o corpo da liberdade - "como manifesto, um pouco"

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o corpo da liberdade Jorge Coli

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Ensaio "Como manifesto, um pouco", do livro O corpo da liberdade (Cosac Naify, 2010), de Jorge Coli.

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o corpo da liberdade Jorge Coli

Jorge Coli é um dos grandes estudiosos da arte ocidental do século xix. Suas reflexões revelam uma capacidade não apenas de analisá-la mas tam-bém demonstram sua consciência crítica, aspecto que é uma das exigências de “Manifesto, um pouco”, o ensaio que fecha o livro: “necessitamos de um constante controle, implacável, dos nossos conhecimentos”. Com tal con-vicção da não-convicção o autor estimula o leitor a participar de transcursos culturais mais amplos em uma aventura intelectual que rompe com certezas, oferecendo análises surpreendentes e levantando questões cuja intenção é o posicionamento ante uma ética humanista. O corpo da liberdade abre espaço para uma reflexão no sentido warburgiano ao debater a relação entre cria-tividade e liberdade, categorias funda mentalmente históricas. Ou, nas pala-vras do próprio autor: “Não existem melhores lições do que as da história, a liberdade nas artes dentro delas deixa de ser um mito emocional ou teó-rico a ser alcançado fora do gesto artístico para tornar-se exatamente um resultado desse gesto.”

O século xix marca o início da história da arte como disciplina. A presen-te obra fornece ao leitor um caleidoscópio de análises e reflexões acerca de objetos artísticos e suas implicações políticas, sociais e culturais. Em catorze ensaios sobre as artes francesa e brasileira oitocentistas, o autor imerge em um período que, com suas constantes querelas morais, pode parecer mui-to distante da cultura do século xxi; seus debates fundantes da cultura oci-dental, porém, asseguram sua atualidade. Tanto em sua cronologia como na metodologia utilizada, Coli jamais deixa o leitor perder de vista o fio condutor que torna compreensíveis os desdobramentos artísticos. Através de uma iconografia política sutil, ele prescinde de explanações meramente esquemáticas, revelando os aspectos histórico-políticos das obras analisa-das e valorizando tanto suas qualidades inerentes quanto sua materialida-de. A partir de obras-primas de artistas como Delacroix, Ingres, Courbet e Manet ele desenvolve com grande sensibilidade uma desconstrução perspi-caz, a qual permite perceber a complexidade da cultura e suas peculiaridades e perspectivas múltiplas. O autor enriquece suas reflexões com passagens de Charles Baudelaire, Edgar A. Poe e Walter Benjamin, associando em seus escritos forma e conteúdo. A cultura contemporânea encontra-se nos excursos cinematográficos que Coli explica efetivamente, registrando as similitudes com a cultura visual do século xix.

jens baumgarten

jorge coli nasceu em Amparo (sp) em 1947. Cursou filosofia na Universidade de São Paulo. Formou-se em História da Arte e Arqueo-logia pela Universidade da Provença, onde fez seu mestrado sob a direção de Jean-Jacques Gloton. Na mesma universidade, especia-lizou-se também em História do Cinema. Doutorou-se em filoso-fia pela Universidade de São Paulo em 1990, com a tese “O mundo musical de Mario de Andrade”, orientada por Maria Sylvia de Car-valho Franco. Foi professor visitante nas Universidades de Princeton, Paris i e Osaka. É autor de, entre outros, Van Gogh (1985), Música final (1998), A paixão segundo a ópera (2003), Ponto de fuga (2004) e L’Atelier de Courbet (2007). É professor titular em História da Arte e da Cultura no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Uni-versidade de Campinas.

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A extraordinária complexidade da cultura determina problemas sérios para discorrer sobre ela. Porque não pode ser concebida de modo uní-voco, nem em mão única, nem como instrumento.

Talvez fosse bom começar por estabelecer algumas configura-ções. Não faz muito tempo, dizia-se repetidamente que “tudo é cultura”. Comida é cultura, futebol é cultura, sapato é cultura. Essa definição larga deriva de um sentido antropológico: toda produção, material ou imaterial, é sem dúvida cultura, e isso permite que análises sejam feitas para uma compreensão dos modos como uma sociedade se constitui e age.

No entanto, ao dizer “sapato é cultura”, eu não estou repetindo a evidência de que os sapatos fazem parte da cultura de tal ou qual socie-dade. Isto seria um truísmo, uma verdade que não precisa ser enunciada. Eu a enuncio, porém, insisto na afirmação, e, ao fazê-lo, introduzo uma ambiguidade. A ambiguidade surge porque a ideia de cultura tem um outro sentido, elevado. Ela se refere à constituição de um conjunto com-plexo de conhecimentos, de reflexões, de criações intelectuais e artísticas. Dessa maneira, a filosofia é cultura, por exemplo. Futebol, não. Assim, ao afirmar “sapato é cultura”, “futebol é cultura”, “comida é cultura”, eu estou sugerindo que eles são tão nobres e tão complexos quanto a filoso-fia, a história, a arquitetura, os romances ou as sinfonias.

Portanto, antes de prosseguirmos, é preciso evitar essa ambiguidade que possui um caráter demagógico, de falso “enobrecimento”. Sapato é um elemento do vestuário; futebol é um esporte; comida, por mais sofisti-cada, é uma exigência física de sobrevivência. Eles podem entrar no campo da cultura, se estiverem num filme, se forem motivo para um quadro ou

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inspiração para um poema. Mas por si mesmos não devem ser chamados de cultura, a não ser naquele sentido antropológico primeiro. Interessa-nos aqui a segunda significação da palavra, e é melhor não confundir os dois níveis, sob pena de criar equívocos nocivos às possibilidades reflexivas.

Uma vez que delineamos esses limites, seria interessante interrogar alguns aspectos de tais formas culturais complexas e os modos com os quais convivemos com elas.

Cabe aqui uma pergunta. A cultura melhora o ser humano? Inter-rogação que parece impertinente por causa de sua evidência nítida: claro que sim!, seríamos tentados a responder sem pensar. Mas, justamente, é melhor refletir um pouco.

Thomas Harris, escritor norte-americano, criou, numa série de livros, um personagem de grande inteligência, cultura sofisticada, que era também um monstro assassino: o dr. Hannibal Lecter. O dr. Lecter ficou muito célebre por causa do excelente filme de Jonathan Demme, de 1992, que mereceu vários Oscars e é absolutamente aterrador: O silêncio dos inocentes. Lecter, o antropófago violento e cruel, voltou depois à tela várias vezes e conheceu desdobramentos em romances diversos.

Dr. Lecter é um homem muito requintado, alguém que preza a grande cozinha, é um historiador da arte de alto nível, tem conhecimen-tos profundos sobre pintura, escultura, arquitetura do Renascimento e da Idade Média. É fino apreciador de música sinfônica (num dos fil-mes da série, realizado em 2001 por Ridley Scott, o dr. Lecter começa devorando o rim do flautista desafinado de uma orquestra!). O fato de ser senhor de uma grande cultura requintada não o impede de cometer as piores atrocidades.

Ele não é o único. Sobretudo nos Estados Unidos, cuja mentalidade pragmática desconfia das sofisticações culturais, esse tema volta com fre-quência na literatura, no cinema, no teatro. Se alguém é culto, é porque há algo de errado com ele: alguma perversão sórdida, algum impulso assassino, alguma crueldade indizível deve se aninhar, escondida, nessa alma. Cultura não cheira bem.

Richard Wagner foi um dos grandes gênios musicais da história, criador de longas e magníficas óperas heroicas, amorosas e espirituais.

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Seu mundo denso exige concentração, interesse, dedicação de tempo para que possa ser explorado e amado. Ora, Richard Wagner foi compositor celebrado pelos nazistas, que fizeram de sua Cavalgada das Valquírias um motivo guerreiro destinado a exaltar o ânimo ariano conquistador de povos. Os nazistas, que criaram campos de concentração pavorosos, que trucidaram milhões de homossexuais, de ciganos, de comunistas, de judeus, veneravam a música admirável de Wagner. Percebiam nela uma justificação emotiva para os horrores que cometiam – e que, está claro, eles próprios não sentiam como horrores.

Basta levantar esses poucos exemplos, que poderiam se multipli-car infinitamente, para percebermos que responder à questão “a cultura melhora o ser humano?” está longe de ser simples, e que a dimensão da violência não é eliminada pela sofisticação da sensibilidade ou do pen-samento. Como disse no início, nos Estados Unidos – mas não apenas lá – com frequência a resposta está longe de ser positiva. Ao contrário, muitas vezes temos a impressão, em retratos diversos, de que a cultura corrompe uma certa pureza de alma, uma energia espontânea. Pode ser vista como sintoma de deliquescência, de decadência, de enfraquecimento. Parece surgir onde há falta de energia, de vitalidade, de virilidade. Muita gente, por sinal, teme a cultura para seus filhos homens. Menino deve jogar futebol e não ficar lendo livro, ouvindo ópera, indo ver exposição de pintura. É mau sinal. Quantos pais aceitam tranquilamente a vontade de um garoto em estudar balé – forma cultural particularmente crivada pelos preconceitos sexuais?

Não, cultura, coisa boa não é. Além dessas características deletérias, há uma outra que persiste desde a Revolução Francesa. Cultura, atri-buto de gente privilegiada, requintada e decadente, traz uma inevitável marca de classe. No mínimo, é preciso condenar essa forma degenerada, transformá-la, regenerá-la por valores positivos, num conflito de classes. Isto se espelha no jogo, que muitos proclamam, entre “cultura das elites” e “cultura popular”, ou “alta cultura” e “cultura de massa”. Esses con-ceitos são sem dúvida classificatórios, mas são, sobretudo, preconceitos, carregados de ódios e amores instintivos e irracionais. Eles se alimen-tam de sentimentos apaixonados e impedem uma reflexão aprofundada.

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Como manifesto, um pouco

A “cultura de massa” é desprezada como “entretenimento”; ou manifesta-ções consideradas como “populares” são altamente valorizadas; qualquer manifestação complexa, que faz parte das grandes tradições culturais do Ocidente, é sentida com desconfiança e condenada: tudo depende em que campo cultural o crítico se instala.

Assim, a cultura, que de início parecia tão evidentemente positiva para um pensamento incauto, toma cores assustadoras. Ela surge como manifestação perversa de classe e como manifestação perversa de indi-víduos. Ela significa perda da inocência em sentido pleno: perda da ino-cência que oferece a ignorância (a criança é inocente, o adulto não, por-que tem conhecimento e consciência; Adão e Eva eram inocentes antes de comer o fruto da árvore da sabedoria); perda da inocência, porque o saber, a cultura, é um crime, e criminosos não são inocentes.

No entanto, qualquer um que tenha lido um romance com um mínimo de interesse, ou que tenha descoberto Picasso, Beethoven, ou que tenha procurado escrever um poema, pintar alguma coisa, sabe que as experiências oferecidas pela cultura modificam o espírito e que, de algum modo, o melhoram. Elas abrem portas para mundos complexos, permitem o que poderia se chamar de “desenvolvimento da intuição”. Intuição é esse modo sem palavras de compreender fenômenos e situa-ções. Tais experiências levam também a uma complexidade da fruição e do prazer.

Como, então, conciliar duas feições tão contraditórias? O aspecto deletério e o aspecto benéfico? O instrumento de classe e a liberação do espírito? A violência e a fruição?

Por mais sofisticada que seja a cultura, por mais requintada que suas formas possam se manifestar, é preciso um pequeno elemento que o Oci-dente foi capaz de produzir, e que muda as configurações.

“Ciência sem consciência é apenas ruína da alma”, escrevia Rabe-lais no período do Renascimento. Ciência, na época, não tinha o mesmo sentido de hoje: queria dizer conhecimento, saber. A palavra consciência, por sua vez, é formada de dois elementos: com + ciência. Pressupõe-se portanto que algo deve acompanhar a ciência, ou seja, o saber. Quando Rabelais diz que a ciência deve ser “com ciência” parece formular um

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pleonasmo, mas não: diz apenas que o saber deve ser acompanhado pelo saber do saber. Que o saber sozinho não permite uma postura do espírito capaz de examinar as características e as consequências desse próprio saber.

Este ponto é essencial. No entanto, formulado assim, ele torna-se por demais abstrato e pode transfigurar-se numa forma “inconsciente” da consciência. Quero dizer o seguinte: não basta proclamar que é preciso ter consciência. Ainda hoje, nas universidades, com muita frequência emprega-se a palavra “crítica” como sinônimo de exame minucioso dos saberes e dos comportamentos. É preciso ter “consciência crítica”, diz-se, reforçando a ideia de que necessitamos de um constante controle, implacável, dos nossos conhecimentos.

Ocorre que as palavras possuem poderes traiçoeiros, para além dos nossos desejos. Percebemos que é preciso examinar o conheci-mento que temos, o saber, as formas de praticar a cultura, para não cairmos em preconceitos, em reações mecânicas, automáticas, condicio-nadas por convicções sumárias. Inventamos palavras para essas atitu-des salutares e necessárias. Mas, justamente, essas palavras passam a existir de maneira opaca e, ao invés de revelarem problemas, crises, defeitos, passam a confortar, oferecer segurança e certezas. Posso ficar tranquilo em não errar, em não cair na esparrela da ingenuidade por-que sou “consciente”. Não temo desvios do saber, do raciocínio e da fruição porque sou “crítico”.

Portanto, essas palavras, que pareciam prenhes de poderes irredu-tíveis de exame e de interrogações, passam a funcionar como mantra ilusório, como vocábulo encantatório, que me tranquiliza.

Infelizmente, não basta dizer “sou crítico” ou “sou consciente” para, de fato, o ser. A repetição dessas palavras, muitas vezes, ao contrário, serve para esconder a ausência de crítica e de consciência. Os nazistas consideravam-se “conscientes” – tinham consciência de que os arianos eram uma raça superior e, para tanto, apoiavam-se em teorias tidas como científicas. Hannibal Lecter é um personagem lúcido, e essa lucidez tem um poder de despertar simpatia no leitor e no espectador. O mundo é percebido de modo tão absurdo e sórdido que, por isso mesmo, suas ati-tudes criminosas encontram uma justificação.

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Como então abarcar esse problema que parece escapar por todos os lados? Como vencer a abstração e as boas intenções ineficazes? Como fazer com que o conhecimento, a erudição (palavra, também essa, car-regada de preconceitos, que é percebida, tantas vezes, de maneira nega-tiva, como um acúmulo de conhecimentos esdrúxulos, mais ou menos inúteis, como postura falsamente inocente, na verdade cúmplice de con-figurações ideológicas, na verdade vítima de incompreensões sumárias), como fazer com que essas formas complexas da cultura vivam conju-gando, de fato, ciência e consciência, seguindo as intenções de Rabelais?

Encontrar a postura justa é essencial. Por si só, já vimos, a cultura não elimina os piores comportamentos, os preconceitos mais cruéis, a violência. Que alguém seja culto ou inculto, não importa, essas pulsões indesejáveis permanecem para além do conhecimento, da fruição sofis-ticada que as obras de arte proporcionam, da erudição mais profunda e minuciosa.

É necessário incorporar em nosso modo de ser alguns procedimen-tos que impeçam as noções de crítica e de consciência de se esvaziarem. O primeiro ponto, que uma percepção da complexidade própria ao fenô-meno cultural evidencia, é que nada pode ser considerado como adqui-rido, definitivo, verdadeiro. No campo da cultura, noção de verdade é a grande inimiga. Noção nem é o pior: “sensação” de verdade é ainda mais perigoso. Um tal sentimento assegura, resiste ao exame “crítico”, propulsa ações convictas, por isso mesmo enérgicas, eficazes, de alcance coletivo, mas que vêm geminadas ao autoritarismo: se eu tenho a verdade, possuo algo de ilusoriamente objetivo, que deve se impor não apenas a mim, mas a todos. Não há, de fato, a minha verdade: a verdade é sem-pre universal, e, evidentemente, deve apresentar-se como a mesma para todos. Se eu tenho a verdade, aquele que possui algo diverso dela, está, forçosamente, no erro e na mentira.

A cultura se constitui por uma rede complexa, e uma noção simples como a de verdade a simplifica e desnatura. Está claro, todos procede-mos por determinantes de convicções que se aproximam bastante da noção e do sentimento de verdade. Mas nessas convicções a noção de erro, a possibilidade do engano, da incompletude devem estar sempre

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presentes. As justas jurídicas, os debates políticos (ou mesmo culturais) funcionam quase sempre como um torneio em que o objetivo é ganhar. Empregam-se efeitos de eloquência, astúcias de todo tipo, para vencer o adversário. Ora, nas relações que podemos estabelecer com a cultura, o debate deve ter não o sentido da concorrência e da vitória, mas a possi-bilidade de incorporar, ao nosso pensamento, coisas que nos escapavam. Melhor mudar de debate para diálogo.

Essa posição é muito mais difícil do que parece. Ela é, também, menos propulsora de ações enérgicas, porque menos, muito menos, uní-voca. Ela é, por assim dizer, desconfortável. Mas esse desconforto garante a dúvida, a necessidade sincera do exame, a sensação latente de que sem-pre é possível estar errado. A certeza não pode ficar órfã do incerto, sob pena de tornar-se tirânica.

Qualquer sentimento de conforto é nocivo no campo da cultura. Ele tranquiliza, assegura, garante. Tomemos, por exemplo, a palavra identi-dade, que, atualmente, é empregada com tanta frequência. Ela adquiriu força com os Estados modernos, que buscavam – e buscam ainda – interio-rizar em cada indivíduo o sentimento de pertencer a um país, a um grupo, embutindo assim o coletivo no singular. Criaram-se sensações comuns, semelhanças, criaram-se fraternidades pela raça, pela língua, pelos compor-tamentos, pela comida, pelas artes. É preciso, porém, ter sempre em mente que essas criações são artifícios, fabricações. Elas possuem o poder de diminuir as diferenças internas, que são indesejáveis quando se busca uma unidade coletiva. Por outro lado, as identidades nutrem-se, em sua gênese e em suas constituições plenas, de diferenças, mas em relação aos outros.

As identidades coletivas constroem-se assim pela afirmação do mesmo, que se opõe ao diverso. Elas determinam um nós que se diferen-cia, diverge, se opõe ao outro. A identidade cultural também é reconfor-tante. Sou alegre, carnavalesco e gosto de futebol porque sou brasileiro. Sou brasileiro porque gosto de futebol, porque sou carnavalesco e alegre. Esses traços caricaturais possuem um extraordinário poder de persuasão, constituem-se em “verdades”, que são, antes, crenças. As fronteiras entre os países são criações humanas, e não naturais. E as diferenças entre os países são crenças muito humanas, demasiado humanas.

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Se eu digo que “a diversidade cultural é parte da identidade nacional brasileira”, pressuponho, primeiro, que outras identidades nacionais que não a brasileira desconhecem a diversidade cultural ou, pelo menos, não no mesmo grau. Pressuponho também que existe uma identidade feita de diversidades e que, portanto, cada um possui, em si, essa diversidade coletiva. Se não possuir, não é brasileiro. Por fim, e pior, essa diversidade vem incorporada à identidade, portanto, o diverso se dissolve no uno e, dessa maneira, destrói a si próprio enquanto, porque passa a ser identi-ficador. Diversos, sim, mas desde que brasileiros e, portanto, idênticos.

A diversidade é essencial, mas ela não pode ser esvaziada de seu sentido, como podem ser as noções de consciência e de crítica assinala-das acima.

Anne-Marie Thiesse foi quem melhor desenhou as características desse processo em seu livro A criação das identidades nacionais:1

A nação nasce de um postulado e de uma invenção. Mas ela vive apenas pela adesão coletiva a essa ficção […] Os sucessos são o fruto de um pro-selitismo sustentado que ensina aos indivíduos o que eles são, exige deles o dever de se conformar a isso e os incita, por sua vez, a propagar esse saber coletivo. O sentimento nacional só é espontâneo quando ele foi perfeita-mente interiorizado; é necessário que ele tenha sido ensinado de antemão.

Assim, ao invés de assumir um conceito meio em moda, sem discutir, seria melhor perguntar se o princípio da identidade não elimina algumas pos-turas essenciais para uma ética reflexiva e crítica. Ao invés de determinar um caráter homogêneo para um grupo, ou seja, ao invés de determi-nar um “nós”, não seria melhor conceber os diversos grupos com quem eu tenho contato e, sobretudo, aquele ao qual eu “pertenço”, como um conjunto de diferenças, muito ricas? Buscar no meu semelhante aquilo que ele revela de dessemelhante em relação a mim, de maneira a me complementar, e de maneira a que eu possa, também, enriquecê-lo? Ou, naquele “outro” que parece tão diferente de mim ou de nós, que parece

1. Anne-Marie Thiesse, La Création des identités nationales. Paris: Seuil, 1999, p. 1.

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mesmo oposto – e, está claro, esse oposto descambando facilmente para antipático, hostil, inimigo – descobrir semelhanças e afinidades? Ao invés de dizermos: “Sou assim porque sou brasileiro”, ou “sou brasileiro por-que sou assim”, a inquietação mais funda vai dizer: “significa alguma coisa dizer que eu sou brasileiro?”, “a palavra brasileiro tem algum sen-tido, além daquele oferecido por uma construção histórica?”. E, antes de aceitar qualquer proposta de identidade ou integração, seja num país, ou num grupo, interrogar seriamente. Torcer para um time de futebol pode ser emocionante e divertido. Mas os jornais repetidamente noticiam com-portamentos de violência feroz das torcidas. Porque os procedimentos de identificação de si, de rejeição do outro foram concentrados, simplifica-dos, alimentaram ódios, frustrações, desesperos individuais que explo-dem na violência coletiva graças à ação dos sentimentos de identificação.

Basta percorrer, mesmo sumariamente, a história das maneiras como os brasileiros veem a si próprios, para perceber que esse espelho emitiu imagens diferentes ao longo do tempo. Quando o projeto de cons-tituir uma identidade para os habitantes do Brasil se afirmou no século xix, um dos traços constantes que se reconhecia nesses brasileiros era o de tristeza deliquescente, herdada da melancolia portuguesa, do banzo africano, da nostalgia indígena. “Três raças tristes”, dizia-se então, três povos “em exílio”, descorçoados, lentos, graves. “Cisma o caboclo na porta da cabana” cantava o poeta, e Villa-Lobos fazia brotar da “alma brasileira” uma música imensamente sentimental e triste. Isso foi verdade até os anos 190. Saímos da Segunda Guerra Mundial alegres, carnavales-cos, barrocos, cordiais, sambistas, embriagados de alegria de viver. Está claro que nenhuma das duas visões identitárias é verdadeira, nenhum povo é só triste, nenhum povo é só alegre: elas são fabricações, e são modelos míticos, que comportamentos coletivos impõem aos indivíduos.2

2. Por que teria ocorrido essa reviravolta? As razões ainda não foram estudadas. Elide Ru-gai Bastos, especialista de Gilberto Freyre, autora do notável Criaturas de Prometeu, tem uma hipótese, confiada oralmente ao autor e que espero não deformar muito no seguinte resumo. Gilberto Freyre, influenciado pela noção dicotômica de Ruth Benedict entre “po-vos apolíneos” e “povos dionisíacos”, pensou o Brasil nestes termos, e imaginou que os brasileiros estariam sob a égide dos segundos, graças aos aportes africanos, ricos de transes >

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Penso no Derrubador brasileiro [fig. 1], de Almeida Jr., pintado em Paris, a partir de um modelo italiano, de aspecto suficientemente exótico para passar por brasileiro, falso portanto, e tão verdadeiro porém. A ideia do “derrubador”, palavra difícil de traduzir em outras línguas, indica a função de desmatamento para as novas plantações, as novas roças. Pode-roso pela musculatura, indolente pela posição, ele remete aos trabalha-dores que Portinari pintou nos anos 190. A verdade do quadro está na identificação de um processo ao mesmo tempo social e econômico – a derruba – na força pictórica que impõe o personagem. O brasileiro do título torna-se, pela pintura, antes uma reflexão que uma identificação.

Penso em A cigana com o bandolim [fig. 2], de Corot, suprema obra-prima, que atualiza tradições do Renascimento para criar uma cigana, ou seja, um personagem exótico, diverso da parisiense “civilizada”. Retrato de fantasia, na verdade: Corot retoma uma fotografia do soprano Chris-tine Nilsson, sueca de grande beleza. A foto, da qual o quadro extrai a tensão do pescoço, a inclinação da cabeça, a sombra dos olhos, mostra a cantora com as flores e as fitas de Ofélia, da ópera Hamlet, de Ambroise Thomas – nem mesmo fantasiada de cigana! Não importa: a identidade construída dessa estupenda cigana, de cujo rigor geométrico nos contor-nos, nos volumes, o cubismo, Braque, Gris tirariam lições diretas, é um tecido imaginário mais verdadeiro que a verdade, mais real que o real.

A cultura foi instrumento de agentes ideológicos de toda ordem. A História ensina que, em consequência, não deve ser empregada como instrumento. Ela é uma rede intrincada, que necessita o respeito da com-plexidade, e não violência redutora instrumental e utilitária. Transfor-mações sociais se fazem com ou sem cultura, e a cultura pode ser domes-ticada, simplificada, empregada apenas como uma aparência para que

rítmicos. O impacto de Casa-grande e senzala teria contribuído fortemente para a mudança da “identidade” brasileira. Na ausência, ou na minha ignorância, de um estudo aprofunda-do sobre a questão, esboçam-se apenas hipóteses. Elide Rugai Bastos promete um ensaio que exponha, com finura, o que resumi aqui. Lembro uma hipótese complementar: o mo-delo coletivo de exotismo rico em alegria de viver foi oferecido por Hollywood nos anos

190, graças à grande projeção de Carmen Miranda; trata-se provavelmente também de um espelho que devolvia uma imagem dionisíaca de um “espírito brasileiro”.

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essas transformações ocorram. Há aqui uma dimensão ética: a exigência de um comportamento desconfortável, difícil, mas o único que permite preservar a complexidade que faz a consciência da ciência algo além de um mero desejo incapaz de se realizar.

Em consequência, se queremos uma cultura que preserve a ideia de paz, necessitamos de um comportamento mental sempre em guerra, em guerra consigo mesmo, em guerra contra as certezas, em guerra contra as verdades, duvidando das convicções, interrogando, sem abdicar nunca, e sabendo que as respostas nunca virão de modo definitivo.