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O CONCEITO DE PAISAGEM CULTURAL COMO ESTRATÉGIA PARA PRESERVAÇÃO DO COMPLEXO DA FÁBRICA RHEINGANTZ EM RIO GRANDE – RS SILVA, ROGÉRIO P. (1); BLANK, DIONIS M. P. (2); SCHMIDT, KELLY R. (3) 1. Mestrando em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel. Professor da Universidade Federal do Rio Grande – Furg. E-mail: [email protected] 2. Mestrando em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel. E-mail: [email protected] 3. Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel. Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected] A Fábrica Rheingantz, fundada em 1873 na cidade do Rio Grande foi a pioneira na industrialização no Rio Grande do Sul e a primeira na produção de lã no país, chegou a empregar 1.200 funcionários em uma área de 143 mil metros quadrados. Seu complexo é formado pela vila operária, casas de mestres, um grupo escolar, jardim de infância e cassino dos mestres. Esse conjunto de edificações permanece erguido, apesar da degradação ambiental e econômica que vem sofrendo desde que a atividade chegou ao fim em 1968. Este trabalho foi desenvolvido por meio do método de abordagem dedutivo, descritivo e pesquisa de campo com o objetivo de apresentar o conceito de paisagem cultural como estratégia de preservação do complexo da fábrica Rheingantz. Para tanto, fundamentou-se nas referências teóricas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), na Carta de Cracóvia (2000), entre outros. Conclui-se que a instituição do conceito de paisagem cultural, permitirá aos órgãos públicos promoverem modelos de gestão compatíveis com a preservação do patrimônio material e da memória, desenvolvendo estratégias de uso local potencializando a economia, resguardando os saberes e fazeres locais. Palavras-chave: Fabrica Rheingantz. Paisagem Cultural. Preservação.

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Page 1: O conceito de paisagem cultural como estratégia para preservação do complexo da Fábrica Rheingantz em Rio Grande - RS

O CONCEITO DE PAISAGEM CULTURAL COMO ESTRATÉGIA PARA PRESERVAÇÃO DO COMPLEXO DA FÁBRICA RHEINGANTZ EM RIO

GRANDE – RS

SILVA, ROGÉRIO P. (1); BLANK, DIONIS M. P. (2); SCHMIDT, KELLY R. (3)

1. Mestrando em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel. Professor da Universidade

Federal do Rio Grande – Furg. E-mail: [email protected]

2. Mestrando em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel.

E-mail: [email protected]

3. Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel. Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]

A Fábrica Rheingantz, fundada em 1873 na cidade do Rio Grande foi a pioneira na industrialização no Rio Grande do Sul e a primeira na produção de lã no país, chegou a empregar 1.200 funcionários em uma área de 143 mil metros quadrados. Seu complexo é formado pela vila operária, casas de mestres, um grupo escolar, jardim de infância e cassino dos mestres. Esse conjunto de edificações permanece erguido, apesar da degradação ambiental e econômica que vem sofrendo desde que a atividade chegou ao fim em 1968. Este trabalho foi desenvolvido por meio do método de abordagem dedutivo, descritivo e pesquisa de campo com o objetivo de apresentar o conceito de paisagem cultural como estratégia de preservação do complexo da fábrica Rheingantz. Para tanto, fundamentou-se nas referências teóricas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), na Carta de Cracóvia (2000), entre outros. Conclui-se que a instituição do conceito de paisagem cultural, permitirá aos órgãos públicos promoverem modelos de gestão compatíveis com a preservação do patrimônio material e da memória, desenvolvendo estratégias de uso local potencializando a economia, resguardando os saberes e fazeres locais. Palavras-chave: Fabrica Rheingantz. Paisagem Cultural. Preservação.

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1. INTRODUÇÃO

A primeira indústria de lã do país e a pioneira no processo de industrialização no Rio

Grande do Sul teve origem na cidade do Rio Grande no ano de 1873, sob o nome de

Rheingantz e Vater. A “fábrica Rheingantz”, como é conhecida até hoje, situada na

principal avenida de acesso ao centro da cidade, chegou a empregar 1.200 funcionários

em uma área de 143 mil metros quadrados.

Essa estrutura criou uma nova dinâmica, com características próprias, alterando a

paisagem local, uma vez que, para Berque (2004), sujeito e paisagem são co-integrados

em um conjunto unitário que se autoproduz e autorreproduz.

O complexo da fábrica Rheingantz é formado pela vila operária, casas de mestres e

técnicos, um grupo escolar, jardim de infância, cassino dos mestres, além de vias de

deslocamento e construções originadas pelo trabalho industrial. Sua implantação foi

fundamental na urbanização, no crescimento portuário e na expansão da malha férrea do

Rio Grande. Esse conjunto de edificações que permanece erguido, apesar da degradação

ambiental e econômica que vem sofrendo desde que a atividade entrou em declínio e

chegou ao fim por volta da década de 1970, configurou a ruína do espaço, bem como a

retração da atividade econômica e consequente empobrecimento da cidade.

Conjuntamente com a memória construída ao longo de gerações, esse complexo

representa um patrimônio cultural do país e, em função disso, deve ser preservado. Todos

os esforços já empreendidos nesse sentido utilizaram a mémoria como foco principal para

o tombamento, contudo fracassaram. A demora na implantação de uma política de

proteção e do tombamento de estruturas arquitetônicas em geral e do complexo da

Fábrica Rheingantz, particularmente, tem efeitos devastadores não só para os bens

edificados mas também, para compreensão do processo histórico de formação da

industria e ocupação interiorana no Brasil.

A compreensão da paisagem segue o componente cultural através dos fatos históricos

formadores da identidade. Essa associação de paisagem e identidade possibilita a

utilização do conceito de Landscape Character Areai já utilizada nos estudos de Usher em

1999, que demonstra ser possível identificar a paisagem através da relação identitária por

meio de métodos quantitativos.

Deste modo, este trabalho foi desenvolvido utilizando-se do método de abordagem

dedutivo, com relação aos seus objetivos o estudo classifica-se como pesquisa descritiva,

quanto aos métodos de procedimento utiliza-se da pesquisa de campo com a técnica de

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questionário empregada na coleta de dados com o objetivo de apresentar o conceito de

paisagem cultural como estratégia de preservação do complexo da fábrica Rheingantz em

Rio Grande, antes que todo esse patrimônio desapareça como podemos observar na

secção 2.3.

Para tanto, fundamentou-se o objeto nas referências teóricas da Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a qual, em 1992, incorporou a

categoria “paisagem cultural” a fim de valorizar as inter-relações entre o homem e o meio

ambiente, do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), o qual, na Portaria n.º

127, de 30/04/2009, criou um instrumento nacional de reconhecimento da paisagem

cultural brasileira definido como chancela, da Carta de Cracóvia (2000), da Carta de Bagé

(2007), e de outros documentos relevantes para a pesquisa.

2. LOCALIZAÇÃO, DESCRIÇÃO E ESTADO ATUAL DO OBJETO DE ESTUDO

2.1. Localização

O município do Rio Grande conta com uma população de aproximadamente 200 mil

habitantes e um PIB anual de cerca de 04 bilhões de reais, localiza-se na planície costeira

sul do Estado do Rio Grande do Sul, tendo como limites: ao Norte, o município de Pelotas

e a Laguna dos Patos; ao Leste, o Oceano Atlântico e o Canal do Rio Grande; a Oeste, os

municípios de Capão do Leão, Arroio Grande e a Lagoa Mirim; ao Sul, o Município de

Santa Vitória do Palmar. Está sobre os paralelos 31º 47. 02./32º 39. 45. e os meridianos

52º 03. 10./52º 44. 10 (fig. 01). É o mais antigo município do Estado e dista a 317km ao

sul da capital, Porto Alegre.

Figura 1 – Localização do objeto de estudo.

Fonte: Elaborada pelo autores.

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O município apresentou uma multiplicidade de experiências históricas desde o início de

seu povoamento em 1737. Enquanto primeiro núcleo sistemático de colonização luso-

brasileira no atual Rio Grande do Sul, a localidade acumulou ao longo do período colonial

e imperial, historicidades inovadoras que se destacam no contexto regional e nacionalii.

No que se refere ao Patrimônio Cultural Histórico não é diferente.

Rio Grande foi a primeira capital do Estado, teve a primeira câmara de Vereadores

(1761), a mais antiga loja maçônica do Rio Grande do Sul (1840), a primeira Câmara de

Comércio (em 1844, quarta entidade de classe mais antiga do Brasil), a primeira

biblioteca pública gaúcha (1846), o mais antigo farol (Farol Capão da Marca, inaugurado

por Dom Pedro II em 1849), a primeira mulher formada em medicina no país (Rita Lobato

Velho-1887), o time de futebol mais antigo do Brasil, o Esporte Clube Rio Grande, fundado

em julho de 1900 e também, o objeto desse estudo, a primeira indústria de lã do Brasil,

Rheingantz e Vater (1873).

2.2. Descrição do objeto de estudo

Até 1880 Rio Grande contava apenas com estabelecimentos artesanais, sua importância

era principalmente comercial. Entretanto, a fixação de estrangeiros, a peculiaridade do

conjunto costeiro com um porto marítimo e hidrovias e a alfândega riograndina somados

ao forte comércio com a Europa e ao capital acumulado pelos comerciantes, faz com que

surja um impulso industrialista (COPSTEIN, 1974).

Pesavento (1985) confirma esse impulso elencando alguns dos empreendimentos no

período. Além da Rheingantz em 1873, A fábrica de Charutos e a Moinhos Rio-grandense

em 1891, correarias, fábricas de biscoitos e de alimentos em conservas, entre outros.

A Fábrica Rheingantz foi fundada em 1873, na cidade do Rio Grande pelo descendente

de Alemães Carlos Guilherme Rheingantziii e o Alemão Hermann Vater com a

denominação de Rheingantz e Vater.

Conforme Martins (2006) a sociedade industrial foi formada com noventa conto de réis. As

instalações de 43 mil metros quadrados foram construídas em um terreno de 143 mil

metros quadrados, cedido pela municipalidade. Em 1881 a sociedade é dissolvida ficando

sob administração de Carlos Rheingantz que em 1884 altera a denominação para

Rheingantz & Cia. Em 1891, compra áreas pastoris e rebanho para obtenção de lã,

entretanto, com a Revolução Federalista (1893-95) o rebanho é praticamente dizimado

pondo fim ao projeto de expansão. Após esses imensos prejuizos a empresa muda

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novamente sua denominação passando a chamar Companhia União Fabril, nome que se

manteve até a década de 1960.

Figura 2 – Tecelagem Rheingantz, Rio Grande – RS, 1884.

Fonte: Acervo da Biblioteca Pública do Rio Grande.

Sua principal atividade baseava-se na produção de tecidos de lã, algodão e na confecção

de tapetes, destinados basicamente, ao comércio exterior e aos estados de São Paulo e

Rio de janeiro.

Figura 3 – Saida dos funcionários da Tecelagem Rheingantz em 1944.

Fonte: Acervo da Biblioteca Pública do Rio Grande.

Roche (1969) afirma que “os capatazes e contramestres e toda a mão-de-obra

especializada haviam sido importados da Alemanha ao mesmo tempo que as máquinas”.

Mas não haviam apenas alemães trabalhando na Rheingantz. A “Fábrica” que chegou a

empregar no início do século vinte, mais de 1200 pessoas – se levarmos em

consideração que neste período residiam na cidade cerca de 20 mil pessoas podemos

vislumbrar a dimensão e importância dessa indústria – era um local onde segundo

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Paulitsch (2006), “brasileiros, portugueses, italianos, alemães, norte-americanos e

espanhóis mesclavam-se num emaranhado de sotaques e tradições”.

Figura 4 – Complexo da Fábrica Rheingantz na primeira metade do século XX.

Fonte: Acervo da Biblioteca Pública do Rio Grande

Praticamente desde o início de suas atividades a fábrica Rheingantz, já possuía uma

polítca de incentivos e de responsabilidade social. Organizou uma cooperativa de

consumo, assistência médica, enfermaria, farmácia, escola primária, creche, biblioteca,

casas para operários e mestres, cassino dos mestres, etc. Embora, para Pesavento

(1988) tais práticas escamoteavam por meio de medidas assistencialistas a coerção

econômica imposta aos trabalhadores, isto é, estabelecia um controle extra-fábrica.

Figura 5 – Parte da fachada principal, Cassino dos Mestres e algumas casas de operários ao

fundo. Fonte: Elaborada pelos autores em 15/05/2010.

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Enquanto as casas dos operários foram construídas tipo fita, enfileiradas, alinhadas ao

limite do terreno, as dos mestres e contramestres eram isoladas, com recuo e

predominância do estilo germânico. Também foi construído o cassino dos mestres que

servia para hospedar técnicos vindos de outras regiões e para o lazer dos empregados

com cargos hierarquicamente superiores. Todas estas construções mudaram a paisagem

local e deram início a expansão da cidade, fig 07.

A fábrica que está localizada na principal avenida de entrada da cidade e próxima ao

centro histórico, viu surgir em seu entorno vias de acesso, bairros e etc. Segundo

Copstein (1982) a cidade do Rio Grande tinha uma área de aproximadamente 175

hectares em 1878, expandindo-se para 458 hectares no final do século XIX. A empresa

teve sob sua administração 169 propriedades, conforme Martins (2006).

2. 3. A “Fábrica” hoje: discussão judicial e estado de conservação

Todo esse complexo (fig. 4) que, através da produção fabril ajudou a impulsionar a

economia local e está marcado na memória da população como parte integrante de sua

identidade, encontra-se abandonada, sem qualquer função, abrigando desocupados e

sendo alvo de vândalos.

Figura 6 – Fachada principal.

Fonte: Elaborada pelos autores em 15/05/2010.

Como pode-se observar na fachada principal (fig. 6 e 7), a ação do tempo e do homem

estão atuando inexoravelmente para o total comprometimento da estrutura, vidros

quebrados, portas destruidas, roubos de peças e maquinários e cobertura ruindo.

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Figura 7 – Fachada principal. Fonte: Elaborada pelos autores em 15/05/2010.

Enfim, embora, a estrutura do complexo e sua história, em grande parte resista, ainda

hoje, ao tempo e a degradação (apesar do péssimo estado de conservação de algumas

casas como é o caso do cassino dos mestresiv, figs. 8 e 9, e algumas casas de Mestres,

fig. 10), se nada for feito, rapidamente, perigamos perder talvez o único sítio industrial

urbano histórico do Estado do Rio Grande do Sul que ainda mantém parte de sua

estrutura edificada.

Figura 8 – Cassino dos mestres (vista lateral).

Fonte: Elaborada pelos autores em 15/05/2010.

Portanto, urge que se determine de uma forma ou de outra, o tombamento e todos os

procedimentos oriundos de sua chancela.

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Figura 9 – Cassino dos mestres (vista frontal).

Fonte: Elaborada pelos autores em 15/05/2010.

Em 22/12/1994, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ingressou com Ação

Civil Pública em desfavor do Município do Rio Grande e do Estado do Rio Grande do Sul

buscando declarar a relevância histórica, cultural, arquitetônica e urbanística do conjunto

urbano da Fábrica Rheingantz, com a condenação dos réus a realizarem o tombamento

ou instaurarem o procedimento de tombamento do prédio da Fábrica Rheingantz,

incluindo a Vila Operária interna e o Grupo Escolar Comendador Rheingantz, sendo os

réus obrigados também a estabelecer o entorno. A condenação do Estado-réu a

estabelecer por ato próprio a delimitação do entorno com relação aos bens para o

tombamento e a condenação do Município-réu a indenizar os danos causados ao

patrimônio cultural, histórico, estético, arquitetônico e urbanístico em razão de ter

autorizado a demolição de dois prédios que estavam elencados como bens de interesse

sócio-cultural.

Figura 10 – Cassino dos mestres.

Fonte: Elaborada pelos autores em 15/05/2010.

Depois de muitos anos de discussão, a sentença foi proferida em 10/05/2006. Na

oportunidade, a julgadora decidiu pela extinção do processo sem julgamento do mérito

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quanto aos pedidos de inventário, de vigilância, de declaração de relevância histórica,

cultural, arquitetônica e urbanística do conjunto urbano da Fábrica Rheingantz e de

delimitação pelo Estado-réu do entorno dos bens já tombados. Todavia, julgou procedente

ao efeito de condenar os réus a instaurarem procedimento de tombamento do conjunto

urbano da Fábrica Rheingantz, disciplinando o entorno, no prazo de um ano, sob pena de

multa diária de dois salários mínimos nacionais; condenar os réus (o Estado no que tange

aos bens por ele tombados e o Município no que se refere aos prédios relacionados como

de interesse sócio-cultural) a fiscalizá-los, expedindo relatório das condições em que se

encontram e das providências que serão adotadas, no prazo de três meses, sob pena de

multa diária de dois salários mínimos nacionais. Por fim, determinou improcedente o

pedido contra o Município do Rio Grande de indenização pela demolição dos prédios

referidos.

Não contentes com a sentença, o Município do Rio Grande e o Estado do Rio Grande do

Sul apelaram. Diante disso, em 29/08/2007, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

entendeu, por maioria, negar provimento às apelações, em razão de não merecer

correções a sentença prolatada. Ainda não satisfeito, o Estado moveu embargos de

declaração, sustentando que haveria contradição na decisão do Tribunal, sob o

fundamento de que ora seria afirmado que o tombamento já estaria determinado e ora

daria a entender que apenas estaria, se determinado a instauração do procedimento de

tombamento. Assim, o Tribunal manifestou-se, mais uma vez, esclarecendo que o ente

federado está obrigado a instaurar o procedimento de tombamento, contudo não,

obrigatoriamente, precise decretar o tombamento, até porque o tombamento tem a

natureza de um ato discricionário. Nesses termos, foi proposta a execução da sentença, a

qual perdura até hoje.

Conforme descrito até aqui, o valor histórico e cultural dos imóveis que fazem parte do

complexo da Fábrica Rheingantz é inquestionável, tanto que já foram declarados como

integrantes do “Patrimônio Cultural do Estado”, por meio da Lei Estadual n.° 11.585/2001.

Entretanto, conforme evidencia Ferreira (2009, p. 29) o declínio e consequente

esvaziamento da fábrica como unidade produtiva, bem como o avanço da degradação

dos prédios e maquinários, geraram um sentimento de luto e a necessidade de reter

alguns desses vestígios do passado, lugares de memória que se transformaram. A autora

acresce que a ação do Estado sempre se caracterizou como de omissão e negligência,

cabendo aos antigos funcionários cumprirem uma espécie de função guardiã da empresa,

atuando em diversas frentes como o resguardo ao prédio (os casos de roubos de fios de

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cobre havia se tornado frequente), a apropriação de objetos pequenos que eram levados

para serem guardados nas residências dessas pessoas, a luta pelo reconhecimento do

lugar como portador de uma memória da cidade.

Nesse contexto, com inteira razão o Ministério Público trouxe à discussão o tema,

fundamentando-o em vasta legislação existente, seja em nível federal ou estadual, no que

concerne ao dever de preservação do patrimônio histórico e cultural, evidenciando,

inclusive, medidas como a de tombamento para que a Administração Pública possa

conservar tais sítios. Dessa forma, agir com descaso com imóveis que retratam a cultura

do nosso povo seria um verdadeiro crime contra a história.

No entanto, apesar disso, o processo de execução remonta mais de três anos e já foram

realizadas inúmeras audiência públicas com a população local e as autoridades, no

sentido de dar uma solução ao impasse. Por conta deste fato e observando o estado de

ruína do complexo da Fábrica Rheingantz, a proposta desta pesquisa foi apresentar uma

outra solução ao complexo, agora sob a ótica de paisagem cultural. Não só pelo valor

histórico e a identidade que ele forma, mas também, pelo contraste e singularidade que

representa em uma cidade com estilo predominantemente Açoriano-Português a estrutura

basicamente germânica do complexo da Rheingantz.

3. METODOLOGIA

Este estudo foi desenvolvido de acordo com o raciocínio dedutivo buscando analisar os

conceitos de paisagem cultural. Marconi e Lakatos (2006) enfatizam que o método

dedutivo caracteriza-se pela conexão descendente entre a teoria e a ocorrência dos

fenômenos, a teoria em evidência, neste caso, trata-se da paisagem cultural como

estratégia para preservação do complexo da fábrica Rheingantz.

Quanto aos seus objetivos o estudo classifica-se como pesquisa descritiva, que segundo

Koche (1997), estuda as relações entre duas ou mais variáveis de um dado fenômeno

sem manipulá-las, também constata e avalia essas relações à medida que essas

variáveis se manifestam espontaneamente em fatos, situações e nas condições que já

existem.

Quanto aos métodos de procedimento, esta pesquisa classifica-se também, como

pesquisa de campo, que de acordo com Oliveira (2001), consiste na observação dos fatos

tal como ocorrem espontaneamente, na coleta de dados e no registro de variáveis

presumivelmente para posteriores análises.

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A técnica de coleta de dados empregada na pesquisa foi questionário com questões

previamente formuladas e testadas. A amostra da pesquisa foi por conveniência. Foram

entrevistados 218 riograndinos, no período compreendido entre os dias 07 (sete) e 11

(onze) de junho de 2010, por bolsistas do Centro de Estudos Urbano-Portuário-Industrial

do Rio Grande – CEUPIRG, da Universidade Federal do Rio Grande - FURG.

Quanto à forma de abordagem do problema esta pesquisa classifica-se como quantitativa

e qualitativa.

A técnica utilizada para apreciação dos dados foi a análise qualitativa do conteúdo dos

questionários que, segundo Martins (2002), busca descrever ou interpretar o conteúdo

das mensagens.

4. A PAISAGEM CULTURAL E SUAS GENERALIDADES

4.1. Conceitos e normas para o reconhecimento

Nas palavras de Sauer (1998), a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem

natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem

cultural o resultado. A paisagem cultural é um artefato simultaneamente natural e cultural

constituída por elementos que a tornam portadora de diferentes valores que podem lhe

conferir interesse patrimonial. A noção de patrimônio está ligada a três categorias: tempo,

espaço e valor.

Para Delphim (2005), o valor da paisagem cultural decorre de sua função e de sua

capacidade de reter marcas e registros antrópicos. O homem é um dos elementos de

valor na paisagem, muitas vezes o principal. Sob a ótica cultural a leitura e a

compreensão da paisagem não se limitam ao espaço. É também temporal. A paisagem

testemunha e preserva dados de épocas passadas, sob os pontos de vista geológico,

paleontológico e arqueológico. Qualquer marca que o homem introduza na paisagem

significa uma modificação para sempre, um novo significado, um diferente valor

patrimonial. Técnicas materiais, crenças religiosas e ideológicas perpassam cada

paisagem. A paisagem é uma chave para a compreensão do passado, do presente e do

futuro.

“A paisagem é um conjunto de formas que, num dado momento, exprime as heranças que

representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza. O espaço

são as formas mais a vida que os anima” (SANTOS, 1996, p.103).

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Por definição, a paisagem cultural surge quando é conferido valor aos bens agenciados

pelo homem sobre o seu espaço e expressa a sua relação com o meio natural, mostrando

as transformações que ocorrem ao longo do tempo. Conforme referem Nunes, Santiago e

Rebolo Squera (2006), ao estabelecer seus próprios valores e significados aos locais que

ocupa, o ser humano inevitavelmente os transforma, imprime nos elementos nativos da

localidade a sua marca, seja modificando-os ou criando novos elementos e introduzindo-

os no ambiente original, o que, como consequência, cria novas relações e dinâmicas. A

interação do homem e do ambiente natural resulta na criação da paisagem, um conjunto

de características relacionadas entre si que conferem o diferencial de cada localidade.

A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, aprovada em

1972, estabeleceu a inscrição de bens como patrimônio mundial em duas categorias

diferentes: patrimônio natural ou patrimônio cultural. Havia, no texto da convenção, um

antagonismo entre as categorias cultural e natural, reflexo da origem bipartite da

preocupação com o patrimônio mundial, oriunda de dois movimentos separados: um que

se preocupava com os sítios culturais e outro que lutava pela conservação da natureza,

conforme destaca Ribeiro (2007).

Algum tempo depois, verificando-se a existência de bens que podiam ser incluido nas

duas categorias, foi criada a classificação de bem misto, para aqueles que tinham sua

inscrição justificada tanto por critérios naturais quanto culturais, mas sem uma análise da

integração entre ambos. Foi apenas em 1992, no mesmo ano em que se realizou a

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de

Janeiro, que a Unesco adotou a categoria “paisagem cultural”, valorizando todas as inter-

relações entre homem e meio ambiente, entre o natural e o cultural.

Nos termos de Santilli (2009), as paisagens culturais são classificadas em três categorias,

para fins de inscrição como patrimônio mundial: a) paisagens claramente definidas, que

são aquelas desenhadas e criadas intencionalmente, como jardins e parques construídos

por razões estéticas; b) paisagens evoluídas organicamente, também chamadas de

“essencialmente evolutivas”, que se subdividem em paisagens-relíquia ou fóssil, cujo

processo de construção terminou no passado, e paisagens contínuas ou vivas, em que os

processos evolutivos ainda estão em curso; c) paisagens culturais associativas, que têm o

seu valor determinado de acordo com associações feitas acerca delas, como as

associações espirituais de povos tradicionais com determinadas paisagens. Não há, até o

momento, nenhum sítio brasileiro reconhecido como paisagem cultural na lista de

patrimônio mundial da Unesco, assim como nenhum sítio inscrito no Livro do Tombo

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Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico que tenha sido tombado por seu valor enquanto

“paisagem cultural”, no sentido definido pela Unesco, que privilegia as interações entre

cultura e natureza e os componentes materiais e imateriais.

A Carta de Cracóvia (de 26 de outubro de 2000) está baseada nos mesmos objetivos da

Carta de Venezav, e apresenta a importância de uma conscientização relacionada a

identidade, a memória e ao passado. Está fundamentada na mudança de valores que há

em diferentes momentos históricos e contextos sociais relacionados ao patrimônio

arquitetônico, urbano ou paisagístico, e apresenta métodos ligados diretamente à

preservação do patrimônio, sua identificação, conservação, manutenção, reparação,

restauração, e gestão.

As estratégias de gestão para o patrimônio cultural abordadas na Carta de Cracóvia

(2000, p. 4) levam em consideração os contínuos processos de mudança, transformação,

desenvolvimento e a necessidade da adoção de regulamentos apropriados nas decisões

tomadas durante os processos e no controle dos resultados. Acorda também para a

necessidade de identificar os riscos, atuando preventivamente através de planos de

emergência. A conservação deste patrimônio cultural deve integrar-se com o

planejamento econômico e a gestão da comunidade, contribuindo para o desenvolvimento

sustentável, qualitativo e social. Por isso, é importante criar uma estrutura de

comunicação que requer a participação efetiva dos cidadãos.

Entre as paisagens culturais inscritas na lista do patrimônio mundial da Unesco estão

alguns sistemas agrícolas tradicionais e locais: os terraços de arroz das cordilheiras

filipinas (data da inscrição: 1995); as primeiras plantações de café do sudeste de Cuba,

situadas no pé da Sierra Maestra (data da inscrição: 2000); a paisagem agrícola do sul da

ilha de Öland, no mar Báltico, na Suécia (data da inscrição: 2000), que é dominada por

um platô de calcário, onde o homem se adapta, há 5.000 anos, a um ambiente hostil; a

paisagem cultural da região vinícola de Tokaj, na Hungria (data da inscrição: 2002); as

paisagens vinícolas da ilha vulcânica do Pico, que integra o arquipélago de Açores (data

da inscrição: 2004) e do Alto-douro, em Portugal (data da inscrição: 2001).

Cabe ainda salientar que a importância de proteger a paisagem, enquanto fator de

qualidade de vida das pessoas e da consolidação da identidade levou o Conselho

Europeu a discutir a elaboração da Convenção Européia de Paisagem (CEP). Assinada

em Florença no dia 20 de outubro de 2000 por 28 países, a CEP entrou em vigor em

março de 2004. A Convenção tem como objetivo promover a proteção, a gestão e o

ordenamento da paisagem, além de organizar a cooperação européia nesses aspectos.

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Nesse sentido, a CEP se distingue da convenção da Unesco não por ter abrangência

apenas regional (e não internacional) como também, por cobrir todas as paisagens,

inclusive aquelas que não têm valor excepcional. Ela estabelece normas de proteção e

gestão de todas as formas de paisagens e incentiva a participação dos cidadãos nas

decisões sobre as políticas relativas às paisagens nas quais vivem.

4.2. Conceito e normas de reconhecimento no Brasil

O arquiteto de paisagem e técnico do Iphan Carlos Fernando de Moura Delphim (2007)

define a paisagem cultural como um sistema complexo, dinâmico e instável, onde os

diferentes fatores evoluem, de forma conjunta e interativa, e defende a necessidade de

que a legislação a proteja contra eventuais danos e ações lesivas.

Além das paisagens culturais de “excepcional valor universal”, reconhecidas pela Unesco

através de sua convenção internacional, o Brasil criou um instrumento nacional de

reconhecimento das paisagens culturais brasileiras, denominado chancela e regulado

pela Portaria n.º 127, de 30/04/2007, do presidente do Iphan. Tal instrumento foi criado

com fundamento no artigo 216, parágrafo 1.º da Constituição Federal de 1988, que

determina que o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e

protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,

tombamento, desapropriação e “outras formas de acautelamento e preservação”.

De acordo com a referida Portaria, a paisagem cultural brasileira é uma porção peculiar

do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio

natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. A

paisagem cultural brasileira é declarada por chancela instituída pelo Iphan, mediante

procedimento específico, e qualquer pessoa natural ou jurídica é parte legítima para

requerer a instauração de processo administrativo visando a rubrica de uma paisagem

cultural brasileira.

O requerimento para a chancela da paisagem cultural brasileira, acompanhado da

documentação pertinente, poderá ser dirigido às Superintendências Regionais do Iphan,

em cuja circunscrição o bem se situar; ao Presidente do IPHAN ou ao Ministro de Estado

da Cultura. Sendo verificada a pertinência do requerimento para chancela da paisagem

cultural brasileira, será instaurado processo administrativo. O Departamento do

Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM/Iphan) é o órgão responsável pela

instauração, coordenação, instrução e análise do processo. A instauração do processo

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será comunicada à Presidência do Iphan e às Superintendências Regionais em cuja

circunscrição o bem se situar.

Para a instrução do processo administrativo poderão ser consultados os diversos setores

internos do Iphan que detenham atribuições na área, as entidades, órgãos e agentes

públicos e privados envolvidos, com vistas à celebração de um pacto para a gestão da

paisagem cultural brasileira a ser chancelada. Finalizada a instrução, o processo

administrativo será submetido para análise jurídica e expedição de edital de notificação da

chancela, com publicação no Diário Oficial da União e abertura do prazo de trinta dias

para manifestações ou eventuais contestações ao reconhecimento pelos interessados.

Após, as manifestações serão analisadas e as contestações julgadas pelo DEPAM/Iphan,

no prazo de trinta dias, mediante prévia oitiva da Procuradoria Federal, remetendo-se o

processo administrativo para deliberação ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

Sendo aprovada a chancela da paisagem cultural brasileira pelo Conselho Consultivo do

Patrimônio Cultural, a súmula da decisão será publicada no Diário Oficial da União, sendo

o processo administrativo remetido pelo Presidente do Iphan para homologação final do

Ministro da Cultura. A aprovação da chancela da paisagem cultural brasileira pelo

Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural será comunicada aos Estados-membros e

Municípios onde a porção territorial estiver localizada, dando-se ciência ao Ministério

Público Federal e Estadual, com ampla publicidade do ato por meio da divulgação nos

meios de comunicação pertinentes.

A chancela da paisagem cultural brasileira implica no estabelecimento de pacto que pode

envolver o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada, visando a gestão

compartilhada da porção do território nacional assim reconhecida. O pacto

convencionado para proteção da paisagem cultural brasileira chancelada poderá ser

integrado de Plano de Gestão a ser acordado entre as diversas entidades, órgãos e

agentes públicos e privados envolvidos, o qual será acompanhado pelo Iphan.

Tem por objetivo atender ao interesse público e contribuir para a preservação do

patrimônio cultural, complementando e integrando os instrumentos de promoção e

proteção existentes, nos termos preconizados na Constituição Federal. Além disso,

considera o caráter dinâmico da cultura e da ação humana sobre as porções do território

a que se aplica, convive com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico

e social sustentáveis e valoriza a motivação responsável pela preservação do patrimônio,

devendo ser revalidada num prazo máximo de dez anos.

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Em agosto de 2007, oficializou-se na cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul, a Carta de

Bagé ou Carta da Paisagem Cultural, que tem como objetivo a defesa das paisagens

culturais em geral. O Artigo 10 do documento define que: “A paisagem cultural inclui,

dentre outros, sítios de valor histórico, pré-histórico, étnico, geológico, paleontológico,

científico, artístico, literário, mítico, esotérico, legendário, industrial, simbólico, pareidólico,

turístico, econômico, religioso, de migração e de fronteira, bem como áreas contíguas,

envoltórias ou associadas a um meio urbano.

A Carta de Bagé sugere nas intervenções, a participação da comunidade residente.

Segundo sua regração, “a paisagem cultural é o meio natural ao qual o ser humano

imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão, resultando em uma soma de

todos os testemunhos resultantes da interação do homem com a natureza, e,

reciprocamente, da natureza com o homem”.

Entre os sítios que estão sendo considerados para chancela como paisagens culturais

brasileiras estão o Vale do Ribeira (SP), a Serra da Bodoquena (MS), o Vale do Itajaí

(SC), Canudos (BA) e os Céus de Brasília.

5. A PAISAGEM CULTURAL COMO ESTRATÉGIA DE PROTEÇÃO DO COMPLEXO DA FÁBRICA RHEINGANTZ

Com base no exposto, as paisagens culturais, para serem incluídas na lista do patrimônio,

devem ser selecionadas pelo seu valor universal, pela sua representatividade em termos

de uma região geocultural claramente definida, pela sua capacidade de ilustrar elementos

culturais distintos da região e pelo reconhecimento da sociedade. Portanto, conceito de

paisagem cultural abarca também as idéias de pertencimento, significado, valor e

singularidade do lugar.

A Fábrica Rheingantz atende a todos esses requisitos. Por ser a primeira indústria do país

na produção de lã e a pioneira no processo industrial do Rio Grande do Sul, tem um valor

e uma representatividade inquestionável. Na escala local, mesmo tantos anos após o fim

das atividades ainda é lembrada por grande parte da população riograndina como

representante de sua identidade.

Podemos constatar na análise do questionário aplicado a 218 riograndinos, 44% do sexo

feminino e 56% masculino, essa representatividade. A faixa etária dos participantes é

bastante diversificada, conforme se observa na Figura 11.

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Faixa Etária

22%

11%

19%17%

15%

16% 18 a 2526 a 2930 a 3940 a 4950 a 5960 ou mais

Figura 11 – Faixa etária.

Fonte: Elaborada pelos autores.

O grau de escolaridade de 73% das pessoas que participaram da entrevista é de, no

máximo, o ensino médio completo, Figura 12.

ESCOLARIDADE

16%

19%

38%

4%

8%15%

fundamentalfunfamental incompletomédiomédio incompletosuperiorsuperior incompleto

Figura 12 – Escolaridade.

Fonte: Elaborada pelos autores.

E, 74% deles afirmam que o complexo da Rheingantz representa um patrimônio cultural

histórico do Rio Grande (Figura 13).

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NA SUA OPINIÃO A FÁBRICA RHEINGANTZ REPRESENTA UM PATRMÔNIO CULTURAL

HISTÓRICO RG?

74%

14%

12%sim

não

já representou masrepresenta mais

Figura 13 – Opinião quanto a representatividade Patrimonial do Complexo Rheingantz.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Para Luca (2007), a maior dificuldade em relação à paisagem de valor patrimonial é a sua

preservação. Cada paisagem é específica em sua relação aos lugares, às culturas e às

instituições. É preciso enfatizar a participação da própria população, através do

reconhecimento dos valores e significados. A relação entre a comunidade e o espaço

onde vivem, suas formas tradicionais de ocupação e uso do solo são fundamentais para a

gestão da paisagem. O envolvimento da comunidade promove a valorização de sua

identidade e seus valores é peça chave para a identificação de seu papel na preservação

da paisagem local.

Quando foi perguntado se a fábrica Rheingantz deveria ser tombada como patrimônio

cultural riograndino, 76% dos entrevistados responderam que sim (Figura 14)

demonstrando uma forte identidade com o objeto pesquisado.

VOCÊ ACREDITA QUE A" FÁBRICA DEVE SER "TOMBADA COMO PATRIMÔNIO " RIOGRANDINO?

76%

24%

simnão

Figura 14 – Opinião quanto ao tombamento da Fábrica.

Fonte: Elaborada pelos autores.

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No que se refere a capacidade de ilustrar elementos culturais distintos da região, o

complexo representa uma pequena porção da cultura e arquitetura alemã dentro de uma

área com características essencialmente Portuguesa.

Seguindo o conceito de Vieira (2008) “a paisagem ao mesmo tempo em que é produto da

história, reproduz a história, mostra a concepção que o homem teve de diversas

atividades e necessidades, exprime, portanto, as características próprias dos homens que

a criaram”. O complexo da Rheingantz é assim, produto da história reproduzindo história.

Um suporte de memória que remete aos tempos de pujança produtiva e importância no

desenvolvimento industrial brasileiro.

A estrutura basicamente germânica, edificada em 143 mil metros quadrados de área,

pode ser associada, também, ao conceito que HOLZER (1999, p. 151) definiria como uma

“porção do espaço relativamente ampla que se destaca visualmente por possuir

características físicas e culturais suficientemente homogêneos para assumirem uma

individualidade.

Portanto, ressaltada a importância do complexo da Fábrica Rheingantz, parece sensato

propor sua preservação por meio da utilização do conceito de paisagem cultural. É, no

mínimo, uma alternativa que merece ser considerada no contexto atual, porque não

exister vedação no âmbito legislativo, bem como, porquanto significou no passado na

expansão da região sul do Brasil e o que representa essa memória a um considerável

grupo de indivíduos.

6. CONCLUSÃO

Ao analisar a história do complexo da fábrica Rheingantz é possível concluir que é

plausível considerar o conceito de paisagem cultural para embasar o processo de

transformação no local. O conceito é utilizado porque há uma condição onde as

celebrações, ofícios e saberes se constróem estabelecendo uma experiência singular.

A Fábrica Rheingantz atende a todos os requisitos exigidos para ser incluido na lista de

patrimônio. Tem um valor e uma representatividade indiscutível por ser a primeira

indústria do país na produção de lã e a pioneira no processo industrial do Rio Grande do

Sul. Na escala local é reconhecida como patrimônio cultural histórico por 74% da

população. Do total dos questionados, 76% acreditam que o complexo deve ser tombado,

por representar a identidade do povo local.

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Paisagem e identidade são elementos fortemente vinculados, entretanto, quando nada é

feito para preservá-los, o tempo atua de forma inapelável acelerando sua transformação.

A necessidade de intervenção no complexo fica explicitado quando observa-se a sua

diminuição e desintegração ao longo dos anos.

A Rheingantz talvez seja o único sítio industrial urbano histórico do Estado do Rio Grande

do Sul que ainda mantém parte de sua estrutura ainda edificada apesar da grande

degradação que vem sofrendo ao longo desses 137 anos. Portanto, urge que se

determine de forma ou de outra o tombamento e todos os procedimentos oriundos de sua

chancela.

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i Holzer (1999) afirma que o conceito de Landscape tem o sentido de formatar a terra, implicando numa associação das formas físicas e culturais. ii Torres, Luiz Henrique. Câmara Municipal do Rio Grande: Berço do Parlamento Gaúcho

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iii Carlos Guilherme Rheingantz que foi agraciado com o Título de Comendador no ano de 1893 pelo Imperador D. Pedro II era filho do Alemão Jacob Rheingantz, fundador da Colônia Alemã de São Lourenço, atual cidade de São Lourenço. iv Prédio construído em estilo enxaimel que se encontra praticamente em ruína. v CARTA INTERNACIONAL SOBRE A CONSERVAÇÃO E O RESTAURO DE MONUMENTOS E SÍTIOS, 1964. Art. 1.º - O conceito de monumento histórico engloba, não só as criações arquitetônicas isoladamente, mas também os sítios, urbanos ou rurais, nos quais sejam patentes os testemunhos de uma civilização particular, de uma fase significativa da evolução ou do progresso, ou algum acontecimento histórico. Este conceito é aplicável, quer às grandes criações, quer às realizações mais modestas que tenham adquirido significado cultural com o passar do tempo.