o conjurado r — livr o um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o...

33
O CONJURADOR — LIVRO UM

Upload: doandieu

Post on 17-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

O COnjuradOr — LivrO um

Conjurador.indd 1 02/07/2015 12:26:00

Page 2: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Tradução Edmo Suassuna

1ª edição

O COnjuradOr — LivrO um

O aprendiz

2015

Taran matharu

Conjurador.indd 3 02/07/2015 12:26:00

Page 3: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Para minha mãe, que sempre me apoiou.

Para alice, a pedra fundamental desta história.

E para meus leitores do Wattpad, sem os quais nada disso seria possível.

Conjurador.indd 5 02/07/2015 12:26:00

Page 4: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

7

1

Era agora ou nunca. Se Fletcher não abatesse o animal, passaria fome aquela noite. O crepúsculo se aproximava rapidamente e ele já estava atrasado. Precisava voltar logo à vila ou se depararia com os portões fe-chados. Se isso acontecesse, Fletcher teria que subornar os guardas com o dinheiro que não tinha ou correr o risco de passar a noite na floresta.

O jovem alce tinha acabado de esfregar os chifres num pinheiro alto, raspando o veludo macio que os recobria para revelar as pontas afiadas por baixo. Pelo tamanho e pela altura diminutos, Fletcher diria que se tratava de um animal de pouca idade exibindo a primeira galhada. Era um belo espécime, com pelo brilhoso e olhos luminosos, inteligentes.

Fletcher quase sentiu vergonha de caçar uma criatura tão majestosa, porém já calculava mentalmente seu valor. O pelame espesso renderia um bom dinheiro quando os peleteiros chegassem, especialmente por-que já era inverno. daria pelo menos uns cinco xelins. Os chifres esta-vam em bom estado, ainda que fossem um tanto pequenos, e renderiam talvez quatro xelins, com sorte. Era a carne, entretanto, que o rapaz de-sejava acima de tudo, de cor vermelha e sabor intenso, pingando gordu-ra no fogo.

uma névoa densa se espalhava no ar, pesada, cobrindo Fletcher com uma fina camada de orvalho. a floresta estava anormalmente quie-ta. Geralmente, o vento agitaria os galhos, permitindo que o rapaz se

Conjurador.indd 7 02/07/2015 12:26:00

Page 5: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

8

esgueirasse pela mata sem ser ouvido. naquele momento, no entanto, ele mal se permitia respirar.

Fletcher pegou o arco e preparou uma flecha. Era o seu melhor pro-jétil, com haste reta e certeira, e aletas feitas de boas penas de ganso, em vez das plumas baratas de peru que ele comprava no mercado. inspirou de leve e puxou a corda. Estava escorregadia em seus dedos; o menino a untara com gordura de ganso para protegê-la da umidade do ar.

a ponta entrava e saía do campo de visão do caçador enquanto ele mirava no alce. Fletcher estava agachado a uns bons dez metros de dis-tância, escondido na grama alta. Era um tiro difícil, mas a falta de vento também tinha lá suas vantagens. nada de rajadas para desviar a flecha de seu caminho.

O rapaz expirou e disparou em um único movimento fluido, incor-porando o momento de imobilidade de corpo e alma conforme tinha aprendido pela experiência amarga e faminta. Ouviu o vibrar seco da corda e então o baque da flecha atingindo o alvo.

Fora um belo tiro, perfurando o alce no peito, através de pulmões e do coração. O animal desabou e entrou em convulsão, debatendo-se no solo. Os cascos escavavam uma tatuagem na terra com seus espamos de morte.

Fletcher disparou em direção à presa e sacou uma faca de esfola-mento da bainha fina em sua coxa, mas o alce estava morto antes que o alcançasse. um abate bom e limpo, isso que Berdon lhe diria. mas matar era sempre uma sujeira. a espuma sangrenta que borbulhava da boca do animal atestava o fato.

Fletcher removeu a flecha com cuidado e ficou feliz ao ver que a haste não tinha se partido nem a ponta de sílex se lascado nas costelas do alce. mesmo que seu nome, Fletcher, significasse “aquele que faz flechas”, o rapaz se frustrava com o longo tempo que levava amarrando setas. Ele preferia o serviço que Berdon ocasionalmente lhe passava, de martelar e moldar ferro na forja. Talvez fosse pelo calor, ou pela forma como seus músculos doíam deliciosamente depois de um longo dia de trabalho ár-duo. Ou talvez fossem as moedas que pesavam em seus bolsos quando ele era pago após a entrega.

Conjurador.indd 8 02/07/2015 12:26:01

Page 6: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

9

O jovem alce era pesado, mas a vila não estava longe. as galhadas serviam bem como alças, e a carcaça deslizava com facilidade sobre a relva molhada. a única preocupação agora seriam os lobos ou os gatos selvagens. não era raro que eles roubassem a refeição ou até mesmo a vida de um caçador que levava a presa para casa.

O rapaz estava caçando na crista das montanhas dentes de urso, as-sim chamada por seus distintos picos gêmeos, que se assemelhavam a dois caninos. a vila ficava na crista acidentada entre os dois, e o único caminho até lá era uma trilha íngreme e rochosa, bem à vista dos portões. uma grossa paliçada de madeira cercava a vila, equipada com pequenas torres de vigia a intervalos regulares. a vila não era atacada havia muito tempo; apenas uma vez nos quinze anos desde o nascimento de Fletcher. mesmo então, fora apenas um pequeno bando de ladrões, em vez de uma incursão dos orcs, algo muito improvável tão longe ao norte das selvas. apesar disso, o conselho da vila levava a segurança muito a sério, e entrar após o nono sino era sempre um pesadelo para os retardatários.

Fletcher manobrou a carcaça do animal até a relva grossa que crescia ao lado da trilha rochosa. não queria danificar o pelame, a parte mais valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos que a vila tinha a oferecer, e daí ela tirou seu nome: Pelego.

a subida era dura e o caminho, traiçoeiro aos pés, ainda mais no escuro. O sol já tinha desaparecido atrás da crista, e Fletcher sabia que o sino soaria a qualquer minuto. O rapaz trincou os dentes e se apressou, tropeçando e praguejando ao arranhar os joelhos no cascalho.

O desânimo tomou seu coração ao alcançar os portões principais. já estavam fechados, com os lampiões ao alto acesos para a vigília noturna. Os guardas preguiçosos tinham fechado mais cedo, ansiosos pela bebe-deira na taverna da vila.

— Seus palermas preguiçosos! O nono sino ainda nem tocou. — Fle-tcher praguejou e soltou a galhada do alce no chão. — me deixem en-trar! Eu não vou dormir aqui fora só porque vocês não podem esperar para encher a cara. — Ele chutou o portão com força.

— Ora, ora, Fletcher, dá para falar mais baixo? Tem gente de bem dormindo aqui dentro. — Era uma voz vinda do alto. didric. O guarda

Conjurador.indd 9 02/07/2015 12:26:01

Page 7: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

10

se debruçou sobre o parapeito acima de Fletcher, com a grande cara redonda sorrindo maldosamente.

O rapaz fez uma careta. de todos os guardas que poderiam estar de serviço hoje, tinha que ser didric Cavell, o pior do bando. Ele tinha 15 anos, a mesma idade de Fletcher, mas se achava adulto. Eles não se gostavam. O guarda era um valentão, sempre procurando uma desculpa para exercer sua autoridade.

— Eu dispensei mais cedo o turno do dia. veja bem, levo meus de-veres muito a sério. não podemos vacilar, considerando que os merca-dores chegarão amanhã. nunca se sabe que tipo de ralé estará se esguei-rando aí fora. — Ele riu da própria provocação.

— me deixe entrar, didric. você sabe tão bem quanto eu que os por-tões deveriam ficar abertos até o nono sino! — exclamou Fletcher. En-quanto falava, ouviu o sino começar seu dobrar reverberante, ecoando fracamente nos vales abaixo.

— O que foi que você disse? não consigo escutar — gritou didric, levando uma das mãos à orelha de forma teatral.

— Eu falei para você me deixar entrar, seu paspalho. isto é ilegal! vou ser obrigado a te denunciar se não abrir os portões agora mesmo! — berrou o rapaz, furioso com o rosto pálido sobre a paliçada.

— Bem, você poderia muito bem fazer isso, e eu certamente não ne-garia o seu direito de fazê-lo. muito provavelmente, nós dois seríamos punidos, e isso não faria bem a ninguém. Então, por que não fazemos um acordo? você me dá esse alce, e eu lhe poupo o aborrecimento de dormir na floresta esta noite.

— Pode enfiar no seu rabo — retrucou Fletcher, sem poder acreditar. até para didric, isso era uma chantagem descarada demais.

— vamos lá, Fletcher, seja razoável. Os lobos e os gatos selvagens virão rondar, nem uma fogueira muito forte os manterá afastados no inverno. você poderá dar no pé quando eles chegarem, ou ficar aqui e servir de aperitivo. de qualquer maneira, mesmo se você durar até o amanhecer, vai entrar por estes portões de mãos abanando. me deixe ajudar você. — a voz de didric era quase amistosa, como se estivesse fazendo um favor.

Conjurador.indd 10 02/07/2015 12:26:01

Page 8: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

11

O rosto de Fletcher ardia, vermelho. isso ia muito além de qualquer coisa que ele já tivesse passado. a injustiça era comum em Pelego, e o rapaz aceitara havia muito que, num mundo de privilegiados e desfavo-recidos, ele certamente fazia parte da segunda categoria. mas agora esse moleque mimado, ainda por cima filho de um dos homens mais ricos da vila, o estava roubando.

— É assim, então? — indagou Fletcher, num tom baixo e furioso. — você se acha muito esperto, não acha?

— É só a conclusão lógica de uma situação na qual calhei de ser o beneficiário — argumentou didric, afastando a franja loira dos olhos.

Todos sabiam que o rapaz recebia aulas particulares, e ostentava sua educação através da fala floreada. Seu pai tinha esperanças de que di-dric um dia se tornasse juiz, possivelmente o de um tribunal de alguma das maiores cidades de Hominum.

— você esqueceu uma coisa — grunhiu Fletcher. — Que eu prefiro muito mais dormir no mato a deixar você roubar minha presa.

— Hah! acho que vou pagar para ver seu blefe. Tenho uma longa noite pela frente. vai ser divertido assistir enquanto você tenta rechaçar os lobos. — didric riu.

Fletcher sabia que didric o estava provocando, mas isso não fez seu sangue ferver menos. O rapaz suprimiu a raiva, mas continuou furioso no fundo da mente.

— Eu não vou te dar o alce. Só a pele já vale uns cinco xelins, e a carne vai render mais uns três. Se me deixar entrar, eu esqueço de de-nunciar você. Podemos deixar essa confusão toda para trás — sugeriu Fletcher, engolindo o orgulho com dificuldade.

— vamos fazer assim: não posso sair dessa de mãos vazias; isso não seria justo, seria? mas, como estou me sentindo generoso, se você me der esses chifres que por acaso deixou de mencionar, eu encerro o as-sunto, e nós dois conseguimos o que queremos.

Fletcher estremeceu com o descaramento da sugestão. resistiu por alguns momentos, então cedeu. uma noite na própria cama valia qua-tro xelins, e para didric aquilo não passaria de uns trocados. O rapaz grunhiu e sacou a faca de esfolamento. Era afiadíssima, mas não tinha

Conjurador.indd 11 02/07/2015 12:26:01

Page 9: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

12

sido feita para cortar chifres. Ele odiava ser forçado a mutilar o alce, mas teria que decapitá-lo.

um minuto mais tarde, depois de serrar as vértebras, tinha a cabeça nas mãos, pingando sangue nos mocassins. Fletcher fez uma careta e a ergueu para que o guarda a visse.

— muito bem, didric. venha buscar — chamou Fletcher, brandindo o troféu grotesco.

— jogue aqui para cima — respondeu didric. —não confio que você vá me entregar depois.

— O quê? — retrucou o rapaz, incrédulo.— jogue para mim, ou nada de acordo. não estou com paciência

de tomar isso de você e ficar com o uniforme todo ensanguentado — ameaçou didric.

Fletcher grunhiu e a atirou para o alto, lambuzando a própria túnica com sangue. a cabeça voou por sobre didric e caiu no parapeito. O guarda não fez menção de pegá-la.

— Foi muito bom fazer negócios com você, Fletcher. vejo você ama-nhã. Espero que se divirta acampando na mata — disse ele, animado.

— Espera! — berrou o garoto. — E quanto ao nosso acordo?— Eu mantive minha parte no trato, Fletcher. disse que encerraria o

assunto, e que nós dois conseguiríamos o que queríamos. E você disse há pouco que preferiria dormir no mato a me dar o seu alce. Então, aí está, você recebe o que prefere, e eu fico com o que quero. você deve-ria realmente prestar mais atenção aos termos e condições de qualquer contrato, Fletcher. É a primeira lição que um juiz aprende. — O rosto do guarda começou a sumir atrás do parapeito.

— Esse não foi nosso acordo! me deixa entrar, seu vermezinho! — rugiu Fletcher, chutando o portão.

— não, não, minha cama está me esperando em casa. não posso di-zer o mesmo da sua, porém. — didric ria enquanto se virava.

— você está de guarda esta noite, não pode ir para casa! — gritou de volta o rapaz. Se didric abandonasse o serviço, Fletcher poderia se vingar delatando a falta. Ele nunca tinha se considerado um dedo-duro, mas por didric abriria uma exceção.

Conjurador.indd 12 02/07/2015 12:26:01

Page 10: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

13

— ah, não estou de guarda hoje. — O grito de didric soou baixo conforme ele descia os degraus da paliçada. — Eu nunca disse que esta-va. Falei a jakov que ficaria de olho enquanto ele usava a latrina. deve estar de volta a qualquer minuto.

Fletcher cerrou os punhos, quase incapaz de compreender a real di-mensão do golpe de didric. Contemplou a carcaça decapitada ao lado dos mocassins arruinados. Enquanto a fúria subia como bile à sua gar-ganta, o rapaz tinha só um pensamento: isso não acabaria ali. nem em um milhão de anos.

Conjurador.indd 13 02/07/2015 12:26:01

Page 11: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

14

2

— Saia dessa cama, Fletcher. Este é o único dia do ano em que eu real-mente preciso de você acordado na hora certa. não posso cuidar da bar-raca na feira e ferrar cavalos ao mesmo tempo. — O rosto avermelhado de Berdon surgiu assim que Fletcher abriu os olhos.

O rapaz grunhiu e puxou os cobertores sobre a cabeça. jakov o tinha feito esperar do lado de fora por uma hora antes de deixá-lo entrar, com a condição de que Fletcher lhe pagasse um drinque da próxima vez que os dois estivessem na taverna.

antes que pudesse se deitar, Fletcher teve de estripar e esfolar o alce, além de cortar a carne e pendurá-la junto à lareira para secar. O ra-paz se permitiu apenas uma única fatia suculenta, assada por alguns poucos minutos no fogo, antes que ele perdesse a paciência e devorasse tudo. no inverno era sempre melhor salgar e secar a carne para mais tarde; Fletcher geralmente não tinha como saber quando faria a próxi-ma refeição.

— agora, Fletcher! E vá se lavar. você está fedendo como um porco. não quero que afaste os clientes. ninguém vai querer comprar de um vagabundo. — Berdon arrancou as cobertas e saiu do minúsculo quarto do aprendiz, nos fundos da forja.

O rapaz estremeceu com a perda dos cobertores e se sentou. O quarto estava mais quente do que ele esperava. Berdon provavelmente passara a

Conjurador.indd 14 02/07/2015 12:26:01

Page 12: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

15

noite toda na forja ardente, se preparando para o dia de feira. Fletcher já aprendera havia muito tempo como se manter adormecido sob o retinir de metal, o rugido dos foles e o chiado das armas incandescentes sendo temperadas.

Ele atravessou penosamente a sala da forja até o pequeno poço do lado de fora, do qual Berdon costumava tirar a água de têmpera. Puxou o balde e, após um único instante de hesitação, despejou a água gela-da na cabeça. a túnica e as calças também se encharcaram mas, consi-derando que ainda estavam cobertas do sangue da noite anterior, isso deveria lhes fazer algum bem. depois de vários outros baldes e uma esfregada enérgica com uma pedra-pomes, Fletcher estava de volta à forja, tremendo de frio e com os braços cruzados.

— venha cá, deixe-me dar uma olhada em você.Berdon estava parado à entrada do próprio quarto, com os longos

cabelos ruivos iluminados pela lareira. Era de longe o maior homem da vila, e as longas horas martelando o metal na forja lhe concederam om-bros largos e um peitoral sólido como um barril. Ele fazia com que Fle-tcher, um rapaz pequeno e magro para a idade, parecesse ainda menor.

— Bem como eu pensava. você precisa se barbear. minha tia Gerla tinha um bigode mais grosso que esse. Livre-se dessa penugem rala até que você tenha um de verdade, como o meu.

Os olhos de Berdon brilhavam enquanto ele torcia as pontas do pró-prio bigode ruivo que se eriçava, grosso, acima da barba grisalha. Fle-tcher sabia que o ferreiro tinha razão. Hoje os mercadores viriam à vila, e eles frequentemente traziam as filhas, meninas da cidade grande com longas saias plissadas e madeixas cacheadas. mesmo que o rapaz já sou-besse, graças à amarga experiência, que elas torceriam o nariz quando o avistassem, não faria mal algum se estivesse apresentável.

— vamos lá. Enquanto se barbeia, vou separar a roupa que você vai vestir hoje. E nada de reclamar! Quanto mais profissional você parecer, melhor nossa mercadoria parecerá.

Fletcher saiu novamente para o frio congelante. a forja ficava bem ao lado dos portões da vila, cuja paliçada de madeira terminava a menos de um metro da parede dos fundos do seu quarto. Havia um espelho e uma

Conjurador.indd 15 02/07/2015 12:26:01

Page 13: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

16

pequena bacia largados ali perto. Fletcher sacou a faca de esfolamento e aparou a penugem, antes de inspecionar o próprio rosto no espelho.

Ele era pálido, o que não era surpreendente tão ao norte de Homi-num. Os verões eram curtos em Pelego, onde o garoto passava algu-mas curtas, mas divertidas, semanas com os outros meninos na floresta, pescando trutas nos córregos e assando avelãs na fogueira. Era a única época na qual Fletcher não se sentia um forasteiro.

a expressão dele era séria, com maçãs do rosto definidas e olhos cas-tanho-escuros um tanto encovados. O cabelo era um denso emaranha-do negro, que Berdon era obrigado a literalmente tosquiar quando fica-va selvagem demais. Fletcher sabia que não era feio, mas também não exatamente belo comparado aos meninos mais ricos, bem alimentados, de cabelos loiros e bochechas coradas da vila. Cabelos escuros eram in-comuns nos assentamentos do norte, porém, tendo sido abandonado aos portões quando era só um bebê, Fletcher não ficava surpreso ao notar que não se parecia em nada com os outros. Era só mais uma coisa que o separava do resto.

Berdon tinha deixado uma túnica azul-clara e calças verde-limão na cama do rapaz. Fletcher empalideceu perante aquelas cores, mas engoliu os comentários quando percebeu a advertência no olhar de Berdon. as roupas não pareceriam estranhas num dia de feira. Os mercadores eram conhecidos pelos trajes extravagantes.

— vou deixar você se vestir — comentou Berdon com uma curta risada, enquanto saía do quarto.

Fletcher sabia que as provocações do ferreiro eram sua maneira de demonstrar carinho, então elas não o incomodavam. O rapaz nunca fora do tipo tagarela, preferindo a companhia de si mesmo e dos pró-prios pensamentos. Berdon sempre respeitara sua privacidade, desde que o menino começara a falar. Era um relacionamento estranho, o solteirão rústico e bondoso com seu aprendiz introvertido, porém eles conseguiam fazer dar certo. Fletcher sempre seria grato por Berdon tê--lo acolhido quando ninguém mais o quis.

O menino tinha sido abandonado sem nada, nem mesmo uma cesta ou trouxa. apenas um bebê nu na neve, berrando a plenos pulmões

Conjurador.indd 16 02/07/2015 12:26:01

Page 14: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

17

diante dos portões. Os ricos esnobes não acolheriam a criança abando-nada, e os pobres não tinham condição de fazê-lo. Fora o inverno mais severo da história de Pelego, e a comida era escassa. no fim, Berdon se oferecera para ficar com o menino, já que tinha sido ele quem o encon-trara em primeiro lugar. O ferreiro não era rico, mas não tinha outras bocas a alimentar nem dependia das estações para trabalhar, então era a pessoa ideal em vários aspectos.

Fletcher nutria um ódio profundo pela mãe, mesmo que não fizesse ideia de quem ela fosse. Que tipo de pessoa deixaria seu bebê nu para morrer na neve? O menino sempre se perguntava se não teria sido uma garota de Pelego, incapaz ou indisposta a criá-lo. Às vezes vasculhava os rostos das mulheres ao seu redor, comparando suas feições às próprias. não sabia por que se dava a tal trabalho; nenhuma delas se parecia em nada com ele.

a barraca de Fletcher, carregada de espadas e adagas brilhantes, já estava montada junto à estrada principal, que ia do portão até os fundos da vila. E não era a única. Pelo caminho havia outras, lotadas de carnes e pelos. Outras mercadorias também estavam à mostra: móveis cons-truídos com os altos pinheiros que cresciam no dente de urso e flores da montanha, de pétalas prateadas, em jarros para os jardins das ricas donas de casa da cidade.

Couro era outro produto famoso de Pelego, cujas jaquetas e os gibões eram valorizados acima de todas as outras pela qualidade do corte e da costura. Fletcher estava de olho numa jaqueta em particular. O rapaz tinha vendido quase todas as peles que conseguira naquele ano a ca-çadores, e fora capaz de economizar mais de trezentos xelins para essa compra. Ele a viu pendurada mais adiante, mesmo que janet — a mer-cadora que tinha passado várias semanas fazendo o casaco — tivesse lhe dito que ele só poderia comprar pelos trezentos xelins se ninguém fizesse uma oferta melhor até o fim do dia.

a jaqueta era perfeita. Forrada com pelo ultrafelpudo de lebre da montanha, macio e cinzento, salpicado de castanho. O couro propria-mente dito era de um mogno profundo, robusto e imaculado. Era à prova d’água e não mancharia fácil, nem se rasgaria quando Fletcher

Conjurador.indd 17 02/07/2015 12:26:01

Page 15: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

18

perseguisse uma presa por entre os espinheiros da floresta. O rapaz já se via vestindo o casaco; agachado na chuva, bem aquecido e camuflado com uma flecha preparada no arco.

Berdon estava sentado atrás dele, diante da forja, ao lado de uma bigorna e uma pilha de ferraduras. mesmo que suas armas e armaduras fossem de alta qualidade, ele tinha aprendido que havia muito dinheiro a se ganhar ferrando os cavalos de carga dos mercadores exaustos, cuja longa jornada pelas vilas remotas ao longo do dente de urso tinha ape-nas começado.

no último ano que os mercadores apareceram, Fletcher passara o dia inteiro ocupado, até mesmo afiando as espadas depois que a barraca ficara vazia. Tinha sido um ótimo ano para se vender armas. O império de Hominum havia declarado guerra numa nova frente ao norte das montanhas do dente de urso. Os clãs élficos tinham se recusado a pagar o imposto anual, dinheiro que o império de Hominum exigia em troca da proteção contra as tribos órquicas das selvas do sul, lá do lado oposto do país. O império declarara guerra para cobrar as dívidas, e os merca-dores temiam grupos de elfos saqueadores. no fim, acabou sendo uma guerra de princípios com algumas escaramuças e nada mais, e acabou num acordo de cavalheiros, acertando que o conflito não se agravaria. Havia uma coisa na qual tanto Hominum quanto os clãs élficos concor-davam implicitamente: os orcs eram o verdadeiro inimigo.

— Será que eu vou ter tempo de dar uma olhada na feira este ano? — perguntou Fletcher.

— acho que sim. não há muita demanda por armas novas desta vez. as novas tropas do dente de urso podem ser compostas de velhos e alei-jados, mas acho que os mercadores acreditam que a presença dos mili-tares vá desencorajar os salteadores a vaguear por estas bandas e atacar seus comboios. O pior é que provavelmente estão certos; não acho que terão de se defender muito este ano. não faremos muitos negócios com eles. mas, pelo menos, sabemos que ainda há necessidade dos meus ser-viços da parte dos militares, depois da sua visita à linha de frente no mês passado.

Fletcher estremeceu com a lembrança da jornada sobre a montanha até o forte mais próximo. a linha de frente era um lugar tenebroso, cheio

Conjurador.indd 18 02/07/2015 12:26:01

Page 16: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

19

de homens com olhares vazios, esperando pelo fim de seu período de serviço. a frente élfica era o lixão onde eram despejados os homens que o exército não queria mais, as barrigas vazias incapazes de lutar.

Fricção. Era assim que alguns soldados explicavam. alguns a consi-deravam uma bênção, longe dos horrores das trincheiras na selva. Os homens morriam aos milhares na frente órquica, suas cabeças eram tomadas como troféus e abandonadas em estacas à beira da mata. Os orcs eram uma raça selvagem e brutal, criaturas de trevas com intenções implacáveis e sádicas.

Porém, havia um tipo diferente de horror na fronteira com os elfos: uma degradação constante. inanição lenta e crescente pela ração insu-ficiente. Exercícios sem fim aplicados por sargentos cansados que não sabiam mais o que fazer. Generais tacanhos que permaneciam em seus gabinetes aquecidos enquanto seus homens tremiam em seus catres.

O intendente estivera relutante em comprar qualquer coisa, mas ele precisava cumprir a quota, e as linhas de suprimentos sobre o dente de urso tinham se reduzido a um fiapo havia muito, devido ao aumento da demanda na frente órquica. O fardo de espadas que Fletcher estivera carregando nas costas desde aquela manhã fora vendido por muito mais dinheiro do que valia, deixando a bolsa do garoto pesada com xelins de prata, ainda que consideravelmente mais leve que antes. Se tivesse tra-zido mosquetes, teria sido pago com soberanos de ouro. Berdon estava torcendo para que os mercadores trocassem armas de fogo por espadas. Se fosse o caso, ele poderia revender os mosquetes ao intendente na próxima estação.

naquela noite, enquanto jazia deitado no beliche que lhe empres-taram no alojamento do quartel, esperando a manhã para que pudesse voltar a Pelego, Fletcher decidiu que, se algum dia se alistasse no exérci-to, jamais se permitiria acabar num lugar como aquele.

— você, garoto. Tire sua barraca da frente dos portões. vai bloquear o caminho dos mercadores — ralhou uma voz imperiosa, interrompen-do seus pensamentos.

Era o pai de didric, Caspar; um homem alto e magro vestido com roupas caras de veludo, costuradas a mão com tecido púrpura bordado

Conjurador.indd 19 02/07/2015 12:26:01

Page 17: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

20

delicadamente com ouro. Encarava Fletcher como se sua mera existên-cia o ofendesse. didric se escondia atrás dele, com um sorriso no ros-to e o cabelo loiro emplastrado de cera, dividido para o lado. Fletcher olhou a barraca vizinha, consideravelmente mais próxima da estrada que a dele.

— não vou mandar de novo. Tire agora, ou chamarei os guardas — mandou Caspar, com rispidez. Fletcher olhou para Berdon, que ergueu os ombros largos e lhe deu um aceno de cabeça. no fim das contas, não faria a menor diferença. Se alguém precisasse de armas, conseguiria encontrá-los.

didric piscou um olho e fez um gesto de “xô”. Fletcher ficou verme-lho, mas começou a se mexer para cumprir a ordem. a hora de didric ainda chegaria, mas o pai do guarda era um homem incrivelmente po-deroso. Era agiota e tinha a vila quase inteira no bolso. Quando um bebê precisava de remédio da cidade, Caspar estava lá. Quando uma tem-porada de caça ia mal, Caspar estava lá. Como poderia um camponês que mal era capaz de assinar o próprio nome compreender o conceito de juros compostos ou os números complexos escritos acima? no fim, todos descobriam que o preço da própria salvação era muito maior do que eles poderiam pagar. Fletcher odiava que Caspar fosse reverenciado por tanta gente na vila, mesmo não passando de um vigarista.

Enquanto Fletcher lutava para puxar a barraca, derrubando várias adagas cuidadosamente polidas na terra, o sino da vila começou a soar. Os mercadores tinham chegado!

Conjurador.indd 20 02/07/2015 12:26:01

Page 18: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

21

3

a feira começou, como de costume, com o ranger de rodas e o estalar de chicotes. a trilha encosta acima era irregular e íngreme, porém ainda assim os mercadores forçavam seus cavalos ao limite no trecho final, an-siosos para pegar os melhores pontos no fim da estrada principal da vila. aqueles que chegavam por último inevitavelmente acabavam perto do portão, longe do movimento dos pedestres que vagavam pelo interior.

Caspar estava parado na entrada, chamando-os com acenos, sorrin-do e concordando com a cabeça aos cocheiros dos carroções lotados conforme eles entravam pelos portões. Fletcher percebia como os cava-los tinham se esforçado nessa jornada; seus flancos brilhavam com uma camada de suor e os olhos estavam selvagens de exaustão. O rapaz abriu um sorriso culpado com o estado dos animais, sabendo que Berdon se manteria ocupado hoje. Fletcher esperava que eles tivessem ferraduras suficientes para todos.

após a passagem do último carroção pelo portão, dois homens com pesados bigodes loiros e quepes entraram trotando na vila. Seus cavalos não eram as bestas de carga que puxavam os veículos do comboio, mas corcéis pesados com flancos largos e cascos do tamanho de pratos. Eles balançaram as rédeas ao passar da trilha de terra aos paralelepípedos irregulares. Fletcher ouviu Berdon praguejar atrás e fez uma careta de solidariedade.

Conjurador.indd 21 02/07/2015 12:26:01

Page 19: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

22

Os uniformes negros lustrosos com botões de latão os identificavam como Pinkertons — homens da lei da cidade grande. Os mosquetes que traziam nas mãos não deixavam dúvida alguma. Fletcher olhou de relance para os porretes com tachas de metal embainhados nas selas. Poderiam quebrar braços e pernas sem dificuldades, e o fariam sem es-crúpulos, pois os Pinkertons só respondiam ao próprio rei. Fletcher não fazia ideia de por que estavam escoltando o comboio, mas a presença dos dois significava que haveria pouca necessidade de proteção no ca-minho. as vendas em sua barraca seriam escassas naquele dia.

Os dois homens poderiam ser irmãos de tão parecidos, com cabelos loiros encaracolados e olhos cinzentos e frios. Eles desmontaram, e o mais alto da dupla caminhou até Fletcher, levando o mosquete casual-mente nas mãos.

— Garoto, leve nossos cavalos ao estábulo da vila e lhes dê água e co-mida — comandou com voz severa. Fletcher o encarou boquiaberto, es-pantado com a ordem tão direta. O homem indicou os cavalos enquanto o garoto continuava parado, não querendo deixar a barraca sozinha.

— não perca tempo com esse moleque, ele é meio lerdo — interveio Caspar. — nós não temos um estábulo da vila. meu filho vai tomar con-ta dos seus cavalos. didric, leve-os aos nossos estábulos particulares e mande o cavalariço dedicar a eles uma atenção especial.

— mas, pai, eu queria... — começou didric, com voz lisonjeira.— vá agora, e não demore! — interrompeu o pai. didric corou e lan-

çou um olhar furioso a Fletcher antes de pegar as rédeas dos dois cavalos e guiá-los pela rua.

— Então, o que os traz a Pelego? não vemos nenhuma cara nova há semanas, se estiverem perseguindo foras-da-lei — contou Caspar, estendendo a mão.

O Pinkerton mais alto apertou-lhe a mão com relutância, forçado a ser educado agora que seu cavalo estava sob os cuidados de Caspar.

— nossos assuntos são com o exército na fronteira élfica. O rei ex-pressou o desejo de recrutar criminosos às tropas e, ao fazê-lo, dar baixa em suas sentenças de prisão. Estamos investigando se os generais seriam receptivos a isso, em nome de Sua majestade.

Conjurador.indd 22 02/07/2015 12:26:01

Page 20: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

23

— Fascinante. É claro que sabíamos que os alistamentos se reduzi-ram recentemente, mas isso muito me surpreende. Que solução elegante ao problema — elogiou Caspar, com um sorriso duro. — Quem sabe poderíamos conversar sobre o assunto durante o jantar, com um pouco de conhaque? Cá entre nós, a estalagem local é imunda, e ficaríamos felizes em lhes oferecer camas confortáveis depois da sua longa jornada.

— Ficaríamos agradecidos. viemos de Corcillum e não dormimos numa cama limpa há quase uma semana — admitiu o Pinkerton, tiran-do o chapéu.

— Então vamos lhes preparar um banho e um desjejum quentinho. meu nome é Caspar Cavell, e sou uma espécie de conselheiro da vila... — continuou o agiota, guiando os dois homensrua abaixo.

Fletcher considerou as notícias enquanto as vozes se afastavam. Cri-minosos sendo recrutados nas forças armadas era algo que ele jamais tinha considerado. muitos rumores afirmavam que o recrutamento for-çado de todos os jovens era iminente, o que o empolgava e preocupa-va igualmente. O alistamento obrigatório havia sido implementado na Segunda Guerra Órquica, séculos antes. aquela guerra fora motivada por bandos de orcs saqueadores que roubavam gado e massacravam os aldeões do nascente império de Hominum. Centenas de vilas acabaram exterminadas antes que os orcs fossem, enfim, rechaçados de volta às selvas.

desta vez fora Hominum que iniciara as hostilidades, ao devastar as florestas dos orcs para alimentar a revolução industrial que acabara de começar. Sete anos haviam se passado, e a guerra não demonstrava sinais de que terminaria tão cedo.

— Se eu pudesse forjar aqueles mosquetes, não precisaria sequer abrir a barraca — resmungou Berdon atrás do menino. Fletcher con-cordou com um aceno de cabeça. mosquetes, produzidos pelos artífices anões que viviam nas entranhas de Corcillum, estavam em alta demanda na linha de frente. as técnicas empregadas na criação dos canos retos e mecanismos eram segredos muito bem protegidos pelos zelosos anões. Era um negócio lucrativo, ainda que a tecnologia só tivesse sido imple-mentada pelo exército recentemente. antes os orcs podiam ser capazes

Conjurador.indd 23 02/07/2015 12:26:01

Page 21: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

24

de resistir a uma saraivada de flechas em batalha, mas uma barragem de fogo de mosquete tinha muito mais poder para travar seu avanço.

Foi então que Fletcher percebeu um último viajante entrando pelos portões. Era um soldado veterano, com cabelos grisalhos e barba por fazer. vestia um uniforme branco e vermelho de tecido esfarrapado e gasto, manchado com lama e poeira da viagem. muitos dos botões de la-tão da túnica estavam ausentes ou pendurados, soltos. O homem estava desarmado, algo incomum a um membro de um comboio de mercado-res, e ainda mais estranho para um soldado.

O veterano não tinha cavalo ou carroça; em vez disso conduzia uma mula sobrecarregada com alforjes. as botas que calçava estavam em es-tado lastimável, com solas gastas e furadas, balançando soltas com cada passo cambaleante que ele dava. Fletcher observou enquanto o sujeito se instalava no espaço diretamente oposto a ele do outro lado da estra-da, amarrando a mula na haste da barraca vizinha e lançando um olhar severo ao vendedor antes que ele pudesse protestar.

O soldado descarregou os alforjes, abrindo uma lona de pano e or-ganizando vários objetos sobre ela. Provavelmente estaria a caminho da frente élfica, transferido do sul por ser velho demais para o combate, porém demasiado incompetente para ser promovido a oficial. Como se pudesse sentir o olhar do menino, o velho se endireitou e sorriu perante sua curiosidade, exibindo uma boca com muitos dentes ausentes.

Fletcher esticou o pescoço para dar uma olhada melhor no soldado, e arregalou os olhos ao ver o que estava à venda. Havia enormes pontas de flecha de sílex do tamanho da mão de um homem, com bordas ser-rilhadas para criar farpas que se prenderiam à carne. Colares feitos de fileiras de dentes e orelhas dessecadas foram desembaraçados e expos-tos como os mais delicados pingentes. um chifre de rinoceronte com uma ponteira de ferro foi destacado à frente da coleção. a peça principal era uma enorme caveira de orc, duas vezes maior que a de um homem. Tinha sido polida e branqueada pelo sol da selva, com um cenho largo se projetando bizarramente sobre as órbitas oculares. Os caninos infe-riores eram maiores do que Fletcher imaginara, estendendo-se como presas de uns 8 centímetros de comprimento. Eram suvenires da frente

Conjurador.indd 24 02/07/2015 12:26:01

Page 22: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

25

de batalha, vendidos como curiosidades às cidades do norte, distantes de onde a verdadeira guerra acontecia.

O menino se virou e lançou um olhar pidão a Berdon, que também ti-nha visto as mercadorias do recém-chegado. O ferreiro balançou a cabe-ça e indicou a própria barraca com um aceno. Fletcher suspirou e voltou a atenção à arrumação dos produtos. Seria um dia longo e infrutífero.

Conjurador.indd 25 02/07/2015 12:26:01

Page 23: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

CONT

Page 24: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Capítulo 1

Rory apertou a mão da irmã, perguntando-se se ela conseguia sentir o suor frio

na palma dele. A fila em que estavam avançava implacável em direção à entrada da

tenda, onde os Inquisidores aguardavam.

Ele tentou evitar os olhares dos aldeões curiosos que assistiam e cochichavam

entre si toda vez que uma criança entrava, irrompendo então em vivas quando ela saía

ilesa.

— A gente pode ir brincar agora? — indagou Daisy, tirando o polegar da boca.

— Isto é tão chato.

Rory forçou um sorriso e segurou a mão da irmã com mais força. Os olhinhos

azul-bebê o contemplavam de baixo, tomados por impaciência infantil. Ele acariciou o

cabelo loiro emaranhado e soltou os nós com os dedos.

— Claro que podemos. Só temos que fazer um testezinho rápido e então faremos

o que você quiser.

Daisy sorriu e voltou a chupar o dedão, seu passatempo favorito. Não importava

o quanto a mãe brigasse, a menina sempre estava com o dedo na boca. Rory amava isso

na irmã; nada a perturbava, nem mesmo a ameaça de umas chineladas. Nem mesmo um

teste com os Inquisidores.

Daisy era jovem demais para ser considerada, mas aquela era a primeira vez que

os Inquisidores visitavam a vila de Robur. Eles haviam requisitado o comparecimento

de todas as crianças, independentemente da idade, para que pudessem mandar buscá-las

quando tivessem idade para lutar.

Quanto a Rory, ele acabara de completar 15 anos. Se seu teste o indicasse como

adepto, a Inquisição poderia levá-lo embora de seu lar, mesmo que o rapaz não quisesse

partir. Mandariam-no para lutar como mago de batalha nas trincheiras da selva, junto

aos soldados durões do Sul. Mesmo que acabasse ferido, poderia ser enviado como

refugo à frente élfica para apodrecer com os aleijados, os insanos e os doentes.

De certa forma, a segunda opção parecia melhor. Robur ficava a poucos

quilômetros das linhas de frente élficas, no extremo nordeste de Hominum. Havia

pouquíssimos soldados nesta ponta da fronteira; somente um forte antigo e um pequeno

pelotão de dez homens. Os generais tinham decidido que as montanhas Dente de Urso a

oeste eram de importância estratégica muito maior. Se Rory conseguisse ser refugado,

quem sabe poderia ser alocado ali perto.

Page 25: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

— Rory — reclamou Daisy, puxando a mão do irmão. — Não quero fazer o

teste, tá demorando demaaaais.

Rory se ajoelhou e a abraçou.

— Se nós não entrarmos, mamãe vai ter problemas. Não pode esperar mais um

pouquinho? Eu carrego você nas minhas costas na volta para casa, se esperar.

— Tá bom, mas eu também quero ser carregada agora, minhas pernas estão

cansadas.

Rory sorriu com o pedido, afastando as preocupações. Daisy era capaz de correr

o dia inteiro sem se cansar, mas ainda assim ele ficou feliz em colocá-la nos ombros,

oferecendo uma boa vista.

— Rory, bote ela no chão! — veio uma voz da multidão próxima.

Era a mãe deles, voltando da coleta de flores na encosta da Dente de Urso. A

cesta que carregava estava transbordando de pétalas azuis, prontas para as perfumarias

de Boreas e Corcillum.

— Está tudo bem, mãe, ela gosta! — respondeu Rory, balançando Daisy para

cima e para baixo. Ele estremeceu quando a irmã riu e agarrou um punhado de cabelos

loiros espetados para se segurar.

— Só acabem logo com isso e venham para casa. Preciso de ajuda para embalar

essas flores.

Rory, obediente, fez que sim com a cabeça, mas a lembrança do teste iminente

acabou com seu bom humor. Sentiu pena da mãe. Ela tivera uma vida difícil, criando-os

sozinha com a renda mirrada de uma catadora de flores. Rory ainda se lembrava de sua

aparência do tempo em que era um garotinho. Ela fora bela então, com longas madeixas

cor de mel e olhos faiscantes. Hoje em dia, por outro lado, vivia com o rosto

amargurado de preocupação, os cabelos das têmporas repletos de fios grisalhos.

Rory se lembrou de que ela estaria cansada da longa manhã nas encostas da

montanha. Ele seria um bom filho aquela noite e a deixaria descansar. A mãe merecia

uma folga.

— Rory, anda logo! — sibilou um menino atrás dele. Rory foi empurrado

adiante, avançando aos tropeços até a entrada da tenda. Um guarda com o uniforme

vermelho do exército real indicou Daisy com um gesto da cabeça. Rory a colocou no

chão e lhe deu a mão.

O soldado deve ter notado a expressão em seu rosto, pois lhe lançou um sorriso

encorajador.

Page 26: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

— Não se preocupe, guri, não vai doer. Vocês vão entrar e sair num minuto.

Com isso, empurrou os dois para dentro da tenda e fechou a aba atrás deles.

O interior estava mergulhado em penumbra; um candelabro solitário ao centro

do aposento, com velas fumacentas posicionadas em seus suportes, era a única fonte de

luz. O ar parecia grudento e pesado, provocando em Rory o desejo súbito de se lavar.

Havia dois homens logo à frente, com rostos carregados de mau-humor e

impaciência. Seus uniformes eram de boa feitura e ajustados ao corpo, cerzidos de

tecido preto com botões e bordados dourados. Os olhos do garoto não conseguiram

deixar de correr às bainhas, de onde pendiam espadas filigranadas.

O homem mais próximo deu um passo à frente e estalou os dedos com

impaciência.

— A garota primeiro. Estenda a mão.

O Inquisidor tinha olhos estranhamente fundos e uma tez doentia. Sua silhueta

era magricela, quase malnutrida. Daisy deu um passo hesitante à frente, depois recuou

de novo quando o homem lhe deu um sorriso com lábios finos.

— Você está assustando a pobre menina, Charles. — disse o outro homem. —

Ande logo com isso; já ficamos tempo demais neste fim de mundo.

Era um sujeito de aparência severa, pálido e com pequenos olhos negros que

reluziam perigosamente. Tinha o cabelo preso num rabo de cavalo, tão puxado para trás

que a pele parecia se esticar sobre o crânio como a lona de um tambor.

— Cuidado, Rook. Você se esquece de que fiz a maioria dos testes hoje. Prefere

tomar meu lugar? — retrucou Charles, exibindo os dentes num sorriso ainda mais largo

e chamando Daisy para si.

— Não, acho que não. Quem sabe que doenças essas crianças imundas

carregam? Não vou tocar em mais nenhuma enquanto estiver aqui. Ah, como queria

voltar a Corcillum...

Daisy deu mais um passo atrás, e Rory percebeu que a corajosa irmãzinha estava

assustada. Ele se adiantou e a segurou gentilmente pelo pulso. Quanto antes saíssem

dali, melhor.

— Vamos lá, Daisy... Aperte a mão do moço bonzinho para que a gente possa

sair e brincar — insistiu, acenando respeitosamente com a cabeça para Charles.

— Não acho que ele seja tão bonzinho assim, Rory — respondeu Daisy

cautelosa, provocando uma risada seca de Rook.

Page 27: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Charles estalou a língua com impaciência e estendeu os finos dedos brancos,

pousando-os no pulso exposto de Daisy. O Inquisidor fechou os olhos e franziu o cenho,

como se estivesse profundamente concentrado.

Rory arregalou os olhos ao ver as pontas dos dedos de Charles se iluminando

com um pulso tênue de luz azul, e seu coração disparou com a possibilidade de que

Daisy fosse uma adepta. Porém, Charles logo tirou a mão, balançando a cabeça

desapontado.

— Mais uma normal — anunciou, dispensando Daisy com um aceno. A menina

se escondeu atrás de Rory e abraçou a cintura do irmão. — Garoto, você sabe o que

fazer.

Rory estendeu a mão, já pensando no ar fresco e na luz do sol. A primeira coisa

que ele e Daisy fariam depois de sair seria nadar no riacho da vila. Focou seus

pensamentos na água cristalina, tentando ignorar os dedos úmidos que tocavam na pele

da sua palma.

A mão do sujeito latejou com luz azul de novo e o coração de Rory se elevou.

Era igual a como fora com Daisy. Ele estava seguro. O alívio se infiltrou pelo menino

como fogo. O sangue borbulhou, pulsando febrilmente com cada batida do coração.

— Eu não acredito — sussurrou Charles. — Eu disse que valeria a pena vir aqui,

Rook.

Rory arrancou a mão num puxão, pois a sentiu queimar e congelar ao mesmo

tempo. Com um sobressalto horrorizado, viu que ela brilhava com a mesma luz azul, tão

brilhante que a mera visão doía em meio à escuridão da tenda. Tentou recuar e sair

daquele lugar, mas, de alguma forma, Rook já estava ao seu lado, segurando-o com

firmeza pelos ombros, com braços que pareciam feitos de ferro.

— Ora, ora. Parece que temos um adepto nas mãos.

Page 28: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Capítulo 2

Rory se afastou de Rook, agitando-se como uma enguia para escapar de suas

mãos.

— Espere, menino — rosnou o Inquisidor, agarrando-lhe os ombros. — Você

não sabe o que nós temos a oferecer. Charles, contenha-o!

Só que Charles agiu tarde demais, pois enquanto estendia a mão esquelética,

Rory acertou uma cotovelada na barriga de Rook e pegou Daisy nos braços.

— Segure firme — sussurrou asperamente enquanto saía correndo pela porta.

Ele quase foi cegado pela luz do sol. A multidão aplaudiu, depois se sobressaltou

ao vê-lo passar correndo. Seus pés pareciam flutuar sem peso sobre a trilha da vila,

impulsionados pelo medo dos Inquisidores que o perseguiam, mesmo que, em sua

imaginação, a ideia daqueles dois homens de rostos duros à sua caçada fosse quase

cômica. Quando começou a reduzir a velocidade, Rory ouviu gritos atrás de si. Algo

vinha em sua direção.

O limite da vila chegou e passou, e o rapaz se viu correndo em direção à

fronteira, saltando por colinas idílicas. Daisy ria e gargalhava, agarrada à camisa do

irmão.

— Mais rápido, Rory, mais rápido!

Ainda assim, ele ouvia o trovejar de cascos atrás de si. Só que... não havia

cavalo algum na vila, havia?

Temendo por Daisy, Rory parou ao lado de uma alta touceira de capim no sopé

de uma colina.

— Esconda-se aqui até que eu venha achar você. Se eu não tiver chegado até o

pôr do sol, volte para casa — sibilou o menino, empurrando a irmã na touceira.

— Mas Rory, você disse que a gente ia brincar! — reclamou Daisy, tentando se

levantar.

— Por favor, Daisy, por favor! — implorou ele, ouvindo o barulho dos cascos

ficar mais alto. — É esconde-esconde.

— Mas você já sabe onde eu estou — retrucou a irmã, cruzando os braços em

teimosia.

— A mamãe tá brincando também — inventou Rory, tentando empurrá-la de

volta à grama. — Nós dois estamos nos escondendo.

— Ah... tudo bem, então.

Page 29: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Ela se agachou bem a tempo, pois um urro de fúria soou no topo da colina. Rory

se virou e viu um enorme humanoide com cabeça de touro, trovejando ao avançar. Os

chifres curvos da criatura pareciam estar apontados diretamente para ele, as narinas

fungando com cada passo. Rory ouvira falar nessas criaturas por um dos soldados locais

que visitavam a vila de vez em quando. Um Minotauro.

Seguiu em disparada, evitando as tocas de coelho que poderiam derrubá-lo de

cara no chão ou até fazê-lo quebrar um tornozelo, com a velocidade em que corria. O

Minotauro seguia em seu encalço, com fortes fungadas e cascos furiosos que diziam a

Rory que o demônio estava na sua cola.

Logo o velho forte surgiu ao longe, parecendo prestes a desmoronar e marcando

a fronteira entre Hominum e a Grande Floresta dos elfos. Acima dele, os topos de

árvores gigantescas borravam o horizonte.

Rory via as silhuetas de soldados nas muralhas, vigiando a floresta. Por um

momento, perguntou-se se poderia buscar santuário ali. Porém, por que aqueles homens

enfrentariam um demônio, ainda por cima um pertencente a um Inquisidor? Os

Inquisidores eram os cães de caça do rei, investigadores que vigiavam a nobreza e

administravam o influxo de conjuradores plebeus. Conjuradores como ele, percebeu

Rory.

Em vez de seguir para o forte, ele desviou ao seu redor, forçando-se a correr

mesmo com a dor que sentia no flanco. O coração batia forte no peito e a respiração

ardia nos pulmões, mas o Minotauro era incansável, mantendo um galope constante que

parecia devorar a terra pela qual passava.

Logo Rory estava meio correndo, meio cambaleando sobre as pedras brancas

que delineavam a própria fronteira de Hominum. Lembrou-se de quando ele e os amigos

tinham desafiado uns aos outros para ver quem arriscava avançar mais do outro lado da

linha. Uma vez, Rory pegara uma das pedras brancas para si, atirando-a de volta ao

perder a coragem, vinte passos além da fronteira. Agora, Rory cambaleou além dela,

quebrando o recorde que estabelecera cinco anos antes. Enquanto alcançava a sombra

das árvores, porém, tropeçou numa raiz serpenteante, escondida logo abaixo da camada

mais alta de solo.

Esperou pelo fim, ofegando como um peixe encalhado na praia. Perguntou-se se

o Minotauro o pisotearia até a morte, ou se simplesmente o espetaria nos chifres. Talvez

fosse espancá-lo como faria um gorila da selva, deixando-o para morrer com os ossos

moídos na penumbra da mata.

Page 30: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Continuou respirando, saboreando cada inspiração ardente, olhos borrados com

lágrimas, abdome doendo e relaxando conforme o corpo se recuperava da fuga

desesperada.

Um minuto se passou. Depois outro. Rory ousou se sentar, arrastando-se até a

base da árvore mais próxima. Seus músculos doíam conforme ele se puxava de volta à

fronteira. Ao longe, o Minotauro andava de um lado para o outro ao longo da linha de

pedras brancas. Quando o demônio viu que Rory olhava para ele, soltou um urro

tristonho, como o mugir de uma vaca com a paixão de um uivo de lobo.

Rory sorriu, segurando o flanco. A criatura não cruzaria a fronteira, a não ser

que quisesse romper o cessar-fogo não oficial de que os dois lados gozavam havia

alguns anos.

— Há! — tossiu Rory, usando a árvore como apoio para se levantar. — Seu

bufão ridículo! Estou livre!

O Minotauro o encarou com ódio do outro lado, os pelos negros de seus ombros

eriçados de raiva.

— Eu não teria tanta certeza — sussurrou uma voz do alto.

Rory olhou para cima e deu de cara com a ponta de uma flecha, fazendo cócegas

na ponta de seu nariz.

— Feche os olhos — disse a voz. — Você é meu prisioneiro agora.

Rory foi embalado como um frango pronto para o forno, os joelhos pressionados

com força contra o peito e os braços segurando as pernas. Na verdade, estava

exatamente na posição que Daisy assumia na hora de histórias, só que ao lado dele. No

momento em que pensou nisso, o captor misterioso o ergueu, de modo que Rory ficou

sentado de costas para a árvore mais uma vez.

Havia um crepitar de fogo e calor próximo ao seu rosto, mas o menino nada

podia ver, pois uma venda fora amarrada firmemente sobre seus olhos. Ele não poderia

sequer falar, pelo menos não facilmente, devido à mordaça que completava a lista de

amarras.

— Você não vai gritar — sussurrou a elfa. Pois só poderia ser isso: uma elfa. —

Você não vai olhar para nada além do meu rosto. Você não vai lutar. Na verdade, mal

vai se mexer. Estes são meus termos. Concorda?

Rory fez um barulho inarticulado pela mordaça, pouco mais que um gorgolejar.

— É só acenar com a cabeça — instruiu a elfa, com um tom impaciente mas um

tanto bem-humorado.

Page 31: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

Rory assentiu lentamente, e a mordaça foi removida primeiro, seguida pela

venda.

— Obrigado — sussurrou Rory, examinando a captora.

A elfa estava de cócoras à sua frente, equilibrando-se nas pontas dos pés ao lado

de uma pequena fogueira. Ela segurava uma afiada faca de esfola contra o peito dele, e

havia uma aljava cheia de flechas amarrada às suas costas. As roupas eram feitas de

tiras de pelo castanho-acinzentado e couro, e pele de lobo cobria-lhe os ombros como

um manto. O rosto estava pintado com lama, de modo que os olhos azul-celeste

brilhavam ainda mais forte em meio à terra. O mais impressionante, no entanto, eram as

orelhas em forma de diamante que se projetavam da cabeleira dourada, por sua vez uma

moldura para as feições angulosas da elfa.

— Nunca vi um humano antes — anunciou ela, claramente tão fascinada pela

aparência de Rory quanto ele estava pela dela.

Estendeu a mão, como se quisesse tocar as orelhas do rapaz, então a puxou de

volta, envergonhada.

— Sem armas — murmurou, passando os olhos pelo corpo de Rory. — Sem

equipamento. Nem mesmo um casaco. O que você está fazendo aqui, garoto?

— Estou fugindo — declarou Rory, erguendo o queixo, desafiador. — Você

pode me matar agora, mas não vou voltar. Prefiro acabar meus dias aqui na floresta do

que ser capturado por um orc nas selvas.

— Um voluntário, então? — indagou a elfa, as chamas da fogueira projetando

um tom de cobre em seu rosto. O sol já havia quase se posto, e a penumbra ao redor

deles se aprofundava devagar, deixando-os numa pequena esfera de luz.

— Eu não me alistei — resmungou o rapaz. — Os Inquisidores apareceram na

minha vila e descobriram que sou um conjurador. E conjuradores são mandados para

lutar nas selvas, sabe.

— Deviam estar voltando do nosso território — explicou a elfa, inclinando a

cabeça para o lado enquanto ponderava as palavras de Rory. — Testaram alguns dos

nossos jovens há alguns dias. Encontraram até alguns conjuradores dentre os filhos dos

chefes, mas só uma delas aceitou ser mandada para a academia de vocês.

— Só que... estamos em guerra... — sussurrou Rory. Depois fez uma pausa. —

Como assim, academia?

Ela riu, tirando a faca do peito do rapaz.

Page 32: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

— Parece que eu sei mais sobre o seu país que você — comentou a elfa,

sorrindo.

Cortou as cordas das mãos de Rory, mas deixou as pernas atadas.

— Você não vai ser mandado para lutar nas linhas de frente tão cedo — contou

ela, fitando os olhos do garoto em busca de sinais de falsidade. — Se fosse o caso, você

provavelmente morreria mesmo. Não, todos os conjuradores são mandados para

treinamento numa academia chamada Vocans. Vocês até ganham um demônio para

treinar. Vai levar alguns anos até que sequer veja um orc.

— Bem, se vocês estão mandando uma das suas elfas para lá, não deve ser assim

tão ruim — decidiu Rory, mordiscando o lábio. — Mas por que vocês fariam isso, de

qualquer maneira?

A elfa suspirou e se ajeitou numa posição mais confortável, de pernas cruzadas.

— Nós também tínhamos conjuradores, há centenas de anos. Porém, ao longo do

tempo, perdemos todos os nossos demônios e não capturamos mais nenhum. Pelo

menos é o que diz a história que a minha mãe contou. Quando se perde o último

demônio, não existe mais chance de capturar outros. Então, ao mandar alguém do nosso

povo à academia, ela receberá um demônio próprio. Com sorte, será a primeira numa

nova geração de conjuradores elfos.

— E o que nós humanos ganhamos com isso? — indagou Rory.

— Paz — respondeu a elfa simplesmente. — Talvez até a chance de uma

aliança. Vocês estão perdendo a guerra, amigo. Os orcs estão vencendo, e vocês

precisam da nossa ajuda. A filha do chefe que vai para a academia é um tipo de refém,

para garantir que mantenhamos o nosso lado do acordo.

Rory ficou ali sentado, espantado com as notícias. Talvez o Minotauro tentasse

capturá-lo, não matá-lo. Será que tinha cometido um erro terrível?

Tinha duas opções agora. Tentar escapar para as terras élficas, ou se jogar à

mercê dos Inquisidores. Outro pensamento lhe passou pela cabeça: será que sua mãe e

irmã seriam punidas se ele desertasse? A ideia lhe apunhalou como uma faca no

coração.

A elfa notou a consternação no rosto de Rory. Franziu o cenho em solidariedade

e soltou suas pernas com um golpe veloz da faca.

— A paz não se iniciará até que a nossa refém chegue à Academia Vocans, mas

vou soltar você.

— Assim, tão fácil? — perguntou Rory.

Page 33: O COnjuradO r — Livr O um - record.com.br · ao lado da trilha rochosa. ão queria danificar o pelame, a parte mais n valiosa do alce. Pele de animais era um dos poucos recursos

— Assim tão fácil.

O rapaz se levantou com dificuldade, estremecendo com as ondas de dor que

subiam e desciam pelas pernas. Na correria insana, aparentemente machucara todos os

músculos das coxas.

— Talvez a gente se encontre de novo, depois do fim da guerra entre nossos

povos — sugeriu a elfa, ajudando Rory a se levantar. — Meu nome é Dalia.

— Rory — respondeu ele. Apertou a mão dela, sentindo os estranhos calos que

todos os arqueiros tinham nos dois dedos.

— Eu tenho um favor a lhe pedir — disse Dalia, enquanto o rapaz flexionava os

braços para recuperar a circulação.

— Se estiver em meu poder — respondeu Rory, agradecido.

— Se você realmente for a Vocans, não conte a ninguém que já sabia sobre a

elfa, mesmo depois de conhecê-la. Eu tecnicamente cometi traição ao lhe contar.

— Pode deixar — respondeu Rory, apertando mais uma vez a mão de Dalia. Os

dois se encararam. Viviam em mundos diferentes, mesmo que fossem separados por

menos que um quilômetro de terra. Era estranho que estivessem tão perto um do outro

por tanto tempo, mas nunca tivessem se visto.

— Você vai ficar bem? — perguntou Dalia.

— Eu vou ficar bem.

Rory lhe deus as costas, com a fogueira agora atrás de si e a lua no céu como seu

único guia na escuridão à frente.

— Adeus — disse.

Então seguiu em frente, treva adentro.