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21 [ ] 1 O Convento Ó, não nasça mulher, se quiser fazer as coisas a seu modo. Lucrécia de Medici N o dia 26 de maio de 1591, enquanto os gritos de sua esposa cortavam o ar, Sforza Maidalchini esperava impacientemente pelo nascimento de seu bebê. Tudo dependeria do sexo da criança. Teria de ser um menino, de qualquer maneira. Nascido por volta de 1560, Sforza era um homem de origem humil- de e sonhos grandiosos. Cresceu na cidade central italiana de Acquapen- dente, nos Estados Papais, um território com cerca de 1,5 milhão de ha- bitantes situado no terço central da península italiana e governado pelo papa como um monarca temporal secular. Olhando ao redor do mundo da Itália do século XVI, Sforza percebeu o escancarado abismo entre ricos e pobres, entre os que se banqueteavam e os que passavam fome. Rique- za, posição, prestígio — eram as únicas coisas que importavam. Quando jovem, o ambicioso Sforza obteve um emprego no depar- tamento de impostos de Viterbo, a capital da província. Sua tarefa era avaliar a propriedade e a renda dos fazendeiros e criadores de gado nos campos férteis além dos muros da cidade. Todos que eram alguém na cidade possuíam propriedades fora dela, trazendo seus próprios vegetais e sua própria carne em vez de comprá-los no mercado. O trabalho de

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O Convento

Ó, não nasça mulher, se quiser fazer as coisas a seu modo.

— Lucrécia de Medici

No dia 26 de maio de 1591 , enquanto os gritos de sua esposa cortavam o ar, Sforza Maidalchini esperava impacientemente pelo nascimento de seu bebê. Tudo dependeria do sexo da

criança. Teria de ser um menino, de qualquer maneira.Nascido por volta de 1560, Sforza era um homem de origem humil-

de e sonhos grandiosos. Cresceu na cidade central italiana de Acquapen-dente, nos Estados Papais, um território com cerca de 1,5 milhão de ha-bitantes situado no terço central da península italiana e governado pelo papa como um monarca temporal secular. Olhando ao redor do mundo da Itália do século XVI, Sforza percebeu o escancarado abismo entre ricos e pobres, entre os que se banqueteavam e os que passavam fome. Rique-za, posição, prestígio — eram as únicas coisas que importavam.

Quando jovem, o ambicioso Sforza obteve um emprego no depar-tamento de impostos de Viterbo, a capital da província. Sua tarefa era avaliar a propriedade e a renda dos fazendeiros e criadores de gado nos campos férteis além dos muros da cidade. Todos que eram alguém na cidade possuíam propriedades fora dela, trazendo seus próprios vegetais e sua própria carne em vez de comprá-los no mercado. O trabalho de

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Sforza o colocou em contato com os homens mais ricos, poderosos e bem-sucedidos da região — abastados latifundiários, políticos e merca-dores de Viterbo.

Embora em muitas cidades o coletor de impostos provavelmente não fosse muito popular, Sforza tinha um talento especial para granjear a amizade de pessoas influentes, de tornar-se encantador e indispensá-vel. Trabalhando incansavelmente, pouco a pouco subiu na hieraquia. Juntou dinheiro e foi promovido no emprego. Ao longo dos anos, seu prestígio aumentou na comunidade. Em 1590, recebeu o título hono-rário de castelão da Civita Castellana, uma antiga fortaleza perto de Viterbo, e foi colocado no comando da força militar nas cidades vizi-nhas de Sutri e Capranica.

Seu prestígio crescia continuamente, e o plano ambicioso que tra-çara para sua vida estava se desenrolando perfeitamente. Mas de que adiantaria todo esse esforço se não tivesse um filho que pudesse carre-gar seu legado no futuro? Somente um filho poderia fazer com que o medío cre nome de Maidalchini ressoasse com grandeza através dos séculos.

É verdade que Sforza já tinha um filho de sua falecida primeira esposa. Nascido em 1581, Andrea era o foco das ambições dinásticas do pai. Mas um filho não era o bastante para garantir a linhagem da família em uma sociedade em que aproximadamente 50% das crianças mor-riam jovens. Sforza sabia que deveria produzir um substituto para o papel de herdeiro da futura grandeza da família.

E, para fazê-lo, o promissor viúvo teria de encontrar uma esposa substituta.

Não precisou procurar muito. Seu patrão, Giulio Gualtieri, era um nobre de Orvieto, um povoado vizinho, a quem o governo dos Estados Papais, sediado em Roma, atribuíra o cargo de coletor de impostos da província. Em reconhecimento ao trabalho duro, aos hábitos frugais e às valiosas conexões de Sforza, Gualtieri lhe concedeu a mão de sua filha Vittoria com um generoso dote.

Para sua grande alegria, Sforza agora estava casado com a filha de um nobre e tinha no banco uma reconfortante pilha de dinheiro. Mu-

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dou-se então para uma casa pertencente a Vittoria — talvez parte do dote —, na Piazza della Pace, a praça em frente à Igreja de Santa Maria da Paz. Não era o palácio de um grande nobre, mas a casa confortável de um burguês bem-sucedido. Construída no século XIV em torno de um gracioso pátio com um jardim e um poço, fora reformada no início do século XVI. No cômodo principal, Sforza mandou adornar as vigas do teto com estrelas douradas de oito pontas – o símbolo heráldico da família Maidalchini.

Preparado para fundar uma grande dinastia, tudo o que Sforza precisava agora era de um segundo filho — uma apólice de seguro. Fi-lhos traziam às famílias prestígio, boa sorte e uma crescente prosperida-de. Custavam muito pouco para serem educados, graças ao imenso es-toque de professores dispostos a trabalhar como tutores. Se o filho mais velho herdava a propriedade da família, o segundo filho poderia ingres-sar na Igreja e o terceiro, nas forças armadas. Era fácil arranjar cargos para os filhos, e cada um que se casava trazia dinheiro para a família, por meio do dote da noiva.

O que Sforza mais temia era uma filha. Havia um ditado italiano da época, “fazer uma menina”, que significava fracasso, desastre, planos que deram errado. E havia uma razão para isso. Meninas sugavam a fortuna da família com os dotes que necessitavam para se casar honra-damente. Uma filha dispersaria o patrimônio que Sforza economizara para Andrea, canalizando-o para outra família. Uma menina reduziria a fortuna e o prestígio ascendente do nome Maidalchini.

Quando os gritos cessaram e ele ouviu os passos da parteira em sua direção, Sforza rezou com fervor para todos os santos. Era um menino?

Os santos, evidentemente, não tinham ouvido suas preces. O bebê de Sforza era uma menina.

As crianças eram batizadas logo após o nascimento, com medo de que morressem e suas almas pagãs fossem impedidas de entrar no céu. Assim, de acordo com o registro batismal recentemente descoberto, a filha de Sforza foi batizada mais tarde naquele mesmo dia por Carlo Montilio, o bispo de Viterbo, na catedral de São Lourenço, construída no século XII. O prestígio de Sforza na comunidade ficou demonstrado

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pelo fato de que a madrinha da criança foi Fiordalisa Nini, irmã de Nino Nini, o homem mais rico da cidade.

O bebê foi batizado de Olimpia.Quando bispo Montilio a aspergiu com água benta, pronunciou

as palavras sagradas que marcariam a alma da criança com um selo in-delével, significando que, como cristã, ela pertencia a Deus. “Eu a ba-tizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, disse ele. Ao reali-zar este batismo, como fizera centenas de vezes, bispo Montilio não fazia ideia de que reis e primeiros-ministros se curvariam perante aque-la menina indesejada, enviando-lhe presentes caros e implorando por seus favores.

Enquanto observava a cerimônia, o abatido Sforza Maidalchini mal sabia que aquele estorvo de filha, e não seu amado filho, seria quem engrandeceria o nome da família Maidalchini. Ninguém poderia supor naquele dia, dentro da igreja fria e cinzenta que cheirava a mofo e velhi-ce, que aquele bebê que choramingava seria uma personagem essencial na história da Igreja católica.

ŒDesde o nascimento, Olimpia Maidalchini ficou marcada pelo desa-pontamento do pai por seu sexo e pelo problema do dote, que se agra-varia cada vez mais à medida que crescesse. Mas foi oprimida também por uma cultura que aceitava sem objeções a inferioridade das mulheres perante os homens. O papa Inocêncio III (pontífice de 1198 a 1216) declarou confiantemente que o sangue menstrual era “tão detestável e impuro que em contato com ele os frutos e grãos se estragam, os arbutos secam, a relva morre, as árvores perdem os frutos e os cães enlouquecem se o ingerirem”.1

Nem mesmo o milagre do nascimento — o único domínio exclu-sivo das mulheres — era considerado algo especial. Aristóteles, filósofo grego do século IV a.C., assim como a cultura renascentista que costu-mava citá-lo, acreditava que o útero era uma espécie de solo — terra, na verdade — no qual o homem plantava sua semente. A mulher mera-

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mente alugava, durante nove meses, um quarto aquecido. Na Oresteia, a clássica trilogia grega escrita por Ésquilo, o deus Apolo argumentou que era impossível que um homem matasse a própria mãe, já que nin-guém realmente tinha mãe.

Todas as gestações, acreditava-se, começavam com um macho. Era a natureza tentando replicar a própria perfeição. Mas a certa altura, em cerca de metade das gestações, alguma coisa saía terrivelmente errada, um defeito irremediável de nascença, e o feto se tornava fêmea. Os ór-gãos reprodutivos da fêmea comprovavam essa imperfeição: eram pe-quenos e disformes, a maioria deles escondida em uma cavidade mal-cheirosa dentro do corpo, ao contrário das partes robustas e desenvolvidas do homem, que balançavam orgulhosamente aos ventos.

De acordo com a literatura popular medieval, ainda lida ampla-mente na Itália do século XVI, se uma mulher abrisse demais as pernas, seus órgãos cairiam, e ela se tornaria um homem. Caso isso fosse verda-de, muitas mulheres ambiciosas, inclusive Olimpia, teriam aberto bem as pernas, deixando os órgãos cair, para que pudessem aproveitar as van-tagens de serem homens em um mundo masculino.

A Igreja também olhava as mulheres como criaturas defeituosas. Jesus e todos os discípulos haviam sido homens. Os Pais da Igreja, que entre os séculos II e V pelejaram com as Escrituras para elaborar a teo-logia católica, eram notoriamente misóginos. No século III, Tertuliano escreveu uma contundente observação sobre as mulheres que, nos pri-mórdios da Igreja, pregavam, curavam e batizavam: “As mulheres desses hereges, como são atrevidas! Têm a coragem de ensinar, debater, exorci-zar, curar — e talvez até batizar.”2

No século XIII, Tomás de Aquino, possivelmente o teólogo mais influente na história da Igreja católica, declarou que as mulheres eram “homens malformados”, afirmando que eram inferiores por natureza e, portanto, incapazes de liderar. As defeituosas mulheres, segundo a cren-ça, não tinham lugar nos negócios, na política ou nas finanças. E com certeza não tinham nenhum lugar de importância na Igreja de Cristo. Dizia-se que a palavra latina para mulher — femina — era oriunda de fe, para “fé”, e minus, para “menos”, já que as mulheres eram tidas como

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fracas demais para manter e preservar a fé. Além disso, acreditava-se que se mulheres tocassem na sagrada eucaristia, ou colocassem os pés no Vaticano, contaminariam a santidade com sua impureza.

ŒA menina que um dia contaminaria a santidade do local mais sagrado da Igreja católica era uma líder nata — personalidade bastante inade-quada para alguém do sexo feminino. A única descrição de Olimpia quando criança veio de seu primeiro biógrafo, Gregorio Leti, que afir-mou ter conversado com pessoas que a conheceram nessa fase.

“Mal atingiu a idade da razão, já ambicionava comandar”, escre-veu ele; “mesmo na mais tenra idade, e ainda muito pequena, demons-trava tal inclinação nos jogos infantis. Sempre dava ordens às outras crianças, e nada era feito sem sua voz de comando. Diziam que, por natureza, era uma criança dominadora. Escolhia os jogos e sempre que-ria vencer”.3

Infelizmente, Olimpia teve pouca escolaridade para sustentar essa liderança. Frequentou a escola no Convento de São Domingos, em Viter-bo, onde sua tia era freira. Na melhor das hipóteses, recebeu uma educa-ção rudimentar. Os tempos haviam mudado desde o início do século XVI, quando mulheres como a poetisa romana Vittoria Colonna (1490-1547) promoviam salões, encorajavam as artes e falavam diversas línguas.

O mundo de Olimpia fora moldado pelo Concílio de Trento, con-cluído em 1563 — uma tardia resposta do Vaticano a acusações de corrupção na Igreja, formuladas quarenta anos antes por Martinho Lu-tero e seus seguidores —, quando bispos reformistas deliberaram que as virtudes domésticas estavam sendo ameaçadas pela educação feminina. Uma mulher educada não se contentaria apenas em dirigir a casa e criar os filhos; iria querer perambular pela cidade, intrometendo-se no gover-no e nos negócios. Os hereges do norte ririam dos católicos, que não conseguiam nem controlar suas mulheres. Assim sendo, Olimpia deve ter aprendido a ler e escrever em italiano, efetuar alguns cálculos mate-máticos, memorizar os preceitos da religião católica e costurar.

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Apesar de conhecer pouco ou nada de artes, literatura, filosofia e línguas estrangeiras, Olimpia tinha duas habilidades pouco comuns em garotas. No que se referia a assuntos financeiros, sua mente funcionava como um ábaco, somando, multiplicando, subtraindo e calculando per-centuais. Poucos segundos após examinar um problema de ordem fi-nanceira, conseguia encontrar a solução mais vantajosa, traço que deve ter herdado de Sforza. Além disso, possuía uma memória fantástica. Bastava ler ou ouvir alguma coisa para se lembrar daquilo para sempre.

Considerando seu amor vitalício pelos cálculos matemáticos e pe-los negócios, é provável que Olimpia tenha passado algum tempo na secretaria de impostos administrada pelo pai. Talvez se mantivesse dis-cretamente a um canto, observando Sforza conversar a respeito de im-postos com os proprietários de terra, irradiando simpatia. Enquanto este calculava o valor da terra, dos rebanhos e das colheitas, talvez ela fizesse as operações de cabeça, encontrando as respostas antes dele. Po-demos imaginar Olimpia observando o pai com seus olhos escuros, or-gulhosa daquele homem, desejando ser como ele quando crescesse.

Embora todos reconhecessem sua inteligência, há controvérsias quanto à aparência de Olimpia durante a juventude. Uma das fontes afirma que, na adolescência, Olimpia era “de uma beleza evidente”.4 Outra discorda, dizendo que “não era bonita, mas loura [de pele clara], magra, agradável, jovial e sempre sorridente”.5

Se não era exatamente bonita, era atraente, vivaz e bem-humorada. Com base em sua aparência posterior, podemos deduzir como Olimpia se parecia quando menina: miúda, de cabelos pretos e traços cinzelados. Testa larga e alta. Olhos negros, que flamejavam sob sobrancelhas ne-gras e arqueadas. Um lindo nariz, perfeitamente reto. Maçãs do rosto salientes, lábios finos e maxilar quadrado. Queixo proeminente, sem ser grande. Era um rosto de ângulos ambiciosos, que expressava uma reso-luta determinação. Um rosto intrigante em uma adolescente esbelta, mas que se tornaria feroz em uma mulher mais velha, rechonchuda e implacável.

A cidade em que Olimpia cresceu era uma verdadeira joia medie-val, cujo apogeu fora há cerca de trezentos anos. Viterbo aninhava-se

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confortavelmente no interior de maciços muros medievais, erguidos no século XI, guarnecidos com torres e portões. Fora construída com pe-dras grandes e maciças, em vários tons de cinza. Ruas estreitas serpente-avam em meio a sólidas casas medievais e desembocavam em piazzas encantadoras, dotadas de fontes. Chafarizes, prédios, colunas e palácios eram adornados com leões de pedra — o emblema heráldico de Viterbo e um símbolo de força.

O rico solo vulcânico da região e os banhos curativos de água sul-furosa atraíram primeiramente os etruscos, depois os romanos. No sé-culo XI, Viterbo se tornou uma cidade papal, pois os papas a visitavam para fugir dos verões de malária e da contínua violência de Roma. O século XIII foi uma época de esplendor para a antiga cidadela, que viu a construção de novos palácios, torres e igrejas.

O auge histórico de Viterbo ocorreu em 1268, quando o papa Clemente IV morreu no palácio papal da cidade. Para eleger seu suces-sor, 18 cardeais se reuniram em um salão do palácio. Mas não conse-guiam chegar a um acordo. Quando a votação se arrastou por 1269, e depois até 1270, os moradores de Viterbo tornaram-se frustrados com a falta de lei e ordem nos Estados Papais e decidiram então fazer com que a vida dos eleitores fosse o mais desconfortável possível. Assim, trancaram à chave a porta da sala de votação, impedindo que os cardeais retornassem aos seus suntuosos palácios, como faziam todas as noites. Este incidente deu origem ao termo “conclave”, resultante da expressão latina cum clave, que significa “com chave”.

A medida, no entanto, não deu resultado. Um dos cardeais disse, de brincadeira, que o telhado do palácio deveria ser removido, de modo a facilitar o acesso do Espírito Santo, para orientá-los na escolha do homem certo. Tomando essas palavras ao pé da letra, os exasperados dirigentes de Viterbo removeram o telhado do palácio, expondo os car-deais ao sol, à chuva e ao vento. Para que não faltasse comida, cestos com pão e água eram baixados todos os dias — era tudo com o que os letárgicos cardeais podiam contar. Os cardeais reagiram ameaçando ex-comungar todos os habitantes da cidade. Mas os moradores permanece-ram impávidos. Finalmente, no dia 1º de setembro de 1271, depois de

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dois anos e nove meses — a mais longa eleição papal na história da Igreja —, os cardeais acabaram elegendo um homem que não era um cardeal, e sim um diácono, chamado Teobaldo Visconti, da cidade de Piacenza, que adotou o nome de Gregório X.

Cerca de trinta anos depois desta eleição, os papas se fartaram de Roma, onde famílias de nobres locais lutavam umas contra as outras nas ruas, à luz do dia, e às vezes transformavam os pontífices em reféns. Decidiram então se mudar para a tranquila e pacífica Avignon, no sul da França. A importância de Viterbo declinou. Os papas retornaram definitivamente a Roma no século XV, mas o outrora adorado refúgio permaneceu quase esquecido e só era procurado para banhos medici-nais. Quando Olimpia nasceu, a cidade já não tinha importância polí-tica ou religiosa, embora fosse sede de um bispado.

A prosperidade de Viterbo devia-se à sua localização: era a última cidade de tamanho razoável para os visitantes que se dirigiam a Roma provenientes do norte. Inúmeros peregrinos e diplomatas faziam escala na cidade, onde se alimentavam, compravam mantimentos, repousa-vam e descansavam os cavalos, antes de dar início à última etapa da jornada até a cidade sagrada.

Os peregrinos também rezavam no santuário de Santa Rosa. Em 1250, uma menina de 15 anos chamada Rosa comandou os habitantes de Viterbo em um levante contra o conquistador da cidade, Frederico II, Sacro Imperador Romano, que invadira a Itália para tomar territó-rios de seu inimigo, o papa. Dois anos mais tarde, Rosa morreu em um cubículo na casa do pai, esgotada por penitências e flagelações físicas. Depois de sua morte, diz-se, realizou diversos milagres. Todos os anos, no dia 4 de setembro, consagrado à santa, sua estátua era levada pelas ruas de Viterbo, em uma faustosa procissão que visitava sete igrejas e termina no túmulo em que ela foi sepultada. Era um festival que se prolongava por vários dias, envolvendo a comunidade e numerosos vi-sitantes. Ainda criança, Olimpia deve ter observado a cerimônia, ou mesmo participado dela. Prestando homenagem a uma corajosa menina de 15 anos, que se rebelou contra um imperador guerreiro, talvez tenha pressentido a iminência de suas próprias batalhas.

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Quando Olimpia tinha 8 anos, Viterbo foi tomada pelas notícias de um escândalo em Roma, 80 quilômetros ao sul. No dia 11 de setem-bro de 1599, uma aristocrata de 22 anos, Beatrice Cenci, foi decapitada por ter participado do assassinato de seu violento pai, que, segundo se murmurava, havia abusado sexualmente dela. Sua mãe e seus dois ir-mãos também foram executados. Um ano antes, o corpo de Francesco Cenci fora encontrado no sopé de um penhasco nas terras do castelo, com a cabeça esmagada. Cientes da personalidade brutal de Francesco, e do ódio que a família sentia por ele, as autoridades logo suspeitaram que não se tratava de uma queda acidental, mas de assassinato. Sob tor-tura, um dos irmãos confessou que a família havia espancado Francesco até a morte e depois o jogara do penhasco.

A execução da bela e jovem Beatrice capturou a imaginação popu-lar e se tornou lendária. Tal era o destino de uma jovem que ousara se rebelar contra o pai, apesar das violências que dele sofrera, para não falar de estupros incestuosos. Embora a vida e a morte de Beatrice Cenci fossem trágicas, a lição que se depreendia da história era clara: filhas deveriam obedecer — e ponto final. Talvez Olimpia tivesse refletido muito sobre a jovem corajosa que lutara heroicamente contra seu cruel destino imposto por um pai desalmado.

Enquanto Olimpia crescia, o desalmado Sforza Maidalchini anali-sava cuidadosamente o destino cruel que iria impor a ela e às suas irmãs, Ortensia e Vittoria. Seu segundo casamento não resultara no tão dese-jado filho, e sim em três filhas, que ameaçavam desperdiçar em dotes a riqueza da família. Muitas filhas, na época, evitavam esse tipo de pro-blema familiar morrendo jovens. Mas as filhas de Sforza não coopera-ram. Permaneceram teimosamente saudáveis e cresceram de forma im-placável até a idade de se casar.

Para se casar honradamente, ou seja, para se casar com um homem de posição social igual ou mais elevada, era necessário que uma garota levasse com ela terras, dinheiro, móveis, joias ou rebanhos. O casamen-to com um homem de classe social mais baixa — um carpinteiro, ferrei-ro ou taberneiro, por exemplo — custaria muito menos dinheiro, mas traria vergonha para uma família em ascensão como a de Sforza.

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No século XV, os Estados Papais reconheceram os perigos represen-tados pelos dotes excessivamente altos. Filhas não desejadas, sem qual-quer vocação religiosa, entupiam os conventos, para onde eram enviadas contra a vontade. Isso resultou numa diminuição no número de casa-mentos e, por conseguinte, no de nascimentos, fazendo declinar a produ-tividade econômica. Assim, o governo estabeleceu limites para os dotes — qualquer família que os ultrapassasse seria forçada a pagar uma multa substancial. Mas a inflação e as pressões sociais acabaram elevando seu valor. Os limites os acompanharam: em 1586, eram de 5 mil scudi; ape-nas 12 anos mais tarde já haviam disparado para 7.800 scudi. Na primeira década do século XVII, quando as filhas de Sforza atingiram a idade para casar, seus dotes combinados deveriam totalizar cerca de 24 mil scudi.

Como é quase impossível entender o valor de uma moeda histórica em termos modernos, vamos tentar fazer isso nos termos daquela época. Em 1600, um scudo de ouro poderia comprar entre 20 e 25 galinhas, ou aproximadamente 50 quilos de farinha; era equivalente a uma semana de salário de um pedreiro qualificado. A quantia de 24 mil scudi, por-tanto, teria comprado 600 mil galinhas. Ou uma grande e lucrativa fa-zenda para Andrea. Mas como poderia Andrea engrandecer o nome da família, se uma parcela tão grande do dinheiro dos Sforza fosse conver-tida em dotes das garotas, beneficiando outras famílias?

Um pai, na época, tinha opções bastante limitadas no tocante ao que fazer com as filhas. E a razão era a seguinte: a lascívia das mulheres, ao longo da história, fora sempre considerada insaciável, em contraste com os letárgicos desejos sexuais dos homens. Se as filhas de Eva tives-sem permissão para fazer o que quisessem, estuprariam os homens e desonrariam suas famílias. Afinal de contas, fora uma mulher quem fi-zera com que todos fossem expulsos do paraíso, e suas filhas deviam ser enclausuradas, para que a sociedade se mantivesse pura e íntegra. Estra-nhamente, ninguém jamais pensou que, se uma comunidade quisesse mesmo se tornar pura e íntegra — e menos violenta —, deveria manter os homens trancados, confiando as chaves às mulheres.

Criada sob a severa vigilância do pai, uma garota era entregue a um marido, que a vigiaria de forma igualmente severa. Ou ficaria cercada

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em um convento, onde a abadessa não deixaria que se metesse em en-crencas nem que tivesse chances de escapar. Viver sozinha, independen-te dos homens, era coisa impensável para uma mulher, a menos que fosse uma viúva com mais de 40 anos. Neste caso, pensava-se, estaria tão ressequida que suas partes íntimas já teriam se transformado em pó.

Contemplando o gratificante patrimônio que amealhara ao longo de anos de trabalho duro, Sforza concluiu que não tinha escolha — as três garotas deveriam ir para um convento, para que o filho pudesse herdar um espólio considerável. Embora os conventos também exigis-sem dotes das noivas de Cristo, Jesus, em sua infinita misericórdia, con-tentava-se com um décimo do valor requerido pelos filhos de carne e osso das famílias importantes.

Era a solução perfeita para Sforza. Suas filhas seriam mantidas honradamente, com um dote muito pequeno. E ele ainda contaria com o benefício espiritual de ter familiares internadas em conventos. As enclausuradas rezariam por quem as tinha enclausurado — com a ga-rantia de que suas preces seriam ouvidas. Os santos e a Virgem favore-ciam em primeiro lugar os religiosos — o nome comumente usado para freiras e frades —, antes de voltarem os ouvidos para o clamor dos mundanos. As preces das três filhas, que chegariam aos céus durante as décadas seguintes, certamente seriam ouvidas por algum santo. Ou tal-vez pela própria Mãe de Jesus, que entraria em ação, assegurando o sucesso de Sforza e de seu filho nesta vida, e fácil acesso ao paraíso, na próxima.

São Pedro, segundo a crença, permitia que os religiosos passassem pelos portais do paraíso dando apenas uma rápida olhada para os hábi-tos que vestiam e um aceno satisfeito. Eram os mundanos que ele vigia-va e questionava com rigor. Muitos deles, rechaçados após um torturan-te vislumbre do paraíso, seriam obrigados a ir para aquele outro lugar. Por esse motivo, muitos dos pecadores mais nobres, ricos e mundanos faziam questão de ser enterrados com hábitos de freiras ou frades, talvez na esperança de enganar São Pedro: passariam às pressas pelos portões, com os rostos cobertos pelos capuzes, antes que o guardião celeste per-cebesse quem eles realmente eram.

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Embora se acreditasse que religiosos de ambos os sexos tivessem direitos iguais de acesso ao paraíso, a vida de uma freira era muito me-nos interessante que a de um frade. É verdade que os frades, em sua maioria, viviam em mosteiros; mas costumavam ter permissão para rea-lizar trabalhos piedosos em vilarejos e cidades, prestando socorro aos pobres e cuidando dos doentes nos hospitais. Muitos acompanhavam expedições até a China, a Índia e as Américas, com a finalidade de cate-quizar os nativos. Religiosos eram também encorajados a participar de peregrinações aos lugares santos, especialmente a Roma e Jerusalém.

Enquanto o clero religioso geralmente levava uma vida de contem-plação, os membros do clero secular — os padres — eram extremamen-te ativos na comunidade, onde realizavam batismos, enterros e missas. Um padre poderia pensar em se tornar bispo, cardeal ou até mesmo papa. Mas uma freira só poderia pensar em ser freira, sem nenhum ou-tro lugar na sociedade. Por serem lascivas criaturas, eram retiradas da comunidade e guardadas em lugares que se pareciam extremamente com uma prisão de segurança máxima.

Tendo estudado no Convento de São Domingos, onde às vezes se hospedava com sua tia, a abadessa Giulia Gualtieri, Olimpia percebeu muito bem como era a vida das freiras. Uma freira dormia sozinha sobre um leito duro, numa cela estreita e sem trancas, onde a abadessa poderia entrar quando quisesse para verificar o que ela estava fazendo.

Amizades eram vistas com maus olhos, já que as freiras, tendo se devotado a Deus, não deveriam ter amigos nem mesmo entre as outras freiras. Freiras que rissem e cochichassem, enquanto cozinhavam juntas ou costuravam em pequenos grupos, estavam sujeitas a severas puni-ções. Proibidas de possuir cães, muitas adotavam galinhas poedeiras. Algumas escreveram a seus bispos, queixando-se amargamente de que os corredores dos conventos estavam atapetados com esterco de galinha, pois outras freiras, tentando encontrar amor onde pudessem, criavam galinhas de estimação.

As freiras rezavam seis vezes por dia e trabalhavam entre as orações. Cuidavam das galinhas, preparavam refeições comunais, lavavam a rou-pa, costuravam e limpavam. Para ficarem mais próximas a Deus, às ve-

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zes chicoteavam a si mesmas, jejuavam até quase a inanição e passavam as noites rezando, em vez de dormirem.

Elas não tinham permissão para ir à cidade. Criados lhes traziam suprimentos — batiam na portinhola de madeira que havia na porta principal do convento e, quando este era aberto, depositavam as merca-dorias em uma plataforma giratória, que era então movimentada, levan-do-as para o interior. A freira que recebia os produtos não tinha qual-quer contato com o criado, não dizia nenhuma palavra gentil nem ao menos olhava para aquele indivíduo mundano. Toda a transação era efetuada como se o convento fosse uma colônia de leprosos.

As freiras não deveriam ter nenhum vislumbre do mundo exterior e de suas tentações. Todas as janelas do convento se abriam para o pátio interno, um lugar de contemplação, e nunca para as ruas turbulentas. Alguns conventos até fechavam o poço de ventilação das latrinas, se este pudesse oferecer uma visão da rua abaixo; ou se alguém, da rua abaixo, pudesse ter uma visão dos traseiros das freiras.

As freiras tinham permissão para se encontrar com parentes no parlatório do convento, um lugar de reunião em que os visitantes leigos aguardavam que a religiosa da família aparecesse atrás da grade que se-parava o mundo das freiras do mundo externo. Os visitantes do sexo masculino eram limitados a uma curta lista de pais, irmãos e tios; as visitantes do sexo feminino poderiam ser parentes mais distantes, anti-gas vizinhas e amigas. Uma freira idosa, acima da idade da indiscrição — 40 anos —, tinha ordem de permanecer nas proximidades para ouvir as conversas das jovens freiras no parlatório, garantindo que nada im-próprio fosse conversado.

Normalmente, os parentes levavam alimentos e bebidas para se divertir no parlatório. Davam vinho e comida para a freira, enquanto esta, por sua vez, passava-lhes os deliciosos doces preparados no conven-to. Os bispos estavam sempre tentando acabar com tais excessos, mas sempre falhavam. Esse era, afinal de contas, o único prazer permitido às freiras. E os barulhentos parentes não chegavam nem perto de causar tantas preocupações quanto um fato que estava se tornando um passa-tempo favorito dos aventurosos jovens italianos. Rapazes atrevidos —

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bêbados, entediados ou respondendo a algum desafio — fingiam ser irmãos das freiras e entravam sorrateiramente no parlatório, onde, sor-rindo, sacudiam seus membros para as escandalizadas virgens que estavam no outro lado da grade. Os napolitanos eram os piores. Alguns viajavam por toda a Itália com o propósito explícito de se exibir para as freiras.

As visitas dos médicos às celas das freiras eram vistas com suspeita. Os doutores eram encorajados a esperar no parlatório e conversar com as pacientes através da grade, sem examiná-las. Se a paciente estivesse doente demais para se levantar do leito, ele conversava com outra freira sobre os sintomas e prescrevia remédios. Os únicos homens permitidos nos conventos com alguma liberdade eram os padres, indispensáveis para ouvir confissões e celebrar missas. Essa liberdade, às vezes, resultava em gravidez, confirmando as crenças populares a respeito da lascívia incorrigível das mulheres.

Talvez não seja de admirar que tantas freiras na Alemanha tenham escapado do confinamento nos conventos tão logo isso lhes foi permiti-do pela religião luterana. Como ratos fugindo de um navio prestes a naufragar, pularam fora dos conventos e mergulharam totalmente no mundo real. Em 1523, Katharina von Bora, futura esposa de Martinho Lutero, fugiu de seu convento escondida em um barril de arenques. Dois anos depois, acabou se casando com o maior dos hereges.

Apesar das privações da vida no convento, algumas jovens queriam ser freiras, de coração. Viam isso como um modo de estarem mais pró-ximas de Deus e de servir a Ele todos os dias. Outras não tinham ne-nhuma vocação especial, mas escolhiam ser freiras por outros motivos. Um deles é que seriam poupadas das agonias do parto – muitas haviam ouvido em suas casas os apavorantes gritos de dor que ecoavam nos corredores e visto as quase mães, subitamente silenciosas, serem levadas para fora dentro de caixas. Além disso, as freiras eram poupadas da bru-talidade dos homens — maridos embriagados que batiam nas mulheres ou lhes passavam sífilis, que contraíam com prostitutas.

Mas Olimpia Maidalchini não era uma dessas jovens. Determina-da e dominadora desde a mais tenra infância, aos 15 anos já sabia que não desejava uma vida dedicada à pobreza, à obediência e à castidade.

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Acima de tudo, Olimpia não queria açoitar a si mesma, ter uma galinha como única amiga e sentar em uma latrina fedorenta, cujo poço de ven-tilação fora bloqueado. E certamente não queria que o pênis de um descarado rapaz napolitano, no outro lado da grade de um parlatório de convento, viesse a ser o único pênis que veria na vida.

Era uma infelicidade para Sforza que sua filha mais velha fosse tão parecida com ele. Como o pai, ela ansiava por participar do mundo — casar, ter filhos, obter posição social, ganhar dinheiro e até adquirir po-der. Confrontada com a decisão de Sforza de trancafiá-la em um con-vento, ela teimosamente o desafiou.

A recusa de Olimpia em se dobrar à vontade do pai era algo quase desconhecido na sociedade em que vivia. Na Europa do século XVII, esperava-se que todos os membros de uma família sacrificassem seus sonhos mais caros em prol da prosperidade da família como um todo. Se os pais assim o desejassem, intrépidos soldados se tornavam padres, e frágeis estudantes corriam para os campos de batalha, empunhando es-padas com suas mãos delicadas. Contra suas tendências, garotas volup-tuosas se dedicavam a uma vida de virgindade, e senhoritas virtuosas se casavam com velhos mercadores, fedorentos e repulsivos. A lealdade à família era inquestionável. Ao enviar suas filhas para conventos, Sforza demonstrava lealdade à família. E esperava que as filhas se comportas-sem da mesma forma.

Pelo bem da família, as irmãs mais novas de Olimpia se submete-ram humildemente. Ortensia, que tinha 13 ou 14 anos em 1606, e Vittoria, então com 12 anos, foram seguramente enclausuradas no Convento de São Domingos, proporcionando à família Maidalchini um grande sentimento de orgulho e uma equivalente economia de re-cursos. Mas ainda havia Olimpia a ser dobrada. Embora três dotes esti-vessem reduzidos a um, Sforza se recusava terminantemente a retirar um tostão que fosse da futura grandeza de Andrea. Além disso, devia estar chocado com a teimosa deslealdade de Olimpia para com sua fa-mília. Colocaria Olimpia naquele convento de qualquer maneira.

Mas arrastá-la até lá não seria tarefa simples. Sforza conhecia as determinações do Concílio de Trento: nenhum pai poderia forçar a fi-

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lha a entrar em um convento contra a vontade dela; quem fosse decla-rado culpado por isso seria excomungado pela Igreja católica. Estas dis-posições eram uma resposta às ruidosas denúncias dos hereges, de que pais gananciosos estavam enfiando moças nos conventos para que pas-sassem o resto da vida em miséria virginal. Segundo o édito, cada moça que pedisse para ingressar em um convento seria entrevistada em parti-cular pelo bispo local, que determinaria “se ela está sendo forçada, se ela está sendo enganada e se ela sabe o que está fazendo”.6

Quando o bispo lhes perguntava se estavam ingressando na ordem de boa vontade, as jovens, em sua maioria, acenavam que sim por entre lágrimas, sabendo que seus pais as esperavam no lado de fora, segurando um porrete. Mas Sforza Maidalchini sabia que a destemida Olimpia não poderia ser intimidada ou espancada até a submissão. Tinha de ser tratada com cuidado.

É provável que ele tenha começado a falar em tom amigável e persua-sivo, fazendo com que a jovem soubesse que o futuro da família dependia dela. O irmão a quem ela amava já era marido e pai, e dependia dela. Suas irmãs tinham obedecido; Olimpia teria de obedecer também. Sua família lhe dera amor e carinho; agora, ela deveria fazer um sacrifício pela família. Cuidariam bem dela no convento. A família a visitaria sempre.

Olimpia pode ter encontrado forças no fato de que, quatrocentos anos antes, outra menina de 15 anos de Viterbo, Santa Rosa, havia de-safiado um imperador — e Sforza não era nenhum imperador. De jeito nenhum, disse Olimpia ao pai. Nada de convento para mim.

Talvez a lisonja funcionasse. Assim, Sforza instruiu a tia de Olim-pia, a abadessa de São Domingos, a persuadir a sobrinha. Para uma ga-rota de personalidade forte e apaixonada pelos assuntos financeiros como Olimpia, um convento oferecia o único caminho para uma posi-ção administrativa, explicou tia Giulia. Olimpia poderia acabar se tor-nando abadessa; então dirigiria o convento, seus campos, fazendas e pomares, ministrando justiça e punições para as freiras, e lidando com o bispo local.

Usando os pequenos dotes trazidos pelas novas freiras, a abadessa fazia empréstimos a pessoas e corporações, auferindo juros anuais e

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comprando propriedades, que alugava ou administrava. Investia tam-bém em monti, títulos estatais, que asseguravam renda fixa. Uma boa cabeça para negócios era coisa indispensável para a gloriosa função de abadessa. Com suas qualidades de liderança, cérebro de ábaco e gênio financeiro, Olimpia seria, sem dúvida, uma abadessa maravilhosa. Olimpia recusou a oferta.

Quando a tia lamentou a desonra que macularia a família Maidal-chini se Olimpia se casasse com alguém de classe inferior, a jovem repli-cou com firmeza: “Senhora minha tia, é melhor que eu perca minha família do que meu corpo venha a ser queimado.”7 Ela provavelmente estava se referindo à Carta de São Paulo aos Coríntios, na qual ele de-clara: “É melhor casar do que viver abrasado.”

A essa altura, Sforza já tinha se fartado daquilo. A recusa de Olim-pia estava se transformando em humilhação pública. Todos em Viterbo sabiam que ele queria que a filha se juntasse às irmãs no São Domingos. Todos sabiam também que a filha estava fazendo com que ele parecesse um bobo.

Podemos imaginar que, um dia, Sforza mandou um criado convo-car Olimpia ao seu gabinete. Ela o encontra lá, de cenho franzido, o severo paterfamilias, sentado em sua grande cadeira de madeira de en-costo alto e braços maciços. Ele começa a gritar, dizendo que ela é ape-nas uma menina e não tem direito de opinar sobre o próprio futuro. Que este mundo é dos homens, governado pelos homens — ela tem de obedecer e não dar ordens. Que o único lugar para uma jovem como ela é o convento. Ele se levanta, agigantando-se em frente a ela, suas palavras coléricas se tornando um ruído indistinto, enquanto o sangue lateja nos ouvidos de Olimpia.

Pequena e frágil aos 15 anos, um fiapo de garota, Olimpia está de pé diante dele, minúscula e indefesa. Vai ficando cada vez menor, enco-lhendo sob os golpes verbais, insultos e ameaças. Enquanto se encolhe, alguma coisa endurece dentro dela. Seu pai, o homem que deveria ter respeito por ela e lhe oferecer proteção, decidiu traí-la da pior forma possível. Ela jamais o perdoará. Jamais esquecerá. E encontrará um meio de se vingar.

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Enquanto Beatrice Cenci assassinara o tirânico pai, Olimpia Mai-dalchini teria um prazer muito maior em humilhar o próprio pai, em feri-lo onde mais doesse, arruinando sua reputação em Viterbo. A van-tagem adicional era que uma jovem não seria decapitada por humilhar o pai. Olimpia esperaria o momento propício para dar o troco.

Sem se desencorajar com a última recusa, Sforza teve outra ideia. Contratou um confessor agostiniano para acompanhá-la, enquanto es-tivesse acordada, tentando convencê-la a se submeter à vontade paterna. Era um homem altamente conceituado em Viterbo, por sua paciência e fidelidade à doutrina católica. Quem sabe aquele padre agradável, com sua persuasiva maneira de falar e seu extenso conhecimento dos precei-tos bíblicos, conseguiria dobrar a teimosa garota.

Olimpia ouviu em silêncio as intermináveis arengas do padre, uma das quais, provavelmente, foi um sermão a respeito de como “honrar pai e mãe”. De olhos semicerrados ela deve ter visto o padre como ini-migo mortal, aliado a Sforza na tentativa de enterrá-la viva. Bem, ela se vingaria de ambos. Um belo dia, secretamente, empunhou uma pena, preparou o tinteiro e redigiu uma carta para Gerolamo Matteucci, bispo de Viterbo.

Para sorte de Olimpia, o bispo Matteucci era um clérigo rigoroso, descrito em Bispos e Dioceses de Viterbo como um homem que “se ocu-pava dos negócios da igreja com severidade talvez exagerada”.8 Por pe-quenas infrações, ele enviara muitos colegas para o exílio, ante os pro-testos indignados dos cidadãos de Viterbo. Um bispo tão cioso dos regulamentos não permitiria que Sforza desobedecesse ao Concílio de Trento sem mais nem menos.

Sforza Madalchini, escreveu Olimpia, estava tentando aprisioná-la em um convento contra a vontade dela, infringindo deliberada e cons-cientemente as determinações do sagrado Concílio de Trento. Para hu-milhar Sforza ainda mais e punir o padre importuno, ela acrescentou que este último tentara molestá-la sexualmente.

Talvez ela tenha fugido de casa, atravessado a cidade até o palácio do bispo, batido com força na porta e entregue a carta ao mordomo. Como ela havia suspeitado, sua acusação teve o efeito de uma bomba.

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O bispo Matteucci repassou a queixa de Olimpia ao tribunal da Santa Inquisição, em Roma. O padre foi colocado sob custódia e depois leva-do até o tribunal, por um crime contra a moralidade cristã. Considera-do culpado, ficou preso durante seis meses, a pão e água, e sua carreira foi arruinada. E o furioso bispo proibiu Sforza de forçar Olimpia a in-gressar em um convento.

Assim, Olimpia se livrou de um destino horrível que assomava à sua frente. Mas a que custo para ela mesma e para a família Maidalchi-ni? Quando ela andava pelas ruas, as pessoas cochichavam, cutucavam umas às outras e riam. Muitos cidadãos de Viterbo achavam que ela ti-nha inventado a história de ter sido molestada para escapar do conven-to, arruinando a carreira de um padre inocente, muito popular entre seus paroquianos. Uma garota rebelde e perversa, diziam. Outros acha-vam que dissera a verdade e que era uma vítima inocente do libidinoso clérigo. Como todos sabiam, clérigos libidinosos não faltavam.

Fosse culpada ou inocente, o escândalo deixou uma marca indelé-vel na reputação da menina Maidalchini. Ela parecia não dar importân-cia ao fato, pelo menos aparentemente. Conseguira muitas coisas com sua carta e, de fato, poderia se sentir orgulhosa de si mesma. Escapara do convento, humilhara Sforza e punira o padre. Esticara o arco com cuidado, apontara a flecha e soltara a corda. O projétil atingira o alvo com precisão mortal, punindo os que a tinham ferido.

Olimpia andava pela cidade de cabeça erguida, como sempre fazia quando sob pressão. Como muitas pessoas fortes, jamais mostrava ra-chaduras em sua couraça. Sofria em segredo, mas exibia para o mundo uma face corajosa, para que ninguém tivesse a satisfação de vê-la chorar. Anos mais tarde, quando as vicissitudes da vida a atingiram mais uma vez, brutalmente, quando as pessoas atiraram pedras e cuspiram nela, diz-se que Olimpia dava de ombros e citava um antigo provérbio italia-no. “Eu sou como um cavalo surrado”, dizia ela. “As pancadas só lus-tram meu pelo.”9

Com o tempo, a sede de Olimpia por vingança e sua fisionomia impassível fariam o mundo acreditar que ela era insensível. É um erro comum pensar que os grandes líderes nunca derramam uma lágrima de

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pesar, que nunca sentem o latejar de um coração partido, que a traição não os atinge tão profundamente quanto às pessoas mais fracas. Na verdade, geralmente é o contrário. Aqueles que dominam, por sua inte-ligência rápida e grandes expectativas, sentem os golpes mais profunda-mente, sofrem mais cruelmente, choram mais amargamente.

O fato de que as vinganças de Olimpia fossem sempre tão calcula-das, tão mortais, era uma prova de que fora bastante afetada, que se sentia profundamente traída em seu amor e esperança. Aqueles que lhe causavam grandes amarguras também sofreriam grandes amarguras. Isso, afinal de contas, era apenas justiça.

Com o escândalo do padre, Olimpia aprendeu uma lição valiosa, que jamais iria esquecer. Aprendeu que ela, uma frágil mulher, tinha o poder de transgredir a autoridade — da Igreja, da família e da socieda-de, em geral. Seus instrumentos para isso eram mentiras, manipulação e resistência direta. Apenas com esses instrumentos poderia superar a desvantagem de ser mulher. Considerando a crueldade dos homens, imposta com tanta frequência sobre as mulheres, ela deve ter visto essas armas como legítimas em sua luta contra as injustiças, em seu direito de proteger a si mesma.

Sforza, que ao longo de décadas erigira sua posição na comunidade tão cuidadosamente, se sentia arrasado. O bispo estava furioso com ele. A Santa Inquisição, em Roma, não o via com bons olhos. Ele escapara da excomunhão por um triz. Seus vizinhos e parceiros de negócios ti-nham pena dele, ou o ridicularizavam pelas costas. Seu bem-intenciona-do zelo para proteger a família fracassara desastrosamente. E conside-rando a magnitude de sua desgraça, talvez ele já não estivesse em ascensão. Talvez estivesse em decadência. E tudo por culpa de Olimpia.

Além da reputação prejudicada, Sforza se deparava com um pro-blema verdadeiramente desconcertante: Olimpia tornara impossível sua internação em um convento. E era impensável que uma mulher adulta permanecesse solteira, mesmo morando com os pais. O escândalo com o padre, no entanto, tirara de Sforza qualquer chance de encontrar um marido para ela. A essa altura, provavelmente, ele não tinha dinheiro

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suficiente para persuadir um homem a se casar com sua escandalosa filha.

Quem se casaria com ela agora? O que ele iria fazer com Olimpia?Mas Olimpia sabia que encontraria alguém respeitável para se casar

com ela. Teria dinheiro, status e poder — assim ninguém tentaria enfiá--la em um convento novamente. Para evitar que os homens a dominas-sem, ela dominaria os homens. Para evitar que os homens magoassem outras mulheres, ela abrigaria sob suas asas as mulheres rejeitadas e in-defesas. E todos os que fossem loucos o bastante para ficar em seu cami-nho sentiriam sua cólera.

Afinal de contas, isso era apenas justiça.