o conceito de saber na epistemologia polÍtica de michel foucault

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O CONCEITO DE SABER NA EPISTEMOLOGIA POLÍTICA DE MICHEL FOUCAULT Felipe LUIZ 1 RESUMO A década de 70 viu uma mudança teórica operar-se no pensamento de Foucault. Suas preocupações teóricas ganham outro matiz: ele passa a investigar as relações entre saber e poder ao problematizar ambos e mostrar como um não exclui o outro, mas que, muito ao contrário dos sonhos dourados dos positivistas, o saber não só não é neutro como ele gera relações de poder e este, em seu funcionamento o mais intestino, necessita e engendra saber. Foucault nomeia estas elaborações teóricas de uma série de modos, como analítica do poder ou política da verdade. Contudo, desde nossa leitura, o nome o mais adequado é epistemologia política. O objetivo deste curto ensaio é mostrar como Foucault erigiu estas análises por meio de um instrumental teórico nietzscheano, tendo como o cerne fundante a noção de saber ou de conhecimento, e como este conceito articula todos os demais neste intento histórico-filosófico. Palavras-chave: Foucault, epistemologia política, saber Introdução Em 1969 M. Foucault publica A arqueologia do saber, densas páginas que sistematizam o método chamado arqueologia que ele até então se valera em suas elaborações teóricas. Em três linhas, podemos dizer que a arqueologia é um método de pesquisa de história do pensamento e congêneres, que busca desvelar e descrever as 1 Bolsista PIBIC/CNPq, cursa o 4 o ano do Bacharel em Filosofia na UNESP-Marília, sendo orientado por Ricardo Monteagudo, do departamento de Filosofia da UNESP- Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Filosofia e Ciências – 17525-900-Marilia-SP

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O CONCEITO DE SABER NA EPISTEMOLOGIA POLÍTICA DEMICHEL FOUCAULT

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  • O CONCEITO DE SABER NA EPISTEMOLOGIA POLTICA DE MICHEL FOUCAULT

    Felipe LUIZ1

    RESUMO

    A dcada de 70 viu uma mudana terica operar-se no pensamento de Foucault. Suas preocupaes tericas ganham outro matiz: ele passa a investigar as relaes entre saber e poder ao problematizar ambos e mostrar como um no exclui o outro, mas que, muito ao contrrio dos sonhos dourados dos positivistas, o saber no s no neutro como ele gera relaes de poder e este, em seu funcionamento o mais intestino, necessita e engendra saber. Foucault nomeia estas elaboraes tericas de uma srie de modos, como analtica do poder ou poltica da verdade. Contudo, desde nossa leitura, o nome o mais adequado epistemologia poltica. O objetivo deste curto ensaio mostrar como Foucault erigiu estas anlises por meio de um instrumental terico nietzscheano, tendo como o cerne fundante a noo de saber ou de conhecimento, e como este conceito articula todos os demais neste intento histrico-filosfico.

    Palavras-chave: Foucault, epistemologia poltica, saber

    Introduo

    Em 1969 M. Foucault publica A arqueologia do saber, densas pginas que sistematizam o mtodo chamado arqueologia que ele at ento se valera em suas elaboraes tericas. Em trs linhas, podemos dizer que a arqueologia um mtodo de pesquisa de histria do pensamento e congneres, que busca desvelar e descrever as

    1 Bolsista PIBIC/CNPq, cursa o 4o ano do Bacharel em Filosofia na UNESP-Marlia, sendo orientado por

    Ricardo Monteagudo, do departamento de Filosofia da UNESP- Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Cincias 17525-900-Marilia-SP

  • formaes discursivas, constitutivas de discursos, grupos articulados de enunciados, que so, por sua vez, acontecimentos, ou seja, so singulares tm seu tempo e seu espao. Como se sabe, discurso o saber enquanto matria, quer-se dizer, a manifestao fsica do saber: a escrita, a fala. O enunciado o nome das partes constitutivas do discurso.

    A partir de duas hipteses, Foucault obra, logo no incio da dcada de 70, uma transformao terica marcada pela politizao do campo do saber e pela epistemologizao das relaes de poder. Este movimento hipottico servir de anteparo ou de base originria para aquilo que denominamos, no interior da pesquisa que estamos a empreender, de epistemologia poltica.

    A primeira hiptese - filha direta de Nietzsche - formulada por Foucault em uma srie de conferncias que compem A verdade e as formas jurdicas de 1973. Nela, ele tomar que o mais essencial do saber, do conhecimento, o fato de ele ser fundado por e ser, ele mesmo, uma relao de poder. Com um longo alcance terico, ser esta hiptese que servir de base para toda a produo terica subsequente de Foucault, dando-lhe assento no s para o objeto seccionado das pesquisas mas tambm para o mtodo.

    A segunda hiptese consta na aula inaugural de Foucault no Collge de France 1970. De acordo com ela, o discurso no livre pois h toda uma srie de mecanismos de produo e circulao que controlam a existncia do discurso, buscando enquadr-lo.

    Portanto, um saber que resultado e que engendra relaes de poder por um lado e que se v, de outro, posto em um rigoroso regime de circulao e produo. este saber, e so estes regimes, enfim, esta economia poltica do discurso, do saber e da verdade que ora analisaremos, intentando expor, salientando, contudo, que o conceito de saber que permite a M. Foucault as elaboraes posteriores.

    Ontologia do saber

  • Chamamos de ontologia de saber trs coisas: um conceito de saber ou conhecimento; um conceito de ordem do discurso, e, por extenso, ordem do saber; e um conceito de regime de verdade.

    O conceito de saber de Foucault empreende, antes de qualquer coisa, uma contraposio radical a toda uma tradio filosfica principiada j na Grcia. J Aristteles considerava que prprio ao homem o desejo de conhecer, e associava o ato mesmo de conhecer com o prazer: o conhecimento seria como que um instinto, to natural quanto se

    alimentar (ARISTTELES, 1979). Disto decorre que, sendo o conhecer natural, tambm o so o conhecimento, os objetos e os sujeitos: todos tomados como dados, de modo que a histria do conhecimento e do que lhe contguo nada mais seria seno a argcia de observar o movimento que leva do mais simples ao mais complexo. As coisas adequam-se ao conhecimento dado haver uma continuidade entre ambos; o conhecimento reconhece-se nas coisas e vice-versa. O sujeito , alm disso, uma perfeita unidade soberana. Afinal, os instintos e o conhecimento completam-se, um conduzindo o outro.

    Foucault discorda: se o conhecimento fruto da astcia, aquela da batalha que o inventou. A partir de Nietzsche, M. Foucault defende que o conhecimento uma Erfindung, inveno um invento de animais inteligentes. Ao invento contrape-se aquilo quem tem uma origem Ursprung , quer dizer, um fundamento originrio metafsico, supra-histrico, cujo destino repetir perpetuamente sua essncia, seu eidos dado desde a aurora dos dias. A partir desta negao do carter natural do conhecimento decorre todo o restante das concepes de Foucault.

    Ser um invento. Quer dizer, vir a existir: o conhecimento, como toda a inveno, tem um tempo e um lugar que lhe so prprios, um ponto de surgimento. Ser um invento: o conhecimento tem uma origem mesquinha. Ocorre que toda inveno uma ruptura com o que at ento se dava: ela instaura o novo. E o que a engendra sempre um motivo que busca esconder-se: uma maldade ou mesquinharia. Por isso que, de acordo com Foucault, Nietzsche busca, sobretudo, contrapor-se a Spinoza ao caracterizar o conhecimento. No toa; Spinoza como que o cume de uma tradio. O filsofo neerlands da imanncia

  • considera que somente possvel o conhecimento quando se evita rir, deplorar ou odiar o objeto: o conhecimento a candura que comunica as coisas com o cristalino de sua verdade; ele como que um afeto distinto que acolhe o objeto em sua pureza maculada pelas ms relaes, amando-o tal qual ele se d.

    Nietzsche diz no, antes preferindo situar o conhecimento no mundo dos homens, longe de qualquer paraso metafsico: para Nietzsche, o conhecimento fruto dos instintos, mais exatamente, da batalha entre os instintos: o conhecimento tem a ver com a guerra. Sem nenhum romantismo, ele toma que o conhecimento o resultado da luta entre os trs instintos, as trs ms relaes apontadas por Spinoza como contra-epistmicas: rir, deplorar e odiar. A partir de uma trgua precria entre estes instintos em luta, um dia o homem pde conhecer.

    O conhecimento, contra-instintivo e contra-natural, tem como objetivo dominar as coisas. Foucault: contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar (FOUCAULT, 2009, p. 18). Como nada o liga natureza, entre o conhecimento e as coisas no h continuidade, mas uma diferena; as coisas no existem para serem conhecidas. O conhecimento um vergar das coisas, uma relao insidiosa que busca nada mais seno, em ltimo caso, destru-las, pois o rir das coisas, o desprezo por elas e o dio que funda o conhecimento: ele as quer dominar.

    Sendo em fundamento marcado pela guerra, o sujeito de conhecimento v-se em destroos no interior desta posio. Os instintos lutam entre si e o conhecimento decorre desta luta: a este conjunto chama-se sujeito. Ora, ento no h nenhum sujeito uno, pois a unidade no tem partes Plato j o sabia muito bem. Disto, ou h sujeitos ou no h sujeito possvel. Do mesmo modo, deus expulso do corao das coisas; ainda Kant garantia o conhecimento atravs do recurso existncia do divino; mas um conhecimento que no a continuao suave das coisas, e sim a fora que as busca submeter, e uma natureza que no tem em si a predisposio ao conhecimento, mas que s se d a conhecer quando dominada: este saber e esta natureza so desdivinizadas.

  • Todo conhecimento perspectivo, generalizante e particular, simultaneamente. Perspectivo, pois d-se em uma batalha e pela batalha: todo conhecimento uma relao estratgica. Generalizante dado que ele esquematiza as coisas, tanto pior sem nenhum fundamento. Particular j que o conhecimento como que um duelo: luta singular do homem com o objeto que ele quer dominar.

    Ordem do discurso

    Em suma, o saber poder: fruto de relaes de luta, gerador de relaes de poder, instrumento de guerra, meio de dominao, etc. O saber uma maldade contra as coisas. O saber, dir Foucault em suma, no feito para compreender, ele feito para cortar (FOUCAULT, 2007, p. 28).

    Deve-se notar, no entanto, que at agora consideramos o saber em si e com isto deve-se entender que no o situamos em suas condies de circulao e de produo, mas somente naquilo que o caracteriza precisamente enquanto saber: demos seu conceito, pois. Entretanto, o saber, justamente por ser inveno, tambm produo e circulao. deste regime, desta economia, desta ordem que hora trataremos.

    O que h de novidade na aula inaugural, A ordem do discurso, a hiptese que j dissemos, mas no s. A primeira, principal e mais importante hiptese consta logo nas primeiras pginas:

    (...) suponho que em todas as sociedades a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e terrvel materialidade (FOUCAULT, 2005, p. 9).

    H outra hiptese tambm importante que, contudo, como que mera antecipao daquela constante em A verdade e as formas jurdicas que no desenvolvida e

  • fundamentada por Foucault tal qual l. Trata-se de considerar que o discurso no neutro, no desinteressado, mas est vinculado ao poder e ao desejo. No como quer a psicanlise: pois o discurso no apenas manifesta ou esconde desejo: objeto de desejo. Tampouco um discurso que somente descreva ou traduza as lutas, as batalhas e as dominaes: objeto de luta, luta-se para dominar o discurso.

    Da primeira hiptese, uma srie de concluses. H uma ordem do discurso, um regime discursivo que seleciona quais discursos: controle da produo, circulao e aplicao do discurso. No campo discursivo h, portanto, procedimentos de controle, os quais Foucault divide em internos e externos. Como estes ltimos daro ensejo para a teorizao de um regime de verdade, abordemos, em primeiro lugar, os procedimentos internos de controle.

    Os procedimentos internos de controle so exercidos pelos discursos sobre si mesmos, funcionando, marcadamente, a ttulo de princpios de classificao, de ordenao, de distribuio como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimenso do discurso: a do acontecimento e do acaso (FOUCAULT, p. 21, 2005). Foucault passa, ento, a considerar diversos procedimentos, os quais citaremos de maneira quase sumria, dividindo-os, contudo, em princpios de coero e de rarefao.

    Procedimentos de coero: so os procedimentos de controle da apario do discurso, quer dizer, que fixam regras de surgimento e significao. O comentrio: desnvel entre os discursos que so proferidos e desaparecem e aqueles que so permanentes, quer dizer, que duram alm de sua enunciao; estes do ensejo a textos segundos, discursos que se acumulam sobre outros discursos e cuja novidade no est no que dito, mas no acontecimento de sua volta (FOUCAULT, p. 26, 2005), portanto, limitar o acontecimento ocasional do discurso por meio da repetio do mesmo. O autor: este entendido como princpio de coerncia, significao e agrupamento do discurso; ainda que mvel ao longo da histria, nas sociedades contemporneas o autor cumpre a precisa funo de reduzir a multiplicidade do discurso forma identitria do eu. A disciplina: trata-se de um corpo de proposies, regras, tcnicas e mtodos constitutivos de uma sistematicidade annima; esta

  • relao de sistema permite que se agrupe tudo que pode ser dito de verdadeiro ou aceito sobre determinada coisa; a disciplina determina uma srie de princpios restritivos (objetos, tcnicas, conceitos, instrumentos) que, por sua vez, determinaro a pertinncia ou no de uma proposio a si: a disciplina um princpio de controle da produo do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizao permanente das regras (FOUCAULT, p. 36, 2005).

    Procedimentos de rarefao dos sujeitos: so aqueles que controlam no tanto as condies de aparecimento do discurso, mas, sim, de sua circulao, de funcionamento dos discursos. Ritual: qualificao dos sujeitos que falam, quer dizer, prescrio de posies, gestos, comportamentos e fixao dos efeitos que cada discurso ter. Sociedades do discurso: cuja funo conservar ou produzir discursos, mas para faz-los circular em espao fechado, distribu-los somente segundo regras restritas, sem que seus detentores sejam despossudos por essa distribuio (FOUCAULT, p. 39, 2005). Rituais da palavra: trata-se de sociedades do discurso difusas, mais amplas, cuja funo tambm produzir discursos, mas de forma a no permitir a sua permutabilidade: so funes, como o escritor e o sistema que o apia, ou formas prescritas ao discurso, como a do segredo tcnico. Grupos doutrinrios: se eles assemelham-se disciplina pelas condies que exige (verdades comuns e regras de conformidade com os discursos vlidos), a doutrina questiona o sujeito que fala a partir do enunciado, excluindo todo contedo inassimilvel como heresia, justificando-se a partir da ortodoxia; o sujeito que fala, carrega o sinal de uma pertena prvia, que a doutrina questiona tambm. Apropriaes sociais: trata-se da maneira poltica de manter ou de modificar a apropriao dos discursos com os saberes e os poderes que eles trazem consigo (FOUCAULT, p. 44, 2005).

    Regime de verdade

    A primeira hiptese da Ordem do discurso a de que existem procedimentos externos de controle do discurso, os procedimentos de excluso. Aquele que Foucault aborda mais detalhadamente chama-se vontade de verdade, mas h outros, como a interdio e a separao/rejeio. Interdio: restrio de enunciao, quer dizer, no se

  • tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar de tudo, em qualquer circunstncia, que qualquer um, enfim, no pode falar de qualquer coisa (FOUCAULT, p. 9, 2005); trs tipos principais de interdio: tabu do objeto, ritual da circunstncia e privilgio ou exclusividade do sujeito que fala. Separao/rejeio: Foucault d o exemplo do louco, que nada mais seno aquele cujo discurso no deve circular, quer dizer, cuja materialidade de seu discurso deve, ao mesmo tempo ser seccionada das demais, rejeitada em um aparato de saber, constitudo de uma rede de instituies que escutam esse discurso, e lhe retira os poderes.

    Mas a vontade de verdade que mais nos importa. Ela rege nossa vontade de saber desde o sculo VI a.C: desde Plato, mais exatamente. Olhado por dentro, um discurso verdadeiro ou falso no guarda semelhana com os demais procedimentos de excluso, pois estes devem ser arbitrrios e dotados de aporte institucional; mas vista de fora, a vontade de verdade se mostra como um procedimento de excluso: histrico, arbitrrio e institucionalmente apoiado. Institucionalmente apoiado, pois h os sistemas de livros, de edio, as bibliotecas, laboratrios, universidades, etc... Embora isto, o que reconduz a vontade de verdade , sobretudo, a maneira pela qual uma sociedade aplica o saber: formas de valorizao ou no, formas de distribuio de repartio, de atribuio. Encarada por estas vias, a vontade de verdade mostra-se como sistema de coero: exerce, sobre os demais discursos, presso e poder de coero: os discursos buscam autorizar-se pelo discurso da verdade. H sculos que a vontade de verdade s faz crescer; tanto que outros procedimentos de excluso interdio, sujeio e rejeio se orientam no sentido da vontade de verdade: esta os toma, os modifica, os reorienta, ao passo que ela mesma se fortalece e se torna, mais e mais, incontornvel.

    Histrico, porque remete ao surgimento da filosofia platnica, separao entre poder e saber no Ocidente, ao fim do sofista e ao surgimento da distino verdadeiro / falso, que dar a forma geral de nossa vontade de saber. a partir da separao entre saber e poder e da distino instituda pela filosofia platnica e pelo saber das testemunhas, prprio prtica judiciria grega entre verdadeiro e falso que nossa vontade de saber tomar a forma que tem at hoje; forma geral, que funcionou historicamente como procedimento de excluso do discurso. Passou por diversas mudanas durante os sculos

  • que nos separam de Plato, de Aristteles, etc, mas no deixou, nunca, de funcionar como sistema de excluso, como atestam aqueles que ousaram opor-se a ela.

    Com Plato opera-se uma separao entre a verdade e o desejo e o poder de modo que aquela passa a no mais corresponder a estes. A verdade existe no mundo das ideias, imutvel. Neste mundo, mundo das coisas, o que h a corrupo das ideias; aqui a verdade no est em jogo, somente o desejo e o poder esto. Assim, a verdade jamais poderia reconhecer que guiada por uma vontade, buscando mascarar-se como fecunda, e universal: no como sistema de excluso.

    A vontade de verdade, que faz girar, em torno de si, os demais discursos, funciona como procedimento de excluso. E isto porque, se em todas as sociedades h um regime de verdade, no Ocidente este toma propores imensas. Por regime de verdade devemos entender os discursos que funcionam como verdade, regras de enunciao da verdade, tcnicas de obteno da verdade, definio de um estatuto prprio daqueles que geram e definem a verdade; portanto ligao circular entre verdade e poder: poder que produz verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. (cf. FOUCAULT, 2007, pgs. 1-14).

    Esta concepo permite a M. Foucault conceituar a verdade de um ponto de vista estritamente discursivo, toma esta como um conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos especficos de poder (FOUCAULT, 2007, p. 13), ou como um conjunto de procedimentos regulados para a produo, a lei, a repartio, a circulao e o funcionamento dos enunciados (FOUCAULT, 2007, p. 14).

    Um regime de verdade ou, o que interpretamos como o mesmo, uma economia poltica da verdade indica as maneiras, os procedimentos de troca, de mudana, de atribuio, de produo, de incitao, de cesso, de constituio da verdade. Cinco caractersticas dessa economia em nossas sociedades: o discurso cientfico e as instituies que o produzem centralizam a verdade; esta incitada constantemente pelos campos poltico e econmico; h um grande consumo e uma grande difuso da verdade; h grandes

  • aparelhos de produo e difuso da verdade: universidades, exrcito, escritura, mdia; por ltimo, ela objeto de debates polticos e confrontos sociais.

    O mtodo

    Tambm o mtodo de Foucault a partir da dcada de 70, a genealogia, apia-se nesta noo de saber enquanto Erfindung, ou, antes, na noo de que as coisas, como o saber, foram inventadas. Inspirado em Nietzsche, o mtodo genealgico busca situar as coisas no mundo dos homens, pens-las em sua prpria histria, atravs da anlise documental que busque a vida, o corpo daqueles que viveram, e no as letras mortas nos livros (cf. NIETZSCHE, 2007). O genealogista no se contenta com o azul dos sonhos metafsicos, com aquilo que se diz desde sempre dado; a genealogia, diz Nietzsche prefere o cinza, isto , a coisa documentada, o efetivamente constatvel, o realmente havido (NIETZSCHE, 2007, p. 13). A genealogia um mtodo, portanto, que busca saber, na acepo dada pelo fillogo-filsofo, o valor dos valores, o peso prprio, a real importncia, a origem e o contexto da origem dos valores; no qualquer saber: deve-se demonstrar documentalmente, para no ficar na mera verborragia bblica.

    Todos estes elementos so resgatados por Foucault em seu famoso texto, Nietzsche, a genealogia e a histria. Em se tratando de um mtodo de anlise histrica, a genealogia funda-se na anlise de documentos, conforme o dito, que situa as coisas na histria de forma antimetafsica. A genealogia no se ope histria como a viso altiva e profunda do filsofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se ope, ao contrrio, ao desdobramento meta-histrico das significaes ideais e das indefinidas significaes. Ela se ope pesquisa de 'origem' (FOUCAULT, 2007, p. 16).

    Novamente a questo da origem. Em alemo h trs palavras que so traduzidas como origem, apesar de seus significados serem distintos para Nietzsche. Tratam-se de Ursprung, Entstehung e Herkunft. J sabemos que o conhecimento no tem Ursprung que origem no sentido de essncia metafsica; situar o conhecimento no mundo entend-lo como uma inveno, Erfindung. A genealogia ope-se pesquisa da Ursprung, pois que

  • este tipo de pesquisa deste tipo busca o fundamento originrio das coisas, anteriores ou mesmo fora da histria.

    Lendo Nietzsche e buscando definir para si um mtodo, Foucault interpreta que o genealogista no deve buscar a Ursprung das coisas, porque nada tem essncia o que indicado por este nome foi construdo pouco a pouco, por acidentes externos as coisas; que o que se encontra no comeo histrico das coisas no a identidade ainda preservada da origem a discrdia entre as coisas, o disparate (FOUCAULT, 2007, p. 18). No existe uma verdade tal qual querem os platnicos no existe nenhum eidos. O genealogista compreende que a histria com suas intensidades, seus desfalecimentos, suas grandes agitaes febris, com suas sncopes, o prprio corpo do devir. preciso ser metafsico para lhe procurar uma alma na idealidade longnqua da origem (FOUCAULT, 2007c, p. 20), preciso ser metafsico para empreender uma pesquisa de Ursprung.

    O conhecimento, sendo inveno, um dia no existia e no outro existia. Ou seja, o conhecimento tem uma origem, mas esta mais bem indicada por dois outros vocbulos alemes Herkunft e Entstehung. Eles tambm significam mais fidedignamente o objeto prprio da genealogia.

    A melhor traduo para Herkunft provenincia, pertencimento a um grupo, povo, cl ou tradio. Trata-se de fazer aparecer o acontecimento que permitiu a formao de um conceito ou carter; portanto, em dissociando o que hoje se d, pesquisar o que se perdeu. Sem nenhum trao evolucionista, a Herkunft quer descobrir que na raiz daquilo que ns conhecemos e daquilo que ns somos no existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente (FOUCAULT, 2007, p. 21). Pesquisa de herana, das falhas, da heterogeneidade, da instabilidade, que dissocia o que dado como uno. Como em um corpo que as marcas se inscrevem, que os acontecimentos se fazem sentir, justamente na articulao entre corpo e histria que a Herkunft se situar.

    Quanto Entstehung, a melhor traduo seria emergncia: anlise do ponto e da lei de surgimento de algo. A genealogia reestabelece os diversos sistemas de submisso:

  • no a potncia antecipada de um sentido, mas o jogo casual das dominaes (...) [e por isso que] a emergncia se produz sempre em um determinado estado das foras (FOUCAULT, 2007, p. 23). Portanto, a anlise da Entestehung deve mostrar o combate entre as foras ou o meio pelos quais elas buscam se perpetuar quando j decadentes. A Entstehung se d na distncia entre as foras em combate, pois no existe emergncia que no se d no mbito da luta entre dominadores e dominados. Se a dominao histrica, alterando-se na histria, ela sempre impe obrigaes e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranas nas coisas e at nos corpos; ela se torna responsvel pelas dvidas (FOUCAULT, 2007, p. 25); a dominao estabelece regras, que so a violncia da guerra na qual tudo est imerso; por meio de regras que se violenta aqueles que violentam, e sero os mais astutos aqueles que souberem usar as regras contra quem as inventou; neste sentido, a interpretao das regras liga-se ao devir da humanidade: ele prprio nada mais seno uma srie de interpretaes. A genealogia deve fazer aparecer as sucessivas interpretaes que vincaram as coisas; deve mostrar os sentidos que se fizeram pesar sobre os diversos procedimentos, sobre os diversos corpos, sobre as coisas todas do mundo, pois qualquer coisa pode ser tomada objeto da genealogia: tudo tem uma histria, que lhe idiossincrtica.

    A genealogia mtodo histrico antimetafsico que visa mostrar a provenincia e a emergncia das coisas, atravs da dissociao das unidades naturalizadas. Contrastar as diferenas, mostrar as foras em jogo em cada menor coisa, expulsar os interesses de suas tocas, eis o que faz o genealogista. Quebrando as unidades, Foucault tambm quebra o telos, as finalidades, terminando por opor o homem, os homens, entre si, ou seja, vincando as diferenas, salienta-se a historicidade das coisas de todas as coisas, at mesmo daquelas que se mostram as mais naturalizadas.

    A genealogia acrescenta elementos s anlises arqueolgicas, em articulando saber (discursivo) com o poltico, tornando o saber resultado-objeto das guerras sociais, que envolvem a tudo e a todos. Assim, ainda que se trate de um mesmo projeto, de anlise histrico-epistmica do saber, a genealogia inova ao mostrar como o saber responde urgncias histricas, interesses determinados; a genealogia mostra como as relaes de

  • poder engendram saber, discurso, massa documental, seja em decorrncia de seu prprio exerccio, seja como condio de sua existncia.

    A genealogia mata, por inanio, todo e qualquer platonismo.

    Em suma, a genealogia um mtodo de anlise histrica de um conceito, de um corpo ou de um carter, que busca mostrar a provenincia e a emergncia destes no mbito da luta entre dominadores e dominados, articulando a constituio de formas de saber com o exerccio do poder. Vigiar e Punir, por exemplo, a anlise da provenincia da disciplina e da emergncia de suas formas contemporneas em escolas, prises, asilos, exrcito, etc., que levou a constituio de uma srie de cincias conhecidas como Humanidades. Como a genealogia sempre supe a luta entre dominadores e dominados, cumpre dissolver as unidades (esculpidas pacientemente pelos dominadores) para mostrar a baixeza (o que h de humano) da provenincia e da emergncia aquilo que foi intencionalmente apagado seja do campo do poder seja do saber.

    Epistemologia poltica

    Por meio de um conceito de saber ou conhecimento, Foucault constitui todo o instrumental terico necessrio epistemologia poltica. Ns mostramos como, para ele, o

    saber mantm uma srie de obscuros tratos e analogias com as relaes de poder. Podemos dizer, em suma, em fazendo uma leitura foucaultiana de Nietzsche, que ele o saber funda uma relao de poder ao buscar dominar o objeto ao lhe atribuir um sentido (DELEUZE, 1974).

    Deste conceito politizado de saber, Foucault extrai uma ordem do discurso. Afinal, como saber uma arma, filho da astcia blica dos instintos, ora, sua produo e circulao no poderiam, de forma alguma, ser isentas do interesse dos homens em luta.

    Do mesmo modo em relao verdade. Contra o rano de idealista que repousa nos fundamentos de nossa cultura, Foucault mostra como a verdade uma regra, um

  • conjunto muito bem articulado de regras que exclui e inclui discursos e saberes, distingui-lhes por meio de uma srie de artifcios. Um conjunto que responde a uma srie de interesses. No: a verdade no a essncia que repousa no ncleo das coisas; ela no a realidade mesma.

    Se o mtodo de Foucault no depende, exatamente, de seu conceito de saber, ambos tm a mesma Herkunft, a mesma provenincia: afinal, a oposio Ursprung que as fundamenta. Afinal, na raiz do mtodo e do conceito reside a noo de que os homens inventam as coisas; de que elas so acontecimento, com um lugar e um tempo: racionalidade. Que as coisas tm uma racionalidade de surgimento que obedece somente ao acaso da inveno e da fineza calculista da batalha.

    Ao articular saber, ordem do discurso, regime de verdade e a genealogia, Michel Foucault fundou um mtodo que causa um sentimento de vertigem (BRUNI, 1989). Afinal, onde fundamentar um argumento ou um valor se tudo que o ser nos comunica o vazio da luta que envolve a tudo e a todos? Eis o dilema que Foucault nos legou.

    Bibliografia ARISTTELES, Metafsica in Aristteles, Os Pensadores, SP-SP, Abril Cultural, 1979 BRUNI, Jos C.; Foucault: o silncio dos sujeitos, Tempo Social, SP-SP, n 1, v. 1o., 1o. sem. 1989, p. 199-207 DELEUZE, Gilles; Nietzsche et la philosophie, PUF, Paris-France, 1974 FOUCAULT, M; A ordem do Discurso, SP-SP, Loyola, 2005, 12 ed. ______________; A verdade e as formas jurdicas, RJ-RJ, NAU, 2009, 3 ed. ______________; Microfsica do poder, RJ-RJ, Graal, 2007, 24 ed. LUIZ, Felipe; A relao entre verdade e poltica em Foucault, Filognese, Marlia-SP, vol 1, n 1, 2008

    NIETZSCHE, Friedrich; Genealogia da moral: uma polmica, SP-SP, Companhia das Letras, 2007