o corpo emana: elementos da plÁstica … · drª. isabela nascimento frade rio de janeiro 2007 ....

201
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE ARTES Maria Cristina Rezende de Campos O CORPO EMANA: ELEMENTOS DA PLÁSTICA CORPORAL XAVANTE Rio de Janeiro 2007

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES

    INSTITUTO DE ARTES

    Maria Cristina Rezende de Campos

    O CORPO EMANA:

    ELEMENTOS DA PLSTICA CORPORAL XAVANTE

    Rio de Janeiro 2007

  • Maria Cristina Rezende de Campos

    O CORPO EMANA: ELEMENTOS DA PLSTICA CORPORAL

    XAVANTE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Artes do Instituo de Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Artes.

    Orientador: Prof. Dr. Isabela Nascimento

    Frade

    Rio de Janeiro 2007

  • CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

    C198 Campos, Maria Cristina Rezende de. O corpo emana: elementos da plstica corporal Xavante / Maria

    Cristina Rezende de Campos. 2007. 199f. : il., color. Orientador : Isabela Nascimento Frade. Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro, Instituto de Artes. 1. Figura humana na arte - Teses. 3. ndios Xavantes Vida e

    costumes sociais - Teses. I. Frade, Isabela Nascimento. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Ttulo.

    CDU 7.041(=98)

  • Maria Cristina Rezende de Campos

    O CORPO EMANA: ELEMENTOS DA PLSTICA CORPORAL

    XAVANTE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Artes do Instituo de Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Artes.

    Orientador: Prof. Dr. Isabela Nascimento Frade Aprovado em: ____________________________________________________ Banca examinadora:

    _____________________________

    Isabela Nascimento Frade Prof. Dr. do Programa de Ps-graduao

    em Artes da UERJ.

    ______________________________ Luis Felipe Ferreira

    Prof. Dr. do Programa de Ps-graduao em Artes da UERJ.

    ______________________________

    Ricardo Gomes Lima Prof. Dr. Pesquisador do Centro Nacional de ....Folclore e Cultura Popular do IPHAN. ...........................

    ______________________________

    Wallace de Deus Barbosa Prof. Dr. do Instituto de Arte e Comunicao Social,

    IACS, Departamento de Artes, UFF.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu marido Junior Ricchetti, que colaborou de modo intenso e significativo apoiando,

    escutando, respeitando, prestando suporte tcnico e logstico enfim, ajudando em tudo que

    se fez necessrio nesse rito de passagem de minha formao profissional. Obrigada pela

    parceria.

    Aos meus filhos Luana e Daniel Campos Ricchetti, que suportaram minha ausncia e

    entenderam minha escolha. Que todo meu esforo e dedicao lhes sirva de exemplo.

    Aos meus pais Darcy Campos e Amerisa Maria Rezende de Campos, que me ajudaram, me

    estimularam e apoiaram financeiramente na realizao do trabalho de campo.

    Ao Prof. Doutor Ribamar Bessa, coordenador do departamento Pr-ndio da UERJ, que

    acreditou no projeto de pesquisa, recomendando leituras e orientando caminhos para a

    compreenso e imerso nesse universo complexo que a sociedade indgena.

    Aos Xavante da TI Sangradouro, que me possibilitaram um outro olhar para o outro, para a

    vida, para os valores essenciais que permeiam nossa existncia. Em especial, ao Hiparidi e

    Tseredzar, que colaboraram na construo desta dissertao, fornecendo dados e

    esclarecendo dvidas surgidas ao longo do processo.

    minha estimada orientadora Prof. Doutora Isabela Frade, pela indicao de livros, textos e

    autores; pelas observaes minuciosas que me desafiaram a construir um trabalho denso e

    fundamentado; pelas questes que me impulsionaram a buscar repostas para a compreenso

  • dessa cultura no cenrio contemporneo e principalmente pelo carinho, dedicao e respeito

    aos meus pontos de vista.

    Daniela Lima, integrante da Associao Xavante War e companheira de Hiparidi, que

    colaborou na correo/reviso dos dados apresentados na dissertao qual o trabalho foi

    submetido, conforme acordo firmado com a associao.

    Aos pesquisadores do grupo indgena Xavante Paulo Delgado, Silvia Gugelmin, Regina

    Muller, Bartolomeu Giaccaria, Maria Lucia Gomide, ngela Pappiani, que me auxiliaram

    com dados e fotografias de suas pesquisas de campo, esclarecendo umas questes e

    fomentando outras.

    colega de curso e nova amiga Marina de Menezes, por me apoiar nos momentos

    angustiantes desse processo e pelas leituras dos ensaios desta dissertao e posteriores

    sugestes.

    Ao Vinicius de Sousa Morandi, que colaborou na edio das ilustraes dos modelos de

    pintura corporal Xavante.

    Aos amigos Ktia DOliveira Mendes, Marcio Marins e Claudia Eugnia Monteiro, que

    colaboraram na reviso de alguns textos, imagens e animaes miditicas construdas no

    incio deste percurso.

    Ao Mauro Meirelles de Oliveira Santos, que revisou cuidadosamente esta dissertao e

    Analu Steffen, que facilitou esse contato.

  • Ao secretrio de Educao e presidente da Fundao Municipal de Educao, Prof. Doutor

    Waldeck Carneiro da Silva, que julgou pertinente meu pedido de afastamento da Escola

    Municipal Francisco Portugal Neves, onde atuo como professora do Ensino da Arte,

    concedendo-me uma licena especial para a realizao desta dissertao. diretora da escola

    Rosemary Maiatto Ishikiriyama, coordenadora de arte Dbora Dias, que colaboraram neste

    processo.

    Ao amigo Nelson Ricardo da Costa e Silva, que colaborou com sugestes na elaborao do

    projeto de pesquisa.

    Aos professores que aceitaram participar da banca examinadora desta dissertao: Prof.

    Doutor Ricardo Lima, Prof. Doutor Wallace de Deus, Prof. Doutor Luis Felipe Ferreira e

    Prof. Doutor Aldo Victorio Filho.

    Ao Programa de Ps-graduao em Arte e Cultura Contempornea da Universidade do Estado

    do Rio de Janeiro, pelo apoio financeiro, mediado pelas colaboradoras/funcionrias Rosilene

    Wanderley e Viviane Santos, para a realizao da pesquisa de campo e pelo espao propcio

    s reflexes (viabilizado pelos doutores e especialistas que compem o curso).

  • RESUMO

    A plstica corporal Xavante, expresso simblica impregnada de cdigos

    comunicantes, constitui a maneira pela qual o indivduo se socializa como membro de sua

    comunidade. Sua forma est relacionada classificao do indivduo segundo a linhagem, o

    grupo social, a classe e a categoria de idade, bem como ao contedo esttico, tico, moral e

    poltico dessa sociedade, materializando um modo de pensar e sentir, modelo sensvel que

    manifesta a natureza dual dessa cultura. Uma sociedade em que a vida e o pensamento so

    permeados por um princpio didico, que organiza sua percepo do mundo como estando

    permanentemente dividida em metades opostas e complementares. Tendo em vista a natureza

    de seus indicadores estticos especficos, a dissertao ressalta o jogo simblico e o carter

    mgico dessas prticas como reveladoras de aspectos da cosmologia Xavante. A pintura

    corporal, os paramentos cerimoniais e a performance ritual se constituem como elementos-

    chave para o entendimento da tenso entre local e global, tradio e inovao, criatividade e

    norma, revelando o lugar da arte Xavante na contemporaneidade.

    Palavras-chave: arte corporal; pintura cerimonial; performance ritual; cosmologia Xavante.

  • ABSTRACT

    The Xavantes corporal plastic, symbolic expression impregnated with communicating

    codes constitutes the way for the individual to socialize as a member of its community. Its

    shape is related to the classification of he individual from its lineage, social group, class and

    age category, as well as aesthetics content, ethic, moral and political of that society,

    materializing a way of thinking and feeling, sensitive model that manifests the dual nature of

    that culture. A society where life and thoughts are permeated by a dual principle, that

    organizes its perception of the world as being permanently shared in opposite and

    complementary halves. From the nature of theirs specific aesthetics indicators, the

    dissertation points the symbolic game and de magical character of those practices as revealers

    of aspects of the Xavantes cosmology. The body painting, the ceremonials ornaments and

    the ritual performance are key-elements for the understanding of the tension between local

    and global, tradition and innovation, creativity and norm, revealing the place of the Xavantes

    art in the contemporary time.

    Keywords: body art; ceremonial painting; ritual performance; Xavantes cosmology.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Padro grfico Wajpi............................................................................................... Ilustrao: Folder da exposio 2005.

    19

    Figura 2 Pintura corporal Patax............................................................................................. Foto: Cristina R. Campos 2006.

    21

    Figura 3 Pintura corporal Patax............................................................................................. Foto: Cristina R. Campos 2006.

    21

    Figura 4 Joaquim pintando a modelo Yawanawa.................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    22

    Figura 5 Modelos Yawanawa na passarela..............................................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    22

    Figura 6 Modelos da Agncia 40 graus................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    23

    Figura 7 Modelos da Agncia 40 graus................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    23

    Figura 8 Modelos da Agncia 40 graus................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    23

    Figura 9 Benkiy Bianco........................................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    25

    Figura 10 Hiparidi na Associao War.................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    35

    Figura 11 Tseredzar trabalhando na apicultura........................................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    37

    Figura 12 Foto montagem do cotidiano da pesquisadora.......................................................... Foto: Cristina R. Campos e Junior Ricchetti.

    38

    Figura 13 Produo na Aldeia Abelhinha.................................................................................. Foto: Cristina R. Campos 2005.

    40

    Figura 14 Modelos pinturas corporais Xavante......................................................................... Ilustrao: Tseredzar e Cristina R. Campos 2005.

    41

    Figura 15 Pesquisadora e os presentes recebidos...................................................................... Foto: Junior Ricchetti 2005.

    42

    Figura 16 Pesquisadora e os presentes recebidos...................................................................... Foto: Junior Ricchetti 2005.

    42

    Figura 17 Pesquisadora e os presentes recebidos...................................................................... Foto: Junior Ricchetti 2005.

    42

    Figura 18 Mapa da localizao das Reservas Xavante.............................................................. Fonte: Arquivo da geloga Gomide 2006.

    49

    Figura 19 Ilustrao sobre a origem do povo Xavante.............................................................. Desenho: Tseredzar Colorido: Cristina R. Campos 2005.

    53

    Figura 20 Noiva pintada de urucum Aldeia Sangradouro...................................................... Foto: Francisco Junior 1999.

    57

    Figura 21 Meninos na luta Oio Aldeia Abelhinha.................................................................Foto: Xanda di Biase s/d.

    58

    Figura 22 Girino.........................................................................................................................Foto: Rosa Gauditano 1999.

    58

    Figura 23 Rio Grande.................................................................................................................Foto: Rosa Gauditano 1999.

    58

    Figura 24 Forma tradicional de uma Aldeia Xavante................................................................Foto: Eredit Werger s/d.

    61

    Figura 25 Aldeia Sangradouro................................................................................................... 62

  • Foto: Cristina R. Campos 2005. Figura 26 Sr. Ado Toptiro - Aldeia Abelhinha.......................................................................

    Foto: Cristina R. Campos 2005. 64

    Figura 27 Sra. Batica- Aldeia Abelhinha.................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    64

    Figura 28 Moradias da Aldeia Abelhinha..................................................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    68

    Figura 29 Escola da aldeia......................................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    69

    Figura 30 War..........................................................................................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    71

    Figura 31 Duas geraes: Sr. Ado Aldeia Abelhinha........................................................... Foto: Arquivo War, s/d e Cristina R. Campos, 2006.

    75

    Figura 32 Duas geraes: Tseredzar Aldeia Abelhinha........................................................Foto: Arquivo War, s/d e Cristina R. Campos, 2006.

    75

    Figura 33 Brincos especiais....................................................................................................... Ilustrao: Ilustrao de Tseredzar 2005.

    76

    Figura 34 Menino com cordes amarrados no pulso................................................................. Foto: Rosa Gauditano 1992.

    77

    Figura 35 Berenice com o cordo no pescoo e seu filho..........................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    78

    Figura 36 Meninos com a gravata..............................................................................................Foto: Rosa Gauditano 1992.

    80

    Figura 37 Sr. Batica representando como o corte do cabelo era realizado...............................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    81

    Figura 38 Ailda cortando o cabelo de seu filho com a tesoura..................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    81

    Figura 39 Penteados Xavante.....................................................................................................Foto: Rosa Gauditano 1992.

    82

    Figura 40 Penteados Xavante.....................................................................................................Foto: Rosa Gauditano 1992.

    82

    Figura 41 Tonsura no cabelo......................................................................................................Foto: Regina Mller 1972.

    83

    Figura 42 Tonsura no cabelo......................................................................................................Foto: Regina Mller 1972.

    83

    Figura 43 Meninos com rabo-de-cavalo enfeitado para corrida final do Noni.......................... Foto: Rosa Gauditano 1995.

    84

    Figura 44 Estojo peniano........................................................................................................... Foto: Ariovaldo Veiga 2002.

    85

    Figura 45 Estojo peniano........................................................................................................... Foto: Eredit Werger s/d.

    85

    Figura 46 Elementos warazu integrados pintura corporal...................................................... Foto: Paulo Delgado 2005.

    86

    Figura 47 Elementos warazu integrados pintura corporal...................................................... Foto: Rosa Gauditano 1995.

    86

    Figura 48 Pintura corporal......................................................................................................... Foto: Giaccaria s/d.

    88

    Figura 49 Pintura corporal......................................................................................................... Foto: Paulo Delgado 2005.

    88

    Figura 50 Pintura dos padrinhos da Aldeia Pimentel Barbosa.................................................. Foto Rosa Gauditano 1992.

    89

    Figura 51 Jovem sendo pintado pelo seu padrinho............................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    92

  • Figura 52 Incio de pintura com urucum....................................................................................Foto: Rosa Gauditano 2001.

    92

    Figura 53 Xavante fazendo borduna Aldeia Pimentel Barbosa.............................................. Foto: Rosa Gauditano 1999.

    117

    Figura 54 Pi lanando flecha.................................................................................................. Foto: Giaccaria & Heide s/d.

    118

    Figura 55 Grupo da madeira Aldeia Pimentel Barbosa.......................................................... Foto: Rosa Gauditano 2003.

    120

    Figura 56 Grupo do chocalho Aldeia Pimentel Barbosa........................................................ Foto: Rosa Gauditano 2003.

    120

    Figura 57 Detalhe da pintura da perna Aldeia Pimentel Barbosa...........................................Foto: Rosa Gauditano 2003.

    121

    Figura 58 Grupo cantadores do chocalho Aldeia Pimentel Barbosa...................................... Foto: Rosa Gauditano 2003

    122

    Figura 59 Wapt no rio batendo na gua................................................................................... Foto: Arquivo Funai s/d.

    128

    Figura 60 Wapt no rio batendo na gua................................................................................... Foto: Arquivo Funai s/d.

    128

    Figura 61 Furao de orelha Aldeia Pimentel Barbosa.......................................................... Foto: Rosa Gauditano 2001.

    130

    Figura 62 Nni pintado para a corrida Aldeia Sangradouro....................................................Foto: Junior Ricchetti 2005

    131

    Figura 63 Fabio e seu amigo (am) Aldeia Sangradouro.....................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    132

    Figura 64 Nni conduzindo os jovens Aldeia Pimentel Barbosa............................................. Foto Rosa Gauditano 1995.

    133

    Figura 65 Corrida do Nni Aldeia Sangradouro.......................................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    134

    Figura 66 Cacique Tiago com a mscara Aldeia Abelhinha...................................................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    135

    Figura 67 Barbante de algodo entrelaado na mascara Aldeia Abelhinha............................Foto: Cristina R. Campos 2005.

    135

    Figura 68 Unha de veado e sementes de capim navalha Aldeia Abelhinha........................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    135

    Figura 69 Dana das mscaras Aldeia Pimentel Barbosa.......................................................Foto: Rosa Gauditano 1995.

    136

    Figura 70 Tebe Aldeia Sangradouro....................................................................................... Foto: Larcio Miranda 1999.

    137

    Figura 71 Pahriw It (antecedente) Aldeia Sangradouro................................................... Foto: Larcio Miranda 1999.

    137

    Figura 72 Brinco especial.......................................................................................................... Foto: Rosa Gauditano 1995

    138

    Figura 73 Pahriw................................................................................................................... Foto: Giaccaria s/d

    139

    Figura 74 Pahriw................................................................................................................... Foto: Rosa Gauditano 1995.

    139

    Figura 75 Sr. Ado Aldeias Abelhinha e Sangradouro.......................................................... Foto: Junior Ricchetti 2005.

    139

    Figura 76 Sr. Alexandre Tsereptse Aldeias Abelhinha e Sangradouro.................................. Foto: Junior Ricchetti 2005.

    139

    Figura 77 Dana dos padrinhos Aldeia Sangradouro............................................................. Foto: Cristina R. Campos e Rosa Gauditano 2005/1995.

    141

    Figura 78 Dana dos padrinhos Pimentel Barbosa................................................................. Foto: Cristina R. Campos e Rosa Gauditano 2005/1995.

    141

  • Figura 79 Homem pintado para dana dos padrinhos................................................................Foto: Rosa Gauditano 1992.

    142

    Figura 80 Padrinhos Aldeia Sangradouro............................................................................... Foto: Arquivo War s/d.

    143

    Figura 81 Padrinhos no final da maratona Aldeia Guadalupe................................................ Foto: Paulo Delgado 2005.

    145

    Figura 82 As madrinhas Aldeia Guadalupe............................................................................ Foto: Paulo Delgado 2005.

    146

    Figura 83 Jovem no final da corrida Aldeia Guadalupe......................................................... Foto: Paulo Delgado.

    147

    Figura 84 Padrinho da Aldeia Abelhinha...................................................................................Foto: arquivo War 2000.

    150

    Figura 85 Padrinho da Aldeia Cachoeira................................................................................... Foto: Maria Lucia Gomide 2005.

    150

    Figura 86 Padrinhos da Aldeia Guadalupe................................................................................ Foto: Paulo Delgado 2005.

    151

    Figura 87 Madrinha da Aldeia Guadalupe.................................................................................Foto: Paulo Delgado 2005.

    151

    Figura 88 Padrinho da Aldeia Guadalupe..................................................................................Foto: Paulo Delgado 2005.

    151

    Figura 89 Madrinhas da Aldeia Guadalupe............................................................................... Foto: Paulo Delgado 2005.

    151

    Figura 90 Padrinho da Aldeia So Marcos................................................................................ Foto: Paulo Delgado 2005.

    151

    Figura 91 Padrinhos da Aldeia Guadalupe................................................................................ Foto: Paulo Delgado 2005.

    151

    Figura 92 Madrinha da Aldeia So Marcos............................................................................... Foto: Paulo Delgado 2005.

    155

    Figura 93 Madrinha da Aldeia So Marcos............................................................................... Foto: Paulo Delgado 2005.

    155

    Figura 94 Madrinha da Aldeia Guadalupe.................................................................................Foto: Paulo Delgado 2005.

    155

    Figura 95 Madrinha da Aldeia Guadalupe.................................................................................Foto: Paulo Delgado 2005.

    155

    Figura 96 Madrinha da Aldeia Guadalupe.................................................................................Foto: Paulo Delgado 2005.

    155

    Figura 97 Madrinha da Aldeia Guadalupe.................................................................................Foto: Paulo Delgado 2005.

    155

    Figura 98 Pinturas cerimoniais.................................................................................................. Ilustrao: Desenhos feitos pelos Xavante da Aldeia Pimentel Barbosa.

    157

    Figura 99 Pinturas cerimoniais.................................................................................................. Ilustrao: Desenhos feitos pelos Xavante da Aldeia Pimentel Barbosa.

    157

    Figura 100 Representaes.......................................................................................................... Desenhos: Realizados por Jurandir Siridiw.

    157

    Figura 101 Representaes.......................................................................................................... Desenhos: Realizados por Jurandir Siridiw.

    157

    Figura 102 Cordes, bolsas (baquit), arcos, flechas.................................................................. Foto: Cristina R. Campos 2006.

    160

    Figura 103 Cordes, bolsas (baquit), arcos, flechas.................................................................. Foto: Cristina R. Campos 2006.

    160

    Figura 104 Cordes, bolsas (baquit), arcos, flechas.................................................................. Foto: Cristina R. Campos 2006.

    160

    Figura 105 Cartaz explicativo......................................................................................................Foto: Cristina R. Campos 2006.

    161

  • Figura 106 Jovens da APAE brincando....................................................................................... Foto: Cristina R. Campos 2006.

    161

    Figura 107 Representantes Xavante TI Sangradouro............................................................... Foto: Cristina R. Campos 2006.

    161

    Figura 108 Xavante pintado para a luta de retorno sua Terra...................................................Foto: Joedson Alves/AE 2003.

    163

    Figura 109 Xavante danando no palco Aldeia So Marcos.................................................... Foto: Cristina R. Campos 2005.

    165

    Figura 110 Performance de ritual de iniciao............................................................................ Foto: Guilherme Aquino / BBC Brasil 2005.

    171

    Figura 111 Troca de roupa...........................................................................................................Foto: Guilherme Aquino / BBC Brasil 2005.

    171

    Figura 112 Ao redor do fogo....................................................................................................... Foto: Guilherme Aquino / BBC Brasil 2005.

    172

    Figura 113 Pintura corporal..........................................................................................................Foto: Guilherme Aquino / BBC Brasil 2005.

    173

    Figura 114 Pintura corporal......................................................................................................... Foto: Guilherme Aquino / BBC Brasil 2005.

    173

    LISTA DE TABELAS Tabela 1 Categorias culturais...................................................................................................

    Quadro organizado pela pesquisadora 60

    Tabela 2 Faixa etria/Categorias de idade................................................................................Quadro elaborado pela pesquisadora.

    95

    Tabela 3 Categorias de idade/Pintura corporal.........................................................................Quadro elaborado pela pesquisado.

    97

    Tabela 4 Categorias de idade/Pintura corporal.........................................................................Quadro elaborado pela pesquisadora.

    98

    Tabela 5 Categorias de pintura corporal.................................................................................. Fluxograma elaborado pela pesquisadora.

    101

    Tabela 6 Pintura corporal da categoria hierarquia usada pelos adolescentes...........................Quadro elaborado pela pesquisadora.

    104

    Tabela 7 Pintura corporal da categoria hierarquia usada por todos..........................................Quadro elaborado pela pesquisadora.

    105

    Tabela 8 Pintura corporal da categoria hierarquia usada pelos padrinhos............................... Quadro elaborado pela pesquisadora.

    107

    Tabela 9 Pinturas corporais da categoria hierarquia................................................................ Quadro elaborado pela pesquisadora.

    110

    Tabela 10 Categorias de espritos...............................................................................................Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora.

    126

    Tabela 11 Ritos de passagem..................................................................................................... Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora.

    169

  • SUMRIO

    APRESENTAO..........................................................................................................

    17

    1. INTRODUO...........................................................................................................

    29

    2. A CONTEMPORANEIDADE XAVANTE ............................................................. 47

    2.1. Mito de origem ........................................................................................................ 52

    2.2. A organizao social ...................................................................................... 552.3. As aldeias.................................................................................................................. 60

    2.3.1. Aldeia Sangradouro................................................................................................. 62

    2.3.2. Aldeia Abelhinha....................................................................................................

    64

    3. MARCAS IDENTITRIAS E TRAOS DE ALTERIDADE............................... 73

    3.1. Os brincos................................................................................................................. 74

    3.2. Os cordes................................................................................................................. 77

    3.3. Os colares de algodo................................................................................................ 79

    3.4. O cabelo...................................................................................................................... 81

    3.5. O estojo peniano/short.............................................................................................. 84

    3.6. A pele pintada............................................................................................................ 87

    3.6.1. As cores.................................................................................................................... 90

    3.6.2. As formas................................................................................................................. 97

    3.6.2.1. Categoria Hierarquia............................................................................................. 102

    3.6.2.2. Categoria Linhagem..............................................................................................

    108

    4. COSMOLOGIA E ESTTICA CORPORAL NOS RITUAIS................................ 113

    4.1. Espritos fortes e bravos.......................................................................................... 115

    4.1.1. Wai para a cura.................................................................................................... 115

    4.1.2. Wai para as flechas............................................................................................... 116

    4.1.3. Wai para as mscaras............................................................................................ 119

    4.2. Espritos benevolentes............................................................................................... 124

    4.3. Espritos malevolentes.............................................................................................. 125

    4.4. O Danhn................................................................................................................. 126

  • 4.4.1. Batendo gua............................................................................................................ 128

    4.4.2. Furao de orelhas................................................................................................ 129

    4.4.3. Corrida do Nni....................................................................................................... 130

    4.4.4. A mscara................................................................................................................. 134

    4.4.5. Dana dos padrinhos................................................................................................ 140

    4.4.6. Corrida final.............................................................................................................

    144

    5. A TRADIO E O ESPRITO DA CRIAO.................................................................... 148

    5.1. Tradio transformada............................................................................................ 148

    5.1.1. Pigmento................................................................................................................. 149

    5.1.2. Matria-prima........................................................................................................... 153

    5.1.3. Suporte plstico........................................................................................................ 156

    5.2. Apresentaes pblicas............................................................................................ 158

    5.2.1. Xavante em espao educativo.................................................................................. 159

    5.2.2. Xavante em espao poltico..................................................................................... 162

    5.2.3. Xavante em espao cultural e artstico..................................................................... 163

    5.2.3.1. Festival de Praia Araguaia Vivo........................................................................ 164

    5.2.3.2. Rito de Passagem Canto e Dana Ritual Indgena............................................. 166

    5.2.3.3. Bienal Internacional de Artes Visuais de Veneza................................................

    170

    6. CONSIDERAES FINAIS.....................................................................................

    175

    7. FONTES....................................................................................................................... 184

    7.1. Pesquisa de campo................................................................................................... 184

    7.2. Bibliotecas/Arquivos/Museus.................................................................................. 184

    7.3. Exposies.................................................................................................................

    185

    8. REFERNCIAS ..........................................................................................................

    186

    9. ANEXOS....................................................................................................................... 194

    Anexo 1. Contrato com a Associao War............................................................ 194

    Anexo 2. Estudos com Tseredzar.................................................................................. 197

    Rituais/Pinturas Corporais................................................................................................. 197

  • Categorias de Idade.................................................................................................. 198

    Classes de Idade....................................................................................................... 198

    Matrizes dos modelos de pintura corporal............................................................... 199

    Primeira produo Tseredzar/Cristina Campos.................................................. 200

  • 17

    APRESENTAO

    H muito tenho um olhar diferenciado para a forma como os ndios enfeitam seus

    corpos. Encantava-me com a exuberncia daqueles corpos coloridos, com marcas e smbolos

    peculiares, identificando um modo de ver e pensar o mundo. Contudo, algumas questes

    incomodavam e aguavam esse olhar, inicialmente deslumbrado e curioso.

    Por que os ndios pintam seus corpos?

    Quem somos Ns e quem so Eles?

    Que bens culturais so portadores de referncias identitrias para os ndios, frente ao

    contato com os no-ndios?

    A partir desses questionamentos preliminares, senti necessidade de investigar e

    interpretar o universo indgena: seus sistemas de cdigos, smbolos e seu repertrio mtico e

    cerimonial. Considerando o revestimento corporal como expresso esttica e identificadora de

    um grupo social, impregnada de significados, desenvolvi este estudo com o propsito de

    expandir e disseminar essas inquietaes no meio acadmico e social. A investigao teve

    incio na cidade do Rio de Janeiro, com a coleta de dados realizada atravs de observaes em

    exposies e desfile de moda; entrevistas; anlises de reportagens em jornais e revistas. A

    aproximao com outros grupos indgenas, que faziam parte do cenrio miditico e cultural da

    cidade contribuiu efetivamente para o exerccio da construo do espao relacional entre

    pesquisador e pesquisado.

    Em 2005, o Museu do ndio, situado em Botafogo, Rio de Janeiro, organizou a mostra

    Tempo e Espao na Amaznia: os Wajpi. A exposio, sob a curadoria da antroploga

    Dominique Gallois, apresentou objetos, sons, imagens e conhecimentos desse grupo indgena,

    que vive na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, no estado do Amap, distribudos em

    nove salas com temas referentes msica, dana, festas, mitologia, cosmografia e arte grfica.

  • 18

    As 40 aldeias, que compe o grupo, participaram da exposio produzindo uma coleo de

    mais de 400 objetos. Gallois explicou no folder da exposio que os indgenas trabalharam

    durante seis meses, buscando matrias-primas na mata, organizando oficinas de confeco de

    recipientes de cermica, comparando e selecionando as melhores peas, transportando tudo

    desde lugares muito distantes.

    Os padres aplicados no corpo, segundo Dominique Gallois, so composies da arte

    grfica dos Wajpi que representam temas e figuras sagradas da mitologia dessa minoria

    tnica. So onas, cobras, borboletas e espinhas de peixes pintadas nas cores vermelha e preta

    com tinta base de urucum e suco de jenipapo. Tais composies pouco informam sobre

    categorias sociais, so essencialmente decorao e, como tal, integram-se a outros tipos de

    ornamentao do corpo Os Wajpi criaram o kusiwa 1, ornamento base de tintas

    vegetais, considerado um repertrio codificado de saberes tradicionais e linguagem prpria

    que hoje conta com 580 elementos. (Gallois, 2002: 60).

    Mrcia Rodrigues Aquino, salienta que a pintura corporal dos Wajpi no seu cotidiano

    est aliada ao prazer de sentirem-se bonitos.

    De acordo com o material utilizado, observvel que essa pintura tanto pode servir como proteo da aproximao de espritos da floresta que o caso do urucum (de cor vermelha), assim como para atrair namorada quando utilizam o jenipapo (cor preta). Este ltimo pode tornar os indivduos visveis aos mortos, sendo assim, no aconselhvel sua aplicao em pessoas de luto ou em crianas pequenas. (AQUINO, 2006).

    Os padres grficos usados na pintura corporal foram explorados em outros suportes, na

    exposio Tempo e Espao na Amaznia: os Wajpi, no Museu do ndio, sendo inclusive

    usado no folder de divulgao (Figura 1).

    1 De acordo com a UNESCO (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura), os padres grficos Kusiwa (caminhos do risco) da pintura dos Wajpi tornaram-se patrimnio imaterial da humanidade em dezembro de 2003. Isso aconteceu quando a UNESCO criou o ttulo de Obras Primas do Patrimnio Oral e Intangvel da Humanidade, para homenagear espaos culturais ou formas de expresso de diferentes regies do mundo. (UNESCO, 2006).

  • 19

    Figura 1 Padro grfico Wajpi. Ilustrao: Folder da exposio 2005.

    O que mais causava impacto nos visitantes era ver, ouvir e apreciar o modo como os

    Wajpi esto convivendo e aprendendo com os no-ndios, demonstrado atravs da utilizao

    de elementos como cmeras de vdeo, mquinas fotogrficas e outros suportes, fazendo brotar

    novas possibilidades para a expresso dos padres e composies representativas da arte

    grfica.

    Considero que essas experincias em termos de abordagem antropolgica assim como

    programas de professores e pesquisadores indgenas visando fomentar a participao indgena

    na pesquisa e registro etnogrficos, contribuem para alimentar atividades de reflexo e

    promoo cultural, atendendo s demandas dos ndios em "ver" e "ouvir". Sobretudo re-ver,

    recontar e repensar a sua prpria histria e suas formas especficas de transmisso de

    conhecimento.

    Um contato casual, em julho de 2005, com trs integrantes da nao Patax, nas

    imediaes do Museu do ndio RJ, constituiu uma boa oportunidade de, por meio de

    entrevista informal, compreender um pouco mais a realidade dessa etnia, que at ento

    somente conhecia atravs de leituras. O entrevistado, Licuri Patax, com 24 anos de idade,

    integrante da Aldeia P do Monte, situada no Monte Pascoal, Estado da Bahia, mostrou uma

    grande vontade de falar e contar suas histrias. Relatou com pesar o motivo de sua vinda para

    cidade vender artesanato em decorrncia do desprezo do Governo pelo Parque Nacional

  • 20

    Monte Pascoal. O parque no est sendo divulgado e no tem estrutura boa. parque

    histrico desde 1500. A gente fala que l o marco do Brasil. J que ningum est ligando pra

    gente, vamos buscar conhecimento, ajuda e parceria para divulgar nosso trabalho. (LICURI,

    2005). Os Patax so voluntrios e fiscais do Parque, sendo para isso capacitados atravs de

    cursos oferecidos pelo Centro Nacional de Preservao ao Combate de Incndio Florestal, o

    que lhes d a conscincia de preservao do meio ambiente. O depoimento de Licuri exprime

    a atual situao de sua aldeia. As dificuldades vivenciadas em relao aos meios de

    subsistncia e a luta pelo direito ocupao do Monte Pascoal so questes que afligem o

    grupo indgena.

    Licuri indagado sobre a pintura que estava usando em seu corpo, respondeu:

    Essa cor vermelha guerra e o preto luto. Quando pinta vermelho, a j est pronto pra qualquer ao. Vermelho e preto pintura de guerra. Essa pintura (aponta para as formas em preto pintadas em seu corpo) porque a gente anda pintado direto. Agora, quando pinta o vermelho.... (LICURI, 2005).

    Em abril de 2006, ocasio em que apresentava uma comunicao no XVI CONFAEB

    Congresso Nacional da Federao de Arte Educadores do Brasil, em Ouro Preto, obtive mais

    alguns esclarecimentos sobre a pintura corporal Patax. Tyayho2 (Figuras 2 e 3) que l se

    encontrava expondo e vendendo pulseiras, cordes e brincos produzidos com sementes

    naturais pelo seu grupo, disse que o vermelho usado quando desejam reivindicar alguma

    coisa e o preto, nos rituais. O preto do jenipapo apresenta-se tambm com variedade de linhas

    e formas marcando e identificando o sexo e a aldeia qual o indivduo pertence.

    2 Tyayho tem 18 anos e vive na Aldeia Barra Velha, localizada em Carava, povoado a cerca de 60 quilmetros de Porto Seguro.

  • 21

    Figuras 2 e 3 Pintura corporal Patax. Fotos: Cristina R. Campos 2006. Fonte: Arquivo particular.

    Os ndios ocupavam os espaos cariocas tambm nas manchetes dos jornais da cidade.

    Os Yawanawa, nao indgena localizada no municpio de Tarauac, no Acre, lanou, em

    junho de 2005, sua primeira coleo de moda no Shopping Fashion Mall.

    Os Yawanawa lanam grife para perpetuar cultura. As roupas da coleo Yawanawa desfilam hoje (13/6) no Fashion Mall, no Rio de Janeiro. Com produo de Eduardo Roly, estampando nas peas os desenhos usados no corpo pelo povo Yawanawa, etnia de 620 pessoas, localizada no Acre, que descobriu na moda uma forma de perpetuar sua cultura. A idia foi do lder Joaquim Tashka Yawanawa, estimulado pela Rainforest Concern, uma organizao inglesa que apia o povo h sete anos. A coleo estar venda na Clube Chocolate e os modelos sero desfilados, em seguida, em Paris. (JORNAL O GLOBO, 2005: 2).

    Com intuito de continuar coletando material para a pesquisa, fui ao desfile e tive

    oportunidade de entrevistar Joaquim Tashka, idealizador do projeto, no camarim, enquanto

    todos se preparavam para o desfile. De acordo com Joaquim, a pintura corporal protege dos

    maus espritos. Uma pessoa pintada est de bem com a vida, se sente cool, diferente, como os

    ingleses gostam de dizer (TASHKA, 2005) A tinta vermelha, alm de espantar mosquitos

    tambm uma proteo espiritual.

    Antigamente nosso povo quando ia para a guerra se pintava com urucum. A cor fazia nossos guerreiros se sentirem invisveis e perderem o medo de lutar. Quando eles no se pintavam tinham medo de morrer. Ento a tinta trazia uma proteo espiritual para eles. (...)

  • 22

    O pessoal da aldeia se pinta como uma forma de se identificar com aquele animal ou aquele esprito que est sendo pintado. (TASHKA, 2005).

    Enquanto conversava, Joaquim pintava o rosto de uma Yawanawa (Figura 4) que junto

    com outros indgenas e o paj (Figura 5) fariam uma performance de um ritual para a abertura

    do desfile.

    Figura 4 Joaquim pintando a modelo Yawanawa. Figura 5 Modelos Yawanawa na passarela. Fotos: Cristina R. Campos 2005. Fonte: Arquivo particular.

    Joaquim relata que, em 1998, a AVEDA3 concedeu-lhe uma bolsa para estudar nos

    Estados Unidos e, dessa forma, atuar como uma ponte entre o seu povo e o mundo. L, ele

    se casou com uma ndia mexicana, Laura Soriano. A idia da grife surgiu em um encontro que

    virou um festival Yawanawa, que tinha como objetivo estudar e recuperar as tradies

    perdidas. Ele explica:

    Eram to bonitos aqueles corpos pintados, que visualizei as pessoas usando aquilo de alguma maneira no mundo inteiro. Pensamos em criar roupa para a aldeia, mas l ningum usa muita roupa. Fiz os primeiros testes em camisetas, vendidas numa loja sofisticada em Rio Branco. . (TASHKA, 2005).

    Ao som dos cnticos dos Yawanawa, mixados pelo cantor Leoni, os modelos da

    Agncia 40 graus desfilaram a coleo. As roupas apresentadas na coleo incluram saias

    enfeitadas com sementes de jarina (o marfim da Amaznia) e palha de buriti; algodo 100%

    natural, lavado com cupuau; tecidos tintos com lama, ch verde, urucum e jenipapo. Os

    3 Empresa americana de cosmticos que apia o desfile e para a qual a tribo vende cerca de quatro toneladas da semente de urucum por ano.

  • 23

    indgenas e os modelos no-ndios (Figuras 6, 7 e 8) desfilaram na passarela, com seus

    corpos pintados, apresentando uma composio grfica realizada pelos Yawanawa.

    Figuras 6, 7 e 8 Modelos da Agncia 40 graus. Fotos: Cristina R. Campos 2005. Fonte: Arquivo particular.

    Encerrando o desfile, a ndia mexicana, Laura Soriano, esposa de Joaquim, fez um apelo

    ao pblico justificando a importncia da venda e a divulgao da coleo, argumentando:

    Os desenhos que vocs acabaram de ver, vm de um povo milenrio, um povo muito forte da floresta Amaznica brasileira, daqui, do seu prprio pas. Um povo muito rico em cultura, em tradies, um povo maravilhoso. Um povo que est compartilhando com todos vocs e com o mundo inteiro esses desenhos que levam mitos, que levam toda uma histria de um povo milenrio. Eu queria que vocs abraassem esses desenhos, essas roupas maravilhosas que Adriana fez com tanto carinho e com tanto empenho para vocs usarem. Comprando cada blusa, cada cala, vocs estaro abraando e apoiando o povo Yawanawa. Um povo que vive da caa e da pesca em um territrio rico em biodiversidade. Essas roupas so muito nicas, porque eu acho que pela primeira vez, um povo indgena est lanando um produto assim. Ento, uma coisa muito especial que estaro comprando e que vocs esto assistindo aqui. (SORIANO, 2005).

    Aps o desfile, procurei estabelecer contato com Joaquim, porm, no obtive retorno.

    Procurei saber tambm da coleo, que segundo divulgao em jornais e no desfile, estariam

    venda na loja Clube Chocolate, mas a gerente informou que a coleo no estava na loja e no

    tinha nenhuma informao a mais para fornecer. Assim, o contato com os Yawanawa

    encerrou-se no desfile, porm, proporcionou um olhar diferenciado para as novas identidades

    indgenas que permitem o surgimento de novos espaos e novas organizaes alternativas.

  • 24

    Nesse evento surgiu a oportunidade de entrevistar tambm um representante da nao

    indgena Ashaninka, Benkiy Bianco, que estava presente para assistir o desfile. Benkiy reside

    no municpio de Marechal Thaumaturgo, na fronteira do Acre com o Peru e estava no Rio de

    Janeiro participando de um encontro da Organizao das Naes Unidas, com objetivo de

    discutir a implantao de uma rede de computadores que auxiliar a comunicao, via

    Internet, entre os povos e instituies diversas.

    Internet unir os povos da floresta. Representantes de populaes tradicionais de florestas do pas se reuniram ontem, no Jardim Botnico (RJ), para discutir a criao de uma rede de informaes entre suas comunidades pela Internet. O projeto Rede Povos da Floresta prev a ampliao, de cinco para 40, do nmero de comunidades com postos de acesso Internet. O objetivo reeditar, aproveitando a tecnologia, a Aliana dos Povos da Floresta, projeto do ambientalista Chico Mendes abandonado aps sua morte. ndios, seringueiros, povos ribeirinhos e quilombolas vem na rede um instrumento de defesa e de difuso cultural. A idia que as comunidades possam se conhecer melhor e se comunicar com instituies e rgos governamentais. (JORNAL O GLOBO, 2005: 14).

    De acordo com Benkiy Bianco a Internet possibilitar uma aliana entre os povos e uma

    rede de comunicaes entre as populaes que vivem nas florestas. O computador possibilita

    a conexo entre as pessoas. um ponto de contato com o restante do mundo. A fala do

    Ashaninka remete idia de uma outra globalizao, aclamada por Milton Santos:

    Dir-se-, ento, que o computador reduz tendencialmente o efeito da pretensa lei segundo a qual a inovao tcnica conduz paralelamente a uma concentrao econmica. Os novos instrumentos, pela sua prpria natureza, abrem possibilidades para sua disseminao no corpo social, superando as clivagens socioeconmicas preexistentes. (SANTOS, 2000: 164).

    Ao ser indagado sobre a pintura que usava no rosto e tambm sobre sua diferente

    indumentria (Figura 9), Benkiy Bianco, em relao roupa, disse que essa era a maneira de

    eles se vestirem mesmo e, quanto pintura, falou:

    Todas as pinturas so de cerimnias. So de animais e seres da floresta, ento so pinturas que tm um significado. No qualquer pintura por pintar. A gente se pinta todo dia, no s para festa. Nossa tradio essa: manter nosso rosto pintado o tempo todo. (BIANCO, 2005).

  • 25

    Figura 9 Benkiy Bianco. Foto: Cristina R. Campos 2005. Fonte: Arquivo particular.

    Sobre a possibilidade de algum de fora conhecer sua aldeia, respondeu que a visita de

    estrangeiros no tem sido bem vista por eles.

    Nosso povo tem passado por grandes dificuldades com pessoas que vo fazer estudos dentro de terras indgenas. Muitas vezes s pegam os conhecimentos e levam. A gente tem sofrido muito com essas coisas e por isso a gente tem impedido um pouco essas coisas acontecerem em nossas terras. Ento a gente mesmo est contando nossas histrias. Estamos escrevendo livros, fazendo filmes. Estamos fazendo nossas histrias. Muitas pessoas foram l pegaram nossas histrias e deram tchau pra vocs, adeus. Ento pra gente muito ruim isso a. Estamos querendo nos comunicar com o mundo atravs de nossa prpria inteligncia, nossa prpria sabedoria, pra dizer a forma como estamos pensando tambm. Ento, estamos hoje montando uma rede de comunicao atravs da Internet. Estamos tentando aprender usar o computador, que para ns tambm transmitirmos nossas mensagens. A gente tem muitas histrias. Estamos fazendo um DVD que vai falar muito sobre isso. A gente vai tocar, cantar, mas tambm vamos deixar uma mensagem. (BIANCO, 2005).

    O depoimento de Benkiy demonstra o quanto eles se sentem indignados com a

    explorao imagtica de sua cultura e tambm com a postura de alguns pesquisadores que se

    preocupam somente com o material para as pesquisas de campo. Eles desejam contar suas

  • 26

    histrias do seu modo. As palavras do Prof. Jos R. Bessa Freire4 indicam uma orientao

    para essa interpelao entre ns e eles.

    Quem quer conhecer melhor o Brasil e os brasileiros deve procurar saber quem so os ndios e observar as formas como a sociedade nacional vem se relacionando com eles, porque atravs desse relacionamento ns nos revelamos e o nosso pas mostra a sua cara. As culturas indgenas constituem assim, um indicador extremamente sensvel para avaliar a natureza e o carter da sociedade que entra em contato com elas. Desta forma, estudar o ndio no apenas procurar conhecer o outro, o diferente, mas implica conduzir as indagaes sobre a prpria sociedade em que vivemos. (FREIRE, 2006).

    Essas primeiras leituras, proporcionadas pelos depoimentos, imagens, autores e

    antroplogos reiteram a necessidade de repensarmos o vis que tem conduzido as pesquisas

    realizadas com os grupos indgenas.

    Em 2005, tambm, no Museu do ndio RJ, inaugura-se em outro espao a exposio

    Auw Xavante: Mltiplos Olhares, gerada a partir de diferentes vivncias entre os

    Xavante5 da Terra Indgena Pimentel Barbosa, localizada no Estado do Mato Grosso, e um

    grupo de fotgrafos, antroplogos, artistas plsticos, mdicos e sertanistas. A mostra alm de

    fotografias, instalaes e telas, inclua tambm filmes da dcada de 40 e alguns mais atuais

    produzidos pelos Xavante sobre si prprios.

    Por meio das imagens apresentadas ampliei minhas inquietaes. As cores vermelho e

    preto, expostas em seu corpo e na indumentria short e soutien davam impresso de se

    contraporem e se complementarem. A organizao espacial em filas e em crculos instigava

    um olhar mais profundo para essa sociedade. Integrados ao ambiente da exposio, destaco o

    4 Coordenador do Pr-ndio (Programa de Estudos dos Povos Indgenas). O Pr-ndio, inicialmente subordinado ao Departamento de Extenso da Sub-Reitoria de Extenso (SR-3), est atualmente vinculado Faculdade de Educao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Departamento de Estudos Especficos em Educao - rea de Educao de Jovens e Adultos), foi criado em 1992 para promover pesquisas, prestar assessoria aos movimentos e organizaes dos ndios, apoiar a educao indgena e desenvolver aes pedaggicas destinadas a redimensionar a temtica indgena nas escolas de ensino pblico e privado. (PR-NDIO, 2006). 5 A conveno aqui adotada, assim como em todo trabalho, grafa a palavra com letra maiscula e no singular, por se referir ao povo indgena como uma coletividade tnica e cultural.

  • 27

    depoimento da fotgrafa Rosa Gauditano que, convidada pelos Xavante da TI6 Pimentel

    Barbosa registrou em imagens sua cultura com objetivo de document-la e divulg-la.

    O povo da aldeia de Eteiritipan de Pimentel Barbosa sempre me recebeu com carinho abrindo espao em suas casas e em seus coraes para que eu uma pessoa de uma cultura to diferente pudesse aprender e conhecer os ensinamentos que me ajudaram durante todo o tempo em que desenvolvi meu trabalho a me tornar uma pessoa mais feliz e em paz comigo mesmo. A viso que sempre temos dos ndios superficial. Em nossa cultura temos o costume de julgar as pessoas por sua aparncia e modo de vida sem procurar entender o que est por trs disso tudo. Entender o modo de pensar e viver dos Xavante para traar um projeto de trabalho foi um desafio, pois tudo muito complexo e minucioso nessa cultura. Alm da comunicao ser feita na maior parte das vezes em xavante e traduzida para o portugus. Ali aprendi, observando e convivendo com as pessoas dia aps dia, que paralelamente ao desenvolvimento fsico e material, temos tambm que desenvolver nosso esprito, pois s assim faremos profundas mudanas em nosso ser e na natureza a nossa volta. por causa dessa fora espiritual que os povos indgenas brasileiros se mantiveram vivos at hoje resguardando sua cultura, seus segredos e o ambiente em que vivem. (GAUDITANO, 2003).

    Aps contato com manifestaes de variados grupos indgenas, restava definir a nao e

    a aldeia que seria tomada como locus de pesquisa. A escolha da nao indgena Xavante para

    constituir o corpus do trabalho deu-se pelo fato de que, nessa sociedade, apesar das profundas

    transformaes acarretadas pelo contato com o no-ndio, a arte corporal apresenta um sentido

    de contigidade e permanncia em sua cultura. A pintura e os adornos corporais constituem-

    se como elementos-chave para o entendimento da tenso entre local e global, tradio e

    inovao, criatividade e norma. A insero dos Xavante em contextos artsticos e culturais,

    reconhecida internacionalmente, foi o mote deflagrador das investigaes.

    ndios Xavante participam do Festival de Veneza. A abertura do 3 Festival Internacional de Dana, dentro da programao da 51 Mostra Internacional de Artes Visuais de Veneza, que comea no dia 8 e se estende at 2 de julho, ser reservada aos ndios Xavante. Os Xavante iro mostrar seus rituais a cu aberto em Veneza. O curador do festival, Ismael Ivo, explica o convite: "esse um exemplo de comunidade que vive dentro do conceito de corpo. O corpo est inserido na cultura, tombada como patrimnio pela Unesco. O pblico poder conferir todo o preparo para o ritual, a maneira como se pintam como lidam com o espao. Quero mostrar uma cultura viva, no vender a idia de ndio para o europeu" (JORNAL OESP, 2005: D8).

    Entendo que os Xavante, ao reservarem o direito de manter sua cultura mostrando suas

    formas de expresso ao mundo dos no-ndios, criam uma possibilidade de tornarem-se livres.

    A liberdade cultural de um grupo estigmatizado, invadido e desrespeitado. Uma minoria que

    6 TI Terra Indgena

  • 28

    luta contra a hegemonia social, fazendo do prprio corpo um locus de resistncia.

    Utilizada em contextos cerimoniais, a linguagem visual do corpo pintado se completa

    extraordinariamente bem como a ao ritual que, apesar de quase meio sculo de contato com

    no-ndios, marca ainda hoje a participao do indivduo em rituais e cerimnias. Mller

    (1992: 142) concluiu que, apesar das profundas transformaes que os Xavante tm sofrido,

    a arte corporal um dos aspectos culturais que no perderam o lugar neste novo momento de

    sua histria. No entanto, como a pesquisa da antroploga realizou-se no perodo entre 1972 e

    1976, considerei pertinente uma nova anlise sobre os processos de reelaborao e recriao

    cultural na plstica corporal Xavante atravs do dilogo entre estudiosos, compondo uma

    nova verso sobre a arte corporal Xavante, incluindo-a no cenrio contemporneo.

  • 29

    1 INTRODUO

    A corrente preponderante do discurso sobre a arte vem precedida por um movimento de

    idias gerais, de um impulso filosfico que interpreta o fazer artstico, com maior ou menor

    intensidade, na constituio de uma aura artstica onde este (o fazer artstico) aparece

    normatizado por cdigos hegemnicos norte-americanos e europeus. Darcy Ribeiro no

    reconhecia distino entre a nossa arte e a arte de povos no europeus e afirmava que ambas

    podem ser melhor compreendidas se encaradas como expresses dos diferentes modos de

    sentir, de pensar e de fazer das respectivas sociedades. (RIBEIRO, 1980: 257).

    Terry Eagleton mapeou a atmosfera esttica a partir do sculo XVIII dizendo:

    Para Kant, a esttica guarda uma promessa de conciliao entre a Natureza e a Humanidade. Hegel d a arte um estatuto menor no corpo de seu sistema terico, embora lhe dedique um tratado de exagerado tamanho. A esttica, para Kierkegaard, deve recuar diante das verdades mais elevadas da tica e da f religiosa, mas no deixa de ser uma preocupao recorrente em sua obra. Para Schopenhauer e Nietzche, de forma contrastante, a experincia esttica representa a forma suprema do valor. As aluses impressionantes eruditas de Marx literatura mundial combinam-se com a confisso modesta de Freud, de que os poetas disseram tudo antes dele. Em nosso sculo, as meditaes esotricas de Heidegger culminam numa espcie de ontologia estetizada, enquanto o legado do marxismo ocidental, de Lukcs a Adorno, dedica arte um privilegio terico surpreendente, primeira vista, em uma corrente de pensamento materialista. Nos debates contemporneos sobre a modernidade, o modernismo e o ps-modernismo, a cultura parece ser a categoria-chave para a anlise e a compreenso da sociedade capitalista tardia. (EAGLETON apud MEIRA, 1999: 129).

    Nessa perspectiva, entende-se que a arte faz o trnsito de ida e volta entre a prtica e o

    discurso. Revela como se constitui o imaginrio e a percepo dos homens a partir de suas

    vises de mundo, orientando o sentido das prticas e das formulaes tericas sob o critrio

    da sensibilidade, dos afetos, dos vnculos, alm das formas de valorao e sentido.

    Compreende-se assim a necessidade de elucidar novas condies, reconstrues e padres de

    anlise que exigem um alargamento do discurso artstico, uma vez que esse discurso pode se

    manifestar de outros modos em diferentes culturas. O prprio carter expansivo da esttica,

    com suas atuais contextualizaes, torna invivel garantir a priori propriedades

    definidoras, exigindo uma atitude menos eurocntrica da idia de sensibilidade esttica.

  • 30

    A arte um sistema que s pode ser compreendido atravs da cultura qual pertence.

    O significado dos seus objetos surge graas ao seu uso, em que forma e contedo compem

    uma unidade e, por fazerem parte do curso normal da vida social, no podemos compreender

    esses elementos como mero encadeamento de formas puras. Para Geertz (1997) estudar arte

    explorar uma sensibilidade essencialmente coletiva, cujas bases so a prpria vida social. A

    apreciao da arte, portanto, inclui habilidades discriminatrias que tanto o observador como

    o criador tm atravs da experincia de vida.. A arte, melhor que qualquer outro aspecto da

    cultura, exprime a experincia do povo que a produziu e somente dentro de sua configurao

    cultural ela pode ser plenamente compreendida e apreciada. (RIBEIRO, 1980: 258). A viso

    antropolgica da arte vem desde o final do sculo passado se espraiando para alm de suas

    fronteiras disciplinares. Possui a fora de abertura para a alteridade.

    Price (2000) diz que, ao longo das ltimas dcadas, um nmero cada vez maior de

    estudiosos que aplicam o conhecimento da histria da arte ao estudo da arte primitiva

    reconhece a necessidade de sutileza e cuidado na descrio da delicada interao entre a

    criatividade individual e os ditames da tradio ocidental. Alguns observadores ocidentais,

    que pensam que sua sociedade representa um fato singularmente superior na histria da

    humanidade, insistem em cultivar a imagem de artistas primitivos como ferramentas no

    pensantes e no diferenciadas de suas respectivas tradies, a quem essencialmente negado

    o privilgio da criatividade, devendo dessa forma continuar no anonimato. O ponto crucial do

    problema que a apreciao da arte primitiva quase sempre tem sido apresentada de forma

    falaciosa: ou vista pela beleza extica atravs das lentes de uma concepo ocidental ou pela

    antropologia de seu material. (PRICE, 2000).

    Price prope uma reflexo sobre a natureza da experincia esttica nas sociedades

    primitivas, reconhecendo a existncia e a legitimidade dos arcabouos dentro dos quais a arte

    criada:

  • 31

    (...) a contextualizao antropolgica representa no uma explicao tediosa de costumes exticos que compete com a pura experincia esttica, e sim um modo de expandir a experincia esttica para alm da nossa linha de viso estreitamente limitada pela cultura. (...) A contextualizao no mais representa uma pesada carga de crenas e rituais esotricos que afastam da nossa mente a beleza dos objetos, e sim um novo e esclarecedor par de culos. (PRICE, 2000: 134).

    A construo do instrumental metodolgico para a percepo da arte corporal Xavante

    deve incluir uma discusso profunda do seu ambiente social e histrico com investigaes

    acerca da natureza dos indicadores estticos especficos dentro dos quais se mantm viva. Ou

    seja, como argumenta Isabela Frade, atravs de uma intra-esttica no no sentido usado por

    Geertz quando critica os estudiosos que tratam as manifestaes artsticas como se

    pertencessem a uma nica categoria mas quando se apropria do termo (intra-esttica) no

    sentido de explicitar que cada grupo social constri seu discurso artstico que legitima uma

    forma criando categorias prprias de eleio e fruio esttica.

    Adotei como base terica e metodolgica uma anlise comparativa entre o que foi

    interpretado por grandes pesquisadores da cultura Xavante e a minha experincia de campo

    vivenciada na Terra Indgena Sangradouro Aldeias Sangradouro e Abelhinha, localizada no

    Estado do Mato Grosso, realizada no ms de julho de 2005. Dentre os trabalhos

    antropolgicos, nos quais se encontra esta orientao metodolgica, as publicaes das

    pesquisas de campo de Giaccaria (1972; 2000), Maybury-Lewis (1984) e Regina Muller

    (1976; 1979; 1992) so usadas como principais referncias deste estudo.

    O proco Bartolomeu Giaccaria, nascido no norte da Itlia, veio para o Brasil em 1954

    em atividade especfica dos missionrios no anncio do Evangelho e na celebrao da

    memria de Jesus Cristo. Em final de 1956, foi transferido para a Misso Salesiana

    Sangradouro encontrando um grupo de Xavante que l havia chegado, em fevereiro de 1956.

    Encarregado de trabalhar diretamente com o grupo indgena, tanto na Misso de Sangradouro

    como na de So Marcos, localizadas no Estado do Mato Grosso, seu propsito, alm da

    evangelizao, foi preservar a cultura indgena na escola. Giaccaria fez uma primorosa coleta

  • 32

    de material nativo, recolhido por ele para fins didticos. Sua primeira preocupao foi

    procurar conhecer a lngua e encontrar uma grafia para escrev-la. As anotaes daquele ano e

    dos anos sucessivos resultaram na publicao do livro Xavante, Povo Verdadeiro, de

    Giaccarria e Heide (1972). A publicao rica em informaes etnogrficas sobre cerimnias,

    rituais e os mitos de criao do povo Xavante.

    Em fevereiro de 1958, o antroplogo Maybury-Lewis, numa viagem preliminar de

    reconhecimento junto aos Xavante, viajou pela Fora Area Brasileira, ao posto do Servio de

    Proteo aos ndios em So Domingos, no Rio das Mortes. Em abril desse mesmo ano,

    acompanhado por sua esposa e filho de um ano, deu incio ao seu trabalho de campo.

    Inicialmente, foram hospedados em uma casa junto ao posto. Porm, aps algumas promessas

    de distribuies de presentes, j que esses Xavante haviam se acostumado a serem cortejados

    desse modo, acomodaram-se em uma casa construda (pelos indgenas) especialmente para

    sua famlia, na aldeia.

    A pesquisa que desenvolveu faz parte de uma investigao comparativa sobre as

    sociedades indgenas do Brasil Central na tentativa de compreender a organizao dual dos J

    Centrais, que so constitudos pelos Xerente de Gois e Xavante do Mato Grosso, tambm

    conhecidos como grupos Akw. O trabalho lida com questes colocadas por Lvi-Strauss em

    uma srie de trabalhos relativos s sociedades indgenas do Brasil Central sob a forma de uma

    anlise estrutural. Maybury-Lewis, no entanto, no se prende exclusivamente a categorias

    culturais cls, linhagens, classes de idade, grupos cerimoniais , mas procura relacion-las a

    regras sociais e padres de ao que permeiam o pensamento Xavante. Essas categorias

    culturais revelam dicotomias presentes em todos os nveis em termos dos quais se processa

    toda a discusso das relaes da comunidade.

    A pesquisa de campo da antroploga Regina Mller resultou na dissertao de Mestrado

    apresentada em 1976 Universidade Estadual de Campinas UNICAMP sob o tema A

  • 33

    Pintura Corporal e os Ornamentos Xavante: Arte Visual e Comunicao Social. Mller

    iniciou seu trabalho de campo em 1972, nas aldeias de Sangradouro e So Marcos, localizadas

    no Estado do Mato Grosso, junto s quais existia a Misso Salesiana que cuidava da educao

    das crianas e jovens das aldeias. Alm de freqentarem as aulas (alfabetizao e doutrina

    catlica), os jovens trabalhavam na roa da misso e na usina de acar, beneficiamento do

    arroz e limpeza das dependncias da misso. Os jovens, que moravam na misso,

    participavam tambm dos rituais e cerimnias da aldeia. A autora observou que a realizao

    de alguns rituais e cerimnias seguia algumas restries dos missionrios, por contradizerem a

    moral crist ou costume dos brancos em relao, por exemplo, ao casamento de um homem

    com mais de uma mulher ou s relaes sexuais fora do casamento, em certos rituais.

    Os missionrios, segundo Mller (1976), incentivavam a realizao das festas porque

    uma coisa bonita, uma brincadeira sadia, devendo-se preservar o que deles. Observou

    tambm que, algumas cerimnias, tinham o carter de demonstrao em ocasio de visita de

    algum estrangeiro, revelando-se assim, um carter de obrigatoriedade nos cerimoniais.

    Obrigatoriedade imposta pelos brancos e tambm por parte dos velhos da aldeia.

    A pesquisadora teve oportunidade de assistir cerimnias na aldeia que no tinham o

    objetivo de demonstrao para os brancos. Desse modo, elaborou sua primeira hiptese

    no trabalho de pesquisa: a pintura corporal Xavante utilizada pelo grupo como cdigo

    simblico na socializao dos indivduos e a comunicao de mensagens referentes ordem

    social.

    Seu trabalho de campo foi realizado, tambm em 1974, nas aldeias de Arees,

    localizada prxima cidade de Xavantina, em Mato Grosso e Rio das Mortes, conhecida

    tambm por Pimentel Barbosa, localizada aproximadamente a 200 km dessa mesma cidade.

    Em 1976, com objetivo de complementar dados referentes ornamentao corporal, visitou as

    aldeias de Couto Magalhes e Culuene, tambm no Estado do Mato Grosso, junto s quais

  • 34

    existia um posto da FUNAI 7 e onde os ndios no eram educados sistematicamente. Mller

    (1976) observou que as ornamentaes corporais, usadas como cdigo simblico, nessas

    ltimas aldeias, so realizadas independentemente de uma poltica educacional desenvolvida

    por brancos.

    De acordo com uma metodologia baseada na Lingstica, que consiste em isolar

    unidades ou elementos visuais atravs de uma anlise estrutural, a autora adota um

    procedimento classificatrio de anlise, que tem como objetivo geral demonstrar que a arte,

    como qualquer outro sistema de linguagem, usada pelos homens para ordenar e classificar a

    realidade, como processo cognitivo bsico de apreenso de seu universo. Mller (1976)

    conclui que a ornamentao corporal Xavante como linguagem simblica e manifestao

    esttica ou arte visual serve como exemplo para essa afirmao.

    Em maio de 2005 iniciei o processo para a efetivao da pesquisa etnogrfica na TI

    Sangradouro. Tinha conscincia de que o trabalho de campo no seria fcil, pois o tempo era

    restrito, a distncia grande, e a coleta de informaes dependeriam da aceitao de minha

    presena em territrio alheio.

    A fim de viabilizar a pesquisa de campo, recorri FUNAI para adquirir a necessria

    autorizao de entrada no territrio indgena. Como esse rgo governamental encontrava-se,

    na poca, com suas atividades paralisadas, em virtude de uma greve dos funcionrios, dirigi-

    me a uma organizao indgena que trata dos interesses de algumas aldeias Xavante.

    Estabeleci contato com a Associao War8, enviando o projeto de pesquisa via e-mail

    solicitando apoio para realizao do mesmo. O presidente da Associao, Hiparidi Toptiro,

    Xavante da Aldeia Abelhinha, respondeu-me, dizendo haver interesse na realizao da

    pesquisa, porm, era necessrio conhecer-me pessoalmente para maiores detalhes e

    7 FUNAI Fundao Nacional do ndio rgo do governo brasileiro responsvel pelo estabelecimento e execuo da Poltica Indigenista no Brasil, dando cumprimento ao que determina a Constituio de 1988. 8 Entidade sem fins lucrativos, criada em 1997, localizada em So Paulo, presidida pelo Xavante Hiparidi Toptiro e constituda pelo povo A'uw-Xavante da aldeia Idz'uhu, que significa Abelhinha.

  • 35

    informaes. Questionou-me tambm se era corajosa para enfrentar o desconhecido; disse-

    lhe que estava disposta a tentar.

    Em junho de 2005 fui para So Paulo realizar os devidos reconhecimentos. Hiparidi

    (Figura 10) explicou que a Associao, como forma de resguardar os direitos de imagem e

    publicaes a respeito de sua cultura, havia criado normas e regras para pesquisadores e

    visitantes, atravs da assinatura de um contrato de parceria entre as partes interessadas.

    Apresentou-me um cdigo de tica, que determinava o modo de proceder nas Aldeias

    Sangradouro e Abelhinha, situadas na Terra Indgena Sangradouro, no Estado do Mato

    Grosso. A Aldeia Sangradouro localiza-se prxima Misso Salesiana, esta situada a um

    quilmetro da rodovia BR-070, que liga a cidade de Primavera do Leste a Barra do Garas, e

    a Aldeia Abelhinha, a dezoito quilmetros cerrado adentro, no mesmo territrio. Falou

    tambm de uma taxa estipulada para a realizao da pesquisa atravs de um contrato (Anexo

    1) fato esse que me causou estranhamento. Entretanto, como no conhecia outra forma de

    adentrar em territrio Xavante e relembrando a greve da FUNAI, paguei a taxa de cinco mil

    reais estipulada e assinei o contrato no escritrio do advogado da Associao.

    Figura 10 Hiparidi na Associao War. Foto: Cristina R. Campos 2005. Fonte: Arquivo particular.

  • 36

    Mais tarde, avaliando melhor o fato e recordando-me das palavras do Ashaninka Benkiy

    Bianco, quanto ao adeus que os pesquisadores davam aps conseguirem material para suas

    teses, conclu que, cansados de serem explorados, essa seria uma forma de se precaverem de

    futuros danos ticos. Munida de muita coragem e desprendimento, lancei-me em direo

    ao outro, acreditando na possibilidade de me exercitar na construo do espao relacional e

    dialgico que possibilita o reconhecimento da alteridade.

    Acompanhada de meu marido Junior Ricchetti9, encaminhei-me TI Sangradouro. No

    dia 14 de julho de 2005, s 20 horas, iniciamos nossa viagem, de avio, at Vargem Grande,

    municpio vizinho a Cuiab e, posteriormente, de nibus, at a cidade de Primavera do Leste.

    Na rodoviria da cidade, aguardamos o Xavante Tseredzar10 que, de acordo com Hiparidi,

    ficaria como nosso intrprete e acompanhante durante o tempo de permanncia na Aldeia

    Abelhinha, onde ficaramos instalados.

    Chegamos ao nosso destino somente s 17h30min do dia 15 de julho de 2005. Aps

    algumas conversas com Tseredzar , percebi que o rapaz poderia ser um informante-chave,

    pois bastante comunicativo e interessado nas questes atuais vivenciadas por sua

    comunidade. O rapaz, custeado pela Associao War, participa constantemente de cursos de

    capacitao preservao do cerrado, controle de natalidade, informtica, apicultura (Figura

    11) tornando-se assim, um intermedirio entre a tradio dos costumes indgenas e as

    inovaes do mundo atual. Acredita que com alguns critrios discutidos previamente na

    aldeia a modernidade pode trazer benefcios ao seu povo.

    9 Junior era encarregado do suporte logstico da pesquisa de campo cozinhava, recolhia lenha. Em alguns momentos necessitei recorrer sua ajuda para fotografar situaes que aconteceram em locais no permitidos s mulheres. 10 Tseredzar, da Aldeia Abelhinha, tem 23 anos, sobrinho de Hiparidi, cursa o Ensino Mdio na cidade de Primavera do Leste e, aos finais de semana, retorna aldeia para cuidar de sua criao de abelhas e participar da rotina de sua aldeia.

  • 37

    Figura 11 Tseredzar trabalhando na apicultura. Foto: Cristina R. Campos 2005. Fonte: Arquivo particular.

    Fomos recebidos pela aldeia com muito carinho e curiosidade, principalmente pelas

    crianas, que acompanhavam todos os movimentos de ambientao e acomodao. No

    entanto, nossa comunicao ocorria somente atravs de gestos, pois no entendem e nem

    falam portugus.

    Tseredzar nos encaminhou ao Ri11, para que nos acomodssemos e avisou que noite

    deveramos nos apresentar comunidade. Nossa moradia provisria era equipada com um

    fogo a lenha, uma mesa grande e algumas mesas e cadeiras escolares que empilhamos em

    um canto. Conforme orientaes de Hiparidi, levamos alimentos no perecveis (macarro,

    arroz, carne seca, biscoitos, queijo, gelia, margarina), sacos de dormir, velas, lanterna,

    repelente, pastilhas de cloro para colocar na gua de beber e papel higinico. Esse

    equipamento nos serviu para as duas semanas em que estivemos na aldeia. Dormamos em

    sacos de dormir; comamos o que cozinhvamos; lavvamos nossa loua num balde;

    tomvamos banho no rio e nos dias mais frios esquentvamos uma gua para o banho de

    11 Moradia Xavante. Essa moradia em que ficamos reservada especialmente aos visitantes-pesquisadores e, no perodo letivo, tambm utilizada como escola.

  • 38

    caneca; fazamos nossas necessidades fisiolgicas em um banheiro desativado (sem descarga

    e chuveiro) na escola e noite usvamos, assim como eles, um cantinho prximo ao Ri.

    Diariamente, aps a reunio noturna, registrava no caderno de campo, luz de velas (Figura

    12), as conversas, os depoimentos e impresses que eram colhidos durante o dia, construindo

    assim, um modo de documentar o tempo de convivncia com os Xavante.

    Figura 12 Foto-montagem do cotidiano da pesquisadora. Fotos: Cristina R. Campos e Junior Ricchetti 2005. Fonte: Arquivo particular.

    noite, ao redor da fogueira, aps alguns minutos de conversa entre os homens da

    aldeia, apresentei-me com as devidas identificaes, falei do projeto de pesquisa e da estrutura

    necessria para a realizao da mesma, incluindo a observao e documentao da corrida do

    Nni uma das fases do ritual Danhn que estava acontecendo nesse perodo.

    Um problema surgiu. Como o ritual estava acontecendo na aldeia vizinha de

    Sangradouro, disseram que a documentao e observao poderiam acarretar mais despesas,

    pois a comunidade cobraria os direitos de imagem e depoimentos do ritual. Tseredzar

    intercedeu por ns e disse que a Associao War havia nos garantido essa cobertura, prevista

    no contrato assinado em So Paulo. Aps vrias conversas entre eles, o Sr. Ado12, que

    12 Sr. Ado o homem mais velho da aldeia e por sua sabedoria e experincia tambm o mais respeitado.

  • 39

    presidia a reunio, deu o parecer final dizendo que poderamos documentar o ritual, mas com

    algumas restries:

    Que fotografssemos somente os jovens da Aldeia Abelhinha, que estavam l

    participando do ritual Danhn;

    Que no ficssemos circulando pela aldeia, restringindo-nos aos familiares que

    moravam l;

    Que entregssemos a filmadora ao Xavante Cezar (que est engajado no projeto de

    documentar os rituais Xavante) para realizar a filmagem, pois alm de exercer a

    profisso evitaria maiores constrangimentos na aldeia;

    Que no dssemos dinheiro para ningum, pois um hbito de Sangradouro pedir

    pequenas quantias aos warazu13 que eventualmente encontram fato esse no aprovado

    por eles;

    E que no comentssemos com ningum sobre o contrato.

    Compreendi que o dinheiro que havia pagado Associao no me garantiria o bom

    desenvolvimento da pesquisa, sendo necessrio um grande trabalho de conquista diria com

    os moradores da aldeia, atravs de conversas informais e observaes silenciosas.

    Diariamente sentava-me com eles pela manh em baixo da mangueira, onde se reuniam

    para produzirem os paramentos cerimoniais que compe o ritual (Figura 13). Eventualmente

    trocvamos algumas palavras. Ia, aos poucos, conquistando-os, chegando at mesmo a ser

    convocada pelo Sr. Ado, em horrio diferente da programao, para me apresentar uma

    mscara que estava sendo confeccionada naquele momento. Toda conversa era antecedida e

    precedida pelos tradutores Tseredzar e Rmulo14, pois eles, apesar de alguns entenderem e

    falarem o portugus, dialogam somente na lngua materna: A'uw-Xavante.

    13 Warazu um termo que usam para designar o indivduo no-ndio, o estrangeiro. 14 Rmulo professor da escola na aldeia e irmo de Hiparidi.

  • 40

    Figura 13 Produo na Aldeia Abelhinha 15. Foto: Cristina R. Campos 2005. Fonte: Arquivo particular.

    Como combinado no war, observei e documentei a corrida do Nni, inserida no

    contexto do ritual Danhn, que nessa ocasio estava realizando-se na Aldeia Sangradouro.

    Conversando com Tseredzar sobre meu interesse em conhecer as diferentes pinturas

    corporais realizadas nos rituais, ele se prontificou em document-las atravs de desenhos

    (Figura 14), porm, pediu-me que os colorisse16, conforme suas orientaes. Tseredzar falou

    que a regio da genitlia no poderia ser colorida. Porm, mais tarde, quando apresentei esses

    modelos para a antroploga Regina Mller17, disse-me que a regio no pintada somente o

    rgo genital, e considerou que o espao nulo, destacado por Tseredzar, seja uma

    representao do short que usam atualmente.

    15 Rmulo preparando o fio de algodo, Sr. Ado tecendo a mscara, Catarina separando semente de capim navalha e Ailda enrolando o fio de algodo. 16 Apesar de conhecer o material hidrocor e lpis de cor disse que gostava muito de desenhar, mas que no tinha muita habilidade com as cores. 17 Atravs de Hiparidi, contactei a pesquisadora. Entrevistei-a em sua residncia Campinas, onde me esclareceu algumas questes e fomentou outras.

  • 41

    Produzimos treze modelos que resultaram num documento plstico miscigenado,

    empregado durante a pesquisa como fonte de consulta e anlise18.

    Figura 14 Modelos de pinturas corporais Xavante. Ilustrao: Tseredzar e Cristina R. Campos 2005.

    Este trabalho causou bastante entusiasmo na aldeia, contando com a curiosidade e

    participao de todos que comentavam, apreciavam e identificavam as pinturas falando das

    ocasies em que ocorriam. Destaco o carinho e amizade construda com a comunidade da

    Aldeia Abelhinha. Aprendi muito sobre respeito, dignidade, crenas, trabalho, tempo de ouvir

    e falar e outras questes que relatarei neste trabalho. Na despedida, Sr Batica me presenteou

    com um baquit19 (Figura 15) e Rmulo amarrou em meu pescoo (Figura 16) e braos, umas

    cordinhas de algodo e disse que era para ficar wdi20 para meu marido. Ganhei tambm da

    Sr Perina, de Sangradouro, uma gravata cerimonial (Figura 17) que usada nos rituais.

    18 Os desenhos sero explorados e identificados no corpo do trabalho. Os rascunhos desta produo e estudos de Tseredzar encontram-se no Anexo 2. 19 Baquit um tipo de bolsa com tamanhos e utilidades variadas, como por exemplo: para carregar os recm-nascidos, a caa , a colheita; para guardar sementes e atualmente para transportar roupas e objetos pessoais. 20 Segundo Hiparidi, wdi um elogio, para alegrar o outro; bonito. (HIPARIDI, 2006).

  • 42

    Figuras 15, 16 e 17 Pesquisadora e os presentes recebidos. Fotos: Junior Ricchetti 2005. Fonte: Arquivo particular.

    Aps a coleta de dados realizada na aldeia, mantive contato freqente com o informante

    Tseredzar, que me respondia atravs de e-mail as dvidas surgidas no decorrer no estudo, e

    com o informante Hiparidi, que alm dos encontros constantes em So Paulo, tive

    oportunidade de receb-lo em minha residncia (nos dias 13, 14 e 15 de junho de 2006 e 18,

    19 e 20 de janeiro de 2007). Estive presente, assistindo e documentando a apresentao que os

    Xavante da Aldeia So Marcos21 realizaram na cidade de Barra do Garas, em julho de 2005,

    no evento cultural promovido pela prefeitura. Complementei dados da pesquisa com

    entrevistas e observaes durante cinco dias com os rapazes da Aldeia Abelhinha em abril de

    2006, ocasio que participaram de um projeto educativo realizado em virtude da

    comemorao do Dia do ndio. A pesquisa de campo realizou-se entre a aldeia e a cidade, o

    que j era previsto, pois os Xavante tm freqentemente participado de eventos culturais,

    sociais e polticos deslocados do espao tradicional de apresentao. O tempo na aldeia

    apenas detonou o processo de aproximao que, apesar de intenso e denso, foi curto, mas a 21 A aldeia localiza-se prxima cidade Barra do Garas, Estado do Mato Grosso

  • 43

    continuidade com o trabalho de campo deu-se mesmo distncia.

    No decorrer desta dissertao, dialogo tambm com outros pesquisadores, autores e

    antroplogos que contriburam para o entendimento das estrutur