o cortador de bambu e outros contos japoneses

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Encabeçado pelo famoso conto japonês “O velho cortador de bambu”, que integra a destacada lista dos 1001 livros para ler antes de morrer, são transmitidos aspectos sutis da milenar cultura japonesa, enquanto acompanhamos o destino pessoal dos personagens em cenários extraordinários.

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Page 1: O Cortador de Bambu e outros contos japoneses

A coleção Contos Mágicos traz para o jovem seleções de

contos tradicionais de antigas civilizações, desvendan-

do o imaginário literário, ensinamentos e personagens

próprios de diferentes povos e culturas. Em narrativas

carregadas de magia, o leitor observa códigos de ética e

de disciplina que espelham a diversidade do homem e do

mundo.

A seleção de narrativas deste livro nos transmite aspectos

sutis da milenar cultura japonesa e é encabeçada pelo fa-

moso conto “O velho cortador de bambu”, que integra a

destacada lista dos 1001 livros para ler antes de morrer.

Nele e nos demais contos aqui apresentados, em meio à

Natureza vista como divindade, assistimos ao confronto

entre as forças do Bem e do Mal. Ricos em descrições, os

relatos desvendam a nossa condição humana e os nossos

instintos, enquanto acompanhamos o destino pessoal e

quase sempre tristonho de donzelas, madrastas e bravos

guerreiros, em cenários extraordinários....

Mudar sem comprometer a ideia, sem

violar o texto: escolher cada palavra

a ser trocada, com cautela, preservar

a maioria delas. E deixar que, agora,

os personagens falem: o quanto é

forte a mulher chinesa, ainda que

dócil e submissa; o quanto são lúdicos

os contos russos; o quanto são poé-

ticos os indianos, e o quão vigorosos

são os contos vikings, e assim sucessi-

vamente. Todos nos falam sobre a na-

tureza humana e ressaltam o poder

da palavra que repetida – oralmente,

a princípio – pulsa e sobrevive através

de gerações.

Tudo aí está quase como nos chegou às

mãos, sem critérios rígidos de ordem,

para que cada página nos surpreenda.

Que a leitura seja curiosa e atenta.

Momento de descobertas. Como uma

estrada que se abre, agora e sempre,

para a imaginação viajar sem fron-

teiras.

S.S.Forjaz

Outros títulos da coleção:

A filha do rei dragãoe outros contos chineses

O falcão brilhantee outros contos russos

O navio fantasmae outros contos vikings

A princesa que enganou a mortee outros contos indianos

O príncipe teiúe outros contos brasileiros

O silêncio dos macacose outros contos africanos

As maças douradas do Lago Ernee outros contos celtas

Esta coleção é uma ideia antiga que

evoluiu e foi concretizada, passo a

passo, com a colaboração de várias

pessoas. Os contos tradicionais de

diversas culturas que tínhamos em

mãos apontavam elos com nosso

próprio modo de ser, a despeito de

tanto tempo passado e tantas dis-

tâncias percorridas. Neles residia o

encanto e o desafio: trazer para o

jovem leitor variados e ricos univer-

sos, a partir de contos carregados de

magia.

Desafio, pois se a linguagem desatuali-

zada não seduz, quando desprovida

de sua essência também não sobre-

vive. Então, procurou-se captar o que

de mais expressivo há em cada conto,

traços que os identificam e até mesmo

diálogos que se repetem e se modificam

em diferentes tramas, confirmando o

velho ditado: quem conta um conto

aumenta um ponto. Esta multiplici-

dade de versões foi mantida. Afinal,

como saber qual delas a mais verda-

deira, se cada interpretação que da-

mos a uma história é sempre única?

9 788572 171502

ISBN 978-85-7217-150-2

capa_cortador_de_bambu2012.indd 1 8/1/12 10:33:13 AM

Page 2: O Cortador de Bambu e outros contos japoneses

Coleção Contos Mágicos

1a ediçãoSão Paulo/2012

SONIA SALERNO FORJAZ

TEXTO DE ACORDO COMA NOVA ORTOGRAFIA

O Cortador de Bambue outros contos japoneses

Texto, adaptação e apresentação

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Apresentação

H á muito, muito tempo... assim começam alguns contos deste livro, todos eles adap-

tados de histórias tradicionais do Japão, contadas e recontadas oralmente, de uma geração a outra.

Longe, muito longe... dizem eles, já que men-cionam lugares distantes, de difícil acesso, como as altas e misteriosas montanhas características dos contos japoneses e da própria geografia do Japão que tem, em meio às suas cadeias, o sagra-do monte Fuji.

Um ancião e uma anciã... contam seus narradores, destacando outra característica: a valorização do idoso, seu conhecimento e sa-bedoria. Convivem com eles, jovens donzelas, ciumentas madrastas, valentes guerreiros; além de uma infinidade de elementos naturais car-regados de magia, como legado do budismo e,

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principalmente, do xintoísmo1, religião presente na mitologia japonesa e que confere à natureza infinitos poderes.

Nestes contos, em meio à natureza vista como divindade, assistimos ao confronto entre as forças sobrenaturais do Bem e do Mal. Ricos em descrições e deslumbramentos, os relatos en-volvem e instigam nossa imaginação, enquanto desvendam anseios e conflitos que habitam nosso inconsciente. Daí a similaridade com tantos outros contos de diferentes origens, daí a cumplicidade imediata entre texto e leitor.

A riqueza dos contos de fadas e dos contos mágicos, que é uma das vertentes da literatura de expressão oral, é milenar. Ao mesmo tempo em que possuem conteúdo universal, eles manifestam nitidamente traços da cultura de onde surgiram. Descrevendo o passado, os contos nos revelam todos os elementos que serviram de base para a formação das atuais sociedades: o ambiente, as crenças, os objetos, tudo enfim como conhecemos e vivemos hoje.

A história que dá título a esta coletânea: O conto do cortador de bambu, – cujo título original

1. O xintoísmo é uma religião muito antiga de origem japonesa, que atribui a todos os seres, objetos e fenô-menos da natureza uma alma ou princípio vital; não tem escrituras nem dogmas, mas possui uma mitologia muito rica e práticas religiosas muito arraigadas.

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é Taketori Monogatari e que também é conheci-do como A Lenda da Princesa Kaguya – , data do Século X e marca o início da literatura japonesa. Pela sua importância, este conto está selecionado entre os 1001 livros para ler antes de morrer.

Para a presente edição, foram utilizadas várias versões, dentre as quais destacamos a de Yasunari Kawabata, escritor japonês ganhador do prêmio Nobel de Literatura, porém com adap-tações que facilitam a leitura, tornando-a mais clara e objetiva, sem comprometer seu conteúdo original.

Nele, podemos notar o surgimento da for-mação do pensamento budista através da prin-cesa que surge como uma divindade, cuja vida é eterna. E também notamos os mistérios que cer-cavam a humanidade como a Lua, por exemplo. É um conto encantador pelo significado que nos transmite e, ao contrário da maioria dos contos de fadas, seu final não é feliz.

Esta é também uma característica dos contos japoneses: finais nem sempre felizes... Porém, que não tiram o brilho de suas histórias, cujos narradores (há sempre um narrador) nos envol-vem num clima de encantamento, revelando as marcas indeléveis do imaginário cultural da Terra do Sol Nascente.

Ao leitor deixamos as considerações finais.

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O conto do Cortadorde Bambu

I. A infância de Kaguya-hime

Há muitos e muitos anos, viveu um homem conhecido como o Velho Cortador de Bam-

bu. Todos os dias, ele andava entre os campos e as montanhas para colher bambus que, depois, transformava em lindos cestos e nos mais variados artigos. Seu nome era Sanuki no Miyatsuko.

Um dia, na sua lida diária, Sanuki perce-beu entre os bambus um talo cuja base brilhava intensamente. Achando aquilo muito estranho, aproximou-se para examinar melhor e viu uma luz intensa dentro do talo oco. E surpreendeu-se

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ainda mais ao encontrar, dentro do talo, uma garotinha encantadora, com cerca de dez centí-metros de altura.

O velho homem disse: – Eu a descobri porque você estava aqui,

entre os bambus que vejo todos os dias. Isso deve significar que você está destinada a ser minha filha.

Ele pegou a garotinha nas mãos e a levou para casa, entregando-a aos cuidados da sua es-posa para que a criasse. A menina possuía uma beleza incomparável, e era tão pequena que eles a colocaram num cesto para protegê-la.

Depois desse dia, por várias vezes, quando o Velho Cortador de Bambu recolhia os bambus, encontrava alguns talos recheados de moedas de ouro que ele juntou e juntou e, dessa forma, tornou-se um homem rico e importante na região. Pouco a pouco, Sanuki abandonou sua rotina de andar pelos campos para cortar os bambus, po-rém, permaneceu sendo tratado e conhecido pelo seu antigo ofício: o Cortador de Bambu.

Menos de três meses depois da sua chegada, a criança já era alta como uma mulher, e os pais, que cuidavam dela amorosamente, decidiram celebrar a sua entrada na vida adulta. Até então, durante dias e noites, preocupados com a sua segurança, eles sequer tinham permitido que a filha saísse de seu quarto protegido por enormes cortinas.

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A criança tinha uma pureza de traços sem igual no mundo inteiro, e sua presença iluminava a casa com uma luz intensa que não deixava nem um canto na penumbra. Além disso, todas as vezes que o velho homem se sentia desanimado, com alguma dor ou até mesmo com raiva, bastava olhar para a criança e tudo passava. Diante dela, tudo ficava perfeito.

Ao alcançar o tamanho de adulta, um adi-vinho de Mimuroto, de nome Imbe no Akita, foi convidado a dar à jovem um nome de mulher. Akita a chamou de Nayotake no Kaguya-hime, a Princesa Resplandecente do Bambu Flexível.

Para o batismo, a jovem foi cuidadosamente preparada. Seus cabelos foram penteados para cima e a vestiram com trajes longos, de modo que a sua beleza foi ainda mais realçada.

A princesa Kaguya-hime estava deslum-brante. Sua festa, engrandecida por atrações de todos os tipos, durou três dias inteiros. Homens e mulheres foram convidados e se divertiram largamente.

II. Os pretendentes

Todos os homens da região, dos mais ricos aos mais pobres, não pensavam em nada além de Kaguya-hime. Todos a queriam para si ou, pelo menos, todos queriam desfrutar o prazer de poder

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vê-la. Só de ouvir rumores sobre ela, os homens enlouqueciam de amor. Mas conseguir vislumbrar a jovem não era tarefa fácil nem para aqueles que se esgueiravam pelos muros da casa, nem para aqueles que ficavam à espreita em torno dela, ou mesmo para aqueles que na casa entravam.

Incapazes de dormir tranquilamente, eles saíam de suas casas, no escuro da noite, e faziam buracos no muro na esperança de ver a jovem. Contam que, por isso, e a partir dessa época, a arte de cortejar uma mulher começou a ser chamada de “rastejamento noturno”.

Mas toda a ronda em torno do lugar foi em vão. Mesmo aqueles que se atreveram a abordar os membros da família não obtiveram resposta. Um desses admiradores, um nobre muito jovem, recusava-se a sair de perto da casa e passava dias e noites sem se mover do seu posto.

Alguns pretendentes, com afeição menos profunda pela jovem, percebiam que essa corte era infrutífera e paravam de visitar a casa. Mas cinco dos pretendentes, homens conhecidos, persistiram em sua busca, incansavelmente, com uma dedicação que nunca se abatia.

Eram eles: o príncipe Ishizukuri, o príncipe Kuramochi, o ministro da Justiça, Abe no Miushi, o conselheiro-chefe Otomo no Miyuki e o conse-lheiro Isonokami no Marotari.

Sempre que esses homens escutavam falar de uma mulher que fosse ao menos moderadamente

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bonita – e o país tinha muitas delas –, corriam para vê-la. Quando ouviram falar de Kaguya--hime, desejaram tão ardentemente encontrá-la que pararam até mesmo de se alimentar, dedican-do todo o seu tempo a meditar. Perambularam sem rumo em torno da sua casa, mesmo sabendo que provavelmente nada viria dali. Escreveram cartas para a jovem que ela nunca se dignou a responder; criaram odes lamentando a sua con-dição. Mesmo sabendo que era tudo em vão, eles insistiram na corte a Kaguya-hime, sem desanimar diante dos obstáculos, sem se abalar com a neve caindo e o frio do inverno ou com o sol ardente e as tempestades do verão.

Um dia, eles pediram que o Cortador de Bambu fosse falar com eles e se ajoelharam, juntando as mãos em súplica e implorando, um a um, ao ancião:

– Por favor, dê-me a mão da sua filha!Mas o Cortador de Bambu respondeu: – A menina não nasceu de mim, então não é

obrigada a seguir as minhas vontades.E assim se passaram dias e meses. Diante disso, os cavalheiros retornaram às

suas casas, onde fizeram súplicas aos deuses, pedindo que o seu amor fosse correspondido ou que conseguissem esquecer Kaguya-hime. Não im-portava o quanto tentassem, eles não conseguiam esquecê-la. E, apesar do que o pai havia dito, não

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acreditavam que ele deixasse a jovem permanecer solteira. Por isso, mantinham a esperança.

O ancião, vendo o ardor desses homens, disse a Kaguya-hime:

– Minha preciosa criança, eu sei que você é uma divindade com forma humana, mas não poupei esforços para que se tornasse uma dama exemplar. Você deixaria de ouvir os conselhos de um ancião?

– O que o senhor poderia me pedir que eu não consentisse? – a jovem respondeu – Divinda-de em forma humana? Nada sei sobre isso. Para mim, meu único pai é o senhor.

– Que felicidade ouvir isso! – exclamou o ancião. – Eu já tenho mais de setenta anos e não sei se morrerei hoje ou amanhã. Neste mundo, é costume que homens e mulheres se casem e cons-tituam família. Por que você se recusa a se casar?

– Como eu poderia fazer isso? – Kaguya-hime perguntou.

– Você é um ser que se transformou, é verda-de, mas hoje tem um corpo de mulher. Enquanto eu estiver vivo você pode, se preferir, permanecer solteira, mas um dia você ficará sozinha. Esses cavalheiros vieram aqui lealmente, por meses, alguns por anos. Escute com atenção o que eles têm a dizer e escolha um para ser o seu marido.

– Só o que sei é que me arrependerei se eu me casar com um homem sem estar segura dos

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reflita e escolha um dos senhores como marido. Entretanto, ela quer ter certeza da magnitude dos sentimentos de vocês, o que me parece correto. E disse que se casará com aquele que provar a sua superioridade, trazendo-lhe algo especial que ela gostaria de ver. É uma boa ideia, pois assim nenhum dos senhores poderá se ressentir da escolha que ela fizer.

Os cinco homens concordaram que era uma sugestão excelente. O ancião relatou a Kaguya--hime o que havia acontecido e ela declarou:

– Eu gostaria que o príncipe Ishizukuri fosse à Índia buscar a tigela de pedra que o Buda usava para pedir comida. O príncipe Kuramochi deve ir à ilha de Horai, no mar Oriental, e trazer um ramo de uma árvore que só cresce lá; ela tem raízes de prata e tronco de ouro, e seus frutos são pérolas. O ministro Abe no Miushi me trará um manto feito com a pele de ratos de fogo chineses. Peço a Otomo, o conselheiro-chefe, para me trazer a pedra preciosa com cinco cores encontrada no pescoço de um dragão. E Isonokami, o conselheiro, deve me presentear com um amuleto carregado por andorinhas.

– Essas são mesmo tarefas duras – disse o ancião. – Os presentes que você pediu não podem ser encontrados no Japão. Como eu devo dar a notícia de empreitadas tão difíceis?

– O que há de tão difícil assim nelas? – per-guntou Kaguya-hime.

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– Vou falar com eles, seja como for – disse o ancião, e saiu de casa. Quando relatou aos cavalheiros o que se esperava deles, todos excla-maram:

– Por que não dizer simplesmente: “Fiquem longe da minha casa”?

E partiram, desgostosos.

III. A tigela de pedra do Buda

O príncipe Ishizukuri sentiu que a sua vida não teria valor se ele não conseguisse se casar com a jovem, e refletiu: “ Existe alguma coisa que eu não faria por ela? Mesmo que isso signifique viajar para a Índia?”

Mas, como homem prudente que era, imagi-nou que seria pouco provável encontrar a tigela que o Buda usava para pedir comida, mesmo viajando todas as oito mil léguas até a Índia. En-tão, deixou uma mensagem para Kaguya-hime, dizendo que partia para a Índia em busca da tigela e ficaria fora por três anos. Num templo do distrito de Tochi, na província de Yamato, ele encontrou uma tigela diante da imagem de Bin-zuru, coberta por uma fuligem negra. Colocou-a num saco de tecido com brocados, rodeou tudo com um arranjo de flores, e levou para a casa de Kaguya-hime. Ao receber a tigela, a jovem a olhou com suspeita. Dentro do saco, um bilhete dizia:

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Rai-Taro, o filhodo Trovão26

Algumas pessoas dizem que Rai-den, o Trovão, é um espírito maligno, assustador, vingativo

e cruel; são pessoas que temem as tormentas, odeiam os raios e a tempestade e falam tão mal quanto puderem de Rai-den e do seu filho, Rai--Taro. Mas elas estão enganadas...

Rai-den Sama vivia no Castelo da Nuvem, no céu. Era um deus forte e poderoso, um Senhor dos Elementos. O seu filho único, Rai-Taro, era um jovem valente, muito amado pelo pai.

Nos entardeceres frios, Rai-den e Rai-Taro passeavam sobre as muralhas do Castelo da Nu-vem, de onde observavam os homens da Terra dos Juncos. Olhavam para o Norte e para o Sul, para

26. Título original: O bom trovão.

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o Leste e o Oeste. Frequentemente riam... muito frequentemente; em certas ocasiões, suspiravam. Algumas vezes, Rai-Taro se inclinava sobre as muralhas do castelo para observar as crianças que perambulavam pela Terra. Uma noite, Rai-den Sama disse a Rai-Taro:

– Rapazinho, esta noite observe os homens cuidadosamente.

Rai-Taro respondeu:– Eu os observarei bem, pai.Do lado da muralha norte, viram grandes

senhores de terras e homens de armas que se dirigiam à batalha.

Da muralha sul, viram os sacerdotes e dis-cípulos rezando num templo sagrado, repleto de incenso, cujas imagens de ouro e bronze brilha-vam à luz do pôr do sol.

Da muralha leste, viram um caramanchão onde havia uma linda princesa e um grupo de donzelas vestidas de cor de rosa, tocando músicas para ela. Também havia crianças brincando com carrinhos cheios de flores.

– Que crianças lindas! – exclamou Rai-Taro.Da muralha oeste, eles viram um camponês

trabalhando na sua plantação de arroz. Estava muito cansado e as suas costas doíam. A sua esposa trabalhava com ele e estava igualmente fatigada. Eles eram muito pobres, e as suas roupas estavam puídas.

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– Eles não têm filhos? – perguntou Rai-Taro. Rai-den negou com a cabeça. E depois disse ao filho.

– Você observou direito, Rai-Taro? Observou bem os homens esta noite?

– Sim, pai, eu observei bem.– Então, escolha, meu filho; escolha, pois

vou mandá-lo para a Terra, para estabelecer uma moradia lá.

– Devo ir viver entre os homens? – perguntou Rai-Taro.

– Sim, filho, deve.– Não irei com os homens de armas – decidiu

Rai-Taro –; não gosto nem um pouco de batalhas. – Então me diga, filho meu: você prefere ir

viver com a jovem princesa?– Não – respondeu Rai-Taro. – Sou um ho-

mem. E também não vou raspar a cabeça para viver com os sacerdotes.

– Como? Então você escolhe os humildes camponeses? A vida com eles será dura, e a co-mida, escassa.

– Eles não têm filhos, então talvez me quei-ram.

– Então vá; vá em paz – disse Rai-den Sama –, pois você escolheu com sabedoria.

– Como devo me apresentar a eles? – per-guntou Rai-Taro.

– Com dignidade e respeito, como cabe a um Príncipe do Céu.

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O humilde camponês trabalhava na sua plantação de arroz, situada aos pés da montanha Hakusan, na província de Ichizen. Dia após dia, semana após semana, o sol brilhava sem piedade. O campo estava seco e o arroz se queimava.

– Ó, deuses! – lamentava-se o pobre campo-nês –, o que vou fazer se perder a minha colheita de arroz? Oxalá os deuses se apiedem das pessoas humildes!

Então ele se sentou numa pedra ao lado do campo da plantação de arroz e dormiu, esgotado e triste.

Quando acordou, viu que o céu estava co-berto de nuvens negras. Era meio-dia, mas estava tão escuro como se fosse noite fechada. As folhas das árvores se agitavam e os pássaros tinham parado de cantar.

– Uma tempestade, uma tempestade! – gri-tou o camponês. – Rai-den Sama chega em seu cavalo negro, tocando o grande tambor do Trovão. Vem muita água por aí, graças aos deuses.

E de fato veio muita água; caiu uma chuva torrencial, uma grande tempestade cheia de re-lâmpagos ofuscantes e trovões ensurdecedores.

– Ó, Rai-den Sama! – exclamou o camponês –, com todo o meu respeito, esta chuva já é mais do que suficiente.

Quando ele disse isso o céu se abriu com um grande estrondo; um novo relâmpago estourou e uma bola de fogo caiu na terra.

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– Ai, ai! – gritou o pobre camponês. – Kan-non, tenha piedade desta alma pecadora, pois o Dragão do Trovão me encontrou!

E, pronunciando essas palavras, ele se lançou sobre a terra, escondendo o rosto.

Mas o Dragão do Trovão não se enfureceu com ele, e logo o camponês se levantou e esfregou os olhos. A bola de fogo havia desaparecido e no seu lugar, sobre a terra úmida, estava um bebe-zinho, um lindo menino encharcado pela chuva.

– Ó, dama Kannon! – exclamou o humilde camponês –, este é o fruto da sua misericórdia.

Ele pegou o menino nos braços e o levou para casa. Enquanto se dirigia para o seu lar, a chuva continuava caindo. Mas o sol não demorou a aparecer no céu; todas as flores brilharam e desabrocharam.

O camponês chegou à porta da sua cabana.– Minha esposa, trouxe uma coisa para casa. – O quê é? – perguntou ela.– É Rai-Taro, o filho do Trovão – respondeu

ele.

Rai-Taro cresceu forte e robusto, e se trans-formou no menino mais alto e alegre daquelas terras. Era o orgulho dos seus pais adotivos, e todos os vizinhos o queriam bem. Quando fez dez anos, começou a trabalhar nos campos de arroz como um homem; as suas previsões sobre o tempo eram maravilhosamente corretas.

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“Meu pai”, dizia, “façamos isso e aquilo, por-que vamos ter bom tempo”, ou “Meu pai, melhor fazermos tal coisa ou tal outra, já que esta noite vai cair uma tempestade”. E tudo o que dizia acontecia. Desse modo, Rai-Taro trouxe boa for-tuna ao camponês, cujas colheitas prosperaram.

Quando Rai-Taro completou dezoito anos, eles fizeram uma grande festa e convidaram todos os vizinhos. Havia uma grande quantidade de saquê e as boas pessoas se divertiram. Somente Rai-Taro se mantinha afastado, silencioso e triste.

– O que o aflige, Rai-Taro? – perguntou-lhe a sua mãe adotiva. – Você, que é o menino mais feliz do mundo, por que está calado e triste?

– Porque devo deixá-los – respondeu Rai--Taro.

– Não! Não nos deixe nunca, Rai-Taro, meu filho. Por que faria isso?

– Mãe, eu preciso fazer – disse Rai-Taro. – Você nos trouxe fortuna, nos deu tudo. O

que nós te demos, Rai-Taro, meu filho?Ele respondeu:– Vocês me deram três coisas: ensinaram-

-me a trabalhar, a sofrer e a amar. Agora sei mais coisas que os Imortais.

Quando acabou de pronunciar essas pala-vras, ele partiu; subiu ao céu em uma nuvem branca, até chegar ao castelo do seu pai. Rai-den Sama veio recebê-lo. Ambos foram até a mura-

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lha oeste do Castelo da Nuvem e olharam para a Terra.

A sua mãe adotiva chorava amargamente, mas o marido a consolava, segurando-lhe a mão:

– Mulher, não chore. Lembre-se do quanto foi bom estar com ele. Rai-Taro foi um presente dos Céus e para lá voltou. Certamente, não ficará sem olhar por nós...

Mas o homem bem sabia, não haveria con-solo para aquela perda. O filho seria sempre uma lembrança boa, mas também triste, dura, dolo-rida... Para onde quer que olhassem, o que quer que fizessem, pensassem ou dissessem, lá estaria a imagem forte de Rai-Taro, o filho do Trovão.

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A coleção Contos Mágicos traz para o jovem seleções de

contos tradicionais de antigas civilizações, desvendan-

do o imaginário literário, ensinamentos e personagens

próprios de diferentes povos e culturas. Em narrativas

carregadas de magia, o leitor observa códigos de ética e

de disciplina que espelham a diversidade do homem e do

mundo.

A seleção de narrativas deste livro nos transmite aspectos

sutis da milenar cultura japonesa e é encabeçada pelo fa-

moso conto “O velho cortador de bambu”, que integra a

destacada lista dos 1001 livros para ler antes de morrer.

Nele e nos demais contos aqui apresentados, em meio à

Natureza vista como divindade, assistimos ao confronto

entre as forças do Bem e do Mal. Ricos em descrições, os

relatos desvendam a nossa condição humana e os nossos

instintos, enquanto acompanhamos o destino pessoal e

quase sempre tristonho de donzelas, madrastas e bravos

guerreiros, em cenários extraordinários....

Mudar sem comprometer a ideia, sem

violar o texto: escolher cada palavra

a ser trocada, com cautela, preservar

a maioria delas. E deixar que, agora,

os personagens falem: o quanto é

forte a mulher chinesa, ainda que

dócil e submissa; o quanto são lúdicos

os contos russos; o quanto são poé-

ticos os indianos, e o quão vigorosos

são os contos vikings, e assim sucessi-

vamente. Todos nos falam sobre a na-

tureza humana e ressaltam o poder

da palavra que repetida – oralmente,

a princípio – pulsa e sobrevive através

de gerações.

Tudo aí está quase como nos chegou às

mãos, sem critérios rígidos de ordem,

para que cada página nos surpreenda.

Que a leitura seja curiosa e atenta.

Momento de descobertas. Como uma

estrada que se abre, agora e sempre,

para a imaginação viajar sem fron-

teiras.

S.S.Forjaz

Outros títulos da coleção:

A filha do rei dragãoe outros contos chineses

O falcão brilhantee outros contos russos

O navio fantasmae outros contos vikings

A princesa que enganou a mortee outros contos indianos

O príncipe teiúe outros contos brasileiros

O silêncio dos macacose outros contos africanos

As maças douradas do Lago Ernee outros contos celtas

Esta coleção é uma ideia antiga que

evoluiu e foi concretizada, passo a

passo, com a colaboração de várias

pessoas. Os contos tradicionais de

diversas culturas que tínhamos em

mãos apontavam elos com nosso

próprio modo de ser, a despeito de

tanto tempo passado e tantas dis-

tâncias percorridas. Neles residia o

encanto e o desafio: trazer para o

jovem leitor variados e ricos univer-

sos, a partir de contos carregados de

magia.

Desafio, pois se a linguagem desatuali-

zada não seduz, quando desprovida

de sua essência também não sobre-

vive. Então, procurou-se captar o que

de mais expressivo há em cada conto,

traços que os identificam e até mesmo

diálogos que se repetem e se modificam

em diferentes tramas, confirmando o

velho ditado: quem conta um conto

aumenta um ponto. Esta multiplici-

dade de versões foi mantida. Afinal,

como saber qual delas a mais verda-

deira, se cada interpretação que da-

mos a uma história é sempre única?

9 788572 171502

ISBN 978-85-7217-150-2

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