um poder que, embora seja justificado pelo bem dos sujeitos e da sociedade em geral, vem determinado por uma desigualdade natural entre o adulto e o menor. É, inevitavelmente, uma relação de poder que tem como ser exercida de muitas maneiras, que pode ser acentuada, atenuada ou delegada. A figura do menor como aluno, seu papel e localização específicos na família, na escola e na sociedade são uma construção cultural complexa, o resultado histórico [...] repleto de conflitos e de contradições. (SACRISTÁN, 2005, p.105, grifo do autor).

De acordo com Sacristán (2005), Popkewitz (1997) e Varela (1994), os séculos XVIII

e XIX foram efervescentes em teorias de como educar os menores. Durante esse processo, o

discurso geral sobre a educação levou à crença de que a escolarização representava o efeito do

progresso da humanidade e que a criação de instituições especializadas, de teorias (ciências

pedagógicas) e meios (práticas pedagógicas) mais refinados para o cuidado, disciplina e

proteção dos menores era necessária para a organização do mundo e modernização das

relações de produção.

É possível dizer que todo esse conjunto de estratégias, teorias e procedimentos

relacionado à escolarização foi ganhando crescente legitimidade a ponto de assumir, no século

XX, um caráter de questão pertinente para discussão nos espaços de formação sob o título de

currículo. Disso, para Popkewitz, resultou a construção de todo um conjunto de teorias e

práticas para regulação e normalização das formas de, na modernidade, pensar sobre as

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escolas, a educação, os alunos, os professores, os pais e a disciplina, bem como nas formas de

agir sobre os mesmos, sendo que, pelo que se percebe, deixou marcas até hoje.

4.1.1 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação da Escola

Em Santa Catarina e em vários estados brasileiros, foi no início do século XX que a

política estatal tomou para si o interesse pela universalização da oferta de ensino e construção

de uma política educacional. Na época, buscando subsídio na pedagogia ativa de Dewey, o

Estado investiu na definição de um papel para a educação do próprio Estado e para a

formação docente. Nesse sentido, a qualificação profissional deve ser compreendida como

espaço no qual as políticas públicas veiculam os sistemas de raciocínio e de conhecimentos

que consideram mais adequados para orientar seus sistemas de educação.

Para Popkewitz (2001), são importantes as investigações que levem em consideração:

como as realidades são construídas para os professores atuarem e fazerem com que a existência deles pareça útil. Meu ponto de partida é considerar a educação [...] como práticas discursivas que historicamente exibem sistemas de pensamento e regras de raciocínio particulares. Tais regras e sistemas produzem limites e fronteiras para o que é ou não possível ao professor que trabalha com crianças. (POPKEWITZ, 2001, p.26).

A política educacional de Blumenau, a princípio de cunho mais centralizado e, após,

mais descentralizado, caracterizou-se pelo interesse em acompanhar e adequar a educação aos

movimentos de renovação pedagógica que aconteciam em âmbito nacional. Resumidamente,

a trajetória educacional de Blumenau está dividida em três momentos: início do século XX,

caracterizada pela pedagogia do ensinar a fazer de tendência nacionalista; anos de 1970 e

1980, pelo tecnicismo de perspectiva disciplinar; e anos de 1990, em face do contexto de

abertura política e de emergência das teorias críticas, por tendências de construção curricular

mais democráticas e coletivas.

Esses momentos, mesmo que não explícito para os (as) professores (as), tinham

concepções curriculares que divergiam de sua forma de compreender os objetivos e as

funções da escolarização. Não foi à toa que, em cada momento, as políticas públicas se

empenharam em garantir espaços de formação docente objetivando a disseminação e

execução de suas preferências curriculares (teorias, programas, planos de ação, etc.). Tais

preferências, de acordo com interesses políticos, serviram de parâmetro ou de regulação para

os (as) professores (as) e as instituições elaborarem seus Projetos Político-Pedagógicos,

objetivos, formas de pensar sobre a educação das infâncias e suas práticas institucionais,

como se verá neste capítulo.

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Ressalta-se que a investigação que se fez - e se apresentou no capítulo III - dos

momentos curriculares do município de Blumenau apresenta, como constante, a importância e

a presença do Estado na organização da política educacional. Além disso, por meio das

entrevistas, foi possível perceber que os discursos docentes atribuem à escola um papel que

possui relação com os momentos educacionais vividos no Estado e suas concepções

curriculares. Assim, é bastante presente, nas falas dos (as) professores (as) participantes desta

pesquisa, a idéia de escola como lugar/espaço que deve preparar para um futuro melhor

profissionalmente; ser responsável pelo cuidado da infância, sua moral e disciplina; respeitar

o aluno, sua realidade e expressividade; construir coletivamente o conhecimento; e ser força

para transformar a sociedade.

No que se refere às principais idéias que os (as) professores (as) entrevistados (as) têm

sobre o papel da escola e da educação, as falas de alguns (mas) deles (as) deixam explícito um

sistema de raciocínio que compreende o papel da escola como lugar/espaço de manutenção da

ordem tradicional, de adequação para o trabalho e de formação para os níveis mais avançados

de escolaridade, como se pode observar nas palavras de S1 e S2:

S1 - Acho que [a escola deve] dar um futuro melhor para eles profissionalmente. Até porque a

educação começa aqui. [...] Olha a estrutura da educação hoje, eu nunca mudei muito, até meu

jeito de ensinar. Eu sempre trabalhei o tradicional. [...] claro, sempre evoluindo, sempre

procurando o que é bom para a criança. [...] Meu trabalho é o tradicional que dá resultado

logo.

S2 - Eu penso assim que a educação tem que levar muito conhecimento. [...] Eu penso

que dentro de uma história sócio-cultural, a educação está um pouco fraca, teria que

ser mais reforçado. Embora a gente trabalhe o respeito [...] teria que ter mais alguma

coisa. Mais incentivo do governo [...] o professor se empenhar, de repente, até mais.

[...] Eu acho que ela [escola] deve formar um sujeito independente, criativo [...] que

tenha bagagem para enfrentar uma faculdade.

Outros (as) professores (as) deixam claro seu descontentamento com os rumos da

educação, apontando para um interesse na disciplina, moralização dos comportamentos,

manutenção de um modelo normativo de currículo, formação para o trabalho e, até, de

saudosismo com o passado. É o caso, por exemplo, de S3, S5 e S8:

S3 - Eu considero que a escola sempre teve um papel informativo, mas não só. Ele é

informativo e formativo. Porque a gente, além de informar, tem que também formar

para que [...] a criança saia com [...] a base, o chão, [...] para a criação do caráter

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dela. Porque a personalidade a gente já tem, já nasce. O caráter vai se formando a

cada dia. [...] O respeito e a criticidade são formados e construídos no dia-a-dia. [...]

é, portanto, papel da escola, com certeza.

S5 - Eu acho que, assim, a gente precisa ter limite na sala de aula, a gente precisa ter o

controle; eu vejo assim, uma sala harmoniosa.

S8 - A escola, eu acho que ela é um depósito para alguns pais. E cada vez a gente vê

mais isso. Eu acho que isso não tinha antigamente. [...] Eu acho que está muito fraco

para o mercado de trabalho [...] eu acho que falta muito.

As falas S1, S2, S3, S5 e S8 evidenciam que escolarização não é um local que lida

somente com os conhecimentos. Objetiva-se neste espaço, também, a formação da moral, do

caráter e dos limites, a formação para o mercado de trabalho, para a continuidade da

escolaridade. O que se constata é que demarca certa seletividade a função da escola e, ao que

é possível ou não, como ação e pensamento na escolarização. A fala de S1 deixa clara sua

opção por uma perspectiva tradicional porque vislumbra que o “resultado é rápido”.

Já S2 e S8 não explicitam, mas quando sinalizam que consideram o modelo de escola

hoje “fraca”, indicam que a educação do passado era melhor. Neste sentido, verifica-se que o

ideário presente nos discursos docentes é indicativo do que se entende por uma boa ou má

escola. Este ideário, nos processos de escolarização, funciona como forma de regulação e

normalização ao que é permitido ou não aos sujeitos que compõem a escolarização, muitas

vezes, sem levar em consideração que isto é sempre uma escolha, dentre tantas.

Contudo, dentre os (as) entrevistados (as), há discursos de questionamento à educação

tradicional visando a uma perspectiva transformadora, crítica e de construção coletiva dos

conhecimentos. Nessa direção, S4, S7, S9, S11 e S12 assim se manifestam:

S4 - Eu acho que deveria formar [...] pessoas mais críticas. [...] Pessoas que pudessem

pensar a realidade, transformar a realidade deles. Porque eu vejo que [...] poucas

pessoas que pensam não conseguem mudar a realidade. [...] porque eu vejo que falta

coragem dos alunos, dos pais, até porque vem de uma educação tradicional,

conservadora, que a gente não podia abrir a boca [...] eu acho que a educação devia

dar condições para os alunos dizer as idéias deles. Sabe?

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S7 - Em casa, a internet, a televisão, está sendo mais interessante do que vir para

escola. Então cabe às escolas estar mudando essa situação [...]. Trazer mais a

comunidade [...] tem que buscar alternativas para que ela se torne mais atrativa.

S9 - Hoje não é mais como antigamente, repassadora dos conteúdos. Porque os

conteúdos, os assuntos, os alunos já tem no computador em casa. [...] No caso, hoje,

seria de elo [...] de mediador do conhecimento.

S11 - Eu acho que a escola deveria ser muito mais aberta do que ela é hoje. [...] com

maior abertura para discussão entre nós mesmos da escola e outras escolas. [...]

também da participação da família na escola. [...] eu me preocupo muito com o que

ensinar. Há um tempo atrás [...] eu me preocupava muito em como ensinar. Hoje, eu

me preocupo com o que ensinar e para que ensinar. [...] O que eu vou levar para eles,

o que eu não tô levando [...]. Essa é uma angústia muito grande.

S12 - Ah [...] vem esse ponto de interrogação. Eu penso que o papel da escola [...] é

estar construindo com o aluno, nós com eles, juntos, para vida. Por que, o que adianta

eu explicar um monte de sujeito, predicado [...] nada me garante. [...] não vou dizer

que não é importante o conteúdo. É. Só que é preciso mostrar o por que. [...] Eu me

lembro daquelas contas enormes [...] que a gente perguntava para os professores [...]

e eles não sabiam dizer o porquê e o para quê. [...] Então [...] sempre estar conciliando

com a vida deles, com o cotidiano deles [...].

Percebe-se, nas falas de S4, S7, S9 E S12, que o interesse desses (as) professores (as)

está voltado para uma escola mais atrativa, de vivências democráticas, de construção do

conhecimento e de articulação com cotidiano, o que vai ao encontro das tendências

curriculares que emergiram a partir dos anos de 1990. São os discursos da reforma em

educação e de questionamento do modelo tradicional.

A fala de S4 pronuncia um ideário de educação para a transformação social, para o

pensamento crítico e para a livre expressão. Nas falas de S9, S11 e S12, nota-se um interesse

na discussão dos conhecimentos que são trabalhados na escola. Compreende-se que estejam

de acordo com as tendências críticas em currículo no sentido de questionamento da forma

como tem sido feita a seleção e a transmissão dos conhecimentos. Além disso, os (s)

entrevistados (as) S7 e S11 acrescentam elementos como o questionamento dos próprios

tempos/espaços de interação que a escola propicia e das relações e objetivos que se constrói

nas e para as escolas.

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As palavras desses entrevistados, em especial de S11 e S12, permitem estabelecer uma

relação com o ideal de escola do Projeto Político-Pedagógico da Escola Sem Fronteiras.

Quando optam por uma concepção de currículo, demarcam, também, um ideal de escola

encontrado no mesmo [...] para construção de uma escola, não como um modelo pronto, mas,

como algo dinâmico, vivo. [...] Defendemos uma escola que, comprometida com o

conhecimento, trabalhe com a idéia de que o conhecimento é uma construção inteligente do

sujeito. Que não existe a possibilidade de conhecer o real absoluto, verdadeiro, e sim, de

conhecer uma realidade interpretável, conforme explicito no anexo I (p.6).

O Projeto Político-Pedagógico da Escola Sem Fronteiras vislumbra uma escola

dinâmica, viva, comprometida com um conhecimento também em movimento, entendido

como uma possibilidade, e não o real absoluto, o verdadeiro, o mesmo ocorrendo com a

concepção de S11 e S12, para os (as) quais a escola deve repensar a forma como tem visto os

conhecimentos e trazido para a prática cotidiana.

Almejando compreender o sistema de raciocínio dos (as) professores e suas relações

com as políticas educacionais e curriculares do município, tendo como base os depoimentos

até o momento expostos, compreende-se que uma parte dos (as) docentes participantes desta

pesquisa aponta como mais conveniente o currículo de tendência tradicional e disciplinar. Sua

justificativa se dá frente ao ideário de que esse modelo permite maior controle da sala de aula,

demarcação de limites para os alunos e inserção dos indivíduos no mercado de trabalho ou

continuidade da escolarização, o que se compreende seja reflexo das políticas educacionais

dos anos de 1970.

Contudo, a outra parte desses (as) professores (as) deixa claro seu interesse em se opor

a essa lógica. É marcante, em seus discursos, o desejo por uma escola que atenda aos

princípios de vivência democrática, de construção coletiva dos conhecimentos, de novas

relações entre professores (as), alunos e comunidade e de respeito aos saberes discentes.

Nesse sentido, o projeto Escola Sem Fronteiras, inclusive, vislumbra a ruptura com o ideal de

conhecimento absoluto e da escola como mantenedora do status quo.

Então, diante do exposto, arrisca-se afirmar que as principais idéias sobre o papel da

escola não estão distantes do que se encontra propagado pelas políticas estatais. No caso da

escola pesquisada, o que há são formas divergentes de pensar a escola e sua função. Isso

permite que se corra o risco de, ainda mais, dizer que, paralelamente aos mecanismos de

homogeneização estatal, influem, nas opções docentes questões relacionadas a vivências,

projetos e, até, interesses pessoais.

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Contudo, compreende-se que essas opções, tanto as de cunho tradicional como as de

cunho mais crítico, não estão isentas dos determinantes sociais, políticos, históricos,

ideológicos e culturais do seu tempo, tampouco dos interesses regulatórios e normativos que

cada um (a) carrega, neste caso, do que se entende por uma boa escola, conteúdos mais

adequados, relações ideais, formas de apresentação dos tempos/espaços, comportamentos, etc.

Ainda no que se refere às concepções dos (as) professores sobre a função da escola, alguns

(mas) deles (as) refletem em suas falas a compreensão da educação como espaço aberto para

intervenção política. Colocam que, ao mesmo tempo em que os discursos defendem uma educação

para transformação, as dirigem por interesses políticos, a eles (as), professores (as), pouco sobrando

para ações e intervenções livres.

S3 - Pois é. Infelizmente, a educação tem cunho político. [...] porque é uma forma de

atingir o povo. [...] É uma forma de manipular. [...] A gente sabe que o que domina é

um interesse político. A política, ela tem um papel fantástico. Só que o problema é dos

interesses pessoais, dos interesses que passam além dos interesses de um povo, do que

um povo necessita. [...] Então, eu acho que essa preocupação da mudança, da reforma,

ela não vem com uma preocupação com o cidadão, com o ser humano e, sim, com as

questões políticas.

S4 - Eu vejo assim [...] Como professora, eu acho que a gente está sempre procurando

acertar mais, dar um passo mais acertado. [...] Mas, eu vejo que a educação está

ligada à política. Sempre, de alguma maneira ou de outra, acaba podando as ações da

gente aqui na escola. Isso é o que mais me preocupa. [...] Porque toda proposta tem

por trás [...] vamos agradar quem? Vamos fazer porque tem que favorecer um. Porque,

na verdade, a educação como deveria ser pensada, a gente vê que não é.

S5 - Tudo depende da política governamental. Infelizmente, a sociedade evolui em

diversas coisas, mas nós ainda estamos amarrados a isso.

S11 - Eu vejo a educação muito pautada na política, nos partidos políticos. [...] em

interesses políticos. Para mim é tudo, tanto a nível federal, estadual, municipal. [...]. E

sendo pautada nisso a gente não vai ter uma educação de qualidade.

As idéias concebidas pelos (as) professores (as) S3, S4, S5 e S11, que evidenciam a

situação da educação, não somente no município, mas no país, mostram uma leitura política

da situação docente. Deixam a descoberto que as propostas em educação envolvem escolhas

relacionadas com um jeito de compreender como deve ser a escolarização de um determinado

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tempo/lugar. Para Popkewitz (2001, p.31), “a pedagogia pode ser entendida como efeito de

poder através de seus processos de normalização”. Esses efeitos se percebem nos discursos

que as políticas em educação fazem circular, como mensagens que objetivam regular o modo

como os professores devem pensar, ver, agir e falar sobre si mesmos, sobre o outro e sobre o

que é desejável, saudável e satisfatório na educação.

O conjunto de idéias apresentadas permite perceber que, em síntese, há discursos de

questionamento das tendências tradicionais, há uma suspeita para com as ações do Estado na

condução da educação e um interesse em construir alternativas práticas, inclusive, novas

formas de relações, de interações e de organizações institucionais. Existe, além disso, o anseio

por uma educação que respeite o aluno e seus conhecimentos, que seja democrática, que tenha

relação com a vida do educando e que permita um (a) professor (a) reflexivo (a), pesquisador

(a) e sujeito de sua ação.

Entretanto, é necessário compreender que mesmo a proposta Escola Sem Fronteira

não deixa de ser uma forma de estruturação da escola. Por isso, também faz circular todo um

conjunto de ideários e de conhecimentos que visa regular, de acordo com suas concepções e

interesses, como devem ser a escolarização, as práticas e a organização de seus

tempos/espaços. Logo, suas opções curriculares podem ser compreendidas como lugar/espaço

de regulação e de convencimento coletivo das formas de compreender a escola e a educação

por um determinado período histórico.

4.1.2 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação dos Alunos, Pais e Professores.

Além de construir uma forma particular de compreender como deve ser a escola, o

currículo também se constitui estratégia de regulação quando, por meio de seus discursos,

objetiva intervir na condução dos comportamentos. Seu efeito, segundo Popkewitz (1994),

está relacionado com os efeitos de poder no sentido de que produz regras e padrões de

verdade para normalizar o que é aceitável como comportamento e pensamento tanto para

alunos, como para professores (as) e pais, o que, conseqüentemente, intervém nas

subjetividades.

A leitura dos dados desta pesquisa permite inferir que está muito presente na fala dos

(as) professores (as) um desconforto referente à falta de limites dos alunos, à ausência das

famílias e à falta de comprometimento dos professores com a educação, como se verá no

decorrer desta análise.

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Para Popkewitz (2001), se for investigado o que conta como verdade para os

discursos curriculares, estes revelarão uma jeito particular de pensar a educação e de como

devem ser os sujeitos que participam dela. Esta pesquisa entende que este tipo de

investigação pode se constituir importante alternativa para compreender como se constroem,

por meio dos discursos curriculares, as regras para o comportamento e pensamento dos

sujeitos que da escolarização participam.

No que diz respeito aos alunos, na opinião de Sacristán (2005), o conceito aluno e seu

significado estão relacionados com o surgimento da idéia de infância dos séculos XVIII ao

XVIII. Durante esse período, foi produzida uma separação entre o mundo dos adultos e o das

crianças, o que conduziu à necessidade de estabelecer novas formas de educação. Na

condição de menor, naquele momento, foi suposto que essa etapa representava a falta de algo

e a inocência, transformando a “imagem do adulto em referência para situar o pequeno e

apontar a meta”. (SACRISTÁN, 2005, p.69).

Na opinião do referido autor (1994), o resultado disto foi a construção de um conjunto

de teorias, práticas e instituições interessados no cuidado e formação moral da infância. O

menor, ou essa etapa da vida, acabou relacionado com a condição de aluno/escolarizado; o

espaço de educação passou a ser a escola; e o lugar de intervenção passou a ser o corpo.

O corpo dos menores foi objeto de disciplinamento prioritário, desde o controle dos esfíncteres dos mais novos até a imposição do aluno permanecer quieto amarrado à carteira. [...] o trabalho pedagógico com os alunos sempre é uma trabalho com e no corpo, ainda que no discurso sobre as práticas educativas ele não seja uma categoria muito visível. E tem mais, o trabalho nas salas de aula exige como condição prévia a disciplina corporal que vai se impondo desde a mais precoce escolarização. Controlar as manifestações do corpo foi um fator essencial no processo de civilização, como também, da ‘boa educação. [...] nas práticas educativas o corpo dos menores é amado, respeitado e educado, e ao mesmo tempo disciplinado, reprimido e castigado’. (SACRISTÁN, 2005, p.70).

Além disso, para Sacristán (2005), o bem-estar social precisou do bem-estar dos

corpos, e os menores das classes mais baixas foram escolarizados mais por razões morais e de

controle social do que por qualquer outro motivo.

Chama a atenção, nesta pesquisa, o fato de, nos discursos docentes aparecer, com

freqüência, a idéia de que, juntamente com a ação curricular de seleção dos conhecimentos, de

organização dos tempos/espaços escolares, de planejamento, de avaliação, etc., deve-se levar

em consideração o desenvolvimento de valores e de “bons” padrões de comportamento. As

falas de S4, S5 e S8 constituem exemplo dessa política de regulação e normalização das

subjetividades:

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S4 - Eu vejo que a escola, assim, tu tens que terminar de educar os valores. Porque,

antigamente, a gente aprendia com os pais da gente, pelo menos na minha época,

valores, respeito, educação, estas coisas tudo a gente tinha em casa! [...] Eu procuro

sempre, assim, interdisciplinar. No caso quando eu estou trabalhando um texto que tem

uma mensagem, estou trabalhando valores. Trabalhei muito sobre amizade com eles, eu

acho que isso é muito importante. Amizade, respeito com o sentimento dos colegas. [...]

um mínimo de conhecimentos para eles saber como se comportar num shopping ou num

museu. [...]. Sobre as profissões, o que eles gostariam de ser, aquilo que eles teriam

que estar procurando, como eles vão chegar lá.

S5 - Olha no meu trabalho eu procuro, dentro daquilo que eu acho importante o aluno

saber enquanto série ou idade [...] trazer de uma forma bem sutil os valores morais.

[...] Não é uma questão de estar trabalhando o cristianismo ou não, mas acho que os

valores devem estar presentes na vida da criança. [...] quando surgem estas

oportunidades. [...] Porque o que vai definir ela no futuro não é se ela aprendeu

matemática ou não. Enquanto pessoa, como ela formou o caráter dela, isso vai fazer

diferença. [...] E eu acho que isso tem que estar incutido dentro da escola, dentro do

nosso ensino [...] para que realmente as crianças estejam conscientizadas.

S8 - Eu acho que não deve faltar [...] a valorização. Eu acho que não seria uma aula

de educação religiosa. [...] Eu me preocupo muito com essa questão; assim, eu não

suporto aluno que fala do outro, que debocha do outro; isso eu tento sempre trabalhar.

Em Atas de reunião pedagógica da escola pesquisada também se detecta uma ênfase

na construção e demarcação de espaços disciplinares, seja por meio de estratégias de cobrança

e imposição de limites ou por meios mais sutis, como o desenvolvimento do respeito aos

hinos:

Os adolescentes precisam ouvir todos os dias coisas para poder mudar. Temos de nos

convencer todos os dias que vai dar certo e não podemos desistir dos nossos alunos.

[...] tem que ser cobrado e deve chamar a coordenação quando precisar respirar. (15

de julho de 2005, p.3).

O [...] falou que a questão do hino tem que partir da direção para incutir a disciplina

também. (15 de julho de 2005, p.5).

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A [...] falou sobre os momentos cívicos na escola. Que será, gradativamente, para ensinar os

pequenos a valorizarem os hinos. (29 de agosto de 2005, p.9).

Na continuidade, há queixas de professores relacionadas com os limites. Os (As) professores

(as) S1 e S2 apresentam, em seu discurso, que os alunos não são mais os mesmos e que, em função

disso, estão descontentes com a profissão:

S1 – Eu sempre gostei do que eu fiz, só que agora eu não tenho mais paciência [...] eu acho,

assim, está dando no limite. Porque as crianças hoje em dia, eu não sei se é muita liberdade

que eles têm em casa e eles querem aqui também. Eles querem andar todos os momentos, é

chamado para tudo, eles querem a gente por perto, é muita criança.

S2 - Eu acho a grande dificuldade é com o limite das crianças. [...] No ano passado, já

tinha uma grande falta de limites, neste ano também. Eu vejo que [...] é reclamação

geral dos professores, a falta de limites. [...] eu sou das antigas como diz o outro.

Porque, se trabalhar um assunto novo, eu quero que eles tenham atenção nisso,

entendeste? Eles não param de conversar, eles falam o tempo todo e levantam. Então, é

assim complicado.

Também há professores, como S3, que atribui à escola ciclada a responsabilidade pelo

comportamento dos alunos:

S3 - Digamos assim, do meu ponto de vista, a escola ciclada, a proposta dela, eu acho

muito boa, muito válida, só que infelizmente ela foi deturpada, [...] virou oba-oba. Essa

coisa de que a criança pode fazer o que quer [...] como quer. Deixam essas crianças

soltas. [...] A criança tem que estar preparada. Ela tem que ter uma visão.

Contudo, é possível encontrar discursos que vislumbram novas alternativas, novas

formas de pensar sobre os alunos, ou seja, jeitos mais positivos de encarar o momento atual,

como se pode constatar nos relatos de S4 e S12:

S4 - Os alunos, eu vejo assim, a maioria deles quer aprender, eles têm esse anseio de

aprender. Mas eles também querem coisas novas. Eu vejo que eles se encantam quando

vão para a informática. [...] Então eu acho que os alunos, eles pensam, eles têm muita

vontade de aprender.

S12 – A escola está bem diferente daquela que eu tinha. Creio que, no meu tempo, tinha

pontos positivos e tinha pontos negativos [...] Se melhorou? Eu penso que depende para

qual ângulo você olha. Hoje, as crianças estão críticas, elas se expressam mais, têm

mais direitos. [...] Hoje eles pegam e lêem bem, com a maior autonomia, com a maior

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criatividade. Eles fazem teatros maravilhosos, eles têm uma expressão! Eu acho que

eles têm uma abertura maior, eles conseguem se expressar mais.

Para fazer uma reflexão sobre as falas de S1, S2 e S3 se lança mão das palavras de

Popkewitz:

Eu queria chamar atenção [...] para enfatizar a maneira como os discursos sobre o ensino e a aprendizagem produzem um ‘compartimento’ imaginário ou em espaço a partir do qual a criança é ‘vista’, discutida e colocada em ação. A ‘política do espaço’ está relacionada ao modo como as práticas discursivas da pedagogia encerram e confinam a criança como ‘diferente’ e fora do normal. As diferenças, no entanto, não são imaginárias; são produtivas, no sentido de funcionarem para desqualificar as crianças da participação e ação. (POPKEWITZ, 2001, p.20).

Os relatos apresentados servem como exemplo da ênfase que os (as) professores (as)

lançam para a demarcação de valores, de formas de comportamento, de pensamento. Isso

reporta a Popkewitz, segundo o qual

o domínio do self (eu) também é uma função da pedagogia. O desenvolvimento da escola no século XX conectou o escopo e as aspirações dos poderes públicos com a capacidade pessoal e subjetiva dos indivíduos. [...] O ensino e a aprendizagem (os dois estão ligados) produzem uma individualidade autogovernada. (Popkewitz, 2001, p. 27).

Esse interesse em um autogoverno igualmente se percebeu no que tange às famílias.

Pode-se dizer que, quando o Estado vincula a educação aos programas “macro” do governo,

abre espaços para ação nas organizações “micro”. Isso quer dizer que, quando toma como

locus de ação a escolarização e os sujeitos que a compõem, estende seus efeitos também para

fora dela, ou seja, também para as famílias e, conseqüentemente, para o comportamento e as

formas de pensar dos indivíduos que a compõem.

O autor Sacristán (2005) ajuda a compreender que, com a emergência da escola de

massa e da idéia de menor articulado à condição de aluno, as relações entre pais e filhos se

estabeleceram associadas às práticas pedagógicas da escola. Para o referido pesquisador, em

uma sociedade escolarizada todos tiveram experiências na escola e sobre como ela deveria

ser. Além disso, tendo como responsabilidade a educação dos filhos e, preocupados com seu

sucesso, as famílias “acabaram adotando procedimentos de controle mais explícito

assegurado, mais diretamente, a partir do exterior”. (SÁCRISTÁN, 2005, p.114).

Para Lahire (2004), estudioso do fracasso escolar nos meios populares, há formas

diferenciadas de relações entre família e cultura escolar. Para ele, o sucesso escolar das

crianças pode estar relacionado com famílias que têm o habitus de organização da economia

doméstica. No uso de cadernetas, contas, planejamento e controle do orçamento familiar

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acabam inserindo seus filhos, bastante cedo, no contato com a cultura escrita e as formas

racionais de pensamento.

Contudo, há famílias que têm o perfil de “outorgar grande importância para o ‘bom

comportamento’ e respeito à autoridade do professor” (LAHIRE, 2004, p.25). Como tem

dificuldade para ajudar os filhos do ponto de vista escolar, os pais tentam inculcar a

capacidade de submissão à ordem, visando à respeitabilidade familiar da comunidade por

meio dos filhos. Esta lógica acaba estendendo o controle da escolaridade aos espaços

familiares, quando os pais cobram as notas, o mau comportamento, a não-realização das

tarefas, o controle do tempo destinado às atividades escolares em casa, etc. Este aspecto do

controle doméstico, da moral e da conduta infantil desempenha papel importante na atitude

da criança na escola.

Essa perspectiva de responsabilização da família pelo sucesso e comportamento dos

filhos na escola foi uma das questões que mais “saltaram aos olhos” durante as entrevistas.

Discursos que defendem a possibilidade de participação da família nas questões escolares é

considerado algo atual. Tanto os documentos curriculares do Município como o Projeto

Político-Pedagógico da escola atribuem este movimento à perspectiva de gestão democrática

da educação. Contudo, percebe-se que esta concepção acaba significando, na prática

quotidiana, mais um meio para justificar a imposição de uma ordem de ação às famílias, para

o cerceamento dos filhos no que diz respeito ao comportamento e à moral.

Os (As) professores (as) S1, S4, S6, S9 e S8, quando falam sobre as dificuldades que

enfrentam hoje, se reportam às famílias:

S1 A dificuldade é a participação dos pais. Não tem colaboração efetiva dos pais. Às

vezes, você faz uma coisa aqui e o pai em casa diz: - Ah, mas para que foi feito isso?

Deveria conversar com a gente e não com o filho. Até mesmo nesse lado assim.

S4 - Assim, eu percebo que esses pais vêem a educação como um lugar, um depósito

onde deixar os filhos. Eu vejo que, hoje em dia, as crianças estão totalmente perdidas;

eles são jogados no videogame ou no computador porque os pais não têm mais tempo e

porque também não querem se preocupar. Então, aí a gente vê essas crianças que estão

revoltadas.

S6 - Eu acho que hoje tem uma falta muito grande por conta da família. Só trazem aqui

e adeus. Não tem nenhum respaldo em casa, na tarefa, por exemplo. Não é

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generalizando, porque tem exceções. [...] Eu vejo, também, que hoje em dia a maioria

dos pais trabalha fora e fica difícil.

S9 - Eu acho que está faltando a ajuda dos pais. Eles não olham as tarefas, estão

trabalhando o dia todo em dois ou, até, três empregos para da conta da sobrevivência.

E os filhos tão meio, assim, largados. Eles não querem mais incômodo. Ver a tarefa dos

filhos é muito para eles. Não impõem mais limite e horários. Eu acho que a gente é

como uma família; sem o apoio de todos, não dá. Se não olha nem o caderno nem

estimula, não dá.

S8 - Eu acho que muitos pais tão achando que a escola tem que fazer tudo. Ela tem a

obrigação de ser mãe, pai, família, tudo ao mesmo tempo. É um depósito para alguns

pais. [...] Eu acho que a escola está aqui para a criança vir brincar, estudar, para se

socializar. Mas, como eu vejo, a escola tem até que cuidar de piolho. [...] E cada vez a

gente vê mais isso.

Entretanto, paralelamente às falas desses (as) professores (as) que vêem o Projeto

Político-Pedagógico como um meio que justifica a imposição de ordem às famílias, há

discursos que levam para formas mais democráticas de condução das políticas curriculares,

como mostram os depoimentos de S4 e S11:

S4 - Eu acho que deveria ser junto com a comunidade. A comunidade nunca é ouvida;

só tá no papel, mas na realidade a gente sabe que não é.

S11 - Eu acho que a escola deveria ser muito mais aberta do que ela é hoje. Ter espaço

também para os pais participarem.

Popkewitz (2001) considera importante prestar atenção nas formas de divisões e

classificações que distinguem o que deve e é permitido pensar, fazer e ser. As mesmas

funcionam como meios para atuar nas qualidades que as pessoas devem ter, devendo ser

compreendidas como efeitos de poder que se manifestam nas práticas discursivas e servem

para construir, na escolarização, um estado de coisas normais.

Mesmo que a proposta da Escola Sem Fronteiras tenha oferecido maiores espaços de

interação entre escola e comunidade, como, por exemplo, a tarefa a distância e os conselhos

de classe participativos, boa parte dos (as) professores (as) não apresentam, em seus

discursos, que isso tem possibilitado ações em direção a um respeitoso ouvir recíproco, mais

característico de uma perspectiva crítica em currículo. O que se percebe é que os discursos

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que circulam na escola sobre o modelo de participação que se tem imposto aos pais pouco tem

sido questionado.

Na continuidade, articulado com todo o entendimento de como deve ser a escola, os

alunos e os pais, encontram-se os ideais de professor (a). Cada perspectiva curricular, quando

traça seu ideal de escola, de organização dos tempos/espaços, de elaboração dos planos de

ação, explícita ou implicitamente, também traça um ideal de professor, ou seja, normas para o

que se considera um bom professor e suas formas de pensar e agir.

Por meio dos discursos docentes, observa-se que, na escola investigada, o ideal de professor

circula entre duas perspectivas. Uma das perspectivas é mais tradicional e de cunho progressista,

estando fundamentada na idéia de que o trabalho pedagógico deve ser conduzido pelo (a) professor (a)

esforçado (a) que gosta do que faz, que busca articular os conteúdos com a realidade do aluno, que é

criativo e flexível, que impõe limites, que contribui para um ajustamento social e que tem uma postura

profissional neutra de condução do processo de ensino e aprendizagem. Apresentam essa concepção

S2, S8 e S9:

S2 - Eu estou há vinte e três anos no magistério. Eu gosto mesmo. Até num outro dia um

aluno desta série, deste ano, falou assim que gostaria de ser professor. Eu disse: É.

Tem que gostar de coração, porque não é só gostar porque vê o professor. Uma

imagem do professor. Tem que gostar mesmo de criança e tudo o mais. Porque pelo

salário nem pensar. [...] Eu acho que, em primeiro lugar, ele tem que ser criativo. Além

disso, pesquisar, trazer coisas diversificadas para que eles se interessem pelo assunto,

[...] pelo conteúdo, vamos dizer assim.

S8 - Ah, eu acho. Parar de reclamar tanto; tem gente bem pior que a gente. [...] Eu

penso que carinhoso, amigo, ao mesmo tempo impor limites, sabe? Trabalhar com a

turma, não ser aquele professor sério, rígido. Hoje em dia , como eu te falei, eu vejo

muitos professores que não tem mais esse lado emocional. Não trabalha mais com isso.

Cada vez os problemas familiares, os conflitos, o financeiro, tão influenciando mais no

trabalho.

S9 - Interagir com os alunos o tempo todo. Estar ajudando eles porque em casa eles

não têm muito tempo. [...] eu ajudo o tempo todo no que eu posso. Eu sempre digo: Oh

eu sou a última professora que, realmente, sai dessa escola.

Além da tendência progressista, observa-se outra, de cunho mais crítico e político, que

apresenta um ideal de professor questionador da ordem vigente, responsável, com uma postura de

mediador, de construção coletiva, de humildade perante o conhecimento, reflexivo, pesquisador e, até,

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compromissado com a transformação social. Refletem essa perspectiva os discursos dos (as)

professores (as) S3, S10, S11 e S12:

S3 - Eu acho, assim, que a gente tem que resgatar esse lado da responsabilidade, do papel

verdadeiro do professor. [...] não ter medo de buscar esse papel. O professor tem medo do

governo atual, tem medo de ser criticado se não acompanhar a atualidade[...] o

construtivismo, [...] a cartilha. Ele tem que ter firmeza daquilo que ele acredita, mesmo que ele

seja criticado.[...]Eu penso que o nosso papel é ter um papel responsável dentro da educação.

Saber realmente aquilo que está querendo e aquilo que está fazendo.

S10 - Eu acredito que, mesmo que ele tenha mestrado, doutorado, ele ainda não é o

dono da sabedoria. Para mim, eu só vou parar de buscar inovações o dia que [...] eu

morrer [...]. Eu nunca deixo de ouvir outros professores.

S11 - O papel dos professores, eu acho que o papel dos professores é de transformar,

mas de tentar transformar o que é essa força em termos de idéias formadas através dos

conhecimentos, de todo o conhecimento que já foi construído. Tentar fazer com que eles

entendam que a gente pode mudar alguma coisa. Esse é o papel dos professores:

transformar.

S12-Estimular os alunos. Se tem um aluno com dificuldade [...]eu tenho que estar

ajudando ele, construindo, mediando. [...] O papel do professor não é nem acima nem

abaixo. Eu diria que é igual, alunos e professores. [...] porque quantas coisas a gente

aprende com eles.

Embora os (as) professores (as) demonstrem uma postura de educação flexível e de

renovação pedagógica, o que se percebe é característico da condução da educação pública no

Estado: é constante uma tensão entre o velho e o novo, entre as mudanças e as permanências.

As falas que se reportam à mediação, construção coletiva, relações com a realidade do aluno e

humildade pedagógica se identificam com as perspectivas de currículo descritas nos

documentos curriculares da Escola Sem Fronteiras e com a forma de planejamento da escola

até final de 2004, o qual partia do perfil dos alunos e de um trabalho interdisciplinar ou de

projetos.

Todavia, a observação feita na escola permite dizer que a nova gestão municipal

orientou para que o planejamento de 2005 fosse feito de forma disciplinar, sinalizando para

uma perspectiva curricular disciplinar e um planejamento por série e conteúdos, o que levou a

perceber uma ênfase e retorno à crença nos padrões de referência a seguir. Os (As)

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professores entrevistados (as) deixam claro o que se discutirá mais à frente, ou seja, que a

prefeitura encaminhará os novos rumos curriculares em substituição à perspectiva coletiva de

construção do conhecimento.

Um ponto a destacar é a postura política dos professores S3 e S11. Ambos propõem

uma postura de suspeita das propostas de governo e de transformação da ordem vigente ao

dizerem que o professor não tem que ter medo, tem que ter firmeza no que acredita (S3) e

deve propor a transformação (S11). Contudo, compreende-se que, mesmo em face de um

discurso político, ainda se reportam a um modelo de professor a ser encontrado, um porto

seguro em que se apegar.

Para o estudioso Popkewitz, (2001), os discursos da reforma, do currículo e do ensino

enfatizam que é possível encontrar caminhos mais adequados, professores (as) mais

eficientes, práticas baseadas em certezas. No entanto, para o autor, se examinados em suas

origens e nos conhecimentos que fazem circular, nos discursos não se encontram nem

segurança moral nem política. O que se encontram são formas de pensar como deve ser a

organização do mundo e das pessoas que neles atuam, sempre relacionadas com o poder, com

o momento histórico e com interesses sociais, políticos, econômicos e culturais.

4.1.3 O Currículo Como Lugar/Espaço de Regulação Disciplinar

O estudioso Veiga-Neto (2001b) possibilita compreender que, quando se pensa em

disciplina, é possível se referir a duas coisas: a postura corporal e ao conjunto de

conhecimentos ensinados na escola. A palavra vem do latim disciplina que, por sua vez,

originou-se da fusão entre discere (dizer) e pueris (às crianças). Assim, disciplina é tudo

aquilo que se diz às crianças ou a qualquer um que ainda não sabe e que tem por objetivo

ensinar e conduzir a ação dos outros.

Buscando compreender Comênios, considerado “Pai da Didática” e um dos primeiros

idealizadores da organização da escola moderna, Veiga-Neto (2001b) argumenta que, no

século XVII, o que orientou o ideário a respeito da educação foi que os dois eixos,

conhecimentos e disciplina, deveriam estar articulados para constituição de um ambiente

escolar organizado. Em síntese, não bastava que os conhecimentos estivessem sistematizados

e hierarquizados de acordo com as idades. Para a boa condução dos processos de ensino e

aprendizagem, era preciso um ambiente também disciplinado.

Assim, de acordo com Veiga-Neto (2001b),

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No eixo da disciplina – saber, há uma consequência de natureza epistemológica que pode ser assim resumida: a distribuição dos conhecimentos em categorias hierarquizadas – as quais denominamos disciplinas - não resulta de alguma propriedade natural de conhecimentos [...]. Ao contrário, o arranjo dos saberes em disciplina resulta de processos sociais em que entram em jogo mecanismos complexos de valorações e distribuições simbólicas, legitimação, exclusões, distinções, etc. Em outras palavras, as disciplinas não nascem naturalmente, elas não são descobertas ao longo de um suposto avanço do conhecimento humano. [...] No eixo da disciplina – corpo, há uma conseqüência de natureza pedagógica que me parece muito importante. Refiro-me ao recurso à disciplinarização – em termos de atitudes, comportamentos, hábitos, etc. – que é exigida às crianças e jovens, na escola, em nome da sua boa e mais fácil aprendizagem. [..] Não se trata de dizer que Comênio não tinha razão. É, certamente, necessário um mínimo de atenção, de concentração, para que alguém pelo menos escute o que um outro diz e depois aprenda alguma coisa. Mas é preciso ver que, por detrás da imposição de atitudes disciplinadas, esconde-se um outro objetivo que pouco tem a ver com a aprendizagem daquilo que se está ensinando. Esse outro objetivo é a própria disciplina, isto é, a imposição da disciplina visa a própria disciplina; a disciplina se auto-alimenta. (VEIGA-NETO, 2001b, p.47).

Para Goodson (1995), a lógica disciplinar que hoje orienta a escolarização tem

relações com as questões citadas por Veiga-Neto (2001b) e se solidifica em face da educação

estatal. O autor acrescenta que o modelo seriado e todo seu conjunto de matérias, conteúdos,

horários e disciplina está relacionado com a transição do sistema de classe para o de sala de

aula em função da retórica da produção em série.

Na altura do século XX, a retórica da produção em série do ‘sistema de sala de aula’ (por exemplo: aulas, matérias, horários, notas, padronização, fluxograma) tornou-se tão difundida que alcançou com êxito um status normativo – criando os padrões com os quais todas as inovações educacionais subseqüentes passaram a ser avaliadas. [...] O sistema de sala de aula introduziu uma série de horários e de aulas compartimentalizadas; a manifestação curricular dessa mudança sistemática foi a matéria escolar. Se a ‘classe e o currículo’ passaram a integrar o discurso educacional quando a escolarização foi transformada numa atividade de massa na Inglaterra, “o sistema de sala de aula e a matéria escolar” emergiram no estágio em que a atividade de massa se tornou um sistema subsidiado pelo estado. E apesar das muitas formas alternativas de conceitualização e organização do currículo, a convenção da matéria escolar deteve a supremacia. Na era moderna já tratamos o currículo essencialmente como matéria escolar. (GOODSON, 1995, p.35, grifo do autor).

Nesse momento mencionado por Goodson, a escola e o conteúdo foram tidos como

importantes para a nova formação social. Além disso, é relevante lembrar que, a partir do

século XX, foi o princípio da gerência administrativa de Taylor que passou a orientar o

pensamento curricular. Esse também foi um importante fator que levou a crer que a melhor

forma de organização curricular era por série e por matérias porque permitiria melhor controle

e fixação do processo.

Assim, a escola de massa foi se construindo em torno de saberes que, ganhando

estatuto de pedagógicos, foram extraídos do trato direto e contínuo com os menores. Esses

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saberes, visando ao domínio do corpo e dos conhecimentos, encerram, desde os primeiros

anos da infância e da juventude, quotidianamente, o seu modos de pensar e de agir.

Com base nesse entendimento, percebe-se que boa parte dos (as) professores (as) da

escola pesquisada compreende o currículo como lugar de conhecimento disciplinar, grade de

conteúdos ou plano de ensino. Mesmo que alguns (mas) professores (as) indiquem a

importância de fazer relação com o que é essencial as crianças saberem, com sua realidade,

acenam para um plano de ação que precisa ter objetivos claros e precisos que permitam o

controle, um ideal de trabalho e conteúdos e metodologias adequados, como revelam as

palavras dos (as) seguintes participantes da pesquisa :

S1 - O que se ensina para as crianças no decorrer do ano. [...] no início vinha pronto,

mas no ciclo deixava mais livre. Os professores planejavam juntos, sempre levando em

consideração o que é importante papa as crianças, o que elas ‘devem’ saber.

S2 - Eu acho que dentro de cada turma ou série tem que ter um currículo, ter onde seguir,

porque se não fica numa coisa terrível. Tem que ter as disciplinas, o que você vai trabalhar

dentro de cada disciplina. Tem que ter isso aí.

S3 – Bom, a princípio seria uma grade mínima, possível, para estar atendendo às

necessidades dos educandos. As matérias, digamos assim, necessárias para estar

atendendo [...] aqueles parâmetros. No geral, o que o educando tem que atingir e tem

as particularidades de cada região, de cada cultura.

S5 - Currículo eu entendo que seja um plano de ensino e, nesse plano de ensino, é

preciso ter bem claro o que trabalhar, como trabalhar e para que trabalhar. E tem que

ter objetivos para isso. [...] tudo eu preciso ter um objetivo claro. [...] Eu vejo que o

currículo tem que ir ao encontro da necessidade da escola, do grupo e da comunidade

em geral. [...] já começando os valores morais e, principalmente, o que a sociedade

pede enquanto conhecimento.

S7 - Para mim, currículo é tudo o que está envolvido na escola. A vez das disciplinas, a

parte de secretaria de uma escola, a cozinha. É geral.

S8 - O planejamento das turmas. [...] dentro desse planejamento tudo que os

professores vão trabalhar com eles. Todas as disciplinas, as estratégias, as aulas,

passeio, eu entendo dessa maneira..

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S9 - Currículo é uma linha. Uma linha de conteúdos que todas as escolas deveriam

seguir. [...] mas não rigidamente sabe, naquela seqüência. De coisa muito rígida, muito

seguida eu não gosto.

Compreende-se que essa forma de significar o currículo está relacionada com o

processo de regulação disciplinar. Se articulada com as principais idéias que os (as)

professores (as) têm sobre os alunos, em especial no que diz respeito à falta de limites,

valores e bons padrões de comportamento, já citados, pode-se reportar a toda uma tecnologia

do controle e disciplina do corpo e das formas de conhecer.

Embora não pareça para os (as) professores (as) cujas falas foram mencionadas,

compreender o currículo como apenas uma listagem de conteúdos não foi uma “descoberta

que aconteceu naturalmente” isenta de relações do poder. A forma de distribuição dos

conhecimentos e sua seqüência envolvem inclusões e exclusões que tem a ver com o

interesse de manutenção da disciplina. Assim, pode-se dizer que o currículo disciplinar visa à

regulação e normalização das formas de aprender, de interagir e de atribuir valor aos

conhecimentos. Nesta lógica, o conhecimento válido para a escolarização é aquele que se

adequar à lógica da disciplina e exigir dos alunos, também, a disciplina do corpo.

Nessa pesquisa, constatou-se que, mesmo falas como as de S1 e S5, ao defenderem a

necessidade de, durante a seleção dos conhecimentos, considerar a realidade dos alunos, seus

interesses e necessidades, não deixam de indicar um ideário de currículo relacionado com um

plano de ensino que tem que ser dado às crianças durante o ano. Como se não houvesse a

possibilidade de outras formas de apresentação dos conhecimentos, que não o disciplinar, e a

relação de conteúdos de um plano de ensino.

A análise dos movimentos de educação vivida em Blumenau indica que a reforma

implantada em Santa Catarina por Orestes Guimarães, no início do século XX, já previa, sob

a “filosofia do ensinar a fazer” levar em consideração a curiosidade do aluno, sua realidade e

seu contexto social. Contudo, sua contradição foi não prever outra forma de relação com o

conhecimento que não o disciplinar de cunho científico.

Também a referência à necessidade de um currículo mínimo nacional e flexível

reporta aos PCNs que são os documentos curriculares que se têm em âmbito nacional o que,

no entanto, é diferente do que propõe o projeto Escola Sem Fronteiras. Este chegou,

inclusive, a explicitar que objetivava romper com a lógica da listagem de conteúdos, visando

a uma proposta pedagógica que possibilitasse uma inter-relação entre as áreas de

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conhecimento e destas com a sociedade, na qual não há detentores nem receptores do

conhecimento, mas um “respeitoso ouvir recíproco”. (BLUMENAU, s/da, p.14).

Nesse norte, alguns (mas) professores (as) explicitam formas diferentes de

compreensão do currículo. Relacionam-no com uma ação social, com uma forma de

planejamento de escola, com vida, mais na direção de uma formação crítica e de

transformação social, passando por uma ruptura com um saber disciplinar, conforme se pode

desvelar nas falas dos (as) professores (as) S4, S10 e S11:

S4 - O currículo eu acho que é uma ação social para construção do conhecimento. Essa

ação, na verdade, ela deveria estar, abrangendo todos que estão ligados à educação.

Eu vejo, assim, é ter que passar para os alunos os conhecimentos para eles conseguir

viver em sociedade. De forma crítica, construtiva, para assim, transformar a realidade

em que eles vivem.

S10 - Para mim currículo é como se fosse uma história. [...] Uma forma de

planejamento, uma coisa maior, as perspectivas. [...] Para mim currículo é o que eu

quero enquanto escola, o que a escola, como um todo, pretende com aquele aluno.

S11 - Eu acho que o currículo é vida, a vida da escola; é tudo, qualquer ação que é

pensada dentro desse processo, dentro desse tempo, dentro desse espaço é currículo.

Nada ali é mais importante que o outro; todos têm a mesma importância. Nem um autor

é mais importante que o outro nem um documento é mais importante que outro. Tudo é

currículo, tudo é importante ser pensado e ser discutido. As vivências, os

conhecimentos, as histórias, as fala, as ações.

Aponta-se que o (a) professor (a) S11 refere-se à importância de considerar que tudo

deve ser pensado e discutido, inclusive as vivências, os conhecimentos, as histórias, as falas e

as ações. O (A) mesmo (a) professor (a) ainda traz um novo elemento que é o da não-

classificação dos autores, conhecimentos e documentos mais importantes. Isso faz com que se

leve em consideração que é uma forma de questionar idéias universais de busca por uma

forma de organizar e selecionar os conteúdos, os autores e os documentos mais adequados e

tidos como verdadeiros. É uma tentativa, ainda que não coletiva, de colocar sob suspeita as

seleções, as seqüências, a quem serve e que poderes se exercem nessas seleções.

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4.2 O Currículo Como Lugar/Espaço de Uma Política do Conhecimento

Para Popkewitz (1994, p.205), “o currículo sanciona socialmente o poder através da

maneira pela qual (e as condições pelas quais) o conhecimento é selecionado, organizado e

avaliado nas escolas”. Este processo visa construir um entendimento do que sejam os

conhecimentos “ideais” para o ensino e demarcar o que pode ser considerado sucesso ou

fracasso das crianças.

É por esse motivo que o referido autor diz que o currículo, suas seleções e formas de

avaliação trabalham com questões de exclusão. A exclusão se manifesta por meio da

construção de normas e classificações para a seleção dos conhecimentos e para o julgamento

das crianças. Isso quer dizer que entra ou não como conhecimento escolar e o que deve ser

considerado sucesso ou fracasso de aprendizagem são, sobretudo, invenções que compõem o

currículo para ação e intervenção nas subjetividades e capacidades individuais ou para

normalização das crianças.

Logo, a análise e a compreensão dos discursos dos (as) professores (as) expostos neste

capítulo almejam apresentar como a escola pesquisada constrói, por meio das seleções

curriculares, uma política do conhecimento, ou seja, uma forma particular, sempre

contingente e provisória, de compreender como deve ser a seleção, a circulação, a transmissão

e a avaliação dos conhecimentos, bem como a resposta das crianças frente aos processos de

ensino-aprendizagem.

Por isso, para Popkewitz (2001), a investigação de quem escolhe, como escolhe, em

que momento, quais interesses e por que alguns conhecimentos entram e outros não, revela

como o exercício do poder se manifesta. Buscando suporte em Thomas Khun, Popkewitz

(2001) compreende que os conhecimentos autorizados para comporem uma determinada

matéria por um determinado período de tempo são produzidos e produtos de acordos, regras e

padrões de legitimidade de determinada comunidade.

Quando o supramencionado autor (2001) afirma isto, almeja mostrar que as formas de

seleção e de legitimação dos conhecimentos, seja na ciência ou na escola, envolvem relações

institucionais, lutas entre diferentes grupos sobre as normas para participação e

reconhecimento dos conhecimentos, interesse em status profissional e alianças com grupos

externos à matéria, como agências estatais ou empresas, etc. Neste sentido, compreende-se

que não há certezas na seleção dos conhecimentos. O que há são escolhas que resultam de

disputas entre diferentes atores e instituições.

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Appel (1997) é um estudioso que dedica atenção para compreender como acontecem

as seleções e acordos que geram a política do conhecimento oficial na educação. Para ele,

Os meios e fins envolvidos na prática e na política educacionais são o resultado de lutas empreendidas por poderosos grupos e movimentos sociais [...]. As políticas do conhecimento oficial são o resultado de acordos ou compromissos. Elas não são usualmente impostas, mas representam os modos pelos quais os grupos dominantes tentam criar situações nas quais os compromissos que são estabelecidos os favorecem. Os compromissos ocorrem em diferentes níveis: ao nível do discurso político e ideológico, ao nível das políticas de Estado e ao nível do conhecimento que é ensinado nas escolas, ao nível das atividades diárias de professores e estudantes nas salas de aula e ao nível de como entendemos tudo isso. [...] Mas estes compromissos não são estáveis. Eles quase sempre deixam ou criam espaços para uma ação mais democrática. [...] as formas de currículo, ensino e avaliação nas escolas são sempre os resultados de acordos ou compromissos nos quais os grupos dominantes, para manter o seu domínio, necessitam levar em conta as preocupações dos menos poderosos. Este acordo é sempre frágil, sempre temporário e está constantemente sujeito a mudança. Haverá sempre brechas para a atividade contra-hegemônica. [...], no entanto, a restauração conservadora é bastante poderosa. Tem sido capaz de criar uma nova política do conhecimento oficial, especialmente em torno do currículo. (APPLE, 1997, p.24).

Toda essa luta e acordos feitos em torno de quais conhecimentos entram ou não

entram para compor o currículo escolar têm outra conseqüência. Popkewitz (2001) chama a

transposição dos conhecimentos produzidos na ciência e selecionado para serem aprendidos

nas práticas escolarizadas de alquimia das matérias escolares. O estudioso afirma que,

retirados da ciência, esses conhecimentos chegam às escolas como entidades fixas e

imutáveis, distanciados da própria ciência que os gerou. “O debate e a luta que produziram o

conhecimento disciplinar são encobertos e um sistema de idéias estável é apresentado às

crianças”. (POPKEWITZ, 2001, p.35).

Quando observamos a pesquisa na linha de frente da ciência, podemos ‘ver’ um conhecimento bem diferente daquele que fica guardado no relicário do currículo escolar. [...] Além disso, a concepção do conhecimento usado pelos cientistas pesquisadores privilegia estratégias para tornar o familiar estranho, pensar sobre o misterioso e o desconhecido e levantar questões sobre o que é tacitamente assumido. As regras do currículo são bastante diferentes, pois privilegiam as propriedades estáveis, fixas e categóricas do conhecimento. (POPKEWITZ, 2001, p.36).

A transposição dos conhecimentos resulta em “conceitos e generalizações [...] como

estruturas lógicas, não-temporais, que funcionam como bases a partir das quais ocorre a

aprendizagem”. (POPKEWITZ, 2001, p.35). Nessa direção, funcionam como verdades que,

simplificadas e hierarquizadas para o ensino e aprendizagem nas diferentes séries, servem

como medida para avaliação da infância. Quem não aprende, por razões diversas, é excluído.

O currículo das escolas realiza uma alquimia [...]. As relações específicas a partir das quais os historiadores ou físicos, por exemplo, produzem conhecimentos sofrem uma mudança mágica. [...] as matérias escolares tendem a tratar o conhecimento

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como um conteúdo inconteste e claro para as crianças aprenderem ou com eles resolverem problemas. [...] a ‘ciência’, a ‘matemática’, a ‘composição’, ou a ‘arte’ escolares são o conhecimento pedagógico que se adapta às expectativas relacionadas ao horário escolar, às concepções sobre a infância e às convenções do magistério que transformam o conhecimento e a investigação intelectual em uma estratégia para controlar a ‘alma’. (POPKEWITZ, 2001, p.35).

De acordo com Silva (1997), como já citado, o ideal de currículo tradicional e

científico chegou ao Brasil dos anos de 1960, durante o regime militar e em um contexto de

política desenvolvimentista e de ajuste da ideologia ao interesse econômico. O Estado,

interessado na aliança com os Estados Unidos, considerado modelo a ser copiado, e no

investimento estrangeiro, firmou os acordos MEC-USAID. Foi por essa via que entrou, no

Brasil, a perspectiva curricular tradicional de Tyler em substituição à tendência curricular

tradicional progressista que vigorava até então.

A proposta de Tyler, de cunho racionalista e de controle comportamental, contribuiu

para a emergência do tecnicismo, para a formulação de programas de ensino com ênfase nas

disciplinas voltadas à ciência, investimento na psicologia da aprendizagem, elaboração de

manuais, propostas de treinamento para professores (as) e cursos de formação para

especialistas. Essa perspectiva curricular previa um investimento na elaboração de currículos

que, seguindo a lógica da elaboração de objetivos eficientes, seleção de conteúdos científicos

e controle dos comportamentos, fazia o ensino e o currículo parecerem objetos lógicos.

A política do conhecimento da escola investigada tornou-se perceptível quando os (as)

professores (as) falaram sobre como selecionavam os conhecimentos. A maioria das falas

conduz à confiança na relação de conteúdos “fixos” e nos mais “adequados”. Além disso,

apontam o livro didático como principal referência para seleção dos conhecimentos/conteúdos

que visam trabalhar com as crianças. Outra questão é a expectativa pelos conteúdos serem

fornecidos pela nova gestão da Secretaria de Educação. Argumentam, constantemente, sobre

seu sentimento de segurança se os especialistas e a universidade contribuírem oferecendo a

seleção dos conteúdos a serem trabalhados.

Quando os professores falam sobre como fazem sua seleção curricular, as principais

idéias apontam para as seguintes questões:

S1 - Eu nunca mudei muito. [...] Eu sempre trabalhei o tradicional. Porque eu acho

que se a gente trabalhar parecido, com os assuntos principais, pode ser melhor.

S2 - Eu gosto de trabalhar temas. Aí vai levando dentro daquilo que eles precisam

aprender. Conteúdos básicos, vamos dizer assim.

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S3 - Trabalho os conteúdos que são necessários para que a criança tenha noções

básicas? Sim, com certeza eu trabalho. Mas, de uma forma bastante diferenciada. Não

aquela coisa amarrada.

S4 - Bem, em primeiro lugar, aquilo que a criança gosta. [...] o que eles têm vontade de

estar aprendendo. [...] E com isso aí eu vou enriquecendo com todos os conteúdos que

têm que ser dados. Porque eles têm que ter uma base, alguns conteúdos específicos.

S5 - Dentro da série que eu trabalho eu procuro, enquanto currículo, o que é

importante para aquela faixa. O que ela precisa ter de conhecimentos para avançar

para série seguinte. [...] Eu acho que os professores devem estar organizando enquanto

turma e áreas, uma seqüência. Mas, com a possibilidade de estar inserindo alguns

conteúdos para suprir algumas dificuldades, deficiências.

S9 - No caso, como voltou a nota de novo eu trabalho por disciplina. Só que daí, por

exemplo, quando eu estou trabalhando os animais, eu já puxo o português. Se eu dou

ciências, eu posso trabalhar matemática com aquele conteúdo.

S11 - Eu me baseio numa relação de conteúdos que é dado pela escola e pelas

professoras das séries. Chega no começo do ano, as professoras dizem: Olha, aqui na

4ª série, ou na 3ª série nós trabalhamos essa relação de conteúdos. Então, daí eu monto

meu planejamento. Também o que eu percebo nas crianças, o que elas trazem, o que eu

percebo que preciso trabalhar com elas.

A análise das falas recém-mencionadas permite inferir que, mesmo em face da

implantação de uma nova perspectiva curricular no município de Blumenau a partir da década

de 1990, os (as) professores (as), quando falam sobre como fazem a seleção do que

trabalharão com as crianças, se referem à relação de conteúdos, muito característico da

tendência de currículo disciplinar que orientou a educação no Município durante os anos de

1970 e de 1980. Dificilmente colocam sob suspeita essa relação e os efeitos de normalização e

classificação que produzem sobre as crianças. É relevante lembrar que, em âmbito nacional, a

referência curricular são os Parâmetros Curriculares Nacionais que definem o currículo a

partir de uma perspectiva dos conteúdos mínimos.

Foi a partir de 1973, ano da criação da Secretaria Municipal da Educação, que a

política educacional do município passou a ser orientada de acordo com os encaminhamentos

dos departamentos disciplinares e de assistência técnica aos professores. Durante os anos que

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se seguiram, foram construídas, com auxílio das equipes de apoio técnico e especializado,

apostilas indicativas dos conteúdos e de como fazer o currículo, por áreas de conhecimento.

Nos anos da década de 80, criaram-se as chamadas equipes multidisciplinares em Blumenau,

mas a tendência continuou disciplinar.

No decorrer das entrevistas, houve professores (as) que citaram as apostilas oferecidas

na época, como se pode observar nas falas de S5 e S6:

S5 - [...] como nós tínhamos tempos atrás, que a nossa grade curricular vinha: a

segunda tem que dar conta disto, a terceira disto, em todas as áreas. Como ainda não

veio, eu tenho que estar buscando porque eu vou ter que encaminhar eles paras as

séries seguintes. Eu vou ter que dar conta de muitas coisas.

S6 - Como já faz tempo que eu já estou na rede, isso vinha da coordenação de

Educação Física. [...] a gente trabalha com as primeiras séries psicomotricidade,

coordenação, depois vem a terceira [...] há muito tempo que essa divisão é assim. A

gente até fez muito curso de reciclagem.

As falas de S5 e S6 representam bem como a forma disciplinar e tecnicista de

encaminhamento da política educacional do município dos anos de 1970 ainda orienta o

ideário curricular dos (as) professores (as), mesmo tendo sido problematizada já em 1993,

tempo em que a política educacional de Blumenau começou a investir no questionamento dos

livros didáticos e das formas de seleção e apresentação dos conhecimentos disciplinares. Em

face do contexto de abertura política, de emergência das teorias críticas em currículo e de

combate aos altos índices de reprovação, a política educacional de Blumenau da década de

1990, visando a construções curriculares mais democráticas, tomou como perspectivas de

capacitação docente a construção coletiva do conhecimento, o sucesso do aluno e a

importância da relação teórico-prática.

Contudo, quando os (as) professores (as) foram questionados (as) sobre onde buscam

apoio para elaborarem seus planejamentos, não sinalizam uma prática na direção das

tendências democráticas e críticas em currículo. A observação e a própria fala dos (as)

professores (as) levam, prioritariamente, ao livro didático. É principalmente nele que buscam

suporte para elaborar as aulas e selecionar os conhecimentos a serem trabalhados. Saem de

cena os manuais enviados pela secretaria, mas permanece o livro didático. Durante as

entrevistas, em todas as salas de aula, ou sobre a mesa do (a) professor (a), ou sobre o

armário, ou dentro do armário, ou sobre a mesa das crianças, estavam os livros didáticos.

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Os discursos também revelam isso. É o caso, por exemplo, de S2, S3, S4, S5, S9 e

S11:

S2 – [...] é dentro do livro didático e coleções. Eu estou sempre comprando para estar

atualizada. Não ficar mais para trás. Eu tenho coleções de artes, de pré, de segunda-

série. Só que fico mais no livro que o aluno vai usar.

S3 - De livros, livros didáticos, que a gente sabe. Nos jornais, revistas, periódicos

sempre. E programas de TV, novelas. Porque as crianças trazem muito novelas. São as

informações que eles têm. Então daí é que eu trabalho.

S4 - Os conteúdos eu procuro sempre em livros. [...], baseados nos PCNS, outros livros

que a escola tem, que o governo envia e outros livros eu compro em livrarias, [...] eu

utilizo também muito jornal, revista. Os próprios alunos trazem novidades para a sala

de aula, né.

S5 - Eu utilizo aquilo que as crianças já trazem no início do ano de conhecimento e,

principalmente, em cima de conteúdos dos livros didáticos que foram aprovados pelo

MEC; todos eles. É o critério de seleção, relacionados aos PCNs. Acredito, no Brasil,

que eles não estariam mandando para as escolas o que estivesse fora.[...] eu tenho aqui

na estante uma mini-biblioteca de livro didático. Alguns que já estão na fase de recorte,

outros que eu faço pesquisa, outros para uso diário.

S9 Eu estou aproveitando os livros didáticos. Se vêm e são bons.... Tem de ciências,

geografia, história, português, matemática. Tão tudo aí. Eu uso em sala e uma vez ou

outra para tarefa eu também dou.

S11 Dependendo do que eu vou planejar, eu busco. Em entrevistas com pais, em livros,

em livros didáticos, em internet. Não posso dizer, também, só em livro didático, outros

livros, outras fontes de pesquisa.

Além da confiança nos livros didáticos e nos materiais enviados pelo MEC, os

discursos indicam que consideram valiosas as contribuições que foram encontradas no curso

de magistério, na universidade ou na participação ativa dos coordenadores pedagógicos

(especialistas) para a condução do processo de seleção dos conhecimentos. As falas de S1, S5

e S7 apresentam isso:

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S1 - O magistério que eu fiz, meu Deus! A gente assistia aula, não ficava só ouvindo,

ajudava depois no estágio. Depois, quando foi a época de fazer o estágio, a professora

me deu prontinho, as atividades, tudo prontinho. Isso eu acho que me ajudou, porque se

eu fosse fazer, eu não ia fazer tão bem. Como ela me deu tudo prontinho, até hoje eu

nunca tive dificuldade na sala de aula. Eu acho que isso me serviu para minha carreira

toda.

S5 - Eu acho que tudo não deve partir só da direção ou da coordenação [...] mas que

tenha um entendimento e que venha agilizar. Não precisa ser um coordenador, mas que

seja uma pessoa que tenha noção do que é realmente necessário para escola. [...] a

orientação pedagógica, eu não vejo como uma profissão, eu vejo como um dom. Não

são todos os profissionais de pedagogia que podem ser considerados um coordenador

pedagógico.

S7 - É na faculdade. Já faz vinte e poucos anos que eu trabalho e sempre foi assim. Já

tem a divisão certa de como trabalhar. Claro que às vezes a gente busca umas

coisinhas fora, para buscar umas coisas novas.

As falas de S1, S5 e S7 explicitam bem o ideário de ênfase à educação tecnicista dos

anos de 1970 em Blumenau e em âmbito nacional de dedicação aos especialistas e aos

programas de formação docente. Nesse período, o papel do (a) professor (a) era de executor

das políticas elaboradas pelos laboratórios de apoio técnico. A educação e, conseqüentemente,

os sujeitos que a compõem, eram tidos como objeto de possível controle se os programas

oferecidos pelos especialistas fossem devidamente executados.

A análise dos discursos permite dizer que os efeitos da perspectiva curricular

tecnicista e disciplinar permanecem até hoje quando os (as) professores (as) indicam total

confiança na relação de conteúdos oferecidos, seja pelo livro didático, pelo magistério, pela

universidade ou pelos especialistas das políticas públicas. Além do que a nova gestão

municipal deixa claro o retorno ao regime seriado de perspectiva disciplinar. Nessa direção,

alguns (mas) professores (as) revelam sua expectativa para com a relação de conteúdos que

será encaminhada pela Secretaria Municipal de Educação. O que há é a espera por uma

relação de conteúdos que indique certeza curricular. Não se percebem discursos que

conduzam ao questionamento de quem os está fazendo? Como? A serviço de quais

interesses? A partir de quais concepções?

Nesse norte, S1, S2, S5 e S9 se manifestam:

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S1 - A prefeitura ficou de mandar, daí a gente abre o leque conforme o que vier.

S2 - É, assim, este ano a gente está até esperando também da prefeitura.

S5 – [...] isso nós vamos fazendo enquanto não vier estabelecido lá de cima. Como nós

tínhamos nos tempos atrás.

S9 - Não, assim, vai vir um da prefeitura pronto para gente seguir.

Além disso, quando questionados sobre como fizeram seu planejamento no ano de

2005, indicaram, como já citado, que foi por série e que, nesse encontro, selecionaram os

conteúdos que deveriam ser trabalhados em cada disciplina. Para isso, buscaram subsídio no

livro didático, ou na listagem conseguida em outra escola, ou seguiram a sugestão do

professor que trabalha há mais tempo com a série/turma. Exemplos disso apareceram nas falas

de S2 e S9:

S2 - Este ano, como eu fui trabalhar no [...] eu peguei o planejamento deles e copiei

ligeirinho no meu caderno. [...] Eu vou trabalhando dentro do conteúdo, dentro das

disciplinas. No português, na matemática, nos estudos sociais. Estou tentando ir por ali

até vir o da Prefeitura.

S9 - Esse ano foi, tipo assim a [...] que já tem mais experiência de segunda série, ela

elaborou um. Elencou os conteúdos que têm que ser trabalhados.

Esse sistema de idéia explicitado pelos (as) professores (as) S2 e S9 indicam que,

enquanto aguardam a relação de conteúdos prometida pela nova gestão, buscam meios para

legitimar suas escolhas. Nesses casos, o livro didático, ou a relação de conteúdos de outra

escola, ou a sugestão do professor mais experiente. Mesmo que a proposta curricular da

Escola Sem Fronteiras tenha priorizado espaços coletivos de discussão, tenha indicado a

seleção dos conhecimentos a partir do perfil dos alunos, a maioria dos (as) professores (as) se

reportou à confiança em um currículo mínimo que indique os conteúdos “ideais”. E,

implicitamente, ao padrão de aluno “ideal”.

As investigações e as análises permitem dizer que a não-apresentação de uma relação

dos conteúdos mínimos foi um dos pontos mais críticos da implantação do projeto por ciclos

em Blumenau. Um (a) professor (a) quando se reporta à insatisfação com a falta de orientação

da proposta da Escola Sem Fronteiras explicita:

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S7- Claro que às vezes a gente busca umas coisas novas. Só que, não sei, o ciclo não

deu certo. Porque a gente não tinha base sólida na verdade. Cada uma tinha que se

virar sozinho, todo ano era mudado. Foi jogado uma coisa que a gente não entende e

não dá para continuar uma coisa que não está organizado.[...] Não vinha uma norma

lá de cima, nada.

As palavras de S7, ao propor uma leitura da proposta por ciclos em Blumenau,

permitem fazer uma síntese do sistema de raciocínio curricular que vem orientando os (as)

professores (as) da escola investigada. Considera-se que a política do conhecimento

disciplinar não foi superada devido a uma multiplicidade de fatores. Como já citado, há

expectativas e interesses construídos social, política e culturalmente para a escola. A partir de

1990, as políticas educacionais tomaram como medida para democracia e qualidade da

educação as políticas descentralizadas.

Para Silva (1998), essa tendência disseminada por governos neoliberais encontra sua

força em novas estratégias de regulação, exercida, após 1990, pela disseminação de reformas

e uso das teorias da psicologia. Sob o discurso de mais adequados para orientação dos (as)

professores (as) acerca das formas de aprendizagem das crianças, os discursos da reforma e da

psicologia tornaram-se os novos condutores e interventores da infância e da ação dos (as)

professores (as). Assim, chegou às escolas o ideário de que as novas orientações vindas das

políticas públicas mais democráticas e das teorias da psicologia são as mais adequadas para

indicar quais conhecimentos e atividades servem para a escolarização.

Dessa forma, compreende-se que, novamente, os (as) professores (as) são guiados por

discursos que, se investigados em suas origens, revelam uma forma muito particular de

compreender o que seja a escola e os conhecimentos que devem ser oferecidos para infância.

São sempre escolhas que envolvem relações de poder. Logo, as estratégias da reforma com

todo um conjunto de novas propostas, normas de intervenção na infância e de práticas tidas

como as mais adequadas, colocam o (a) professor (a) no lugar de executor e as políticas

públicas na condução do processo.

Contudo, encontram-se discursos de suspeita no que concerne à forma como os

conteúdos são apresentados aos alunos. Esses discursos não descartam os conteúdos, mas

propõem, quando da seleção, saber o porquê e para que estão sendo apresentados estes e não

outros. A fala de S12 é representativa disso:

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S12-[...] não vou dizer que não é importante estes conteúdos. Só que deve mostrar o

porquê e o para quê.

Em síntese, arrisca-se dizer que, mesmo diante de discursos como de S12, que propõe

o repensar das formas de seleção dos conhecimentos curriculares, ainda prevalece, na escola

investigada, uma política do conhecimento conteudista. Popkewitz (2001), numa investigação

mais aprofundada dos objetivos e efeitos regulatórios das tendências curriculares conteudistas

argumenta:

A alquimia das matérias escolares possibilita a alquimia da criança. O tratamento das disciplinas escolares como fixas e inflexíveis permite que os discursos pedagógicos concentrem-se nos processos pelos quais as crianças aprendem ou fracassam no domínio do currículo. [...] Com o conhecimento fixado, a alma é o local de luta em defesa das normas de realização, competência e salvação. Uma criança pode ser colocada em um contínuo de normas que representam alguma linha imaginária em que é posicionada. [...] A estabilidade arrolada no conhecimento das matérias escolares é, portanto, uma tecnologia que normaliza os sistemas que funcionam para incluir e excluir as crianças, mas não aparece como tal. (POPKEWITZ, 2001, p.36).

Para o autor, quando a escolarização passa a compreender o conhecimento como uma

entidade fixa e estável, também passa a considerar a possibilidade de encontrar formas mais

adequadas de transmiti-lo e avaliá-lo. A lógica deste processo é que, ao selecionar,

sistematizar, fixar e hierarquizar os conhecimentos, o lugar de intervenção passa a ser o

sujeito, não o conhecimento. Passa a ser o sujeito que deve receber, significar e assimilar uma

forma de conhecimento que nem sempre faz parte da sua lógica de raciocínio e de suas

experiências sociais e culturais.

Nessa direção, essa política do conhecimento funciona como regulação e normalização

das formas de raciocínio, aprendizagem e ação dos sujeitos que fazem parte da escola. A

criança que não consegue compreender os conteúdos fixados e interagir com esses é colocada

como a que está fora da norma, como se não existissem outras formas. É excluída do processo

de participação porque fracassa.

A criança passa a ser classificada como “o sem limite”, “o sem interesse”, “o que não

aprende”, “o que tem uma família desestruturada”. O que não se questiona é a forma como se

organiza e se apresenta, por meio do currículo escolar, um conhecimento que,

particularmente, é disciplinar. E sendo disciplinar, tem uma lógica de apresentação que não é

natural, mas construída para atender a interesses particulares. Não se questiona, nesse

processo, quem diz que esta é a forma de conhecimento mais adequada e quem diz quais são

as melhores formas de apresentação do mesmo. Por que estes e não outros? Por que essa

forma de apresentação e não outra? A que interesses servem?

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4.3 O Currículo Como Lugar/Espaço da Prática

Minha dificuldade em sempre separar os princípios teóricos e narrativos reside na

convicção de que a narrativa é sempre um empreendimento teórico. Não existe um

dado ou um fato sem teoria. Negar que a teoria esteja inserida naquilo que

escrevemos é exatamente o que quero combater como uma prática social. Somos

compelidos a questionar nossos trabalhos e os de outras pessoas para entender essa

relação. (POPKEWITZ, 1997, p.19).

Da compreensão de que toda proposta educacional e sua ação está imbuída de teoria,

mesmo que não se perceba, esta parte da dissertação fará a apresentação das principais idéias

que se percebem no discurso dos (as) professores (as) da escola pesquisada quando os (as)

mesmos (as) falam sobre a construção de sua prática pedagógica, em especial, sobre o que

pensam da relação entre teoria e prática e o que pensam das relações entre os currículos

oficiais e o currículo na ação54.

Alves (2001), ao fazer uma pesquisa para compreender a construção da escola pública

contemporânea, fornece uma leitura sobre a divisão do trabalho docente, ou seja, sobre o

movimento de desarticulação entre teoria e prática. O estudioso afirma que, a partir do século

XVI, as propostas de educação começaram a ser formuladas a exemplo da divisão do trabalho

que ocorria na economia. Naquele tempo, já se discutia a universalização do ensino que,

porém, era inviável devido ao caro serviço dos preceptores.

Na economia, o modelo de serviço do artesão estava sendo substituído pela

manufatura. A justificativa para isso era que as condições criadas pela manufatura

produziriam a aceleração do trabalho e a economia de fadiga, de tempo e de recursos. Desse

processo resultou o trabalhador parcial que perdeu o domínio do processo de trabalho como

um todo, tanto do ponto de vista prático quanto teórico. E o artesão, que dispunha do domínio

teórico-prático do trabalho, desde a idealização do produto e planejamento de execução até o

emprego da força e habilidade específicas para a finalização do produto, foi substituído.

Portanto, se as transformações ocorridas na produção determinariam a superação do trabalhador artesanal pelo trabalhador manufatureiro, a Didática Magna é o registro clássico de uma época que postulava transição análoga no domínio da educação; que reconhecia a necessidade histórica de superação do mestre artesanal pelo mestre manufatureiro. O primeiro, um ‘sábio’ que, na condição de preceptor, realizava um trabalho complexo [...] cedia lugar ao professor manufatureiro, que passava a se ocupar de uma pequena parte desse extenso e complexo processo. Como decorrência

54 Por currículos oficiais (escritos) se compreende todo o conjunto de orientações político-administrativas ou um plano estruturado de como organizar o currículo nas escolas. Por currículo na ação se compreende as atividades e interações em sala de aula, reguladas implícita ou explicitamente, por planos e projetos. (SACRISTÁN, 1998)

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da divisão do trabalho didático em níveis de ensino, em série e áreas de conhecimento, tal como concebera Comenius, o professor se especializava em algumas etapas da escolarização, dispensando o domínio do processo [...] como um todo. (ALVES, 2001, p.91).

No que tange à educação, para o autor já citado, a conseqüência foi a separação do

processo de concepção do de execução. O processo de trabalho foi sendo cada vez mais

dividido entre locais distintos e distintos grupos. Num local, eram executados os processos

físicos da produção e, num outro, a concepção, o planejamento, as divisões das atividades, a

definição de cada função, o modo de execução, o tempo e as formas de avaliação do processo.

Popkewitz (1997), ao tentar compreender os movimentos de reforma dos anos 90 do

século passado, fornece uma leitura da forma como as políticas estatais que, como já citado,

modificam conforme as necessidades e interesses do contexto social, histórico, econômico e

cultural, inserem o poder por meio da manutenção da desarticulação entre os processos de

concepção e execução. Para o referido estudioso, as estratégias da reforma atuam sobre quatro

pontos: “a suposição de que existe um modelo de experiência e objetivos gerais [...] a

intensificação do trabalho do professor [...] um maior monitoramento através de avaliação [...]

e limitação da autonomia do professor”. (POPKEWITZ, 1997, p.217).

Os discursos da reforma, longe de meras questões técnicas, possuem implicações na

formulação de valores e padrões para o trabalho dos (as) professores (as). A disseminação,

pelas políticas públicas, de todo um sistema de raciocínio e de conhecimentos tidos como os

mais adequados para condução dos pensamentos e práticas profissionais, é o efeito do poder

normativo e regulatório. Pode-se dizer que as políticas descentralizadas da década de 1990

vêm utilizando, com muita sabedoria, o ideário de que o (a) professor (a) mais qualificado (a)

é aquele (a) que consegue realizar suas práticas curriculares de acordo com os discursos

normativos disseminados pela reforma.

Sobre esse ponto, Popkewitz apresenta a sua contribuição:

Penso que ao construir teorias de escolarização precisamos levar a sério aquilo que as teorias lingüísticas vêm nos dizendo há pelo menos 70 anos. Os discursos sobre educação, construídos na formulação de políticas educacionais, nos relatórios de reformas e nos documentos de outras posições institucionalmente legitimadas de autoridade, não são ‘meramente’ linguagens sobre educação; eles são parte dos processos produtivos da sociedade pelos quais os problemas são classificados e as práticas mobilizadas. Não existe qualquer distinção, como muitos gostariam de acreditar, entre teoria e prática, ou entre o ‘mundo real da escola’ e os sistemas de linguagem sobre a escola. O que temos são sistemas de relações e não sistemas separados. (POPKEWITZ, 1994, p.208).

Sob o discurso do desenvolvimento, da qualidade social da educação, da flexibilidade

e da democratização das relações, a prática foi sendo organizada como se houvesse regras e

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regulamentos que precisavam ser operacionalizados para atingir os fins da educação. Assim,

viram-se emergir a ampliação dos espaços de formação continuada, planos de carreira e de

avaliação fazendo parecer “naturais” seus encaminhamentos à medida que aumentava o

monitoramento do trabalho docente.

Exemplos de como a desarticulação entre concepção e execução funcionam na

formação docente para a construção de modelos normativos em educação encontram-se nos

discursos de S3, S4 e S11. Ao falarem sobre seu processo de formação profissional, esses

professores revelam:

S3 - Adorei meu magistério, foi muito bom, tanto é que, comparando com a pedagogia

de Blumenau, o magistério dá de 10 a 0. No magistério, tinha um trabalho maravilhoso,

a produção mesmo, não só a fala. Por exemplo: É importante você trabalhar com a

didática! Lá não. O que é didática? Vamos produzir no concreto. Você tinha que ir no

quadro e trabalhar o tamanho de letra para a criança ter uma boa visualização.

Trabalhar corretamente cartazes. [...]. Foi maravilhoso. [...] Tudo era muito bem,

assim, trabalhado no concreto.

S4 - Eu optei para fazer o magistério. [...] As professoras trabalhavam muito a livre

expressão da gente. [...] Era bem legal! Era bem prático, Sabe? Era bastante aula

prática. A gente não teve muita teoria.

S11 - Decidi fazer magistério [...] e fiquei um pouco decepcionada com o curso. Eu

pensei que eles iriam me ensinar. Não me dizer como que eu tinha que fazer, como que

eu tinha que escrever no quadro, como que eu tinha que, vamos dizer assim, escolher o

livro didático. Eu queria outras coisas. Eu queria que eles me dissessem como

trabalhar com o aluno que não aprende [...] porque o trabalho em grupo é legal ou

não. Daí quando eu comecei a dar a aula, a angústia aumentou e eu fui buscar

respostas na graduação, no curso pedagogia. Lá também eu não encontrei. [...] Eu sei

que a gente não vai achar todas as respostas porque as respostas não são definitivas.

Mas, na época, eu achava que era. Não era uma receita que eu procurava, uma fórmula

para trabalhar [...] mas eu procurava um espaço maior de discussão entre a turma,

entre o professor e grupo, a pesquisa em si e o grupo, o que a psicologia educacional,

por exemplo, hoje está trazendo. [...] Porque para mim, estava muito distante a teoria

da prática. Eu pensava que iria diminuir e não; aumentou mais ainda a distância.

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As falas dos (as) professores (as) S3 e S4 possibilitam compreender que sua formação

profissional esteve de acordo com uma perspectiva pedagógica de ênfase à prática. Nas

palavras desses (as) professores (as) está explícito o ideário que a teoria e prática são coisas

distintas, muito característico da construção histórica das práticas da escolarização que se

intensificou, no Brasil e em Blumenau, com os movimentos tecnicistas das décadas de 1970 e

1980. Já a fala de S11dá indícios de um interesse na articulação de ambas – teoria e prática –,

da necessidade de aproximação para uma prática de qualidade. Entretanto, está permeada,

implicitamente, da idéia que existe a possibilidade de encontrar um modelo ideal de atuação

profissional oferecido nos espaços de formação. Indica, nesse sentido, a contradição tão

característica das reformas estatais da década de 1990.

Ao mesmo tempo em que propagam discursos de perspectiva democrática, da

necessidade de espaços de formação continuada que possibilite a articulação teórico-prática,

os (as) professores (as) apresentam, em seu fazer, todo o conjunto de estratégias e de

regulação que, como já citado, deixam muito pouco espaço para a sua autonomia. Isto porque

trabalham com o ideário de que existe uma modelo ideal de educação, determinado implícita

ou explicitamente, pelas políticas estatais. Nessa direção, há sempre a sensação, nos (as)

docentes, de que é preciso muito esforço para adequar seu pensamento e ação a um ideal que

é sempre uma escolha política e que envolve relações de poder. Por isso, normativo.

Um exemplo desse interesse regulatório e normativo das ações dos (as) professores

(as) encontra-se na concepção de currículo da Escola Sem Fronteiras:

Em Blumenau, os profissionais da Rede Municipal são estimulados a desenvolver uma prática pedagógica que se afigure com a lógica interdisciplinar. Muitos profissionais da educação de Blumenau já estimulam ações coerentes com a concepção de que o conhecimento deva ser construído com o aluno, respeitando sua trajetória cultural e cognitiva. Este processo, inicialmente tímido e de reforma diversificada, mostra que é possível pensar o currículo de forma audaciosa. (BLUMENAU, s/da, p.11).

A concepção curricular oferecida aos (às) professores (as) pelo projeto Escola Sem

Fronteiras demarca uma opção de prática pedagógica. É possível dizer que seu diferencial, no

que diz respeito às políticas anteriores a 1997, apresentou-se com relação à possibilidade de

novas relações espaço-temporais, novas concepções curriculares de tendência crítica e maior

abertura para interação entre pares. Contudo, sua forma de condução política também

demarcou uma divisão entre a concepção e execução quando ofereceu uma norma única para

a condução dos pensamentos e práticas docentes.

A conseqüência disso surge quando se questionam os (as) professores (as) sobre sua

prática quotidiana e seu planejamento e os (as) mesmos (as) revelam não conseguir

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estabelecer relações com a teoria que poderia estar fundamentando sua prática. As falas de S1,

S3, S5, S9, S10 e S11 indicam que esses (as) professores (as) não conseguiram estabelecer ou

se preocupar em perceber esta relação na prática que realizam quotidianamente:

S1 – É muito, assim, no concreto. Vamos supor, se trabalho história de matemática, sempre

busco colocar eles nas histórias, sempre envolvendo eles. Daí eu acho que eles aprendem

melhor, eles fixam melhor, brincando.

S3 - O que tem de bom de proposta, o tradicional. Eu não tenho um caminho só para

seguir. Eu costumo ouvir: Eu sou da teoria de Vygotsky! Eu sou da teoria de fulano de

tal! Eu não. Eu já acho que não passa por aí. Eu acho que todos eles são importantes.

Eu acho que precisa dessa visão eclética.

S5 - Eu vejo que dentro do seriado, aquele tradicional que não permite nada, esse não é

mais possível. [...] Eu acredito que muito tenha acrescentado o fato de poder ter

estudado a teoria de Vygotsky, a teoria de Wallon. [...] Mas, eu não tenho uma linha

específica. Dependendo da atividade, dependendo do momento, até do estado da turma.

S9 - Tipo assim, eu não gosto de seguir aquela coisa, assim, aquela coisa rígida. [...]

No caso, como voltou a nota [..] eu trabalho por disciplina.

S10 - Eu me sinto com o projeto, com um tema. [...] eu me sinto num trem que tá no trilho.

[...] eu não sei se está certo o que eu estou trabalhando, se é tudo, entendeste?

S11 - Olha! [...] Eu sei que a teoria não está deslocada da prática; eu sei que uma coisa que

tem que estar sempre com a outra. Mas, a minha preocupação não é qual o teórico; a minha

preocupação é a prática.. É o que eu estou fazendo hoje, no meu dia-a-dia.

Percebe-se, nas falas de S1, S3, S5, S9, S10 e S11, o desencontro entre as bases

teóricas e práticas. A fala de S11 explicita que esse (a) professor (a) não tem preocupação

com o teórico. Para ele (a), o importante é a prática que vem realizando no quotidiano.

Considera-se que este seja o efeito da forma como vem sendo conduzida a política

educacional do município, em especial, no que diz respeito à gestão e à concepção da política

curricular por alguns e à gestão da prática por outros.

As falas de S3 e S5 se reportam à alguns autores influentes na educação da década de

1990, como Vygotsky e Wallon. Assim, S3 considera equivocado pautar a ação em somente

um autor. Já S5 aponta que, para a superação do seriado, foi importante fazer a leitura desses

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autores. Os teóricos da psicologia, como já citado, foram incorporados nos movimentos de

reforma da década de 1990 como os especialistas mais adequados para auxiliar na condução

das práticas da educação, o que também ocorreu no projeto Escola Sem Fronteiras de

Blumenau. Percebe-se que, entre autores como Paulo Freire e Freinet, é explícita a utilização

das teorias da psicologia para pensar sobre os processos de ensino-aprendizagem.

Na consolidação dos pressupostos teóricos e metodológicos, a Escola Sem Fronteiras se apóia nos pressupostos de Paulo Freire e na matriz teórica e metodológica de Freinet, Piaget, Wallon e Vygotsky e pesquisadores contemporâneos, finamente afinados com a realidade e o contexto da população de Blumenau e do Vale do Itajaí. (BLUMENAU, s/da, p.4).

As teorias da psicologia, de acordo com Popkewitz (2001), sob o discurso de

pressuposto necessário para compreender os processos de ensino e aprendizagem e fracasso

escolar, acabaram funcionando como meio para a intervenção das políticas estatais nas

subjetividades, tanto de professores (as) como de alunos. Para o referido autor, a infinidade de

fatores que geram o fracasso escolar, como diferenças de classes, racismo, desigualdade

social, etc., foram colocados em suspenso, fazendo parecer que a solução fosse um problema

psicológico, problemas de autoconsciência e de atitudes.

As idéias de auto-estima e manejo de classe estão inseridas em uma estrutura que separa, distingue e produz uma criança que é confinada por agir fora do normal e do racional. [...] as questões de poder voltam-se para uma auto-inspeção e auto-retificação que afetam tanto o professor quanto a criança. Por isso, a psicologia da criança não é um discurso singular e particular sobre a auto-estima, mas está presente em uma estrutura. Dentro desse espaço, o máximo que as crianças podem esperar é tornarem-se parecidas com a pessoa normal. (POPKEWITZ, 2001, p.76).

Dentre os (as) entrevistados (as), há uma fala que conduz à teoria de Piaget e indica

que considera necessário fazer opções teóricas. Quando se refere à mistura de concepções,

S12 diz que vira uma “salada mesmo.”:

S12 - A gente não pode pegar; hoje eu só sei um pouquinho de Wallow, hoje eu vou ser

um pouquinho de Vygotsky. Realmente, tem que ter um teórico para se apoiar. Se não,

vai virar uma salada mesmo. Uma teoria que eu acho muito lega é a teoria do Piaget.

Quando ele fala que cada criança tem uma faixa etária e que a gente não pode estar

atropelando as idades.

O relato de S12 revela como os discursos da pedagogia propagados pelas políticas

públicas, pela universidade, nos cursos de formação, acabam compondo o discurso dos (as)

professores (as) que, na tentativa de compreendê-los, criam meios para articulá-los com sua

prática quotidiana. Contudo, o que dificilmente chega aos (às) professores (as) é que é sempre

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um conjunto de escolhas que um grupo de pessoas que está na gestão das políticas públicas

fez, dentre tantas outras. Cada uma revela sua compreensão do que seja a escolarização, sua

função, a organização de seus tempos/espaços e o papel dos sujeitos que a compõem, esteja

isso explícito ou não.

O que ocorre é que se os (as) professores (as) não se detiverem em tentar compreender

quais sistemas de raciocínio e conhecimento compõem e permeiam suas práticas, estarão

facilmente aderindo a proposições educacionais sem se darem conta de que essas proposições

têm o poder de, por intermédio de suas práticas discursivas, impor normas e regras de

pensamento e ação para regulação dos sujeitos envolvidos nos processos de escolarização.

A epistemologia social tem contribuído para que se possa compreender que os

sistemas de raciocínio e conhecimentos que permeiam as práticas e ações cotidianas nas

escolas não estão desvinculados do tempo histórico e relações de poder nele presentes.

Popkewitz (2001) vai mais longe e afirma que os discursos que circulam na educação

constroem a realidade para os professores, as problemáticas e os melhores caminhos a seguir.

Os (as) professores (as), quando questionados (as) se percebem a relação entre os

currículos oficiais e o currículo que se faz na prática, trazem, em sua maioria, diversas

questões. S1, S3, S5, S6, S8, S10, S11, S12, S13 e S14 assim se manifestam:

S1 – Alguma relação tem porque é o currículo. Nós temos que nos basear em alguma

proposta. Mas, algumas coisas se “abrem”. Os assuntos que não estão ‘ali’ e que são

importantes ensinar para os alunos.

No caso de S1, após desligar o gravador que se estava utilizando durante a entrevista,

o (a) professor (a) entrevistado (a) complementa:

S1 - Os professores fazem escolhas que nem sempre estão relacionadas com o currículo

escrito. Para mim, os documentos são importantes, mas eu não levo em consideração.

O que determina é a minha prática, a minha experiência.

S3 - Na verdade tem que ter essa relação. [...] Só que a gente sabe que muitos dizeres

são muito bonitos no papel. [...] Eu digo que a gente tem que ver o lado escrito. É

importante que tenha, ainda mais que está sendo revisto. [se refere ao novo governo]

[...] A gente tem que estar levando em conta e procurar se adaptar dentro dessa

legalidade. E lógico que nada impede que você faça extracurricular.

S5 - Na prática, eu vejo que nem sempre é 100% do que está no planejamento.[...] São

tantas crianças diferentes na sala de aula ou de um dia para o outro; você tem um

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planejamento e ocorre uma situação que você precisa mediar, entrar com outra

situação. [...] Só que a vantagem é que você pode ir além do que está no planejamento;

ele te permite inserir em determinados momentos situações, temas.

S6 - Eu acho que algumas coisas a gente faz, mas algumas coisas só tá no papel. O

pessoal fala, mas não faz nada daquilo. [...] Aqui tem professor que nem conhece o

Projeto Político-Pedagógico.

S8 - Eu acho que muito que está ali é muito lindo, muito maravilhoso, mas no dia-a-dia,

na prática, não é feito isso ali. Acho que a gente foge muito. Porque a vivência do dia-

a-dia, a descoberta um do outro é bem diferente do que a gente acaba colocando aí.

S10 - Tem muita coisa que só fica no papel [...] a filosofia da escola é fazer com que o

aluno seja um indivíduo crítico. [...] Aí o aluno abre a boca para discordar do

professor, ela vai para rua da sala. É ilógico.

S11 - Eu vejo que mesmo você querendo cumprir o que está escrito, na prática é outra

coisa. Porque mesmo você tendo essa ou aquela visão de currículo [...] por mais que

você relacione algumas coisas, alguns objetivos, alguns conteúdos [...] você não

trabalha com papel e caneta, você trabalha com sujeitos.

S12 - Isso é uma coisa complicada Há uma cobrança que nós temos que fazer. [...] Eu

penso que para uma organização tem que ser feito. [...] Eu estar aplicando ele na

minha sala de aula a gente sabe que é diferente.

S13 - 60% sim os outros 40% restantes não. [...] Porque os professores acreditam que

do jeito que eles fazem é o mais certo. Cada um faz do seu modo. [...] Talvez com a

nova proposta de conteúdos fique melhor.

S14 - Nem sempre é possível colocar em prática aquilo que escrevemos ou propomos

para os alunos. Não depende só do professor. Depende da turma, do aluno, [...] de

como o trabalho vai sendo encaminhado.

As questões levantadas por S1, S3, S5, S6, S8, S10, S11, S12, S13 e S14, num

primeiro momento, expressam a desvinculação teórico-prática e a ênfase à prática. Mostram

como chegou até os tempos de hoje o processo de repartição do trabalho dos professores, a

exemplo da substituição do trabalho artesão pelo trabalho manufatureiro. As falas

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apresentadas deixam a descoberto a não-participação dos professores nos processo de

idealização das políticas curriculares.

Em uma análise mais apurada, argumenta-se que o não-conhecimento das intenções

presentes nos documentos curriculares oficiais permite maior gerência regulatória advindas

das políticas estatais. Essa afirmação decorre da percepção que se tem de que, mesmo que os

(as) professores (as) não percebam, seus discursos explicitam que suas ações estão

coadunadas com as intenções e interesses dos governos que têm estado à frente das políticas

educacionais, em particular, com relação às práticas disciplinares, à ênfase na prática, à

adesão aos pressupostos psicologizantes, aos discursos democráticos de compreensão da

realidade dos alunos, à idéia de construção coletiva dos conhecimentos, etc.

Além disso, as falas de S5, S8, S11, S13 e S14 explicitam que a prática quotidiana é

interpelada por vários fatores. Esses participantes da pesquisa consideram que a não relação

possa estar vinculada às imprevisibilidades que envolvem o trabalho, como pessoas, interesses

diversos, sentidos, significados, interpretações, escolhas, relações de poder, de gênero, etc.

Um (a) dos (as) professores (as) entrevistados (as), ao falar da relação entre os

currículos oficiais e os currículos na ação, se reportou para os movimentos realizados em sua

escola até o final de 2004, enquanto ainda estava organizada por ciclos:

S4 - Com certeza tinha. Porque como era feito uma coisa coletiva, todo mundo tinha a

sua parte. Todo mundo se envolvia, coordenação, direção, [...] Todos os passos que a

gente trabalhava a comunidade se envolvia, era muito chamada na escola. Todos os

momentos de conselho de classe a comunidade participava, dava suas opiniões.

O discurso de S4 é indicativo da compreensão que o (a) professor (a) tem da possível

relação entre o currículo escrito e o currículo na ação. Acredita-se que, em decorrência dos

tempos de estudo e pesquisa, das paradas mensais, dos conselhos participativos, foi possível

aos (às) professores (as) da rede municipal de ensino de Blumenau estabelecer acordos,

intenções e propósitos coletivos na escola. Nessa direção, as entrevistas sinalizaram para a

insatisfação dos (as) docentes com a retirada dos tempos de estudo e pesquisa coletivos. As

falas de S4 e S9 são representativas disso:

S1 - Olha, no ano passado a gente tinha o dia de estudo. A gente sentava e planejava

junto. Agora é na hora da educação física, quando dá.

S4 - Bom, eu vejo, assim; como professora eu acho que a gente não tem o tempo para

planejar na escola. O que eu acho ridículo. Porque a gente havia conquistado isso. [...]

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o dia que a gente se encontrava com vários professores. A gente tirava as dúvidas, as

angústias que a gente tinha. E estudava muito, muito. E isso é a grande dificuldade

porque a gente não tem mais o tempo para nada na escola.

S11 - Este ano nós estamos tendo a maior dificuldade para ter essas conversas, essas

trocas de idéias.

Como se pode observar, S1, S4 e S11 apresentam um cenário de descontentamento

com a retirada dos tempos de estudo e pesquisa coletivos. A investigação da construção

curricular da educação em Blumenau permite dizer que o projeto Escola Sem Fronteiras foi o

primeiro no sentido de oferecer aos professores novas possibilidades de relações pessoais e

estruturais.

Constata-se que as falas de S1, S4 e S11 vão em direção ao que a política educacional

de Blumenau viveu nos últimos 8 anos, ou seja, um crescente investimento na construção

coletiva dos conhecimentos. Embora se compreenda que o projeto Escola Sem Fronteiras

também tenha sido normativo com relação aos princípios teóricos de ênfase na psicologia e na

construção e condução da política educacional excluindo os professores da totalidade do

processo, não deixou de abrir espaços alternativos visando a políticas mais democráticas, à

mudança e à articulação teórico-prática.

Minha opinião é que os sistemas da lógica da escolarização são o lugar da batalha para um ensino mais equitativo e uma sociedade mais justa. Entretanto, ao se engajar nessa batalha, educadores, professores e administradores têm pouquíssimo entendimento de como os sistemas concretos de idéias incorporadas na prática da sala de aula atuam para produzir o terreno desigual que chamamos de educação. Embora não proporcione respostas para perguntas sobre alternativas a buscar, pretendo pôr fim à maneira como ‘contamos a verdade’ sobre nós mesmos como professores e sobre as crianças e, assim, abrir um espaço potencial para alternativas (POPKEWITZ, 2001, p.21).

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciou-se este trabalho apresentando as inquietações que se tinham com relação ao

tema desta pesquisa: o currículo escolar em Blumenau, SC. Durante o processo de inserção

nas pesquisas e debates relativos ao tema e de escolha do referencial teórico, começou-se a

compreender o currículo como um artefato construído social e historicamente, no qual estão

presentes “modos de pensar sobre como as crianças e adolescentes tornam o mundo

inteligível” (POPKEWITZ, 1994, p.174) e interagem com ele. Mas, como tal, o currículo

escolar não age somente sobre as crianças.

No decorrer deste trabalho, apresentou-se que os sistemas de raciocínio e

conhecimento que circulam na escolarização e que organizam a forma como os (as)

professores (as) vêem o currículo e o transformam em ação são construções que envolvem

escolhas, práticas institucionais, relações de poder, acordos sociais e políticos, nem sempre

evidentes para os (as) professores (as). O que está inscrito no currículo não é apenas

informação. A organização dos seus conhecimentos funciona, também, como regulação para

os sujeitos que compõem a escolarização.

Sendo assim, visando compreender quais são os sistemas de raciocínio e

conhecimento que compõem os discursos docentes e as questões que os sustentam e os

constroem, fazendo-os parecerem “naturais”, direcionou-se a investigação para os principais

sentidos do currículo para um grupo de professores (as) de uma escola pública municipal de

Blumenau, SC.

Fez-se a investigação sobre a construção histórica da educação e do currículo no Brasil

e no Município de Blumenau, SC, prevendo, em especial, o entendimento dos fatores sociais e

políticos que os têm conduzido. No caso desta pesquisa, considerou-se a compreensão

histórica subsídio para a leitura dos propósitos da mesma. De acordo com Popkewitz (2004),

descartar das análises a construção histórica do objeto é o mesmo que pressupor, neste caso,

que as políticas e os ideários docentes sejam entidades fixas e isentas das influências,

princípios normativos e efeitos de poder.

Posto isto, apresentam-se os achados de pesquisa à guisa de conclusão. Primeiramente,

expõe-se que a política educacional e curricular de Blumenau pode ser dividida em três

períodos de concepções pedagógicas distintas, o que se apresenta na continuidade.

No início do século XX, com a reforma Orestes Guimarães, chegaram ao Estado de

Santa Catarina os princípios da pedagogia ativa de Dewey ou, como foi chamada por Orestes,

pedagogia do ensinar a fazer. Pode-se dizer que esse período, considerado de educação

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tradicional de perspectiva progressista, foi caracterizado por uma política de cunho

centralizador. Um exemplo disso foram os serviços de inspeção que perduraram por quase

todo o período. Em um panorama geral, mesmo diante de consecutivas inovações aos moldes

da Escola Nova, o período foi de rígido centralismo administrativo, expansão quantitativa do

ensino e escasso avanço qualitativo.

Por volta de 1973, ano da criação da Secretaria Municipal de Educação, a política

educacional de Blumenau viveu o que se pode chamar de educação tradicional tecnicista, a

exemplo do que ocorria em âmbito nacional. De tendência disciplinar, esse período foi

marcante pela disseminação de departamentos disciplinares, elaboração de propostas

curriculares e assistência técnica aos (às) professores (as), ou seja, pelo como fazer o

currículo. Por esses tempos, o caráter centralizador foi cedendo lugar para a descentralização

dos serviços escolares, aos cuidados dos departamentos disciplinares.

Foi a partir de 1990, quando da abertura política e da emergência das teorias críticas

em currículo, que a política educacional de Blumenau acenou para um interesse em

construções curriculares de caráter democrático e coletivo. A gestão de 1993, como já citado,

tomou como perspectiva de trabalho o sucesso do aluno, a relação teórico-prática e a

construção dos projetos político-pedagógicos das escolas. O objetivo era a construção de uma

prática transformadora e de qualidade, bem como a idéia de professor reflexivo, pesquisador e

sujeito de sua formação. Mas, foi somente na gestão de 1997 que, além do ideário da

construção coletiva do conhecimento e gestão democrática da educação, se investiu em uma

restruturação dos tempos/espaços escolares.

Mesmo que não seja foco deste trabalho, considera-se necessário lembrar que, no

momento em que foi feita a pesquisa, a escola e os (as) professores (as) viviam os primeiros

encaminhamentos da nova gestão de 2005. Nesse sentido, os sentimentos e a posição dos (as)

professores (as) com relação à retirada da proposta Escola Sem Fronteiras e ao retorno do

regime seriado de perspectiva disciplinar vieram à tona durante as entrevistas ou conversas

informais. O que serviu para responder aos objetivos desta pesquisa foi considerado e o que

não serviu ficará para futuras investigações.

Em síntese, a investigação dos momentos históricos vividos pela política educacional

e curricular do município de Blumenau permite dizer que é marcante a presença do Estado na

sua regulação, organização e gestão.

A análise dos discursos docentes indicou que os mesmos têm relação com os

momentos curriculares vividos pelo município. A leitura e o processo de síntese das

entrevistas, bem como as observações, sinalizaram que as principais idéias que esse grupo de

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professores (as) tem sobre o currículo estão relacionadas com o currículo como lugar/ espaço

de regulação, currículo como lugar/espaço de uma política do conhecimento e currículo como

lugar/espaço da prática.

No que diz respeito à regulação, constatou-se que o currículo produz esse efeito

quando, nas práticas institucionais, funciona como meio para construção de normas e padrões

para os pensamentos e ações na escolarização. Isto se fez sentir quando os discursos docentes

indicaram que, para uma “boa” escola, é preciso estabelecer normas que sirvam de parâmetro

para o que se entende por bons alunos, bons professores, boas formas de interação entre

família e escola e boa forma de apresentação dos conhecimentos.

Neste sentido, observou-se que o ideário de escola, aluno, pais, professores (as) e os

conhecimentos que mais apareceram nas falas docentes têm relação com as tendências

tradicionais em currículo. Isto porque os discursos evidenciaram que, para os (as) professores

(as), o currículo deve trabalhar no intuito de maior controle da sala de aula, demarcação de

limites para os alunos, maior participação das famílias e apresentação dos conhecimentos de

forma disciplinar. Esses quatro pontos, em funcionamento na escolarização, foram

considerados como os mais adequados para a construção de uma educação “forte” que

possibilite a boa conduta, a inserção dos alunos no mercado de trabalho e a continuidade da

escolarização.

Articulado com o ideário de currículo como lugar/espaços de regulação, encontra-se

um ideário de currículo como lugar/espaços de uma política do conhecimento. No caso da

escola investigada, os discursos docentes apresentaram um sistema de raciocínio que

evidenciou uma política do conhecimento de tendência disciplinar e conteudista. Além disso,

a análise das falas sinalizou que o local de procura desses conteúdos tem sido os livros

didáticos. No mais, é muito presente a confiança nos materiais enviados pelo MEC, a crença

na orientação dos especialistas, da Universidade, dos (as) professores (as) mais experientes e,

em especial, a crença nas indicações da Secretaria de Educação do município. O que os (as)

professores (as) esperam é a oferta dos conteúdos tidos como ideais e a seqüência a seguir. A

identificação do currículo com a forma de apresentação disciplinar e conteudista funciona

para fazer parecer, seus conteúdos e sua seqüência, como algo “natural” e não um conjunto de

opções que envolvem relações de poder.

A análise das falas dos (as) professores (as) no que concerne às formas de seleção dos

conhecimentos permitiu estabelecer relações com a política educacional do município dos

anos de 1970 e 1980: uma política curricular de assistência técnica que construiu o ideário de

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que a objetividade, a eficiência, as formas racionais de organização da escola e o conteúdo

disciplinar eram as estratégias mais adequadas para uma educação de qualidade.

Aqui, as investigações tornaram evidentes os efeitos da tendência tradicional

tecnicista. A análise das falas explicitou que, mesmo os (as) professores (as) tendo participado

da implantação de uma nova perspectiva curricular no município a partir dos anos de 1990 e

apesar de os discursos indicarem levar em consideração a realidade do aluno, quando os (as)

professores (as) falam sobre como fazem a seleção do que trabalharão com as crianças se

reportam à relação de conteúdos. Também se compreende que este sistema de raciocínio

esteja relacionado com a proposta curricular do governo nacional, os PCNs e sua perspectiva

dos conteúdos mínimos e com as novas orientações da gestão de 2005.

No decorrer das entrevistas, muitos (as) professores (as) revelaram sua expectativa no

que tange aos conteúdos a serem encaminhados para as escolas pela Secretaria Municipal de

Educação. Para esses (as) professores (as), a indicação de conteúdos que tragam certeza

curricular é algo esperado já há bastante tempo. Inclusive, este foi o ponto de maior crítica

dos (as) professores (as) quanto ao projeto Escola Sem Fronteiras. Sua insatisfação esteve

relacionada com a falta de “normas” oferecidas pela gestão de 1997, ou seja, com a relação de

conteúdos.

Mesmo que esta pesquisa entenda que, em sua maioria, a escola tenha um ideário de

currículo disciplinar, encontraram-se discursos de oposição a essa lógica. Foram os discursos

que, alinhados com as tendências críticas em currículo e com as políticas educacionais dos

anos de 1990, defenderam uma escola que atendesse aos princípios de vivência democrática,

de construção coletiva dos conhecimentos, de novas relações entre professores (as), alunos e

comunidade e de respeito aos saberes discentes. Além disso, perceberam-se falas que,

sinalizando uma leitura política, atribuíram à educação um lugar de intervenção do Estado

que, atendendo a interesses alheios à escola, deixaram pouco espaço para livre ação dos (as)

professores (as).

Contudo, considera-se pertinente acrescentar que, mesmo que as políticas públicas dos

anos de 1990 tenham proposto inovação curricular e restruturação dos tempo/espaços

educacionais, sua contradição foi o interesse em demarcar modelos “tidos” como os mais

adequados, tanto para a postura profissional, como para as propostas de ensino-aprendizagem.

Neste sentido, compreende-se que o currículo como espaço/lugar de regulação foi exercido a

partir do momento em que sustentou a divisão dos processos de concepção da execução

curricular.

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Outro ponto a ser considerado é o ideário de currículo como lugar/espaço da prática.

Este entendimento surgiu quando os (as) professores (as) apontaram para uma ênfase à

prática. A grande maioria tornou explícito que não via relação entre as questões teórico-

práticas de sua ação quotidiana. Atribuiu-se esse efeito ao modelo de formação profissional

dos (as) professores (as) e a todas as tendências curriculares que orientaram a educação do

município. As investigações indicaram que, desde o início do século XX, as políticas públicas

de Blumenau têm apresentado aos (às) professores (as) propostas já elaboradas de concepção

curricular e têm construído estratégias para condução dos pensamentos e ações docentes de

acordo com interesses políticos.

Mesmo que as políticas públicas dos anos de 1990 tenham optado por um caráter

descentralizador, observou-se que, ao mesmo tempo em que propagaram discursos de

perspectiva democrática e investimento nos espaços de formação continuada para articulação

teórico-prática, apresentaram em seu fazer todo o conjunto de estratégias e de regulação que,

como já citado, visava adequar as práticas docentes aos seus projetos, o que se verificou que

contribuiu para a lógica da repartição do trabalho, ou seja, a não- participação dos (as)

professores (as) nos processo de idealização das políticas. Em síntese, ocorreu a concepção

das políticas públicas por alguns e a execução por outros.

Assim, foi a não-participação na elaboração das políticas públicas e a não-

compreensão dos objetivos e intenções presentes nas mesmas que permitiram maior gerência

regulatória pelas políticas estatais. Esta afirmação se faz devido à constatação de que, mesmo

que os (as) professores (as) não percebam, seus discursos explicitam que seus pensamentos e

ações estão coadunados com as intenções e interesses dos governos que têm estado à frente

das políticas educacionais.

Conclusivamente, a pesquisa que se apresentou revela que as principais idéias sobre o

currículo, para um grupo de professores (as) da escola investigada, apontam o mesmo como

lugar de construção de verdades sobre as escolas, os alunos, as famílias e os (as) professores

(as); lugar de construção de padrões de referência para a boa conduta; lugar de conhecimento

e ação disciplinar; rol de conteúdos; lugar de ações práticas. Durante este percurso,

compreendeu-se que a fala dos (as) professores (as) não se distanciou das concepções

curriculares que Blumenau viveu, em especial, da concepção tradicional tecnicista e

disciplinar.

Acrescenta-se que, a exemplo desta pesquisa, o investimento na compreensão das

epistemologias sociais que conduzem os processos curriculares pode constituir-se alternativa

para novas investigações. No caso desta pesquisa, chegou-se à conclusão de que as políticas

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públicas, na disseminação de seus sistemas de raciocínio e de conhecimentos, foram os

principais fatores de condução dos discursos docentes da escola investigada.

Para finalizar, considera-se que esta pesquisa não termina aqui. Sente-se que os dados

apresentados permitem maiores possibilidades de compreensão e de articulações. Porém, para

este momento, se finalizam estas considerações e se apresenta como recomendações para

futuras pesquisas de interesse pelo conhecimento, a investigação de outros elementos, como

cultura, interesses particulares, experiências de vida, que não se contemplaram nesta pesquisa,

mas que se percebeu, interagem quotidianamente com as questões políticas na escolarização,

compondo os discursos docentes e suas formas de pensar sobre a escolarização.

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APÊNDICE

Apêndice A. Roteiro de entrevista com professores

ROTEIRO DE ENTREVISTA COM PROFESSORES

1. Fale-me um pouco da sua história como pessoa, como aluno e como professor. 2. Quanto tempo atua no magistério? Fale-me um pouco da sua opção pela educação? 3. Fale-me sobre ser professor hoje? Dificuldades e alegrias. 4. Hoje, como você vê a educação? 5. Falando em educação, existem diferentes propostas, em qual delas você se insere?

Defende alguma? 6. Fale-me do seu trabalho? 7. O que você entende por Currículo? 8. Como tem sido a elaboração do currículo desta escola? 9. O que considera essencial levar em consideração quando planeja o currículo e a

implantação dele em sua turma? 10. Você vê diferença entre o currículo escrito e a prática que se faz dele?

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