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O CRIPTOPÓRTICO DE A EM INI U MO Pelo menos desde 1930 foi tornada pública a existência, sob o Museu Machado de Castro, de um vasto e imponente complexo de galerias romanas. Efectivamente, nesse ano, o malogrado arqueólogo Doutor Vergílio Correia, numa conferência feita no Curso de Férias da Faculdade de Letras (em 24 de Julho), depois publicada no volume vi de «Biblos», acrescentava ao que sobre Acminium se sabia um novo e interessante capítulo (1). Nesse trabalho conta-nos como Mestre António Augusto Gonçal- ves, seu antecessor imediato na direcção do Museu, lhe revelara a exis- tência de galerias subterrâneas no edifício, «uma das quais, pelo sis- tema de abóbada, lhe parecia romana, galerias que ele nunca tentara explorar por outros assuntos mais urgentes disso o impedirem». Vergílio Correia «incorrigivelmente arqueólogo», nas suas pró- prias palavras, apressa-se a percorrer e estudar essas galerias c chega a uma «conclusão surpreendente; todo o Museu Machado de Castro, todo o edifício do paço dos bispos de Coimbra assentava em galerias sobrepostas, da época romana». Em poucas páginas dá-nos uma descrição concisa do monumento e propõe algumas hipóteses para explicar a sua construção. Passados vinte e seis anos sobre a publicação desse estudo, e rea- lizados novos trabalhos, pode dizer-se que pouco há a modificar no quadro que nos legou o ilustre professor, mas há coisas novas a dizer e comparações a estabelecer com monumentos similares, noutros pon- tos do vasto Império Romano. (*) Comunicação apresentada ao XXIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, reunido cm Coimbra em Junho de 1956. (1) Novamente publicada no volume 1 das Obras de Vergílio Correia {Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1946, pp. 13-35), sob o título «Coimbra romana».

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O CRIPTOPÓRTICO DE A EM INI U MO

Pelo menos desde 1930 foi tornada pública a existência, sob o Museu Machado de Castro, de um vasto e imponente complexo de galerias romanas.

Efectivamente, nesse ano, o malogrado arqueólogo Doutor Vergílio Correia, numa conferência feita no Curso de Férias da Faculdade de Letras (em 24 de Julho), depois publicada no volume vi de «Biblos», acrescentava ao que sobre Acminium se sabia um novo e interessante capítulo (1).

Nesse trabalho conta-nos como Mestre António Augusto Gonçal­ves, seu antecessor imediato na direcção do Museu, lhe revelara a exis­tência de galerias subterrâneas no edifício, «uma das quais, pelo sis­tema de abóbada, lhe parecia romana, galerias que ele nunca tentara explorar por outros assuntos mais urgentes disso o impedirem».

Vergílio Correia «incorrigivelmente arqueólogo», nas suas pró­prias palavras, apressa-se a percorrer e estudar essas galerias c chega a uma «conclusão surpreendente; todo o Museu Machado de Castro, todo o edifício do paço dos bispos de Coimbra assentava em galerias sobrepostas, da época romana». Em poucas páginas dá-nos uma descrição concisa do monumento e propõe algumas hipóteses para explicar a sua construção.

Passados vinte e seis anos sobre a publicação desse estudo, e rea­lizados novos trabalhos, pode dizer-se que pouco há a modificar no quadro que nos legou o ilustre professor, mas há coisas novas a dizer e comparações a estabelecer com monumentos similares, noutros pon­tos do vasto Império Romano.

(*) Comunicação apresentada ao XXIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, reunido cm Coimbra em Junho de 1956.

(1) Novamente publicada no volume 1 das Obras de Vergílio Correia {Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1946, pp. 13-35), sob o título «Coimbra romana».

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É isso que, rapidamente, vamos tentar fazer em homenagem ao antigo professor de Arqueologia da Faculdade de Letras, de quem tantas vezes nos lembrámos ao acompanhar os recentes trabalhos rea­lizados no monumento que, tão interessadamente, começara a estudar.

A infraestrutura do edifício do Museu compõe-se de duas ordens de galerias que, na parte ocidental, se sobrepõem, formando um qua­drilátero envolvendo um espaço aberto e, pelo que podemos avaliar até agora, livre de construções.

A única explicação que nos parece justificar a construção deste complexo arquitectónico, é a da correcção do desnível existente entre a zona cm que se localiza a igreja de S. João de Almedina e a zona da base da fachada ocidental do edifício do Museu, explicação que aliás tem sido a única apresentada e unanimemente aceite.

Vejamos rapidamente como se dispõem as galerias do piso superior. Dissemos acima que elas formam um quadrilátero e, tendo em conta o que até agora sabemos, ordenam-se da seguinte forma (Fig. 1).

A Nascente: duas galenas paralelas, que designaremos por C e F, respectivamente com 40,72 metros e 45,5 de comprimento, 3 m. de largura e 4,30 de altura. Estão separadas por uma parede com 2,40 m. de espessura, cm que se abrem 3 portas de comunicação com arcos de tijolo. Na galeria C abrem também para o exterior 6 frestas de iluminação e arejamento. A galeria F, exactamente a mais oriental, só se encontra escavada nos extremos, por haver necessidade de refazei as abóbadas caídas.

A Sul e Norte, entroncando nas anteriormente referidas cm ângulo recto, correm outras duas séries de galerias paralelas (A-B e D-E) até à linha da fachada ocidental do edifício. A construção á a mesma: abóbadas de «opus caementicium», por vezes com ladrilhos no fecho c nos ângulos de encontro, apoiadas cm muros de silhares médios, regularmente talhados.

O mesmo esquema se Tepete nas D e E que, como as anteriores, comunicam entre si por quatro passagens. O comprimento destas galerias transversais é de 32 metros, menor portanto do que o das que correm a nascente.

Na parte ocidental do conjunto a disposição é diferente e bem curiosa. Aí encontramos sete salas abobadadas (que numeramos pro­gressivamente de 1 a 7, de Sul para Norte), construídas segundo os mesmos princípios, mas num plano superior e comunicando entre si por estreitas aberturas arqueadas, apenas com 72 cm. de largura.

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Para estas salas o acesso é feito pelas galerias B e D, através de aberturas abobadadas e de escada" com 3 altos degraus, pois o pavi­mento das salas está 1,05 m. acima do das galerias.

As dimensões destas câmaras são as seguintes: comprimento == 4,30 metros; largura = 2,95 m.; altura = 2,40 m.; espessura das paredes — 1,15 m..

Na parte superior das paredes do lado de poente, quase junto ao fecho das abóbadas, abrem-se frescas de iluminação c .arejamento,

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FIG. 1

uma por cada sala. Admitimos a hipótese de elas darem, noutro tempo, para outra galeria que acompanhasse a fachada ocidental e fosse aberta e porticada. Não pudemos certiíícar-nos disso por ser impossível desentulhar essa parte, invadida pela parede de fundo e piso superior de algumas casas da Rua das Covas que nela penetram.

É possível, também, que paralelamente às galerias A (Norte) c E (Sul) e para o exterior, no espaço compreendido entre elas e a actual fachada do Museu, outras corram. As sondagens e medições feitas permitem supô-lo, mas não é possível apresentar provas concretas, e só futuros trabalhos o confirmarão ou negarão.

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No piso inferior ainda não foi possível realizar trabalhos de tanta envergadura como os que se realizaram no que se lhe sobrepõe, e há grandes quantidades de entulho a remover. Apenas se pode dizer que, ao longo da fachada ocidental corre uma outra comprida galeria (tam­bém parcialmente invadida pelas mesmas cosas da Rua das Covas), e que, perpendicularmente a ela, se dispõem outras sete salas aboba­dadas do mesmo tipo das que acima descrevemos, e às quais correspon­dem. Comunicam entre si da mesma maneira, mas são mais altas e as paredes do topo ocidental devem ter sido destruídas quando da construção das casas-parasitas a que atrás nos referimos.

Foi já possível estabelecer uma comunicação provisória entre os dois pisos e iluminá-los artificialmente, embora, também neste caso, apenas com carácter provisório.

No ângulo sudoeste do edifício rlzeram-se algumas sondagens que permitiram aventar-se a hipótese de que por aí se faria, antigamente, o acesso ao piso superior. E é também nessa zona que se localiza a única comunicação com o exterior até agora referenciada.

Propomo-nos, com esta comunicação, chamar apenas a atenção do Congresso e dos arqueólogos para o maior e mais imponente edi­fício romano que temos em Portugal, e não fazer o seu estudo completo e aprofundado. Aliás este não será possível enquanto não forem desa­fectadas e minuciosamente estudadas todas as suas partes, e não tiver­mos a certeza de que poderá ainda trn/er-nos elementos de estudo. «Caixa de surpresas» chamou o Doutor Vergílio Correia ao edifício do Museu (1) — e com Ioda a razão. Só depois de completamente conhecida a «caixa» e o seu recheio, algo de definitivo se poderá dizer.

Não entraremos, pois, em pormenores de ordem técnica, nem descreveremos em detalhe tudo o que tem sido encontrado nos entu­lhos, e que já é muito.

As primeiras obras foram realizadas ainda em tempo do Doutor Vergílio Correia e outras se fizeram posteriormente, como as reali­zadas cm 1949 pelos Monumentos Nacionais, pela necessidade de refazer os pavimentos de algumas salas da ala Sul do Museu, sendo então acompanhadas pelo Rcv.° Padre Nogueira Gonçalves.

Mas, nem umas nem as outras, tiveram a extensão e a importância das que recentemente foram levadas a cabo, também pelos Monu­mentos Nacionais, nos últimos meses de 1955 e primeiros de 1956.

(1) Obras, i, p. 43.

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Hoje já é possível admirar em toda a sua imponência a maior parte do monumental edifício romano, isto é, as galerias A, B, C, D, E, parte das F e G, as sete salas do lado poente e, ainda, parte do piso inferior.

De todas estas zonas houve que retirar toneladas de terra e entu­lhos que as enchiam até às abóbadas, e que foram minuciosamente examinadas para que se não perdessem elementos de estudo, por mais humildes que parecessem.

Não foi possível estabelecer níveis estratigráficos (no sentido em que os arqueólogos os entendem) nessas camadas de entulho que atin­giam vários metros de espessura, pois em várias épocas devem ter sido remexidas. De modo geral os achados mais antigos c mais impor­ts rites verificaram-se na camada mais profunda, isto é, entre os 0 e 50 cm. sobre o pavimento.

Sobre a forma como as galerias teriam sido entulhadas, não pode considerar-sc como válida para todo o conjunto a explicação dada pelo Doutor Vergílio Correia: terras arrastadas durante toda a Alta Idade Média pelas enxurradas, e entradas pelas clarabóias dos subterrâneos voltadas a Nascente (1).

O entulho dispunha-se regularmente e igualmente por todos os vãos, dando a impressão de que estes haviam sido intencionalmente cheios. De resto, como só na galeria C (a Nascente) e nas sete salas havia clarabóias, unicamente por elas não teria sido possível a penetra­ção das terras e entulhos, e a sua regular disposição. É certo que nalguns pontos as abóbadas alui ram e, por aí, seria fácil a entrada de entulho que, no entanto, também se não disporia uniformemente. As galerias devem ter servido de grande vasadouro durante vários séculos, assim se explicando que nos apareçam peças atribuíveis a uma série de épocas que vão da romana à visigótica, à árabe, à medieval e, até, a períodos relativamente recentes.

O próprio nome antigo da rua que ladeia o edifício — Rua das Covas — deve ter tido a sua origem nas ruínas do monumento romano, como tem side observado por vários investigadores, em face de documen­tos dos séculos xii e xv em que aquelas aparecem designadas como «covas», «foveas» c «glofas» (2).

(1) Obras, r, p. 43. (2) Vergílio Correia, Obras, l, p. 57: António Correia, Toponímia Coimbrã.

I. Zonas da Sé Velha e Arco de Almedina, Coimbra, 1945, p. 49 (da separata do Arquivo Coimbrão, vol. VXll).

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Pelo que diz respeito a achados, podemos dizer que esta última campanha de trabalhos foi particularmente frutuosa, sobretudo se atendermos aos resultados das anteriores, quer em número, quer em qualidade das peças.

Nas galerias de Nascente, para as quais se abrem algumas das fres­tas de iluminação c arejamento, e que se encontram cm parte sob o pátio do Museu, foram encontrados restos humanos dispersos que devem estar em estreita relação com o antigo cemitério de S. João de Almedina, como já o Doutor Vergílio Correia supusera e foi agora confirmado pelas sondagens.

Encontramos, também, ossos de animais e uma enorme quantidade de valvas de ostras, que em Coimbra acompanham, geralmente, ves­tígios arqueológicos da época romana. O mesmo facto se verificou no pátio da Universidade, como referimos noutro trabalho, e temo-lo observado em vários outros pontos do país.

Foram frequentes os achados de cerâmica de construção, romana («tegulae», «imbrices», ladrilhos, tijolos em forma de sector circular); menos abundantes os de cerâmica doméstica grosseira; totalmente ausente, até agora, a «terra sigillata». Relativamente frequentes foram os achados de cerâmica domestica atribuível à Idade Media e a épocas posteriores, com algumas peças intactas. Parece-nos de época visigótica um fragmento de capitel.

Seguramente atribuíveis à época árabe apenas se recolheram dois fragmentos de lucernas do tipo vulgar.

Os achados cm pedra, atribuíveis à época romana foram, como disse, relativamente abundantes. Assim, para só nomear alguns, encontrámos fragmentos de mós manuais; um suporte de mesa, em mármore, cm forma de pata de leão; fragmentos de fustes de colunas (lisos c canelados) e de capitéis jónicos e coríntios; numerosos troços de entablamcnto em que o rude lavor não exclue certa monumenta­lidade, c de proporções respeitáveis; uma pequena árula de calcáreo, infelizmente mutilada, onde se pode 1er

G 1 1 N I O B A S E L E

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fragmentos de estátuas, como um pescoço e um dedo que nos dão um tamanho maior que o natural; uma cabeça feminina, de delicado lavor

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em mármore, respondendo a um tipo idealizado, talvez imagem de uma divindade ou de uma sacerdotiza; c, ainda, dois magníficos retra­tos de época imperial, ambos de arte provincial e, na nossa opinião, da mesma época (finais do século I, princípios do 11, da nossa era).

Não nos foi ainda possível estudá-los tão minuciosamente como merecem, tanto mais que aqui não dispomos de todos os elementos de informação c comparação de que necessitamos. Esperamos, no entanto, publicá-los dentro cm breve.

Um deles, de mármore branco, mostra-nos um homem adulto, de expressão forte e marcada. Julgamo-lo como retrato imperial, ainda não seguramente identificado, pelo que não faremos mais con­siderações a seu respeito.

O outro, em calcáreo da região de Portunhos (note-se bem\ de factura mais tosca mas não menos expressivo, parece-nos (com as reservas de quem não quere fazer, por ora, uma afirmação definitiva) um retrato de Trajano ou, pelo menos, atribuível à sua época. Além do seu valor artístico, é de salientar a enorme importância do que nos revela: a existência de uma escola de escultura local trabalhando com materiais da região.

A maioria dos objectos encontrados deve provir, não do cripto-pórtico em si, mas do edifício ou grupo de edifícios a que serviu de base. O estado cm que se encontram e as mutilações que sofreram, revelam-nos que sobre eles se exerceu uma certa fúria destruidora. Oportunamente será publicado o que se julgar de maior interesse arqueológico ou documental.

Quanto ao problema de saber o que estaria por cima do criptopórtico na época romana, várias hipóteses foram postas pelo Doutor Vergílio Correia: um pretório ou palácio de governador; um teatro; o «forum» de Aeminium. Considerou ainda como certa a existência de um templo romano, possivelmente no local onde veio a ergucr-se a igreja de S. João de Almedina.

Nada nos permite concluir que se trataria, realmente, de um pre­tório, nem a planta das sub-estruturas, nem os materiais encontrados. Também não nos parece que a hipótese do teatro se possa encarar com mais segurança, pois seria difícil conciliar a planta usual desse tipo de edifícios com a das galerias.

Mais sedutora e, quanto a nós, muito mais provável parece-nos a hipótese do «forum», que não exclue a possibilidade da vizinhança de um templo, reforçando-a até. Julgamos que a planta do criptopór-

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tico deve reproduzir, sensivelmente, a plnnta do que teria por cima, e é realmente sedutor imaginar uma grande praça quadrangular e porti-cada, centro da vida urbana de Acminium, por cima das imponentes galerias. No próprio «forum», c na sua imediata vizinhança podemos admitir a existência de uma série de monumentos civis e religiosos, que talvez tenham fornecido alguns dos materiais recolhidos nos entu­lhos. Sabemos que nas obras de transformação da igreja de S. João de Almedina foram recolhidos fragmentos arquitectónicos c escultó­ricos; e, em 1932, ao proceder-se ao assentamento das linhas dos eléc­tricos, junto à mesma igreja, foram descobertas colunas, bases c outros materiais que talvez possam rclacionar-sc com o «forum» de Acminium. É evidente que uma afirmação categórica não é possível por enquanto, mas de todas as hipóteses esta é a que se nos apresenta como mais pro­metedora e segura. Outras razões nos radicam, porem, neste conven­cimento. São elas: 1.° — a localização do monumento junto da «principal artéria de circulação urbana», como lhe chamou Fernandes Martins (1) (c sempre o deve ter sido), isto é, da que na época medie­val estabelecia a ligação entre as portas do Sol (a Nascente) e de Almedina (a Poente), c que talvez se possa fazer corresponder ao «decumanus maximus», sensivelmente no centro da área delimitada pela cerca do século xn; 2.° — a comparação com monumentos simi­lares na planta e na arquitectura, que recentes estudos (como, por exemplo, os de Romolo Augusto Staccioli) (2) levam a considerar como criptopórticos forenses, em Aosta, Arles, Bavai e, talvez, Narbona. Outro monumento, na acrópole de Fcrentino, oferece estreitos pontos de contacto com este de Coimbra e não deixa de ser curioso transcrever aqui uma passagem do estudo que Giorgio Gullini lhe dedicou.

«É certo que o complexo da Acrópole (de Fcrentino) representa um exemplo de plena utilização de um conjunto de substruções, isto é, de compartimentos necessários para alcançar uma determinada quota superior, compartimentos que, dada a presença de numerosas

(1) Alfredo Fernandes Martins, A Porta do Sol. Contribuição para o estudo da cerca medieval coimbrã (sep. de Biblos, vol. xxvn), Coimbra. 1952, pag. 37 e figura 6.

(2) / críptoporlici forensi di Aosta e di Aries (estralto dai Rendiconti delia Classe di Scienze Morati, Storiche e Filologlche, Academia Nazionale dei Lincei, serie vm, vol. ix, fase. 11-12), Roma, 1955; Gli edifici sottenanei di Bavai (estratto dalla rivista Archeologia Clássica, vol. vi, fase. 2).

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janelas c frestas de iluminação, deviam ter também um interesse prá­tico. Este aproveitamento das substruçõcs deve ser considerado tipi­camente romano...» (1)

Estas palavras bem podem aplicar-sc ao criptopórtico d.e Coimbra que, alem das funções que desempenharia como tal, talvez tivesse ser­vido ainda como depósito, celeiro, mercado e adega. Por agora não o podemos afirmar ou negar, pois os problemas em suspenso são nume­rosos e exigem cuidadosa atenção.

Vcrgílio Correia, embora com reservas, atribuía as galerias do Museu Machado de Castro ao século ui-rv, mas os recentes achados parecem tornar possível o recuo da data de construção.

Os problemas dos acessos e das ligações várias que as galerias poderiam ter; da sua utilização c do género de edifícios que delas se serviram como base; da data aproximada da sua construção e abandono; tudo isso exige a continuação dos trabalhos, cm ritmo lento embora, mas sem soluções de continuidade, até que tenhamos a certeza de que não há mais elementos de estudo a recolher c a considerar.

É necessário expropriar c demolir as casas que entram nas gale­rias de Poente; efectuar sondagens mais completas do que as que, aci­dentalmente, realizámos no espaço livre a meio do quadrilátero (que corresponde, pelo menos em parte, ao antigo cemitério de S. João de Almedina); pôr à vista as paredes externas do edifício romano que, segundo os elementos colhidos numa sondagem agora efectuada, pare­cem conservar-se sob as fachadas actuais.

Efectuadas estas obras poderá e deverá, então, pensar-se a sério na valorização monumental do criptopórtico c na sua utilização museo­lógica. Para que esta se possa fazer creio que só haverá dois proble­mas fundamentais a considerar, e ambos susceptíveis de serem solu­cionados sem complicações de maior: impermeabilização de algumas abóbadas, e iluminação adequada. Que melhor e mais sugestivo ambiente poderiamos encontrar para instalação de uma boa parte da colecção arqueológica que, nas actuais instalações, sofre de falta de espaço ?

Portugal tem sob um dos seus mais ricos e interessantes museus — acaso extraordinário — o maior edifício de arquitectura civil romana, de que pode orgulhar-sc e que deve valorizar e mostrar.

A superfície da parte já conhecida anda pelos 1.500 metros qua­

il) / monumenti delVAcropoli de Fercntino, Roma, 1954, p. 214.

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drados e, quer pela extensão, quer pela imponência, quer pela beleza rude e singela de algumas perspectivas, o monumento impressiona todos os que o visitam. Bastante se fez ultimamente, e o interesse manifestado por algumas entidades leva-nos a alimentar a esperança de que não serão necessários outros vinte e seis anos para se poder dizer a última palavra sobre o criptopórtico de Aeminium. monumento sem par no nosso património arqueológico.

Não gostaria de terminar sem fazer referência e sem um agrade­cimento a todos os que, ultimamente, pela continuação das obras têm pugnado, por elas se interessaram ou nelas tomaram parte activa, des­tacando os Senhores Ministro das Obras Públicas, Director Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Arquitectos-Chefes da Repartição Técnica e da 4.a Secção e, também, o construtor civil Sr. Manuel de Jesus Cardoso.

E. finalmente, quero propor ao Congresso a seguinte moção:

«Considerando o alto interesse arqueológico-histórico do monumento romano subjacente ao edifício do Museu Machado de Castro, em Coimbra, o Congresso Luso-Espa­nhol para o Progresso das Ciências reunido nesta cidade, em Junho de 1956, pede ao Governo e, em especial, aos Minis­térios da Educação Nacional c das Obras Públicas, que se envidem todos os esforços para que os trabalhos prossigam sem mais soluções de continuidade, até à valorização integral de um monumento único no País».

J. M. BA1RRÃO OLEIRO BOLSEIRO DO I. A. C.