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1 www.u fjf.br/revistageograa - v.3, n.2, p.1-10, 2013 O CONCEITO DE TERRITÓRIO COMO CAMPO DE PODER MICROFÍSICO Júlio Ambrozio Prof. Dr. do Departamento de Geociências. Universidade Federal de Juiz de Fora. Rua José Lourenço Kelmer , s/n - Campus Universitário, Bairro São Pedro - CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MG. E-mail: [email protected] Resumo Raffestin conduziu uma concepção de territó rio que inuenciou e ainda estimula variados trabalhos geográc os no Brasil. O objetivo aqui é demonstrar a relevância de Michel Foucault, com a sua microfísica simétrica e relacional do poder, no referido conceito de Raffestin. Palavras-chave: território, microfísica, cultura, espaço, poder. Résumé Raffestin a mené une conception de territoire qui a inuencé et stimulé et stimule encore des ouvrages géogra - phiques variées au Brésil . L’objectif ici est de montrer la pertinence de Michel Foucault, avec sa microphysique symétrique et relationnelle de pouvoir dans ce concept de Raffestin. Mots-clés: territoire, microphysique, culture, espace, pouvoir. Revista de Geografa - v. 3, nº 2 (2013) Por uma Geograa do Poder  , 1  a começar de sua primeira edição ainda que somente fosse a edição bra - sileira , tem permanecido como liminar referência para todos aqueles interessados nos estudos sobre o território. Raffestin conduziu uma concepção de território cuja mar  - ca, nos anos que se seguiram a edição desse livro, fez-se presente em variados trabalhos geográcos no Brasil.  Al gu ns não deix ar am inclusive de ex er ci tar suas pará fr as es estribadas nesse livro que articula poder e território. Claude Raffestin parece guardar certo parentesco com os velhos humanistas curiosos de muitos assuntos e, por conseguinte, um tanto próximo do ensaísmo circulador de variados saberes. A longa citação adiante daria alguma medida desse vínculo: Eu devo reconhecer que, depois de meus estudos universitários, não tendo a oportunidade de estudar 1  RAFFESTIN, C. Pour Une Géographie Du Pouvoir , Licet, Paris, 1980; Por uma Geograa do Poder,  ed. Ática, SP, 1993. no estrangeiro, eu li muito e minha formação foi, em parte, aquela de um autodidata. Sem dúvida, eu conservei dessa época um gosto muito grande pelas leituras extensas, não apenas em geograa, mas em muitos outros domínios. Dessa época eu também conservei o hábito de falar para os estudantes que eles deveriam ler muito e em muitos domínios do conhecimento. Com efeito, minhas raízes intelectuais são tanto em geograa quanto em história, tanto em economia quanto em antropologia e em losoa. Hoje, isso parece herético porque nós estamos em uma época de intensa especialização, mas é sem dúvida, mesmo não sendo recomendáve l, o que me permitiu renovar, um pouco, a geograa política. É dessa época que eu conservei, também, o hábito de ler obras originais e não os comentários sobre elas.  (RAFFESTIN, 2008).  2 2  “Entrevista com o Prof. Dr. Claude Raffestin – Universidade de Genebra”, Revista Formação, PPGEO, UNESP , Presidente Prudente, n. 15, v.1, 2008, Disponível em: http://www4.fct. unesp.br/pos/geo/re vista/index.php, acesso : 28/02/2012.

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7/25/2019 O Conceito de Território como Campo de Poder Microfísico

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1www.ufjf.br/revistageograa - v.3, n.2, p.1-10, 2013

O CONCEITO DE TERRITÓRIO COMO CAMPO DE PODER

MICROFÍSICO

Júlio AmbrozioProf. Dr. do Departamento de Geociências. Universidade Federal de Juiz de Fora. Rua José Lourenço

Kelmer, s/n - Campus Universitário, Bairro São Pedro - CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MG.E-mail: [email protected]

Resumo 

Raffestin conduziu uma concepção de território que inuenciou e ainda estimula variados trabalhos geográcos noBrasil. O objetivo aqui é demonstrar a relevância de Michel Foucault, com a sua microfísica simétrica e relacionaldo poder, no referido conceito de Raffestin.

Palavras-chave: território, microfísica, cultura, espaço, poder.

Résumé

Raffestin a mené une conception de territoire qui a inuencé et stimulé et stimule encore des ouvrages géogra -

phiques variées au Brésil . L’objectif ici est de montrer la pertinence de Michel Foucault, avec sa microphysiquesymétrique et relationnelle de pouvoir dans ce concept de Raffestin.

Mots-clés: territoire, microphysique, culture, espace, pouvoir.

Revista de Geografa - v. 3, nº 2 (2013)

Por uma Geograa do Poder ,1 a começar de suaprimeira edição ― ainda que somente fosse a edição bra-sileira ―, tem permanecido como liminar referência paratodos aqueles interessados nos estudos sobre o território.Raffestin conduziu uma concepção de território cuja mar -ca, nos anos que se seguiram a edição desse livro, fez-sepresente em variados trabalhos geográcos no Brasil. Alguns não deixaram inclusive de exercitar suas paráfrasesestribadas nesse livro que articula poder e território.

Claude Raffestin parece guardar certo parentescocom os velhos humanistas curiosos de muitos assuntose, por conseguinte, um tanto próximo do ensaísmocirculador de variados saberes. A longa citação adiantedaria alguma medida desse vínculo:

Eu devo reconhecer que, depois de meus estudosuniversitários, não tendo a oportunidade de estudar

1 RAFFESTIN, C. Pour Une Géographie Du Pouvoir , Licet, Paris,1980; Por uma Geograa do Poder, ed. Ática, SP, 1993.

no estrangeiro, eu li muito e minha formação foi, emparte, aquela de um autodidata. Sem dúvida, euconservei dessa época um gosto muito grande pelasleituras extensas, não apenas em geograa, mas emmuitos outros domínios. Dessa época eu tambémconservei o hábito de falar para os estudantes queeles deveriam ler muito e em muitos domínios doconhecimento. Com efeito, minhas raízes intelectuaissão tanto em geograa quanto em história, tanto emeconomia quanto em antropologia e em losoa.Hoje, isso parece herético porque nós estamos emuma época de intensa especialização, mas é semdúvida, mesmo não sendo recomendável, o que mepermitiu renovar, um pouco, a geograa política. Édessa época que eu conservei, também, o hábito deler obras originais e não os comentários sobre elas. 

(RAFFESTIN, 2008). 2

2 “Entrevista com o Prof. Dr. Claude Raffestin – Universidadede Genebra”, Revista Formação, PPGEO, UNESP, PresidentePrudente, n. 15, v.1, 2008, Disponível em: http://www4.fct.unesp.br/pos/geo/revista/index.php, acesso: 28/02/2012.

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 Teria sido, pois, desse caráter transitivo que sur -giu Por uma Geograa do Poder , livro cuja presençade Michel Foucault é notável. Diga-se a propósito,que a geograa anotara a dicção espacial de Foucaultdesde a segunda metade dos anos de 1970: além dolivro de Raffestin, havia já uma entrevista de Hérodote 

com Foucault.3

  A geograa parece ter sido sensível à gramática

espacial de um poder que, segundo Foucault, não sedetém, mas se exerce.

Em relação ao livro de Raffestin, talvez não hajanovidade alguma, nesta altura, fazer menção a Fou-cault. Anal, Por uma Geograa do Poder  ― como fontede esclarecimento ― conserva-se rme e constante nabiblioteca geográca brasileira. Dir-se-ia que Raffestin,desde a sua chegada ao Brasil, permanece como umgrande abrigo que envolve inúmeros trabalhos debruça-

dos sobre campo assentado em conceito de poder con-

siderado simétrico, fundamentalmente positivo, alémde prolixo e regularmente dissipado, por conseguinte,poder microfísico debilitante da centralidade estatalem benefício de grande número de forças relacionaisimanentes à extensão em que essas mesmas forçassão postas em ação.

Embora Foucault evitasse enunciar um conceitototalizante de poder, ele existiria, ao menos minima-mente; anal, sem a existência de conceito geral, seriaextravagante apontar o poder microfísico no lugar estra-tégico em que se revelaria (BOITO JR.). Visto que não

se possuiria, mas se exerceria o poder, para Foucault,inicialmente, não se colocara a indagação:

― O que é o poder?4

Se a propusesse, Foucault instalaria uma contra-dição em sua genealogia ― não se deve esquecer quedefendera a presença de um poder difuso e relacional.Essa averiguação teórica, então, proclamaria algo ob- jetivado e socialmente concentrado: pergunta que, deantemão, necessariamente aproximava, unicava ou3 “Questions à Michel Foucault sur la géographie”. In: Hérodo-

te, n.1, jan./mar., 1976. Esse diálogo adiante fora incluído na

edição italiana de Microfísica Del Potere, de Michel Foucault,da Torino, Einaudi, Roma, 1977, organizada por Pasquali Pas-quino e Alexandre Fontana; edição que teria servido de basepara a primeira edição brasileira de Microfísica do Poder , poisesta ― organizada por Roberto Machado para a editora Graal,RJ, 1979 ― agregou outros textos. A entrevista de Hérodote, senão estou em erro, foi primeiramente publicada no Brasil pela 

Comum, FACHA, v.1, n. 2, abr./jun., RJ, 1978. Em relação aodiálogo com Foucault, inicialmente aparenta uma espécie decobrança ressentida. De fato, começa mal a entrevista; emboramelhore substantivamente no curso da conversa. O próprio Fou-cault, ao nal, observara que sua apreensão tinha se modicadofavoravelmente entre o começo e o m das questões.4 Adiante, ver também notas 17 e 20.

mesmo sistematizava a sua ideia de poder ao redorexatamente daquilo que não procurou Foucault ― o po-der materializado na soberania política, seja vinculadaà concepção jurídica ou liberal do poder, da qual o atooriginal é a cessão de um poder individual em benefíciodo soberano;5 seja de viés marxista, cujo poder é cir -

cunvizinho ao Estado, e a uma classe dominante que seserve dele como instrumento de dominação burguesae de reprodução do capitalismo (FOUCAULT, 1979, p.174; 1980, pp.127-128).

Respondendo a uma indagação da referida Hé-

rodote sobre a necessidade de se acrescentar, aoscírculos de encarceramento,6 as esferas da cidadaniae do exército ― dado que a Geograa realçaria aslinhas das fronteiras nacionais ou mesmo municipais―, Foucault respondera que, a despeito de sedutoraa ideia, em sua hipótese o indivíduo não é a peçasobre a qual o poder se lança; o indivíduo, continuaraFoucault, assentado em si mesmo com sua identidadee características, é produto relacional de poderes quese exercem sobre a sua corporalidade, valendo movi-mentos, forças, desejos e multiplicidade (FOUCAULT,1979, pp. 161-162).

Em sua genealogia, o exercício relacional é aorigem móbil do poder, pois este propriíssimo podernão é

[...] um sistema geral de dominação exercida porum elemento ou um grupo sobre outro, e cujos

efeitos, por derivações sucessivas, atravessam ocorpo social inteiro. [...] O poder não é algo que seadquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guar -de ou deixe escapar; o poder se exerce a partir deinúmeros pontos e em meio a relações desiguaise móveis. (FOUCAULT, 1980, pp. 88-90).

Com respeito ao segundo segmento da citaçãoanterior, diga-se de passagem, Gérard Lebrun (1981,p. 21) notou que mesmo não sendo o poder uma coisa,ele ainda assim se converte em objeto ou matéria, vistoque é desse modo que os homens o guram. Em todocaso, para Foucault o poder não se constitui de umadedução a partir do centro; ele procede de uma inver -são: das extremidades, ou da periferia, para o centro.Essas extremidades estariam guradas na doença, na

5 A escrita hobbesiana relativamente a origem do Estado seriabom exemplo: “Cedo e transro meu direito de governar-me amim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens,com a condição de transferires a ele teu direito, autorizandode maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, àmultidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, emlatim civitas”. (HOBBES, p. 105).6 Círculos de reclusão tipicados, por exemplo, no hospício, naprisão, no hospital.

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loucura, na sexualidade, na delinquência. Com Fou-cault, os exames da origem e formação da mecânicade controle do internamento hospitalar, da loucura, dasexualidade e do delinquente demonstrariam o esta-belecimento de microfísica do poder que, adiante, teriasido absorvida pelo centro ― localizado, por Foucault,

sobretudo na burguesia e no seu capitalismo, já queprocederia da estremadura e não do Estado soberanoo poder. Embora para tal centro não fosse essencial ocontrole ou a exclusão desse campo de marginalida-des. Dir-se-ia, pois, que o direto interesse da burguesiafoi exatamente o poder disciplinar que surgira dessatécnica ou economia microfísica que esse mesmíssimocentro soube se apropriar.

 A burguesia não se interessa pelos loucos, mas pelopoder; não se interessa pela sexualidade infantil, maspelo sistema de poder que controla; a burguesia não

se importa absolutamente com os delinquentes nemcom sua punição ou reinserção social, que não têmmuita importância do ponto de vista econômico, masse interessa pelo conjunto de mecanismos que con-trolam, seguem, punem e reformam o delinquente.(FOUCAULT, 1979, p. 186)

Se for correta, como parece, a observação de Ar -mando Boito Jr., ao escrever que a hipótese essencialdo poder em Foucault “[...] é a ideia de que a relaçãode poder é uma relação interindividual.” (BOITO JR.,2007, p. 31), não é difícil, então, apreender esse mes-mo poder como certa espécie de campo de guerra oucombate – uma mecânica espacial na qual ninguémportaria absolutamente soberania, ainda que ocorres-sem posições ou estratégias que propiciassem domínioou exercício de poder.

O caso é que, do mesmo modo que Foucaultbuscara afastamento do poder concebido pelos viesesliberal e marxista, reduzindo a menos o poder do Es-tado, Claude Raffestin procurou distância da geograade corte ratzeliano que enxergara o território comocondição absoluta do Estado.

 A geograa política clássica é na verdade uma geo-graa do Estado, o que seria necessário ultrapassarpropondo uma problemática relacional, na qual opoder é a chave – em toda relação circula o poderque não é nem possuído nem adquirido, mas sim-

plesmente exercido. (RAFFESTIN, 1993, p. 7).

Não é à toa, aliás, que Raffestin (1993, p. 53)mencione algumas asseverações que estão nabase da História da Sexualidade (FOUCAULT, 1993,pp. 89-91) e, sobretudo, do conceito de poder em

Foucault. Raffestin acentua exatamente aquelasproposições que transformam o seu território emprivilegiada expressão espacial do poder concebidocomo microfísico.

Com efeito, o conceito de território por ele estabe-lecido não apenas demonstra a inuência substantiva

de Foucault, mas, especialmente, serve como veículode transmissão de sua microfísica. É o próprio Raffestinquem escreve: “Evidentemente, o território se apoia noespaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partirdo espaço. Ora, a produção, por causa de todas as re-lações que envolve, se inscreve num campo de poder.”(1993, p.144). Dado que, para Raffestin, o territóriodecorre de uma produção do espaço ― produção, ade-mais, que envolve múltiplas relações ―, o que se cons-titui é um arranjo de relações denominado “campo depoder”, ou território de luta, resultante do entrechoqueespacial de poderes que permanentemente disputamposições que possibilitam não a conquista denitiva,mas o exercício provisório ou instável do poder territo-rial. Decorrente da inversão de notória proposição deClausewitz,7 quando Foucault escreve que “[...] poderé guerra, guerra prolongada por outros meios [...]”, oumesmo “[...] política é a guerra prolongada por outrosmeios.” (1979, p. 176), dir-se-ia que, para Raffestin,território, como campo de poder, é guerra permanentesustentada no espaço.

Da mesma maneira que, em Foucault, o poder éconjunto de relações ou mesmo certo corpo uente, em

Por uma Geograa do Poder  o território carrega consigodistância da fonte ordem-obediência, no interior da qualalguém detém e outro não o poder. Em Raffestin, pois,o território não seria oriundo de arranjo assimétrico –guardado estrategicamente pelo Estado – entre gruposdominantes e dominados que repercutiria de cimapara baixo até as fronteiras da textura socioespacial. A suposição básica de Raffestin é que o território éuma relação interespacial de poder, i. é, espaço quese constitui como campo de guerra permanente depoderes relacionais. Aqui, certamente, o território seencontra diminuído dos efeitos da ação do Estado em

favor de numerosas dimensões ou multiespacialidadede poderes. Para Raffestin, então, o território nascede entrechoque espacial de poderes uídicos – estru-turados em (superfícies) – tessituras, (pontos) – nós,(linhas) – redes – que propriamente da ação do poderde Estado:

7 A passagem se encontra na seção 24, assim titulada: “ A Guer -ra é uma mera continuação, por outros meios, da política”. Logono início do segmento, lê-se: “Vemos que a guerra não é só umacto político, como também um autêntico instrumento político,uma continuação do comércio político, um modo de levar omesmo cabo, mas por outros meios.” (Clausewitz, p. 46).

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De fato, o Estado está sempre organizando o terri-tório nacional por intermédio de novos recortes, denovas implantações e de novas ligações. O mesmose passa com as empresas ou outras organiza-ções, para as quais o sistema precedente constituium conjunto de fatores favoráveis e limitantes. Omesmo acontece com um indivíduo que constrói

uma casa ou, mais modestamente ainda, paraaquele que arruma um apartamento. Em grausdiversos, em momentos diferentes e em lugaresvariados, somos todos atores sintagmáticos queproduzem territórios. Essa produção de territóriosse inscreve perfeitamente no campo do poderde nossa problemática relacional. (RAFFESTIN,1993, pp. 152-153).

É de se observar que Raffestin indica somentediferenças em graus nos atores que usa como exem-

plos nessa citação anterior. O Estado, as empresas,

os indivíduos ― produtores territoriais ― não estão aliconfrontados como gênero, característica, qualidadeou essência que permitiria enxergar esses mesmosatores com um poder de ação territorial não simétrico e,por conseguinte, demonstrativo do fato de um ator, oumais de um, determinar bem mais que outro convizinhoarranjo territorial.

Interessante agora talvez fosse trazer novamenteà memória Foucault. Pois dele provém certa genealo-gia: o estudo dos vestígios fundadores do poder relacio-nal na estremadura social gurada no estabelecimentoda doença, no nascimento da loucura, no controle da

sexualidade e do presídio que vão se assentando es-pecialmente a partir do século XVIII.8 Genealogia, naverdade, buscadora da constituição da maquinaria dopoder disciplinar, cuja linhagem viveria no interior derelações de saberes criados a partir daqueles círculosde reclusão ― círculos nascidos precisamente aoredor da referida estremadura. Em Foucault, relaçõesmicrofísicas nascidas ao lado, debaixo, à margem doEstado são criadoras de poderes disciplinares que, adespeito de apropriados pela burguesia e sua economia

8 Um exemplo: a medicina moderna estaria menos vinculada

aos seus avanços cientícos que ao nascimento da clínica, cujahospitalidade, no século XVIII, vai deixando de ser o espaçoda pobreza para a morte e se convertendo no nosocômio dainternação da doença; desvio estribado em alterações que sezeram ao redor da medicina e de seus objetos, teorias e juízos,que propiciariam um saber/poder que faria nascer medicinasocioespacial, valendo consciência política da moléstia, oumesmo do achaque, por exemplo, personicada nos processoshigiênicos e urbanos do século XIX levado a cabo pela autori-dade médica transformada em administradora pública; desvio,ademais, que originaria um saber/poder acerca do sujeito comocorporalidade doente obrigado à violação de sua independência.Cf. Foucault (1977), sem esquecer, na orelha desse mesmolivro, a pequena intervenção de Roberto Machado.

capitalista, quase fariam evaporar esse mesmo Estadoao não concebê-lo como fonte, mas escoadouro dopoder.9

Semelhante a Foucault, Raffestin vasculhou fa-tores microscópicos que constituiriam o território sema importante contribuição do Estado. Claude Raffestin

menoscabou o Estado devido ao acentuado ponto devista foucaultiano de seu livro. “Por uma Geograa doPoder” recuperou a usual partilha entre população,território e recursos para levar a cabo outra geograapolítica distante da concepção de poder como ins-trumento estratégico de reprodução de relações deprodução.10 O campo de poder de Raffestin, diminuídode certa totalidade econômica e política, constituiu-sedevido a sua atenção metodológica direcionada paraelementos espaciais microfísicos – (superfícies)-tessi-turas; (pontos)-nós; (linhas)-redes, segundo Raffestin,presentes em qualquer sociedade, sendo mesmo “[...]invariáveis propriamente geográcas [...] três subcon- juntos estruturais que sustentam a prática espacial.”(RAFFESTIN, 1993, pp. 151-152).

O vocábulo tessitura, vinculado à concepção deextensão ou limite, propiciara Raffestin observar quequalquer território se acha submetido a alguma fron-teira, linha de demarcação que manifesta os connssocioespaciais de qualquer grupamento social. EmRaffestin, portanto, a tessitura marca os limites doexercício do poder:

 A tessitura é sempre um enquadramento do poder oude um poder. A escala da tessitura determina a es-cala dos poderes. Há os poderes que podem intervirem todas as escalas e aqueles que estão limitadosàs escalas dadas. (RAFFESTIN, 1993, p. 154).

Nó ou ponto é outro elemento estrutural do territó-rio de Raffestin. O ponto manifesta o lugar ou mesmo a

9 Acerca deste ponto, ver: Gérard Lebrun (1983).10 Sua Geograa política se afasta, por exemplo, de uma ar -mação do Manifesto do Partido Comunista, aparecido primei-

ramente em 1848: “O Estado moderno não é senão um comitêpara gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”.Evidentemente, poder de Estado e poder de Classe não seconfundem, pois sendo o Estado um veículo institucional ‒ omeio essencial e mais elevado ‒ para certicar o poder declasse, ele, contudo, porta certa espécie e grau de autonomiarelativa; liberdade ou distância relativa do poder de classe quese manifestaria, outro exemplo, em conjunturas ou aconte-cimentos embaraçosos na qual um Estado tomaria para si atarefa ditatorial, dir-se-ia bonapartista, de conduzir diretamenteos interesses de acumulação material da burguesia, ainda quecontra ela mesma a burguesia. Já uma classe, e seu poder,fundamentalmente resulta de sua posição ou junção comuni-cante com as relações sociais de produção.

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situação de cada ator. Nó é o ponto essencial conectadoao terceiro fator rede. Pontos, marcos, nodosidades,podem ser aglomerações socioespaciais como me-trópoles, cidades, lugarejos, ou mesmo grupamentosainda menores. Em todo caso, como nodosidades depoderes, ou mesmo pontos de poder, o nó deve ser

assimilado de maneira relativa:

O que importa saber é onde se situa o Outro,aquele que pode nos prejudicar ou nos ajudar,aquele que possui ou não tal coisa, aquele quetem acesso ou não a tal recurso etc. (RAFFESTIN,1993, p. 156).

 A rede é o terceiro elemento estrutural dessesistema territorial. Rede é urdume oriundo do jogo ouentrechoque de posições, inibições, ascendências,submissões – relações espaciais que, desse modo,criam redes que propiciam a comunicação, mas es-pecialmente, é Raffestin quem escreve, redes queaparecem como “[...] uma imagem do poder, ou maisexatamente, do poder do ou dos atores dominantes.”(1993, p. 157). Pois o que a rede denuncia, semelhanteà tessitura e nós, é certa espécie de conquista espaciale temporal que, precisamente, seria a própria imagemdesse exercício territorial movediço ou uídico conce-bido por Raffestin:

O sistema é tanto um meio como um m. Como

meio, denota um território, uma organizaçãoterritorial, mas como fim conta uma ideologiada organização. É, portanto, de uma só vez oualternadamente, meio e nalidades estratégias.(RAFFESTIN, 1993, p. 158).

Tal como em Foucault o poder não é objeto oumercadoria passível de ser conquistado ou adquirido,para Claude Raffestin o poder territorial está exatamentedisposto nessa espacialidade microscópica relacional,engrenagem sem local exclusivo, mas espacialmenteliquefeita, por conseguinte, móvel, transitória e sem

campo privilegiado de conquista.Expressão dessa maquinaria espacial é a suaconsequente territorialidade, valendo “[...] totalidadede relações biossociais em interação” (RAFFESTIN,1993, p. 160). Ou seja, assinalando “biossocial” parase compreender territorialidade como resultante derelações estabelecidas pelos fatores microscópicos es-paciais referidos ― tessitura, nós, redes;11 escrevendo

11 Raffestin, com a expressão biossocial, buscaria mais umaaproximação com Foucault. Avizinhação com o conceito debiopoder. Gerado na História da Sexualidade, volume I, a ideiade biopoder, ou biopolítica, congurou-se para dizer sobre um

“interação” para acentuar que territorialidade deve serconsiderada como resultante de permanente luta de po-deres relacionais, logo, sujeita à mobilidade, ou deslo-camentos, em função de ações e posições estratégicasde variados atores. Em Raffestin, pois, a territorialidadese distanciou de sua “relação com o território” deixando

de ser, então, deduzida de espaço territorial que se dácomo conquista oriunda, por exemplo, da propriedadeprivada ou da determinação de Estado.

No ponto em que estamos, prenderia a atençãoElias Canetti e seu Massa e Poder   (1983), livro queinvestiga a natureza primitiva dessas duas grandezas.Volume inoculado de certo gênero de antropologia fe-nomenológica unida à psicologia e à sociologia, tudo sepassa como se o narrador descobrisse ou enxergassepela primeira vez as multidões e o poder. Canetti, porexemplo, interroga a verdade originária da experiênciado poder sem incluir o Estado. Se bem que muitasreferências aos príncipes, xamãs e reis existam nesselivro. O caso é que se apreende ali o Estado a partirda referida indagação acerca da realidade originária dopoder, que, além disso, confrontado apropriadamentecom a força, torna-se visível como poder genuinamenteespacial e assimétrico, tão distante da genealogia deMichel Foucault quanto do foucaultiano poder territorialde Raffestin ― para estes dois aparecendo o podercomo técnica simétrica.

Canetti observa que a força é mais próxima, diretae coercitiva que o poder; ainda que não exclusivamente,

ela está ligada a ação física e, entre os animais, o maisadequado seria falar em força e não em poder, já queeste não se gasta rapidamente, ao contrário, perdura,é mais genérico e mais amplo que a força, ou seja:“Quando a força dura mais tempo, transforma-se empoder.” (p. 313). O poder se refere a mais espaço emais tempo, diz Elias Canetti, a boca, então, faltosa deesperança, seria a alegoria da força, pois nela não hátempo nem espaço; em contrapartida, insiste Canetti,a prisão sob esse viés é o alargamento da boca, porconseguinte a guração do poder, porquanto o localmais desoprimido para alguns passos ao léu do pri-

sioneiro – agitação de uma esperança de vida ou depoder normativo ou regulador, nascido a partir do século XVIII,cujo objetivo seria a administração ou gestão dos corpos paragarantir o ajustamento desses às necessidades produtivas docapital. “O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização ea gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis [...]”(Foucault, 1980, p. 133) para um processo que buscava aco-

modar docilmente o crescimento populacional ao avanço dasforças de produção/acumulação e sua consequente partilhaprodutiva desigual. Ora, a expressão de Raffestin, “relaçõesbiossociais” acorre exatamente para observar que tessitura,nós, redes – avistados como maquinaria técnica espacial deregulação e gestão – ordenariam o poder sobre o espaço.

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libertação de grilhões, em todo caso, animação sob oolhar interessado e permanentemente destrutivo docarcereiro, mesmo quando esse adotasse zeloso ar dedesaparecimento (CANETTI, pp. 313-314).

Canetti, ademais, ilustra essa posição desave-lada do poder descrevendo eventual relação entre o

gato e o rato:

O rato, uma vez caçado, encontra-se sob o regimede força do gato; este o agarrou, o mantém preso,sua intenção é matá-lo. Mas, assim que ele come-ça a brincar  com o rato, acrescenta algo novo aorelacionamento. Solta-o e permite que ele corra umpouco. Assim que o rato se vira e corre, escapa doregime de força. Mas está em poder  do gato fazercom que ele retorne. Se o gato permite que o ratose vá denitivamente, este é excluído de sua es-fera de poder. Até o ponto em que o rato pode ser

alcançado com toda a certeza, ele permanece empoder do gato. O espaço que o gato controla, osmomentos de esperança que ele concede ao ratovigiando-o atentamente sem perder o interesse porele e por sua destruição, tudo isso reunido espaço,esperança, vigilância e interesse destrutivo poderiaser designado como o corpo propriamente dito dopoder ou, simplesmente, como o próprio poder.(CANETTI, p. 313).

Não é o caso de se perguntar se o que Canettidescreve seria mais acertadamente potência. Estas

duas palavras poder e potência se diferenciam naquiloque a primeira tem de proximidade com a ordem, que,em Canetti, é denida no capítulo imediatamente apósao que tratara dos rudimentos do poder: ordem comoveredicto de morte que impõe fuga à vítima (CANETTI,p. 338); ordem como exercício de dominação ― ummodo no qual se torna evidente a potência.

Rigorosamente, Canetti foi chamado devido a suaespacial narrativa alegórica defrontante com a concep-ção de um poder foucaultiano que circula ou funciona noespaço como entrelaçamento de disciplinas ou normas. A parábola do gato e o rato também arrosta o território

de Raffestin. Nela o poder não é relação que se dispõea partir do espaço; ao inverso, é certa espécie de bemescasso, que gradualmente se amplia e se alarga noespaço, constituindo desse modo território dependentedesse próprio poder. Tratar-se-ia de dizer, então, queo relato de Canetti chamaria atenção para conceito depoder constituído politicamente ao redor do Estado.Poder assimétrico e centralizado no Estado. Portanto,afastado do microscópico, difuso e simétrico podercomo quer Foucault e a ideia territorial de Rafesttin.

§

Foucault faz parecer menor, ademais, o poderpolítico ou soberano ao também menoscabar, em seuconceito de poder, o viés repressivo, absolutamentenecessário, contudo, ao continuísmo de determinadatotalidade ― o modo de produção capitalista, arranjoespacial e histórico de (re)produção material, além

de maneira datada de dominação social. Ocorre que,olhando para o poder como rede de relações nãorepressivas, mas geradoras de normas e disciplinas“criadoras” de homens, a microscopia de Foucaultparece necessitar de alguma indagação:

― Se o poder não exclui e inibe, mas domina aspotencialidades humanas para ampliar ao máximo asua produtividade, de que tempo e parte do mundo amicrofísica do poder alude?

Observa Boito Jr. (P.25), que “[...] embora o podernão se dê apenas no Estado, os diversos centros de

poder dependem efetivamente da ação legisladora erepressiva do Estado para poderem funcionar comotais.” Como exemplo, a escala dos variados centros depoder referidos por Armando Boito Jr. alcança a escola,a fábrica, o hospital, todos dependentes de regulaçãodo Estado. É possível, porém, agregar outra grandezaescalar insistindo na pergunta:

― Qual o tempo e o território que não reduzema pó os homens?

Se a concepção é de um poder ― quase ia dizen-do, gestão ― que disciplina ou controla a existênciados homens com o objetivo de se valer ao máximo

do potencial humano, o tempo desse poder não sãoos anteriores ao século da Revolução Dupla políticae econômica e nem ainda é o próprio século XIX. Oesquartejamento de Robert-François Damiens, em 02de março de 1757, decalcado de algumas fontes edescrito pelo próprio Foucault no início de Vigiar e Punir  (1977, pp. 11-13), já demonstraria a despreocupaçãopelo corpo e por sua produtividade em um mundo aindaorientado pelo ócio e menos pelo negócio.12 

12 O século XVIII, pelo viés de Foucault, foi o período de trân -

sito para a constituição do poder disciplinar e produtivo. Por

exemplo: a segunda parte, capítulo 1, do livro Vigiar e Punir ,inicia-se com uma inscrição reproduzida da chancelaria fran-cesa dando notícia, em 1789, da geral posição dos cahiers de

doléances em relação às duras punições corporais: “Que aspenas sejam moderadas e proporcionais aos delitos, que ade morte só seja imputada contra os culpados assassinos, esejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade.” (p.69). Diferentemente da primeira parte desse livro, cujo pontoé, no século XVIII, a condenação pela tortura dos corpos, nasegunda parte o que acentua Foucault é uma espécie de pa -

ralelismo, que vai aparecendo aqui e ali na segunda metadedesse século, dado pelos protestos e pelas obras teóricascontra as torturas dos condenados e por novas resoluçõesmais exemplares e produtivas tanto para o sentenciado quanto

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O conceito de território como campo de poder microfísico

O fato é que o tempo e o território dos quais seocupa este normativo poder foucaultiano foi o períodofordista, que seguiu da década de 1920 até o nal dadécada de 1970, especialmente a sua acabada reali-zação na chamada era de ouro do capitalismo (HO-

BSBAWM, 1995), e no seu núcleo orgânico europeu

e norte-americano. Foi nesse período e centro que apolítica, sob alguns aspectos, alcançou certa platituderesultante de consenso de classe circunjacente aoaumento da produtividade, à importância do saláriocomo realizador de lucros, por conseguinte, à volta dosbenefícios gerados aos trabalhadores – como sóciosmenores – circunvizinhos a um Estado de bem-estarsocial amparado na social-democracia européia. Es-tado ostensivamente regulador, ademais, que teve emRoosevelt e seu new deal o parentesco mais antigo.13 

Trata-se de dizer que Michel Foucault e, adiante,Raffestin escreveram da França e da Suíça; efetivamen-te, sociedades ocupadas com a gradual e disciplinargestão da capacidade humana e, portanto, bem maisadministradoras da incorporação dos homens à vidasocial, melhor dizendo, à vida de classe média. Socie-dades européia ocidental e norte-americana, sobretudoaté o m da referida época dourada do capitalismo,xadoras de poder controlador ou mesmo criador dehomens, ampliando, desse modo, a ecácia produtivaao máximo em benefício da burguesia e seu capital.

O caso é que se o conceito de poder foucaultianotraduz alguma realidade, ele indica também limitação

nas estremaduras dessa mesma realidade socioespa-cial. Pois nas sociedades semiperiféricas e periféricas,14 mesmo na fase dourada e produtiva do capitalismo, oexercício das potencialidades humanas enxergadaspor Foucault, caso tenha ocorrido, deu-se de modoabsolutamente precário.15 Tal como na Europa prole-

para a própria sociedade. Dos cahiers de doléances, através deFoucault, retiro outro exemplo: “Que os condenados a algumapena abaixo da morte sejam condenados às obras públicas dopaís, por um tempo proporcional a seu crime.” (p. 98). Sobreum modelar e reformista livro do período, referência iluministada história do direito, ver: Dos Delitos e das Penas, de Cesare

Beccaria, publicado primeiramente em 1764.13 Nesta era de ouro de pós-guerra, a regulação política e econô-mica keynesiana foi a norma do capitalismo produtivo e fordista. OEstado, por exemplo, ostensivamente interpunha suas regras emconjunturas econômicas de crise, garantindo, através de investi-mentos, a oferta de trabalho. Este Estado, ademais, instituciona-lizava os sindicatos, regrava o trabalho e xava os salários.14 Na dicção de Giovanni Arrighi: sociedades posicionadas emrelação à divisão internacional do trabalho.15 O capitalismo, a despeito de sua acumulação reclamar mer -cadoria e consumo, sustentou-se na marginalização de grandenúmero de população, excluindo, desse modo, o acesso aosrecursos naturais e humanos para larga faixa da populaçãoda Terra.

tária do século XIX, nesse largo território submetidopelos monopólios o poder não sugere amestramen-tos, estabelecimento de controles e normas. O pontoé, com exceções sazonais muitas vezes relevantes,16 que nestas semiperiferias e periferias a determinaçãodo poder se dá de maneira veloz, direta, áspera e ir -

refreável sobre a maioria de suas populações. Que aburocracia e a técnica, além disso, tenham aprimoradoa sua determinação em todo o mundo, a isso não deveseguir olhar cego para visceral indagação ― quem de-termina esse poder?  Anal, em vastas áreas da Terra,ordinariamente, o poder jamais deixou de acentuar oseu domínio em função de necessidades e/ou contra-

dições de classes.

Pertinente neste passo é fazer referência ao ne-oliberalismo. Curioso notar que Foucault enuncia, comclareza, o seu problema fundamental no período dapenúltima grande crise do capitalismo, cujo resultadofoi a sabida escapadela para as rendas superioresdas nanças.17 Repare, leitor: se o conceito de poderrelacional ou simétrico diz respeito, como observei, aotempo do fordismo e, principalmente, a sua época deouro, para Foucault, contudo, esse próprio poder, comoproblema, vai se assentar em seu discurso no exatomomento em que o tempo produtivo fordista vivia a suaruína, ainda que não tenha sido derrocada absoluta.

Talvez uma ironia aqui ocorra.

Note bem: no mesmo tempo em que apareceo enunciado do poder foucaultiano e, ligeiramente

adiante, a ideia de território de Raffestin, está se dan-do, correlativo à crise de hiperacumulação da “era deouro” do capitalismo, os passos iniciais para o salto― sobretudo ocidental ― para a esfera nanceira eneoliberal. A permanência da intelecção foucaultiana,e mesmo do território raffestiniano no especíco campogeográco, talvez se explique, nos anos que vieram,

16 Por exemplo: a era de Getúlio Vargas, no Brasil.17 Embora acreditando investigar saberes e conhecimentos,Foucault, adiante, diz que o problema do poder teria sidoanal a sua questão fundamental. Essa tomada de consciênciaocorreria no período em que estava em curso mais uma dasnotáveis crises do capitalismo. É dessa época, dois exemplos,Microfísica do Poder  eHistória da Sexualidade, volume 1, livrosque congurariam a sua compreensão acerca do poder comoo foco principal de sua obra. Para Michel Foucault, apenasfoi possível essa consciência com a irrupção da revolta da juventude, em 1968, nas sociedades altamente industrializadas.Escreve Foucault, em uma passagem de Microfísica do Poder ,que só foi possível analisar a mecânica do poder depois de1968, “[...] a partir das lutas cotidianas e realizadas na basecom aqueles que tinham que se debater nas malhas maisnas da rede do poder.” (p.6). Para Foucault, anterior a essemomento, a problemática do poder se dava nos marcos daguerra fria: denúncias trocadas entre o socialismo soviético eo capitalismo ocidental.

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por aquilo que sua idéia de poder depreciou do Esta-do. Anal, nesse período, especialmente após 2008,nem o próprio núcleo do capitalismo autoriza olhar oseu território como patente manifestação de um poderdisciplinar cujo objetivo seria a “criação” de homens embenefício da ampliação produtiva.

Bastaria lembrar que a faixa cronológica que seseguiu a essa crise do capitalismo nucleada no decêniode 1970, além de falências e transferências territoriaisde atividades industriais, fez perder a conectividadeentre salário e produtividade. Tudo isso propiciado pelodesenvolvimento das comunicações reais e virtuais,pela banca, e pela desregulamentação do Estado ―cuja ação fora alterada em benefício deste neolibera-lismo renovador da acumulação primitiva.18

Parece, então, que a referida norma ou regulaçãodos indivíduos em relação às exigências produtivas do

capitalismo, valendo poder ou gestão de corpos paraassegurar o máximo potencial humano e, ademais,disciplinar a incorporação dos homens à vida social, dir-se-ia à vida de classe média, não percute na realidadeneoliberal. Ainda agora, setembro de 2012, desdobra-mento da última grande crise do capitalismo estaladaem 2008, o poder na Europa dita inexão absoluta emdireção ao desmonte da sociedade de bem-estar so-cial, obscurecendo, assim, as enormes possibilidadesdo homem europeu. Desemprego, perda de garantiassociais, aumento de anos de trabalho, crise na classemédia19 ― algumas das realizações neoliberais ― di-

zem mais de um puro domínio triturador de homens quede o poder difuso criador e gestor de indivíduos.20 18  A desconexão produtividade-salário está expressa norebaixamento global dos salários em função do anúncionanceiro por maiores lucros em papeis do que em bens eserviços e na extração ampliada de mais-valia, que rompeutodas as fronteiras ao incorporar cerca de 1,2 bilhão de novostrabalhadores ao sistema. Essa fratura keynesiana, aliás, foilargamente compensada pela hipertroa de crédito e pelobarateamento do consumo.19  Diversa da velha pequena burguesia, a constituição daclasse média vinculada, por exemplo, à burocracia de Estado,à publicidade nos meios de comunicação, à expansão daeducação e da saúde, pelo viés do econômico, foi possíveldevido ao crescimento do antivalor, ou “custos mortos”,propiciados pela enorme expansão do trabalho produtivo nofordismo. Sobre as tribulações da classe média enxergada apartir da Europa, ver SCHOLZ, 2008.20 Entre 10 de janeiro e 04 de abril de 1979, Foucault dera umcurso sobre o estágio e o propósito de suas investigações re-alizadas no ano imediatamente anterior. Compilado após a suamorte, foi publicado sob o título de Nascimento da Biopolítica,originalmente em Paris, no ano de 2004. O livro é o primeirosegmento, que examina o aparecimento do liberalismo e suasformas contemporâneas alemã e estadunidense, de um projetoque procurava articular biopolítica e liberalismo. O plano geraldo curso buscava demonstrar que o condicionante necessáriopara a apreensão da biopolítica é o liberalismo; liberalismo como

Não obstante, o poder em Foucault propiciariaalguma aproximação com o proselitismo neoliberal,exatamente naquilo que não concebe como matériaprivilegiada ou objeto institucionalmente gurado noEstado – o poder político. Sob esse ângulo, talvez nãofosse má conclusão avistar o poder simétrico e relacio-

nal como um dos instrumentos do neoliberalismo dissi-mulador do importante papel do Estado na regulaçãoda contemporânea acumulação primitiva.

§

Em relação ao exclusivo campo geográco, comoprocurei observar, toda essa concepção microscópicade Foucault foi o importantíssimo viés que, inuencian-do largamente Por uma Geograa do Poder , tornoupossível o aparecimento de outra proposição de terri-tório. De fato, a ideia de produção territorial do espaçose inscrevendo em um campo de guerra é expressão

espacial de esse poder relacional.Curioso acontecimento: desde que surgiu, a obra

de Foucault foi alvo de vivo interesse. Ainda hoje, comoapropriadamente lembra Boito Jr. (pp.17-18), é exa-minada e discutida. A geograa brasileira, fortementeinuenciada por noção de território marcadamenteoriunda da obra de Foucault parece, contudo, não tertido consciência da progênie desse conceito. Consci-ência textual e não pontualmente referida.

Variações ou paráfrases ao redor do enunciadoterritorial de Raffestin, mais se explicariam caso fos-

sem confrontadas com a sua radical procedência. Oconhecimento acabado dessa origem necessariamenteimplicaria, antes da assunção do território raffestiniano,acareamento com o conceito de poder de Foucault.Territórios compreendidos a partir de espaços inocu-lados de relações de poder, tais como os territóriossazonais ou territorialidades micro, explicados emfunção de eventual apropriação de espaços por gruposou membros dessas coletividades, talvez fossem maisbem discutidos se a raiz dessas metáfrases estivesseno horizonte da investigação. Anal, sem o reconheci-mento da microfísica de Foucault diminuente do poder

enquadramento regulatório desse biopoder, cuja expressão se-ria o homo oeconomicus: “Ou seja, a superfície de contato entreo indivíduo e o poder que se exerce sobre ele, por conseguinteo princípio de regulação do poder sobre o indivíduo, vai ser essaespécie de grade do homo oeconomicus. Ohomo oeconomicus é a interface do governo e do indivíduo. E isso não quer dizerde forma alguma que todo indivíduo, todo sujeito, é um homemeconômico.” (Foucault, 2008, pp. 345-346). Sob o ponto de vistadeste artigo, o comentário provisório é que Foucault aparenta, já que o plano geral do curso não foi completado, querer alargara ideia original de biopoder, nascida em sua História da Sexua-lidade, para além da estremadura fordista, em um período, nalda década de 1970, no qual o neoliberalismo em sua formaçãoacabada ainda não tinha se constituído.

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centralizado no Estado, toda uma extensão geográcaligada ao território sazonal-microscópico estaria com-

prometida.

§

Outro aspecto absolutamente essencial ao quadro

desta discussão é necessário agora incorporar.O fato é que, por exemplo, territorialidades as-

similadas como espaços afetivos produzidos – ouconcretizações espaciais subjetivas e emocionais devariados semblantes – descortinam tão grande determi-nação da cultura no espaço que, propiciada pelo campofoucaultiano, transformá-la-ia no fator cuja posiçãoestratégica daria ocasião para o exercício privilegiadodo poder territorial.

 A razão mais abstrata desse ponto de vista pareceser a própria mudança de paradigma da cultura. Umanova etapa que transformou tudo em cultura com oadvento do neoliberalismo. É de se notar que enqua-dramentos desse porte necessariamente procedem deocorrências que marcam a própria direção dos proces-sos históricos. Esse novo modelo ou padrão cultural foibatizado com nome que ganhou popularidade autoex-plicativa: pós-modernidade, nova craveira da culturaque apareceria da extenuação imperfeita do moderno,fazendo fraudulentamente parecer menor a política e otrabalho,21 valendo economia enxergada como simplestécnica, signicando dizer, neste caso, que a reprodu-ção capitalista não mais é enxergada como economia

política, senão como economia cultural.22

 O novo gabarito pós-moderno da cultura, portanto,teria sido o inoculador mais geral dessas perspectivasterritoriais que medraram na Geograa. Traduzidageogracamente por Raffestin, contudo, a contribui-ção de Foucault foi importantíssima nesse processo,pois sem a sua microfísica ‒ sem o seu conceito depoder ‒ essas territorialidades não alcançariam àquela

21  Considerada, doravante, a cultura como explicadora emúltima instância do real, ela apareceria utuando agora aci-ma das estruturas socioeconômicas e, portanto, espaciais,por conseguinte deixando de se desenvolver como edifíciointegrado a essas estruturas; ideologicamente onipresente, acultura transformada em fetiche deixou de existir e se explicarno interior da história das relações sócioespaciais de produçãopara se autoproclamar efetivo motor, produtor, ou ainda adordessa mesma história.22 Bom exemplo são os velhos núcleos urbanos transformadosem centros históricos; cidades, transformadas elas mesmas emmercadorias culturais através dos enobrecimentos urbanos.

Uma boa síntese desse novo modelo se encontra em Otília Arantes (2002). Ver especialmente Fredric Jameson (1996).Interessante também é texto de David Harvey ao redor darenda de monopólio e da transformação da cultura em com-

modity (2006).

espessura espacial credora de variadas pesquisas naesfera geográca, dado que território algum se constituisem o poder. A concepção de esse poder relacional,portanto, tem sido o ador de engenharias territoriaisque se desejam densamente explicadoras do espaçogeográco.

Todos os três parágrafos anteriores não signi-cam negar possíveis abordagens culturais do espaço.Independentemente de suas eventuais sazonalida-des, a simples presença urbana ou rural de homense mulheres, uma feira, e até mesmo o fechamentotransitório de ruas e viadutos podem, claro, descobrira vivacidade de espaços usados afetivamente. Enqua-dramentos espaciais etnológicos da geograa huma-nística autorizam, sim, certa espécie de demonstraçãoantropológico-espacial de práticas ou usos outros.O problema é o prolongamento dessas práticas emextensões territoriais não indagadoras de seu tempohistórico, mas fundamentalmente asseveradas pela po-sição estratégica da cultura, o pós-modernismo, e pelaimplícita ou subjacente microfísica simétrica e relacionalconstituidora do campo de poder raffestiniano.

O preciso ponto é que essas socioespacialidadesemolduradas pela cultura se apresentam despregadasde condições econômicas de existência; certa substân-cia sólida ou material que, ao m e ao cabo, demons-traria que a própria cultura – explicadora privilegiadadessas socioespacialidades – procede de um modo deproduzir e trocar produtos, derivando, portanto, de uma

economia política e não de economia cultural. À vista disso, não seria inoportuno recuperar a

citada atenção metodológica do campo de poder deRaffestin, pois concedendo prerrogativa a fatores (mi-cro) estruturais do espaço na constituição do territórioparece dissolver, com o importante amparo da ideiasimétrica e relacional de poder, o fato histórico básicoque resulta da satisfação das necessidades essen-ciais para a sobrevivência dos homens. Fato históricoque é também fato geográco, pois a vida do homemmedra somente quando carências originais, tais comoalimentação, vestuário, habitação, são satisfeitas. Os

homens, portanto, veem-se obrigados a produzir seusmeios de subsistência, que nascem primariamente darelação homem-natureza – relação que constitui o pri-meiro fato histórico, indiciando, portanto, que o trabalhoé que propicia a produção da vida humana.

Evidentemente, a satisfação dessas primeiras ne-cessidades adiante implicou em outras necessidades,de tal modo que, a começar da caverna, os homensalcançaram hoje as cidades e metrópoles do capita-lismo em um processo que, principiado naquele fatohistórico primevo constituído ao redor da carência, do

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trabalho e do grupamento familiar, acrescentou relaçõessocioespaciais correspondentes a cada fase do avançodas forças produtivas. A supracitada prerrogativa departes (micro) estruturais funcionalmente integradasno espaço dissipa a história como desenvolvimentodas relações (socioespaciais) de produção, por conse-

guinte, afasta-se de uma apreensão que não perde dohorizonte certa totalidade concreta, valendo complexasociedade burguesa que elucida as referidas relaçõessocioespaciais de produção como relações de classe,denida esta a partir de sua posição ou situação emrelação aos meios de produção.23

Tudo isso para dizer, parágrafo nal, que o cam-

po de poder relacional, distante da sobredita alegorianarrada por Canetti e assegurador, pelo menos noBrasil, da posição determinante da cultura em diversosestudos geográcos, não permite melhor considerar ahistória no relacionamento do espaço com a sociedade,ou seja, não dá lugar à conexão do território aos estudosde origem e de desenvolvimento da aludida totalidadeeconômica e política.

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