o charme do crime midiatizado: desconstruindo uma “guerra a beira

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Luiz Geremias O charme do crime midiatizado: desconstruindo uma “guerra a Beira-Mar” Dissertação de Mestrado Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 2005

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Luiz Geremias

O charme do crimemidiatizado: desconstruindo

uma “guerra a Beira-Mar”

Dissertação de Mestrado

Escola de Comunicação da Universidade Federal doRio de Janeiro (UFRJ)

2005

Índice

1 Praia, sol, mar... e barbárie: uma brevíssima histó-ria da cidade do Rio de Janeiro e um histórico do con-fronto entre seus grupos sociais 191.1 Ama o bárbaro como a ti mesmo. . . . . . . . . 34

2 Vivendo e aprendendo a jogar: dois pilares subjetivosdo ocidente e a dicotomia sociedade x comunidade 552.1 Aquele mundo distante que governa este, tão pró-

ximo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 562.1.1 A razão excludente. . . . . . . . . . . . 562.1.2 A fé absolutista. . . . . . . . . . . . . . 67

2.2 Jogos de ganhar e perder e jogos de jogar. . . . 782.2.1 A ilusória captura da ética pela estética. 882.2.2 O comunitário é o que nos faz humanos:

a exaltação da brasilidade por Nelson Ro-drigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

2.2.3 A demonização do funk carioca. . . . . 109

3 Convite a uma sala de espelhos: a subjetividade espe-cular do Ocidente 1173.1 A essência e a existência como parâmetros. . . . 119

3.1.1 A essência objetiva da liberalidade. . . . 1383.1.2 Que sociedade? Refém de quem?. . . . 145

3.2 Bem vindo à sala de espelhos. . . . . . . . . . . 1523.2.1 Equilíbrio numa linha imaginária. . . . 155

3

3.2.2 A essência é a duplicação do nada. . . . 1623.2.3 O nada é a duplicação da essência. . . . 173

4 Saqueando túmulos: crime organizado, crime “orga-nizado” e a “guerra a Beira-Mar” 1814.1 Crime organizado e crime

“organizado” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1864.1.1 Crime organizado. . . . . . . . . . . . . 1944.1.2 Crime “organizado” . . . . . . . . . . . 207

4.2 O silencioso ódio das ovelhas. . . . . . . . . . . 227

5 Considerações finais 247

6 Anexos 257

7 Bibliografia consultada 267

A justiça é igual para todos.Aí já começa a injustiça.

Millôr Fernandes(Livro vermelho dos

pensamentos, p. 159)

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Resumo

Considerando que há na cidade do Rio de Janeiro um confrontohistórico entre grupos e classes sociais, nominado no texto comouma "guerra à beira-mar", é proposta uma reflexão sobre o sen-tido desse conflito e uma investigação de como a sua materiali-zação numa "guerra a Beira-Mar-- a execração midiática do tra-ficante Fernandinho Beira-Mar – pode ser entendida nesse qua-dro. Para isso, opera-se uma análise da subjetividade ocidental,compreendendo-se que as classes médias cariocas podem ser in-cluídas nesse padrão identitário gerenciado prioritariamente pelaimprensa. São propostas algumas noções de modalidades subje-tivas dessa forma de civilização e sugerido um modelo que re-presenta um suposto espaço de formação de discursos e identi-dades: a "sala de espelhos". Conclui-se que, apesar da "guerraa Beira-Mar"poder ser inserida no contexto da "guerra à beira-mar", aquela apresenta uma nova configuração, remetida a umaestratégia de "pára-vento"em relação a outro confronto que vemse formalizando na contemporaneidade: o das chamadas eliteseconômicas, cujas práticas lembram em muito aquilo que é con-denado em "bandidos"como o traficante citado e que se caracte-rizam por uma organização bastante consistente, contra as clas-ses médias, que assumem um novo papel na configuração sócio-econômica-cultural contemporânea. Nesse contexto, o tratamentomidiático de Fernandinho Beira-Mar está referido como uma en-cenação trágica do posicionamento das classes médias na contem-poraneidade. Nisso está o seu charme, que tanto seduz as própriasclasses médias.

Palavras-chave:conflito social, violência urbana, midiatiza-ção, subjetividade, classes médias.

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Abstract

Considering that there is in the city of Rio de Janeiro a histori-cal confrontation between groups and social classes, named in thetext as a "war in the seaside", a reflection is proposed about thesense of that conflict and an investigation of as his materializa-tion in a "war against Seaside-- the midiatic curse of trafficker’sFernandinho Beira-Mar (Seaside Freddy) – can be understood inthis conjuncture. For that, an analysis of the western subjecti-vity is operated, being understood that the carioca middle classescan be included in that identitarian pattern managed priorly by thepress. Some notions of subjective modalities in that civilizationare proposed and suggested a model that represents an assump-tion space of formation of speeches and identities: the "room ofmirrors". It is ended that, in spite of the "war against Seaside"tobe inserted in the context of the "war in the seaside", that presentsa new configuration, sent it a "stop-wind"strategy in relation toother confrontation that comes if formalizing in our days: the oneof the calls economical elites – whose practices remind in a lotthat that is condemned in "gangsters"as the mentioned traffickerand that are characterized by a quite solid organization – againstthe middle classes, that assume a new role in the contemporarysocial-economical-cultural configuration. In this context, the mi-diatic treatment of Fernandinho Beira-Mar is related as one tragicrepresentation of the positioning of the middle classes in thesedays. This is the charm that seduces the middle classes themsel-ves.

Key words: social conflict, urban violence, midiatization,subjectivity, middle classes.

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Introdução

Nos últimos anos, a “violência urbana” se tornou o assunto midiá-tico por excelência no Rio de Janeiro. Poderia se esperar que issotivesse ocorrido por um aumento brutal dos índices de criminali-dade na cidade, porém, aparentemente, não foi isso que ocorreu.Os índices são historicamente altos, mas não sofreram um signi-ficativo incremento. Logo, há algo esquisito nisso e o interessepor essa esquisitice foi o primeiro motivo para a realização destadissertação.

Há algo mais estranho ainda. As maiores vítimas da violên-cia, os pobres, principalmente os negros, são geralmente acusadasnos discursos dos jornais como causadoras da violência. Essasvítimas-algozes foram historicamente apartados de qualquer par-ticipação no âmbito da cidadania e, como se isso não bastasse,estigmatizados e perseguidos pelas autoridades policiais. Maisainda, são até hoje classificadas como “inferiores”, “sem cultura”,“pobres”, não apenas monetária como subjetivamente. O Estadosempre lhes deu as costas e quando se voltou para elas, foi paraacusá-las pela própria condição de desvalidos e, por conta disso,reprimi-las e castigá-las. Cremos que isso não poderia ser dife-rente, se levarmos em conta que, como pontuam Mário Duayer eJoão Fernando Medeiros (2003, p. 242), no mundo burguês a mi-séria sempre foi considerada uma “falha moral dos miseráveis”,jamais sendo “considerada conseqüência necessária das relaçõessociais de produção, em particular da indústria moderna.” Cre-mos também que é fundamental partir desse quadro para refletirsobre a subjetividade que o funda e justifica. Como veremos, hána sociedade ocidental muito mais coisas estranhas do que supõea sua secular e vã filosofia.

Entre esses “pobres” e “negros” algozes surgiu, na década de70, uma entidade não registrada nos cartórios públicos, mas quecada vez mais demonstra ter entre os seus fins a inserção soci-oeconômica de seus membros. Trata-se do Comando Vermelho(CV), criado nos presídios como uma proposta de proteção contra

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a opressão de grupos de presos que, com a anuência das autorida-des, estupravam, roubavam e matavam desafetos ou todo aqueleque resistisse aos seus ataques. Essa entidade cresceu com a ajudada mídia, se definiu posteriormente como uma irmandade de mar-ginalizados e, paulatinamente, vai assumindo um perfil comer-cial, representando uma inegável inserção dos seus participantesno mundo dos “jogos finitos” da sociedade. Em detrimento disso,deixa de cumprir a função comunitária para a qual foi criada.

Gostaríamos de esclarecer que nosso posicionamento peranteesta ou qualquer outra instituição é, em primeiro lugar, crítico,pois compreendemos as “organizações” como cristalizações fic-tícias de uma proposição ética que, a partir de então, passa aser, no interior dessas entidades, um discurso fantasmático quese naturaliza e assombra os participantes do enredo institucional,passando a funcionar como uma contra-mensagem que direcionao conjunto para um sentido oposto à proposição originária, con-forme sugere Jose Bleger (1978). A história do CV não tem des-mentido esse fado, como veremos. Por isso mesmo, merece serestudada não como um “poder paralelo”, mas como uma organi-zação “incluída”, uma entidade que cada vez mais funciona comuma mentalidade empresarial. Os pobres participam dessa orga-nização, pois alguns deixaram de ser totalmente “excluídos” domundo graças a ela. Muitos dos que participam, podem ser con-siderados inseridos economicamente naquilo que chamamos declasse média, ou, preferencialmente, de “classes médias”, e de al-guns se pode dizer que conseguem ascender acima dos padrõesmais medianos das próprias classes médias. Economicamente,não exatamente a organização CV, mas a empresa CV, é total-mente viável e “incluída”.

A entrada em cena daquele que é, hoje, o produto preferen-cial dessa empresa causou um rebuliço na sociedade carioca. Acocaína já era usada há muito, mas as classes médias somente adescobriram como um atraente prazer quase solitário na passa-gem das décadas 70 e 80. A maconha, um produto ilegal comcustos, preços e misturas menores do que a cocaína, também era

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conhecida há muito pelos pobres, mas apenas na década de 60expandiu significativamente seus atrativos para as classes médias.As reuniões e festas neste período tinham costumeiramente, senãosempre, aquele grupo que de repente sumia e depois aparecia sor-ridente demais. Mais tarde, o grupo que “sumia” se reduziu a, nomáximo, uma dupla, ou, mais freqüentemente, a um só indivíduoque aparecia depois não sorrindo, mas agitado, dentes rangendo.O ritmo feérico dos “negócios” casava bem com essa agitação ea cocaína, ou o “pó”, o “brilho” ou a “brizola” passaram a sercompanheiros inseparáveis de uma parte dos “incluídos”.

Os pobres vendem a droga, a classe média a compra. Há umconluio, um relacionamento comercial entre classes, como ditamas regras da Sociedade Econômica. Apenas com esse espíritopode haver algum tipo de relação humana na lógica do controleeconômico, o “capitalismo de superprodução” citado por GillesDeleuze (2004), como uma referência fundamental da “Sociedadede Controle”. Este conceito é utilizado neste trabalho como umaconstrução social na qual o espírito comercial se naturaliza e re-sume hegemonicamente as relações entre identidades, não exata-mente entre pessoas, pois que este conceito leva em consideraçãoo “caráter particular ou original que distingue alguém” (HOU-AISS, 2001). Isso não pode ser considerado na Sociedade de Con-trole. Seria, por assim dizer, um espécimen em extinção.

Falar em identidades supõe remetermo-nos ao conceito de sub-jetividade como um parâmetro discursivo que determina a defi-nição daquilo que o indivíduo apreende na relação entre si e omundo, entre o que considera parte de seu “eu” e o que entendefora dele. Esse conceito desconsidera a noção de sujeito, con-forme compreendida tradicionalmente pela Sociedade Ocidentalna modernidade, tomando-a como superada na medida em quepropõe uma separação entre as instâncias citadas. Procuramosnos ater a essa definição sempre que nos referimos a esse termonesta dissertação. O parâmetro discursivo subjetivo é aquilo quemarca de forma significativa a formação daquilo que chamamosde “indivíduo” na sociedade capitalista contemporânea. Um in-

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divíduo de massa, não o sujeito cartesiano. Trata-se do resultadode uma desintegração do paradigma clássico do modelo societá-rio europeu, que compreendia-se formado por sujeitos autônomoscuja autonomia era dada pela referência essencial à Razão.

Compreendemos, no entanto, que a referência metafísica ao“mundo ideativo” próprio do racionalismo se encontra no jogo desimulações da sociedade contemporânea. É, para nós, uma re-ferência “essencial” que sustenta como um cunhal a construçãoidentitária, logo subjetiva, que chamaremos neste texto de “salade espelhos”. Propomos que uma sociedade pautada na liberdadecomo a – por isso mesmo – dita liberal, engendra uma vivência“existencial” na mesma medida em que aprisiona esta numa ló-gica essencial e esse jogo reflexivo é bastante interessante paraser estudado. Aparentemente, as essências estariam vencidas, en-tregues em alma à verve objetiva e operante da Sociedade Econô-mica, mas poderemos entrever como ainda perpassam o construtoque ampara e sustenta esta.

Se já não nutríamos um grande respeito pela grande imprensacarioca, depois da pesquisa que empreendemos para a realizaçãodesta dissertação não podemos computar melhores impressões doque as que tínhamos. Muito pelo contrário. Pesquisamos matériasnos jornais O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, O Povo e Extra du-rante dois anos, englobando o período de junho de 2002 a outubrode 2004. O que vimos não contribui em nada para a compreensãodos fenômenos sociais de que tratamos. O que a imprensa cariocafez durante todo o tempo foi julgar, condenar e “encomendar” aexecução de inúmeros réus, os “bandidos” pobres. Quanto aosbandidos ricos, a conivência foi praticamente total. Esse fatorse constituiu noutro de nossos interesses no sentido de desvendaralguns aspectos da realidade “violenta” do Rio de Janeiro con-temporâneo. No entanto, isso certamente não é “privilégio” daimprensa carioca e, para não parecermos preconceituosos, cita-mos também uma matéria de um jornal paulistano, a Folha deSão Paulo, que trata dos “ataques especulativos” dos anos 90.

Esta dissertação, assim como nossa vida intelectual, não se

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atém a um “tonel” teórico. Há inegáveis influências privilegia-das na construção do texto, entre as quais podemos citar FriedrichNietzsche, Antonio Gramsci, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze,Felix Guattari e Slavoj Zizek, mas nossos interesses em pesquisasdiversas trouxeram inequivocamente a presença de muitos outrosautores no texto. O pensamento psicanalítico, que estudamos du-rante dez anos, está presente, assim como, cremos que proficu-amente, até mesmo a cabala judaica, à qual também dedicamosalgum tempo de pesquisa.

No título deste trabalho há uma referência ao termo “descons-trução”, utilizado por Jacques Derrida (1994) para transformar alógica de um texto introduzindo uma outra lógica, tomando umaconcepção estabelecida para lhe descentrar o sentido, a sua in-ferência básica, proporcionando um vislumbre de uma intençãodessemelhante a que projetou inicialmente. Não se trata, aqui, depromover uma análise desconstrutiva inserida diretamente na pro-posta derrideana. Tomamos por empréstimo o termo para denotarnossa intenção de desfazer uma lógica finita e pronta, a que leva agrande imprensa carioca a condenar previamente alguns “bandi-dos” e a absolver previamente outros.

A utilização de algumas das aspas deste texto obedece a al-guns sentidos. Por exemplo, resolvemos pôr entre aspas termoscomo “bandido”, por entender que têm sido utilizado apenas como sentido de nomear alguns dos que podem ser assim chamados.Em outros momentos não há aspas, quando cremos estar tratandodos que mais apropriadamente deveriam, pela mesma lógica, sertratados como tal. Quando tratamos da organização criminosa,usamos o mesmo senso, por entender que a organização pode es-tar presente entre as quadrilhas e no próprio CV, mas está muitomais presente, de forma mais ordenada e consistente, em orga-nizações criminosas que agem “na legalidade”. Para demarcar aessencialidade dos pólos fulcrais para a metafísica ocidental, pro-curamos usar as aspas quando tratamos dos temas relacionados àontologia, ao “ser” ou “não ser”. Como um pode ser o outro na

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sala de espelhos ocidental, as aspas servem como um alerta deatenção ao sentido proposto.

Como tratamos de um confronto envolvendo entidades e indi-víduos cariocas, uma cidade que se imortalizou por conta de suabeleza natural e por conta de um estilo de vida muito influenciadopelo contato com a amplidão do oceano, nas praias, resolvemostratar desse fenômeno como “uma guerra à beira-mar”. No en-tanto, como o mundo midiático cristalizou durante algum tempo oseu foco no “bandido” Fernandinho Beira-Mar, cremos que pode-mos falar mais apropriadamente nessa conjuntura de “uma guerraa Beira-Mar”. Esses termos aparecem no texto com esses senti-dos.

No primeiro capítulo, apresentamos um breve histórico doconfronto que marcou o povoamento do Rio de Janeiro. Cons-tatamos que, historicamente, esse confronto foi promovido pelaselites políticas, econômicas e sociais, e pudemos perceber que aanimosidade que boa parte da população pobre dedica às classesmédias vem da aceitação das regras do jogo proposto por estas.Se antigamente eram os bairros das classes médias e das elitesque eram proibidos para os pobres, nos dias de hoje são os bairrosdestes que são interditos à visita dos mais bem aquinhoados. É omesmo jogo, com as mesmas regras.

O segundo capítulo é dedicado a propor uma concepção dospilares subjetivos do ocidente e a desvendar de que jogo estamosfalando. Assim, enfocamos o estatuto da Razão e da Fé como re-ferentes fundamentais para a construção do discurso que define asubjetividade ocidental, e traçamos uma “teoria dos jogos”. To-mamos a proposta de Herman Parret de dividir os jogos entre “fi-nitos” e “infinitos”. Os primeiros são compreendidos como “jo-gos de sociedade”, e são uma necessidade; os segundos são “jogosde cultura” e são movidos pelo prazer de jogar. Essa conceitua-ção é instrumental e possibilita que tenhamos um vislumbre doestreitamento essencial que o discurso da economia, hegemônicona contemporaneidade, provoca com sua proposta de liberaçãoexistencial. Com o auxílio desses conceitos, pensaremos breve-

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mente sobre a situação de fatores sociais fundamentais como acomunidade e a vida cultural, tomando dois textos de Nelson Ro-drigues para ilustrar uma noção de “brasilidade”, ou seja, de umaidentidade cultural focada no “local”. Utilizaremos o mesmo re-ferencial para pensar a demonização do funk no Rio de Janeiro,no início da década de 90, com a inestimável participação da im-prensa.

No terceiro capítulo, traçamos um perfil da lógica Ocidentalno que diz respeito às regras de sociabilidade e de subjetivizaçãoda identidade. A imprensa é utilizada nesse capítulo como umailustração do mundo essencial que continua a determinar as regrasdo jogo “existencial” da Economia. A oposição entre “essência”e “existência” é, neste trabalho, bem mais instrumental do quefilosófica. Falar em “essencialização” é pôr a essência antes daexistência, ou seja, propor que o sujeito é formado por parâmetrosreferenciais rígidos ligados a uma concepção metafísica como ado “mundo das idéias” platônico, ou a toda a tradição filosóficado velho continente. Falar em “existencialização” é pôr a exis-tência em primeiro plano, priorizando a liberdade do sujeito comrelação à manipulação das essências, como propuseram os filóso-fos ditos existencialistas, no século XX, como Jean-Paul Sartre eMartin Heidegger. Essa oposição será usada nesse capítulo comouma forma de pensar sobre a proposta subjetiva contida no projetocivilizatório de que tratamos.

Talvez o mais importante nesse capítulo, porém, seja a per-cepção de que a subjetividade ocidental é estruturada como umasala de espelhos na qual o suposto sujeito se encontra a mirare perseguir reflexos, tomando-os imaginariamente como entida-des concretas. O mais grave desse construto não é exatamenteessa confusão, mas a crença que essa confusão pode ser redi-mida pelo acesso a um Real puro e verdadeiro que é ofuscadopor um mundo de aparências, como no filme “Matrix”. Por isso,os debates acerca de fenômenos como o da “violência urbana”,mesmo quando movidos pelas melhores intenções, acabam sem-pre girando no mesmo lugar, oscilando entre os reflexos dessa sala

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de espelhos. Essa percepção, correspondente a uma exacerbaçãosubjetiva que procura dar a ilusão de movimento a um mundo es-tático, nos leva a postular uma morte subjetiva do homem contem-porâneo, ou deveríamos dizer mais precisamente, das “pessoas”das classes médias, para quem se dirigem predominantemente asmensagens midiáticas.

Finalmente, no quarto capítulo poderemos tratar mais especi-ficamente do tema central desta dissertação, tomando a estruturaapresentada nos capítulos anteriores para refletir sobre o sentidoda “guerra a Beira-Mar”. Nossa compreensão caminhará no sen-tido de definir que essa guerra é mais um efeito especular quedenota a necessidade de dar uma forma e um senso ao descon-forto que as classes médias experimentam no modelo neoliberal,no qual assumem o lugar prioritário da sustentação das elites atra-vés da institucionalização dos saques que levam a uma concentra-ção econômica jamais vista. Para nossos objetivos, será útil tratardiretamente do tema da organização do crime que ocorre “na lega-lidade”, diferenciando-o da “organização” do crime ilegal, o dospobres. Enquanto aquele causa os maiores estragos nas classesmédias, é a este que elas temem. E a imprensa é, em boa parte,responsável por esse engodo.

Propomos, ainda no quarto capítulo, a compreensão de queFernandinho Beira-Mar não é exatamente o que parece “ser”, istoé, um horror para as elites econômicas e para as classes médias.Temos uma compreensão bastante diversa. Beira-Mar não podeser considerado negativo para um sistema que serve duas vezes:como agente e como “reagente”. Do mesmo modo, não há comoaceitar que o caminho oferecido pelo Beira-Mar midiático sejatão ruim assim para os pobres, para os ditos “excluídos”, os eco-nomicamente “inviáveis”. Se não há opções de caminhos para ainserção, a “banditização” é uma reação que consideramos sau-dável. Pelo menos mostra certa vida1, algo que certamente causa

1 Segundo Slavoj Zizek (2004, p. 7): “os favelados são literalmente umacoleção daqueles que formam a ‘parte de parte alguma’, o elemento ‘exce-dente’ da sociedade, a parte excluída dos benefícios da cidadania, os desen-

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inveja aos mortos-vivos quezappeiamsentidos em tumulares pol-tronas e leitos; certo ódio, poderíamos mesmo dizer. O problemada “vida bandida” é que ela tem se mostrado “incluída” demais.O CV mostra, hoje, que pode estar dando sua guinada definitivapara a efetiva operacionalização de seu aparato “organizado” emuma autêntica empresa. Aos moldes burgueses, diríamos, comcertas adaptações estratégicas, mas com os mesmos princípios,principalmente o de buscar acima de tudo o lucro. A “guerra aBeira-Mar” seria, nesses termos, uma disputa interna, uma au-têntica concorrência no interior do sistema, uma contenda intra-civilizatória. Não haveria diversidade ou alteridade nessa guerra.

Se começamos esta dissertação, no primeiro capítulo, postu-lando que a “guerra à beira-mar” não é um problema em si a serdesvendado, concluímos sugerindo que a “guerra a Beira-Mar”,esta sim, é o verdadeiro enigma para o trabalho acadêmico queora apresentamos. Ela parece nos falar de uma novidade na con-figuração social ocidental, no paroxismo do modelo que se definecomo definitivo e que, efetivamente, tem sugado tudo para o seucentro.

Durante todo o trabalho referenciamos nosso foco no que cha-mamos as “classes médias”. Usamos o termo no plural para desig-nar a abrangência dessa enorme faixa de “incluídos”, de “viáveis”economicamente. Constatamos, observando as matérias econô-micas dos últimos dez anos, recortando e colando noções e per-cepções sobre a contemporaneidade, que o eixo da luta de classesparece efetivamente ter mudado. Simplesmente não existe, se atomarmos do vértice das classes médias. Nada indica que hajauma consciência de classe que abarque o enorme contingente des-sas pessoas variadas que vivem solitariamente, mesmo comparti-lhando da mesma subjetividade. A identidade está no andar su-perior e as ameaças no porão. No entanto, sob o ponto de vistaeconômicostrictu sensu, o inverso é bem mais verdadeiro. Háuma grande aproximação dos “bandidos” e um afastamento radi-

raizados e despossuídos, aqueles que, de fato, ‘não têm nada a perder excetoas correntes que os prendem’.”

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cal da periferia das elites burguesas. Nesse vértice, FernandinhoBeira-Mar pode ser entendido como uma imagem especular dasclasses médias e seus sonhos de ascensão, um autêntico “emer-gente”. Assim como ele, as classes médias “perderam”. Afastam-se de seus sonhos e assumem o foco da exploração capitalista.Não foi à toa que a mídia criou a “guerra a Beira-Mar”.

Temos a certeza de que o estudo dessa temática é fundamen-tal para a compreensão não apenas da lógica midiática, que temse imposto como fulcral para a constituição da subjetividade e dasidentidades na sociedade carioca. Pensar sobre o tema da “guerraà beira-mar” e da “guerra a Beira-Mar” pode nos levar a enten-der mais profundamente como se estrutura a própria subjetividadeque determina a cada indivíduo, no Rio de Janeiro ou em qualqueroutra cidade marcada pela “civilização”, quem é, o que pode ser,o que não é e o que não pode ser. Em verdade, pode nos levara compreender a transformação da dinâmica social que pauta naEconomia o seu percurso, mas não necessariamente faz dela o fimúltimo de suas ações e de seu sentido.

Parece evidente que não pode ser objetivo de uma disserta-ção apresentar soluções ou indicar caminhos para qualquer lugarteórico. Não nos propomos a solucionar nada, muito menos aidealizar um percurso a ser tomado por todo aquele que pretenda“melhorar a realidade”. O que temos em mente é apenas contri-buir para a discussão do que tem sido considerado “civilizado” e“bom” numa contraposição simulada do que tem sido entendidocomo “bárbaro” e “mau”, bem como as conseqüências que essadiferenciação implica. Com relação a isso, porém, não cremosem neutralidade ou nos fetiches da “objetividade” e da “isenção”jornalísticas.

Escrevemos para nos posicionar frente ao mundo e é com oesclarecimento deste objetivo que iniciamos esta dissertação.

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Capítulo 1

Praia, sol, mar... e barbárie:uma brevíssima história dacidade do Rio de Janeiro eum histórico do confrontoentre seus grupos sociais

Estamos no Rio de Janeiro, uma metrópole com cerca de seis mi-lhões de habitantes, banhada pelo oceano Atlântico em quilôme-tros de praias. Estas, são o “cartão postal” da cidade e um dosgrandes atrativos naturais que encantam os visitantes. Para seushabitantes, se constituíram tradicionalmente num espaço de en-contro, em que simpatias são desvendadas, diferenças sociais sãominimizadas e o corpo, esse velho estranho da sociedade ociden-tal, salta a primeiro plano, referenciando a identidade de formapeculiar em relação à velha tradição européia de cultuar a almaem detrimento do resto.

Essas praias têm história. Foram elas que trouxeram, algu-mas dezenas de anos depois do Descobrimento, os franceses – os“Mair”, segundo os Tamoios –, interessados no pau-brasil paraas suas manufaturas têxteis, e determinados a fundar aqui uma

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“França Antártica”, um projeto de Nicolau Durand de Villegaig-non1 . E foi por conta da necessidade de controlar essas praiasque os portugueses – os “pêros” – se instalaram no local que hojeabriga o centro urbano do Rio, então área ocupada pelos francesese pelos Tamoios, seus aliados. Nessas praias o carioca aprendeu ase reconhecer como carioca na medida em que, principalmente nasegunda metade do século XX, passaram a ser usadas como umponto de encontro coletivo no qual a exposição do corpo foi sendopriorizada em detrimento das vestimentas, gerando uma subjetivi-dade singular de intensa sensualidade. Trata-se, para quem o usu-frui, de um espaço principalmente de ócio, de puro lazer, desde aantiguidade até hoje. Como afirma Alain Corbin (1989, p. 266):

“A vida das Luzes” (...) “é filha dootium”. Oshomens cultos não ignoram que as praias do mar, pormais que se mantenham desertas e repulsivas, foramoutrora lugares de meditação, de repouso, de praze-res coletivos e de volúpia desenfreada. A imagem deCícero retirado em Tusculum ou em Cumanum, a dePlínio, o Jovem, em Laurentes, perto de Óstia, avillasorrentina de Pollius Felix descrita por Estácio e osconselhos de Sêneca sugerem a figura de um tempode lazer cultivado.

1 Para Claude Lévi-Strauss (1955), ele pretendia fundar um refúgio paraos protestantes, perseguidos pelos católicos, e obteve permissão e condiçõespara a viagem pela intervenção de Gaspard de Châtillon, o almirante e políticoColigny, um dos mais dedicados defensores da reforma perante a corte e umadas primeiras vítimas da “Noite de São Bartolomeu” (1572). Esse povoamentodaria origem a um império que calvinistas e livres pensadores católicos ergue-riam, juntos. O problema de seu projeto estaria na sua compreensão estreitade militar. Embarcou 600 homens, mas esqueceu de levar mantimentos e mu-lheres, combateu a justificada insatisfação de seus comandados com tirania econseguiu até mesmo a animosidade de seus aliados tamoios, ao gerar um am-biente tão insalubre no forte Coligny – na hoje batizada “Ilha de Villegagnon”– que contaminou os nativos com pestes diversas. Não era, definitivamente,alguém adequado para uma missão colonizadora.

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É preciso salientar, porém, que o ócio, na sua acepção clássicautilizada por Corbin não significa exatamente mandriice, indolên-cia ou preguiça. O ócio das elites, desde a antiguidade romana,pode ser entendido mais apropriadamente comootium cum dig-nitate. Implica, para o homem antigo, a construção de si em um“lazer digno”:

Na obra de Cícero, ootium indica um lazer es-colhido, reservado aos optimates que se afastam poralgum tempo da demanda das magistraturas, um frag-mento de vida privada que o indivíduo organiza à suamaneira, evitando o duplo perigo da preguiça e do té-dio; espaço de distensão que possibilita o exercícioda inteligência e, se for o caso, prepara a ação futura;(...) Mais tardiamente, os conselhos de Sêneca inci-tam a identificar otium e vida contemplativa, à ma-neira estóica. (ibidem, p. 267)

Não tão distante das proposições dos pensadores romanos, amodernidade trouxe, no conceito de “férias”, algo da referênciade “ócio digno”, mas com a variante de que, fora do mundo dotrabalho, o homem deveria se dedicar efetivamente ao lazer, porexemplo, umhobby, para, da mesma forma, escapar do vazio dotédio. A ociosidade não se identifica mais ao “conhecimento desi”, mas se resume a atividades que deveriam ser desempenhadasexatamente para afastar pensamentos, notadamente os “perigo-sos”, relacionados ao culto do nada fazer. O mundo produtivoprecisava de seus membros vívidos, prontos para encarar todosos desafios rumo ao progresso anunciado. O lazer programado,como nos jogos, e a ociosidade, seriam fundamentais para o des-canso do corpo, esse escravo da produção econômica, e para areciclagem da alma, sempre afastada do mal pelosafazeresdiver-sos do repouso, como exemplifica a dedicação ahobbies. A praia,como local de pleno lazer, era assim entendida como um espaçodo vazio que, exatamente por isso, devia ser recheada de sentido,como tudo na sociedade ocidental. Nela deveria se aproveitar para

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atividades como a pesca, o banho medicinal, a natação, os jogos,a coleta de conchas, a leitura de livros, etc. Tudo dentro da ordem.

Mas, de que ordem? Tomemos como parâmetro a vida predo-minantemente pacata e regrada da classe média européia, cultu-ralmente hegemônica a partir do século XIX em todo o ocidente.Como bem afirma Peter Gay (2002, p. 48), “A burguesia moderna{...) é, de todas as outras classes, a que mais completamente su-blima seus impulsos básicos (...)” e, levando uma vida moderada,plena de abstenções, as classes médias fundamentaram um modode ser que considera o excesso um elemento indesejável para aharmonia que desejavam. O termo apolíneo – relativo à belezaharmônica do deus grego Apolo – designa bem a lógica subjetivade que estamos falando. O deslocamento do mal para o dioni-síaco – relativo ao espontâneo, ao natural, ao instintivo – foi umaestratégia organizatória para essas classes, de modo semelhanteao que ocorreu com as aristocracias gregas em sua insatisfaçãocom a experiência democrática. Não há uma mera coincidêncianisso. Essa identificação não se dá à toa, por alguma contingên-cia ou improbabilidade. Cremos que a lógica de valorização doapolíneo e da demonização do dionisíaco é a base “essencial” dasociedade ocidental no que tange à sua proposta cultural de unifi-cação identitária. Os atenienses mostraram o caminho, as classesmédias o seguem até hoje.

As praias cariocas, não fugiram à regra. No Rio de Janeirodo século XIX, ir à praia significava simplesmente tomar banhode mar e este não era uma atividade de lazer, mas uma receitamédica. A natação era algo tido como“um dos maiores prazeresconcedidos por Deus”(Rosa Maria Barboza de Araújo, 1993, p.322) e, aos poucos, já na passagem para o século XX, a cultura fí-sica passou a ser estimulada, pois:“Educar o corpo e disciplinarhábitos significava integrar o país no perfil do mundo moderno ecivilizado” (ibidem, p. 312). A praia passou, paulatinamente a fa-zer parte da vida carioca como espaço privilegiado para esse fim.Esse fator trouxe um descolamento do sentido da praia como sim-ples receituário para uma boa saúde e englobou o encontro para

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a prática de esportes, o que não correspondia a descuidar de cui-dados salutares, muito pelo contrário, mas incluía paulatinamentea ludicidade do encontro defronte ao mar. Tudo, é claro, no maisperfeito equilíbrio.

No decorrer do tempo, a referência medicinal do banho demar se esvaiu quase que por completo. Por mais que se admi-tisse que seria saudável mergulhar no oceano, para simplesmenterelaxar ou nadar, isso não era o mais importante para o cariocada segunda metade do século XX. A prática de esportes se man-tém até hoje como uma referência importante do que se fazer napraia. Jogos como o vôlei e o futebol continuam a ser praticadosnas areias, mantendo o mesmo espírito de fundar um espaço deafazeres, ordem e regras no espaço da praia e de, fundamental-mente, abranger esse espaço vazio com a estrutura de um sistemaque, como veremos mais tarde, se define pela jogatina. No en-tanto, a praia passou a ser para o carioca um recanto de encontroe de vivências diversas, primeiramente para as classes mais abas-tadas que se acercaram do oceano com suas moradias, e, poste-riormente, também para os moradores dos subúrbios, geralmentemais pobres, com o acesso bem mais difícil e nem sempre ordei-ros e equilibrados como desejariam as elites.

Nesse espaço eminentemente lúdico, as pessoas têm o lazergarantido e gratuito e dir-se-ia que as diferenças entre classes so-ciais podem ser camufladas com maior facilidade, notadamentecom o uso de “marcas” que representam a identidade com o pa-drão das classes ricas, principalmente nas parcas roupas necessá-rias para a fruição desse ambiente, nas práticas de esportes típicosdas elites como o surf e na imitação do comportamento comedidodas elites durante o lazer. Embora essas diferenças sejam visíveisno próprio corpo, no modo de falar ou nas atitudes, é possível mi-nimizar a distância que caracteriza o convívio social entre essasdiferentes “comunidades”. Caco Barcellos (2003, p. 51) dese-nha bem esse quadro de inter-relações quando conta como “Juli-ano VP”, leia-se Marcinho VP, “bandido” da favela Santa Marta

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e membro do Comando Vermelho, morto em 2003 no presídioBangu III, fazia para se aproximar das meninas “da sociedade”:

A fórmula de Juliano era camuflar as diferençasde classe social. A abordagem, por exemplo, tinhaque ser na praia, um raro espaço democrático da ci-dade. Na areia, as diferenças desapareciam se algunsdetalhes estéticos não fossem esquecidos. Modelose marcas das bermudas, sungas, óculos ou qualqueroutro acessório deveriam ser, de preferência, rigoro-samente iguais aos usados pela maioria. Precisavamtambém reprimir qualquer comportamento mais ex-travagante. Gargalhadas, brincadeiras de luta, fute-bol, frescobol, ginástica, guerras de areia ou de águaeram consideradas atitudes excludentes, coisas de fa-velados.

Não é que o padrão cultural hegemônico se esvaia com o mar,mas é possível um ocultamento de alguns de seus fatores impor-tantes, como as roupas usadas em ambientes de trabalho. Esseocultamento se dá paralelamente a uma simulação da cultura he-gemônica, presente mesmo na praia. Há, mesmo no lazer, a ne-cessidade de uma representação que inclua o indivíduo num con-senso harmônico e os relacionamentos se referem sempre à ordeme ao comedimento. Em contraponto a isso, há algo, uma ameaça,exatamente a desordem e o exagero, que bem podemos chamarde “barbárie”2. Esta, para o imaginário ocidental, corresponde ànegação de tudo o que preza, um atentado contra os valores queadota, a representação de sua própria finitude. Assim sendo, étratada como um mal, uma doença potencialmente letal.

De forma estrita, tudo o que não corresponda à lógica ordeiraburguesa ocidental pode ser considerado bárbaro, de modo que

2 Para os gregos, romanos e, posteriormente, para outros povos, que ouquem pertencesse a outra raça ou civilização e falasse outra língua que não adeles; estrangeiro (Antonio HOUAISS, 2001).

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precisa ser, como uma doença, controlado ou curado. A históriaocidental é plena de exemplos dessas ações “terapêuticas”: paraalguns males, a força bruta, como nas cruzadas dos séculos XIe XII; para outros, a força sutil, como a colonização das almasvia cristianismo jesuítico; na maior parte deles, uma conjugação“harmônica” das duas, para garantir a eficácia curativa. No en-tanto, parece haver uma ameaça privilegiada para as moderadasclasses médias ocidentais: os pobres. Provavelmente foi para en-frentar esse malefício que Gustave Le Bon (1922) estudou “asmultidões” e foi, em boa medida, para manter uma certa profila-xia em relação à aproximação excessiva dessas criaturas que todoum arcabouço de comportamentos de pensamentos éticos e esté-ticos foram se solidificando. Como afirma Gay (idem, p. 49):

Entravam em contato com a maioria proletária(sem necessariamente chegar a conhecê-la) nos la-res, com os empregados domésticos; nos canteiros deobra, com trabalhadores da construção civil; e nas fá-bricas, com operários qualificados ou não. Tambémos encontravam como moradores das favelas, paranão falar dos mendigos e prostitutas errantes cuja vi-sibilidade importuna e detestável os fazia recordar,caso possuíssem ainda um grama de filantropia, quea sociedade, cuja construção era tão rentável, produ-zia suas baixas, incluídas as provocadas por eles mes-mos.

Naturalmente, os burgueses encontravam manei-ras convenientes de segregar-se das massas que virtu-almente os sufocavam. Podiam,(...), limitar o tama-nho do público político impondo ao direito de votoqualificações de posse de propriedades. Podiam juntar-se em bairros privilegiados e caros. Podiam mar-car distância em relação às classes mais baixas man-dando os filhos para escolas separadas, fora do al-cance dos pobres. Podiam escolher um itinerário para

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caminhar até seus escritórios por ruas que lhes permi-tiam evitar os bairros menos favorecidos da cidade. Epodem diferenciar-se de seus “inferiores” por meiodas roupas, comida, sotaque e gostos. De diversasmaneiras, davam razão a Freud a dizer a Martha Ber-nays: “Existe uma psicologia do homem comum quedifere sobremaneira da nossa”.

Essa necessidade aparentemente obsessiva de “lavar as mãos”sempre que a imagem da pobreza se apresenta leva a uma situ-ação de forçado alheamento. O contato com o popular se dá emsituações bastante específicas, geralmente bem mais ordenadas doque as relações estabelecidas intraclasse. Se há momentos em queessa aproximação se dá de forma mais espontânea é em festivida-des como o carnaval, com a troca de papéis que, historicamente,essa festa proporcionou. E há pessoas ou pequenos grupos inte-lectuais da burguesia que se interessaram em conhecer “o outrolado”, como pontuam Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes(1980). Trata-se, porém, de curtos momentos e solitárias jorna-das. Via de regra, porém, essa aproximação se dá da forma maisasséptica quanto for possível. Além disso, bem podemos notarque, em grande parte, as festividades, como o carnaval, vão per-dendo seu caráter lúdico de alternância de papéis sociais e muitosdos “desbravadores” das sarjetas o fizeram com objetivos seme-lhantes aos dos jesuítas.

Tal alheamento vai se tornando cada vez mais marcante, comopodemos perceber no Rio de Janeiro. Na década de 80, quandoo personagem “Juliano” tentava se “enturmar”, havia uma certacuriosidade no contato intercultural por parte de uma parcela daburguesia. A aproximação de um favelado como “Juliano” podianão ser agradável, mas despertava certo interesse, notadamentenos jovens das classes médias. Essa curiosidade não nasceu na-quele momento, já vinha de longe, principalmente relacionada àcultura, com o samba representando uma potente e interessantemediação interclasses, ou entre uma parte dos pobres e uma pe-quena parcela das classes médias. Os anos 80 já começavam a rea-

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cender os mais profundos receios com relação ao popular e, aindaassim, “Juliano” podia ir à praia sem necessariamente sofrer assé-dios e constrangimentos nasblitzenda Polícia Militar (PM) ou serapontado como bárbaro. Diríamos que sua barbaridade era maisaceitável. Os “90” vieram trazer outra realidade.

Se as classes médias pouco queriam saber de comportamen-tos de favelados, estes se interessavam muito pelos bens materiaise culturais daquelas. Na praia, “Juliano” queria ter acesso à di-versidade cultural, conhecer o mundo diferente e valorizado daselites, mas para isso precisava ocultar a sua origem social, se ves-tir diante de um espelho que o dissesse quem “é” para esse outro– que, assim, o controla, da mesma forma como é controlado porseu próprio olhar reflexivo na sala de espelhos que iremos visitarmais adiante. No plano material, é claro, gostaria também de tera possibilidade de outros acessos, como a uma conta bancária quelhe proporcionasse algum conforto e, ao menos, relativa fartura.No entanto, tanto num plano como no outro, os caminhos se en-contravam fechados. Isso nos traz àquela nova realidade referidaacima. Podemos compreender que a diferença dessa fase da vidade “Juliano” para a seguinte, quando se torna um dos “bandidos”mais procurados pela polícia, é o método. Podemos falar tambémde arrojo, já que é necessário muito para “encarar” frontalmente aforça policial, guardiã dos limites urbanos entre a civilização e abarbárie. Em ambos os casos, porém, o que ele, e provavelmentea maior parte dos outros “bandidos” das favelas cariocas desejasão esses acessos. Para reforçar essa percepção, basta examinaras matérias que dão destaque às moradias de alguns dos “bandi-dos” presos. São casas típicas do padrão e do sonho das classesmédias. No anexo 1, exibimos uma matéria do jornal carioca ODia, edição de 12 de abril de 2004, que bem ilustra o que dizemos3

. Além disso, a biografia de Marcinho VP, escrita por Barcellos(ibidem) demonstra isso muito bem.

3 A matéria em questão trata da descoberta, pela polícia, da casa do “ban-dido” Luciano Barbosa da Silva, o Lulu da Rocinha, favela localizada em SãoConrado, Zona Oeste da cidade do Rio. Lulu foi morto dois dias depois.

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As praias passaram, principalmente a partir da década de 70,a ser cada vez mais um local de grande convívio coletivo, ini-cialmente com baixa freqüência das populações faveladas e su-burbanas. No meio da década de 80, porém, durante o governode Leonel Brizola4 , foram criadas linhas de ônibus que ligavamSão Cristóvão ao Leblon e a Ipanema num curtíssimo espaço detempo. Isso facilitou esse acesso e levou boa parte da populaçãodestes bairros a abandonar as praias da região, buscando refúgioem alguns “points” da Barra da Tijuca, Zona Oeste, preferencial-mente os de difícil acesso, como a minúscula praia da Joatinga,na localidade conhecida como Joá. Lá, não havia mistura.

Na virada dos 80 para os 90 e em toda esta década, houve orecrudescimento da tensão social no Rio de Janeiro. Em parte,a simples presença de elementos estranhos à vida pacata da ZonaSul incrementou essa pressão. Historicamente, os lugares de uns ede outros sempre estiveram bem demarcados. O desenvolvimentourbano, porém, trouxe uma aproximação das distâncias e a neces-sidade de trabalhar levou, já na virada dos anos 90, populaçõesdesempregadas às ruas dos “bairros nobres” oferecendo mercado-rias que a redução das taxas de importação – uma regra de ouroda virada neoliberal da economia mundial – vomitava por aqui. Aclasse média passou a conviver com aqueles que sempre detestou.Agora eles estavam em toda parte. Mas não foi só isso.

As últimas décadas trouxeram uma enxurrada de dinheiro donarcotráfico, aliciando cada vez mais a classe média para o usode drogas caras como a cocaína e os pobres para a venda des-sas drogas. Muito embora isso tenha trazido uma aproximaçãono espírito comercial, afinal os pobres passaram a ser “empresá-rios”, houve uma separação social e cultural mais acentuada. Os“empresários” do pó não são bem quistos, evidentemente, poisacabam exercendo a mesma função que as prostitutas: oferecem

4 Brizola foi, por dois mandatos, governador do Estado do Rio de Janeiro.A implantação das linhas de ônibus referidas se deram no primeiro mandato,que foi de 1983 a 1986. Foi reeleito em 1990, cumprindo mandato de 1991 a1994.

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o que o cliente quer, prazer, mas pagam com a marginalização ea perseguição policial como uma forma de mostrar que não estácerto o que fazem. Parece que o prazer, esse monstro deliciosoprojetado pela Sociedade de Controle, credita cada vez mais aoocultamento e à repressão seus atrativos. Além disso, a experiên-cia do prazer proibido inclui a perspectiva da dor enquanto umaprojeção perversa de gozo, ainda que nesses casos essa dor acabesentida pelo outro, e seja vivida vicariamente nos meios de comu-nicação. Tudo, assim, parece efetivamente simulado. O “prazeroculto” não é tão oculto assim e nem sequer é tão prazeroso. Ador, como dissemos, está próxima, apesar de distante, pois geral-mente experimentada pelos que oferecem o gozo proibido. Sãoestes que devem pagar pelos pecados daqueles outros, numa situ-ação mais ou menos parecida com a de Cristo, ídolo religioso deboa parte das classes médias. Parece que o sofrimento do outro éredentor, não para o outro, é claro.

A convivência entre os “dois mundos” jamais foi tranqüila,bem sabemos, mas o incômodo com a presença tão próxima do“lado B” chegou a um paroxismo. Foi um acontecimento essen-cialmente midiático que selou definitivamente o divórcio inamis-toso entre morro e asfalto: o assim chamado “arrastão”, acon-tecido em outubro de 1992 na praia do Arpoador, zona sul dacidade. Como relata Micael Herschmann (2000, p. 175):

O incidente foi noticiado histericamente pelos jor-nais e telejornais nacionais e internacionais, como sefosse um distúrbio de grandes proporções que colo-cava em xeque a “ordem urbana”. De fato, as rápidasimagens televisivas mostrando crianças e adolescen-tes brigando em bandos, correndo desarvoradamentepela praia e dependurando-se em janelas de ônibussuperlotados apresentaram esta manifestação culturalà classe média mas também geraram um forte temorpor parte deste segmento social e do Estado. Na reali-dade, pesquisadores (dentre os quais me incluo) e atéagentes de segurança pública indagam-se se aquilo

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que assistiram no Arpoador, naquele dia 18 de outu-bro, foi mesmo um arrastão. Isto é, alguns se pergun-tam: sendo aquela uma das praias preferidas pelosfunkeiros, aquilo não só parecia não ter acontecido alipela primeira vez, como também constituía uma ten-tativa frustrada das galeras de diferentes morros ca-riocas, dentre eles os funkeiros, de encenar o “ritualde embate” que esses jovens inventaram nas pistas dedança dos inúmeros bailes realizados semanalmenteno Rio.

Os jornais dirigidos para a alta classe média carioca, como oJornal do Brasil e O Globo, porém, não entenderam o fato comtanta complexidade e escolheram efetivamente a histeria promo-tora do medo e do terror à alteridade. O jornal O Globo, em suaprimeira página, num local absolutamente nobre, ocupado pormanchetes e chamadas para reportagens de fatos de grande im-portância, estampou um editorial ultrajado contra os bárbaros. Oseu título não deixava dúvidas sobre o que tratava: “Hordas napraia”. Herschmann (idem) reproduz uma parte do texto:

O que aconteceu no domingo em praias da ZonaSul não foi simples perturbação da ordem, e seria te-meridade considerá-lo episódio isolado. As hordasque se derramaram em corrida alucinada por toda aextensão da areia não roubaram apenas bolsas e reló-gios; principalmente arrancaram do cidadão cariocae dos visitantes da cidade o bem precioso da paz do-minical. Ir à praia é direito inalienável e histórico domorador do Rio (...) Tudo isso foi espezinhado nosacontecimentos afrontosos do domingo (...) Vamosagora aceitar passivamente que o prazer de ir à praiaseja substituído pelo medo de ir à praia? As famíliasserão obrigadas a se fechar em casa nas manhãs desol – porque a praia tem novos donos? Os turistas

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serão mais uma vez afugentados, desta vez definiti-vamente? As cenas mostradas pela televisão não per-mitem dúvidas quanto ao caráter organizado dos “ar-rastões”. Apenas grupos com estrutura de comando eplanos bem traçados são capazes de tal concentração,infiltração, ação simultânea e dispersão – e tudo issose viu, nas praias, domingo.

O editorial é um alerta contra a “invasão bárbara”. O perigo eo ultraje tomavam conta das classes médias, que viam, estampadonos jornais, o sentido de tudo aquilo. Para estes, não se tratava,como afirma Herschmann (idem, p. 193), de uma encenação derituais para aqueles jovens que freqüentavam a praia do Arpoador,algo como uma prática “natural” de enfrentamento:

Na ritualização da violência nos bailes funk, osgrupos não visam à eliminação propriamente do ini-migo. Através de suas performances buscam o reco-nhecimento de um lugar – um território – para a ga-lera junto à “comunidade” ou às demais turmas. Ex-perimentam no jogo a participação, a inclusão, com-pensando um cotidiano que, em geral, os rejeita, osexclui. Nos bailes, se, por um lado, percebe-se a im-possibilidade de uma integração total, plena entre asgaleras, por outro, renova-se o sentimento de perten-cimento àquele universo. O comportamento das ga-leras, apesar de ser secularizado, lembra de certa ma-neira a atuação das “sociedades de guerreiros”, paraos quais coragem, honra e vingança são importantesvalores. Há um ideal de virilidade bastante cultuadoentre os membros das galeras. A vingança não é umaameaça, um terror a ser contornado pela prática do sa-crifício – as sociedades de guerreiros buscavam atra-vés das ações violentas, rituais, o restabelecimento deum equilíbrio para essas sociedades, isto é, os sacri-fícios e mesmos as vinganças ou outras “violências

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selvagens” tinham limites, não colocando a existên-cia dessas sociedades em risco. Aliás, com esse tipode conduta, esses atores sociais visavam, na verdade,“reequilibrar” o seu mundo. Como nas sociedadesde guerreiros, a violência das galeras tem um alcancelimitado (ocorrem eventualmente “excessos”) e o ob-jetivo não é eliminar o “alemão”5 . Pelo contrário, apermanência dele parece garantir o clima de excita-ção, de competição que se articula com o de humor eo de erotismo, nesse tipo de baile. Os limites, comonas “sociedades de guerreiros”, não estão estabeleci-dos dentro de uma lógica mágico-religiosa do mundo.No entanto, uma moralidade expressa-se através dasregras fixadas para o jogo.

Em vez disso, de toda essa ritualização guerreira – que, afinal,não é tão estranha assim à verve ocidental –, o que os veículos decomunicação cariocas viram no ato foi puramente “a” barbárie.Se a estratégia era apagar qualquer discurso que não levasse, emprimeiro plano, a injunção de “baderna”, houve sucesso. SegundoZuenir Ventura (1994), em episódios semelhantes ocorridos pos-teriormente, as pesquisas indicavam que o carioca de classe médiadeixava de pensar o fenômeno como fruto de condições sociaispara passar a encará-lo como ato de barbárie, incentivando a re-pressão policial com barreiras nas principais entradas dos bairrosde Copacabana, Ipanema e Leblon eblitzenem ônibus vindos dazona norte da cidade. O clima de medo não era novo, mas ga-nhava contornos inusitados pela força midiática que assumiu. O“Outro” das classes médias cariocas, o favelado que referencia o“não ser” civilizatório, um dia estivera longe, ainda que convi-vendo em espaços urbanos muito próximos. Aparecia aqui e ali,como serviçal ou empunhando um canivete, depois um revólvercalibre 38. “De repente”, estava ali, em “horda”, a atacar a ci-vilização. Nas tvs e nos jornais, pior ainda. As reportagens que

5 Leia-se o “inimigo”.

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mostravam pobres indicavam que estes passaram da participaçãoobscura nas matérias policiais e nos programas de entretenimentopara uma participação mais ativa na sociedade. Haviam se tor-nado “bandidos” perigosos, traficantes, assassinos, e portavam ar-mas de guerra. O pesadelo se tornara real. Ninguém se perguntoude onde vinham aquelas armas, nem como o sistema da “ordem”permitia que elas chegassem até onde chegaram. Ninguém pen-sou que o mercado de armas é o que movimenta mais recursosno comércio internacional, obtendo lugar de destaque no mundofinanceiro internacional. Ninguém queria saber de nada além dosriscos que corria com a ameaça bárbara da desordem.

Provavelmente, o que levou as classes médias a confirmar asensação da realização de um sonho mau que se materializava foia própria lógica sócio-econômica na qual viviam, e ainda vivem.Nela, sempre é necessário que alguém seja a vítima e, se numdeterminado momento as vítimas foram os menos aquinhoados,num outro estes podem se tornar algozes e a nova vítima passariaa ser o antigo verdugo. É o conhecido medo da “volta do chicote”e de uma hora para outra, os que deviam se portar como serviçaispareciam dar sinais de querer mudar essa condição. Tornaram-se“empresários” e “soldados”, personagens antes prezados – aindaque os soldados o fossem com certa reserva – pelas classes mé-dias.

Se atentarmos bem para a ordem social burguesa, o caminhodo crime para os pobres bem poderia ser entendido como “na-tural”, assim como é “natural” a lógica bélica da sociedade que“naturalizou” a guerra econômica como organizadora de sua sub-jetividade. Afinal, “guerra é guerra” e, para sobreviver nela, todosos recursos precisam ser tentados. No entanto, no jogo especularcaracterístico da cultura ocidental – que conheceremos melhor nosegundo capítulo -, o crime ou a violência são coisas impensá-veis com “naturalidade”, muito embora sejam referências intesti-nas para essa ordem e podem ser compreendidas inclusive como oque há de mais “natural” no sistema fomentado pelas classes mé-dias. Em outras palavras, tanto o crime como a violência devem

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ser simulados como distantes, como realização do outro, quandoaparentemente estão tão próximos e quem os pratica com maiordolo não necessariamente é aquele que aparenta fazê-lo.

E, por fim, as praias passaram a ser cenário de uma nova mo-dalidade de manifestação, desta vez da ordeira classe média, quepassou a reunir-se, vestida de branco, para pedir “paz”. Ou, deforma mais, ostensiva, “Basta”6 . Mas, basta do quê? Quem to-mou a iniciativa do massacre, pede para que este pare, mas conti-nua massacrando, com cada vez maior violência7 . Essa é a umadas principais características dessa “guerra à beira-mar”.

1.1 Ama o bárbaro como a ti mesmo

A cidade foi fundada em 1567 por Mem de Sá e seu sobrinho,Estácio de Sá, sendo que este morreu na batalha que marcou aposse definitiva dos portugueses na região, travada no dia 20 dejaneiro, “dia de São Sebastião” – o que rendeu à nova cidade onome de “São Sebastião do Rio de Janeiro” e, posteriormente,um feriado em pleno verão para seus habitantes8. Mem de Sá foisucessor de Martin Afonso de Souza e de Tomé de Sousa como

6 Ver o panfleto desse “movimento da sociedade organizada” no anexo 2.A aposta é a de que há um problema que pode ser “sanado” sem que se mexana estrutura que lhe fomenta e lhe dá sentido. Aparentemente, haveria uma“disfunção” que precisa ser corrigida. Cremos que essa crença caracteriza opensamento da classe média.

7 Recomendamos a leitura do relatório da Anistia Internacional intitulado“Rio de Janeiro 2003: Candelária e Vigário Geral 10 anos depois”, encontrávelno endereço http://Brasil.indymedia.org/media/2003/08/262219. Da mesmaforma, vale a pena ler o relatório anual do Centro de Justiça Global (2004),“Direitos humanos no Brasil: 2003”, que pode ser acessado pela internet nosite: www.global.org.br.

8 Na década de 60, logo após a implantação do regime militar, o feriadofoi “cassado”. Menos de um ano após a “cassação”, um temporal, ocorridoexatamente no dia do santo preterido, causou inúmeras mortes, principalmentena periferia e nas favelas. O motivo do desastre foi rapidamente encontrado: odescaso com São Sebastião, que teria “declarado guerra” contra a cidade. E oferiado voltou.

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governador da colônia e já havia comandado, em 1560, a expulsãode Blois Le Comte, sobrinho de Villegaignon. Este, retornou àFrança e ganhou como recompensa de sua lealdade o cargo degovernador de Lens.

Estácio de Sá se instalara, em 1o de março de 1565, poucomenos de dois anos antes da batalha do dia de São Sebastião, numlocal que ficaria conhecido como “vila velha”, localizado entreo morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, vivendo praticamentesitiado nesse local por dois anos, cercado de inimigos. A vitóriamilitar de Mem de Sá sobre Villegagnon e Le Comte não haviasignificado a posse da área, pois os contrabandistas franceses e osTamoios ainda imporiam inúmeras dificuldades aos portuguesesaté 1567.

No Brasil, a colonização portuguesa se fundou basicamente naproposta católica de conquistar a alma dos “bárbaros”, salvando-os, assim, da vida dissoluta que lhes caracterizava para que pudes-sem fazer parte da “civilização”. Não ocorreu, como na chamadaAmérica Espanhola ou na Nova Inglaterra (os Estados Unidos),uma iniciativa colonizadora com a fixação de colonos de formaorganizada, com a construção de centros urbanos segundo o pa-drão europeu vigente desde Roma. Enquanto o Estado portuguêsse ocupava em tirar dos corpos indígenas o que pudesse, os jesuí-tas tentavam lhes salvar ao menos as almas. Em outros termos, épossível afirmar que a corte queria apenas a terra para a explora-ção, como efetivamente ocorreu, enquanto os padres se ocupavamcom as pessoas que nela estavam.

Tornada capital colonial em 1763, transformada de vila for-tificada em entreposto através do qual se escoavam as riquezasda colônia – notadamente o ouro extraído em Minas Gerais – acidade de São Sebastião do Rio de Janeiro cresceu substancial-mente apenas no século seguinte, quando a família real9 aqui de-sembarcou, em 1808. O Rio de Janeiro, que já era a capital da

9 Que havia deixado Lisboa trazendo todas as riquezas que pôde carregar,numa alucinada fuga das tropas napoleônicas que invadiam o território portu-guês.

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colônia, passava a ser a cidade mais importante também da me-trópole, abrigando primeiro o próprio rei de Portugal – João VI– e sua corte, e, em seguida, o príncipe regente, Pedro I, que vi-ria a se tornar imperador depois da declaração de independência,em 1822, além de seu sucessor, Pedro II, deposto em 1889 com arepublicanização.

O desenvolvimento comercial, manufatureiro e cultural se acen-tuou e a República chegaria para selar o crescimento desse centrourbano, substituindo a corte pela nascente máquina estatal repu-blicana. O mais importante, porém, é saber que o último terçodo século XIX trouxe um crescimento populacional assustador.Segundo Barboza de Araújo (idem, p. 30):

O Rio de Janeiro, ao inaugurar-se a República,atravessava uma fase de profunda alteração demográ-fica que se estendeu até 1920. Entre 1872 e 1890,a população e a densidade demográfica quase dobra-ram, sendo então a maior cidade do país, com cercade 522 mil pessoas e 409 habitantes por km2. Abaixodo Rio vinham São Paulo e Salvador; cada uma compouco mais de 200 mil habitantes.

Mas, quem eram essas pessoas que chegavam? Fundamen-talmente, eram escravos que, expulsos do Vale do Paraíba pelodeclínio da lavoura cafeeira, das plantações de frutas cítricas daBaixada Fluminense, e pelo fim da escravidão, acorreram para acidade em busca de trabalho. Como pontua José Amaral Argolo(2003):

No final do século XIX e primeiros anos do sé-culo XX, a então diminuta população da Baixada foiimpactada por um estranho fenômeno: o inesperadoe repentino fim das plantações de laranjas e outrasfrutas cítricas, base da riqueza da região e principalproduto de exportação, principalmente para a Europa.

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Essa imensa área de pomares e pastagens, rica e irri-gada, tornou-se de repente improdutiva devido à pro-liferação de um inseto originário, segundo se diz, docontinente africano10; inseto este que se adaptou ra-pidamente ao nosso clima e aqui chegou nos porõesdas embarcações utilizadas no transporte de frutas eoutras mercadorias perecíveis.

Todavia, não foi unicamente esta a causa do colapso econô-mico daquela região. Bem orientada, a lavoura até poderia ter sidoredirecionada para outras culturas importantes (mandioca, batata,milho, hortaliças, etc.), sem maiores prejuízos extensivos para apecuária.

Tardio ponto final de um modelo econômico perverso que ma-tou milhões de seres humanos, a Abolição da Escravatura contri-buiu significativamente para o abandono daquelas terras. Mui-tos proprietários de fazendas e chácaras deixaram para trás o quehaviam recebido como herança e, despojados da mais-valia re-presentada pela força de trabalho gratuita e que muito produzia,mudaram-se para a Capital. No seu lugar continuaram morandoem pequenas glebas arrendadas algumas famílias de escravos, cui-dando do que sobrara das plantações. De início foram estes osmais felizes na escolha. Quanto aos demais, quer tenham sido al-forriados ou beneficiados pela leis do Sexagenário/Ventre Livre,como já estavam desobrigados das tarefas diárias e não visualiza-vam quaisquer perspectivas no que tange à melhoria do padrão devida, optaram, também, pela mudança para a Capital onde cons-truíram casas de madeira e saibro nas encostas dos morros da ci-dade11.

Aí estão postas as condições para um problema. Não o fatode migrantes irem, premidos pelas necessidades, de um lado para

10 No imaginário ocidental, há inúmeros males vindos da África, inclusiveinsetos e doenças.

11 Aliás, foi num desses morros, o da Providência, que ficava bem próximoàs docas, onde havia empregos na estiva, que surgiu a mais importante mani-festação cultural do Rio de Janeiro: o samba.

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outro, se instalando em regiões abandonadas pelo interesse imobi-liário, curiosamente o local que se esperaria ter sido povoado emprimeiro lugar, as encostas12. Não, isso não representa necessa-riamente um problema. O problema está na significação dessasmassas desvalidas para a ordem burguesa, já referida anterior-mente. O problema começou quando as classes médias forma-lizaram sua proposta identitária como uma evitação obsessiva docontato com essa gente e, por conta disso, também formalizarama proposta de que o pobre, principalmente o negro, deveria sertratado ora com comiseração, ora com desprezo, mas sempre comagressividade, ora latente, ora manifesta. Afinal, para a ordemburguesa, a ameaça está bem localizada e sempre fora de si, comono quadro psiquiátrico conhecido como esquizofrenia paranóide,ou mais precisamente na posição imaginária proposta por MelanieKlein (1978a), nomeada por ela de “esquizoparanóide”, cuja ca-racterística é a projeção “para fora” de todo o mal, acompanhadapor uma referência interna de plenitude do bem.

Em outras palavras, podemos afirmar que o problema começaquando as classes médias passam a ver essas pessoas como umsaco de pancada redentor de seus pecados. E se constitui comple-tamente num problema quando estas pessoas descobrem que nãosão tão inferiores quanto sempre lhes foi dito e que apanhar em si-lêncio cansa e despedaça o amor-próprio. Assim, podem e devemlutar por um lugar ao sol, nas praias, por exemplo. Aí, começa oterror. Aí, sim, temos um problema. Os personagens principaisdas matérias jornalísticas ligadas ao tema “violência” são descen-dentes diretos dessa gente que chegou a um Rio de Janeiro no qualo cosmopolitismo das elites recendia à província – recém egressosda vida rural que eram – e as classes médias que, como demonstraNelson Werneck Sodré (1968), já podiam ser perceptíveis desdeo século XVIII, cresciam aderindo à nascente burocracia estatalda República. A cidade não tinha como inserir toda essa gente no

12 Oferecem as melhores paisagens, permitem o isolamento e o controle doentorno.

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mercado econômico, e nada foi feito para isso. Pior, tudo foi feitopara dificultar.

O “14 de maio”13 foi terrível, nenhum plano foi esboçado paraque o grande contingente de escravos libertos pudesse ser apro-veitado. Era como se toda essa gente fosse invisível, ou assim setornasse, ao menos economicamente. Há pelo menos três sentidosa ser propostos para entender isso. Em primeiro lugar, a economiaestava centrada na agricultura, não havia qualquer projeto indus-trial. A vida urbana ainda era predominantemente movida pelodinheiro que chegava das propriedades rurais e pela máquina dacorte e da República recém-criada. A migração encontrou umaeconomia pré-capitalista, estagnada diante do avanço tecnológicodos países europeus. Segundo, a noção de que o “mercado” re-solveria qualquer problema era a grande “novidade ideológica”da época, juntamente, é claro, à premissa da inevitabilidade darevolução do proletariado, formulada por Karl Marx (1961). Tal-vez se pensasse nisso, numa crença cega no novo mundo pregadopelos liberais europeus e estadunidenses e num temor a investirnessas massas que um dia se rebelariam. Porém, o sentido maisimportante, o terceiro, diz respeito à não consideração desses bra-sileiros como brasileiros, ou melhor, como parte da comunidadeimaginada da Nação. Aí começa a guerra, uma efetiva guerracivil 14 , ou melhor, uma guerrilha urbana “sem fim” promovida

13 O dia seguinte à Abolição.14 Jairo Santiago (2004, p. 92) compreende, tomando como referência Hans

Enzenberger (1995), que“(...) há que se considerar que a mídia entende aexistência de uma guerra civil no Rio de Janeiro, em razão de uma análisesuperficial dos efeitos dos ataques dos traficantes. Mas sob o ponto de vistateórico o termo não se aplica, pois o fenômeno dos ataques dos traficantes noRio de Janeiro não reúne elementos suficientes que possam caracterizar umaguerra civil. A utilização do termo se constrói a partir de uma cultura do medoque abarca toda a sociedade e que é alimentada pela mídia enquanto institui-ção, pela subjetividade dos jornalistas e pelas falas de diversos atores políticose pelo interesse econômico empresarial dos conglomerados de mídia.” Gosta-ríamos de ponderar que a assertiva está absolutamente correta, considerando oângulo da formação de uma “cultura do medo” por parte da mídia, que utilizao termo, assim, como sensacionalização de ações efetivamente inadequadas

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pelas elites cariocas contra os pretos pobres. Para lidar com eles,a polícia com suas armas e sua brutalidade. Muito antes da “vio-lência dos traficantes”, aquela já existia com a mesma barbaridadeque é atribuída a estes na atualidade. O que há hoje, tudo indica,é um reequilíbrio de forças. No entanto, a força policial continuafazendo seu papel, com cada vez maior violência, o que inevita-velmente está gerando respostas mais violentas.

Não havia mercado de trabalho a não ser na estiva ou na semi-escravidão do trabalho doméstico, no qual se trocava cama e co-mida pela vida nos fundos, junto ao tanque e a lixeira. Promove-sealgo que Hélio Santos (2002) chama de “barbarismo social” e quepermeou as relações sociais e, principalmente, interétnicas. Nãohá como deixar de considerar isso quando pensamos a realidadeda cidade do Rio nos dias de hoje. A manutenção da vida or-deira do lado nobre gerava um mundo à parte, fato que é reconhe-cido inadvertidamente pela mídia quando fala inadequadamenteem “poder paralelo”. Este termo, como usado pela imprensa, é ab-solutamente ideológico e cremos servir como reforço do abismosócio-cultural pelo fomento de uma “cultura do medo”. Trata-se,em boa parte, de um sensacionalismo barato, típico do jornalismomarrom15 que os “jornalões” tentam convencer-nos que não fa-

para caracterizar uma guerra civil. Porém, precisamos considerar o aspectosubjetivo desse fenômeno em sua totalidade e, ao fazer isso, descobrimos querealmente há uma guerra (chame-se de civil ou de qualquer outro termo) histó-rica das elites – incluindo-se a classe média – contra as camadas mais pobres.Nesse vértice, o que a mídia tenta fazer é ocultar isso, utilizando o mecanismode pára-vento proposto por Ignacio Ramonet (1999): realça o ataque de unspara ocultar o ataque de outros, ou oculta a grande participação destes no ata-que daqueles, como no caso do 11 de setembro estadunidense, como refereSlavoj Zizek (2003).

15 Diz H. L. Mencken (1988, p. 120): “(...) muita conversa é jogada forasobre a suposta diferença entre a imprensa marrom e a mais respeitável. A di-ferença é precisamente a mesma entre um contrabandista e o superintendentede uma escola dominical, ou seja, nenhuma. Honestamente acho até, baseadoem vinte anos de íntima observação e incessante reflexão, que a vantagem, seexiste, está do lado dos jornais marrons. Tirando um dia pelo outro, são pro-vavelmente menos malignamente mentirosos. As coisas sobre as quais mentem

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zem. Parece não haver, de fato, um “poder paralelo”, mas simuma integração entre poderes: para que as pessoas não morramde doenças ou de absoluta miséria nas favelas, o “poder único” doEstado – o que se oporia ao paralelo – admite a participação dostraficantes, que inegavelmente costumam prestam serviços às co-munidades nas quais estão instalados, principalmente no que dizrespeito à oferta de empregos e à circulação de algum dinheiro.Além disso, costumam contribuir para a redução da populaçãofavelada com suas disputas de quadrilhas.

Mais que tudo, o tal “poder paralelo”, o que se refere à orga-nização das quadrilhas, aceitou bem o modelo proposto e se in-corporou ao mercado empresarial, tendo como produto as drogas– e quanto mais comercial for, menos prestará serviços comunitá-rios, como efetivamente tudo indica que vem ocorrendo. Quandoa imprensa fala em um “poder paralelo”, reconhece a existênciade um “mundo paralelo” à ordem burguesa, uma legião de discri-minados que vive fora da cidadania e da legalidade, não por “puramaldade” ou escolha entre inúmeras opções, mas por imposiçãológica da guerrilha urbana “sem fim” promovida contra o fave-lado, o bárbaro carioca. Trata-se do mundo dos deserdados docapital, os inúteis para a movimentação econômica, os assim cha-mados “excluídos” que, porém, vão cada vez mais se “incluindo”como comerciantes e como figuras midiáticas.

No transcorrer do século, o “mundo paralelo” já havia geradoo crescimento rápido do mercado da malandragem, no Rio, e o da“pistolagem”, principalmente na Baixada. No “jogo” do mundocapitalista, se há quem necessite de algum serviço “sujo”, há namesma proporção quem queira fazê-lo, se remunerado para isso.E se há um jogo a ser jogado, sempre há jogadores dispostos a

não costumam ter a menor importância – pedidos de divórcio, pequenos su-bornos, fofocas sociais, intimidades das vedetes. Nesse campo, até prefiro lermentiras do que verdades: pelo menos são mais divertidas. (...) A maneirade mentir dos jornais mais respeitáveis é menos inocente. Seu objetivo não selimita a vender edições extras para a gente simples; e sim o de perpetuar umafraude deliberada, para melhor proveito dos cavalheiros que ficam por trás dopano.”

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vencer. O malandro – um personagem com história circunscritaprincipalmente na primeira metade do século XX carioca – eraum jogador, aquele que aposta, numa mesa ou na vida, todas asfichas na sorte de encontrar a quem extorquir algum dinheiro, um“otário”. O “jogo do bicho” também ganhava nova força de tra-balho e cresceria até se tornar forte a ponto de financiar times defutebol e eleger políticos. A mão-de-obra dessa e outras empresasilegais foi, desde o final do século XIX, composta principalmentepor negros e imigrantes do Nordeste.

Os escravos libertos, principalmente estes, se tornaram imedi-atamente um problema, e com isso tiveram mais problemas, pois,absolutamente marginalizados, sofriam uma tripla perseguição:eram absolutamente pobres e tinham seu espaço social extrema-mente restrito; considerados inferiores, não eram alvo de qualquerpolítica em qualquer nível; tidos como perigosos, eram caçadospela polícia e condenados a penas com mais rigor que os bran-cos16 . Cresciam as comunidades negras, as favelas, cada vezmais apartadas do “asfalto”, um dos lados da “cidade partida” deVentura (idem).

O “lado A” da “cidade partida”, porém, ganharia iluminaçãoa gás, água encanada e um novo e fascinante transporte urbanoda era “neotécnica”17 , os bondes elétricos. Além disso, como re-ferem Francisco Alencar, Lúcia Carpi e Marcos Venício Ribeiro(1979), se construíram hotéis, jardins públicos e cafés, elementosfundamentais para o lazer dos proprietários de terras e da “classemédia” referida por Werneck Sodré (ibidem)18. A cidade crescera

16 Sobre esse tema, vale conferir o estudo de Carlos Antonio Costa Ribeiro(1995). Sobre a situação do negro no Rio de Janeiro, indicamos o trabalho deL. A. Costa Pinto (1998).

17 Termo de Lewis Munford (1961, p. 509) que, conforme suas palavras,“Refere-se à nova economia que começou a surgir nos anos de 1880, baseadano emprego da eletricidade, dos metais leves como o alumínio e o cobre, e dosmetais e terras raras, como o tungstênio, a platina, o tório e outros”.

18 Leia-se a ínfima burguesia de raiz liberal que vibrou com a republica-nização, isto é, com a mudança do status político e a criação de cargos queviria a ocupar, pois as idéias capitalistas só viriam a ter influência determinante

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muito, acentuadamente depois do início do novo século. De qui-nhentas mil almas, na última década do século XIX, a populaçãomais que duplicou. Como refere Barboza de Araújo (idem):

Em 1906, a população girava em trono de 811 milhabitantes, sendo a densidade populacional de 722habitantes por km2. Nessa data, o perfil demográ-fico revelado pelo recenseamento é o de uma cidadereceptora de imigrantes: grande proporção de popu-lação jovem, e do sexo masculino. (...) Em 1920 oRio já ultrapassava a faixa de um milhão de habitan-tes (cerca de 1 milhão e 157 mil pessoas), sendo adensidade populacional de 1.030 habitantes por km2.

A mesma autora chama a atenção para o fato de que o aumentoda população trazia consigo alguns dissabores:

A intensa migração agravou os problemas soci-ais e econômicos já existentes na capital. Em 1890,mais de 100 mil pessoas não tinham ocupações defi-nidas, sustentavam-se prestando serviços irregularesou viviam na fronteira da legalidade, como ocorria

bem mais tarde, nos anos 30, com o fim do monopólio paulista-mineiro comseus persistentes senhores feudais sustentados pelo café e pelas vacas leiteiras.Além disso, a quebra da economia estadunidense repercutiu na Europa e deixouem ruínas o pacto liberal que, como o seu retorno no final dos anos 70 e imple-mentação nas duas décadas seguintes mostrou, é extremamente danoso para ospaíses pobres. O “crack” da bolsa nova-iorquina, ironicamente, foi uma ben-ção para o capitalismo brasileiro, como demonstra Omer Mont’Alegre (1972,p. 436):“A revolução de 1930, consolidando o trabalho dos “tenentes”, des-truiu parte do poder latifundiário e fortaleceu os setores médios da sociedade,especialmente a nova burguesia industrial. Foram criadas, então, condiçõesinstitucionais para o surto industrial e seu fortalecimento. A crise de 29, ge-rando dificuldades para a importação de bens de consumo, e rareando as nos-sas divisas com a queda do preço do café, formou condições econômicas parao aproveitamento da capacidade da industrial nacional, então sub-utilizada.”

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com prostitutas, malandros, ladrões, desertores, ciga-nos, ambulantes e jogadores. Essa massa de deser-dados em 1906 crescera, superando a faixa de 200mil pessoas. A estes, somar-se-ia um contingente detrabalhadores regulares, porém mal remunerados, oupor vezes trabalhando em troca de moradia e alimen-tação; empregados domésticos, auxiliares de comér-cio (caixeiros), imigrantes recém-chegados, aprendi-zes, etc. O total constituía, sem dúvida, a maioriada população. Os empregados em serviços domésti-cos, por exemplo, constituíam 25% da população, em1900 (ibidem, p. 31).

Maurício Vinhas de Queirós (1975, p. 97) fala do mesmo ce-nário com diferentes e ilustrativos relevos:

Estatísticas de 1882 demonstram que em seis dasmaiores províncias do país – e justamente naquelasem que mais estavam se desenvolvendo as ativida-des manufatureiras – Rio de Janeiro, Minas Gerais,São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará, mais de 50%da população entre 13 e 45 anos era constituída de“desocupados”. É óbvio que essa porcentagem au-mentou ainda mais depois da Abolição. Bem verdadeque, excetuados os sertanejos nordestinos expulsospela seca – que sempre se revelaram trabalhadoresdispostos e decididos – a massa de “vadios” consti-tuída por negros forros ou libertos dificilmente pode-ria ser desde logo engajada no processo industrial esubmetida à rígida disciplina da fábrica, pois – comoantigos escravos – prezavam como um dos mais altosvalores o “ócio”, ao qual sacrificavam a possibilidadede condições de vida um pouco melhores19 . Entre-tanto, aos libertos e nordestinos, somaram-se ainda

19 Registre-se aqui, nesta passagem, um trecho algo infeliz de Celso Furtado(1977, p. 140), no qual Queirós se baseou para aludir à “preguiça negra”:“A

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as centenas de milhares de imigrantes italianos, es-panhóis e portugueses, etc., entre os quais – ao quetudo indica – foram recrutados em sua maior parte osprimeiros operários fabris.

Ora, se a maioria estava fora do “jogo”, como fazer para ad-ministrar a pressão? Não havia espaços econômicos, nenhumaoportunidade para o pobre, a não ser trabalho, muito trabalho,nunca um emprego. A mentalidade liberal reforçava o massacre,com suas aspirações ao mundo perfeito do deus Mercado. Paracompletar, pobres e pretos, principalmente estes, eram massacra-dos pelo Estado20. Crescia, paulatinamente, um grande mercadode pessoas que viviam à margem da lei, excluídos desta pela situ-ação de subempregados, ou se diria, em bom dialeto europeu, de

situação favorável do ponto de vista das oportunidades de trabalho, que existiana região cafeeira, valeu aos antigos escravos liberados salários relativamenteelevados. Com efeito, tudo indica que na região do café a abolição provo-cou efetivamente uma redistribuição da renda em favor da mão-de-obra. Semembargo, essa melhora na remuneração real do trabalho parece haver tidoefeitos antes negativos que positivos sobre a utilização dos fatores. Para bemcaptar esse aspecto da questão é necessário ter em conta alguns traços maisamplos da escravidão. O homem formado dentro desse sistema social está to-talmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase nãopossuindo hábitos de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é pra-ticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limitaextremamente suas ‘necessidades’. Sendo o trabalho para o escravo uma mal-dição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de seu salário acima de suasnecessidades – que estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo –determina de imediato uma forte preferência pelo ócio”. Surpreendente, isso.Acabamos de descobrir, com a ajuda de Furtado, que os escravos se tornaramaristocratas com a abolição.

20 Essa “política” parece ter alcançado o seu ápice quando do episódio doRio da Guarda, no governo de Carlos Lacerda, no início dos anos 60, quandohá sérias suspeitas de que moradores de rua foram lá atirados, vivos ou mortos.Lacerda foi um político sagaz, emérito conspirador, como fica claro em seulivro, Depoimento (1978), que defendia uma política semelhante a estabele-cida posteriormente por César Maia na prefeitura da cidade em dois mandatoscumpridos (1993-1996 e 2000-2004). Se este não parece ter chegado ao pontode afogar mendigos, defende uma política de extermínio e tomou como tarefamaior de sua primeira gestão como prefeito a “limpeza” das ruas, devolvendo-a

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sub-humanos, pessoas que viviam em condições não considera-das civilizadas. Tome-se um mapa com as áreas que foram sendopovoadas maciçamente durante o século XX por esses “foras-da-lei”. Lá, há áreas vazias com nomes genéricos, de acidentes ge-ográficos, as “novasterrae incognitae” de Jean-Christophe Rufin(1996). Nesses locais, em tese, não há ninguém, ou não deveriahaver21. Oficialmente, não há. Num paralelo, são como certas re-giões africanas nos mapas europeus de 1932, como o do Atlas deSchrader et Gallouedec22, citado por Rufin (idem), “regiões inex-ploradas”, nas quais ninguém vai, a não ser seus moradores – que

ao “povo”. Isso significou repressão feroz ao comércio de rua e o aumento doaparato de segurança para livrar o “povo” do convívio com os pobres.

César Maia iniciou sua carreira política no Rio de Janeiro como secretáriode Finanças de Leonel Brizola, durante o primeiro governo deste, de 1983 a1987. Era, então, filiado ao PDT. Saiu do partido para disputar a prefeitura, em1992, pelo PMDB. Também deixou essa agremiação para se filiar ao PartidoTrabalhista Brasileiro (PTB), uma espécie de “sigla de aluguel”. Ainda nãofeliz, trocou mais uma vez de legenda e foi, pouco depois de perder a eleiçãopara o governo do estado, em 1998, para o Partido da Frente Liberal (PFL). Estánele, pelo menos até hoje. Cid Benjamin (1998, p. 79) assim o define: “Ele édaquele tipo de político que assume tal ou qual posição não porque a considerejusta, mas porque com ela pode lucrar em sua carreira. É tudo uma questãode oportunidade ou, o que seria mais preciso, de oportunismo político. ComoMaia achou que os principais líderes da direita estavam ficando ultrapassadosno Rio, dispôs-se a vestir essa camisa e ocupar o espaço. Por ser extremamentevaidoso e gostar de mostrar um suposto caráter científico em tudo o que faz,não escondeu as razões de sua opção pela direita (...).”Em 3 de outubrode 2004, foi reeleito para o seu terceiro mandato na administração municipalcarioca.

21 No anexo 3 temos dois exemplos. Vemos a área na qual está a Rocinha,provavelmente a maior favela de todo o planeta, com aproximadamente 200mil habitantes, vazia, e a área na qual fica a favela do Vidigal, também semqualquer indício de vida. Não há ruas nem, conseqüentemente, registros depessoas vivendo lá. Essas pessoas não existem oficialmente, a não ser como“bandidos”. O crime é praticamente a única possibilidade de que essas áreas eessa gente sejam reconhecidas, ainda que do “lado do mal”. A fonte é o “LiatãoGrande Rio 2002”, um catálogo telefônico do Rio de Janeiro, publicado pelaOESP.

22 Consultar o anexo 3.

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não contam, pois não são considerados “gente” – e, muito mal,a força policial, praticamente a única instituição estatal a prestarseus (des)serviços ali.

No início do século XX, as condições desses “renegados” jánão eram boas, porém o Estado sempre conseguia piorar mais ascoisas. Janine Miranda Cardoso (2002, p 19) relata como, na áreada saúde pública, isso aconteceu:

Durante as três primeiras décadas do século XX,processou-se um movimento vigoroso de controle so-cial, em especial das camadas populares, dentro dasexigências do processo econômico de afirmação e in-serção do país na ordem capitalista, primeiro comoagro-exportador, depois viabilizando a implantaçãodo capitalismo industrial. Nesse período, foram tam-bém estabelecidos fortes vínculos entre os campos dasaúde e da educação, com a interpenetração de conhe-cimentos, modelos e práticas, renovados permanente-mente, até os dias atuais, sempre no contexto de de-terminadas conjunturas sócio-históricas, paradigmasde conhecimento e modelos de intervenção sanitária.

Naquela época,educar, higienizar, sanear23 es-tavam na ordem do dia não apenas como interven-ções técnicas, embora não prescindissem dessa prer-rogativa. Eram ações indispensáveis à salvação na-cional, oriundas do saber científico e portadoras deuma “pedagogia civilizatória” capaz de plasmar umanova percepção da realidade, romper com o passadocolonial e introduzir comportamentos e atitudes con-formes ao ideário de ordem e progresso. Tais atribu-tos não só qualificavam positivamente a identidade demédicos e educadores, como vinculavam seu destinoao Estado – principal interlocutor e espaço de atua-ção.

23 Grifo da autora.

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O alvo das medidas policiais e sanitaristas era, como demons-tra Vera Malaguti Batista (2003, p. 37) as “(...) classes perigosas.Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controlesocial no meio urbano e também por serem consideradas propa-gadoras de doenças”24 .

A autora mostra ainda como o “medo da rebeldia negra” foi,e continua sendo, o discurso de anteparo para a construção daordem burguesa no país, ou, em outras palavras, o anteparo fun-damental para a implantação do modelo civilizatório europeu, es-sencialmente excludente, pois se define assumindo a fala da ví-tima contra as vítimas de sua belicosidade. O negro pobre funci-ona assim como o “bárbaro”, aquele que não fala, balbucia algumdialeto incompreensível para a coletividade letrada, aquele quecorporifica o mal, o primitivo, o sujo, o doente, o feio, aquele quenão deveria existir, mas persiste25 . Foi essa gente que passou ahabitar predominantemente as áreas que até hoje são “manchasbrancas” nos mapas, os mesmos que formam os “bandos” queagora “aterrorizam a população carioca”. Falando em “bandos”,por que não recordar Roland Barthes (1972, p. 86), quando em-preende a tarefa de dar sentido político ao “vocabulário oficial dosassuntos africanos” do Estado francês? Eis um trecho ilustrativo,que pode ser aplicado com justeza às autoridades cariocas:

24 Nesse trecho, ela refere o livro: CHALHOUB, Sidney. Cidade fe-bril:cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1996. Esse trabalho trata das “operações policiais” realizadas no Rio deJaneiro por iniciativa da Corte Imperial, na segunda metade do século XIX,para o combate às habitações coletivas e às epidemias. Ali, com o aval dossanitaristas, nasciam as “classes perigosas”.

25 As políticas de controle da natalidade, muito em voga entre algumas insti-tuições médicas principalmente nos anos 70/80 falavam da iniciativa burguesade eliminar o problema do crescimento da população de pobres – eminente-mente negros – tentando evitar que nasçam. Logo após eleito para o seu ter-ceiro mandato na administração municipal do Rio, César Maia ressuscitou essediscurso, alertando que falava em “planejamento familiar” e não em “controleda natalidade”. Um eufemismo, ao que tudo indica (ver anexo 4).

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BANDO (de foras-da-lei, rebeldes ou condenadosde direito comum) – Eis um exemplo típico de umalinguagem axiomática. A depreciação do vocabulá-rio serve aqui, de um modo preciso, para negar umestado de guerra, o que permite eliminar a noção deinterlocutor. “Não se discute com foras-da-lei”. Amoralização da linguagem permite assim deslocar oproblema da paz para uma mudança arbitrária de vo-cabulário. Se o “bando” for francês, é sublimado sobo nome decomunidade.

Nestes termos, com essa “honestidade conceitual”, como a si-tuação poderia ser diferente? Como lembra Jesus Martin Barbero(2001), o que é determinante não é tanto o desequilíbrio social,mas a absoluta falta de solidariedade dos mais aquinhoados comos miseráveis. Foi por compreender isso que Herbert de Souzapropôs, há alguns anos, um programa de assistência social comoo “Natal sem Fome”, abraçado pelo governo do presidente LuísInácio Lula da Silva com o nome de “Fome Zero”. No entanto,boas intenções nem sempre compram o paraíso e ninguém me-lhora o caráter por assistir a um filme bíblico ou fazer doações.A inexistência de solidariedade é estrutural, fala por seus interlo-cutores. É maior que eles, maior talvez que o próprio sistema deacumulação capitalista. “Ama a teu próximo como a ti mesmo”,aconselha o ideário cristão. Não há maior prova de insensibilidadecom o outro do que projetar a si mesmo nele. Se não houver cor-respondência – o que é inevitável, pois ninguém pode correspon-der ao desejo do outro sem destruir a si mesmo –, o amor acabajunto com a proximidade do próximo. Trata-se de uma “blasfê-mia” que bem ilustra o caráter especular da cultura mediterrâneaincorporada pelas classes médias: somente amo aquilo que possoter ou ser. Não é à toa que o rapper MV Bill fala do paradoxo docristão que discrimina o diferente26. Não há, na verdade, nenhum

26 “É muito confuso, é muito sinistro/ quem causa a miséria é quem diz teramor à Cristo./ E com seu ar superior não tem respeito pelo gay, pelo idoso,

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paradoxo. Esse foi o espírito que animou a colonização européia.A máxima cristã lhe cai bem.

A tal “violência” não é nenhuma novidade, nem muito me-nos incompreensível. Vem de longo tempo, mas apenas na últimadécada se tornou assunto, pois ultrapassou a “limes”27 , ou seja,por ter se expandido das favelas para o asfalto, fazendo com issoa festa da imprensa com o seu fetiche do “crescimento dos índi-ces de violência” na cidade28 . Essa violência sempre foi “cres-cida” nas favelas e periferias, principalmente quando a polícia lácomparece para “manter a ordem”29 . A novidade é a expansãodos atos agressivos e violentos para o asfalto, para o cotidiano daclasse média, que ora é atacada pelos “bandidos”, ora é encon-trada pelas balas “perdidas” do “jogo” entre “polícia e ladrão” ouentre “ladrão e ladrão”30 . O saudoso Rio do bom humor e da con-vivência pacífica jamais existiu a não ser para uma pequena elite

pelo pobre, pelo preto”. O trecho é do rap “Só + 1 maluko”, e está no cd “KLJay na Batida, volume III”, produzido pela 4P, uma empresa do próprio KL Jayem parceria com outros rappers, em 2001. O mesmo rap está no cd de MV Bill,“Declaração de guerra”, produzido pela BMG com o selo Natasha Records elançado em 2002. Neste último, a música tem o nome de ”Camisa de Força”.

27 Designação das fronteiras do Império Romano. Fora da“limes” estavamos “bárbaros”.

28 Consultar o anexo 5. Não há, pelos índices expostos, aumento significa-tivo a não ser dos “autos de resistência” policiais. E todos sabemos bem o queisso significa: execuções sumárias.

29 É claro que “manter a ordem” é um eufemismo que esconde a realidadeexposta nos relatórios citados na nota 8. .

30 No dia 15 de março de 2003, segundo matéria da Rádio CBN (CentralBrasileira de Notícias, uma das emissoras das “Organizações Globo”), a go-vernadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho, lamentava a mortede pessoas por balas perdidas no Rio de Janeiro. No entanto, ela alegava queo Estado também perde quando morrem policiais e prometia intensificar a po-lítica de Segurança Pública. Eis aí, com uma clareza estonteante, o desprezodo Estado por aqueles que deveria proteger. Mais que isso, um exemplo deque o Estado não só não protege, como está contra o cidadão. Para isso, usaa polícia e lamenta mais a perda de seu efetivo bélico do que de “civis”. Isso,para sermos generosos com uma declaração dessa natureza. A matéria foi aoar às 15h35m.

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e, principalmente a partir dos anos 90, os acontecimentos enfeixa-dos pelo conceito midiático de “Violência” vieram apenas trazer o“retorno do recalcado”31 , o elemento que sempre esteve ali, masque era tratado como algo distante, como assunto de jornal popu-lar, de imprensa marrom. A partir de então, ganha as páginas dosjornais “respeitáveis”, voltados para a classe média.

Para entender o que se passa no Rio de Janeiro contemporâ-neo talvez seja interessante lembrar o que diz o Mefistófeles deGoethe (1987, p. 202) ao lamuriento Fausto, que se remoía deremorsos por ver Margarida condenada à morte pelos feitos dosquais ele se sentia mais culpado do que ela: “Ora, aí estamos denovo nos limites da nossa razão, onde vós outros homens per-deis de todo a cabeça. Para que te associas conosco, se te fa-lece a necessária força? Queres voar, sendo sujeito a vertigens?Procuramos-te nós a ti, ou tu a nós?”

O que queriam os agentes ruidosos e os silenciosos cúmplicesdesse “massacre civilizatório”? O que afinal se poderia esperarda reclusão do “povo preto”32 em guetos como as favelas, ondea violência de um sistema arrogante e excludente se reproduziuao extremo, até chegar aos nossos dias a um paroxismo realmentedesnorteante? Gerações e gerações de gente apanhando e sendoapenas reconhecida na humilhação, no escárnio ou, na melhor dashipóteses, com uma bandeja e um pano de chão nas mãos, só nãoreagiria se não tivesse qualquer dignidade, nenhum sangue nasveias, ou se tivesse à sua disposição uma explicação lógica e con-vincente para esse massacre, o que não ocorre, pois o discursodemocrático-liberal garante igualdade para todos. Neste ponto,podemos lembrar a sabedoria oriental da interação entre opostos,a constante luta entre yin e yang. Com esse instrumental, pode-remos entender que o chicote tem volta, e esta se dá no lombo dequem mandou dar.

31 Trata-se de um termo psicanalítico usado para designar o reaparecimentode elementos “recalcados” ou “reprimidos”, ou seja, postos para fora do “eu”de forma a não estorvar a organização deste.

32 Como preferem referir os rappers como Xis, KL Jay e outros.

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A sociedade carioca, pelo que observamos, foi fundada sobreuma lógica excludente, com boa parte da população – predomi-nantemente negros e nordestinos – fora do “jogo” a não ser comoeternos figurantes de cenas que oscilaram entre o escravagismoe a crônica policial. E tudo isso, diferentemente do que ocorrenos Estados Unidos ou na Europa, sem que sequer um resquíciode preconceito racial ou étnico fosse assumido. A nossa “demo-cracia racial”, a mistura entre classes e etnias que deslumbrouStephan Zweig (1956) e outros ilustres visitantes, nunca passoude um conluio entre dominantes e dominados, agressores e agre-didos, senhores e escravos, que sustentavam e mantinham umaestrutura “alterofágica”33 , ou seja, de fagocitação da alteridadepresente nessas relações sociais, sem se dirigir diretamente a ela anão ser em referências cruzadas, na denegação do “Não é que euseja racista...” ou na afirmação perversa da existência de “pretoscom alma branca”.

As relações sociais traziam, embora sem a rigidez caracterís-tica da europeinidade, burguesa a mesma lógica: cada qual temo seu lugar, e deve ser tratado como tal. Ao branco, “berços deouro”, esporte, bancos universitários e empregos garantidos. Aonão-branco, manjedouras, valões, malandragem, crime, as ruas e,aos que tentavam entrar no “jogo”, trabalho duro, muito duro, pes-simamente remunerado. Enquanto as referências subjetivas pude-ram se sustentar num certo feudalismo tardio, com reis fictícios eescravos reais, no qual o questionamento da autoridade era indíciode desajuste e motivo de perseguição e encarceramento, tudo an-dou “bem”. Numa sociedade que se complexificou e se viu, aindaque na periferia, numa “aldeia global”, recebendo informaçõessobre o que acontecia no resto do mundo e se vendo influenciadapor elas, com o acirramento do “jogo” econômico com a chegadado bom negócio das drogas e da corrosão da civilidade iluministapelo efeito deletério da lógica do consumo, não havia mais comosustentar os jogos de esconde-esconde semântico que a caracteri-zaram do início do século até as suas últimas décadas. De uma

33 Nos termos de Muhammed Elhajji (2003).

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hora para outra, aquilo que era fundo se tornou figura e passou aexigir tratamento adequado à sua nova condição. O que era pré-conceito foi se formalizando enquanto conceito em movimentosde emancipação étnica e de confronto discursivo à velha ordem,e gerou uma situação de conflito direto entre blocos de poder:de um lado, a “sociedade organizada”, com suas classes médiasde “vida comedida e equilibrada”; de outro a “sociedade desor-ganizada”, os pobres que, ainda hoje, demonstram que a única“organização” que lhes resta é a que se concentra em torno dailegalidade, hoje bem mais lucrativa com o grande negócio dasdrogas ilegais. Fora dela, resta a “gente ordeira e trabalhadora”que costuma apanhar calada.

Cremos que não há o que ponderar sobre as causas do surgi-mento de um ambiente de violência tendo como foco de difusão aBaixada Fluminense e as favelas cariocas. O pensamento causalnão nos ajudará muito, simplesmente porque pondera com baseno modelo da árvore, citado por Gilles Deleuze e Felix Guattari(1995), a violência, assim como o crime, seria um dos ramos,um dos “galhos” de uma sociedade compreendida como o grossoe nodoso caule que se expande em ramificações. Assim, procu-rar causas é como ficar rodeando o problema quando o desejo émesmo o de serrar o “galho”.

Não há causas, mas sim um sentido a ser decodificado. Este,nos salta aos olhos. Trata-se da concentração da violência sofridapor décadas, somada aos rancores de um povo escravizado quenão conseguiu legar nenhum bem material para sua descendência,que se difunde não de forma desordenada, como barbárie, masexatamente como mandou o mestre. Segue os mesmos rumos játraçados pelos colonizadores, utiliza seus instrumentos e veneraos seus deuses, aparentemente não para corroer a ordem social,mas para dela participar. O que a violência dos pobres demonstrade mais grave é que a “civilização” se implantou definitivamenteentre nós. Este sim é o problema, o verdadeiro problema.

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Capítulo 2

Vivendo e aprendendo ajogar: dois pilares subjetivos

do ocidente e a dicotomiasociedade x comunidade

Para compreender a situação de violência urbana no Rio de Ja-neiro não basta saber que a configuração socioeconômica presentenessa cidade contribuiu muito para a sua eclosão. É preciso pene-trar na subjetividade que engendrou essa configuração, a mesmaque a sustenta e reproduz. Dedicados a essa tarefa, empreende-remos uma breve incursão às origens da subjetividade ocidental.Cremos que apenas desse modo poderemos dar sustentação àselucubrações a que nos dedicaremos no capítulo 3, dedicado adesvendar o mundo subjetivo contemporâneo.

Neste capítulo, vamos rapidamente até a Atenas pós-democrá-tica para pontuar os elementos fundamentais para a estrutura dasubjetividade que caracteriza uma sociedade como a carioca. Te-mos claro, desde já, que vamos operar um recorte na realidadesubstancialmente complexa desse tipo societário e não há qual-quer intenção de esgotar o assunto. Uma sociedade como a doRio de Janeiro é marcada por inúmeras vertentes culturais, e se

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tentássemos uma abordagem que as levasse em conta, provavel-mente acabaríamos escrevendo um tratado extenso e nos desvi-aríamos de nosso percurso. Vamos, assim, destacar aquela queconsideramos preponderante para compreender o modo de vidahegemônico nessa sociedade. Falamos da cultura burguesa, carac-terística das classes médias, tanto das suas facções mais próximasao poder quanto das mais distantes.

Dois tópicos são importantes para destaque. O primeiro é oda referência da razão como organizadora subjetiva, e por isso va-mos à Grécia dos filósofos, tomando Platão com especificidade.O segundo se remete ao campo da fé, da religiosidade, focandorapidamente a crença cristã para apreender uma de suas caracte-rísticas mais marcantes que sustentam a subjetividade ocidental.O monoteísmo, incorporado à tradição ocidental com a escolás-tica, se constitui como um modelo subjetivo da maior importân-cia, principalmente quando falamos do Rio de Janeiro, colonizadopelos católicos portugueses e que teve nessa abordagem anímicaa sua iniciação para o mundo ocidental.

Para melhor situar nosso ponto de vista, em seguida vamosoperar uma diferenciação entre “Sociedade” e “Cultura”, utili-zando uma atraente teorização sobre os “jogos” de uma e de outra.Entendemos que de posse desse instrumental, estaremos aptos aentrar na sala de espelhos na qual se dá o jogo identitário não ape-nas das sociedades centrais do mundo ocidental, como tambémdas periféricas, como o Rio de Janeiro.

2.1 Aquele mundo distante que governaeste, tão próximo

2.1.1 A razão excludente

Pretendendo conhecer os pilares da subjetividade européia, nãohá como não recuar até a antiga Grécia, mais precisamente àpolisateniense. Havia uma efervescência intelectual naspolis gregas,

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notadamente na Jônia1 , e Francis Wolf (1996, p. 68) descrevebem a totalidade epistemológica que pontuou o aparecimento dosistema de pensamento pautado na ordem racional que influencioutoda a história do Ocidente:

Designa-se assim o aparecimento de uma novaordem do saber que organiza conjuntamente novoscampos de conhecimentos, que supõem implicitamente,novos modos de validação e reconhecimento dos dis-cursos verdadeiros, entre os quais se contam a de-monstração matemática, que se formaliza com Talespor volta de 600 a.C., a investigação física e cosmo-lógica, que na mesma época se afasta do mito entre osfísicos da Jônia, a investigação histórica, que rompecom a lenda e adquire um caráter sistemático comHeródoto. É também a época em que se elabora umsistema de direito civil e penal que nada mais deveaos valores religiosos, como a pureza, ou às práti-cas rituais, como o ordálio2 , e em que se constituiigualmente uma nova economia da prova judiciária,fundada na argumentação e na investigação dos fa-tos. Para o coroamento de tudo, nasceram, como sa-bemos, os primeiros grandes sistemas filosóficos.

Pode-se perceber, assim, que toda uma nova estruturação sub-jetiva estava sendo instaurada no período em torno do quinto sé-culo antes de Cristo, tendo sido “coroada”, como afirma Wolf,pelos sistemas filosóficos metafísicos que tiveram sua origem nasproposições de Sócrates, transmitidas pelos escritos de Platão.A lógica de apreensão do mundo repousaria, a partir dali, numa

1 Região nas costas da chamada Ásia Menor na qual se formaram aglome-rações urbanas de intensa atividade cultural e intelectual. A cidade de Atenas,na Ática, teria sido fundada pelos jônios.

2 Segundo Antônio Houaiss (2001), prova judiciária feita com a concor-rência de elementos da natureza e cujo resultado era interpretado como umjulgamento divino; juízo de Deus.

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inequívoca vocação para a redução do campo da vivência ao planodo pensamento, sendo este entendido como uma atividade abso-lutamente livre de qualquer contato com a experiência terrena.Esta era admitida apenas como reflexo de um mundo distante, oMundo das Idéias, no qual tudo seria ordenado e essencial, per-feito e eterno.

O quadro político no qual surgiu essa iniciativa era tenso epleno de disputas, de alguma forma aberto a incorporar frentessubjetivas, com os questionamentos sofísticos alcançando um pa-roxismo ao afirmar a impossibilidade de se aduzir a Verdade, umconceito que surgia enquanto referencial distante, na medida emque era uma projeção da perfeição, e próximo, na medida em queera presa do poder político. O que os sofistas pretendiam era re-lativizar esta proximidade e afastar definitivamente aquela distân-cia. Eram representantes da classe média ateniense e utilizavamcomo estratégia de pressão sobre a tirania o poder do discurso,que poderia afirmar as verdades que bem quisesse, posto que aVerdade não podia ser afirmada a não ser em momentos especí-ficos, trazendo proveitos a quem a proclamasse com mais habili-dade retórica, e os tiranos não eram, via de regra, bons retóricos.Os sofistas eram cria da democracia grega, um regime construídoapós a experiência terrível da dominação aristocrática em Atenasque causou estragos terríveis na vida de todo aquele que não fossearistocrata. Com a Guerra do Peloponeso3 , e a aliança entre essesaristocratas e os da lacedemônia, retoma-se essa dominação, e osestragos foram todos para os cidadãos.

Vejamos, rapidamente, como se chegou à democracia em Ate-nas. Há algo em torno de 3.000 anos, alguns jônios cruzaram omar Egeu em busca de terras, se estabeleceram em pequenas al-deias e, quase dois milênios mais tarde, fundaram Atenas – se-

3 Conflito entre Atenas e Esparta que durou vinte e sete anos. A origemda guerra pode ser reportada às divergências entre essas duas cidades, e tudoindica que eclodiu no momento em que Atenas ensejou, através da Liga deDelfos, a união daspolis gregas contra a ameaça persa. Uma desavença entreduas cidades rachou a Liga e deu ensejo ao conflito, vencido por Esparta.

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gundo a narrativa mitológica, por exemplo a coletada por ThomasBulfinch (1962), o herói Teseu teria fundado a cidade ao unificaros atenienses contra a Creta do rei Minos, depois de vencer o Mi-notauro no labirinto com a ajuda da filha de Minos, Ariadne. Ofortalecimento de Atenas se deu pela incorporação das diversasaldeias de colonizadores, com uma casta de proprietários, enri-quecida com os recursos obtidos com o lucrativo cultivo de uvas eoliveiras, assumindo o controle político. Se os pequenos proprie-tários não tinham acesso a esse cultivo, que demandava grande in-vestimento, também tiveram contundentes prejuízos com a quedado preço do trigo, por conta das importações, custeadas exata-mente pelos mais ricos, e empobreceram, ficando a mercê dosnobres, que tomavam posse não somente de seus bens, como desuas vidas.

A revolta era iminente e as medidas adotadas para contê-la– denominadas draconianas por terem sido ditadas pelo arconte4

Dracon5 – eram duras e cruéis, mais alimentando do que arrefe-cendo a agitação. Estamos já no século VI a.C., e os revoltososconseguem um importante aliado num outro arconte, Sólon6 , queempreendeu uma reforma que atingiu diretamente a nobreza, ins-taurando o que ficaria conhecido como o sistema democrático degoverno. O Arcontado deixou de ser privilégio de poucos e todocidadão podia concorrer ao posto de arconte, por eleição. Esse sis-tema foi ampliado por Clístenes7 e possibilitou a idade de ouro dapolis ateniense, freada pela guerra do Peloponeso e praticamente

4 Os chamados “arcontes” eram a alta magistratura oligárquica de Atenas.Em número de nove, eram nomeados pelo Areópago, o conselho dos aristocra-tas – os ditos eupátridas (de bom nascimento).

5 Foi o legislador que tentou, através de leis severas, “impor a ordem”.6 Legislador ateniense que desarticulou definitivamente as leis “draconia-

nas”. Foi o criador do Conselho dos 400, que funcionava como um senadoque elaborava as leis. Estas, por sua vez, eram ratificadas em assembléias àsquais os cidadãos tinham acesso. Relegou o Areópago às funções judiciárias,enquanto o Arcontado assumiu o poder executivo.

7 Clístenes democratizou ainda mais a legislação de Sólon como forma deevitar o retorno do poder aristocrático em Atenas.

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fulminada pela aliança entre Esparta8 e a aristocracia insatisfeitacom a perda de poder que a democracia lhe impunha.

Como já referimos, entre os defensores da democracia esta-vam os sofistas, que praticavam a retórica como uma forma dedisputa de idéias fundada na habilidade da argumentação, muitoprezada pelo espírito democrático ateniense. Essas figuras em-blemáticas do sistema democrático foram os alvos preferidos dosfilósofos aristocratas. Sendo representantes das camadas popula-cionais excluídas do poder até a institucionalização da democra-cia, de nenhuma forma eram os perversos que andavam a “de-sencaminhar a juventude” com algum“argumento ou raciocínioconcebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, que,embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, narealidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e delibe-radamente enganosa”(HOUAISS, 2001). Isso, aparentemente,quem fazia era a maiêutica, pois a sofística jamais se propôs al-cançar a Verdade, se assumindo enquanto retórica. Carl Grimberg(1967, p. 61), trata do tema e define o sofista Protágoras:

8 Esparta foi uma cidade com um governo militarista oligárquico onde aparticipação democrática não era o preceito mais importante a ser consideradona ordenação sócio-política. Em vez disso, o Estado espartano primava peladisciplina imposta pelos espaciartas – o grupo de nobres guerreiros ao qualera destinada a função de defender a cidade, os únicos a ter direitos políticos– aos demais, isto é, aos periecos e aos hilotas. Sendo um digno represen-tante da aristocracia, que acumulara perdas com o jogo democrático, é possívelcrer que o desafio de Platão era elaborar uma estratégia para viabilizar a reto-mada do poder com a sabotagem eficaz da democracia ateniense. Sua inusitadaperspicácia o possibilitou formular o que os espartanos realizavam no campofísico, do corpo e das armas, num campo de projeção imaginária, no qual todadivergência seria impura e deveria ser eliminada assim como os inimigos doslacedemônios. Para Rodolfo Mondolfo (1968), se havia intensos conflitos en-tre democratas e aristocratas em Atenas, a balança tendeu a favor dos segun-dos durante a Guerra do Peloponeso e a ocupação espartana em Atenas. Elepercebe uma aliança entre os oligarcas militaristas de Esparta e a “minoriafilo-oligárquica” ateniense, e essa aproximação parece ter sido determinantena ascensão dos valores da aristocracia que tinha em Platão e Xenofonte seusprincipais “intelectuais orgânicos”.

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En su acepción actual, la palabra sofista designaa un hombre que con igual facilidad puede probar laverdad que la falsedad de la misma afirmación. Estadefinición no vale, desde luego, para los primeros so-fistas. Con el tiempo, sofista, lo mismo que tirano,adquirió un sentido peyorativo que no tenía en su ori-gen. En realidad, el vocablo significa “sabio”. En laépoca de Pericles hubo en Atenas y en otras ciudadesgriegas profesores de filosofía que se apodaban ellosmismos sofistas. Protágoras era uno de ellos. La sig-nificación intelectual de los sofistas fue enorme; hi-cieron posible en este tiempo que la ciencia se divul-gara, enseñando a pensar al pueblo. El nuevo períodoiniciado por ellos es una época de intensa vida inte-lectual, semejante a la corriente cultural que hizo delsiglo XVIII el siglo de las luces.

A estratificação social era bem marcada em Atenas, como nasdemais cidades antigas conhecidas. No entanto, a participaçãopopular no círculo do poder era relativamente maior do que nes-tas, pois uma parte da classe média conseguia acesso ao poderpolítico. Henry Thomas (1952) refere que o motivo do ataquepersa, no século V a.C. – no qual ficou eternizada a batalha deMaratona9 –, haveria sido a preocupação dos Persas com a expe-riência política da democracia grega. Não era bom para os nobressaber que em algum lugar a nobreza vinha sendo afrontada com orisco de divisão do poder político. Não era nada satisfatório saberque havia uns sujeitos espalhando idéias estranhas, nas quais erameles próprios os nobres, e não os verdadeiros nobres. Agindo emoutras linhas de força que não as militares, estavam criando umnovo conceito de luta: a luta política manifesta no sistema demo-crático. Foi esse campo que precisou ser “tomado de assalto” peladialética socrática. Segundo Muniz Sodré (1999, p. 13/14),

9 REFERIR.

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Essa divergência [dialéticosversussofistas] não éum mero jogo acadêmico. É um embate em torno deposições sociais diferentes quanto a problemas cen-trais na vida grega. A retórica dos começos pretendiaadequar a linguagem à reivindicação de propriedadesfundiárias (anteriormente expropriadas por tiranos).As astúcias e dissimulações (depois condenadas porPlatão como ‘má retórica’) tinham, assim, original-mente, pleno sentido no campo judiciário e político.No tempo de Sócrates, entretanto, mudam as con-dições de sociabilidade, e surge a exigência de umatécnica do pensamento em comum, cujo objeto é averdade. Trata-se aí não mais de convencer a qual-quer custo, mas de formar almas pelo discurso, paraintegrar o cidadão na pólis. A isto Platão chama depsicagogia – a ‘boa retórica’, a dialética.

A democracia ateniense tinha características discriminatóriase se dirigia apenas a uma parcela da população – os que eram con-siderados cidadãos – excluindo estrangeiros, escravos e mulheres.No entanto, a lógica propagada por Platão – o fiel discípulo de Só-crates, o “Pedro” que ergueu, pela escrita, o templo de Socrático– era ainda mais excludente e deixava de fora toda e qualquerprática de divisão do poder, sendo este exercido pelos adeptos dadialética, ou seja, aqueles que traziam em seus discursos a defesade uma conjuntura marcada pelo amor à sabedoria transcendentedas formas puras, ao conhecimento puro dos fenômenos, sem quequalquer saber sensível ou empírico tivesse lugar.

Sem essa localização histórica do campo onde nasceram ossistemas de pensamento, como o da heurística socrática – a mai-êutica –, estes jamais podem ser compreendidos no que têm demais fundamental, qual seja a busca de um estreitamento, nãoapenas do campo do conhecimento, como de toda a ideação epercepção, em benefício da ordem de cunho claramente políticoque se estabeleceu naquele momento histórico, numa formula-ção geradora de uma estratificação subjetiva que deveria repro-

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duzir a estratificação social. A Razão, por esse vértice, aparececomo um apêndice discursivo necessário para a justificação dosprocedimentos dos interesses de uma parte dapolis que, atravésdestes, obtinha privilégios e poder e, pelo discurso racional, im-punha sentido às suas práticas e as podia estender não apenas àpolis como ao conjunto do mundo grego e, como sabemos, aca-bou sendo influente na formação da subjetividade ocidental.

O discurso da Razão como o absoluto do conhecimento repre-senta uma das estrias mais profundas do imaginário europeu, hojedito ocidental e é o imã para o qual conflui o sentido nesse ter-ritório. Como estamos percebendo, esse marco deve ser compre-endido não somente tomando-se o sistema filosófico de Sócrates,Platão e Aristóteles, mas principalmente contextualizando-o naordem social instituída naspólis gregas – principalmente, comoacreditam Bertrand Russel (1947) e Rodolfo Mondolfo (1968),em Esparta. O mundo grego se dividia entre a democracia ateni-ense e o ímpeto guerreiro espartano, e a guerra do Peloponeso foium embate que resultou na vitória dos segundos e no fim da verveateniense.

Atenas, que até então representava uma singularidade no mundoantigo, perde seu encanto dionisíaco e passa ao apolíneo da tira-nia das armas, do poder econômico e do racional. Obturavam-seos espaços de comunicação com o “Outro”, e o campo de bata-lhas aberto pelos sofistas estava completamente anulado. BertrandRussel percebeu a inspiração espartana de Platão na sua obra clás-sica sobre a ordem social: “A República”. Gostaríamos de citarum trecho de um texto desse autor, no qual descreve a noção deJustiça presente na “República” de forma bastante esclarecedorapara nossos propósitos de desvendar as raízes da Razão enquantosenso subjetivo e de sua vocação discriminatória:

La palabra ‘justicia’, según es empleada aún enel derecho, se parece más al concepto de Platón queal sentido que se le da en la especulación política.Bajo la influencia de la teoría democrática hemos lle-gado a asociar la justicia con la igualdad, mientras

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que Platón no lo implica. La ‘justicia’, en el sentidode ser casi sinónimo de ley, como cuando hablamosde ‘Cortes de justicia’, se ocupa principalmente delos derechos de la propiedad, que nada tienen que vercon la igualdad (RUSSEL, 1947, p. 139).

A noção platônica de justiça parece estreitamente comprome-tida com o poder e sua manutenção, com um estado autoritáriono qual as grandes questões devem ser lançadas para o espaçoda especulação, a fim de desmanchar as discursividades nascidasna alteridade do jogo democrático. Para Platão, eram compatí-veis privilégios e justiça, pois compreendia,a priori, que haviahomens que mereciam esses privilégios e outros que não os mere-ciam. Os que os tinham, justificavam-nos exatamente por seremmais sábios, por terem, então, o primado da Razão. Eram superi-ores exatamente por isso, pela excelência de possuir, ao contrárioda maioria, o direito de ser os guardiões de um mundo de formaspuras e imaculadas. Essa noção se desenvolveu com uma forçainaudita na modernidade européia, com a tentativa insistente econstante de “limpar” o espaço vivencial, a ponto de ter produ-zido, ainda na primeira metade do século XX, a “Solução Final”nazista que, se como sugere Zygmunt Bauman (1998), trazia con-sigo uma inegável marca estética, possivelmente representava oparoxismo da iniciativa platônica de eliminar as “coisas fora dolugar” que ameaçam o mundo da limpeza e da ordem. A própriaimprensa, com sua “objetividade”, mantém esse campo metafí-sico ativo.

A criação de uma região imaginária, cuja realidade transcendea experiência sensível e estabelece um campo próprio de em-bate filosófico, inaugura um novo e inusitado tempo em que todoaquele que não aceitasse a necessidade de pensar a natureza pri-macial do ser – o inextricável fetiche não especificamente do pla-tonismo, mas da filosofia grega desde Tales de Mileto – ou quenão reunisse condições para tal – todos, menos o criador da grandeidéia e seus seguidores – estava fora do jogo social. Em outras pa-lavras, a aristocracia ganhava o direito de jogar todos os jogos em

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casa, no seu próprio campo, com regras próprias. O resto podeser entendido como uma espécie de legião de mortos-vivos po-líticos atados aos desmandos da vida sensível, do trabalho, semqualquer direito a não ser o de servir aos fidalgos. Uma “Solu-ção Final” implícita, que poupava a vida terrena para que alguémfizesse o trabalho “sujo”, mas matava politicamente.

Mas, afinal, o que se pode passar quando a experiência é con-siderada torpe, impura, e a verdade reduzida à pureza das medita-ções? A resposta é óbvia: nada, a não ser o simulacro, no real, daslinhas e círculos da geometria euclidiana ou da pureza da mate-mática de Pitágoras. O etéreo – que antes era apenas visualizávelpela religiosidade – passa a constituir-se como um espaço habi-tado por idéias puras, imutáveis e perfeitas, às quais apenas al-guns eleitos tinham acesso: os que despendiam todo o seu tempolivre para isso. Distantes da praticidade, as proposições dessesgênios jamais podem ser contestadas pela experiência. Os poetas,os artífices da paixão, aqueles que jogam com os limites do ra-zoável, ou todos aqueles que professassem o valor do sensível, ouseja, todos os “diferentes”, não aristocratas, deveriam ser banidosda República platônica. “Eu” 10 x 0 “Outro”. Não é à toa que,até hoje, dizer que alguém “tem razão” corresponde a lhe deixarprosa, atribuindo-lhe algo como a posse da Verdade, com todas asrepercussões que isso traz.

A história da Razão não se reduz, evidentemente, ao pensa-mento de Sócrates, Platão, Xenofonte ou Aristóteles – este cer-tamente o mais prolífico dos filósofos gregos, que se desviou dainocência do mundo das idéias platônico para aphysis, sem noentanto escapar do fetiche do ser universalista. Há, posterior-mente, um desenvolvimento hipertrofiado de discursos apensosa essa égide: a escolástica medieval personifica o “Demiurgo10”platônico e o “Primeiro Motor” aristotélico na divindade judaico-

10 Na precisa definição de Houaiss (ibidem), “(...) o artesão divino ou oprincípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modelae organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eter-nos e perfeitos.”

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cristã, a causa de tudo, o engendrador da realidade, a Razão tor-nada espírito santo; o cartesianismo de Descartes desenvolve oconceito da Razão como faculdade que dota o seu possuidor dacapacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso, o certo e oerrado, o bom do mau, estabelecendo o terreno fértil para a propo-sição iluminista; o kantismo estabelece o circuito da racionalidadecomo ordenador, a partir de seu relacionamento com o entendi-mento apriorístico, dos objetos do conhecimento; o hegelianismoprocede à materialização da Razão no “Espírito do Tempo”, avas-salador no seu percurso histórico, sempre com um sentido supe-rior ao que o indivíduo pode apreender, controlando o conjuntode indivíduos, que levariam uma existência coartada pela pressãodessa entidade fantástica. Além desses desenvolvimentos hiper-bólicos da Razão, outros tantos haveria a citar, como o de Hume,Leibniz, Spinoza, Fichte ou Schelling. O conjunto dessas propo-sições fetichistas constitui a herança grega que se desenvolveu nopensamento europeu, formalizando o imaginário moderno ao qualainda parecemos imantados. Tornou-se, assim, hegemônica a ló-gica restritiva desse pensamento fundado pela intenção de fechar,num mundo despregado da experiência, a própria experiência.

Parece claro que a doutrina da Razão surge como uma reaçãoà vivência da alteridade, às disputas acirradas no parlamento enas ruas. Alia-se ao poderio militar aristocrático da antes inimigaEsparta, para fundar uma república de tiranos, com a tirania darazão. Só que, na linguagem filosófica, tudo estava invertido, e ostiranos eram os outros. Como refere Friedrich Nietzsche (1948,p. 16):

O dialético tem na mão um instrumento implacá-vel; com ele, se pode agir como tirano; comprometea vitória do adversário. O dialético coloca seu anta-gonista na obrigação de provar que não é idiota; en-furece e ao mesmo tempo impede todo socorro. O di-alético degrada a inteligência de seu adversário. Nãoera a dialética de Sócrates senão uma espécie de vin-gança? (...) [Sócrates] descobriu uma nova espécie

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de combate e foi o primeiro mestre d’armas nas altasesferas de Atenas. Fascinava atiçando o instinto bata-lhador dos gregos. (...) [Sócrates] soube penetrar nossentimentos dos nobres atenienses. Compreendia queseu caso, que a idiossincrasia de seu caso, já não eramais excepcional. A mesma espécie de degeneraçãoia secretamente alastrando-se por todas as partes. Osatenienses da velha estirpe iam desaparecendo... Só-crates convenceu-se de que todo o mundo tinha ne-cessidade dele, de seu remédio, de seu tratamento, deseu método pessoal de conservação de si mesmo. Portodos os lados os instintos se tinham mostrado emanarquia; estava-se a dois passos dos excessos em to-das as partes; omonstrum in animoera o perigo uni-versal. “Os instintos querem converter-se em tiranos;é preciso descobrir umcontratiranoque os vença.”

Trata-se de um “cala a boca” político, mas com repercussõesculturais de grande importância. Marca a instituição de um “jogofinito”, cuja natureza vamos estudar adiante.

2.1.2 A fé absolutista

Assim como no caso da razão, falamos de um mundo paralelo,metafísico. A crença monoteísta funciona com o mesmo imã.Eliphas Lévi (1986, p. 49), um estudioso da cabala, pontua ainequívoca relação entre Deus e Razão:“No princípio está a Ra-zão, a Razão está em Deus, e Deus é a Razão11.′′

11 O tradutor do texto de Lévi (ibidem), Gilberto Bernardes de Oliveira, temum esclarecimento que nos é útil:“Nossa versão diz: ‘No princípio era oVerbo’, etc. Mas nem a leitura adequadamente feita pode propiciar o sentidooculto da passagem. O archée é a evoluta primordial que o Único inconscien-temente emana, o princípio de todas as coisas. O logos é a Lei da Evolução, arazão de todas as coisas, a própria causa das suas complexas inter-relações, oVerbo, a Força da Energia que por toda parte e em todos os momentos regulae é, ao mesmo tempo, a mola propulsora do universo.”

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A referência religiosa se remete a um mundo pós-morte, oualém-da-morte, uma realidade à qual apenas teríamos acesso de-pois que deixássemos este mundo, a vida, tal como Platão comseu “mundo das idéias”. Nesses mundos, ambos para lá da vida,não há instabilidade, não há problemas. As formas são perfeitas ea unidade garante a harmonia. Porém, suas estruturas terrenas sãorígidas demais para permitir que oscilações dinâmicas possam re-verter posições do pensamento. Cada oscilação é um problema aser resolvido, sempre com um agente perturbador a ser eliminado,geralmente as coisas do corpo, as coisas da vida. Curioso é queesse sistema apolíneo perdurou por milênios, relegando às som-bras fantasmagóricas o estado dionisíaco do gozo. E mais curiosoainda é perceber que exatamente quando o homem se achou final-mente livre dessa “praga”, é quando mais está presa dela, comona Sociedade de Controle pautada pelo discurso econômico, quepromete a liberdade no mesmo movimento em que a delimita.

A projeção de um mundo extraterrestre já estava presente mui-tos anos antes da noção grega de Razão, nos relatos mítico-religio-sos de uma tribo nômade conhecida como hebréia, cujo signifi-cado é “povo de além do Rio” (fala-se do rio Eufrates). Para oshebreus, haveria uma “pessoa” (BLOOM, 1992, p. 22) acima detodas as demais, não habitante deste mundo, do qual seria a cri-adora e gestora. Instaura-se uma ruptura com a crença dita pagãdo culto das forças naturais, o que passou a ser, com o desen-volvimento ocidental dessa idéia metafísica, algo absolutamentecondenável, pois ultrajante da Verdade divina. O caráter univer-salizante de toda e qualquer concepção monoteísta é inequívoco.Se só há um deus, só há uma verdade, e esse Deus, operador domecanismo que a engrendra, é, ele próprio, identificado como opróprio mecanismo. Nada persiste fora dele e, se existe, deve sercurado ou eliminado, pois que é impuro, mórbido, como n’ “ARepública”.

A existência e a persistência do monoteísmo como uma re-ferência fulcral para a sociedade criada pela civilização européiaé sinal que, surpreendentemente, os pilares mais firmes dessa ci-

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vilização estão exatamente no terreno arenoso da transcendência,ou seja, da metafísica. É certo que a filosofia ateniense que seimpôs hegemonicamente sugeria dirigir-se ao intelecto cognitivo,mas atirando-o para o reino das perfeições, no qual o próprio in-telecto acaba mimetizando-se em reflexo dessas formas num pro-cesso que adquiriria um caráter de possessão anímica. No caso dareligiosidade absolutista do monoteísmo, o terreno, por ser ins-tável, clamaria por referências sólidas, um “núcleo” no qual selançar amarras. “O” deus único foi a resposta encontrada pelosque demandavam essa segurança. A história dos judeus, comoaponta Paul Johnson (1995), é caracterizada pela instabilidade en-tre o desapego à segurança de uma localização terrena e o apegopor um pedaço de terra, como podemos notar na dicotomia entrea diáspora e a ânsia por retomar a Judéia. O “Outro” perseguidorencontra o “Um”, que protege da perseguição12.

O casamento com a razão, a outra referência do absoluto, aca-bou abrindo espaço para o desenvolvimento da transcendênciareligiosa ocidental como um sistema articulado, notadamente a

12 O monoteísmo parece ter, historicamente, o sentido de um enclausura-mento significacional para os hebreus – John Bowle (1964), fala de uma “con-cha hebraica” –, na medida em que a doutrina centrada num só Deus represen-tou, para a consciência judaica, uma defesa contra a desintegração diaspórica euma promoção inequívoca de uma identidade viabilizada na referência de um“pacto” da divindade com esse povo. Contra a iniciativa de vários hebreus deincorporar crenças e práticas mágicas de outros povos, o que traria uma ine-vitável desintegração do grupo judaico, como supõe Kurt Seligmann (1948), aconclamação ao monoteísmo seria uma tentativa de integração em torno de umlogoscomum. A crença judaica, assim, pode ser interpretada como uma proje-ção de um devir marcado pela tradição, no qual o passado e o futuro estariamligados numa interseção presentificada na “aliança” com Deus. Essa aliança,segundo Victor Hellern, Henri Notaker e Jostein Gaardner (2000, p. 99), se deusob a liderança de Moisés que, em contato direto com Deus, foi o seu agente:“Durante a travessia do deserto, Deus – Javé – deu a Moisés, no monte Sinai,as duas tábuas da Lei com os dez mandamentos a que os israelitas deveriamobedecer. Dessa forma, fez-se um pacto segundo o qual os israelitas deveriamreconhecer a existência de um só Deus, e em troca se tornariam o povo esco-lhido de Deus. Receberiam sua ajuda e seu apoio, desde que cumprissem oque lhes cabia no acordo e obedecessem às leis de Deus.”

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partir da Idade Média, com a Escolástica de Tomás de Aquino.Antes disso, fora a experiência mística das tribos hebraicas, nãohavia uma formalização consistente da crença num deus único,essa projeção fantástica que se agiganta para além da própria ra-cionalidade, requisitando, para si, uma posição acima desta, demodo a utilizá-la para o fim de melhor controlar o campo dosconflitos intersubjetivos, isto é, da alteridade. Tal formalização,bem podemos sugerir, vai retirar sua energia nos “favos e caldosquentes” do fervor da paixão sem, no entanto, jamais outorgar aesta o direito autoral. Do terreno arenoso da paixão nasce o pilarfirme da misticização absolutista, parceira inseparável da Razão.

Não podemos esquecer das condições históricas que viabiliza-ram esse movimento tão engenhoso. Se no caso da Filosofia Ra-cional de Platão pudemos perceber o quanto o militarismo espar-tano foi importante, quando tomamos a Igreja Católica, podemosdefinitivamente conceber que a transcendência etérea e a durezada dominação da força militar-estatal têm realmente mais em co-mum do que poderíamos imaginar. Vejamos que para conseguir afaçanha de fazer de um terreno instável uma base sólida, foi pre-ciso usar de uma artimanha política: a aliança da Igreja com oEstado absolutista e, posteriormente, com o Estado burguês. Jun-tas, essas duas entidades tão terrenas quanto a Escola Sofísticaou o Paganismo, selaram a investida institucional que agenciou aconstrução da subjetividade ocidental hegemônica. Com as má-quinas de controle unindo o céu e a terra, estava fechado o círculodo poder.

A formulação conceitual de transcendência parece identifi-cada com o projeto neoplatônico de consolidação de um espaçovirtual posto para além da realidade sensível, da experiência prá-tica. Embora tenha suas raízes na racionalidade platônica, essepensamento, que teve Plotino como seu mais destacado represen-tante, pretendia explorar exatamente a potencialidade transcen-dentalista da proposição platônica, tentando ir bem além disso.Como esclarece Richard Tarnas (2003, p. 103),

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No pensamento de Plotino, a racionalidade domundo e da busca do filósofo não era mais do queo prelúdio para uma existência mais transcendental,além da Razão. O Cosmo neoplatônico resulta deuma divina emanação do Supremo Um, infinito emseu ser, que está muito além de todas as descriçõesou categorias. O Um, também chamado o Bem, numtransbordamento de absoluta perfeição produz o “ou-tro” – o Cosmo criado em toda sua diversidade –numa série hierárquica de gradações, afastando-se docentro ontológico em direção aos limites extremos dopossível. O primeiro ato criativo é a emanação do Uma partir do intelecto divino ouNous, a sabedoria di-fusa do Universo, na qual estão contidas as Formas ouIdéias arquetípicas que causam e ordenam o mundo.Do Nousvem a Alma do Mundo, que o contém eanima, é a fonte das almas de todos os seres vivose constitui a realidade intermediária entre o Intelectoespiritual e o mundo da matéria (...).

Se existe o “Um”, deve existir um “Outro”, mas para ser des-truído pelo primeiro, que o criou. No mesmo ato da criação, o“Outro” gerado é pulverizado como sombra. Ora, depois de te-cidas as malhas do discurso do absolutismo – seja racional oudivino – é compreensível que, nas mesmas fibras que compõemo tecido, seja criado o seu oposto enquanto parte constitutiva desua lógica pragmática. No entanto, se tivermos que aprofundarnossos conceitos até percebermos as demandas imaginárias queconstituem esses dois pólos, teremos que admitir que é bem maisaceitável que o “Outro” tenha gerado o “Um”. Afinal, este surgea partir de uma necessidade prática, a de resolver conflitos, e aalteridade que perpassa a experiência conflitual é não somente oagente motivador como a primeira vítima do sistema absolutista.Como elemento constituinte da transcendência racional-religiosa,o “Outro” nasce num segundo momento, porém no plano da ima-nência do sistema, é seu elemento fundador.

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A aliança entre a divindade e a razão estava fortalecida porum construto discursivo hábil, que sedutoramente abriria as por-tas para o paraíso da verdade eterna, Deus. O transcendente seriasuperior à realidade sensível, um espaço idealizado no qual a per-feição absoluta imperaria, universalizante; enquanto a nós, aquiem baixo, na terra, na vida real, restaria a imperfeição e a picui-nha mundana. Restaria o Juízo, como uma entidade anímica quetem elasticidade suficiente para tocar os dois mundos, para sepa-rar o joio do trigo, constando o quanto este mundo deve àquele.Como afirma Immanuel Kant (1974, p. 269):

Poisunidade da natureza no tempo e no espaçoe unidade da experiência possível a nós é o mesmo,porque aquela é um conjunto de meros fenômenos(modos-de-representação), o qual pode ter sua reali-dade objetiva unicamente na experiência, que, comosistema, tem de ser possível também segundo leis em-píricas, se se pensa aquela (como deve ocorrer) comoum sistema. Portanto, é uma pressuposição trans-cendental subjetivamente necessária que aquela in-quietante disparidade sem limite de leis empíricas eaquela heterogeneidade de formas naturais não con-vêm à natureza, mas, pelo contrário, que esta, pelaafinidade das leis particulares sob as mais universais,se qualifique a uma experiência, como sistema empí-rico. Ora, essa pressuposição é o princípio transcen-dental do juízo. Pois este não é meramente uma fa-culdade de subsumir o particular sob o universal (cujoconceito está dado), mas também, inversamente, deencontrar, para o particular, o universal.

Logo, se o Juízo tem a propriedade de tocar os dois mundos,é apenas para ratificar a supremacia do transcendente sobre a ex-periência sensível. É o próprio Kant (1983, p. 33), quem melhordefine o âmbito do transcendental como uma referência supra-sensível:“Denomino transcendental todo aquele conhecimento

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que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nossomodo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possí-vel a priori” . A noção do apriorismo da transcendência já estavaem René Descartes como o fetiche da deidade:

(...) Toda la fuerza del argumento que me ha ser-vido para probar la existencia de Dios consiste en laimposibilidad de que mi naturaleza, siendo lo que es,concibiera la idea de un Dios sin que ese Dios exis-tiera verdaderamente. Ese Dios de que tongo idea,posee todas las perfecciones que nuestro espíritu pu-ede imaginar, aunque no le sea posible comprender alser soberano; no tiene ningún defecto ni nada que de-note alguna imperfección: luego, no puede engañar-nos ni mentir, como nos enseña la luz natural de nu-estro espíritu; el engaño y la mentira dependen nece-sariamente de algún defecto (DESCARTES, 1965. p.70).

Ora, não é impossível nem insensato trabalhar com essa re-ferência ainda nos dias de hoje. Dependendo-se do que se querconseguir ou alcançar, isso nos serve muito bem. Porém, se quere-mos investigar a subjetividade contemporânea que produz mons-tros como o “Império do Mal”, o terrorismo ou as facções e qua-drilhas de traficantes de drogas, isso não nos serve muito, a nãoser como objeto de estudo. Afinal, se formos abordar esses temascom o auxílio do mundo das idéias, da referência cartesiana ou doJuízo kantiano – como é de praxe entre alguns intelectuais, entreeles os jornalistas e os especialistas em segurança –, acabaríamospor considerá-los como “ruídos”, como elementos a ser defenes-trados para a conservação da ordem e da harmonia. O mesmopodemos dizer da referência religiosa, para a qual tudo o que nãocomunga da platitude do Ser Supremo é impuro e deve ser postopara fora do Reino, como ocorre na alegoria do Gênesis. Assim,para continuar a cerrar fileiras com os próceres da Razão ou comos profetas da religião teríamos que aceitar girar no mesmo lugar,

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como vem sendo feito há milênios no pensamento hegemônicoocidental.

Todos sabemos o quanto a aliança entre o poder político e acrença religiosa tem a capacidade de gerar facilmente estados deânimo exaltados, seja para “louvar” algo, seja para amaldiçoar –e, como já dissemos, a religiosidade, apesar de cultuar desbraga-damente o puro, a racionalidade do divino, tem suas raízes maisfundas no terreno arenoso e efervescente da paixão. A Igreja Ca-tólica da Idade Média e as seitas evangélicas que proliferam peloBrasil dão bons testemunhos da força dessa união. De “país ca-tólico”, cuja religião oficial era a mesma adotada no Império Ro-mano a partir de Constantino (273-337 d.C.), o Brasil assiste onascimento de um novo grupo social que tem como referênciaprecípua o culto religioso. Posto que as tendências católicas hámuito deixaram a política – presente no passado político nacio-nal, inclusive nas organizações de esquerda, a participação dastendências católicas no campo da representação política é hojepraticamente nula – o evangelismo assume a hegemonia na ali-ança entre política e fé, surgindo como uma corporação que iden-tifica o bem-estar espiritual com o bem-estar material, assumindode forma mais ativa a sua identidade secular com o modelo capi-talista de cultuar as riquezas materiais.

Tanto o catolicismo quanto o evangelismo têm em comumuma estrutura autoritária, centrada na vivência de um absoluto:o logos divino. A palavra de Deus é revelada aos integrantes des-sas crenças e, sendo a do absoluto, é a única representação daVerdade. Fora da palavra divina – manifesta no livro sagrado co-nhecido como Bíblia, dividido em Velho e Novo Testamento –não há verdade e, mesmo que se possa aceitar que possa haveralguma razão, esta é ímpia, herética, falsa em sua essência.

A crença na existência de um só Deus, onipotente, onipre-sente e onisciente parece ser uma clara idealização de um poderque emana de um centro e, ele mesmo, está na circunferência queo engloba, num contorno nirvânico que delimita as práticas narcí-sicas dos monoteístas. Trata-se de um processo que podemos en-

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tender através do que a psicanalista inglesa Melanie Klein (1978a)classificou como “identificação projetiva”, ou seja, o eu é o pontoe o raio da circunferência de seu mundo; não há espaço para aalteridade: aquilo com o que me identifico é aquilo que projetocomo sendo real. É a vivência do absoluto.

O monoteísmo, que, como confirma Mohammed Elhajji (2003a, p. 2) “pressupõe a exclusividade e a unicidade absoluta eabsolutista da Verdade e nega, de antemão, toda diferença, per-cebida como anomalia ou monstruosidade condenável e elimi-nável”, não é uma idéia exclusiva dos cristãos como os católi-cos e evangélicos. Os hebreus foram os primeiros a adotar essaestrutura de crenças absolutista, estabelecendo o que conhece-mos como o judaísmo, e também os muçulmanos adotaram essamesma modalidade de cultuar o transcendente. Ambas, porém,têm uma diferença fundamental com o cristianismo: não pregama catequização dos praticantes de outros sistemas de culto. O is-lamismo, por exemplo, assim se refere às demais religiões no seulivro sagrado, o Corão (citado por Mohamad Ahmad Abou Fares(1985, p 151):

Dizei-lhes: cremos em DEUS, no que nos temsido revelado no que foi revelado a ABRÃO, a IS-MAEL, a JACOB, às doze tribos, no que foi conce-dido a MOISÉS e a JESUS e no que foi dado aosPROFETAS, não fazemos distinção entre nenhum de-les e seguiremos submissos a DEUS (2a Surata, ver-sículos 136 e 185).

O judaísmo, assim como o islamismo, não parece interessadoem conseguir conversões entre os não adeptos, não se estrutu-rando de forma tão especular quanto o cristianismo. Como afirmaG. Neuburger (2004), diferenciando os conceitos de judaísmo esionismo,

O que é um judeu? É qualquer pessoa que tenha amãe judia ou que tenha se convertido ao judaísmo, de

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acordo comHalacha, a lei religiosa judaica. Esta de-finição, por si só, exclui o racismo. O judaísmo nãoprocura os convertidos, mas aqueles que se conver-tem são aceitos com base na igualdade.

O sionismo, para o autor, nada teria em comum com o ju-daísmo e seria um movimento de guetificação que está ligado auma noção de poder discricionário que expande sua força paraalém das fronteiras do Estado que o sintetiza: Israel. Para Neubur-ger (idem), o centro desse movimento está nos Estados Unidos, enão tem qualquer compromisso com o povo judeu:

Ao invés de prestar assistência às comunidadesjudaicas de outros países, os judeus americanos mobi-lizaram-se para se concentrar na ajuda ao estado si-onista, transformando os Estados Unidos na maiorfonte de poder e influência dos sionistas. Os sionis-tas, fiéis à natureza de seu movimento, contam comsuperioridade técnica e poder militar – fornecidos emgrande parte pelos Estados Unidos – para a sua segu-rança.

Trata-se da mesma lógica que orienta aquilo que Norman Fin-kelstein (2001) identifica como “A Indústria do Holocausto”, um“golpe” engendrado pelas elites sionistas para pilhar não ape-nas bancos suíços, como também países pobres como a Polônia.A multiplicação mágica do número dos “sobreviventes do Ho-locausto” e o absoluto descaso com esses sobreviventes é, paraFinkelstein, a tônica desse “saque”, cujo butim é repartido porpoucos.

O cristianismo, por sua vez, tem como prática a adoção deuma postura de discriminação a todos os que não professam a féno Deus que se manifestou em seu filho, Cristo. Como afirmaElhajji (idem),

O Outro, o diferente, o “anormal” (aquele que nãocompartilha a mesma fé, que não adere à mesma vi-são do mundo; ou antes, a Fé verdadeira e a Visão

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certa do mundo – já que para o sujeito monoteísta sóexiste uma que é verdadeira e que cabe no círculo darazão) representa em si uma provocação e uma inter-pelação – situação perniciosa que constitui um pro-blema existencial de difícil resolução para o mono-teísta (arquétipo do homem ocidental), considerandoa existência do Outro incompatível com a sua própriaenquanto crente (ou enquanto ser racional – sendo aracionalidade a fé da modernidade ocidental).

O “amor ao próximo”, como afirma o mesmo autor, estariacontaminado por uma irremediável perspectiva narcísica:

Além da xenofobia proverbial dos gregos, a re-comendação evangélica de“amar o outro como a simesmo”contém, na verdade, a idéia perniciosa quenega ao Outro o direito de ser e de devir fora da visãoe da consciência do sujeito ocidental, sugere a neces-sidade de convertê-lo num ente idêntico a si mesmoe proclama o direito e o dever de fazer dele um outrosi mesmo para poder amá-lo e para ele merecer esteamor. Ou seja, o sentido sugerido de maneira latentepelo dito mandamento seria“amar-se a si mesmo nooutro” ou “amar no outro a si mesmo”. O que não sósignifica que, nesta relação auto-suficiente de si parasi mesmo, o Outro sirva apenas de canal ou de con-dutor a um amor viciosamente circular destinado a simesmo, mas, pior ainda, significaria o direito – senãoo dever e a obrigação moral (a moral como o bomsenso é sempre moral do mais forte, de quem mono-poliza a fala e a produção de sentido) de aniquilar aalteridade do Outro e de si mesmo no Outro e em simesmo. Apurar-se e apurar o Outro (purificar-se epurificar o Outro no sentido de uma ação discursivaterrorista de purificação étnica diária) de toda alteri-dade. Transformar e desfigurar o Outro para fazer

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dele um segundo si mesmo ou um simples refletor desi mesmo: um meroalter ego.

Essa concepção absolutamente egoísta tem sua raiz no fato detodo monoteísta ser um “escolhido”, um reflexo privilegiado doalém, com acesso garantido ao mundo divino, mais ou menos omesmo que o platônico, depois de sua morte. O problema aí éque isso decreta uma espécie de morte em vida, ou, em outraspalavras, coloca esta a serviço daquela. Mesmo a luta, o “bomcombate” recende à mortificação pois serve para extinguir defi-nitivamente a alteridade, transformando-a em algo conhecido evirtualmente odiado, não merecendo sequer viver, posto que étransformado no que não é para representar o que o narcisismocristão julga que ele é.

2.2 Jogos de ganhar e perder e jogos dejogar

A vitória da Razão trouxe uma nova configuração no plano soci-ocultural. Podemos afirmar que esse foi o marco fundamental dadivisão entre sociedade e cultura. Para melhor entender a sepa-ração definida naquele momento, propomos tomar em conta umasimples, interessante e atraente teorização acerca dos jogos. Tam-bém estaremos abarcando a temática da religiosidade absolutista,pois esta se conforma ao estreitamento proposto pelos filósofosaristocratas, o reforça e confirma atingindo diretamente o cora-ção. A deidade conforma, disciplina e condiciona o sujeito, comoo demiurgo platônico, para um jogo, o de sociedade, agindo comum enlaçamento da paixão, ao mesmo tempo em que reduz o cul-tural à repetição incessante de ritos midiatizados pelo discurso dadevoção. No caso evangélico, como observamos na Igreja Uni-versal do Reino de Deus, essa devoção está condicionada a umapromessa de ascensão social, logo, um “jogo finito”, como iremosver adiante.

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Comecemos pensando que há jogos que são para ser jogadose jogos que são para ser vencidos. Dizemos isso nos referindo aosobjetivos de cada jogo. Os jogos da cultura, por exemplo, teriamcomo prioridade ser jogados. Há libido investida no próprio atode jogar, maior do que a investida no resultado do jogo. Podemosincluir no rol de jogos culturais a sedução, a criação artística, apoesia, a música, a dança. Há um jogo, ou essas atividades fazemparte de um jogo, e a vitória ou a derrota – uma conquista, o su-cesso de uma música, um concurso de dança – podem representaralegrias ou tristezas, dinheiro ou falência, mas não são o motivoprincipal que leva alguém a enveredar pelos jogos culturais. Etodos, de uma forma ou de outra, jogamos esses jogos. São refe-rências comunitárias, íntimas, que envolvem o corpo, aquele es-quecido pelos dialéticos atenienses. Não apenas envolvem, comoo aconchegam e excitam. O corpo é presa desses jogos, e pre-cisa de alguma sedução para deixá-los. Está sempre atado a eles,como estamos a ele, por isso esses jogos são chamados de “infi-nitos”. São guiados pelo prazer e não se esgotam nem têm con-clusão. Não há campeonatos ou partidas oficiais de dois tempos.Ou, quando há, não é isso que importa.

Os “jogos de sociedade” seriam finitos, pois se esgotam como resultado, a meta do jogo. Como exemplo desse tipo de jogos,temos os de azar e os jogos desportivos, mas também políticose os econômicos. São jogos finitos, entre outros, as partidas defutebol, com seus 90 minutos, seus campeonatos com campeões;as mãos do poker, com suas apostas; as eleições, com suas cam-panhas e corridas pela preferência do eleitorado, com seus depu-tados eleitos, seus governadores e presidentes; os negócios, comtodas as suas modalidades de apostas, incluindo as financeiras,notadamente nas movimentações do mercado, sempre enriquece-doras para alguns e drásticas para outros. Esses tipos de jogo temcomo parâmetro a racionalidade permeando as formalizações delimites que permitam o desenrolar das partidas. Não é evidente-mente o prazer de jogar que os sustenta. É mais importante o quese vai conseguir com eles.

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Essa divisão didática e útil para pensar o jogo subjetivo foicriada por James P. Carse, mas a conhecemos lendo um interes-sante trabalho de Herman Parret (1997). Segundo este,“Um jogofinito se joga com o propósito de ganhar, um jogo infinito como propósito de continuar a jogar”(PARRET, 1997, p. 19). Ojogo “infinito”, conforme descrito anteriormente, está para alémdo tempo, trabalha com horizontes, que nunca são alcançados,pois são linhas e não localidades. Transcendem a finitude, o queos faz preponderantes para que o corpo aceite participar destes.

Se podemos falar de alguma logicidade nos jogos de cultura,não podemos falar de uma supremacia da Razão, pois esta é con-clusiva, encerra o processo, remete à finitude e à essência. Maisuma vez, acompanhando Parret (idem), é melhor falar de estra-tégia coreográfica, já que o jogo da cultura seria algo como umadança, e o jogador da cultura é o dançarino, possivelmente aquelemesmo ao qual Nietzsche (1977) se referiu como o além-do-ho-mem, o “super-homem”. Para Parret (idem, p. 38)“a estratégiadifere categorialmente da norma, da regra e da restrição por-quanto tem como objetivo o próprio funcionamento da norma, daregra ou da restrição”. Ela age no interstício entre as partes dojogo social e remete às estratégias de raiz comunitária. Fala daidentidade conforme moldada no mundo imaginário, na fantasiae, assim, tem uma radicalidade pronunciada no que diz respeitoao “vir-a-ser”. O jogador da cultura se realiza no mesmo mo-mento em que joga, encontra o deleite de rearticular e reafirmarsua identidade precisamente no processo de jogar e não na con-clusão desse processo. Trata-se, acima de tudo, de experiênciasestéticas através das quais um certo conhecimento tradicional setransmite e reproduz, eminentemente pela oralidade e por ritosque envolvem o corpo.

Já as relações sociais, que não são tão lúdicas por si sós, re-metem mais à vida simbólica e estabelecem conexões rígidas eéticas entre suas atividades e o prazer. Geralmente prometem umprazer “seguro”, ou propõem que é preciso retardar a conquista doprazer para alcançar um prazer mais pleno, diríamos atraente me-

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tafisicamente, como fez Platão com o seu jogo sofístico. SigmundFreud (1974a), um digno representante de seu século, compreen-deu a necessidade de uma vinculação entre as pulsões e um obje-tivo alcançável socialmente, e formulou o conceito de “ProcessoSecundário” do funcionamento psíquico para designar a suprema-cia da civilização sobre os impulsos comumente ditos “animais”.Submeter-se à infinitude dos jogos da cultura, conforme descritosaqui, seria perder o controle, deixar de ser humano. No caso deFreud e seus contemporâneos, podemos dizer deixar de ser bur-guês. Talvez possamos dizer o mesmo dos cariocas que nutrema mesma ojeriza obsessiva da pobreza, mas a contemporaneidadeé um pouco mais complexa, e aparentemente mais restritiva. Ostermos norte-americanos“winner” e “loser” (oswinnerssão osbem-sucedidos, oslosersos que ficaram à margem, os que nãoobtiveram status, os que não se destacaram – como diz o termo:os que perderam) são emblemáticos dessa forma de jogar marcadapela competitividade.

Para tomar outra fonte de referência para o mesmo tema, ve-jamos a definição de Houaiss (idem), que admite dois vérticesbásicos para o termo “jogo”. A definição 1 se refere aos jogos“infinitos” e a 2 aos “finitos”:

1. designação genérica de certas atividades cuja natureza oufinalidade é recreativa; diversão, entretenimento; atividadeespontânea das crianças; brincadeira.

2. essa atividade, submetida a regras que estabelecem quemvence e quem perde; (...) Contrato aleatório entre duas oumais partes, pelo qual um dos parceiros ganha a soma ou acoisa arriscada, e os demais perdem.

Roberto da Matta (1983, p. 48) também difere, por seu turno,cultura e sociedade. Para ele, cultura remete a uma “tradição viva,conscientemente elaborada que passe de geração para geração,que permita individualizar ou tornar singular e única uma dadacomunidade relativamente às outras (constituídas de pessoas da

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mesma espécie)”. Já sociedade é entendida como uma “totali-dade ordenada de indivíduos que atuam como coletividade.” Fer-dinand Tönnies (1947, p. 19) estabeleceu parâmetros bem seme-lhantes quando tratou da distinção entre sociedade e comunidade.Para ele, “Toda vida de conjunto, íntima, interior y exclusiva, de-berá ser entendida, a nuestro parecer, como vida en comunidad”.Os laços comunitários seriam originários das relações familiares,estendendo-se seqüencialmente para a vizinhança e a amizade,um sentimento fundado na simpatia que independe das relaçõesanteriores, mas certamente está contaminada por elas. Nessas re-lações há um acolhimento mútuo, um consenso e, como lembraTönnies (idem, p. 43),

Vida comunal es posesión y goce mutuos, y esposesión y goce de bienes comunes. La voluntad deposeer y gozar es voluntad de proteger y defender.Bienes comunes e males comunes; amigos comunesy enemigos comunes. Males y enemigos no son ob-jeto de posesión y goce; no son objeto de la voluntadpositiva sino de la negativa, de la indignación y delodio, es decir de la voluntad común de aniquilami-ento. Los objetos del deseo, de la apetencia, no son lohostil, sino que se encuentran en la posesión y goceideados, aun cuando su obtención esté supeditada auna actividad hostil. Posesión es, en sí y de por sí,voluntad de conservación (...).

Já no que se refere à sociedade, não há consenso, muito me-nos proteção e defesa, muito embora haja discursos para efetivaressas sensações. Os laços societários são marcados pelo conflitointerno, pela competitividade:

La teoría de la sociedad construye un círculo dehombres que, como en la comunidad, conviven pa-cíficamente, pero no están esencialmente unidos sinoesencialmente separados, y mientras en la comunidad

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permanecen unidos a pesar de todas las separaciones,en la sociedad permanecen separados a pesar de to-das las uniones. Por consiguiente, no tienen lugar enella actividades que puedan deducirsea priori y demodo necesario de una unidad existente, y que, enconsecuencia, también en cuanto se operan por me-dio del individuo, expresen en él la voluntad y espí-ritu de esta unidad, o sea que tanto se llevan a cabopara él mismo como para los que con él están unidos.Todo lo contrario: en ella cada cual está para sí solo,y en estado de tensión contra todos los demás. Lasesferas de su actividad y de su poder están rigurosa-mente delimitadas, de suerte que cada cual rechazacontactos e intromisiones de los demás, considerán-dolos como actos de hostilidad. Esta actitud negativaes la relación normal e siempre fundamental entre es-tos sujetos de poder, y caracteriza a la sociedad enestado de equilibrio (TÖNNIES, idem, p. 65).

Todas essas diferenciações são didáticas e não representamimagens perfeitas do real, porém são representações bastante pro-fícuas para que pensemos de modo mais dinâmico a subjetividadeocidental. Há relações inevitáveis entre esses dois tópicos e, sepor um lado podemos afirmar que nem sempre é fácil operar essadistinção na contemporaneidade, por outro, os limites entre umae outra podem muitas vezes ser absolutamente fictícios. Tome-mos a Razão e a Fé, abordadas anteriormente. Poderíamos tentardistinguir o posicionamento subjetivo de uma e outra discernindoa Razão como um padrão societário e a Fé como uma referên-cia comunitária ou cultural. Não estaríamos errados ao fazer isso.Poderíamos corresponder as relações políticas que levaram Pla-tão e seus aristocratas à vitória sobre os sofistas estreitamente aum “jogo de sociedade” e estabelecer as relações pautadas pelacomunhão religiosa13 como uma “ligação” afetiva posta para “re-

13 Para Houaiss (ibidem), o elemento de composição “religi-“ está relacio-

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ligar” uma pessoa ou grupo a pessoas, grupos ou mesmo idéiasnão mais presentes, num autêntico espírito comunitário, um “jogoinfinito”. No entanto, as coisas não são tão simples quanto pare-cem.

O “jogo finito” traz em si a infinitude e o “infinito” corres-ponde a uma inequívoca finitude. Nenhum desses jogos sobre-vive sem estar situado de alguma forma no universo do outro. Asrelações de trabalho da modernidade burguesa, por exemplo, nãopodem esgotar seu sentido em si, pois se assim fosse ninguém en-contraria sentido em trabalhar. É preciso que o “jogo finito” tragaao menos a promessa da infinitude para ser aceito e praticado. Odesenvolvimento de habilidades no mundo laboral tem seus vín-culos comunitários, e a transmissão de informações de pai parafilho, nos trabalhos tradicionais como a agricultura e o artesanato

nado a: “antepositivo, do lat.religìo, ónis (relligìo nos poetas dactílicos) ’reli-gião, culto prestado aos deuses, prática religiosa; escrúpulo religioso, receioreligioso, sentimento religioso, superstição; santidade, caráter sagrado; ob-jeto de um culto, objeto sagrado; uma divindade, um oráculo; profanação, sa-crilégio, impiedade; lealdade, consciência, exato cumprimento do dever, pon-tualidade; cuidado minucioso, escrúpulo excessivo’; us. em todas as épocas;"o prefixo é re-,red- (cf. relliquiae, reliquiae)", dizem Ernout e Meillet, "maso segundo elemento é obscuro. Os latinos ligam-no arelegere(...), etimolo-gia defendida por Cícero (...). Outros autores [Lactâncio e Sérvio] associamreligìo a religáre: seria propriamente ’o fato de se ligar com relação aos deu-ses’, simbolizado pela utilização das uittae [’fitas para enfeitar as vítimas ouornar os altares’] e dosstémmatano culto. Alega-se em favor desse sentidoa imagem de Lucrécio, 1, 931:religionum nodis animum exsoluere; (...). Osentido seria portanto: ’obrigação assumida para com a divindade; vínculo ouescrúpulo religioso’ (cf.mihi religio est ’tenho o escrúpulo de’); depois ’cultoprestado aos deuses, religião’."; der. latinos:religiósus,a,um ’religioso, pi-edoso; consagrado pela religião, santo, sagrado; supersticioso; escrupuloso,consciencioso; proibido pela religião, ímpio, sacrílego’, lat.imp.religiosìtas,átis’religiosidade, piedade’, lat.imp.irreligiósus,a,um ’ímpio, irreligioso’,ir-religiosìtas, átis ’impiedade’ (linguagem da Igreja), lat.imp.irreligìo, ónis; acognação port. desenvolve-se desde as orig. do idioma: correligionário, cor-religionarismo, correligionarista, correligionarístico, correligiosismo, corre-ligiosista, correligiosístico; irreligião, irreligiosidade, irreligiosismo, irreligi-oso; religião, religiomania, religiomaníaco, religiômano, religionário, religi-osa, religiosidade, religioso, religiúncula.”

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são exemplos históricos dessa vinculação. Toda tarefa laborativatem um quê de cultural, de infinitude, na medida em que se pos-tula e se informa como um modo de vida peculiar, aconchegandoseus membros numa vivência que ultrapassa a finitude das rela-ções econômicas. São as tradições de cada ofício que mantém osentido subjetivo mais fundamental deste. O que tem que existir,e nesse ponto retornamos à definição precisa dos “jogos finitos”,é a hegemonia do social sobre o cultural. Um jornalista contem-porâneo, por exemplo, pertence a uma “comunidade” de iguaisque nutre os mesmos princípios e uma identidade compartilhadaem cultos como o da escrita, ou de um certo modo de escrita. Talcomunidade tem sua religiosidade, como o culto a ídolos mor-tos que representam referências para seus membros, como Nel-son Rodrigues e seu irmão Mário Filho no jornalismo esportivo;Carlos Castelo Branco e Paulo Francis, no jornalismo político; ouIbrahim Sued e Zuzu Angel, no “colunismo social”. No entanto,tudo isso em si não significa muito se não houver empresas jor-nalísticas para empregar esses profissionais e lhes permitir a atu-alização perene dessa tradição, dessa vivência comunitária. Issosignifica também que pode haver “bailarinos” no mundo societá-rio, pessoas que manipulam as rígidas regras da finitude para darasas à infinitude. E é preciso lembrar que o desenvolvimento das“intervenções organizacionais” correspondem a uma iniciativa deincorporar o jogo cultural ao árido mundo do trabalho.

Adam Smith (1979; 2002) propunha que o jogo econômicodevia ser contínuo para redundar em ganhos para todos e que omaior sentido do jogo seria a participação comunitária, a articu-lação entre seus membros no objetivo comum de ganhos. Essediscurso, muito embora seja eminentemente político, traz consigoa projeção de uma idealização comunitária e, se percebermos comKarl Polanyi (2002) como a Europa se unificou sob o jogo finitoda economia durante o século XIX, podemos entender que es-tava ali também presente uma certa infinitização do “velho con-tinente”. Porém, o que estava por trás disso eram objetivos tãofinitos como o velho e pérfido lucro na exploração do trabalhador

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pelo proprietário dos meios de produção. Nem sempre o que sediz é o que se quer dizer realmente.

No plano da cultura, da comunidade, podemos perceber quetambém há interseções importantes. O religioso cristão está vin-culado a uma instituição secular, bastante comprometida com osjogos societários, a Igreja, no caso do catolicismo, ou o dito Tem-plo, no caso evangélico. Junto ao culto dos antepassados, Cristo,por exemplo, o fiel tem acesso a uma organização que lhe repre-senta não somente na ligação com o transcendente, como tam-bém na vida social. As diversas “igrejas” evangélicas são o maiorexemplo dessa apropriação do comunitário pelo societário e seconstituem cada vez mais num eficaz instrumento de poder socialpara seus membros, ou para parte deles. A arte e as manifestaçõesartísticas têm, do mesmo modo, seu “mercado” e seus empresá-rios e se inserem no mundo econômico. A família, núcleo docomunitarismo, tem seus vínculos sociais e é costume um homeme uma mulher se unir pelo matrimônio num cartório, ato que osfaz não mais parceiros, mas sócios de uma empresa informal cha-mada “casal”. No entanto, é preciso que o prazer da convivênciaseja maior do que a obrigação de manter a empresa, ao menos nacontemporaneidade, senão é possível que tudo tenha fim. O ar-tista precisa, por sua vez, encontrar prazer maior exatamente noato de produzir algo do que no de ganhar dinheiro com sua pro-dução. Se isso não ocorrer, provavelmente se transformará numrepetidor de fórmulas prontas, como os grupos de rock ou pagodemidiáticos, esquecidos geralmente após o segundo disco lançado.O religioso encontra mais prazer na vivência hierática do que nopoder social de sua igreja, ou é um proxeneta da própria fé ou daalheia.

A força da lógica “finita”, no entanto, tem invadido o territó-rio “infinito” com particular incisividade. Cada vez mais pareceque o comunitário, que se caracteriza por jogar apenas para si,voltado mesmo para o próprio umbigo, tem sido capturado pelaética dos “jogos finitos” exatamente nos seus dotes estéticos, efuncionado para reforçá-la e fundamentá-la. Isso pode parecer

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um contra-senso num momento em que estudos como os EstudosCulturais têm atribuído à cultura uma hegemonia sobre as rígidasrelações pautadas pelo poder social. Ora, a vivência cultural éefetivamente fundamental na articulação dos poderes entre pes-soas e grupos, mas a sociedade na qual estão ocorrendo essas ar-ticulações tende a imantar tudo o que ocorre dentro dela para umdiscurso estrito e redutor, o econômico e este, percebamos issocom clareza, está a serviço do poder político – não entendido exa-tamente como partidário ou estatal, mas como poder de influênciae mando de pessoas ou grupos sobre a coletividade. Se isso é as-sim, o cultural passa a ser oprimido – ou continua a sê-lo – muitoembora salte aos olhos simuladamente como hegemônico. Nãodeveríamos falar de cultura nesse caso, mas de uma “culturolo-gia”, ou de uma cultura capturada pelas teias socioeconômicas, oque nada tem a ver com o que definimos como cultural. Com alicença de estudiosos sérios como Stuart Hall (1998; 2003), com-preendemos que na sociedade em que vivemos a hegemonia nãoé cultural, mas sim política e é a esta que precisamos nos refe-renciar por todo o tempo se quisermos produzir algum efeito nocampo da cultura.

O econômico, enquanto discurso a serviço do político, abar-cou de tal forma todas as relações, inclusive as comunitárias, quepraticamente relegou estas ao ínfimo do familiar nuclear, do pe-queno grupamento centrado no casal, com seus filhos e agregadoseventuais. O comunitário, conforme descrito acima, praticamentenão existe entre as classes médias urbanas, e, se subsistiu durantealgum tempo entre os mais pobres, que sempre alijados do jogoeconômico sobreviviam pela posse mútua de problemas e solu-ções, paulatinamente desaparece, como indica a economicizaçãodas relações contida na prática do Comando Vermelho, organiza-ção criminosa carioca voltada inicialmente para a “comunidadecarcerária” e, paulatinamente, transformada numa empresa de ar-recadação de recursos não mais simplesmente para dar apoio aos“companheiros presos”, mas para novas ações criminosas, cadavez mais lucrativas e audazes.

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2.2.1 A ilusória captura da ética pela estética

Raquel Paiva é outra autora que opõe conceitualmente a comuni-dade à sociedade, onde a hegemonia é a doHomo oeconomicusdos jogos finitos, e declara, logo na abertura de seu livro “O Espí-rito Comum”, tomando partido pela necessidade de reduzir o es-paço desmedido que o jogo econômico conseguiu em nossa socie-dade:“Este nosso trabalho é, antes de mais nada, uma indagaçãosobre as possibilidades de resposta da sociedade civil– o “Espí-rito Comum” de que fala o título –à voracidade economicista daselites contemporâneas”(PAIVA, 1998, p. 11). Trata-se de umapostura ética que leva em consideração a necessidade de atençãoàs demandas comunitárias onde a comunhão se dá em torno deprincípios e normas comuns e adequadas para o que se compre-ende ser melhor para o grupo. A autora, ao propor a democrati-zação da comunicação através do acesso ativo das comunidadesà circulação de informações, propõe também que essa democra-tização viabilize um novoethos, uma conjuntura que dê acessoaos valores comunitários, em oposição aos societários, marcadospela jogatina financeira e pela opressão econômica bem expostapor Viviane Forrester (1997).

Com relação à apropriação estética dos valores comunitáriospor parte das elites – também abordada por Bauman (2003) –Paiva aponta para uma idealização desses valores como viabili-zadores de um resgate de um certo paraíso perdido. Esse movi-mento corresponderia a uma necessidade das pessoas envolvidasno jogo societário economicista, em que as regras competitivasconduzem a uma depauperação das relações humanas, que pas-sam a se resumir no interesse e na luta constante de todos contratodos. Essa necessidade seria a de uma identificação com valoresfundados na segurança das relações afetivas, expulsas da socie-dade desde a idealização da República platônica. A referênciaa esse “paraíso perdido” torna-se um fator de agregação para osparticipantes dos jogos de sociedade, sendo o território imaginárioonde esses jogadores poderiam encontrar o aconchego do regaço

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comunitário. Como todo paraíso perdido, no entanto, é inalcan-çável e serve bem ao interesse do jogo econômico: ele simula avinculação comunitária na virtualidade da cultura midiática, naqual a vicariedade das imagens acaba por substituir a experiência,e as relações afetivas são encenadas de forma atraente por per-mitirem vivências afetivas – ainda que vicárias – e controláveispelo sujeito. No entanto, essa virtualidade é, como não poderiadeixar de ser, incompleta e potencialmente insatisfatória na me-dida em que apenas encena relações afetivas, não as incentivandono mundo “real”, onde, como já afirmamos, imperam as relaçõescompetitivas.

O Estado Nação havia, até bem poucas décadas, funcionadocomo uma projeção desse mundo ideativo que traz em si uma es-pecularização do comunitário. Platão não pretendia outra coisacom a sua “República”, e também foi esse mesmo objetivo quelevou Smith (2002) e Jeremy Bentham (1979) a propor o estabele-cimento de uma sociedade pautada na vigilância mútua, na disci-plina congênita dos laços sociais idealizados por esses pensadoresdos jogos “finitos”. Estes, como já vimos anteriormente, trazemem si uma promessa de continuidade, uma infinitude virtual subs-titutiva da infinitude sensível e intuitiva do comunitário. Na con-temporaneidade, a exacerbação neoliberal tomando a potenciali-dade do consumo como expressão de cidadania – reconhecida porNéstor García Canclini (1997) – faz aderir a subjetividade ao jogoeconômico como insumo, ou seja, como elemento fundamentalda produção de mercadorias e de sentidos para essas mercado-rias. Sobre um tabuleiro no qual as forças sociais são unificadaspela divindade do mercado econômico, as relações se pautam pelabelicosidade do “jogo finito”, travestidas sob um manto de inte-gração cultural estética: captura-se o sentido das manifestaçõesculturais a partir de sua manifestação estética, escamoteando osconteúdos éticos hegemônicos, e põe-se o resultado nas vitrinesdos grandesshopping centersem que se transformam as cidades.

As pessoas aderentes a essa lógica de existência vicária teriama tendência a procurar desesperadamente pela essência que une

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os indivíduos nas manifestações midiáticas, na busca de recuperarum sentido para a vida, geralmente conseguido no seio de relaçõespautadas pela experiência compartilhada. Como a comunicaçãode massa se dá a partir de um emissor único que alcança múl-tiplos receptores, a massificação levaria a uma depauperação daexperiência em prol da profissão de fé na simulação dessa mesmaexperiência. Passivos, os participantes desse mundo virtualizadoencontram-se presos aos ditames do emissor, mesmo quando ten-tam escapar dessa ditadura, encenando escolhas. Como estas es-colhas são condicionadas às imagens identitárias produzidas naemissão midiática, praticamente não existem, ou limitadas às re-gras do discurso econômico.

A estetização midiática, compreendida nos termos acima, éuma representação formulada por umethos, onde a vicariedadeé a tônica. Isso quer dizer que para se comunicar com maiorabrangência, incluindo mesmo uma via de acesso às periferiasdo mundo econômico, o jogo social hegemônico engendra umaapropriação dos valores destas, projetando uma realidade virtualna qual todos têm, em tese, espaço de manifestação, mas onde, naverdade, somente alguns eleitos conseguem proveito – os “win-ners”. Desse modo, opera-se um jogo onde a ambigüidade im-pera, na medida em que o popular é esvaziado dos conteúdos quelhe fizeram ser o que “é” para, sendo o que “não é”, conseguir“ser” no espaço societário. Assim, por exemplo, o samba virao pagode que os apresentadores dos programas das tardes de sá-bados e domingos exibem, a ginga do malandro é copiada pelos“playboys”, junto com roupas e músicas como o funk, e as reli-giões africanas resumem-se aos jogadores de búzios das previsõesde fim de ano. O carnaval carioca se transforma numa festa mi-diática e tem seu centro no desfile das escolas de samba; nas ruas,quase não se nota a festa. A estetização controlada dos meiosde comunicação se fusiona com a ética, cumprindo para as eliteseconômicas e culturais a importante missão de moldar o mundoà sua imagem e semelhança, reassegurando o poder dessas eli-tes, que sempre viram nas manifestações populares nada mais do

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que o bizarro, o prosaico e o folclórico – e elas passam a ser,no mundo midiático, exatamente isso, capturadas pela lógica dos“jogos finitos”, como afirma Parret (idem, p. 18):

“A principal ontologia da comunidade humana,aquela que é endossada pelo paradigma dominante,reconstrói o ser-em-comunidade como um sistema deinterações e de transações submetidas às regras da ra-cionalidade econômica e, conseqüentemente, recons-trói a comunidade como fonte e alvo de jogos estra-tégicos finitos”.

Estetizados, manequinizados, com formato exportação, as ma-nifestações comunitárias perdem o sentido, deixam de ter raízes,passam a servir apenas para enriquecer empresários e demais jo-gadores dos jogos econômicos.

Bauman é outro autor que se refere à diferenciação entre so-ciedade e comunidade, focando, como já fizera Paiva (idem), suaatenção no significado desta como uma referência do aconchego esegurança perdida no processo de social de industrialização. Eledescreve assim o processo de captura das comunidades para ojogo econômico, transformando seus componentes em “massa”:

Para que se adaptassem aos novos trajes, os futu-ros trabalhadores tinham que ser antes transformadosnuma ‘massa’: despidos da antiga roupagem dos há-bitos comunitariamente sustentados. A guerra contraa comunidade foi declarada em nome da libertaçãodo indivíduo da inércia da massa. Mas o verdadeiroresultado – ainda que não dito – dessa guerra foi ooposto do objetivo declarado: a destruição dos pode-res de fixar padrões e papéis da comunidade de talforma que as unidades humanas privadas de sua indi-vidualidade pudessem ser condensadas na massa tra-balhadora.

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A ‘preguiça’ inata das ‘massas’ não passou deuma (débil) desculpa. (...) a ‘ética do trabalho’ do iní-cio da era industrial foi uma tentativa desesperada dereconstituir, no ambiente frio e impessoal da fábrica,através do regime de comando, vigilância e punição,a mesma habilidade no trabalho que na densa rede deinteração comunitária era alcançada de modo ‘natu-ral’ pelos artesãos e outros trabalhadores(BAUMAN,idem, p. 30/31).

O processo mudou de estratégia. A coerção não é mais di-reta e autoritária, ao menos nos grandes centros urbanos. A ló-gica permanece a mesma, mas o modo de ação transformou-sena sedução da inclusão no “jogo finito” da economia, o jogo cujacompetitividade continua sendo excludente e mediocrizante. Afluidez líquida do processo incorpora ao seu núcleo aglutinador –como parece ser uma constante na habilidosa estratégia do capitalem trazer para si as mais diversas manifestações, mesmo as con-trárias ao sentido do jogo capitalista – tudo o que pode: da con-tracultura aos batuques do samba, tudo se transforma em fichaspara apostas no pano verde onde se disputa a vitória econômica:o acúmulo de capital. Nada pode ficar de fora, e quando o fazé porque precisa ser reprimido para se tornar marginal e, assim,encontrar o seu próprio público. Isso inclui as drogas ilícitas, porexemplo, que se constituem num elemento inegável de inserçãona economia capitalista entre as classes populares – os mercadosnegros, afinal, sempre tiveram o seu espaço no jogo econômico–, fazendo circular dinheiro entre os negociantes desse produto –os chamados traficantes, seus vapores e olheiros –, fomentandoquadrilhas mas, ao que tudo indica, enriquecendo gente que nãomora nas favelas e periferias.

Com relação aos sonhos das classes médias, Bauman (idem)acerta ao identificar a contradição presente na sedutora ideali-zação da comunidade operada no seio da sociedade econômicacomparando-a ao mito de Tântalo, aquele que, incapacitado de

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beber água, padecia de terrível sede no meio de um rio. Essa me-táfora serve para designar a fantasia do retorno impossível a ummeio comunitário inalcançável, projetado imaginariamente comoum reino de paz, aconchego e segurança, pois somente existentena memória e na fantasia – mais nesta do que naquela. No entanto,o poder de captura econômico está exatamente aí, na promessa datensão como “tesão” constante, na projeção do fim da tensão peloacirramento desta, no reconhecimento da emoção para aplacá-la eprotegê-la de seus próprios exageros.

Bauman lança mão da oposição entre segurança e liberdade,deixando claro que a existência dessa projeção imaginária vemde encontro ao preço pago pelos membros das sociedades con-temporâneas pela liberdade prometida pelo cassino econômico: ainsegurança com relação à própria identidade. Isso nos faz com-preender melhor a obsessividade com a qual o tema “segurança”é tratado nas grandes cidades: não se fala necessariamente da in-segurança relativa à violência, aos assaltos, seqüestros e outrosatos criminosos; fala-se, principalmente, da insegurança comoum vazio de sentido e de significados, quando tudo se resume aoeconômico e ao consumo, em um momento de hipertrofia do éticotravestido no estético, ou poderíamos também dizer, da essênciatravestida de existência. A sensação de vazio ético parece ser es-tratégica na medida em que viabiliza uma prótese estética que,no fim das contas, tem a função de reforçar alguns conteúdos daética comercial. Enquanto julga consumir imagens, o vicário lei-tor de jornais ou espectador de tv está, mais propriamente, sendoinstruído sobre os princípios éticos que deve adotar em sua vidacotidiana, desde a intimidade até as relações sociais, se é que hajaainda alguma diferenciação entre isso. No entanto, os vínculosmanifestos, explícitos, são postos no campo estético como umaestratégia de controle que abarca não mais os conceitos com osquais a ideologia trabalhava, mas – como afirma Guattari (1999,p. 16):

A meu ver, essa grande fábrica, essa grande má-quina capitalística produz inclusive aquilo que acon-

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tece conosco quando sonhamos, quando devaneamos,quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e as-sim por diante. Em todo caso, ela pretende garantiruma função hegemônica em todos esses campos.

– em todos os campos da existência. A sociedade da disci-plina se aperfeiçoou ao máximo e se tornou absolutamente con-troladora, desviando sua atenção da produção de bens objetivospara a produção de bens subjetivos que, no entanto, continuam acarregar a essencialidade das relações pautadas no econômico.

A estetização midiática passa a ser um fenômeno tão proe-minente na subjetividade contemporânea que marca de forma in-delével as identidades e produz uma nova realidade onde a re-lação vicária substitui a experiência. Trata-se de um fenômenomotivado pela rearticulação das referências sociais em termos deimagens, gerando aquilo que Baudrillard (1991) chama apropria-damente de hiper-realidade, a simulação virtual do mundo social,transpassado pelo simulacro dos sentimentos identitários presen-tes nas mensagens midiáticas de um “mundo paralelo”. Trata-sede um mundo ideativo tão influente sobre a mundanidade que jáse tornou uma espécie de lei a máxima de que o que existe é oque acontece na mídia – um ditame tão importante quanto a leifísica da gravidade: esta servindo para estruturar o meio físico eaquela para estruturar a metafísica da Cultura das Mídias da qualnos falou Lucia Santaella (1996). Retomando Bauman (idem, p.63), podemos perceber que:

Graças à imensa capacidade advinda da tecno-logia eletrônica, podem ser criados espetáculos queoferecem uma oportunidade de participação e um fococompartilhado de atenção a uma multidão indetermi-nada de espectadores fisicamente remotos. Devido àmassividade mesma da audiência e à intensidade daatenção, o indivíduo se acha plena e verdadeiramente‘na presença de uma força que é superior a ele e di-ante da qual ele se curva’; realiza-se a condição posta

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por Durkheim para a capacidade tranqüilizadora deorientação moral dada e imposta pela sociedade. Aorientação opera nestes dias mais pela estética do quepela ética.

A estetização, como já afirmamos, substitui em boa medidaos apetrechos éticos que formavam a consciência nos tempos damodernidade, sem que, no entanto, estes deixem de existir, muitopelo contrário. O que muda, reafirmamos, é a estratégia, mas ojogo continua “finito” como sempre.

A passagem do indivíduo intro-dirigido para o alter-dirigido,nos termos propostos por David Riesman (1971) em um interes-sante trabalho escrito ainda nos anos 50, se dá pela substituiçãode algumas referências emblemáticas de importância na formaçãoda identidade. Os “formadores de opinião” não são mais os líde-res carismáticos que discursavam “ao vivo e a cores”, diante deplatéias em comícios, manifestações ou pregações, muito emboraestes sempre subsistam em setores da vida comunitária. Os novoslíderes são, como refere muito apropriadamente Bauman (idem),as celebridades televisivas. É em torno delas, em suas “ficçõesficcionais” como as novelas ou em suas “vidas ficcionais” nas re-vistas ou nos programas televisivos dedicados a elas. São pessoasque se elevaram ao Olimpo da veiculação ostensiva e ganham, as-sim o status de representantes de um modo de ser, com o respeitoà diversidade cultural encenado de várias formas. Desse modo, háespaço para todos os gostos: dos românticos – com seu naipe deopções entre os artistas que trabalham para essetarget– aos hip-hoppers – onde figuras como Xis, Thaide e MV Bill conseguemespaço mais estético do que ético, muito embora tentem o oposto–, passando por caipiras-cowboys simplórios – como o vencedorde um dos Big Brothers – e homossexuais – que também contamcom um bom número de opções identitárias no mundo das cele-bridades. O que vale, partindo dessas figuras emblemáticas daestetização social, não é tanto o que dizem, mas como dizem; queexpressões gestuais usam, que roupas vestem, que dialetos falam.

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O poder centrípeto da comunicação em sua exuberância estéticaconsegue unir todas as diferenças numa só unidade semântica.

Muniz Sodré percebe a prevalência da estética no espaço pú-blico, corporificada na midiatização. Segundo ele, esse movi-mento configura uma

tendência à substituição do discurso objetivista,argumentativo e racionalista, compatível com a im-prensa clássica, pela narratividade (na forma de ‘ca-sos’) emocionalista da midiatização, o que significatrocar a opinião arrazoada pela percepção esteticistada performance(SODRÉ, 2002, p. 41).

Longe de aparentar uma integração entre os jogos de socie-dade e de cultura, o autor percebe com argúcia que o que aconteceé a apropriação destes pela articulação discursiva daqueles, comum objetivo muito específico e claro: engendrar umbiospautadopela predominância, nos meios de comunicação, da lógica merca-dológica do capitalismo. Segundo ele,

O bios midiático implica de fato uma refigura-ção imaginosa da vida tradicional pela ‘narrativa’ domercado capitalista. Frente a ele, é possível pensarno saber comunicacional como uma redescrição darealidade tradicional pelo pensamento que incorporea nova ordem tecnológica, mas refigurando a expe-riência do indivíduo em seu relacionamento com omundo virtual, experimentando por usa vez uma crí-tica da existência e buscando um sentido ético-políticopara o empenho ativo de reorganização do nosso estar-no-mundo(SODRÉ, 2002, p. 255).

A tentativa de reorganização do “estar-no-mundo”, podemosinterpretar, age no sentido de uma simulação de ampliação docampo perceptual pelo bombardeio de imagens e sons no cotidi-ano. No entanto, o que se faz na realidade é estreitar esse campo,

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ação que corresponde a uma tentativa de resumir a experiênciaa uma unidade semântica, como dissemos acima. Essa unidaderemete-se, conforme Muniz Sodré sugere, a uma racionalidade, ado capital. Como o jogo capitalista exclui qualquer potencialidadeorganizativa no estilo comunitário – que acaba por agir contra alógica do sistema – a absorção dos conteúdos da cultura não étão confiável quanto a certeza da destruição destes no processo deconsumo.

Bauman (idem) toca nesse tema quando descreve as “comu-nidades estéticas”, fruto da tendência, já citada anteriormente,a buscar uma recuperação da vivência comunitária numa tenta-tiva tantálica de recuperar o que está perdido. Em vez de inte-ragir numa ordenação comunitária – com o compromisso comseus pares não apenas nos prazeres, mas também nos dissabo-res –, aqueles que buscam essa nova modalidade de interação14

acabam aprisionados no simulacro comunitário, na captura esté-tica dos traços comunitários, numa espécie de estereotipia do co-munitarismo, que não faz mais do que repetir as velhas fórmulasde reforço da lógica de acumulação de capital. Acabam sendoreproduções mal feitas da interação comunitária que exige parti-cipação não apenas nos interesses em temas específicos – comoesportes ou algum hobby – mas na vivência cotidiana, incluindoos dissabores da convivência, o que se configura intolerável paraos membros da comunidade estética, que prezam a cima de tudo aliberdade da desvinculação emocional concreta – nas regras dessejogo, apenas as vinculações virtuais, imaginárias, são bem vin-das. As demandas identitárias acabam ancorando na mesmice dasmensagens midiáticas, na comunitarização via tela televisiva, naparticipação da comunidade virtual dividida entre celebridades –os winners– e os cultores das celebridades – oslosers, que, noentanto, continuam jogando um outro tipo de jogo sem fim, o de

14 Cujos grupos de interesse de internautas constituem um bom exemplo,assim como as tribos de que nos fala Maffesoli (1998), ou como os grupos quese reúnem para alguma atividade e depois se dissolvem.

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Sísifo: parecem precisar compulsivamente da vicariedade, quemsabe para escapar do “deserto do real”.

2.2.2 O comunitário é o que nos faz humanos: aexaltação da brasilidade por Nelson Rodri-gues

Para ilustrar oethoscomunitário e suas articulações discursivas,vamos recorrer a um texto muito bem escrito sobre uma partida defutebol. Na edição especial da revista Fatos e Fotos de junho de1962, Nelson Rodrigues publicava um texto intitulado “O Escretede Loucos”, tendo como tema a partida final da Copa do Mundialde Futebol realizado no Chile. No dia 17 daquele mês, em Santi-ago, o Brasil, após uma vitória sobre a seleção da – hoje extinta –Tchecoslováquia por 3 a 1, conquistava o bicampeonato mundial.

Uma partida de futebol, como sabemos, está incluída no roldos jogos finitos, pois tem um tempo regulamentar e um resul-tado final, há um vencedor e um vencido. Está, além disso, prin-cipalmente nestes últimos anos, cada vez mais incluída no jogoeconômico, como praticamente tudo na sociedade contemporâ-nea. É, assim, um negócio como qualquer outro, com jogadoresmilionários, dirigentes que chegam a postos magnos na política –como o primeiro-ministro Berlusconi, na Itália, e, em grau maismodesto, como o ex-deputado Eurico Miranda, no Rio de Janeiro–, e cada partida envolve interesses marcados pelo culto da com-petitividade e da busca do lucro, como uma boa oportunidade denegócio.

No entanto, Nelson Rodrigues, apesar de estar comentandoum jogo vitorioso para a seleção brasileira de futebol, parecia ni-tidamente mais ocupado em apontar para o virtuosismo dos joga-dores atribuindo um inegável sentido cultural àquela vitória. Essevirtuosismo estava, naquele momento, para Nelson, ligado a va-lores culturais, comunitários, enaltecedores do modo de ser brasi-leiro, da “comunidade” brasileira. Se muitas vezes o escritor tra-tou a seleção brasileira de futebol como “A pátria em chuteiras”,

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trazendo uma imagem típica do Estado Nação, como se os joga-dores fossem soldados a serviço do país numa espécie de guerra,nesse texto o principal foco está no fato de que, para Nelson Ro-drigues, o brasileiro seria “uma nova experiência humana”.

Esse texto, apesar de comemorar uma vitória bastante defi-nida, a de uma importante partida de futebol, lança luz sobre comoos jogos infinitos personificam-se na exaltação do inusitado, doesforço por transcender os finitos espaços de conquista limita-dos pela vitória. Esta, apesar de ter sido do time que marcoumais gols naquele “match”, está lançada para além desse acon-tecimento pontual e, afinal, insignificante sob o ponto de vistacultural. A vitória apresentada por Nelson Rodrigues é a da artede pertencer a uma comunidade, de criar soluções para suplantardificuldades e cujo sentido mais contundente está no fato de querepresenta uma celebração do amplo jogo da vida. O futebol éapenas um tema, apaixonante para o autor, e o que ele visa não éapenas mostrar como o futebol, praticado com virtuosismo, trans-cende o resultado. Ele parece querer nos dizer que para além dapartida e do próprio jogo futebolístico há um outro, que perpassatodas as atividades finitas e está marcado pela infinitude: o jogoda manifestação cultural, o do desenvolvimento de um modo deser comunitário, pautado pela criatividade e pela afetividade emrelação a um posicionamento no mundo.

Logo no primeiro parágrafo, Nelson nos põe em contato como tema inefável da vitória como algo maior do que o resultado,remetido à “molecagem”, à brincadeira:

Amigos, a bola foi atirada ao fogo como uma Jo-ana d’Arc. Garrincha apanha e dispara. Já em plenacorrida, vai driblando o inimigo. São cortes límpidos,exatos, fatais. E, de repente, estaca. Soa o riso damultidão – riso aberto, escancarado, quase ginecoló-gico. Há, em torno do Mané, um marulho de tchecos.Novamente, ele começa a cortar um, outro, mais ou-tro. Iluminado de molecagem, Garrincha tem nos pésuma bola encantada, ou melhor, uma bola amestrada.

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O adversário pára também. O Mané com quarentagraus de febre prende ainda o couro.

Garrincha não parece apenas representante de um time quevence uma partida e que, segundo se compreende sob um pontode vista racional – tão caro aos jogos de sociedade –, deve cuidarpara que o adversário não jogue, praticando um jogo estudado ecomedido. Seria temerário demais reduzir a atitude do “Mané”a uma estratégia para prender o jogo. Ele parece querer mais:quer celebrar o jogo que transcende o resultado, quer jogar, querbrincar. E é o encanto da brincadeira, para Nelson, que sela avitória do “escrete”. É a celebração da brincadeira que faz o “feioe torto” brasileiro impor sua beleza aos róseos europeus:

A partida está no fim. O juiz russo espia o relógio.E o Brasil não precisa vencer um vencido. A Tche-coslováquia está derrotada, de alto a baixo, da cabeçaaos sapatos. Mas Garrincha levou até a última gotao seu olé solitário e formidável. Para o adversário,pior e mais humilhante do que a derrota, é a batalhadesigual de um só contra onze. A derrota deixa deser sóbria, severa, dura como um claustro. Garrinchaateava gargalhadas por todo o estádio. E, então, ostchecos não perseguiam mais a bola. Na sua deses-peradora impotência, estão quietos. Tão imóveis quepareciam empalhados.

Garrincha também não se mexe. É de arrepiar acena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, depele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feioe torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro,como única reação, põe as mãos nos quadris comouma briosa lavadeira. O juiz não precisava apitar. Ojogo acabava ali. Garrincha arrasara a Tchecoslová-quia, não deixando pedra sobre pedra.

Essa celebração é fundamental porque está inserida como algopara além do resultado. É a alegria do dançarino, a estratégia que

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não se apega aos limites marmóreos do jogo, que os manipula esuplanta, fazendo com que não pareçam mais do que insignifican-tes detalhes. Como afirma Parret (idem, p. 50):

A sugestão é antes que, além da finitude dos jogosde sociedade, existe a racionalidade estratégica do jo-gador do infinito. As estratégias do jogador do infi-nito não podem ser recuperadas pelo modelo econô-mico, que reduz o ser-em-comunidade a um ser-juntosdentro da sociedade. É assim que o jogador do infi-nito não é de fato um calculador nem um combatentepela vitória. O jogador do infinito é muito mais comoum dançarino.

O que Nelson Rodrigues parece querer dizer no seu texto é queGarrincha é um representante de uma “comunidade” brasileira,não da sociedade brasileira, que, através de suas elites econômicase administrativas, parece sempre valorizar o modelo idealizadoda sociedade européia, registrado solenemente no dito positivistapresente no pavilhão nacional: “Ordem e Progresso”. A “comu-nidade” brasileira, aquela forjada no dia-a-dia das inevitáveis di-ficuldades a serem vencidas pelos que não contam com subsídiosestatais para tocar seus negócios – nem sequer tendo o direito depossuir negócios –, parecia, para Nelson, encontrar em Garrincha,naquele momento mágico, o seu mais fiel representante15 . Aque-les que, embora aparentemente sempre com motivos para maischorar do que rir, encontram sempre espaço para brincar, despre-zando a lógica elitista que reza ser a vida coisa muito séria.

15 Este trecho do texto “Uma barata seca de 250 milhões”, de Nelson Ro-drigues, publicado na revista Manchete, em 1/12/1962, é emblemático acercada percepção que o autor tinha sobre o brio do brasileiro:“Amigos, a únicamiséria orgulhosa é a brasileira. Apanhem um pau-de-arara, ou melhor: -apanhem um retirante de Portinari. Lá está o homem, nos seus farrapos espec-trais, lambendo a sua rapadura. Pois o pobre-diabo brasileiro conserva, nomeio da subnutrição mais hedionda, todas as suas potencialidades intactas.Basta que alguém provoque a sua honra. Ele ressuscitará como um Lázaro damiséria: e, na sua ressurreição, há de ser capaz de chupar a carótida de reis”.

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Nelson continua sua exaltação da “brasilidade”:

Se aparecesse, na hora, um grande poeta, havia dese arremessar gritando: ‘O homem só é verdadeira-mente homem, quando brinca!’. Num simples lanceisolado, está todo o Garrincha, está todo o Brasil. Ejamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem,como ao imobilizar, pela magia pessoal, os onze la-tagões tchecos, tão mais sólidos, tão mais belos, tãomais louros do que os nossos. Mas veriam como, va-rado de gênio, o Mané põe, num jogo de alto patético,um traço decisivo do caráter brasileiro: - a moleca-gem.

O Hélio Pellegrino, que é poeta e psicanalista,dizia-me, outro dia: - ‘O brinquedo é a liberdade!’.E para Garrincha o brinquedo, no fim da batalha, foia molecagem livre, inesperada, ágil e criadora. Va-rou os pés adversários, as canelas, os peitos. Não ti-nha nenhum efeito prático a sua jogada arrebatadorae inútil. Mas o doce na molecagem é a alegria inso-pitável e gratuita. E não houve, em toda a Copa, ummomento tão lírico e tão doce.

O Garrincha do texto é aparentemente a “parteira” como pro-tótipo do estrategista da infinitude, citada por Parret (idem) comoaquela que efetua as incisões vitais. É aquele que faz nascer o sen-tido de pertencer a uma comunidade que, desvalorizada por suafeiúra e sua pobreza econômica, resplandece em toda sua singula-ridade através da molecagem, da brincadeira. A essa comunidadenão importa tanto a vitória, muito embora esta pareça indispensá-vel para impor a importância do modo de ser dessa comunidade:o que parece valer mais, segundo o texto de Nelson, é a própriavivência desse “estar-no-mundo”.

A oposição entre os inefáveis virtuoses brasileiros e os técni-cos e previsíveis europeus – que tomariam aqueles como também

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previsíveis – é marcada por Nelson Rodrigues. A chave para o su-cesso brasileiro não estaria na esquematização tática, nem mesmona técnica, mas na singularidade dessa experiência humana, in-compreensível e imperscrutável para a inteligência européia:

Amigos, ninguém pode imaginar a frustração dostimes europeus. Eles trouxeram, para 62, a enormeexperiência de 58. Jogaram contra o Brasil na Sué-cia, trataram de desmontar o nosso futebol, peça porpeça. Toda a nossa técnica e toda a nossa tática fo-ram estudadas, com sombrio élan. Sobre Garrincha,eis o que diziam os técnicos do Velho Mundo: - ‘Sódribla para a direita!’. Era a falsa verdade que se tor-naria universal. O próprio Pelé parecia um mistériodominado.

Após quatro anos de meditação sobre o nosso fu-tebol, o europeu desembarca no Chile. Vinha certo,certo, da vitória. Havia, porém, em todos os seus cál-culos, um equívoco pequenino e fatal. De fato, ele vi-ria a apurar que o forte do Brasil não é tanto o futebol,mas o homem. Jogado por outro homem o mesmís-simo futebol seria o desastre. Eis o patético da ques-tão: - a Europa podia imitar o nosso jogo e nunca anossa qualidade humana. Jamais, em toda a experiên-cia do Chile, o tcheco, ou inglês, entendeu os nossospatrícios. Para nos vencer, o alemão ou suíço teria depassar várias encarnações aqui. Teria que nascer emVila Isabel, ou Vaz Lobo. Precisaria ser camelô noLargo da Carioca. Precisaria de toda uma vivência deboteco, de gafieira, de malandragem geral.

No texto, em oposição ao outro posto no europeu, o eu co-munitário brasileiro incorpora experiências singulares, marginaisem termos da formação da subjetividade européia – aquela quereferencia a discursividade dos intelectuais orgânicos das eliteseconômicas até hoje. Essa definição identitária é característica

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do comunitarismo e não estaremos longe da verdade ao afirmarque essa postura nos remete a uma noção mais clara e honesta emrelação à aceitação das diferenças do que aquela que apregoa aglobalização à extinção das diferenças. Estas sempre existem eexistirão, e nossa visão do mundo, por mais que pareça ou tenteser racionalizante – ou seja, redutora da experiência à verdademetafísica – está sempre marcada pela fisicidade da afetividadecomunitária, muito maispathosdo queethos, bem mais paixãodo que razão. E é com essa paixão arrebatadora que Nelson en-tende a singularidade de ser brasileiro:

Aí está: - no Velho Mundo os sujeitos se pare-cem como soldadinhos de chumbo. A dessemelhançaque possa existir de um tcheco para um belga, ou umsuíço, é de feitio do terno ou do nariz. Mas o brasi-leiro não se parece com ninguém, nem com os sul-americanos. Repito: o brasileiro é uma nova experi-ência humana. O homem do Brasil entra na históriacom um elemento inédito, revolucionário e criador:a molecagem. Citei a brincadeira de Garrincha numfinal dramático de jogo. Era a molecagem. Aque-les quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané,magnetizados, representavam a Europa. Diante deum valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Eu-ropa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres,os seus claustros, os seus rios.

Vocês assistiam, pelo vídeo-tape, todos os mat-ches. O europeu aparecia com uma seca, exata obje-tividade, sem uma concessão ao delírio. Ele própriose engradava dentro de um esquema irredutível. Aopasso que o Brasil faz um futebol delirante. Numasimples ginga de Didi, há toda uma nostalgia de ga-fieiras eternas. O nosso escrete era vidência, ilumi-nação, irresponsabilidade criadora. Só a Espanha éque chegou a lembrar o Brasil. Seu escrete parecia

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passional também. Mas logo se percebeu a falsa se-melhança. Os espanhóis têm uma paixão sem gênio,uma paixão burra. Chegaram a nos ameaçar, por ve-zes. Veio, porém, um sopro da praça Sete, do Pontode 100 Réis, e Amarildo, o ‘Possesso’, encaçapoudois.

Percebamos que essa paixão está presente como uma pré-con-dição para qualquer comunicação – mesmo nas mais sisudas, emque a paixão não está ausente, mas latente nas entrelinhas. Tam-bém precisamos ter claro que todo e qualquer ato comunicativotraz em seu bojo um conteúdo de caráter ético, isto é, que tema função de orientar a compreensão, motivando o reforço de umcerto tipo de comportamento que está fundado nessa compreen-são. No entanto, a comunicação parte,a priori, da formalizaçãoestética que, em última instância, sustenta e legitima os conteúdoséticos. Tal formalização parece sempre estar comprometida coma veiculação de pressupostos comunitários16, entronizados comoproposições vinculadas a um “estar-no-mundo”, nascidas de umsenso que parece estar fundado no compartilhamento, nosensuscommunalisde que nos fala Parret (idem). Essas proposições semanifestam de forma estética pois estão incorporadas num pa-drão discursivo que antecede a formalização em palavras. Sãomais expressos em afetos do que nestas, são como uma verdadesuprema, geralmente não expostas a contradições pois aquém dasfalas e dos textos. São como o marulho dentro do qual estas eestes acontecem. Em outros termos, essas proposições parecemestar presentes nos meios comunicativos primordiais para a for-

16 Sabemos que esses pressupostos estão fixados não em palavras, mas ematos, constituindo uma “memória” fixada nesses atos ritualizados com sons emovimentos corporais, o que corresponde a mais importante função de trans-missão de informações e de preservação cultural: se fosse feita simplesmentepelas palavras, não teria a pregnância desejada para a transmissão dos fatos dacultura. No entanto, essa função não é pensada como tal pelos habitantes deuma sociedade oral. Para eles, o ritual é a integração com a comunidade e comsua verdade, a única existente.

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mação da identidade: seus conteúdos são como mensagens queestão condicionadas pelos meios que os manifestam, como no mo-delo proposto por Marshall McLuhan (1969). Também podemosdizer que são como as manifestações do Inconsciente freudiano,já que, antecessoras e motivadoras das formalizações conscien-tes, discursam o sujeito que, na ilusão da afirmação da identidade,acredita que ser o seu “eu” o autor de seus próprios discursos.São essas manifestações, assim como os conteúdos inefáveis dosensus communalis, que dirigem o filme da vida de cada um denós, muito embora acreditemos, como protagonistas arrogantesque costumamos ser, sermos nós os senhores autônomos de nos-sos pensamentos e ações.

Queremos dizer que parece haver por trás de toda comunica-ção uma racionalidade ligada à verdade que a sustenta e legitima.Richard Rorty (2000) a compreende como um consenso que sótem validade em tempo e espaço determinados, o que invalida abusca filosófica da Verdade como uma entidade única e válidapara todos os tempos e espaços, como a empreendida pela pro-posição metafísica racionalista de Platão, por exemplo. Em cadamanifestação discursiva, em toda comunicação, há uma raciona-lidade fundadora; não a da Razão como acesso a uma Verdadeuniversalizante – muito embora os membros de uma comunidadea pretendam assim – mas uma racionalidade que serve como lentede abordagem e compreensão de tudo o que a percepção captura.Essa racionalidade é a que está posta noa priori das comunica-ções. Se eu posso compreender algo é porque posso me envolverafetivamente com esse algo.

O envolvimento afetivo de Nelson Rodrigues com a “brasi-lidade” – melhor seria dizer a “cariocalidade”, já que ele trataprimordialmente de valores da cultura carioca como referência –permite que ele louve a sua aldeia de uma forma tão sagaz e poé-tica. Nos dois últimos parágrafos do texto, ele acentua a noção da“superioridade” do brasileiro em relação ao europeu. Trata-se deuma verdade muito própria da razão “rodrigueana” e parece tero valor de enaltecer características pouco valorizadas da comu-

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nidade brasileira – ou carioca –, elevando-as a nobres elementosconstitutivos dos valores culturais forjados, a suor e sangue, nocotidiano dos “botecos e esquinas”. Para ele, é a sua comunidadea que vive: as demais, a européia, em particular, apenas finge quevive:

Contra a Inglaterra foi uma vitória linda. Não tí-nhamos rainhas, nem Câmara de Comuns, nem lor-des Nelsons. Mas tínhamos Garrincha. E tínhamosZagalo, o de canelas finíssimas e espectrais. E Nil-ton Santos, com a sua salubérrima eternidade. E ne-gros ornamentais, folclóricos, como Didi, Zózimo eDjalma Santos. Logo se viu, entre o nosso craque e oinglês, todo um abismo voraz. O inglês apenas jogafutebol, ao passo que o brasileiro ‘vive’ cada lance esofre cada bola na carne e na alma. Djalma Santospõe, no seu arremesso lateral, toda a paixão de umCristo negro.

E mesmo fora do futebol, o europeu faz uma imi-tação da vida, enquanto que o brasileiro vive de ver-dade e ferozmente. Ninguém compreenderá que foia nossa qualidade humana que nos deu esta Copa tãoalta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: - foi omistério de nossos botecos, e a graça das nossas es-quinas, e o soluço dos nossos cachaças, e a euforiados nossos cafajestes. Jogamos no Chile com ardenteseriedade. Mas a última jogada de Mané, no adeusaos Andes, foi uma piada, tão linda e tão plástica. Nomais patético das batalhas, o escrete soube brincar.Esse toque de molecagem brasileira é que deu à vitó-ria uma inconcebível luz.

Num outro texto, “Uma barata seca de 250 milhões”, publi-cado na revista Manchete no dia 1/12/1962, aproximadamenteseis meses após o bicampeonato, ao comentar a recusa da ofertamilionária de um time italiano pelo passe do atacante Amarildo,

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jogador do Botafogo do Rio, Nelson Rodrigues produziu um textoque exprime de forma direta e franca o sentido do jogo “infinito”,o jogo da cultura:

É certo que a morte está em nós, docemente emnós. O sujeito que nasce já começou a morrer. Oberço é a primeira experiência de sepultura. Assimacontece com os homens e com os clubes. Todosmorrerão um dia. Mas um clube que expulsa 250 mi-lhões – não quer morrer e demonstra a sua vocaçãode eternidade.

Está posta aí a oposição entre os jogos econômicos da soci-edade e os jogos da cultura, da comunidade. A recusa da ofertamilionária, para Nelson, é o compromisso com a eternidade dosjogos infinitos, dos jogos da cultura, e a recusa a participar damesquinhez da finitude do jogo econômico. Como ele mesmoafirma, possivelmente o registro da finitude é possivelmente o quefaz com que as comunidades – e as pessoas que participam delas– desenvolvam seus valores de forma tão sólida e adstringente.Possivelmente, a comunidade representa, para cada um de seusmembros, a eternidade, a única forma de transcender a limita-ção da existência. Talvez seja por isso que a afirmação obsessivadesta, da existência – ou do sentimento de “estar-entre-outros”,para Parret (idem) – seja aquilo que mais é encenado no espetá-culo midiático da contemporaneidade.

Passemos do futebol para uma atividade bem mais “séria”, afilosofia, para endossar nossa compreensão sobre o jogo de soci-edade. Percebemos que a pretensão filosófica platônica não era ade ensejar um processo ligado aos jogos culturais, atuava contrao espírito comum na medida em que o desprezava como estúpido,perdido em “doxas”, iludido com o que via diante de si e denomi-nava de realidade. O comunitário, para Platão, deveria fazer partedo lixo da história, já que, com suas proposições, notadamente aspresentes no seu tratado político intitulado “A República”, deve-ria se iniciar um processo histórico de predomínio da Razão. E a

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Razão não é um atributo do comunitarismo que, ao contrário, porsua própria definição, prefere os sentidos compartilhados afetiva-mente na experiência comum, às verdades puras enunciadas peloracional.

O embate histórico entre sociedade e cultura se dá de formadireta ou indireta, sempre mantendo as características observa-das no conflito Platão x sofistas. Trata-se, bem podemos ver,de uma oposição constantemente posta na lógica ocidental, par-ticularmente a sua lógica hegemônica, a européia. Rorty (1998)foi um dos que marcou bem essa particularidade das escolas fi-losóficas da Europa – herdeiras diretas, em sua grande maioria,do platonismo. Para ele, exatamente onde os filósofos do VelhoMundo acreditam estar procurando respostas, é exatamente ondetodo aquele que procura ajustar a visão ao horizonte da cultura,não as deve procurar. A busca dos europeus é uma busca tautoló-gica, pois sempre encontram o que procuravam no local de ondepartiram – a verdade que já estava formulada nos seus problemas.O objetivo do “dançarino” – metáfora usada por Parret (idem),citando Kant, para designar o jogador dos jogos infinitos – nãopode estar determinada pela certeza de achar o que já conhece.A experiência, odiada por aristocratas como Sócrates e Platão, “avivência dos botecos, gafieiras e esquinas” de que nos fala NelsonRodrigues, não busca a estreiteza do “tautismo” preconizado porLucien Sfez (1994) quando critica oethosmidiático.

2.2.3 A demonização do funk carioca

Já que falamos tanto na brasilidade rodrigueana, podemos apro-veitar para refletir rapidamente sobre o que aconteceu no Rio deJaneiro nas últimas duas décadas, procurando usar uma reflexãosobre o processo conflitivo entre sociedade e comunidade consti-tutivo desse período, e os jogos que abordamos.

Aquilo que Nelson Rodrigues via como uma “nova experi-ência humana”, o brasileiro – leia-se o carioca pelas referênciaslocais do autor – não mais existe. Foi sendo, aos poucos, ali-

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jado do espaço urbano e hoje se encontra soterrado pela experi-ência das quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas, mui dignas –por que não dizer? – representantes da finitude do jogo societá-rio. A “molecagem” deu lugar às guerras intestinas entre gruposque controlam pontos de vendas de tóxicos. Os “negros ornamen-tais” se transformaram em soldados armados, não para defenderuma causa, mas para confrontar a polícia que, quando pode, entranas comunidades para extorquir, espancar, humilhar e matar. Apaixão, presente no “cristo negro” Djalma Santos quando cobravaum simples lateral, perde espaço para a adesão ao jogo finito, ojogo dohomo oeconomicus, cristalizada na movimentação do li-vro de contabilidade das vendas das drogas ilícitas. A brasilidadecantada por Nelson parece estar perdida e só encontra registrosem textos como o que abordamos neste ensaio.

Uma importante batalha cultural no Rio de Janeiro foi perdidano início dos anos 90. Vale lembrar da demonização que sofreu ofunk – já referida no primeiro capítulo –, por parte da mídia, nosanos 90, com a exploração dos paradigmas do preconceito sociale racial em editoriais e matérias que atribuíam aos funkeiros umaíndole desordeira, além de acusá-los de vinculação direta com o“crime organizado”17 . Provavelmente não estaremos delirandoao afirmar que o que se temia não era tanto a desordem. O queestava em jogo era a invasão da cidade e, principalmente, da pautamidiática por parte de uma multidão de excluídos, que cada vezmais seduziam os jovens da “zona nobre” da cidade, a sul, re-duto das classes médias conservadoras cariocas. E isso tinha lá assuas conseqüências na subjetividade do carioca, que incorporou ojeito funk em gírias e comportamento, ainda dominantes princi-palmente nos subúrbios mas com menos força nas áreas “nobres”

17 Parece claro que a organização do crime não se dá por conta das quadri-lhas, como os meios de comunicação nos querem fazer crer. As efetivas orga-nizações criminosas estão encasteladas principalmente no “andar de cima” dasociedade. A atribuição de uma pretensa organização às quadrilhas chegaria aser cômica, se não fosse trágica por ocultar aqueles que realmente ganham como crime e colocar na linha de tiro pessoas que praticamente não têm opções desobrevivência a não ser a adesão aos negócios do tráfico de drogas ilícitas.

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da cidade, as habitadas pelos mesmos que satanizaram o funk. Po-rém, como lembra Malaguti Batista (idem, p. 34), “A ocupaçãodos espaços públicos pelas classes subalternas produz fantasiasde pânico do ‘caos social’, que se ancoram nas matrizes consti-tutivas da nossa matriz ideológica”, e a reação a essa ocupação“caótica” tinha que ser efetiva.

Havia, naquele momento, uma interação bastante interessanteprincipalmente entre os jovens “do morro” e os “do asfalto”, pa-trocinada pelo funk – um estilo musical importado dos EstadosUnidos (oMiami Bass) que, após estar presente por décadas nosbailes dos subúrbios e periferias, acabou sendo incorporado comomanifestação cultural das comunidades dos bairros populares, quepassaram a se expressar tendo como base a cultura que nasceu emtorno desse estilo musical. Em São Paulo, o rap dava os primeirossinais de vida – de verve contestatória – e no Rio, muito em conso-nância com o que acontecia na capital paulista, funks eram com-postos para cantar a vida nas comunidades e falar das injustiçassociais, ganhando rapidamente a aceitação de jovens das classesmédias, que não apenas ouviam e cantavam essas músicas comofreqüentavam os bailes, que aconteciam geralmente nas favelas.

Esse contato, porém não se restringia à juventude. Havia umainteressante interação entre os membros dessas comunidades e ascamadas médias da população, e as ruas estavam cheias de genteque vinha das favelas e periferias para vender produtos que che-gavam com a queda das taxas de importações, mendigar, traficar,roubar ou mesmo apenas conhecer o outro lado da cidade. O re-sultado foi um inevitável confronto cultural, com uma aproxima-ção, ainda que conflitiva (como não poderia deixar de ser) entreas camadas baixas e médias da população carioca. A eclosão dofenômeno midiático dos “arrastões” incentivou a eleição de Cé-sar Maia, um oportunista que soube como trazer para um discursoconservador e discriminatório – para o jogo finito do poder – osentimento de insegurança pelo contato, nada pacífico, entre co-munidade/sociedade. Sua eleição foi decisiva para os interessesconservadores, para quem o combate ao funk foi a porta de en-

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trada para um discurso de limpeza do cenário urbano – como ilus-trou o projeto Rio Cidade de Maia –, criando inclusive mais umainstituição repressiva, a guarda municipal, e uma obsessão pelaexpulsão dos camelôs, mendigos e pequenos ladrões, ou seja, aculturalumpem, para longe do visual urbano18 . Por ser o elo decontato cultural entre as classes, o funk foi a primeira vítima dablitz. O instrumento de mediação estabelecido entre os jovens po-bres e os de classe média acabou relegado aos guetos, hoje quaseque exclusivamente nos braços do tráfico de armas e drogas ou,quando incorporado à cultura, nos bolsos dos empresários quelucram com os bailes onde o “espírito comum”, osensus commu-nalis, foi substituído pela lucratividade da exploração desse lu-crativo negócio: os jogos da cultura foram capturados com a en-cenação estética de que falamos anteriormente ou relegados aosguetos.

Antes da demonização, o que predominava era a glamouriza-ção do ritmo remetido a uma forma de vida, uma certa “malan-dragem” ainda um tanto próxima da “molecagem” de Nelson Ro-drigues, mas com características espaço-temporais bastante sin-gulares: a culturalumpemque o político oportunista acima citadoescolheu como inimiga desde sua campanha, capturando a sen-sação de medo que o contato entre as culturas proporcionava àclasse média. Não foi à toa que os incidentes batizados pela mí-dia como “arrastões”, acontecidos nas vésperas das eleições paraa Prefeitura do Rio, em novembro de 1992, foram imediatamenteatribuídos ao ícone cultural das comunidades pobres, o funk. Os“baderneiros” eram funkeiros, membros de gangues que freqüen-tavam os bailes, diziam os jornais das classes médias, como seisso significasse essencialmente o mal, ou seja, a barbárie.

Depois de sua demonização midiática, o funk foi empurradopara os braços das quadrilhas que loteiam as favelas cariocas, e

18 O ex-governador Anthony Garotinho, atual secretário de Segurança doEstado, criou, em 2002, a operação “Zona Sul Legal”, que tinha como propostabásica “reduzir a sensação de insegurança” pela retirada dessaspersonas nongratasdo cenário das elites dessa região da cidade.

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a polícia combate a realização dos bailes, identificando-os comoantro de drogas e prostituição infantil19 . Isso demonstra que areação das elites cariocas à cultura funk se deu de forma efetiva, eo combate sobre a manifestação cultural que vinha aproximando,num determinado momento histórico, os jovens das classes mé-dias e baixas, foi feroz e contundente.

Por que não dizer que o que houve foi uma vitória da Razão?Afinal, drogas são aliciadoras da boa consciência da juventude,podem influenciar negativamente os cidadãos, e o funk era a ex-pressão da irracionalidade comunitária, maldita desde Platão. Aação sobre o funk, como manifestação cultural comunitária, foicontundente como devia ser a ação do poder público da Repú-blica platônica sobre a irracionalidade cultural dos poetas. O queestava em jogo naquele momento era uma nova forma de inte-ração cultural, e o seu esmagamento foi fruto dos interesses quemarcam os “jogos finitos”, os jogos que precisam dos vencedorescomo os de cultura precisam dos artistas.

Os argumentos usados para o combate ao funk foram sofis-mas, como eram os usados por Platão contra os sofistas. Eramapenas sofismas aliançados com o poder, enquanto os argumentosdos funkeiros e sofistas não o eram. Assim, podemos entender queos jogos “finitos” são também comunitários, de uma comunidadeque pretende transformar o mundo à sua imagem e semelhança.São os jogos das regras que sempre beneficiam essa comunidade,a “comunidade” doswinners, talvez a que Bauman (1999) identi-fica como sendo formada por menos de 400 pessoas, aquelas quecontrolam a maior parte do capital circulante no planeta – comodiria uma personagem do romance “Arlequim”, de Morris West(1988), os“capos” de uma quadrilha pomposamente chamada de“mercado”. Os homens aos que o pensador do “fim da história”,Francis Fukuyama (1992, p. 367) classificou comthymus:

19 Foi numa incursão a um desses bailes que o repórter da TV Globo, TimLopes, foi assassinado.

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O thymusé a parte do homem que deliberada-mente procura a luta e o sacrifício, que tenta provarque o eu é algo melhor e mais elevado do que umanimal medroso, carente, instintivo e fisicamente de-terminado. Nem todos os homens sentem essa moti-vação, mas, para os que sentem, othymosnão podeser satisfeito pelo mero conhecimento de que têm omesmo valor que todos os outros seres humanos.

A oposição entre sociedade e cultura é instrumental, mas parasermos mais honestos conosco mesmos, precisamos entender queo que chamamos de jogos de sociedade serve aos interesses deuma pequena parcela da população mundial, e é característico domodo de ser dessa comunidade. Retomando a tomada de posi-ção de Raquel Paiva na introdução de seu “O Espírito Comum”,acreditamos que a sociedade civil precisa tomar consciência deque a inserção no mundo dos jogos econômicos responde a umaespécie de ataque à diversidade cultural, de adesão a um modode vida que tem como único objetivo a globalização não da eco-nomia – esse discurso estruturante dos interesses da comunidadepromotora dos jogos “finitos” – mas da mediocridade dos valoresdessa comunidade. Quando Durkheim fundou o conceito de soci-edade – nos termos de sua sociologia – estava transplantando paraa totalidade dos fenômenos sociais a crença de uma classe socialna sua própria onipotência. O que acontece hoje não é em nadadiferente disso.

A tendência contemporânea de aceitação da imposição da ló-gica de ordenação das relações sociais pela pauta do mercado –essa entidade imaginária que designa apenas os interesses dosque manipulam o jogo econômico – parece ser um dos fenôme-nos mais pernósticos e nocivos à vida que a humanidade já expe-rimentou. Não se trata apenas de um movimento autoritário deabsorção de mão-de-obra para uma radical concentração de capi-tal. Trata-se, como sugere Guattari (1999) ao abordar o tema doagenciamento da subjetividade, de um ataque à diversidade cultu-ral como tática para tornar mais fácil a naturalização de sua lógica

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pernóstica de redução da realidade a um cassino. Representa umgolpe não somente à brasilidade, da molecagem rodrigueana, masa toda e qualquer organização cultural e comunitária, algo comoum assalto em que o ladrão pretende roubar, junto com a nossacarteira, também a nossa alma.

Jogando os jogos “finitos”, o indivíduo ocidental crê ser estaa única forma de lidar com a tensão na qual a sociedade lhe en-volve. Aceita a redução de sua pessoalidade à de um jogadorque sonha com a vitória para aliviar a situação desagradável emque vive, mas somente a intensifica. A promessa do paraíso davitória, o sucesso pessoal ou profissional, o ganho de “pontos”rumo à conquista de um melhor posicionamento no “campeonato”econômico-financeiro, é o que lhe move, mas também é aquiloque lhe paralisa. A estreiteza desse jogo não lhe deixa alternati-vas e lhe costuma tirar mais do que lhe dar, principalmente porquenão é o indivíduo que escolhe as regras e estas podem mudar re-pentinamente. Sendo assim, muitos aceitam regras que podemcontrariar seus valores e desmentir a ética na qual se julgam in-seridos. Mostram, assim, extrema maleabilidade moral e pessoal,uma habilidade indiscutível para adaptar-se a condições difíceise incertas para continuar jogando. Esses, para o sistema, são osmelhores jogadores. São os que abandonaram definitivamente osjogos “infinitos” e aceitaram a “finitude” da liberdade econômica.

Os “melhores” são os que aceitaram “existencializar” a vidapelo norte da essência econômica, mas entre eles não estão apenasos que ganham. Há muito mais derrotas do que vitórias para amaioria, principalmente porque as regras facilitam as coisas paraos que têm mais fichas para jogar, uma minoria. Estes, com suaforça macro e micropolítica, não apenas determinam o campo dojogo e as regras, mas detêm também a simpatia do juiz e a torcidamidiática. Por isso, nesse “jogo”, alguns são empresários e outrossão bandidos.

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Capítulo 3

Convite a uma sala deespelhos: a subjetividade

especular do Ocidente

No capítulo anterior falamos de uma sociedade. Não é exatamente“a” sociedade, mas é aquela na qual os cariocas se inserem cadavez mais. Também falamos de uma cultura, ou melhor dizendo,de culturas, ou de manifestações culturais. Vimos que enquantoaparentemente se costuma crer que há uma captura do social pelocultural, com o estético abolindo o ético ou fundando, como refereMichel Maffesoli (1996), uma “ética da estética”, o que pareceocorrer é o oposto, com o fortalecimento da ética – de uma certaética – em detrimento da estética, capturada para os “jogos fini-tos”. E cremos ter ficado sugerido que apenas um pensamento euma ação política pode desvendar os engodos postos e agir trans-formando a realidade.

Uma compreensão central para desvendar a situação de medona qual a sociedade carioca se acha também está posta no capítuloanterior. A questão da nostalgia pelo comunitário, pelo tradicio-nal, que ofereceria maior segurança pela vinculação com a noçãode proteção, é um sintoma interessante. Cremos que a projeçãode um estado nirvânico no comunitário e, por conseguinte, no cul-

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tural e no estético, corresponde a um anseio de sentido diante daprópria identidade no “jogo finito” da sociedade econômica. Odiscurso obsessivo por segurança parece tem essa raiz imagináriae os apelos por paz podem ser compreendidos como um apelo aum suposto espírito comunitário. No entanto, que ironia, essesapelos não trazem consigo qualquer proposta de integração dosexcluídos do jogo ou qualquer proposta de reformulação, nem se-quer tenta pensar sobre o porquê das coisas terem chegado aondechegaram. São simples apelos vinculados à crença de que a cul-tura burguesa, a adotada pelas classes médias que se identificamcom esse ideal societário, é não apenas a melhor, como a únicaque pode ser levada a sério. Assim, nada muda, nada sai do lugar,e os “bandidos” vão aprendendo que só há um caminho possívele é este que vêm trilhando.

A proposta de adesão aos “jogos de sociedade” regrados peloestatuto econômico parece ser atraente pela promessa de liberdadeque traz consigo. O comunitário significa proteção, mas também,sob o vértice econômico, oprime, pois controla. Os conhecimen-tos tradicionais trazem tudo pronto e ao sujeito nada resta a nãoser aceitá-los e segui-los sem pestanejar. Isso não é desejado parao Homo oeconomicus.Ele precisa de liberdade, de escolher ospróprios caminhos sem peias de qualquer ordem. Sua noção de“Mercado”, por exemplo, representa bem esse espírito: o mer-cado deve se regular a si mesmo, ser livre, o mais absolutamentelivre possível. Todos sabemos, no entanto, que isso não funcionaassim, e Antonio Gramsci (1978) denuncia o fato de que qualqueratividade econômica deve ter como condição preliminar a inter-venção estatal. A tese central desta dissertação está relacionada aesse engodo denunciado por Gramsci, porém não se atém especi-ficamente às relações incestuosas entre economia e Estado. Nossacompreensão é a de que há uma inversão deliberada na projeçãode sentido da sociedade ocidental. Não somente é falaciosa a no-ção de “Mercado”, como toda a proposta de liberalização, sejaela econômica ou existencial. Seguindo a trilha de investigaçãosobre o “medo carioca”, pudemos entender que este é em grande

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parte um elemento fundamental do construto proposto pelo dis-curso hegemônico no ocidente contemporâneo. A questão é queesse medo, que deve existir efetivamente, pois há ameaças explí-citas à pacata vida das classes médias, é desviado de seu objetoameaçador para outro, historicamente conhecido e, por isso, fa-cilmente utilizável: o medo dos pobres, ou, como melhor defineMalaguti Batista (2003) da “rebeldia negra”.

3.1 A essência e a existência como parâ-metros

Como vimos, foram Sócrates e Platão quem deu início à perspec-tiva essencial da vida. Foi com a dialética que nasceu a concepçãode uma categoria filosófica que expressa a característica funda-mental e a natureza intrínseca a todo ser ou objeto. A essênciade algo é como a sua identidade interna, o seu resumo metafí-sico, aquilo ao qual todo ser rende obediência, aquilo que diz aoser o que ele efetivamente “é”, delimita a sua “verdade”. Platãoa chamava “idéia”, enquanto Aristóteles a tratou como “forma”.Esse elemento de digressão filosófica foi investido e reinvestidopor toda a tradição filosófica européia e até hoje se mantém comoa base referencial para a subjetividade ocidental. Há uma ligaçãoinequívoca entre “Essência” e “Verdade”, sendo a “Razão” o ins-trumento platônico para alcançar tanto uma, quanto outra. Nessalógica, não apenas há uma diferenciação fulcral entre essência eexistência, como aquela precede esta. Enquanto a essência é uni-versal, a existência seria singular, individual. Nesse caso, pode-mos dizer que o único caso no qual essência a existência coinci-dem é o do deus monoteísta. Nele, há identidade entre o universale o particular.

Roland Corbisier (1987, p. 85) descreve bem a diferenciaçãoentre essência e existência:

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A distinção entre essência existência correspondeà distinção entre conhecimento intelectual e conhe-cimento sensível. Os sentidos nos põem em contatocom os seres particulares e contingentes, únicos querealmente existem, ao passo que a inteligência nospermite apreender as idéias ou essências, gêneros eespécies universais, meras possibilidades de ser, emsi mesmas inexistentes. Sabe-se, no entanto, desdeSócrates, que o objeto da ciência é o universal e nãoo particular, quer dizer, a essência e não a existên-cia. Platão tenta resolver essa contradição hiposta-siando as idéias, atribuindo-lhes realidade, no mundosupra-sensível outópos uranos. Poder-se-ia dizer queé em nome da existência que Aristóteles critica a te-oria platônica das idéias, sustentando que as idéias,ou essências, não estão fora mas dentro das própriascoisas, as quais, feitas de matéria e de forma, contêm,em si mesmas, o universal e o particular; a essência ea existência.

A noção de “Essência” traz em si uma amarra do “Ser”. Al-guém “é” necessariamente algo de acordo com o que lhe é es-sencial. Desse modo, as classes médias cariocas podem ter umaidentidade “essencial”, isto é, a noção de seu lugar social existeantes de suas existências. O mesmo ocorre com os “bandidos”.No entanto, essa forma de perceber a realidade, de definir identi-dades e verdades não pode ser, ao menos explicitamente, adotadaem uma sociedade econômica. Esta representa o rompimento coma lógica essencial, ainda que um rompimento simulado.

Tal ruptura se dá pelo que chamamos “existencialização” daexperiência. O Existencialismo foi uma doutrina filosófica do sé-culo XX que propunha exatamente o rompimento com a doutrinaessencialista, denunciando o caráter imobilizador desta em rela-ção ao sujeito. Teve como expoentes Sören Kierkegaard, KarlJaspers, Martin Heidegger e Jean Paul Sartre, no entanto muitos

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outros autores podem ser citados como próceres dessa transfor-mação de perspectivas em relação à existência, que rompeu coma tradição filosófica do ocidente, entre eles Nietzsche e também osfundadores e membros da escola estadunidense do Pragmatismo.Vejamos o que diz Rorty (1998, p. 17) sobre a noção de “Ver-dade”:

(...) Uma vez considerado que “verdadeiro” é umtermo absoluto, suas condições de aplicação serãosempre relativas. Pois não há algo como uma crençaque seja justificadasans phrase– justificada de umavez por todas – pela mesma razão que não há umacrença que possa ser, para todo o sempre, indubitável.Há um grande número de crenças (e.g., “Dois maisdois são quatro”, “O Holocausto aconteceu”) sobreas quais ninguém com quem nos importa discutir teráqualquer dúvida. Mas não há nenhuma crença quepossamos conhecer que seja imune a toda e qualquerdúvida possível.

Para essa concepção, a noção de “Verdade” tem correspondên-cia com a de realidade e não haveria possibilidade de uma univer-salização. Como compreende Martin Heidegger (1991), o ser éprojeto e não está dadoa priori . Logo, a essência deve ser descar-tada pois representa um esgotamento das potencialidades da exis-tência e Jean-Paul Sartre (1967) destacou a inerência da liberdadee da angústia que ela traz com essa perspectiva. Esse posiciona-mento filosófico adquire uma praticidade no discurso econômicoliberal. Vejamos como.

Tomemos as essências do bem e do mal. De um lado estáaquele, do outro este. A princípio, um não tem qualquer relaçãocom o outro, pois são essências opostas. Até o surgimento dasCiências Humanas burguesas, entre elas a Economia de AdamSmith e a Sociologia de Émile Durkheim, efetivamente não ti-nha. A partir desse momento, essas essências foram relativiza-das e tornadas orgânicas, ou seja, inseridas em um todo que as

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rege, a “consciência coletiva”, para Émile Durkheim (1988) e o“mercado”, para Adam Smith (1979). Se tomarmos o “mundodas idéias” platônico como uma referência subjetiva estruturantepara a subjetividade ocidental, podemos dizer que ele “desceu” doplano metafísico para o plano físico. Tornando-se “carne”, passoua supostamente habitar entre os mortais, que teriam alcançado aplenitude da vivência conceitual, como era a proposta aristocrá-tica platônica, sem, no entanto, estar submissos a elas.

Podemos dizer que o humano, até a hegemonia burguesa, es-tava entre dois pólos estáticos ontogenicamente separados, e pas-sou, a partir de então, a uma vivência existencial da realidade coma possibilidade de manipular essas essências a seu favor. Assim,Durkheim (idem) pode considerar o crime – o mal – como poten-cialmente orgânico, já que tem uma função social a desempenharna medida em que pode apontar para a necessidade de transfor-mação da “consciência coletiva” e aprimorar a ordem social – obem. Da mesma forma, a Economia considera que a recessão e odesemprego – o mal – são partes integrantes do sistema de mer-cado e até mesmo, na implementação do neoliberalismo1, passam

1 Trata-se da retomada do ideário liberal derrocado com o fim da “paz doscem anos” (Karl Polanyi, 2002). A insatisfação das elites com os seus ganhosno sistema capitalista keynesiano necessitava de uma base para a mudança dojogo a partir da crise dos anos 70. Obter um instrumento teórico foi importante– com grupos como o de Mont Pèlerin suprindo os administradores liberaiscom estratégias e táticas de ação –, mas isso não bastava. Era preciso, paraa liberalização da circulação do capital, quebrar as resistências dos governosnacionais, não servindo mais a estratégia da promoção de ditaduras militares,como na América do Sul na década de 60 e parte da de 70. Os Estados Unidos,a locomotiva do processo, precisavam engendrar uma nova modalidade de açãosobre o resto do mundo e a formação de “tecnopolíticos” (“technopols”), como patrocínio adequado para a elevação destes ao estrelato do poder, principal-mente nas nações subdesenvolvidas, fato registrado por José Luís Fiori (1994,p. 6): “Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for InternationalEconomics, destacado ‘think tank’ de Washington, tendo à frente Fred Bergs-ten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por JohnWilliamson, ‘In Search of a Manual for Technopols’ (Em Busca de um Manualde ’Tecnopolíticos’), num seminário internacional cujo tema foi: ‘The Politi-cal Economy of Policy Reform’ (A Política Econômica da Reforma Política).

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a ser consideradas “estruturais”, ou seja inseridas como condiçãode sucesso do sistema econômico – o bem. O bem e o mal setocam, mas, de forma diferente do que acontece nas filosofias ori-entais – nas quais eles se entrelaçam, como no Tao –, o primeirodeve sobrepujar o segundo.

Dizemos que se trata de uma “existencialização” da experi-ência na medida em que compreendemos que discursivamente, opensamento burguês desloca a essência de sua condição imanentepara a de transitoriedade, com o sistema adquirindo um inequí-voco feitio dinâmico. A lógica comercial das classes médias pro-jeta uma perspectiva de libertação das amarras da Verdade platô-nica. Trata-se de um suposto rompimento com a tradição estáticada essencialização da existência, umdasein2 , um devir posto emmovimento pela angústia do não movimento. A burguesia põe

Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos multilateraise de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com repre-sentantes de 11 países da Ásia, África e América Latina ‘as circunstânciasmais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um technopol a ob-ter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso’ o programade estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anosantes, havia chamado de ‘Washington Consensus’ (Consenso de Washington).”

Tratava-se de um projeto para implementar aquilo que passou a se chamareufemisticamente de “ajustes” nas economias dos países “de segunda linha”, osque, também de forma eufemística, começaram a ser tratados como “emergen-tes”. Fiori (idem) deixa claro que a pauta era a homogeneização desses paísesnum só projeto, tarefa a ser realizada pelos "technopols"que Williamson ideali-zara: “economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu ‘mainstream’(evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementarnos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do ‘Consensus’(...).”

O Plano Real, instrumento de estabilização econômica implantado no Brasilno segundo semestre de 1994, pouco antes das eleições que levaram o entãoMinistro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, responsável pela implemen-tação do Plano, ao posto de presidente do Brasil, foi mais um dos planos econô-micos que o “Consenso” espalhou pelo mundo, elaborados pelostechnopols.Nesse sentido, como garante Fiori (idem),“O real não foi criado para elegerFHC, FHC é que foi concebido para viabilizar no Brasil as teses do Consensode Washington.”

2 Termo de Heidegger, que significa aproximadamente “ser-aí”, referindo o“vir-a-ser” existencial.

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sobre o Ser um ponto de interrogação e se compraz em perqui-rir respostas que trazem a sensação de uma potencial liberdade.Porém, como dizia Marx (1961), e muito já se repetiu, “tudo queé sólido, desmancha no ar” nesse mundo aparentemente impre-visível. OHomo oeconomicustem como parâmetro a liberdade,no entanto a observação dessa subjetividade libertária indica quenem tudo é como parece e a amplidão dessa perspectiva pareceser apenas um efeito projetado dentro de uma redoma especular.Todos sabemos o quanto uma sala espelhada produz a sensaçãodo aumento de sua extensão.

Via de regra, tudo nessa lógica parece ser exatamente o opostodo que aparenta, ou, ao menos, cumpre função oposta à que de-clara. A uma construção ideativa com essas características, Marx(1984) batizou de Ideologia, denunciando a inversão do sentidodas condições determinantes da realidade nos discursos das clas-ses dominantes. Ele acertou em cheio no que viu, mas não previaque o que não pôde ver se tornaria a válvula de escape por ondeessa inversão se concretizaria da forma mais engenhosa, a cul-tura. A construção ideológica se refere a um plano conceitual e,assim, trabalha com noções essenciais. Somente nesse caso podeser utilizada, ao menos se lhe tomarmos na perspectiva do pen-samento marxista clássico. Gramsci (1968; 1978; 1985) foi opensador dessa corrente que alertou para essa deficiência da orto-doxia, ressaltando exatamente a ação cultural como fundamentalpara o sucesso da principal premissa do capitalismo, a acumula-ção de riquezas. Em vez de Ideologia, poderíamos falar de uma“culturologia” para designar essa construção. Não se trata exa-tamente de cultura, um conceito amplo demais para ser abarcadopela hegemonia de um padrão, mas de um discurso articulado so-bre o que vem a ser “a” cultura.

A conceituação do que seja ideológico partiu da necessidadede nomear algo que é produzido a partir de umapraxis, ou seja, deuma operação sobre a realidade que produz efeitos sobre esta, masestá oculto por uma ordenação discursiva que oculta os interessescontidos nessapraxis. Nesse sentido, se descortina um sentido

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“existencial”, pois determina que a construção do real não se dáconceitualmente, mas pela prática, sempre política, que admite aliberdade de opção. Porém, assim como a proposta econômicacapitalista, à qual se dirige criticamente, também padece do malde tornar-se presa de ser aquilo que não é. É um construto con-ceitual, de essências, mas se remete obscuramente à existência.Esta, assim, se mantém precedida por uma essência, o fato de serfalsa ou verdadeira. Tão essencial quanto a essência que critica, anoção de ideologia nega a possibilidade de pluralidade, determi-nando que o sujeito não tem mais que duas opções: ser verdadeiro,científico, marxista, ou falso, ideológico, capitalista.

O debate político calcado em noções clássicas como a de Ideo-logia tende a se tornar descontextualizado, uma engrenagem postapara ser admirada como parte da história. Por mais que levemosem conta essa construção, reconhecendo-lhe principalmente o va-lor de apontar claramente a inversão da produção de sentidos, nãotemos como ir além desse ponto. A conceituação no seio dos pa-râmetros postulados pelo pensamento marxista parece cada vezmais intangível. Vejamos, por exemplo, que a expressão “explo-ração do homem pelo homem” se encaixava no discurso marxistacomo uma conceituação que trazia em si uma realidade essen-cial. Tratava-se de uma crítica ao modelo societário capitalista,mas também ao pré-capitalista e trazia uma força essencialmentenegativa. Isso, enquanto “exploração” era inequivocamente com-preendida como algo ruim. Na medida em que se configura umacultura na qual não apenas as pessoas acreditam ser natural ser“exploradas”, como descobrem o prazer existencial de “explorar”uns aos outros, não há como sustentar qualquer projeto de trans-formação socioeconômica através de noções que exortem o moralou o racional. Assim, não houve revolta do proletariado euro-peu, ao contrário, este se tornou tão burguês quanto a burguesia.É, desse modo, um tipo de conceituação que pode ser descartadopara nosso uso no momento, pois se encontra inserida na lógicabipolar. Apesar de lhe ter reconhecido a natureza especular, nãoconseguiu sair da sala de espelhos e simplesmente nos deixará a

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rodar no mesmo lugar, na “báscula do desejo” referida por Jac-ques Lacan (1986). Pode ser útil, porém, para nos mostrar comoa sociedade “capitalística” é suficientemente engenhosa para ge-rar críticas que apenas lhe confirmam a lógica estrutural. Tudoindica que estamos numa potente máquina de produzir delírios etemos que ter muito cuidado para não perder o rumo.

O capitalismo liberal, com seu discurso de liberdade, é, comodissemos, engenhoso, bem mais que a crítica marxista, por issovenceu o duelo e denunciou o caráter ontológico desta, bem comosua ontologia especular. A instituição de uma “burguesia estatal”concentradora de poder político e econômico na antiga União So-viética bem o prova. Vitorioso, o capitalismo, que oscilou entrea proposição original do liberalismo e a proposta keynesiana dehegemonia estatal, assumiu nos últimos anos sua vertente discur-siva existencial. É a essa liberalização que assistimos na socie-dade contemporânea3, a hipertrofia do discurso econômico comoo campo de batalha no qual se dão os embates de toda a ordem.Mais uma vez, não podemos corresponder à noção marxista clás-sica da hegemonia do econômico sobre os demais campos da sub-jetividade humana. Não cremos que a economia seja o prepon-derante. Tendemos a entender que o funil discursivo econômicoé apenas mais uma das aparências projetadas na sala de espelhosburguesa, tão engenhosa a ponto de iludir seus próprios criadores.Não é exatamente o território da ação política, social e cultural

3 Esta, pode ser tomada como pós-moderna, como propõem Jean-FrançoisLyotard (1986) e Fredric Jameson (2002), pois representa o rompimento comalguns dos princípios estritos da modernidade, é, do mesmo modo, uma exa-cerbação de alguns aspectos estruturais da modernidade, como a proposição deliberdade plena, de uma vida na qual a existência precede a essência e deve,inclusive, manipulá-la. Nesse sentido, pode também ser chamada de hiper-moderna, como sugere Gilles Lipovestky (2004). Em outro vértice, pode serconsiderada como reflexivamente moderna, como postula Anthony Giddens(1991). Não é nosso objetivo discutir aqui qual dessas vertentes deve ser con-siderada “a” verdadeira, ou a mais “adequada”. Como aparentemente estamosem um ambiente especular, no qual nada é o que parece ser, podemos compre-ender que cada um desses vértices podem ser considerados como componentesdessa sala de espelhos que é a discursividade ocidental.

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como aparenta. Ter dinheiro não adiantaria nada se não houvesseum bom número de pessoas que não apenas acredita no valor deuma cédula ou de uma moeda, como principalmente acredita queprecisa dele para viver. Aparentemente, o que essa lógica desejanão é exatamente o dinheiro, mas os que o querem possuir, ou,melhor dizendo, suas almas. O econômico nos parece mais ins-trumental do que teleológico. Como afirmam Michael Hardt eAntonio Negri (2001, p. 14), o Império – do qual evidentementenem toda a burguesia usufrui – quer mais:

O conceito de Império caracteriza-se fundamen-talmente pela ausência de fronteiras: o poder exer-cido pelo Império não tem limites. Antes e acimade tudo, portanto, o conceito de Império postula umregime que efetivamente abrange a totalidade do es-paço, ou que de fato governa todo o mundo “civili-zado”. Nenhuma fronteira territorial confina o seureinado. Em segundo lugar, o conceito de Impérioapresenta-se não como um regime histórico nascidoda conquista, e sim como uma ordem que na rea-lidade suspende a história e dessa forma determina,pela eternidade, o estado de coisas existente. Do pontode vista do Império, é assim que as coisas serão hojee sempre – e assim sempre deveriam ter sido. Dito deoutra forma, o Império se apresenta, em seu modo degoverno, não como um momento transitório no de-senrolar da História, mas como um regime sem fron-teiras temporais, e, nesse sentido, fora da História ouno fim da História. Em terceiro lugar, o poder demando do Império funciona em todos os registros daordem social, descendo às profundezas do mundo so-cial. O Império só não administra um território comsua população mas também cria o próprio mundo queele habita. Não apenas regula as interações humanas,como procura reger diretamente a natureza humana.O objeto do seu governo é a vida social como um

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todo, e assim o Império se apresenta como forma pa-radigmática de biopoder. Finalmente, apesar de a prá-tica do Império banhar-se continuamente em sangue,o conceito de Império é sempre dedicado à paz – umapaz perpétua e universal fora da História.

O império capitalista é presa de uma tensão imanente. É o fimda História, a condenação ao “sempre”, a ausência de perspectivascriativas, a prisão num circuito semântico estreito e nada cordial4

- e, mais adiante, quando nos referirmos a alguns conceitos bási-cos da sabedoria judaica da cabala, poderemos entender melhoressa noção, notadamente quando abordarmos a noção de “filtrocósmico”. Esse estado de permanente tensão é característico damatriz européia de sedimentação das relações sociais. Como vi-mos acima, essa tensão é tida como o equilíbrio desejável paraque o sistema funcione. No entanto, no mesmo movimento, o dis-curso imperial também promete a paz duradoura, ou, em outraspalavras, a conquista do espaço metafísico de um mundo idea-tivo, puro e perfeito, como aquele de Platão. A tensão traria apromessa de seu próprio fim como êxtase.

O econômico, ao invés de infraestrutura, nos parece mais umasuperestrutura, o discurso universalizante, a grande narrativa con-temporânea, o meta-relato que a modernidade desenvolveu e quenão se esboroa – pelo contrário, acentua-se como “o” discursouniversal a galvanizar boa parte da humanidade. Tudo passa peloviés da valoração e da negociação. Cada cidadão é um pequenocomerciante que vende sua força de trabalho, isso para os “incluí-dos” no jogo “finito”5 da Economia, pois há os excluídos que nãotêm nada para vender e, assim, estão fora do jogo. Graças à Eco-

4 Cordialidade aqui engloba o seu sentido hoje pouco usado, o da referênciacalorosa, do sentimento advindo diretamente do coração, com seus significadoscorrelatos advindo desse senso.

5 A designação jogo “finito” se refere a um jogo em que o que se buscaé a vitória. Há os jogos “infinitos”, nos quais o que se pretende é jogar. Osprimeiros são os “jogos de sociedade”, os segundos os “de cultura”. Esse temaserá abordado adiante.

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nomia, a lógica filosófica da pureza conceitual bipolar – o “núcleoduro” da racionalidade ocidental – abre-se para o mundo e instala-se entre os viventes, permitindo que seja atualizada como vidacotidiana, como permanente exercício de representação de valo-res. Ainda que trabalhe perenemente com a bipolaridade ontoló-gica, há que se considerar que o pensamento econômico impõeuma certa dinâmica ao processo enfadonho. Permite que o per-curso entre um pólo e outro seja quantificado e relativizado, des-fazendo a rigidez conceitual do racionalismo metafísico. Assim,alguém pode medir o seu acesso ao valor “Saúde”, por exemplo,pagando um plano de assistência médica, tendo “mais” hábitossaudáveis e “subtraindo” investimentos em coisas que podem le-var à perda do “capital” saúde. Pode reduzir a “taxa” de caloriasingeridas, aumentar a massa muscular em tantos por cento, etc.Há sempre algo a fazer para diminuir o percurso entre o sujeitoe a essência que persegue, basta que se quantifique esse percursoe se estabeleçam metas, pequenos jogos, com vitórias e eventuaisderrotas, cuidando que os procedimentos adequados para a apro-ximação sejam tomados de acordo com as condições existentes.Tudo como num negócio comercial, numa empresa. A forma depensar burguesa conseguiu trazer o mundo essencial até nós e temredobrado cada vez mais seus esforços para que ele more definiti-vamente por aqui.

A quantificação, a decodificação da realidade em números, éuma característica da subjetividade da sociedade ocidental con-temporânea, uma sociedade que Deleuze (2004) qualifica como“de Controle”, uma reformulação da subjetividade disciplinar:

Les sociétés disciplinaires ont deux pôles : la sig-nature qui indique l’individu, et le nombre ou numéromatricule qui indique sa position dans une masse. C’est que les disciplines n’ont jamais vu d’ incompa-tibilité entre les deux, et c’est en même temps quele pouvoir est massifiant et individuant, c’est-à-direconstitue em corps ceux sur lesquels il s’exerce etmoule l’individualité de chaque membre du corps (...)

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Dans les sociétés de contrôle, au contraire, l’essentieln’est plus une signature ni un nombre, mais um chif-fre: le chiffre est un mot de passe, tandis que les so-ciétés disciplinaires sont réglées par des mots d’ordre(aussi bien du point de vue de l’intégration que de larésistance).

Tudo deve ser numerado e as definições identitárias têm sem-pre uma inequívoca expressão quantificável de acordo com o re-lacionamento entre fatores. Impõe-se uma virtualidade pautadaem possibilidades numéricas potencialmente infinitas; a maioriabem definida e finita. A essência não é mais um elemento fixo,definidoa priori por algum demiurgo. Ela pode ser relativizada e,de algum modo, existencializada. Depende daquele que a mede,do modo como a utiliza na sua vida de “negócios” existenciais.Tudo é comércio, como desejou a burguesia quando desbancou oleviatã. Dois séculos depois, ao que tudo indica, atingimos o pa-roxismo desse modelo. Como afirma Fredric Jameson (2002, p.412):

(...) nunca houve um momento da história do ca-pitalismo em que este tenha tido maior liberdade deação ou espaço de manobra: todas as forças ame-açadoras que ele havia gerado contra si mesmo nopassado – os movimentos trabalhistas e as insurrei-ções, os partidos socialistas de massa, e até os Es-tados socialistas – parecem hoje em completo desar-ranjo, quando não efetivamente neutralizadas6 ; porora, o capital global parece capaz de seguir sua pró-pria natureza, sem as precauções tradicionais. Te-mos, então, aqui, ainda mais uma definição de pós-modernismo, bastante proveitosa, que somente umaostra iria querer qualificar de “pessimista”. O pós-moderno pode muito bem ser, nesse sentido, pouco

6 Esse texto foi publicado em 1991, dois anos depois da “queda do muro”.

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mais do que um período de transição entre dois es-tágios do capitalismo, no qual as antigas formas doeconômico estão em processo de reestruturação emescala global, incluindo as antigas formas de traba-lho, suas instituições organizativas e seus conceitos.

Se é verdade que o pós-moderno lyotardiano desatualizou gran-des narrativas como a científica, pôs outras em circulação contí-nua, como essa de que estamos tratando. O econômico fechou ocircuito de significação semântica e se impõe em todos os níveis:político, social, cultural e, conseqüentemente, subjetivo, ou seja,da definição do sujeito e sua identidade. Não há mais nenhumDeus nem idéia pura, nem sequer nenhuma ciência a estorvar oseu caminho. O econômico é o próprio Deus personificado no“mercado” e a Economia é o discurso “científico” por excelência,o grande meta-relato contemporâneo. Não é, repitamos, a basematerial da significação, conforme cria o marxismo clássico, maso discurso a imantar toda a significação que emana da base mate-rial. Esta, como estamos percebendo, é, na verdade, imaterial, ouseja, significacional, dependente, é verdade, de uma decodificaçãomaterial para que possa ser pensada e manipulada. Marx (1973)nos deu um instrumental absolutamente fenomenal de análise doimpalpável, exatamente quando falava do palpável.

Dissemos que o discurso econômico é existencialista em suaproposta, e também dissemos que nem tudo é o que parece sernessa narrativa. Logo, podemos entender que sua lógica subje-tiva está pautada sobre o oposto do que advoga. Enquanto sediscursa sobre a libertação das amarras da essência, é nelas queestá amarrada essa discursividade. Não haveria como ocultar issose não fosse uma engenhosa estratégia, a de simular o sentidoatravés de significações especulares. A fundação das ciências doHomem corresponde, conforme havíamos dito, a uma captura domundo essencial – o das idéias –, que é dado de presente ao pró-prio Homem, tornando-o livre dos ditames ontogenéticos. Porém– e sempre há um porém nesse mundo especular –, o que aparen-temente se operou foi o oposto, isto é, o aprisionamento no saber

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criado para libertar. O campo existencial que lhe foi prometidotem limites, e estes estão circunscritos pelas mesmas essênciasque haveriam sido destronadas. Estas formam a redoma subjetivadesse construto, como espelhos a reproduzir perenemente outrosespelhos.

Tomemos o conceito de liberdade. Entre as diversas possibili-dades de definição, podemos compreendê-la como uma “posse”.Alguém conquista a liberdade e a mantém como sua, como umapropriedade. É, convenhamos, uma lógica bastante adequada parao sistema capitalista. Essa liberdade, evidentemente, tem limites,e estes estão “onde começa a liberdade do outro”, como se cos-tuma dizer. Mas, para que serve uma liberdade cerceada?

Vejamos um diagrama explicativo. Temos o sujeito “A”:

AEle é livre, como convém aoHomo oeconomicus. Encontra

um outro sujeito, “B”:

A BDesse contato, com os parâmetros da liberdade sob ponto de

vista que estamos considerando, cria-se uma barreira entre “A e“B”, o limite da liberdade de um e outro:

A | BUm terceiro sujeito é posto em cena, C. Há uma nova barreira

imposta pela posse da liberdade:

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O mesmo ocorre com relação a D:

E com relação a E:

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Se considerarmos que todos os cinco sujeitos “possuem” a sualiberdade, então o diagrama assume a seguinte forma:

Se incluirmos “f”, “g”, “h” e “i” como outros agentes sociais,encontramos uma cadeia do tipo:

i E F

D A B

h C G

Temos, assim, cada sujeito preso à sua liberdade, aquela mesmaque a lógica existencial do discurso econômico prometeu dar depresente a ele. O diagrama acabou se assemelhando à paisagemde um prédio de apartamentos, uma habitação típica das classesmédias. Cada qual no seu espaço circunscrito pelas paredes queselam o pacto da liberdade compartilhada na lógica burguesa. Nãohá, efetivamente, nenhuma libertação, apenas simulação. A maiorliberdade que pode haver está posta na tensão entre os sujeitos.“A” pode forçar os limites de “B” e aumentar o seu “campo li-vre”, mas estará sempre dependente desses limites para ter noçãode seu espaço, ou, em outras palavras, noção de quem é na re-ferência sócio-econômica. Pode fazer o mesmo com “C”, “D” e

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“E”, mas se manterá do mesmo modo. Se há alguma “existencia-lização”, alguma liberdade, isso está vinculado ao confronto entreos sujeitos. A liberdade de oprimir o outro a ponto de fazer comque ele diminua o seu território livre para que possamos aumentaro nosso. A liberdade capitalista é, assim, a de combater o outrode modo a “adquirir” mais liberdade. É uma lógica bélica, queparece encontrar sentido exatamente nisso, que ganha o nome de“concorrência” no idioma “economês”.

Não há, assim, uma existência precedente à essência. A essên-cia das relações sociais está determinada, assim como a essênciado sujeito, posta na simulação de subjetividade. Não há sujeitonem subjetividade, apenas simulações, como bem compreendeuBaudrillard (1991). O mundo ideativo se mantém ativo enquantoprojeção e amparo de referências. Permanece intocado, comodeterminante das ações. Se nos mantivermos presas da lógicaeconômica, estaremos, assim como faz o “essencialismo” mar-xista, a especular sobre outra especulação, o que redunda numatautologia. Precisamos, assim, tomar outra referência de ordena-ção subjetiva para escapar do imã do economicismo. Busquemosno político, isto é, na relação de forças em conflito por “poder”,um contraponto. Marx (1984) também o tomou, mas, cremos,o manteve por demais atado à lógica econômica e suas análisesse mostraram incapazes de apreender toda a amplitude políticadas relações sociais no sistema capitalista. Gramsci (1968, 1978,1985), como já dito, foi um dos que ousaram se aventurar emoutros campos, como o da subjetividade, e é uma inspiração queperpassa esta dissertação.

A relação entre o político e o econômico sempre foi próxima.Os aristocratas atenienses já sabiam disso, e faliram os pequenosproprietários para adquirir total poder sobre eles. Os falidos pro-prietários se insurgiram e fundaram a experiência da democraciaateniense. A Santa Igreja, na Idade Média, apesar de seus lia-mes imateriais, gozava de riquezas que seduziam a nobreza paraalianças políticas de interesse material para ambos. O TerceiroReich nasceu de uma revolta do povo alemão com a espoliação

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econômica que sofria por conta do Tratado de Versailles, após aPrimeira Guerra.

No entanto, em nossa contemporaneidade, jamais o político eo econômico andaram tão próximos, a ponto de obter, com essaparceria, um quase absoluto condicionamento sobre a identidade.Dominando o acesso ao “mundo das idéias” e simulando o con-trole do indivíduo sobre sua própria existência, o poder fecha suaredoma e engolfa praticamente todo o planeta. Por um vértice,controla a circulação de informações já, inclusive, no ex-livre ci-berespaço, e o entretenimento, o lazer – tanto o “digno” quantoo não digno. Por outro, tem completo domínio sobre a liberdade,pois o “terreno livre” que cada um pode ter está limitado sobre-maneira pela condição econômica de que goza. Essa parceria temo controle dos bens materiais, públicos e privados, da cognição –através, aí sim, de algo que podemos chamar de ideológico, masque não dá conta, por si só, da aderência do poder – e, princi-palmente, tem uma influência cabal em comportamentos, pensa-mentos, sentimentos, devaneios e terrores através de um amplocontrole sobre a experiência cultural.

O cultural, compreendido como vivência de raízes comunitá-rias, que sobreviva sob essa tempestade. Na verdade, não sobre-vive facilmente e é acusado pelos “existencialistas” de fomentara essência, quando, na verdade, parte desta para a existência, en-quanto o existencialismo burguês faz o percurso oposto. No en-tanto, é o caudal ao qual os discursos políticos e econômicos selançam para efetivar suas hegemonias. O vínculo entre o econô-mico e o político se encontra, na contemporaneidade, atado pelobarbante da comunicação, que resume a vida cultural como simu-lação. A aliança entre os poderes hegemônicos nos campos da po-lítica e da economia opera uma intervenção sobre o mundo cultu-ral, tomando-o naquilo que tem de mais importante para a forma-ção da identidade, sua capacidade comunicacional. Constitui-se,assim, uma cultura sem cultura, uma comunicação sem comuni-cação, isto é, uma simulação da vida cultural através da monopo-lização da capacidade de comunicar. Os frankfurtianos dedicaram

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boa parte de seu tempo a estudar esse processo, mas infelizmentemantiveram seu foco por demais ancorado na lógica essencial, e,se acertaram ao formular o aprisionamento da cultura pela indús-tria, não puderam entender que em vez de se referir a conceitosideológicos, precisavam, para melhor formular a dinâmica do pro-cesso, entender a proposta existencial contida na “Indústria Cul-tural” de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1978). O mundohavia mudado, mas os marxistas ainda tentavam crer que o pro-letariado desejava “aprofundar” a própria essência. Esta, porém,lhe havia sido dada por Marx, e não pelo próprio proletariado.

A sociedade ocidental se apropria do mundo comunicacio-nal, resumindo-o à informação, como idealizou Norbert Wiener(1984) e como bem denunciou Philippe Breton (1997), destruindo-o, acabando com a comunicação, ou seja, com a possibilidade decompartilhamento de sentido. É possível que esteja nascendo umanova comunicação sem comunicação, ou pode ser que isso mudede nome, pois não tem a ver com comunicação: simula-se quesomente há sentido na redoma subjetiva de matriz ocidental; quetudo o que ocorre dentro dessa redoma deve ter apenas esse sen-tido, a Verdade, e que; eis aqui a simulação dentro da simulação,o indivíduo é livre para escolher o seu destino, formar a sua iden-tidade, pensar o que bem entender. Isso não é comunicar nada, oque é diferente de comunicar o nada, que é o que muitas das ma-nifestações culturais que sobrevivem à tempestade tentam fazer.

Nessa união, o econômico é o código e o político é o deco-dificador. Mas o econômico também decodifica a codificação dopolítico. Trata-se de uma relação especular, uma troca de afagosna qual cada participante está pensando unicamente no próprioumbigo. Um serve ao outro para que o outro o sirva. Um atacao outro para que o outro o ataque, e o jogo continue. Isso, apa-rentemente, sempre foi assim na história do ocidente, mas atingena contemporaneidade a sua plenitude. E, como já referimos, aaliança que os une está centrada em um campo de batalha: o dacomunicação, ou o da simulação da comunicação. É nesse espaço

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que o poder é repartido entre essas duas instâncias da civilizaçãoocidental.

3.1.1 A essência objetiva da liberalidade

O discurso econômico não é um enunciador de verdades, além dasua própria e definitiva Verdade ontogênica, é claro. Ele quantifica-as, lhes impõe valores, mas não define o que é verdadeiro ou falso.Não é do interesse da discursividade econômica fazer isso. Mas,por quê? Pelo simples fato de que abarcando toda a realidade,torna-a, toda ela, verdade. Tudo o que está em sua redoma é reale como tal deve ser tratado.

O homem econômico-liberal não é, aparentemente, um ho-mem de certezas preestabelecidas. Quando discorre sobre o real,o faz por projeções baseadas na quantificação, não na essencia-lidade deste. Não importa ao economista o que é verdadeiro ounão, mas o que pode ser tido como proveitoso para ser computadoe conquistado. No plano desse discurso, é um ser cuja existênciaprecede a essência. Para ele, assim como para Heidegger (1991,p. 127), “a essência da verdade é a liberdade”. No entanto, tudoo que faz recende ao “ser”, à essência. E isso pode ser bem per-cebido nas suas instituições, dignos remanescentes da rigidez doconstruto do “mundo das idéias”, como o jornalismo na sua ver-tente estadunidense.

O mundo abarcado pelo discurso dos jornais é o das essên-cias atualizadas na existencialização econômica. Diferentementedo discurso econômico, o jornalístico não tem a liberdade existen-cial como parâmetro. Não basta ao jornalista saber o que acontecee por que acontece, é preciso “saber certo”, ter acesso à essênciado fato, como consta do Manual de Redação e Estilo do jornal OGlobo: “O repórter é um curioso movido permanentemente pelodesejo de saber o que acontece e de entender por que aconte-ceu. Se não for assim, está na profissão errada. E não bastaquerer saber: é preciso saber tudo, e ter a obstinação de sabercerto” (LUIZ GARCIA, 2000, p. 16). Outro manual de jorna-

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lismo, o do Estado de São Paulo, é igualmente taxativo: “O Es-tado considera sua obrigação publicar apenas notícias corretase precisas; por isso, espera de seus repórteres o máximo de es-forço, empenho e exatidão na apuração dos fatos, na divulgaçãode declarações e na descrição dos acontecimentos” (EDUARDOMARTINS, 1990, p. 63). .

Essa compreensão do fazer jornalístico é geradora do fetichemais pernóstico dessa discursividade: a “Objetividade”. Trata-se, num lance genial, de uma absoluta subjetivização da comu-nicação, travestida sob a aparência do “saber certo”, das “notí-cias corretas e precisas”. Um sofisma, sem dúvida, da mesmanatureza daquele que Platão usou ao formular a supremacia dadialética, também uma mensageira da Verdade. De todas as ins-tituições ocidentais, o jornalismo possivelmente é uma das queguardam fidelidade aos velhos princípios ocidentais da Razão eda Universalidade, manifestos nas origens platônicas e monoteís-tas dessa civilização e presentes na ânsia imperial desde Roma.Se a economia é o suposto aprisionamento desses princípios aorelativismo valorativo, o jornalismo é o bastião que as mantém vi-vas e atuantes como fundamento de uma dominação política e deum agenciamento subjetivo de amplo alcance.

De alguma forma, o jornalismo, uma instituição eminente-mente mundana, tem, assim, algo de sagrado. Remete às for-mas puras da Verdade, funciona num registro de “centro emissor”desta, como ocorre na prática do deus único, o Deus dos mono-teístas. Um jornal é como um pequeno templo diante do qual ohomem ocidental se debruça para ter acesso não simplesmenteao mundo dos fatos, mas ao mundo dos fatos “reais”. Da mesmaforma, a televisão e o rádio, veículos do que se convencionou cha-mar de “Meios de Comunicação de Massa”. Neles, a emissão éimpessoal, para todos, como faz o Deus onipresente. Como afirmao manual do O Estado de São Paulo, “A notícia deve ser redigidade forma impessoal, sem que o jornalista se inclua nela ou adotea primeira pessoa do plural em frases que a dispensam” (MAR-TINS, idem, p. 40). Nenhum “contato exclusivo” entre emissor e

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receptor. O veículo jornal, o templo divino da Verdade, deve falara todos sem distinção e o jornalista, o acólito desse templo, devepassar despercebido diante da magnificência da Palavra. Esta, oVerbo, o suplanta.

Como nas religiões monoteístas, o jornalismo está centradona vivência de um absoluto, o Logos, a manifestação do poder edo saber absoluto da razão divina. Com sua objetividade, seus es-forços de registrar a vida “como ela é”, o meta-relato jornalísticopretende ser “a” representação da Verdade, “la conformité de lapensée avec la realité” (EDMOND GOBLOT, 1912, p. 485). Ojornalista deve ser assim como um super-homem que, apesar demergulhado na instabilidade da existência, deve se abstrair paracaptar a essência dos acontecimentos, relatá-los de forma impes-soal e isenta para“tornar transparentes coisas que estavam opa-cas” (OTÁVIO FRIAS FILHO apud GERALDINHO VIEIRA,1991, p. 19). Geralmente, quando questionados sobre a viabili-dade de uma postura como essa, os jornalistas saem pela tangenteda “Isenção”, como Augusto Nunes, chefe de redação do Estadode São Paulo à época em que deu a seguinte declaração:

Sou um obcecado pela busca da imparcialidade,que não se confunde com a objetividade absoluta...essa é que não existe. (...) Sou tão obcecado pelabusca da imparcialidade que vou implantar aqui no“Estadão” a saudável medida que alguns jornais norte-americanos já implantaram, ou seja, proibir qualquertipo de militância em outras organizações, ainda queesta militância expresse o senso comum – por exem-plo a militância ecológica. (...) O jornal já lhe dácondições de agir sobre a sociedade, não há porqueser de um partido político. Não há como servir a doispatrões.

Talvez Nunes devesse ter citado a Bíblia, possivelmente de-veria ter complementado o seu pensamento com um anátema atodos os que crêem que tal isenção é falaciosa, que as condições

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que o repórter tem de agir sobre a sociedade através do jornal sãodadas pela submissão ao Verbo ditado por este, o que significaque na sua redação somente fiéis podem ser admitidos. Como apalavra de Deus, a verdade do jornal em questão é revelada comoabsoluto, “a” representação da Verdade, a única aceita. Fora dela,não há nada a não ser aparências, os compromissos deste mundo,e, mesmo que se aceite que possa haver alguma razão, esta é apa-rente, ímpia, herética, falsa em sua essência. Uma clara idealiza-ção de um poder que emana de um centro e, ele mesmo, está nacircunferência que o engloba, num contorno nirvânico que deli-mita as práticas narcísicas dos monoteístas e dos “bons” jornalis-tas.

A potencialidade perversa do jornalismo da grande imprensapode ser medido por esses parâmetros. Ainda mais que, comoafirma Muniz Sodré (2002, p. 23): “O ‘espelho’ midiático não ésimples cópia, reprodução ou reflexo, porque implica uma novaforma de vida, com um novo espaço e modo de interpelação co-letiva dos indivíduos, portanto, outros parâmetros para a consti-tuição das identidades pessoais.” Sodré percebe a potencialidadedessa retradução da Verdade pela via da tecnicização da mensa-gem jornalística centrada na produção de um discurso “protético”que visa transmitir a versão “real” dos acontecimentos. A obje-tividade e a isenção fazem parte de um discurso técnico que pre-tende transmitir uma certa pureza conceitual na apuração do fato.São como formas de alcançar o absoluto, mas, como sempre, esseabsoluto esconde algo:

A astúcia das ideologias tecnicistas consiste ge-ralmente na tentativa de deixar visível apenas o as-pecto técnico do dispositivo midiático, da “prótese”,ocultando a sua dimensão societal comprometida comuma forma específica de hegemonia, onde a articula-ção entre democracia e mercadoria é parte vital deestratégias corporativas. Essas ideologias costumampermear discursos e ações de conglomerados transna-

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cionais e de ideólogos dos novos formatos de Estado(IBIDEM, p. 22).

Há, assim, uma interação bastante próxima entre o discursojornalístico, com sua técnica objetivista, e os interesses traduzi-dos pelo meta-relato econômico, muitas vezes diretamente iden-tificável como poder político. Isso Augusto Nunes não disse nasua declaração transcrita acima. O jornalista tem, então, apesarde sua castidade conceitual – ou graças a ela –, ligações incestuo-sas como o poder, principalmente os que comungam do sacerdó-cio exigido pelo ex-diretor de redação do Estadão. Afinal, não éisso que Nunes exige de seus comandados? Se, cada vez mais agrande imprensa corresponde a interesses comerciais, como tudona Sociedade de Controle, está posto o patrão ao qual se deve se-guir. Como afirmam Noham Chomsky e Edward Herman (2003,p. 13),

(...) a centralização da mídia em um número cadavez menor de grandes empresas tem aumentado pra-ticamente sem oposição por parte de governos repu-blicanos e democratas, bem como de autoridades re-gulamentadoras. Ben Bagdikian observa que quandoa primeira edição de seu livroO monopólio da mídiafoi publicada, em 1983, 50 empresas gigantes domi-navam quase todas as mídias de massa; mas apenassete anos depois, em 1990, apenas 23 empresas ocu-pavam a mesma posição de comando.

Segundo esses autores, desde 1990 uma onda de grandes ne-gócios e a rápida globalização deixaram setores da mídia aindamais centralizados em nove conglomerados transnacionais – Dis-ney, AOL-Time Warner, Viacom (proprietária da CBS), NewsCorporation, Bertelsmann, General Eletric (proprietária da NBC),Sony, AT&T-Liberty Media e Vivendi Universal. Esses gigantessão proprietários de todos os grandes estúdios cinematográficos,redes de televisão e empresas fonográficas do mundo, bem como

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uma considerável parcela dos mais importantes canais e sistemasa cabo, revistas, estações de televisão de grandes mercados e edi-toras de livros. Há uma centralização radical e cada vez maispoucos comandam a opinião e a consciência de milhões, ou me-lhor, lhes agenciam a identidade. Os jornais estão nesse mundoe não podem, apesar do discurso puro que os caracteriza, esca-par de agir como os mestres mandam. Como afirma Nilson Lage(1982, p. 107).”A imparcialidade, a objetividade e a veracidadenos veículos de comunicação efetivamente são mitos (...) só osingênuos acreditam que não têm interesses capazes de levá-los adeturpar os fatos”. Ou, como pontuou Frantz Fanon (2002, p. 59)acerca de sua experiência com a chamada “grande imprensa”:

Os dirigentes nacionalistas sabem que a opiniãointernacional é forjada unicamente pela imprensa oci-dental. Ora, quando um jornalista ocidental nos in-terroga, raramente o faz para nos prestar um obsé-quio. Na guerra da Argélia, por exemplo, os repórte-res franceses mais liberais não cessaram de empre-gar epítetos ambíguos para caracterizar nossa luta.Quando lhes reprovam a atitude respondem com todaa franqueza que são objetivos. Para o colonizado, aobjetividade é sempre dirigida contra ele.

O jornalista, como Augusto Nunes já disse, não pode servira dois senhores. O jornalismo das grandes empresas de “comu-nicação” também não. Trata-se de uma instituição com data denascimento e registro muito bem definidos. É uma das máquinasde guerra da burguesia, um aparelho a serviço do poder de con-trole da sociedade econômica. Como afirma Paul Virilio (1996, p.20),

Abater um adversário é menos capturá-lo do quecativá-lo, o campo de batalha econômico não tardaráa se confundir com o campo da percepção militar e o

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projeto do complexo informacional americano tornar-se-á então explícito: terá como objetivo a midiatiza-ção mundial.

Cremos que o campo econômico sempre esteve associado aomilitar, com o objetivo de estabelecer uma nova ordem de con-flitos entre as grandes potências européias, como no “Concertoda Europa”, referido por Polanyi (2002). Desde o século XIX háessa identificação explícita, e a “paz dos cem anos” só foi possí-vel, como compreende o mesmo autor, pela introdução da econo-mia em forma dehaute finance, substituindo o campo de batalhamilitar intraeuropa e lançando-o na projeção de sua expansão. Ojornalismo, como fica bem pontuado por Virilio, funciona nessecampo de batalha como a voz colonizadora que, como lembraSylvia Moretzsohn (2003)

(...) é tributária do projeto iluminista de “esclare-cer os cidadãos”. Trata-se, portanto, de tarefa emi-nentemente política, cujo caráter é freqüentementeescamoteado através de uma interpretação proposital-mente restritiva do princípio do “dever de informar”,que daí conclui pela necessidade de uma postura im-parcial e distanciada, como se não houvesse intencio-nalidades no ato de selecionar os fatos que se tornarãonotícia, ou como se a própria apreensão dos fatos jánão fosse também uma interpretação.

Trata-se, assim, também de uma estratégia militar, a de medi-atização:

Até o século XX, estar MEDIATIZADO signi-ficava literalmente estar privado de seus DIREITOSIMEDIATOS. Dessa forma, o imperador NapoleãoI mediatizava, no nível de suas conquistas militares,

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certos príncipes hereditários, privando-os de suas li-berdades de ação e de decisão ao lhes deixar as apa-rências de um poder que eles não estavam mais ap-tos a exercer. Nos dias seguintes ao segundo conflitomundial, a “satelitização” dos países do Leste pelaUnião Soviética renovava ainda este procedimento par-ticularmente perverso. Napoleão, esse grande “medi-atizador/ midiatizador” a quem o tempo no fim fariafalta, era o homem das vitórias rápidas, das campa-nhas militares fundadas na velocidade e na surpresa.Quase que logicamente, ele foi também o pai des-conhecido da imprensa industrial na França, o autorindireto daquilo que se tornaria umcomplexo infor-macionalmoderno (VIRILIO, idem, p. 14)7.

O mundo ocidental se assemelha muito a um jogo, e se nele aessência é a vitória, a estratégia para esta parece ser a simulação,a ilusão especular da existência de uma suposta liberdade. Ge-ralmente, quando se diz algo, se está querendo dizer o contrário.Essa é a sua principal estratégia para vencer. O discurso da objeti-vidade corresponde a uma hipertrofia da subjetivização, levando aum paroxismo de sentidos que sufoca não apenas o sujeito, comoa própria noção de subjetividade.

3.1.2 Que sociedade? Refém de quem?

Termos como “violência”, “terror” e “medo” estão sendo muitoutilizados na retórica jornalística carioca. Todos os dias há algumacontecimento posto nesse enquadramento semântico que iden-tifica a relação da sociedade com o crime como uma guerra. Ocrime dos pobres, diga-se bem. É em relação à “violência” destesque a sociedade encontra-se “refém da violência”, “aterrorizada”,“afrontada”. Uma ocasião emblemática para o uso de expressõesdesse tipo foi a do dia 30 de setembro de 2002, quando boa parte

7 Os grifos são do autor.

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do comércio carioca fechou, em parte por ameaças vindas de nãose sabe até hoje bem de quem e de onde, em parte por boatos epelo medo dos comerciantes de sofrer “violências” caso abrissemas portas de aço. O jornal O Globo, em sua edição do dia 1o deoutubro, não perdeu a oportunidade de faturar uma boa manchete:“Rio refém do medo”.

Sobre a impactante sentença, uma questão importante:“Guer-ra do tráfico ou exploração eleitoral?”. Abaixo da manchete,um esclarecimento:“Ação de grupos e onda de boatos põem ci-dade em clima de estado de sítio; Benedita8 vê razão política”.A razão política seria a desestabilização do governo de Beneditada Silva em prol de dois de seus concorrentes diretos: RosinhaMatheus – ou Rosinha Garotinho, em referência ao nome polí-tico do marido – e Solange Amaral, a candidata apadrinhada peloprefeito do Rio, César Maia9.

Com seu discurso moralista, com o uniforme de defensor da“lei e da ordem”, certamente Maia tentou alçar sua candidata napreferência dos eleitores. Ninguém pode afirmar, pois essas es-tratégias são felizes porque não deixam provas, que ele ou Ro-sinha tenham tramado e executado o plano. O mais provável,nos parece, é que tenha havido uma interseção de vetores, coma “organização” do crime fazendo sua pequena parte, tendo comoparceria os tais “interesses políticos” e, de forma preponderante,o medo. O mesmo medo que Malagutti Batista (2003) identificacomo existente desde os tempos de colônia, o “medo da rebeldianegra”, das “classes perigosas”, e que alimentou o discurso da en-tão candidata Solange Amaral. O mesmo Maia, em 1992, quando

8 Benedita da Silva, vice-governadora eleita, em 1998, na chapa encabe-çada por Anthony Garotinho. Assumiu o governo em abril de 2003 quandoo titular saiu para disputar a presidência. Ela é do Partido dos Trabalhado-res (PT) e ele, à época de sua eleição, era do Partido Democrático Brasileiro(PDT), o qual deixou para se filiar ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) noano seguinte, agremiação que representou na disputa presidencial e, em 2003,passou ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), no qual, aomenos no tempo em que estas linhas estão sendo escritas, está até hoje.

9 Ver nota de rodapé no 20.

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se elegeu prefeito derrotando Benedita da Silva no segundo turnoda eleição, já havia tirado bastante proveito do fenômeno midiá-tico do “arrastão”, ocorrido na praia do Arpoador, zona sul dacidade, já referido no primeiro capítulo. Aterrorizada, a classemédia carioca se impressionou bastante e descarregou votos emMaia, mas isso não deu certo com Solange.

O questionamento quanto à boataria que esvaziou o Rio nodia 30 de setembro de 2002, se foi guerra – os bárbaros a fa-zem – ou política – uma estratégia do jogo democrático – é umbom exemplo de como a imprensa contribui para a formação deuma consciência cidadã. O fato é que simplesmente não contribui.Restringe-se ao banal, a estereótipos tão simplórios e maniqueís-tas que fazem corar. Não estimula ao pensamento, não apresentamais do que duas opções semânticas para tudo o que noticia: oué certo ou é errado, ou é preto ou é branco. Ora, todo ato tem umsentido político, e no que o jornalismo deveria se empenhar é emdecodificá-lo para seus leitores, não apresentar a questão comouma alternativa do tipo “coluna 1 x coluna 2”. Poder-se-ia afir-mar rápida e inadvertidamente que isso é resultado da mídia sedirigir à emoção, não à razão. Cremos que a coisa não é tão sim-ples assim, e este ponto é fulcral para que compreendamos comose dá a manipulação identitária do jornalismo.

Como já referimos, o mundo capitalista contém uma tensãoimanente. Impõe sua univocidade essencial, seu discurso univer-sal, como uma Verdade. Esse estreitamento subjetivo exacerba abelicosidade ao instituir o funil dos “jogos finitos”. A “concor-rência” é a tônica. Ao mesmo tempo, como umcontrafactum,promete que aquele que passar pelo “buraco da agulha”, alcan-çará a plenitude, que ganha o nome de “sucesso”, em economês.Com o recurso dessa estratégia, o discurso da razão é a isca quecaptura a emoção no seu estado mais puro. Emoção é uma palavraque deriva do termo latinomotio, que significa movimento. Tem,assim, o sentido de pôr em ação, de mover, mas também da per-turbação que leva ao movimento. A captura da emoção se dá, nacontemporaneidade, não pela contenção, mas pelo cadenciamento

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da perturbação com uma promessa sedutora: a da plenitude. Ora,essa poderia ser a melhor descrição de aquilo que a maior partedas pessoas busca emocionalmente, ao menos na lógica que co-nhecemos como significante da subjetividade ocidental. Freud(1974c) mostrou como a dureza civilizatória européia trouxe emsi essa promessa como fulcral para sua perpetuação. Em trocado afastamento de uma fatia importante da vida: a agressividade,representada como a ameaça ao mundo de porcelana da perfei-ção ontológica. A emoção deve, assim, como tudo no ocidente,se cindir em duas partes opostas, uma boa e outra má. A boa éaquela que aceita a razão, como devem fazer os loucos em seustratamentos – você pode achar que é Napoleão, só não pode ata-car ninguém por isso. A má deve ser banida para longe, como apoesia na República de Platão. As boas emoções, como o amor,a compaixão ou a candura, são divinas, aliadas da razão. As más,como a ira, o ódio, o ressentimento, são disruptivas, ofendem aDeus e ao mundo perfeito do puro ser. Em ambos os casos, aemoção é evocada para receber um carimbo na testa.

Quando o jornal O Globo trata um tema de forma tão simpló-ria e pouco criativa, não está exatamente se dirigindo à emoção,mas está subordinando esta a uma estrutura bipolar de sentido,podando-lhe as ramificações simbólicas possíveis. Dirige-se, as-sim, como a tola concepção de mundo ideal do platonismo, a tolosque crêem não sê-los apenas porque são racionais. Essa compre-ensão pode ser complementada pela noção de Christopher Lasch(1987) de que se opera, na contemporaneidade urbana ocidental,um processo de demolição do “Eu” soberano da modernidade,engendrando um individualismo marcado pelo que o autor chamade “minimal self”, uma espécie de eu sitiado por uma realidadesempre em crise, estofada por discursos de alarme em todos osníveis: econômico, político, ecológico, social, etc. Ora é a re-cessão econômica no Terceiro Mundo, ora a ameaça de retornodo nazismo na Europa, a catacombe nuclear, os “ataques espe-culativos”, a destruição da natureza, a violência urbana, e por aísegue o cardápio de catástrofes sempre presentes, embora a mai-

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oria das pessoas possa nunca ter passado por qualquer uma delas,nem corra tal risco. Embora Lasch demonstre uma certa nostal-gia do eu iluminista10 – a velha consciência autônoma destronadapor Freud em toda a sua obra –, ou talvez por isso, seu pensa-mento nos é muito útil para examinarmos a estrutura subjetiva dasociedade carioca contemporânea. Afinal, trata-se de um “des-contente” com a deterioração da civilização ocidental, que pôdeformular de modo bastante sensível a sensação de asfixia experi-mentada pelas populações urbanas, as camadas médias da socie-dade.

O Globo, ainda na primeira página, resumia dessa forma osacontecimentos de 30 de setembro:

Não era final de Copa do Mundo, nem greve ge-ral e muito menos feriado. Mas, refém do medo esitiado, o Grande Rio parou ontem, vítima da açãode grupos armados que ordenaram o fechamento docomércio e até de algumas indústrias em pelo me-nos 40 bairros. Quase 250 escolas não funcionarame dois mil ônibus sequer saíram das garagens, dei-

10 Diz Lasch (1987, p. 239):“Na história da civilização, o surgimento daconsciência pode ser relacionado, entre outras coisas, à mudança das atitudesem relação à morte. A idéia de que a morte reclama a vingança, de que seusvingativos espíritos perseguem os viventes e de que os vivos não conhecem apaz enquanto não aplacam tais fantasmas de seus ancestrais, dá lugar a umaatitude de genuíno pesar. Ao mesmo tempo, os deuses da vingança dão lugaraos deuses que também oferecem a compaixão e sustentam a moral do amorao inimigo. Essa moral nunca conseguiu aproximar-se da popularidade ge-ral, mas sobrevive, mesmo em nossa época esclarecida, como uma lembrançatanto de nosso estado cativo como de nossa surpreendente capacidade paraa gratidão, o remorso e o perdão, por meio da qual podemos ocasionalmentesuperá-lo.” Apaixonadamente moderno, Lasch ilustra, com apreciável ênfaseretórica, como um homem do século XVIII percebe – e condena – a algaraviada pós-modernidade, com sua fragmentação rizomática. Para ele, a caracte-rística do individualismo ocidental – judaico-cristão – é a tensão, a divisão eo conflito, não entre razão e emoção, mas da própria natureza dividida do ho-mem entre suas aspirações e suas limitações, entre a boa e a má consciência,ou poderíamos dizer das pulsões de vida e de morte de Freud.

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xando de transportar 800 mil pessoas. No toque derecolher, nem camelôs montaram suas barracas. NaAvenida Presidente Vargas, as fachadas de dois pré-dios comerciais foram pichadas com as mensagens“guerra sem fim” e “poder paralelo”. Às ameaças re-ais se somaram boatos que terminaram por deixar asruas desertas. O fato de a maioria dos 19 agitado-res presos ser de favelas do Comando Vermelho, as-sim como a ausência de ameaças em áreas próximasa morros comandados por facções rivais, indica quea ação teria relação com o tráfico, mais diretamentecom Fernandinho Beira-Mar. Mas a proximidade daseleições levou algumas autoridades a não descartaroutras motivações. Para a governadora Benedita daSilva, houve exploração política: “Não estamos afir-mando que tenha sido uma manobra direta de outrogrupo político. Mas não existe nenhum fato que le-vasse, por exemplo, as escolas municipais a fechar às7h.” A prefeitura [leia-se César Maia] disse que asescolas têm autonomia e assegurou que apenas 22%delas fecharam. Com todo o contingente policial nasruas, a governadora garantiu que lojas e escolas terãosegurança para reabrir hoje.

Se na primeira página, os termos usados eram de “indícios”,na página 6, o editorial do jornal tinha como certa a participaçãodos “bandidos”:

Mais do que refletir o poder real do crime orga-nizado, o fechamento do comércio e de escolas emvários bairros do Rio e de Niterói deu a dimensão domedo que toma conta da população. Mesmo que qua-drilhas de traficantes não tivessem condições efetivasde impor uma espécie de toque de recolher em bair-ros de várias regiões das duas cidades, de Ipanema aItaipu, a ordem dada em alguns pontos localizados se

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alastrou de tal forma, e embalada por tantos boatos,que durante parte do dia de ontem viveu-se um climade meio feriado. Mas com muita tensão.

A questão do medo é, como afirma o editorial, fundamentalpara entender o que ocorreu e o que ocorre no Rio. O que o edito-rialista não confessa é que o jornal para o qual escreve é um dosfomentadores dessa “Cultura do Medo”, referida por Barry Glas-sner (2003, p. 330), definida como um fenômeno eminentementemidiático no qual“Os arautos do medo eliminaram o otimismo dedentro de nós aos nos encher de presunções negativas sobre nos-sos concidadãos e instituições sociais.” E não é isso exatamenteo que o jornal O Globo, bem como outros três jornais dirigidos àclasse média carioca vêm fazendo? Se, como reconhece o jornal,os “bandidos” não tinham condições efetivas de parar a cidade,não foram eles que o fizeram. O Globo foi bem mais responsávelpor essa façanha do que os traficantes.

No caso da criminalidade urbana, quando se fala do “crimeorganizado”, se está falando do domínio de uma força, a do mal,que deve ser alijada do convívio social, para que este tenha har-monia. Já quando se fala no “homem de bem” a referência é aopólo da virtude, da inclusão na harmonia. Essas forças estão pre-sentes desde o mundo grego a permear a subjetividade ociden-tal. Platão as utilizou para vencer os sofistas, que passaram a serconhecidos como ilusionistas, agentes da perversidade retórica.Essa forma societária é, para a imprensa e os planejadores da se-gurança pública, “a” sociedade, a “boa” sociedade. Aquela queestão construindo com empenho. Esse é o modelo que implanta-ram e sustentam como a forma possível de relacionamento entreagentes sociais. A má sociedade é a dos “bandidos”, dos “tra-ficantes”, ou de todos aqueles que ofendem a “harmonia” dessepadrão de relacionamento social, por terem um outro modelo so-cial “na cabeça”. A “boa” sociedade é a dos burgueses, a “má” éa de todos os outros. Aquela “é”, a outra “não é”. No entanto, nãopodemos esquecer que nada é o que parece neste mundo virtual.

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Para o jornal, quem é o “Rio” que está refém? Certamentea sociedade equilibrada descrita por Tönnies, a dos “homens debem”. Concordamos nisso. Mas, refém de quem? Nesse ponto,o jornal erra em muito o diagnóstico. Com toda certeza, ela estárefém de si mesma. E é de si que tem medo.

3.2 Bem vindo à sala de espelhos

Em última instância, a polaridade entre “ser” e “não ser” per-meia a redoma subjetiva da civilização ocidental e a necessáriaprimazia do “ser” sobre o “não ser” induz essa forma de vida aunificar-se e lançar-se, a partir da crença na sua superioridade en-quanto “ser”11, à penetração em todas as demais – que “não são”– tendendo a isolá-las, destruí-las ou a anular nelas o que têm desingular – ou de bárbaro – e se estabelecer como hegemônica.

O Império Romano representa, para a modernidade européia,um ícone referencial,“um arquétipo ideológico simbólico de suaneurose excludente”, como bem lembra Elhajji (2003a). Foi a pri-meira experiência expansionista de uma forma civilizatória fun-dada na Europa e Elhajji (idem, p. 5) assinala que a expansãoromana se deu tendo como referência ameaças externas:

A força de Roma, enquanto exemplo fundadoruniversal da síndrome da abominação do Outro comoimperativo filosófico e estratégia organizacional paragarantir a sua unidade e a sua sobrevivência, comobem observou Maquiavel, não era “apesar” das ame-aças externas que a rodeavam, mas sim “graças” aelas.

Isso é bastante interessante e nos convida a refletir sobre essemodelo subjetivo com o auxílio da interessante vertente britânica

11 Ou pelo horror de seu “não ser”?

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do pensamento psicanalítico já referida anteriormente em Mela-nie Klein. No caso de Roma, a chave para a coesão interna pare-cia estar fora dela, como na noção de “posição esquizoparanóide”proposta por Klein (1978b), aquela na qual o sujeito ou grupo temcomo instrumento fundamental de comunicação com a alteridadea “identificação projetiva”, já citada anteriormente. Trata-se, re-lembremos, de uma referência subjetiva fechada em si, na qual o“eu” é, assim como o Deus absolutista do monoteísmo, o centroe a medida de todas as coisas e, assim, se identifica apenas com oque projeta para fora de si. Não há, assim, possibilidade de per-cepção de alteridade. Quando isso se prenuncia, esta é vivenciadacomo “estranha” – nos termos de Sigmund Freud (1974b) – ouameaçadora, para Melanie Klein (idem), pois ameaça o controleque o sujeito estabelece com esse modelo subjetivo.

A posição esquizoparanóide expõe uma forma de organizaçãona qual a busca de um abrigo de segurança subjetiva – idealizado,como o Deus monoteísta ou o parâmetro da Razão platônica – éa referência da formação da identidade, estando sempre relacio-nado a ameaças externas que, por si sós, são a razão e o sentidoda formação do abrigo. Trata-se de uma forma de pensar eminen-temente maniqueísta, pois o eu se cinde em duas partes: uma boa– leia-se idealizada, livre de todo o mal, imaculada – e outra má– eminentemente desagregadora, portadora de um potencial des-trutivo contra o qual o eu se defende projetando essa maldade emalgum(ns) objeto(s) do mundo.

Essa forma de compreensão da subjetividade ocidental é bas-tante rica e pode nos ajudar a entender a xenofobia desse modelocivilizacional. Wilfred Bion (1975), um psicanalista inglês que te-orizou sobre a dinâmica subjetiva dos grupos terapêuticos, chegoua algumas concepções bastante interessantes sobre os grupamen-tos humanos – leia-se ocidentais. Entre eles, é bastante freqüentea reunião com o objetivo precípuo da preservação do grupo (sua“suposição básica”, segundo o autor) e as duas técnicas utilizadaspara isso são o ataque ou a fuga. Esse objetivo e essas técnicaslevam a um estreitamento do campo da experiência, como afirma

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Bion (idem, p. 55): “A preocupação com a luta-fuga leva o grupoa ignorar outras atividades ou, se não puder fazê-lo, a suprimi-lasou a fugir delas.” A reunião do grupo se daria para a sobrevivên-cia, uma “suposição básica” posta acima das vontades individuais,sempre numa intensidade proporcional à fantasia de ameaça, queposta do lado de fora, no “estranho”, é mais facilmente controlá-vel. Algumas vezes, é preciso atacar. Isso corresponde à tentativade confirmar a ameaça, já que, atacada, poderá também atacare se confirmará enquanto tal. Assim se unifica o grupo, assim,sugeria Maquiavel (1983), se unifica um reino. Fora dele, a bar-bárie, a desrazão. A melhor fórmula, desse modo, era voltar paraelementos externos ao grupo a ameaça. Assim parece ter agidoo Império Romano e assim age a civilização que o sucedeu, uti-lizando a noção da ordem idealizada da urbe contra a desordem– também idealizada, porém negativada – da barbárie. Assim seformou a “limes” que, segundo Elhajji (idem, p. 6) era “(...) umlimite ideológico entre o mundo civilizado e a terra ‘incógnita’,entre o conhecido e o conjurado, o domínio da ordem e o inícioda confusão, onde acabava o interesse de Roma e começava amiséria do mundo abandonado pelo império.”

Aquilo que não é possível dominar se torna o signo da morte,com todo o terror que traz, do vazio terrível que a representa.Uma outra forma – na verdade, complementar – de defesa subje-tiva contra esse signo é a idealização, ou seja, a criação de umaestrutura perfeita que impede a entrada do mal, a experiência daameaça de destruição dessa frágil estrutura subjetiva. Vejamoscomo é ilustrativa disso a descrição de Rufin (1996, p. 21) sobreo pensamento de Políbio12 diante da angústia que assaltou Romaapós a destruição de Cartago, no ano de 146 a.C., a vitória sobreo seu mais forte inimigo no domínio do Mediterrâneo:

A imagem angustiosa de Roma sozinha em facedo vazio, Políbio a substitui pela idéia glorificante de

12 Políbio, segundo Betty Radice (1980), foi um estadista e historiadorgrego, aliado dos romanos depois da derrota grega na batalha de Pydna, em168 a.C. Foi o mais importante formulador da “grandeza” de Roma.

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uma responsabilidade imperial, de uma missão uni-versal. Por causa disso, ele reinventa uma “massa du-pla”: o império em face dos bárbaros. Claro está quea visão de Políbio é uma construção ideológica queem nada corresponde à realidade da situação que eledescreve. As virtudes que atribui a Roma através dosséculos são precisamente aquelas que ela vai adqui-rindo, de modo laborioso, no contato com o mundogrego – o ano da destruição de Cartago é também odo saque a Corinto. Quanto aos bárbaros, sua civili-zação é por vezes bastante avançada, e sua desordem,a conseqüência da conquista romana...

Diante do vazio, da angústia, da sensação de morte que as-salta a Roma conquistadora depois da vitória sobre os cartagine-ses, resta ao império a idealização de sua força não apenas noplano militar, mas no espiritual, no cultural. Políbio era grego,não podemos esquecer disso, e tinha os instrumentos subjetivospara elevar o moral dos angustiados romanos após a queda deCartago.

Recorrendo ainda ao conceito de identificação projetiva, te-remos que entender, então, que tudo aquilo que a insolência dossaberes europeus criou para designar os “diferentes” certamenteera o que incomodava no interior dessa mesma cultura. O “ladoruim”, a corrupção, a maldade, o terrorismo, são sempre do Outro.Em outras palavras, diriam os arrogantes membros dessa tradiçãode exclusão: “Nós” somos ótimos, democratas, queremos o bem,procuramos a virtude; “Eles”, os bárbaros, são feios, involuídos,atrasados, “bandidos”. Porém, estamos em uma sala de espelhos.

3.2.1 Equilíbrio numa linha imaginária

Temos aqui o edifício da sala de espelhos ocidental. Sua pedrafundamental foi posta por Platão, em idos tempos. Outro ali-cerce foi posto com a integração entre a metafísica platônica e

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o desenvolvimento de um discurso religioso, o monoteísmo nasua vertente judaico-cristã. Como ápice, o anseio imperial, a ele-var a construção rumo às esferas. Em seu interior, está a socie-dade descrita por Tönnies. Para compreendermos como funcionao mecanismo que projeta imagens e as duplica como verdades ementiras, precisamos entrar nesse ambiente especular. Para isso,contaremos com uma ajuda inesperada, mas inestimável, de umdos mais habilidosos sistemas do pensamento humano para esta-belecer essa linguagem especular, a cabala judaica.

Temos, de um lado, o reflexo do mundo celestial, com seudemiurgo, o “Um”, “o” deus, Deus, a reinar como detentor dealgo que podemos entender facilmente com a ajuda de uma dou-trina monoteísta, a Cabala. Como afirma Dion Fortune (1990, p.93), quando descreve asephirah Kether, o topo da “árvore” caba-lística, falamos de uma “(...) Inteligência Admirável, ou Oculta,pois é a luz que concede o poder da compreensão do PrimeiroPrincípio, que não tem começo. É a Glória Primordial, pois ne-nhum ser criado pode alcançar-lhe a essência.” Nesse plano es-pecular, a “fonte pura de toda energia” conflui para essa figuracentral no imaginário ocidental, que assim pode se postular comouniversal, acima do secular, eterno. Trata-se de algo semelhantea uma vida parasitária que suga sua força deste mundo, mas des-cuidadamente, define-se num vértice oposto, como a força destemundo. Nos termos cabalísticos de Fortune (idem, p. 98), trata-sede um “Homem Celestial ou Macrocosmo” ao qual a natureza – aphysisde Aristóteles – rende homenagens, notadamente a de agirsegundo seus desígnios.

Do outro lado, na oposição a essa força extraordinária, a essa“cegante luz branca [que surge] anulando por completo o pen-samento”(FORTUNE, idem, p. 94), temos o nosso mundo, estedaqui, no qual somos carne – corrupta, segundo São Paulo – esombras. É apenas um reflexo material, pesado, daquele outromundo, o das idéias, etéreo e leve. Não há nada neste mundo “decá” que não tenha sido projetado pelo “de lá” e que a este nãoretorne um dia. Nesse denso mundo especular projetado sobre a

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experiência, a tônica é a seletividade, algo como um “filtro cós-mico”, asephirah Malkuth, para Dion Fortune, na qual há a“des-cida da Divindade na humanidade”(ibidem, p. 241) ou, onde“todas as coisas se resumem (...) vistas num cristal turvo, porreflexo, e não face a face”(ibidem, p. 243). Nessa lógica, talmundo existe para que haja discriminação – entre o que é bom eo que é mau –, e a sua correspondência corporal para os cabalis-tas seria nada menos do que o ânus, pois tudo o que é mau deveser excretado para ser definitivamente excluído do sistema – cairno reino nefasto das qliphoth,“as sephiroth malignas e adver-sas; (...) “forças terríveis, havendo perigo até mesmo em pensarnelas” (ibidem, p. 246), o lado negro dassephiroth, algo comoo inferno cristão –, ou passar pelo purgatório, “um reservatóriode forças desorganizadas emanadas de formas destruídas e ex-pulsas pela evolução”que devem ser equilibradas para retornar“aos planos da forma organizada”(ibidem, p. 241).

Essa explicação cabalística é muito instrutiva e representa deforma bastante feliz a estrutura do pensamento que encontrou seuapogeu na modernidade e fermentou até se tornar hegemônico emtodo o planeta. De um lado, o mundo das idéias, do outro o das re-presentações; o perfeito em oposição ao imperfeito, o bem opostoao mal, o puro ao impuro, etc. De um lado, há a razão, o libeloda indestrutibilidade das boas intenções aristocráticas, do outro, oirracional, o bárbaro, exilado para algum inferno, como oquiphó-tico. No meio, entre essa polaridade, está o sujeito cartesiano,aquele que “pensa, logo é” reflexo deKether, ou seja, é tocadopelo universal e sabe, ou deveria saber, que “(...) o visível é amanifestação do invisível, ou, em outros termos, o verbo perfeitoestá nas coisas apreciáveis e visíveis, em proporção exata com ascoisas inapreciáveis aos nossos sentidos e invisíveis aos nossosolhos” (LÉVI, 1974, p. 79). Reflexo do universal, mas reflexo,não podemos esquecer disso. A chave para sairmos da sala deespelhos é saber que tudo nela éfake, nada se materializa como oque aparenta ser. Se tomarmos as imagens como reais, provavel-mente jamais sairemos dela. Sabemos que corremos esse risco.

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A postura do habitante dessa sala de espelhos não pode, emnenhum momento, ser de passividade. Para vislumbrar o invi-sível no visível há que se ter muito trabalho e muita disciplina.Como diz o ditado, “a cabeça da mulher é o homem, a do homemé Deus”, e com esse espírito se formulou o modelo do homemocidental, vinculado ao reino celestial no que este tem de positi-vidade – em fuga, sempre, da negatividade. Eis aqui o modelode “luta-fuga” de Bion, citado anteriormente. O homem, assimentendido, sempre disposto a enfrentar desafios, seja da guerracom armas ou com números econômicos, é puroyang, pura mas-culinidade, com tudo o que isso significa em termos de uma açãodeterminada pelolingam– algo como o falo lacaniano, o princípioativo cuja natureza é “espalhar”, fazer a guerra, destruir para criar,como define o cabalista cristão Levi (ibidem). O outro princípio,o doyoni, o princípio feminino, também está presente, mas comoum elemento secundário, resultante do masculino, como explicaLevi (ibidem, p. 84):

Quando o ente princípio se fez criador, erigiu umjod ou umphallus, e, para lhe dar lugar no cheio daluz incriada, teve de cavar umcteis, ou um fosso deprofundidade igual à dimensão determinada pela seudesejo criador, e destinado por ele aojod na luz irra-diante.

Pelo princípio fálico, a ação é mais importante do que o pen-samento e este, se estiver solto, livre das amarras da bipolari-dade especular, torna-se um empecilho para a ação. Para tudofuncionar melhor, para que o pensamento não “atrapalhe” o ato,foram necessários discursos que o condicionassem maquinica-mente, como o faz o da técnica. Para a difusão dessas falas or-ganizativas, os veículos midiáticos foram e continuam sendo fun-damentais. Para essa estrutura, não há rupturas, como a atribuídaà pós-modernidade por Jean-François Lyotard (1986, p. xvi), com“a incredulidade em relação aos meta-relatos”. As regras conti-nuam as mesmas, o mesmo circuito fechado de projeções fantás-

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ticas de pureza e estroinice, ordem e barbárie, certo e errado, tudocom um tom universalizante que só um veículo com alcance hojeilimitado pode proporcionar.

O modelo de Descartes, o “cogito, ergo sum” pode ser inter-pretado da seguinte forma: posto em movimento pelo princípiofálico – que abrangeria referencialmente tanto o masculino comoo feminino, aquele como presença, este como falta – sou constantemovimento, perquirição, juízo, discriminação e potencial agressi-vidade voltada para a conquista que, por sua vez, inicia outro ciclono qual tudo se repete como antes. Daí vem a propalada “insatis-fação” humana, a perene busca de algo que sempre está para alémdo alcance, como pontua Hélio Pelegrino (1987) se referindo à“castração simbólica”, a referência que faz com que aquele queé presença tema a ausência e o que é esta busque aquela, numciclo interminável de alucinações que movem a realidade, paraque o sujeito escape do “Real”, a ausência de significação. Nessecircuito de insatisfações permeado pela angústia da incompletude– simbolizada como o reverso da completude – há sempre algoa conquistar por dois motivos: fazendo-o, iludimo-nos crendoque há algo a conquistar que nos fará completos e plenos comoo “Um” e, por outro lado, obturamos a percepção de nosso de-vir, relacionado inequivocamente à angústia da castração, isto é,a ameaça da perda total dessa ilusão.

O sujeito cartesiano é ainda a base identitária – em afirmaçãoe negação – presente na contemporaneidade “pós” ou “hiper” mo-derna. Está, irrevogavelmente, num ambiente essencialmente po-larizado, e, por sua condição mortal, por sua presença num mundode aparências e reflexos, pode apenas lidar com estes, tendo quedecidir, o que é apenas aparência ou o que traz por trás de si aeternidade da forma essencial. É uma dura tarefa e grande partedo pensamento intelectual do ocidente ainda se dedica, incessan-temente, a operar essa obra de separação, de “filtro cósmico”,aparando arestas e endireitando vias tortas para nelas descobriro sopro da divindade chamada Verdade. Fórmulas são recicladas,novidades requentadas surgem, permanentemente imantadas pela

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imanência do Ser. Empreende-se a busca pela essência, mas o fatode que, essencialmente, essa busca se dá num circuito bipolar, nãoé percebido, e não se sai do lugar. A oscilação entre dois pontos,duas referências ou duas imagens, é perene e inglória. Mas, comoser diferente? Em outras palavras, toma-se a essência, mas é es-quecido o fato de que se está num ambiente especular, no qualhá dois espelhos contrapostos, duas imagens a ser contempladas afim de que alguém possa, posto entre essas duas imagens e com oauxílio do “juízo” kantiano, discernir ativamente entre o bem e omal, o bom e o mau, o certo e o errado, o belo e o feio, etc. Vistaem foco, a escolha redunda em alguma alteração microscópica,mas num plano aberto, nada se move, embora a ilusão de mo-vimento seja dada constantemente pela reflexão monótona entredois opostos. Tudo, assim, é essência, tudo “é”, mesmo quando“não é”. Aparentemente, os sofistas é que “tinham a razão”.

É possível pensar que pela exacerbação dessa discursividade,se produz uma imobilização generalizada, uma contradição que osistema se esforça por resolver pela simulação de movimento feé-rico da mídia, dando a impressão de que a mobilidade é constante,quando não existe. Pode se tratar de um bom exemplo de um cri-ador dominado pela criatura, na medida em que a burguesia, quejulgou ter se libertado pela Economia, se vê embrenhada na salade espelhos, sem conseguir efetivar uma construção que efetiva-mente ponha em marcha as transformações concretas de que ocapitalismo necessitaria para escapar de seus próprios efeitos au-tofágicos, dando a aparência de que chegamos a um paroxismo,a definitiva vitória da lógica do capital, descrita por Fukuyama(1992) como o “fim da história”. Parece ser um momento emque o projeto burguês se congelou na realização plena do mundoanímico posto na terra, e passa a se auto-devorar.

Esse fato aparentemente surpreendente não traz grandes mis-térios. O modelo da sala de espelhos pode ser esclarecedor detoda a dinâmica subjetiva da ocidentalidade, contanto que não fi-quemos na sala de espelhos a nos iludir também. Nele, são exata-mente as hipertrofias de um sentido que trazem, sorrateiramente,

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a predominância de outro, o que habita no pólo oposto. Assim, aobsessão pela segurança engendra uma insegurança generalizada,ao mesmo tempo que podemos captar que há uma insegurançageneralizada – não necessariamente por conta dos “bandidos” –que demanda um discurso “de” segurança e “como” segurança.A captação desse discurso pelo jornalismo tende a decodificar ainsegurança como algo material e é aí que produz a ilusão. A sen-sação de insegurança é algo absolutamente subjetivo e está deter-minado pelas condições da tensão “existencial” – leia-se o oposto– da sociedade econômica. Entre essas condições “existenciais”está o risco de ser objeto do crime dos pobres, mas está principal-mente, apesar de oculto pela exacerbação do discurso da “cidadeaterrorizada”, a certeza “essencial” de ser vítima do crime dosricos. Se ambos podem ser tidos especularmente como “materi-ais”, pois visam à propriedade, este não é exatamente o sentidoque podemos depreender se quisermos sair da sala de espelhos.

Na aliança entre o econômico e o político, geram-se compro-missos e se estabelecem prioridades no que diz respeito ao queimporta e ao que não importa. Aparentemente, o que importa éa riqueza material e o poder político, aquilo que aagenda settingmidiática nos faz crer. O que não importa é a vida do cidadão, suasubjetividade. Afinal, ele é livre para escolher, para consumir oque bem quiser, votar em quem preferir e acumular riqueza. Isso,no espelho, é claro.

O que tem sido importante para as “elites orgânicas”13 não étanto a riqueza material. Esta, o dinheiro, por exemplo, não im-porta diretamente. Para “fazer dinheiro” é preciso estabelecer ascondições favoráveis para tal e “fazer dinheiro” não é imprimi-lo.A fórmula mágica para um grupo conseguir manter o equilíbrioestrutural a seu favor está exatamente na atenção ostensiva e ex-tensiva a todos os cidadãos, são eles que têm importância. Sea direção da “consciência coletiva” – leia-se “opinião pública” –estiver a favor, o dinheiro também estará. A tática é fingir queesse fluxo não existe, ou melhor, “naturalizá-lo”. Enquanto a na-

13 Esse termo será definido no capítulo 4.

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tureza age, as elites, que sabem bem o que importa, gozam suavida civilizada.

Alguns setores da elite, entre eles as altas camadas médiasconseguem existencializar as essências, outros, a maior parte daclasse média urbana, incluindo “emergentes” como Beira-Mar,não conseguem. Ou quedam essencializados, marginalizados eproscritos, ou mantêm-se como malabaristas tentando encontrarsentido em uma linha imaginária, aquela que amarra as imagensespeculares.

3.2.2 A essência é a duplicação do nada

É possível sugerir a hipótese que já passamos dos aperitivos deum banquete autofágico. A hipermídia representa uma revoluçãocomunicacional que traz consigo a percepção do absoluto. É a re-presentação mais próxima do “mundo de idéias”, a mais perfeitaque o humano já pôde inventar. A celeridade na troca de informa-ções e imagens diversas, a participação em grupos de discussãonos quais há não mais apenas palavras, mas a própria imagem,em cor e som – a pessoa, enfim – são sinais evidentes de uma rup-tura com as noções de tempo e espaço. Trata-se de um sintomade hipertrofia do sistema midiático, do sistema comunicacional.Se o objetivo era aproximar pessoas, teve êxito. O problema éque ficaram todos tão próximos que viraram massa. Um dos mo-tivos para se preparar uma massa é comê-la. E se falamos de umamassa de carne, entre esses preparativos está a morte dos possui-dores da carne. Se estivessem vivos, resistiriam – ao menos commais inteligência.

A urbanização e a midiatização progressiva dos espaços pro-duziu um efeito aparentemente imprevisto. Como esperavam osiluministas e como temiam os frankfurtianos, a dialética do es-clarecimento trouxe seus frutos, mas ninguém podia prever quaisseriam. Como um “mundo das idéias” portátil, que se pode le-var debaixo do braço, no bolso, ou pôr na sala, na cozinha, nobanheiro ou ao ar livre, omediumtrouxe a possibilidade de cada

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um de seus receptores ter acesso à sala de espelhos identitária queaté então só tinha sido freqüentada por alguns eleitos. Os mis-térios do mundo paulatinamente foram sendo desvendados até oponto de não sobrar nada além do que se pode enxergar, ouvir ousentir. O mundo distante que governava este aqui, tão próximo,finalmente descia até os mortais e mesmo a Ciência passou a serassunto dominical. Tudo estava posto para a felicidade terrena.

O mapa que guiava até essa felicidade, porém, tornou-se tãodetalhado, tão meticuloso na produção da realidade, tão mais realdo que a própria realidade, que acabou por substituí-la. A corpo-reidade das representações assumiu proporções tão dantescas quepraticamente se pode trocar o seu estatuto de imagem pela de ob-jeto. Baudrillard (1991), assim define o processo de fases por quepassa a imagem:

• o reflexo de uma realidade profunda, quando é uma boaaparência, logo do domínio do sacramento, adequada e con-soante para a proximidade com o bom caminho ideativo;

• a máscara e a deformação de uma realidade profunda, quandoé do domínio do maléfico, sendo uma má aparência e ser-vindo como referencial oposto ao caminho do bem;

• a máscara da ausência de realidade profunda, caso em queé da ordem do sortilégio, pois finge ser uma aparência;

• a ausência de relação com qualquer realidade, passando aser o simulacro puro, saindo assim do domínio da aparên-cia, estando no domínio da simulação.

Para Baudrillard, a passagem fundamental se dá quando se vaidos signos que dissimulam algo aos que dissimulam não havernada:

Os primeiros referem-se a uma teologia da ver-dade e do segredo (de que ainda faz parte a ideolo-gia). Os segundos inauguram a era dos simulacros

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e da simulação, onde já não existe Deus para reco-nhecer os seus, onde já não existe Juízo Final paraseparar o falso do verdadeiro, o real da sua ressurrei-ção artificial, pois tudo está antecipadamente morto eressuscitado. (IBIDEM, p. 14).

Os meios de comunicação tornaram a realidade “hiper-real”, omais perfeito simulacro do que antes se compreendia ser o mundo.O sagrado tornou-se banal, pois se pode acessá-lo numa rápidamudança de canal, durante umzapping, podendo ser experimen-tado num ato religioso simulado por uma emissora evangélica oucatólica ou na presença desnorteante de um ídolo pop, ali, na suafrente, tocando, cantando ou falando de sua vida. O terrível podeser acessado em qualquer telejornal, e os “bandidos” e “trafican-tes” estão aí para isso. Não há mistérios nem algo a fazer além doque já foi desvendado e feito.

O mundo perfeito, pleno sentido da subjetividade, torna-se ex-cessivamente objetivo. Toda a opressão da dialética racional, dadensidade imaterial desse mundo, desce até nós e se apresenta fi-nalmente como “a” realidade, a própria aparência à qual negavaexistência. Não há, como afirma Zizek (2003a, p. 105), nenhumprejuízo da materialidade:

O resultado último da subjetivização global não éo desaparecimento da “realidade objetiva”, mas o de-saparecimento de nossa própria subjetividade, que setransforma num capricho fútil, enquanto a realidadesocial continua seu curso. (...) a resposta correta àsdúvidas pós-modernas acerca da existência do grandeOutro é que é o próprio sujeito que não existe...

O jogo intersubjetivo se transformou em uma espécie de quebra-cabeças semântico, ou um “faça-você-mesmo” identitário. A li-berdade em primeiro lugar, eis o lema do consumidor, que montao puzzleou que vai ao supermercado. Ali ele encontra coisas quelhe dizem quem são, o que faz, do que gosta, quem é. Porém,

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ele é livre, e escolhe o que quer ser. Em casa, transforma-se numcontrole remoto14. Eis o sujeito, finalmente senhor do mundo dasidéias, morto, como já sabia Nietzsche (1948). Uma alma descar-nada, com sua “vida sem vida”.

Para a montagem do quebra-cabeças a mídia fornece o essen-cial. Na sua edição de 15 de setembro, quatro dias depois domotim na penitenciária de Bangu 1, no qual um dos desafetos doComando Vermelho, Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi morto,o jornal carioca O Dia dá destaque especial a Fernandinho Beira-Mar, distribuidor de drogas para vários morros do Rio, líder doComando Vermelho e figura midiática desde muito antes. Essedestaque é dedicado exatamente a “desvendar” a “essência ban-dida” de Beira-Mar. Logo na primeira página, em sua metadesuperior, uma manchete chama a atenção do leitor:“Beira-Marfoi bom aluno”. O texto-chamada era o seguinte:

Incrível: o bandido que comandou a matança emBangu 1 e fez toda a cidade de refém esta semana nãolevava bomba na escola. No primário, Luiz Fernandoda Costa tinha média 7 em todas as matérias. Inqui-eto e inteligente, era apaixonado por filmes violentos.Aos amigos, não cansava de afirmar que um dia seriafamoso. Gostava de colocar duas ripas de madeira nacintura, como se estivesse armado, e desfilar com amesma arrogância com que circulou entre as galeriasdo presídio na quarta-feira, em meio às suas vítimas.Ele desprezou o esforço da mãe, que fazia questão dever o filho estudando, para usar sua astúcia a serviçodo mal.

Não é preciso reiterar a “maldade” desse personagem. Es-sencialmente, sem qualquer alternativa, ele é mau, e muito mau,a ponto de “desprezar o esforço da mãe”, coitada, uma provável

14 Como afirma Derrick de Kerkhove (1997, p. 44)“ Você não vê TV, a TVvê-o a si”.

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gentil senhora que nada tem a ver com o destino perverso do filho,ou que pelo menos tentou consertá-lo. O que chama a atenção éque apesar de “existencial”, promotor da liberdade, o mundo pau-tado pela economia não pode admitir que um “bandido” escolhaser bandido. Isso, na duplicação especular do “ser” ou “não ser”,significa o oposto. Não só admite, como incentiva. Beira-Mar, ode essência criminosa, está bem integrado ao mundo econômico.Apenas por isso é notícia, e vivo.

A chamada de primeira página é acompanhada por uma antigafoto de Beira-Mar – quando devia ter em torno dos 7 anos citados– e cópia de seu boletim escolar (figura 1). A página 22, inteira-mente dedicada a historiar a vida do “superstar do crime”, há umtítulo ao menos espirituoso:“Doutorado na escola do mal”. Osubtítulo é mais detalhado quanto ao tema tratado:“Fernandinhosó tirava notas altas no primário. Mais de 20 anos depois, seucurrículo é uma coleção de atrocidades e covardia”. Dada sua es-sência malévola, não há mesmo salvação para o “bandido”. Dessemodo se pode defender a pena capital sem remorsos, ou pedir aeliminação deste e de outros “entraves” para que o paraíso terres-tre se materialize, ou para “um melhor uso de recursos” econômi-cos, conforme pensa a leitora Márcia Cabral Medeiros em missivaao jornal O Globo, publicada no dia 12 de setembro de 2002, napágina 6, um dia depois da investida de Fernandinho Beira-Marpara matar Uê:

Enquanto não houver um projeto de lei implan-tando a pena de morte para quem for declarado cul-pado em juízo e condenação a mais de 50 anos de pri-são a situação de violência no país não vai melhorar.Não adianta encher os presídios. Fernandinho Beira-Mar seria exterminado se houvesse pena de morte.Vemos hoje o criminoso comandando uma rebeliãono presídio com quatro carcereiros e quatro operáriosfeitos reféns. Isso tem de mudar. Não podemos gastaro dinheiro do povo com gente desse tipo.

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Ou como “pensa” outro leitor, Simon Zelenoy, cuja carta foipublicada no dia 13, dois dias depois do motim em Bangu 1, tam-bém na página 6:

O cumprimento de penas em prisões deveria ser-vir para que o condenado seja punido, reflita sobreseus atos e saia da prisão pronto para levar uma vidahonesta. Mas alguém acha que figuras como Fernan-dinho Beira-Mar têm alguma chance de sair da prisãocomo um cidadão honesto que tentará levar uma vidanormal? Com certeza esse milagre não acontecerá.Logo, a única solução para casos como o dele é apena de morte.

Podemos perceber duas identidades na carta de Zelenoy. Naprimeira ele é algo como um liberal convicto, já que efetivamenteparece acreditar no que escreveu com relação aos objetivos dasprisões e, é claro, crê na necessidade delas para algo como a “re-cuperação” para uma “vida normal”. A segunda faria com queo tomássemos no mesmo nível de Adolf Hitler, que pensava algosemelhante dos judeus. Apesar de aparentemente opostas, as duaspersonalidades têm incestuosos vínculos entre si, assim como asidentidades do liberal e do nazista. Já na carta da leitora MárciaMedeiros, além de planejadora pública ela, por alguns instantes,pôs o colete da polícia e posou de exterminadora de bandidos.É realmente uma festa identitária que faz com que as pessoas seesqueçam que são, no fim de tudo, pessoas que não conseguem sa-ber o que são, a não ser com os antolhos especulares midiáticos,assim como nas tribos de Maffesoli (1998), por si só midiáticas.A tribalização não nos parece indício de qualquer transformaçãopara além do capitalismo. O leitor Zelenoy pode vestir uma roupade liberal durante o dia e envergar a farda fascista à noite e issonão trará qualquer novidade em relação ao que temos hoje.

Voltando ao jornal O Dia de 15 de setembro, há, ainda, na pá-gina 22, várias fotos, como num álbum de família: FernandinhoBeira-Mar jovem, com crianças, diante de um armário de metal

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– desses que há nos vestiários –, dando entrevistas – com trêsmicrofones à sua frente, um da TV Globo, e legenda:“Celebri-dade do crime”–, sendo conduzido por um soldado do exército– vestido para combate – quando preso, a escola onde estudou,escondido num sítio no Paraguai, a vila onde passou a infância e,finalmente, quando foi depor na Comissão de Direitos Humanosdo Congresso Nacional. Várias identidades expostas. Perceba-seque estão ali para reforçar a essência malvada do “bandido”.

Transcrevemos, abaixo, o lead e o sub-lead da matéria:

Aos 10 anos de idade, quando não estava em salade aula, Fernandinho desfilava com ripas de madeirana cintura – armas imaginárias – pelas ruas do ParqueBeira-Mar, bairro pobre perto do Centro de Duquede Caxias. Na escola Municipal Joaquim da SilvaPeçanha, perto de casa, onde cursou o primário, eleera um dos melhores alunos e costumava dizer aosamigos que queria ser famoso.

O que nenhum dos colegas imaginava, porém, éque, 25 anos depois, Luiz Fernando da Costa, o Fer-nandinho Beira-Mar, se tornaria o mais cruel dos cri-minosos do Rio – o bandido que, quarta-feira, coman-dou um banho de sangue no presídio de Bangu 1 ecirculava desenvolto pelos corredores da cadeia, en-quanto os cidadãos do Rio se encarceravam em casa,durante as 23 horas de duração do motim. Feita refémsem saber, a população já temia as conseqüências deataques de traficantes que, nas favelas, estavam pron-tos para acatar as ordens que o chefe dava pelo celularna frente de autoridades: descer os morros e espalharo terror pela cidade, caso a polícia tocasse nele.

Além de bom aluno, a mesma matéria, não assinada, afirmaque Beira-Mar seria, desde pequeno, perigoso. Usando os supos-tos depoimentos de dois supostos “antigos colegas” do bandido –

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não identificados –, o jornal deixa claro que ninguém gostava deprovar sua ira:

(...) O problema era quando se aborrecia. Aí nin-guém chegava perto. (...) Alternava traquinagem commomentos de timidez. Mas, quando o viam enfezado,todos tratavam de deixá-lo em paz.

Além disso, ainda há a sugestão sutil de que haveria relaçãoentre a “maldade” de Beira-Mar e o seu hábito de assistir a thril-lers de ação:“Garoto era viciado em assistir a filmes violentosna televisão”(desses“com cenas de perseguição, lutas e tiros”,segundo a matéria).

A essência “beira-mareana” está desvendada: apesar de tertido “tudo” na vida, casa, comida, uma mãe esforçada, estudo,boas notas, acabou demonstrando quem é na realidade, essencial-mente um facínora. Definitivamente, é um monstro, não faz parteda sociedade porque seu caráter não condiz com a harmonia ne-cessária para a vida social. Não há mistérios, apenas o desconhe-cido entre espelhos, o leitor dos jornais. O mundo está desven-dado para ele, assim como o caráter de Beira-Mar, só que ele nãotem como saber quem afinal é ele próprio, a não ser que alguémlhe diga. Como todos lhe dizem, ele fica na mesma. Resta-lhe aescolha do velho jogo bipolar, bem e mal, preto e branco, os anto-lhos jornalísticos. Sabendo o que “não é”, sabe o que “é”. CirceNavarro Vital Brasil (1988, p. 9), utilizando como base a teorialacaniana do sujeito, pode explicar bem como se dá a duplicaçãoespecular que transforma dois “não” em um “sim”, e vice-versa:

Segundo a lei da reflexividade da lógica da iden-tidade, pela qual toda entidade é igual a si mesma,o zero enquanto atribuído ao conceitonão idênticoa si mesmoé idêntico aonão idêntico ao si mesmo.Ao duplicar-se a negação, obtém-se uma afirmação.A estrutura da repetição será, assim, o processo deidentificação do idêntico. Vai-se do não idêntico para

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a identidade. A negação da negação vai resultar napassagem do zero a um.

A tragédia aqui é que a denegação faz voltar ao sujeito aquiloque projetou. Em termos especulares, as “pessoas de bem” queescreveram as cartas citadas anteriormente são tão “más” quantojulgam ser Beira-Mar. Porém, a especularidade identitária per-mite que elas despejem sua maldade de forma “civilizada”.

Mas, há um problema. Havendo somente zero e um, não hádesejo, pois o desejo é desejo de algo que não se tem, e nesseesquema, tudo se tem, inclusive o zero. A única coisa que não setem é a “si” mesmo, bem ao contrário do que prometia a fantasiailuminista. Se há, então, desejo, só pode ser por “si” mesmo, oque Freud (1974d) chamou de narcisismo.

Creditar ao zero algum tipo de desejo é o que faz o tempo todoo ocidente, confundindo o signo com o objeto, fazendo daquele –que não é mais que uma imagem especular deste – a realidadedeste, quando seria mais adequado admitir que há um “vão”, umespaço virtualmente vazio, entre signo e objeto: a alteridade. As-sim age a imprensa, como nos exemplos acima citados e, comoafirma Lúcia Santaella (1996, p. 64):

(...) não é senão ocultando a fratura da diferença,ocultamento desse vão entre signo e realidade, quese alimentam todas as ideologias deformantes e todasas mentiras que, escondendo, disfarçando ou mistifi-cando seu caráter de signo, fazem-se passar por rea-lidade. (...) O signo não é e nem pode ser aquilo queele representa. O objeto da representação, o real, só éparcialmente capturado pelo signo. O real na sua ver-dade, portanto, é sempre algo inatingível, mas, emmenos ou maior medida, sempre aproximável pelamediação do signo. É nessa aproximação como metaque reside nossa responsabilidade ética para com alinguagem.

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Caberia um questionamento acerca da responsabilidade éticade uma matéria como a do jornal O Dia, parcialmente transcritaacima. Trata-se de um bom exemplo de como se estrutura o dis-curso jornalístico nesse veículo e em todos os outros da chamada“grande imprensa”15 brasileira. E demonstra de forma emblemá-tica como se funda a subjetividade ocidental. De um lado o co-nhecido “desconhecido”; de outro, o desconhecido “conhecido”.Em outras palavras, de um lado o que conhece a essência do bem,por isso chamado “pessoa de bem”, ou “do bem”; de outro lado,esse “desconhecido”, Beira-Mar com sua essência criminosa – emoutros tempos se usava “sua mente criminosa”, que deveria serestudada pela ciência para prevenir a eclosão dessa essência ma-léfica, mas hoje se projeta esse poder no genoma, a raiz essencialdo ser. Ambos, no entanto, tornam-se desvendáveis pela oposiçãozero e um. A alteridade, assim, está no ponto entre os opostosbinários, a tese. Como nesse ponto está o sujeito a perquirir defi-nições do que, afinal, é no meio dos reflexos, podemos dizer que aalteridade está aí, no sujeito. Como este não existe a não ser comoreferência a esses opostos, podemos afirmar com certeza que nãohá sujeito nesse construto, logo não há alteridade. Há, isso sim, aperda total da noção de “diferença”.

Assim, do mesmo modo, a máxima cristã do “ama ao outrocomo a ti mesmo” é inviável, uma frase sem sentido. Se não há o“ti mesmo”, a não ser como duplicação da negação, não há comoreconhecer o outro, uma duplicação da afirmação. São duas li-nhas paralelas. Sempre que tenta, o “sujeito” (sujeito às imagensespeculares, diga-se bem) encontra a imagem de si mesmo – não,é claro, a si mesmo – e não tem como cumprir o que a pregaçãorecomenda a não ser projetando essa imagem no “Outro”. Mesmoque levemos em consideração alguma boa intenção contida nessa

15 Na definição de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1978, p. 235):“Conjunto dos principais órgãos de imprensa, editados por grandes empresasjornalísticas, solidamente estabelecidas no contexto empresarial. Possuem ti-ragens elevadas, vasta penetração, exercem significativa influência política,econômica e social junto à comunidade”.

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máxima, não há como levá-la a sério. Trata-se de mais uma boaintenção a povoar o inferno que bem pode ser definido como a re-alidade numa sociedade ocidental – aMalkuthcabalística. Comojá dizia Artur Schopenhauer (1958, p. 11), “O mundo é o inferno,e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos ator-mentadores.”

A essência é o arauto da exclusão da poesia prevista n’ A Re-pública. Trata-se do ser verdadeiro, apenas cognoscível quandoo espírito supera o sensível – estrategicamente tido como o ilusó-rio – e vai contemplar a harmonia das formas perfeitas. Veja-seo corpo, essa coisa tão próxima. Dir-se-ia que deve morrer paraque seu possuidor alcance a essência. Está como preso nessa rea-lidade sobrenatural à qual, muito provavelmente, só temos acessoapós a morte. Trata-se, realmente, como já disse Nietzsche (1985)de uma “vingança” contra a vida. O corpo torna-se distante, oumelhor dizendo, projeta-se para o íntimo e se distancia de tudo,esconde-se, cobre-se, para desnudar-se apenas sob a presença doessencial. A intimidade é também um mundo de idéias a subjugara experiência sensível. Nela, é preciso que tudo esteja em ordem,que não haja intrometidos, interrupções, desarmonia. No ato se-xual, ícone máximo da intimidade, essa platitude é uma caracte-rística da ocidentalidade. Mesmo quando se escapa dela, comona orgia, tende-se a mantê-la com regras predeterminadas, com-binações, marcações de hora e local e convenções diversas. Nasmodalidades doménage a trois, ou na “troca de casais”, por exem-plo, é preciso que todos estejam de acordo com o que vai aconte-cer, que garantam discrição e outras regras mais, muitos assinamtermos de responsabilidade que garantam o cumprimento dessasregras sob penas legais. E tudo isso para usar o corpo, que deveobedecer a padrões que correspondem a uma estrutura que cer-tamente não lhe diz respeito. Suas manifestações só podem seraceitas nesse mundo ideativo da intimidade, no escuro, no isola-mento, com a suspensão do contato com outros corpos. De pre-ferência, deve se manifestar no banheiro, para algumas ativida-des, ou no quarto, para outras – sem que seja aconselhável con-

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fundir as coisas. Na civilização isso é seguido à risca, e mesmoquando algumas dessas regras se quebram, essa quebra passa a sera norma, no mesmo esquema, com adaptações estruturais, comonas diversas modalidades de orgias citadas acima. O corpo estásempre próximo, mas surpreendentemente distante num mundoesquematizado, puro, desinfetado de todo o inesperado, como de-vem ser cozinhas, banheiros e centros cirúrgicos. Mas, como es-perar que haja vida num espaço “extremamente pessoal, que dizrespeito aos atos, sentimentos ou pensamentos mais íntimos dealguém”16? Como, se não há ninguém ali? “Será possível queeste santo ancião ainda não percebeu no seu bosque que Deusjá morreu?”, falou o Zaratustra de Nietzsche (1977, p. 9) para simesmo após encerrar uma conversa com um “velhote de cabelosalvos que saíra de sua cabana a fim de procurar raízes na mata” ecompunha cânticos para louvar o seu Deus. Será possível que nin-guém percebeu que o homem está morto?, poderíamos perguntarna contemporaneidade.

3.2.3 O nada é a duplicação da essência

Trata-se de um momento em que tudo é midiático. A exacerbaçãocomunicacional alastrou seus tentáculos para locais inauditos. Aintimidade, como vimos, está entre eles. A sala de espelhos pro-duz a sensação de profundidade graças ao efeito especular, masa compressão é cada vez maior. A causa da morte do homem éo sufocamento existencial, com a exacerbação da realidade pa-trocinada pela apostasia da realidade servindo como instrumentoletal. Tudo é comunicação, tudo é midiático: da roupa íntimaao automóvel, da gíria do malandro ao poema. Tudo é midiati-zado não por que tudo seja mídia, como se crê, mas porque todosestão privados de seus direitos imediatos, da liberdade de ação ede decisão, conforme vimos com Virilio (idem). Todos são mídiasporque estão midiatizados. “Medium is message”, disse McLuhan(1969). Então, como bem compreende Baudrillard (1991, p. 108),

16 Definição de “intimidade” dada por Houaiss (2001).

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Numa palavra,Medium is messagenão significaapenas o fim da mensagem mas também o fim dome-dium. Já não hámediano sentido literal do termo(refiro-me sobretudo aos media eletrônicos de mas-sas) – isto é, instância mediadora de uma realidadepara uma outra, de um estado do real para outro. Nemnos conteúdos nem na forma. É esse o significado ri-goroso da implosão17 . Absorção dos pólos um nooutro, curto-circuito entre os pólos de todo o sistemadiferencial de sentido, esmagamento dos termos e dasoposições distintas, entre as quais a do medium e doreal – impossibilidade, portanto, de toda a mediação,de toda a intervenção dialética entre os dois ou de umpara o outro. Circularidade de todos os efeitosmedia.Impossibilidade de um sentido, no sentido literal deum vetor unilateral que conduz de um pólo a outro.Há que considerar até ao fim esta situação crítica masoriginal: é a única que nos resta. É inútil sonhar comuma revolução pela forma, já quemediume real sãoa partir de agora uma única nebulosa indecifrável nasua verdade.

Não há sujeito, não hámedium. Ou há, e tudo se entrelaçaformando uma massa só, compacta e indiferenciada, dissociadaentre seus pontos e, no entanto, ainda massa, como nos meiosde comunicação dirigidos a ela. Mas, como aceitar essa noçãoem um momento de implosão do “sentido unívoco” – ou de suarearticulação – e da dualidade que produz? O sujeito esvanece,tornando-se puramente ummediumde uma ordem universal, “na-tural”. Isso significa que omedium, como o conhecemos tradici-onalmente, se torna, ele próprio, o real. Não é, nessas condiçõesum contra-senso falar em comunicação? O sujeito é ummedium,mas este é o real e, como tal, o sujeito também é, na forma de“indivíduo”, tão pleno de subjetividade que esta, duplicada por

17 Implosão do sentido tanto social quanto ao nível microscópico do signo.

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sua plenitude ôntica, abarca o “ser” e o “não ser”, se extinguindoenquanto produção imaginária. Nesse nível, isso que chamamoscomunicação está mais próxima do que George H. Mead (apudRENÉ SPITZ, 1979, p. 126) percebeu como sendo a comunica-ção animal:

(...) quando o cão A late e, à distância, o cão Bresponde latindo, o cão B não sabe se seu latido temalgum significado para o cão A, não leva em contaqual significado ele possa ter. Nós, como observa-dores, sabemos que o latido do cão B é um estímulopara o cão A e que o cão A responderá, expressandoseus sentimentos pelo fato de ter sido assim estimu-lado. Mas isso é exatamente o que o cão B não sabe,pois seu latido é egocêntrico e não alocêntrico, comoseria a linguagem humana.

A noção acima é ideal para a pretensão civilizatória de possuirum “algo mais”, um diferencial não apenas dos animais, como dos“Outros”, dos bárbaros, uma essência privilegiada. A contempo-raneidade tem nos mostrado que o alocentrismo citado por Meade Spitz não é mais do que um egocentrismo projetado para alémde si, engolfando todo o mundo, como o centro de um mundoideativo ou uma divindade. Quando a pessoa A fala, a pessoa Bresponde falando, e a modernidade supunha que havia algo a dizerentre as duas, dois sujeitos, dois indivíduos. Hoje, podemos en-tender que se há fala, há ummediumsuposto, que, para McLuhan,é a própria mensagem, e, assim, há uma realidade que prescindede sujeitos falantes e mesmo de ummedium. Logo, o cão A e ocão B se comunicam aparentemente tanto como os humanos A eB. Seja lá o que Mead e Spitz imaginavam haver que fizesse oscães conversar não conversando, é o mesmo que se pode observarentre os tais “comunicadores alocêntricos”, os humanos. Comquem se conversa num mundo ideativo, puro, imaculado, harmô-nico, pleno de essência? Como haver indivíduos com algo a di-zer num mundo em que Deus – seja na forma religiosa “stricto

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sensu”, seja na de um “grande irmão” midiático – está em todaparte, onisciente e onipresente, sendo ainda por cima, onipotente?O modelo do homem – mantido o gênero – ocidental modernocontinua a ser o dopanopticonde Bentham, uma idéia que Fou-cault (1984, p. 209), identificava como umzeitgeist:

(...) eu havia pensado em fazer um estudo sobrea arquitetura hospitalar na segunda metade do séculoXVIII, época do grande movimento de reforma dasinstituições médicas. Eu queria saber como o olharmédico havia se institucionalizado; como ele se haviainscrito efetivamente no espaço social; como a novaforma hospitalar era ao mesmo tempo o efeito e o su-porte de um novo tipo de olhar. E, examinando osdiferentes projetos arquitetônicos elaborados depoisdo segundo incêndio doHôtel-Dieu, em 1772, per-cebi até que ponto o problema da visibilidade totaldos corpos, dos indivíduos e das coisas para um olharcentralizado havia sido um dos princípios diretoresmais constantes. (...) Durante muito tempo acrediteique estes eram problemas específicos da medicina doséculo XVIII e de suas crenças. (...) Mas é impressio-nante constatar que, muito antes de Bentham, já exis-tia a mesma preocupação. (...) Bentham contou quefoi seu irmão que, visitando a Escola Militar, teve aidéia do panopticon. De qualquer forma, o tema estáno ar.

Estava no ar mesmo. Adam Smith (2002) também pensavasobre a visibilidade e o controle, através de uma teoria do julga-mento moral. Para ele, o fundador da Economia, o sujeito estariapermanentemente diante de um espelho, em busca constante deaprovação e reconhecimento. As paixões, admitidas por Smithcomo componentes fundamentais do sujeito, não teriam tanto queser combatidas como domadas, canalizadas para a vida social,educadas. Seu livro Teoria dos Sentimentos Morais é como um

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manifesto de transição do homem prudente do mundo hobbesi-ano, com sua ênfase subjetiva no autocontrole, para o homemeconômico, tido como virtuoso, aquele que transcende a prudên-cia na medida em que se arrebata para a ação, senhor de si nãotanto por se controlar, mas por saber valorizar e educar suas emo-ções para o seu bem e o bem comum, obtendo reconhecimentopor isso e re-intensificando seus esforços nesse sentido. O foconão estaria mais na repressão simplesmente, mas na injeção deânimo para a vida social com a canalização das paixões e o re-conhecimento por isto, não pelo simples autocontrole, gerandouma estrutura subjetiva básica que fundamentaria o jogo econô-mico. A economia seria a canalização dessas coisas estranhas etemíveis chamadas paixões para o bem comum. A partir de en-tão, o humano A e o humano B podiam não apenas falar, comofazer todas as coisas que quisessem, inclusive latir contanto quefosse com essa condição. Os olhares de reconhecimento ou decondenação, opanopticonespecular da vida social, garantiriam oequilíbrio, como o mercado o faria com o todo econômico. Umproblema está em que essas palavras poderiam ser aplicadas aos“humanos”, não aos “cães” ou a qualquer “Outro”. Mais um pro-blema está na constatação de que essa “existencialização” sempredepende de aprovação de uma essência, o Mercado, por exemplo,ligada umbilicalmente aos antigos conceitos filosóficos de Razãoe Verdade. É essa essência que os humanos “latem”.

A percepção especular, eminentemente visual, do mundo oci-dental tem suas peculiaridades. Delimita pela aparência, exata-mente de forma oposta ao que deveria fazer quando fala em es-sência. No entanto, o aparente bem pode ser compreendido comouma imanência, e isso serve para facilitar as coisas, ainda maisquando o que se quer dizer não é o que se diz. Os estigma-tizados foram, tradicionalmente, apontados como marcados porDeus, criaturas especiais para o bem ou, mais geralmente, para omal, como bem lembra Ervin Goffman (1978). O aparente, aquiloque o olhar apreende, não passa, hoje sabemos, de um reflexopropiciado pelo brilho desse olhar, no entanto, naquele momento

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histórico, e até bem recentemente, era simplesmente tudo, o es-sencial. Ainda o é, para quem habita nessa sala de espelhos. Nãoaquela que Platão identificou como uma caverna da qual a fugaseria imprescindível para o conhecimento da verdade, mas exata-mente o que o fugitivo encontra ao sair da caverna.

Suprema perversidade de um especulador: fazer alguém mer-gulhar no poço para pegar a lua18 . Desse modo, só se pode en-contrar a verdade, mesmo. O “terrível” Beira-Mar está refletidona mídia como a lua no poço. Inadvertidamente ou por má-fé,os jornalistas estão nos transmitindo a verdade ao manter o “pára-vento” que permite que o reflexo seja tão perfeito quanto o objeto.Apostando na versão da imprensa, as classes-médias consumido-ras desses folhetins de narratividade medíocre, acabarão desco-brindo que, por mais dolorosa que seja, a “Verdade” não é aquiloque pensavam. Aliás, já vêm descobrindo há tempos; apenas nãoperceberam isso, e o pior é que insistem em não perceber. Coisasdessa gente essencial em demasia.

Com a cadência especular midiática, a sociedade ocidentalduplica sua essência abrindo um abismo existencial sob si. Fe-chada num circuito de retroalimentação, toda ação é controladapor seus próprios efeitos. A formação de uma “opinião pública” éum bom exemplo desse processo autofágico, expressão de um sis-tema que não tem mais o que o que explorar fora de si, como a an-tiga Roma vitoriosa diante de Cartago, mas também não tem maisideais a professar para encher o vazio causado pela definitiva con-quista do mundo no processo que ficou fetichizado como “globa-lização”, uma “narrativa auto-referente” (ELHADJI, 2003) queleva ao nada da significação na forma da plenitude significacio-nal. Roma tinha alimes, mas o ocidente contemporâneo não temmais limites a serem transpostos. Não que não existam bárbaros,mas estes simplesmente não estão no jogo, pois não servem à ló-gica econômica e são dispensáveis, já mesmo como negatividade.

18 Fazemos referência ao ditado popular que afirma que aquele que olha alua refletida no poço e mergulha nele para alcançar a lua, não consegue seuintento, mas descobre “a verdade”.

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Não há conquistas para a civilização, não há a quem vencer.A não ser, é claro, a si própria. Beira-Mar faz parte desse mundo,por isso pode e deve ser vencido, ou melhor, pode e deve jogarpara ser vencido. Como concorrente, não como bárbaro. A bar-baridade não lhe permitiria, apesar de malvado, se constituir numempresário de sucesso. Ele só merece o ódio da classe média por-que, da mesma forma, é uma referência amorosamente perversapara esta, uma imagem narcísica posta de ponta-cabeça. É comoo reverso da “Morte do Caixeiro Viajante”, a perversão sadoma-soquista do homem medíocre que se esconde nos escritórios asonhar com o que o “bandido” conseguiu e com a punição que asua “vida bandida” impõe a ele, homem de classe média, por todoo mal que seus descendentes e ele próprio fizeram a gente comoBeira-Mar. Esses, possivelmente são a maior virtude e o maiorcrime de Fernandinho Beira-Mar, não necessariamente nesta or-dem. Por isso, a sociedade que lhe patrocina, admira e odeia, lheoferece, como prêmio, a exposição midiática e, como castigo, aprivação do bem que considera mais precioso, a liberdade. Esseé, nos parece, o sentido da “guerra a Beira-Mar”.

Infelizmente, cremos que Beira-Mar representa a vitória da ci-vilização sobre a barbárie, a prova de que um bárbaro pode se tor-nar “civilizado”, isto é, ganhar dinheiro e comandar um esquemaempresarial complexo. No fundo, então, a matéria do jornal ODia, apresentada como sendo manifestamente uma condenação, aconstatação da maldade essencial desse “bandido”, traz, de formalatente, um enaltecimento. Milhares de cidadãos da classe mé-dia carioca estudaram, concluíram cursos superiores mas não al-cançaram a posição de Beira-Mar, que conseguiu espaço até noNew York Times, como “Seaside Freddy”19 . Os mesmos milha-res põem os filhos na escola para que “sejam alguém na vida”,mas sabem que estudando muito dificilmente se consegue chegaraonde esse “bandido” chegou. Trata-se, então, de um “cidadão”

19 Não somente do New York Times, como de outros jornais, conforme ma-téria da Folha de São Paulo, colhida no site do jornal em 13 de setembro de2002, publicada no dia seguinte na edição impressa. Ver anexo 6.

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dotado de um senso especial de oportunidade, atributo valorizadono meio empresarial dos “white collar”, que soube encontrar, aocontrário do que diz manifestamente o texto do jornal, o cami-nho do bem, do seu bem, como prezam os mesmos “colarinhosbrancos”. Trata-se, então, de um homem com rara argúcia em-presarial, que bem poderia constar – quem sabe um dia constará– de uma dessas revistas dedicadas a auxiliar o “sujeito de classe-média” a promover a sua mentalidade mercadológica para obtersucesso nesse mundo resumido na lógica econômica. Estudar,para quê? O mal tem suas vantagens competitivas, os números asprovam. A essência do mal se duplica e se torna o bem.

Bem, mal, quem se importa? Os estadunidenses certamentenão se importaram com as vítimas de Hiroshima e Nagazaki, nemmuito menos com os milhares de perseguidos, torturados e mor-tos nas ditaduras sul-americanas que criaram e ajudaram a manter,inclusive a brasileira. Não ligaram a mínima para os vietcongs, osafegãos ou os iraquianos que morreram para que George Bushfilho e seus sócios pudessem fazer bons negócios no ramo do pe-tróleo. Não querem nem saber dos palestinos massacrados pelamáquina mortífera sionista nem das vítimas do estranho atentadode 11 de setembro de 2001. Beira-Mar também não se importacom coisas como essa. As regras, ele bem sabe, não são essas paraquem quer “vencer na vida”. Ele aprendeu a lição e é um herói dacivilização que o idolatra especularmente. Aí está o caminho paradescobrir o sentido de seu irresistível charme midiático. Nessasala de espelhos tudo está onde não está, inclusive, os bandidosmais perigosos.

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Capítulo 4

Saqueando túmulos: crimeorganizado, crime

“organizado” e a “guerra aBeira-Mar”

Temos uma sociedade em permanente conflito, na qual, como noinferno schopenhaueriano, há os diabos atormentadores e as al-mas atormentadas. Se no plano micropolítico podemos dizer quesão todos contra todos, e é difícil discernir exatamente quem é oatormentador ou o atormentado da vez, num plano aberto pode-mos identificar mais facilmente uns e outros. Em primeiro lugar,seguindo a ordem de aparição nesta dissertação, temos a classemédia infernizando os pobres. Essa é a “guerra à beira-mar”, umconflito explícito entre “a” sociedade – leia-se as classes médias– e os diferentes, com a mesma matriz cultural “alterofágica” doocidente. No caso do Rio de Janeiro, os pobres, em geral, e osnegros, em particular, foram postos historicamente no lugar dodiferente, mas vimos com Gay (2002) que a pobreza já horrori-zava e aturdia as classes médias européias do século XIX, possi-velmente com fervor semelhante ao experimentado pelas classesmédias cariocas.

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Esse enfrentamento, que vem de longe, se intensificou na úl-tima década do século XX, com a adesão de boa parte dos anti-gos atormentados ao ofício de atormentadores. Cremos que issopode ser entendido por diversos ângulos culturais, nos quais po-deremos nos surpreender aos nos deparar com uma interessantehibridação que mescla fatores “societários” e “comunitários” naformação da identidade tantos dos “incluídos” como dos “excluí-dos” do “jogo finito” da economia neoliberal. Nosso vértice, po-rém, procura tomar o político como foco principal, elaborandoum mapa no qual estão expostos movimentos traçados sob matri-zes subjetivas. Nesse ângulo, como estamos percebendo, o acirra-mento do confronto se dá não por um distanciamento entre essesgrupos, mas pela aproximação destes da mesma proposta de soci-edade. Uma matéria publicada na revista Época, em sua edição no

302, de 01/03/041, ilustra a ascensão de uma “classe média emer-gente”, ou seja, uma parte de “excluídos” que vem se inserindo no“mundo encantado” do consumo. Trata-se de uma entrevista comum consultor de empresas, Ricardo Neves, que enxergava umaintegração da população das favelas à vida “civilizada”. Vejamosum trecho da entrevista:

ÉPOCA - Onde está a classe média emergentedo Brasil?

Ricardo Neves –Bem diante de nós. Existemcertas obsessões que nos impedem de ver alguns fenô-menos sociais. O que a gente chama de classe ca-rente é um imenso mercado emergente. As favelasdo Rio de Janeiro ainda são vistas como algo nega-tivo, tendo quem acredite que devam ser erradicadas.Mas nos últimos 30 anos ocorreu ali uma melhoriaem penetração de serviços e bens de consumo. Gra-ças a isso, nos últimos 20 anos, começamos a produ-zir uma classe média mais robusta, que não é mais

1Acessível no endereço eletrônico: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT687074-1666,00.html.

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apenas 14% da população, como na década de 70. Épreciso desfazer o mito da pobreza. Será que não es-tamos pessimistas demais com nosso passivo sociale incapazes de perceber que já demos um salto paraa frente? O grande desenvolvimento de uma naçãoocorre quando ela consolida uma classe média abran-gente, formando um enorme mercado interno. E pa-rece que estamos nesse caminho.

ÉPOCA - Quais são os indicadores desse fenô-meno?

Neves -Uma pesquisa revela que muitas favelasse transformaram em bairros populares. Entre 1969e 2001, a proporção de casas de alvenaria cresceu de37% para 97%. Esse pessoal passou a pagar contas ecomprar também. No mesmo período, a quantidadede residências populares com aparelho de som sal-tou de 25% para 79%. A presença da geladeira foide 58% para 98%. E a da televisão cresceu de 64%para 95%. Agora, estão buscando itens mais sofis-ticados. Pesquisas feitas por empresas mostram queentre a classe C 18% das famílias têm freezer, 32%têm aparelho de CD e 47% têm videocassete.

O que Neves não disse é que boa parte do dinheiro que finan-cia essa “emergência” vem provavelmente do comércio ilegal dedrogas, que emprega muita gente nas favelas.

Há um interesse inequívoco das elites – a burguesia propria-mente dita e as altas classes médias – em integrar o maior númerode pessoas à vida pacata dos “mortos-vivos” midiáticos, seja porque via for, tanto é assim que dos cinco eletrodomésticos citadospelo consultor, três são de acesso comunicacional/cultural e re-presentam algo como uma credencial que distingue “incluídos”e “excluídos”. Ana Lúcia Fugulin (2001, p. 18) também identi-fica um aumento significativo da participação das classes menosaquinhoadas no processo de consumo:

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Quando se analisam os dados de concentração derenda no Brasil, onde os 32% mais ricos detêm 75%da renda nacional (dados do PNAD 1999), a primeiraconclusão a que se chega é que o mercado de con-sumo está localizado apenas nas classes AB (31% dapopulação, segundo critério Brasil, do Ibope PNT).Mas, ao analisar cuidadosamente o quadro da deman-da, é possível observar que as classes médias e bai-xas estão consumindo cada vez mais e sendo vetorde crescimento de marcas e produtos até então des-tinados a estratos mais altos. (...) Nesse sentido, élegítimo afirmar que o Brasil está caminhando rapida-mente para um contexto de consumo de massa, hajavista a expansão das atividades das empresas brasi-leiras e multinacionais com base em portfólio de pro-dutos com claro enfoque no fator preço. Parte dessaexpansão pode ser explicada com o sucesso do PlanoReal, que, ao eliminar o processo inflacionário e au-mentar a renda global da população, possibilitou areprogramação do orçamento familiar, expandindo oconsumo de bens duráveis através de linhas de finan-ciamento prefixadas.

Segundo o Ibope Nacional PNT (considera a se-guinte área para pesquisa: Grande São Paulo, GrandeRio de Janeiro, Grande Porto Alegre, Grande BeloHorizonte, Grande Curitiba, Interior Sudeste – Ube-raba, Uberlândia, Governador Valadares, Juiz de Fora,Campos, Petrópolis e Volta Redonda -, Grande Re-cife, Grande Salvador, outras – Belém, Grande For-taleza, Distrito Federal, Florianópolis e Goiânia), asclasses C, D e E representam 69% da população, ouseja, projetando para o mercado total, cerca de 110milhões de pessoas.

Essa integração não é nada mais do que a realização do projetooriginalmente proposto por Adam Smith (1979), a tão sonhada

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inclusão do maior número de pessoas sob o guarda-chuva da eco-nomia, passando a ser consideradas como “classes médias”, o quesignifica aparentemente ascensão social e, principalmente, aceita-ção da simulação de “infinitude” dos “jogos finitos”. Porém, emum sistema cuja lógica é a da desapropriação de bens de umaclasse por outra, tudo indica que essa integração é um convitepara o saque, a pilhagem econômica. Não exatamente para quetodos possam saquear igualmente uns aos outros, mas para que,mantendo a lógica infernal de Schopenhauer, uns sejam mais ator-mentadores e outros sejam mais atormentados. De alguma forma,a sociedade da neoliberalidade se desvenda como essencialmentecriminosa, isto é, cuja ordem reflete o espírito ética e socialmentecondenável de ataque a bens e valores alheios. Não que esse es-pírito destoe significativamente daquele que foi estabelecido pelocapitalismo em sua história. Não é o caso. Simplesmente, essenovo modo de praticar a pilhagem econômica é mais selvagem,como refere Pierre Salama (1995), e se estrutura de forma dife-rente, tendo tornado supérfluo o recurso aos pobres como “ba-terias” do sistema. Estes, a partir do neoliberalismo, precisam,para ter a “honra” de servir como as “pilhas”, se incorporar àsclasses médias e ao novo estatuto consumista. Os que não fize-rem isso, são simplesmente dispensáveis. E, para essa “honra”,o caminho não é fácil: o funil é estreito e somente alguns conse-guem alcançá-la. Trata-se de uma ironia provavelmente sem parna história: é preciso muito esforço e suor para conseguir o “di-reito” de sofrer a ação do verdadeiro crime organizado. Comovimos, parece ser preciso, em primeiro lugar, aceitar a morte sub-jetiva da vida vicária da “mediatização midiática”. Assim, em seutúmulo virtual, o sujeito oferece menos resistência enquanto sedistrai com a brincadeira especular. Em seu fascinante jogo iden-titário, o cidadão das classes médias, que praticamente tudo podena imaginação, se assemelha a um gigante, mas não passa de umanão... morto.

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4.1 Crime organizado e crime“organizado”

Para jogar um “jogo finito” é preciso organização, assim como po-demos dizer que é preciso essencializar uma “proposta” que unaos participantes em torno de si de forma coesa. Há que se deli-mitar bem qual o jogo, onde será jogado, com que instrumentais,definir as regras, etc. Não se joga um “jogo finito” sem regras,assim como não se pode jogar um jogo para o qual haja previa-mente um campo ou um instrumental. Invenções são bem vindasno jogo “infinito”, mas na finitude da ambição dos jogos de so-ciedade, invenções não costumam dar certo. É o mundo do “é”ou “não é”, do “dá-ou-desce”, do “se ficar o bicho pega, se cor-rer o bicho come”, e é preciso jogar sério, sem inventar. Disso,depende a vitória.

Não há como esperar, então, que os jogadores desses jogosesqueçam dessas regras básicas e aceitem deliberadamente a der-rota. O traficante de drogas do Rio de Janeiro foi escolado poranos de ofensas e pancadas dadas pelos senhores e doutores quecruzaram o seu caminho. Quando não as davam pessoalmente,mandavam a polícia, o que tornava a coisa bem mais séria. Fo-ram pelo menos cem anos de confrontos desde o povoamento dacidade na passagem do século XIX para o XX. A vitória sempreesteve acompanhando os mais aquinhoados e ninguém quer per-der sempre. A arregimentação de jovens pobres para um comér-cio ilegal não é nada de novo, e bem se poderia esperar que nesseramo de negócios alguns deles prosperassem. Segundo cifras ex-postas pelo United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC)e por Osvaldo Caggiola (2004), o lucro com o comércio de drogasilegais está em torno de US$ 500 bilhões anuais. É, sem dúvida,um dos mais rentosos negócios de toda a história econômica. Émuito dinheiro circulando nos becos e sarjetas do mundo capita-lista. Dinheiro que tem donos, que alimenta aplicações financei-ras no “cassino global”. Pela graça de algum deus maroto, umaparte desse dinheiro circula entre as valas e vielas das favelas. É a

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salvação de boa parte das pessoas que lá vivem. Fora de qualquerplano capitalista, são os que os anos 90 postularam como “excluí-dos”, pessoas dispensáveis para o mundo dos negócios. SegundoForrester (1997), aproximadamente 80% da população mundialestá “incluída” nesse rol de “inúteis” e, dentre eles, estão os fave-lados cariocas. Se alguns conseguiram vencer nesse “jogo finito”e de estreita criatividade, devem ser reconhecidos como heróis,pelo menos por seus iguais. E é em torno deles que se dá a orga-nização, como nas empresas capitalistas.

Não há por que estacarmos a discussão na questão especularsobre se há ou não “crime organizado”. A própria discussão já in-dica a sua existência, e as definições podem variar, mas tenderãosempre a repetir a definição que seria mais apropriada para a em-presa capitalista. Por que não definir que o “crime organizado” éuma empresa que atua no ramo da ilegalidade? Poupa-se, assim,muitos esforços inúteis. Se alguém quiser descobrir como funci-ona a organização criminosa, a sua estrutura, basta observar umaempresa qualquer. Tudo funciona da mesma forma. São reflexosdo mesmo espelho.

A jornalista Fernanda Mena, em duas matérias publicadas nojornal paulistano Folha de São Paulo, nos dias 9 e 10 de marçode 2003, ilustra bem a situação desse “ramo de mercado”. Peloque ela apurou, há um crescimento assombroso de adolescentesatuando no mercado da droga: “Em 1991, apenas 7,7% das infra-ções cometidas por adolescentes na capital carioca eram relati-vas a entorpecentes. Em 1998, esse percentual já havia saltadopara 53,4%, de acordo com dados da 2a Vara da Infância e daAdolescência do Rio”. Não se trata exatamente de jovens alis-tados para um exército que pretende conquistar algum territórioinimigo, trata-se de pessoas em busca de emprego, status, prestí-gio social, a mesma coisa que a gente do asfalto pretende. Issotambém foi apurado por Mena (idem):

Quem imagina o tamanho da roubada que é tra-balhar para o tráfico de drogas deve pensar que esses

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jovens só entram nessa obrigados por alguém. En-gano. O envolvimento deles é espontâneo e farto –induzido pela curiosidade e pela promessa de statuse de dinheiro fácil –, negligenciado pela sociedade epelo Estado. Ninguém obriga diretamente ninguéma entrar nessa, a não ser as circunstâncias em que seencontra a vida de cada um.

Não há mistérios. Há uma oportunidade de conseguir aquilotudo que o pessoal do asfalto tem, de “curtir uma” de classe mé-dia, nada muito além. A questão do crime organizado entre ospobres das favelas cariocas poderia se resumir a isso, não fosseo seu negócio ser ilegal e, por isso, atrair a polícia, que precisado crime e dos pobres para justificar a sua existência e todo odinheiro público que nela é investido. Aí a coisa se complica re-almente para os pobres, pois para enfrentar as batidas policiais épreciso muito dinheiro e armas. A sociedade não costuma ir pelascomunidades a não ser para fazer correr sangue, e quanto mais pe-sadas forem as armas melhor para a segurança. A lógica do capitalfala mais alto, inclusive entre os “excluídos” e, se há armas, porque não patrocinar alguns “ganhos” extras, como assaltos? Estes,no mundo do tráfico de drogas, servem para “fazer caixa” em mo-mentos de dificuldades, quando a polícia ou quer receber muitodinheiro “extra” ou “atrapalha os negócios” com ocupações nospontos de venda de drogas, geralmente por motivos fúteis, comoa exposição midiática de Marcinho VP quando deu uma entrevistaa alguns repórteres no dia da gravação doclip de Michael Jack-son na comunidade da favela Santa Marta. A entrevista, um dostemas importantes tratados em sua biografia, escrita por Barcel-los (2003), foi deliberadamente deturpada pelos repórteres e porseus editores para maior sensacionalização e atiçou a libido dasautoridades policiais que acorreram ao morro para prender o ban-dido que ousou aparecer nas páginas dos jornais. Se levarmos emconsideração a lógica presente e atuante nas relações “bandidos”-polícia-sociedade-imprensa, bastante ilustrada nessa biografia, o

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que essas autoridades aparentemente queriam, nesse caso e eminúmeros outros, era, não necessariamente nessa ordem:

1. justificar a própria existência e importância perante a “soci-edade ultrajada” dos jornais;

2. ganhar o mesmo espaço midiático;

3. se fracassassem as intenções anteriores, justificar, para ostraficantes, “ganhos extras” através das propinas mais volu-mosas.

A organização comercial dos pobres vai crescendo, e com elaa repressão. E como a repressão vai crescendo, e se tornando cadavez mais sangrenta, aumenta o rancor centenário que esses “ex-cluídos” nutrem por seus agressores, e se recrudesce não apenaso ódio, como a organização se torna cada vez mais voltada paraos seus objetivos, e se tornando mais empresarial, ou seja, maiscruel.

Para jogar um “jogo finito”, sabemos bem, é preciso orga-nização. Esta, se cristaliza nas suas propostas e nas suas metasde acordo com as dificuldades que encontra. No caso do duelo“crime organizado” x repressão no Rio de Janeiro, ambos cres-cem na mesma proporção num movimento de retroalimentaçãoperverso que ilustra um ângulo da loucura que tomou conta doocidente nos últimos anos. É um movimento especular que ilus-tra outro, mais abrangente e pernicioso, oculto sob as manchetesjornalísticas. Falamos de uma criminalidade que age de acordocom a lei, mas saqueia o erário e as contas bancárias com umavoracidade nunca antes vista, e usa pára-ventos midiáticos comoo “terrorismo” e o “tráfico” como ocultamento. Certamente é aesta que os leitores de jornais deveriam temer com mais fervor.Basta pensar sobre o que escreveu John Taylor, citado por WrightMills (1976, p. 35):

Há duas maneiras de invadir a propriedade pri-vada: a primeira, pela qual os pobre espoliam os ri-cos, súbita e violentamente; a segunda, pela qual o

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rico espolia o pobre, lenta e legalmente... Quer a leitransfira gradualmente a propriedade de muitos parapoucos, ou a insurreição divida rapidamente a propri-edade de poucos entre muitos, será igualmente umainvasão da propriedade privada e igualmente contrá-rio às nossas constituições.

Tomemos, por exemplo, o quadro descrito por Altamiro Bor-ges (2004) com relação ao paraíso capitalista instituído pelo go-verno de Fernando Henrique Cardoso, que teve dois mandatospara viabilizar um dos maiores saques realizados ao patrimôniopúblico e privado de toda a nossa história:

O sistema tributário brasileiro é um retrato da tra-gédia social que dilacera o país. Em certo sentido,ajuda a entender porque o Brasil, a 12a economia pro-dutora de riquezas do planeta, ocupa o quarto lugarno ranking mundial de concentração de renda – se-gundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)da ONU ele só perde para Serra Leoa, República Cen-tro-Africana e Suazilândia. Em decorrência do histó-rico desequilíbrio das forças políticas no país, a tribu-tação sempre foi utilizada como um perverso instru-mento de concentração de riqueza e renda, onerandoos bolsos dos mais pobres e aliviando os dos maisricos.

Segundo minucioso estudo da Unafisco (Sindi-cato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Fede-ral) entre outros crimes, FHC promoveu o desmonteda máquina fiscal; criou amarras burocráticas ao tra-balho de fiscalização; concedeu anistias fiscais às em-presas; congelou a tabela de desconto do IRPF [Im-posto sobre a Renda de Pessoas Físicas] e diminuiuas deduções permitidas; elevou a alíquota do IRPFdos assalariados; aumentou a Cofins em 50%; criou

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a CPMF [Contribuição Provisória sobre a Movimen-tação Financeira], hoje com uma taxa de 0,38%. Emdecorrência deste violento aperto, entre 1990/98, acarga global média de tributação sobre os rendimen-tos foi de 27,5%, bem superior à média de 24,8% nosanos 80.

A lista de medidas para garantir ao mercado financeiro as mai-ores liberdades, enquanto ao trabalhador era destinado o fisco, éestonteante. E o trabalhador de quem estamos falando, tenhamosclareza disso, é o das classes médias, históricas aliadas da pro-posta de inserção do país no primeiro mundo capitalista. Vejamos,a seguir, apenas algumas das medidas adotadas, em consonâncianão apenas com o Consenso de Washington2 , mas com o con-senso de transformação da Economia num discurso encobridor deações criminosas, que veio liberalmente à nota nas duas últimasdécadas do século XX. Sigamos com Borges (idem):

O trabalhador foi duplamente penalizado: com oaumento do desconto na fonte (imposto direto) e coma ação regressiva dos tributos sobre o consumo (indi-retos). De 1995 a 2001, a taxação na fonte cresceu,em termos reais, em 27%. Já a Cofins e a CPMFsubiram 66% e 5.546%. (...) Somando os impostosdiretos e indiretos, a carga tributária sobre o trabalhobeira os 40%, considerando o consumo, a renda e ossalários. Para os funcionários públicos, alvo nova-mente da cólera das elites, ela chega a 58%.

(...)Enquanto os mais necessitados foram penalizados

com o aumento da tributação, os capitalistas foramamplamente beneficiados nos últimos anos. Desde1995, o governo alterou a legislação tributária atra-vés de leis ordinárias, decretos e medidas provisórias

2 Vide nota de rodapé no 54.

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com o único objetivo de aumentar a arrecadação paraatender os credores internacionais e de beneficiar asgrandes corporações empresariais. (...) vale ressaltaralgumas mais aberrantes:

- Privilégio dos juros sobre o capital próprio. Atra-vés da lei 9.249, de dezembro de 1995, as empresaspassaram a ter a possibilidade inédita de distribuir ju-ros aos seus sócios ou acionistas, reduzindo sua cargatributária (...). Com isso, reduziram seus lucros tribu-táveis através de uma despesa fictícia denominada dejuros sobre capital próprio. Os sócios e os acionistasque recebem esse rendimento, geralmente de valoresexpressivos, pagam apenas 15% de IR. Os maioresbeneficiários são as mega-corporações, já que a maio-ria das empresas está descapitalizada e não tem comose beneficiar desse incentivo. Essa renúncia fiscal é,hoje, superior a R$ 32 bilhões ao ano.

- Isenção da distribuição de lucros e dividendos eda remessa de lucros ao exterior. Desde 1996, os ren-dimentos de pessoas físicas provenientes de lucros oudividendos não pagam mais Imposto de Renda, inde-pendentemente de serem residentes no país ou no ex-terior. As remessas de lucros ao exterior estão hojetotalmente isentas. Essa renúncia fiscal é de, aproxi-madamente, R$ 6,4 bilhões ao ano.

E por aí segue o crime organizado, o que vale a pena temere, com certeza, odiar. Aquele que efetivamente assola as clas-ses médias cariocas, as leitoras dos jornais que atribuem ao crime“organizado” dos pobres cariocas o poder de criar um “poder pa-ralelo” ou de promover uma “guerra civil”. Essa é a objetividadeque não se esboroa e que patrocina a estagnação subjetiva quevimos no capítulo anterior. Essa é a objetividade que jaz sob a“objetividade” dos jornalistas.

O jogo de espelhos midiático produz realmente efeitos aluci-nógenos. Consegue, com a utilização de um simples recurso de

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justaposição de imagens sobre outras imagens, desviar a atençãodo mais vigilante paranóico. Este, sente que lhe estão roubando,mas não sabe quem e suspeita de todos. A mídia, sempre essen-cialmente presente, lhe mostra o caminho da compreensão de suaangústia, e eis que surge o traficante em pessoa. Nesse jogo deespelhos, tudo pode acontecer, inclusive o traficante centralizartodas as imagens. Aí, o paranóico pequeno-burguês chama a polí-cia contra o ladrão errado, contra aquele que nunca entrou em suacasa armado para lhe vender drogas. Trata-se de uma comédiasinistra.

Se formos falar dos negócios com drogas, os altos negócios,a comédia torna-se declarada farsa. Tudo indica que os EstadosUnidos, a “polícia do mundo”, estão corrompidos até as entranhasde seus próprios bancos. Como afirma Caggiola (idem):

(...) o narcotráfico é de grande utilidade para osEUA, chegando a gerar lucros, pois com a venda doscomponentes químicos das drogas, a economia ame-ricana recebe em torno de US$ 240 bilhões, uma partedos quais é investida em diversos setores da economiaou vai para os bancos. Os bancos da Flórida são espe-cializados em “lavar” o dinheiro dos narcotraficantese neles circula mais dinheiro em efetivo do que nosbancos de todos os demais estados juntos.

Os EUA recorrem ao protecionismo para resguar-dar seus “narcoprodutores” da competição externa.Utiliza desfolhantes contra o cultivo de marijuana noMéxico, para favorecer seu desenvolvimento na Ca-lifórnia; destrói laboratórios de drogas proibidas noPeru e na Bolívia para reforçar o envenenamento le-galizado que realizam os monopólios farmacêuticoscom estupefacientes substitutivos; luta contra as dro-gas naturais e processadas em defesa das sintéticaspatenteadas e comercializadas pelos grandes labora-tórios; guerreia contra os cultivadores latino-americanosauxiliando seus velhos sócios do sudeste asiático. A

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repressão extra-econômica ao tráfico é a forma de re-gular os preços de um mercado potencialmente está-vel pelo caráter viciante do produto. Com a “guerraao narcotráfico”, os EUA tratam de salvaguardar suascompanhias químicas provedoras de insumos para oprocessamento, propiciando, em geral, uma “substi-tuição de importações” no grande negócio de destruira saúde e a integridade de uma parte da população.

Mesmo com toda essa realidade um tanto objetiva, os jornaiscariocas e os seus leitores fingem que acreditam na velha histó-ria de que é possível combater o tráfico combatendo o vendedor.E mais, acusam o usuário de drogas de sustentar o sistema. Nãoé bem o usuário que o sustenta, mas a própria lógica do sistemacapitalista, que mantém drogas proibidas como fonte de um exce-lente negócio. Se a polícia quisesse realmente combater o tráfico,bastava fazer uma “ocupação” emWall Street, ou, para não irmostão longe, rastrear os investimentos que financiam o mercado denarcóticos. No entanto, como seus objetivos são outros, continuasubindo os morros cariocas... e matando cada vez mais. Se con-sultarmos os índices de violência no Rio de Janeiro3 , veremosque o único que teve um aumento significativo foi a de “Vítimasde Autos de Resistência”: de 355, no ano de 1998, para assom-brosos 1.195 no ano de 2003, o que significam 367% a mais degente sendo fuzilada sem julgamento nesse período – mortes ab-solutamente “legais”. Enquanto isso, os criminosos continuamvivos e sempre tramando novos golpes sinistros. Este é o tipo daobjetividade que não cabe no mundo das idéias midiático.

4.1.1 Crime organizado

Uma mente sem trabalho é uma tenda satânica, diz o ditado. Seisso é verdade, os ricos não correm riscos de assédio diabólico.

3 Ver anexos 6 a 9.

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Afinal, dá muito trabalho administrar 23% de seus gastos sim-plesmente com o aumento do seu patrimônio4. É tanto trabalhoque não conseguem fazer isso sozinhos. Há toda uma trupe deplanejamento e de execução, que deve criar condições para faci-litar a dura tarefa dos bem aquinhoados. São o que chamamosde “elites orgânicas”, termo utilizado por René Dreifuss (1987)com inspiração no conceito de “intelectual orgânico” de Gramsci(1985, p. 7), que tinha clara a função de uma parte do empresari-ado na administração do poder:

Os empresários – se não todos, pelo menos umaelite deles – devem possuir a capacidade de organizara sociedade em geral, em todo o seu complexo orga-nismo de serviços, inclusive no organismo estatal, emvista da necessidade de criar as condições mais favo-ráveis à expansão da própria classe; ou, pelo menos,devem possuir a capacidade de escolher os “prepos-tos” (empregados especializados) a quem confiar essaatividade organizativa das relações gerais exteriores àfábrica. Pode-se observar que os intelectuais “orgâni-cos” que cada nova classe cria consigo e elabora emseu desenvolvimento progressivo, são, no mais dasvezes, “especializações” de aspectos parciais da ati-vidade primitiva do tipo social novo que a nova classedeu à luz.

Francisco Carlos Garisto, à época presidente da FederaçãoNacional dos Policiais Federais, fez, em 2002, uma denúncia im-portante para o desvendamento da articulação orgânica do grandeempresariado brasileiro, de algo que efetivamente podemos cha-mar crime organizado, e muito bem organizado, tanto que nãoapenas obtém seus lucros “legais” como ultrapassa a lei, elege edepõe presidentes. Trata-se de um tal “Comando Delta”:

4 Segundo levantamento feito por Marcio Pochman et al (2003, p. 190).

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É o nome que se deu (batizado por eles mesmos)às pessoas que verdadeiramente governam esse paísdesde 1500. são grande e mega empresários nacio-nais e internacionais de todas as áreas, são funcio-nários do executivo, judiciário e legislativo, além deorganismos internacionais de investigações governa-mentais, que se unem para ditar as regras de tudo epara todos, principalmente na escolha do presidenteda República. Foram eles que decidiram que Sar-ney tinha que tomar posse, e não Ulisses Guimarães,como mandava a Constituição Federal. Foram elesque decretaram que Collor tinha que sair pela portados fundos, investigando e achando a corrupção pra-ticada por eles mesmos que financiaram a campanhade Collor e depois denunciaram o fato. Foram elesque decretaram que FHC seria o candidato e não odeixaram apoiar Collor como queria. Agora eles seunem desesperados para fazer o sucessor de FHC.

Queriam Aécio como candidato, mas o teimosoSerra atrapalhou e deixou muita gente nervosa. Aimprensa noticiou reuniões “secretas” de banqueiros,empresários e empreiteiros com Aécio, Serra e FHCbem antes do início das disputas. Agora contam tam-bém com especuladores internacionais que ditam nor-mas para nossa economia com aumentos injustificá-veis do dólar e de pressões de acordos antecipados.Se não bastasse, o Comando recebeu como membrosos mais novos interessados, que são os empresáriosinternacionais que ganharam as Teles de presente deFHC. Esse pessoal do Comando Delta fatura 90% doque se lucra no país e não irão abrir mão de conti-nuar a faturar como querem e bem entendem, em de-trimento da sofrida população brasileira (GARISTO,2003).

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O mesmo Garisto, em entrevista concedida à revista CarosAmigos de janeiro de 20005 , já havia denunciado a existênciadesse “Comando” que, em suas próprias palavras, seria coman-dado pela imprensa, por um suposto “representante maior” dela:

(...) Uma vez dei uma entrevista na televisão efalei: “O Comando Delta acaba elegendo um presi-dente aí”. Só falei isso, e a entrevistadora, na hora:“Quem é o Comando Delta?” Eu: “As pessoas ‘debem’ do país, pessoas que comandam a economia, omercado”. Rapaz, deu um bode desgraçado! Ela meligou depois de dois dias e disse: “Garisto, o que temde gente ligando querendo saber do Comando Delta”.Falei: “Isso é coisa do Chuck Norris, Comando Delta2, 3, pára com isso! Tô fora, porque eles são muitofortes”. São unidos, ricos e inteligentes. Aquela ope-ração toda feita no seqüestro do Dinis, organizado,bonitinho, vocês da mídia são os donos dela atra-vés do representante maior de vocês (...) (GARISTO,2002).

A imprensa é certamente parte dessa engrenagem e a inven-ção de uma “guerra à Beira-Mar” cumpre a função pára-vento dedeixar de fora não somente das páginas policiais essa criminali-dade grã-fina, como da consciência da população, principalmentedas classes médias a quem ela prioritariamente esfola economica-mente. Entidades como o “Comando Delta” é uma das “dignas”representantes das “elites orgânicas”, conceituadas por Dreifuss(idem, p. 27) como um

verdadeiro ‘estado-maior’ da classe dominante,(...) se ocupa não só do preparo e do planejamentoestratégico de classe – a partir de uma apreciaçãosintético-analítica das relações de poder entre os di-versos sujeitos coletivos num momento/movimento

5 Também publicada no site www.tognoli.com/html/mid_gaga.htm.

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em particular – mas da formulação dos principais li-neamentos de ação, frente às outras forças sociais,além da direção de toda essa ação. Cabe ao estado-maior estabelecer a estratégia, à luz da razão fria, or-ganizando a paixão social e classista em forma de re-flexão deliberada e de racionalidade política. Nestecontexto, (...) um plano de ação não pode ser traba-lhado e finalizado nas suas minúcias em cada particu-lar, mas somente no seu núcleo e desenho tendencial,já que os detalhes da ação dependem justamente daseqüência no confronto e, portanto, dos movimentosdo adversário.

A integração dessa elite no projeto capitalista do grande em-presariado nacional e internacional já foi citada anteriormente.Podemos resumir esse projeto com o título de um artigo de Ch-rista Berger (2002, p. 273): “Do jornalismo: toda notícia quecouber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente pu-blica”. O boommidiático não corresponde a um fenômeno ligadoa um agenciamento da subjetividade, mas torna-a evanescente nasua concretude semântica, na essencialização de um campo quecabe à existência, à construção de uma estratégia perante todosos tipos de jogos, “finitos” ou “infinitos”. Na redução de tudo àdisputa econômica, à vitória a qualquer custo, num jogo de so-ciedade opressivo, sem descanso ou tempo para ir ao banheiro6 .Uma pequena classe é hoje detentora não somente dos modos deprodução de riqueza material, como dantes se resumia, mas, prin-cipalmente hoje, dos modos de produção de subjetividade, comocompreendem Guattari e Rolnik (1999). Podemos entender, en-tão, que o discurso existencialista da Economia, que desloca a es-sencialização para a técnica “que tudo diz”, vale apenas para uma

6 É interessante ler o trabalho de Janice Caiafa (2002) sobre a vida nosônibus, os “coletivos” da cidade. Motoristas e cobradores têm a sua vida ab-solutamente resumida ao esquema comercial dos proprietários das empresas.Descansar ou ir ao banheiro, por exemplo, não está na pauta desse esquema.

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pequena parcela de toda a população. Todo o resto, até mesmoos “excluídos” e principalmente a classe média com seus intelec-tuais orgânicos “integrados”, “de sucesso” ou “cooptados”, comopreferem Buarque e Pontes (1976), está fora desse discurso, vivecom a essência precedendo a existência, ainda atada a um mundoideativo, cognitivo e cultural que não lhe deixa trajetos subjetivosa não ser anular a própria subjetividade em nome “dos fatos”. A“objetividade” midiática é a essência da estupefação nirvânica emque se acha essa enorme faixa populacional que englobamos nasclasses médias urbanas. A existência é simulada, vicária, com aemoção do cigarro sem nicotina ou do café sem cafeína, e tudoestá sobre controle, essencialmente controlado.

Para existir é preciso o referencial da liberdade e da náuseaque ela necessariamente provoca, como brilhantemente ilustra Sar-tre (1967) em um de seus romances. No mundo midiático ociden-tal a náusea está barrada, a não ser como efeito espetacular, maisum “fato ônibus” como todos na grande imprensa. Não há liber-dade quando não há a possibilidade de, pelo menos, pretenderregurgitar boa parte do que o outro faz de nós, e, num mundo es-pecular como este que estamos abordando, o vômito tende a voltarcomo alimento. A lógica existencialista que sugere que o “impor-tante não é o que o outro faz de nós, mas o que fazemos com oque o outro faz de nós” não chegou às classes médias urbanas. Eo jornalismo, por conta disso, pode falar sobejamente sobre a suaprópria suposta qualidade objetiva. O grande empresário do ramode comunicações está entre a elite orgânica que

(...) se diferencia do conjunto das classes do-minantes e mesmo dos interesses representados nobloco de poder do qual faz parte, lidera e viabiliza,operando assim como fator de poder num nível espe-cificamente político. Embora organicamente vincu-lada ao seu universo sócio-econômico e cultural, estadiferenciação é imprescindível para uma intervençãopolítica eficaz e eficiente, na medida em que a classedominante é uma na sua diversidade de unidades de

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acumulação competitivas (...) (DREIFUSS, idem, p.24).

Isso significa um enorme poder dessas empresas no sentido depatrocinar uma realidade adequada aos seus interesses e de seus“anunciantes”. O jogo é fechado, as versões do fato são as versõesque chegam fechadas dos controladores do tráfego de informa-ções. Quem manda são as regras que norteiam o jogo econômicofinanceiro – o estatuto do cassino global a que se refere RobertKurz (1987), ou o do “capitalismo de cassino”, como prefere RalfDahendorf (1992). Elas ditam a verdade no plano que lhes inte-ressa: o dos valores, sejam eles monetários ou morais, a essênciade que tanto falamos. Os grandes investidores e os banqueiros deinvestimentos têm não apenas as cartas nas mãos, além de algu-mas na manga: são os donos do cassino e determinam quem ga-nha e quem perde entre o “rebotalho” dos investidores de menorexpressão. No plano da subjetividade doslosers, forjam-se cida-dãos coartados na sua capacidade de reflexão sobre as forças queos governam ou, principalmente, sobre aqueles que movimentamessas forças.

Assim, o estatuto do “cassino global” tem pelo menos duasversões: a que circula entre os “insiders” e a que é vendida aos“outsiders” pela grande imprensa. Tomemos, por exemplo, a sé-rie de reportagens publicadas no jornal Folha de São Paulo, tendocomo foco a crise asiática de outubro de 1997. O cidadão que re-correu a esses veículos para compreender a crise, pôde saber umpouco mais do que aconteceu do que outro, que se restringisse aonoticiário televisivo, por exemplo, sendo este muito mais superfi-cial – pautado mais em imagens dramáticas de operadores deses-perados, narrações trágicas e comentários cronometrados do queem propostas de interpretação dos acontecimentos. No entanto,para melhor entender o fato, necessitava ler muitas informaçõesnas entrelinhas, como faziam vários brasileiros durante os temposda ditadura militar. Há, nesses jornais, uma clara tendência a noti-ciar a “crise” com o código ditado pelos seus promotores, ou seja,ressaltando os prejuízos e omitindo os lucros. Sob outro vértice,

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focam-se os problemas, globalizando-os, e se mantêm em segredoos resultados lucrativos de alguns agentes financeiros, que agemcomo os ladrões, no breu da noite midiática.

Vejamos alguns breves trechos de um texto, retirado do jornalFolha de São Paulo, sobre o “ataque especulativo”7 de 97. Po-deremos perceber como se referem a algo vago, usando termosque não passam de palavras-ônibus, a começar pelo termo “ata-que especulativo”. O que é isso? Um ataque de especulação fi-nanceira, movido por especuladores, podemos depreender. Mas,afinal, quem são esses especuladores? Como atacam? Tomemosa matéria publicada no dia 29de outubro de 1997, no caderno Di-nheiro, p. 10. É bem didática, tenta desvendar, para o neófito,as noções básicas dos movimentos das bolsas de valores: explicao que é, o que são ações, quais os seus tipos, etc.. E expõe, naversão oficial, no “dialeto do mercado”, o que é o ataque espe-culativo: “O ataque especulativo começa quando um investidor(ou um grupo de investidores) percebe que a economia do país-alvo não é capaz de arcar com a remuneração que tem atraído ocapital. Isso pode acontecer, por exemplo, quando o país apre-senta resultados negativos nas contas externas, o que pode levarà desvalorização da moeda local”.

7 O mecanismo básico do “ataque” é produzido quando papéis são compra-dos e logo vendidos com rapidez e com lucratividade – com o apoio dos bancosde investimentos, que indicam a compra num determinado momento e revertema tendência após a venda. Os que ficam com o “mico”, isto é, com os papéis– títulos ou moedas nacionais – que perdem valor rapidamente, vendem commenor lucratividade, sem ela ou, simplesmente com prejuízos aos que antesvenderam e causaram a baixa. Estes lucram duas vezes e, se há espaço, ou seja,se o “ataque” é eficaz, vão mais longe e triplicam ou quadruplicam suas posi-ções anteriores. As perdas são globalizadas: milhões de investidores pequenose médios, os que não participam do seleto grupo dos que podem influenciaro “mercado” – que funciona como um sistema de pilhagens – não conseguemdeter o prejuízo, enquanto os “influentes” – os que agem na obscuridade midiá-tica – lucram. As economias nacionais cambaleiam e ficam mais vulneráveis,elevam juros e atraem mais especuladores, correndo sempre o risco de novos“ataques”. Eis uma boa fórmula de globalizar prejuízos e concentrar lucros.

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É interessante tratar o tema assim. Trata-se de um saque –no sentido bancário e no de apropriação de bem alheio8 –, maso texto trata-o como um fato do “mundo dos negócios”. Dadasua natureza, poderíamos, recorrendo a temas de outra editoria, apolicial, tratá-lo de outra forma. Quem sabe, assim o leitor en-tendesse melhor o fato, menos “objetivado” e, dessa forma, commaior isenção. Por exemplo, uma metáfora como a de um as-saltante ou uma malta de desordeiros que elege uma vítima, um“otário-alvo” que “anda dando mole” no “mercado”. Descobreseu endereço e vistoria portas e janelas, a procura de uma entradafácil. Pelo lido no texto, fica implícito o fato de que esses bandi-dos fazem dessa atividade o seu “ofício”, o seu “ganha-pão”.

Prossigamos com outro trecho do texto da Folha:“O inves-tidor começa então a vender ações e títulos. Com o dinheiroobtido, passa a usar a moeda para comprar uma grande quan-tidade de dólares. O aumento pela demanda de dólares valorizaa moeda estrangeira, o que pode levar a uma desvalorização damoeda local (o caso da Tailândia) ou o aumento da taxa de juros(Hong Kong)”. Dito assim, parece um divertido jogo. No entanto,podemos contar a história de outra forma: O bando invade a casa,vasculha e saqueia tudo o que acha, fazendo com que o “otário-alvo” ainda pague pelo que lhe foi roubado. São atividades coma mesma natureza, com o mesmo fim, mas não são tratadas deforma igual pela mídia. O investidor que pratica esse tipo de rapi-nagem financeira e o bandido urbano jogam sob as mesmas regras,mas só um deles tem o nome divulgado nos jornais.

8 Quanto ao argumento que dispõe ser o investimento em bolsas de valoressujeitos a essas “variações do mercado”, e que todo aquele que entrar nessaselva sabe as feras que pode encontrar, lembramos que o “ataque especulativo”tem repercussões sobre toda a economia. Quando “crises” como essa ocor-rem, aqueles que nada têm a ver com ela podem ser as maiores vítimas, poisa “perda de credibilidade” do país implica menos investimentos e empregos eos “saques” dos especuladores retiram recursos que poderiam estar disponíveispara programas sociais. Mas, não foi exatamente para isso que o neolibera-lismo “liberou geral”?

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O charme do crime midiatizado 203

O texto da Folha vai mais além: “Com medo da desvaloriza-ção de suas ações, que são negociadas na moeda local, outrosinvestidores correm para vendê-las. Essa corrida aumenta aindamais a demanda por moeda forte”. A quadrilha chamou outroscomparsas, e todos fazem a festa com a desgraça do “otário-alvo”,o “país-alvo”. Ou, numa outra metáfora, poderíamos falar de umataque de desordeiros contra uma mocinha indefesa na madrugadaferoz do “cassino global”. Como o “ataque” se dá sempre contrapaíses de baixo desenvolvimento econômico, a metáfora da mo-cinha é perfeita: são jovens e geralmente quentes. Ela “satisfaz”a todos, e ainda tem que pagar pelo estupro.

O texto da folha fala de “Velocidade”: “Um investidor demoradois dias para receber o dinheiro de ações vendidas na Bolsa deSão Paulo. Se realizou a venda ontem, pode comprar dólares hojepara pagar amanhã. Amanhã mesmo, o dólar pode ser remetidoeletronicamente para o exterior.” Ou seja, os desordeiros têmmáquinas possantes para fugir. Nem seria necessário, pois comoo movimento de capitais é desregulamentado, ou seja, não podeter limites para que seja feliz e realize a utopia malsã da “mãoinvisível”, não há polícia, pois tudo corre “legal”. Em outras pa-lavras, o mercado financeiro é um território livre para o roubo eo estupro: “A notícia se espalha. Investidores de outros países‘emergentes’ temem ataques especulativos fora do lugar em quecomeçou a crise, e buscam vender também suas ações. Nos paísesdesenvolvidos, as ações das multinacionais instaladas nos paísesemergentes também caem”. Mas a imprensa continua tratandocomo bandidos apenas os “bandidos” pobres.

Vejamos um exemplo disso. Em 6 de maio de 2003, um diadepois de uma estudante de enfermagem ter sido atingida por umabala de pistola na Universidade Estácio de Sá, no bairro do Está-cio, um locutor da rádio CBN (sigla de “CentralBrasileira de Notícias”, AM, 860 KHz) chamado Sidnei Resende,que apresenta um programa local que começa às 9h30m e terminaao meio-dia, ilustrou de forma brilhante como a mídia – e boaparte da sociedade – trata os crimes de ricos e de pobres.

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204 Luiz Geremias

Resende, na chamada para o seu programa, aproximadamentequinze minutos antes de seu início, anunciava dois dos assuntosque seriam abordados: o chamado “Propinoduto” – a descobertae prisão dos participantes de um “esquema” de desvio de recursosadvindos de multas a grandes empresas por parte de bem remune-rados fiscais estaduais – e o incidente na faculdade. Com relaçãoa este, o locutor afirmava ter provas de que o tiro teria sido dadopor traficantes do morro do Turano: uma gravação telefônica entredois “bandidos” da localidade. Quanto ao primeiro, Resende no-ticiava que os fiscais haviam sido transferidos para uma delegaciano Leblon. O curioso é que, ao tratar dos fiscais, Resende inici-almente se referiu a eles como “bandidos”, mas imediatamente secorrigiu e tratou-os como “suspeitos”, com um certo ar respeitosona voz.

No programa, Resende pôs no ar a gravação da chamada te-lefônica entre os “bandidos” – estes, sempre tratados por bandi-dos. Na gravação, os “bandidos” falavam algo como “barbarizar oasfalto”, pois a polícia estava subindo o morro não para prender,mas para matar. Efetivamente, pouco antes da jovem estudanteter sido atingida enquanto fazia um lanche na faculdade, a polí-cia havia, como costumeiramente ainda faz9, invadido o morro ematado dois “traficantes” – não dois “suspeitos” de fazer partedo esquema do tráfico de drogas, compreendamos bem. A liga-ção de um fato a outro parecia, para o “sagaz” Sidnei Resende,a comprovação de que estávamos diante de mais uma “violênciado tráfico”. Tudo bem, mas havia um porém que, surpreenden-temente, foi mencionado: a gravação era de oito meses antes. E,mesmo assim, foi usada como “prova” no julgamento sumário do“magistrado” Sidnei Resende.

Parece incrível que uma gravação feita quase um ano antes deum incidente como aquele possa ser usada como prova de algo.Resende, porém, não satisfeito, ainda torceu as palavras dos “ban-didos”: enquanto eles falavam que a polícia ia ao morro para ma-tar, e nada mais que isso, o perspicaz locutor dizia, ultrajado, que

9 Vide nota de rodapé no 8..

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eles reclamavam, “vejam só!” – bradava –, da polícia que “atra-palhava os seus negócios” subindo o morro. Francamente, seriadifícil encontrar um exemplo melhor do cinismo com o qual a mí-dia trata esse assunto. Certamente, o locutor da rádio “que tocanotícias” não é estúpido nem tampouco deve ter interesses dire-tos na criminalização dos sujeitos que falavam ao telefone ou nadescriminalização dos fiscais. Com certeza, apenas reproduz odiscurso da empresa que sua voz representa. Aliás, de que voz fa-lamos? Ao menos nesse episódio, a voz de Resende não foi maisque umplaybackdos interesses dessa empresa e de uma parte dasociedade em que estão inseridos ele e as Organizações Globo,proprietárias da CBN.

Posturas como essa levam a um inequívoco prejuízo da pos-sibilidade de pensar a totalidade da conjuntura na qual vivemos.Provavelmente, como dissemos com relação a Sidnei Resende,isso não acontece por estupidez ou más intenções explícitas. Oenfoque dado à realidade de uma cidade como o Rio de Janeiro –inserida no grande conjunto das cidades do Terceiro Mundo colo-nizadas pelo espírito mediterrâneo – depende do ângulo em que sedá. Se acreditarmos que, efetivamente, há pessoas boas, “de bem”ou “do bem”, e pessoas más, os “bandidos”, gente “do mal”, va-mos acabar facilmente sendo iludidos pela localização apressadadessas qualificações em uns ou outros. Estaremos, nesse caso,presas do mesmo discurso excludente que norteou os gregos aconsiderar “bárbaro” todo aquele que não falasse como eles, ouque determinava a “limes” romana, com o propósito de delimi-tar a ordem do caos. Em outras palavras, não estaremos falando,estaremos sendo falados, não exatamente pelo “Outro”, enquantoalteridade, mas pelo “Um”, o magnético demiurgo midiático quedita o que devemos pensar, dizer, sentir e mesmo sonhar.

Essa impressão nos ficou mais forte quando, no dia 12 de ju-lho deste ano de 2004, assistimos estupefatos a uma entrevistacom David Zylbersztajn, ex-secretário de Energia de São Paulo,meio parente do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e di-retamente envolvido na submissão do país diante do Consenso de

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Washington, afirmar em público, em programa na emissora GloboNews, no meio da tarde de um domingo, que o ato de baixar o pe-dágio – acontecido no Paraná – é uma medida populista. Isso ditode forma ultrajada, é claro. Disse mais, que as contas de serviçospúblicos nacionais teriam que subir muito acima do índice infla-cionário e bem mais acima do que a capacidade de negociaçãosalarial de qualquer categoria simplesmente porque seria impe-rativo “cumprir os contratos” estabelecidos anteriormente – pelogoverno de seu sogro, ele esqueceu de dizer.

Não houve qualquer editorial ultrajado, nenhuma manifesta-ção das autoridades indignadas, nenhuma passeata com roupasbrancas na Avenida Vieira Souto repudiando a declaração infeliz.Alguém chama de “populistas” medidas tomadas para reduzir osencargos sobre o escoamento da produção, corrigindo contratosque davam lucros astronômicos para as empresas que venceramas licitações dos pedágios e, de quebra, deixa claro que todos de-vemos pagar reajustes irreais nos serviços que nos são oferecidospelo monopólio extorsivo garantido pelas privatizações, e nadaacontece. Se fosse Fernandinho Beira-Mar, objeto de nossa dis-sertação, a dizer algo semelhante, nas palavras e termos que elee sua classe social conhecem e proferem, haveria uma semana dedeclarações indignadas de todas as autoridades na imprensa e re-volta da classe média “aterrorizada”. Tudo acontece como afirmaStephen Pfhol (1985, p. 4),

Consider the burglar. Late at night he may sneakinto your house, rip off your stereo, and self it for afraction of this worth to a “fence” who deals in sto-len menchandise. If caught the burglar runs the riskof being incarcerated as a hard-core criminal deviant.But what about the respectable corporate executivewho participates in decisions to manipulate gasolineprices or build unsafe automobiles? The executivemay cause society far more damage than any burglar.Yet, if caught, the executive is far less likely to beviewed as a serious deviant.

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Será esse o “deserto do real”?

4.1.2 Crime “organizado”

Bem sabemos que o conflito social carioca se acirrou com a en-trada em cena de um componente novo: o incremento da fervuradesse caldeirão pelo que chamamos de “crime organizado”, que é,como estamos percebendo, um termo geralmente adequado paraenfeixar uma certa volumosa movimentação econômica que se dáentranhada na oficialidade, mas que, porém, não aparece no fisco.Coisa de “gente bem”, não de favelados. Porém, quando a mí-dia carioca fala em “crime organizado”, usa o termo para desig-nar apenas as quadrilhas de pobres, e, atribuindo-lhes organizaçãoestá, à parte a idealização perversa contida nesse pré-conceito, te-cendo mesmo um elogio. Jairo Santiago (2004) mostrou como asdefinições dadas para o “crime organizado” carioca são falhas etendenciosas, servindo mais para o assédio da mídia à emoção doque propriamente para informar ou permitir algum tipo de refle-xão. Como afirma Cid Benjamin (1998, p. 111):

(...) para Hélio [Hélio Luz, ex-chefe da PolíciaCivil do Estado do Rio de Janeiro entre os anos de1995/1997] a organização dos traficantes muitas ve-zes tem sido superestimada pela imprensa. Gruposcomo o Comando Vermelho foram mitificados. Al-gumas quadrilhas têm articulação entre si, o que énormal. Podem emprestar dinheiro ou armas umasàs outras. Podem, em certos momentos, unir forçascontra um inimigo comum ou fazer uma “caixinha”para ajudar antigos chefes presos. Mas, segundo ele,considerar esses laços como característicos de umagrande organização criminosa é exagero. E compararesses grupos com a Máfia é mais do que exagero, édeturpação grosseira da realidade. Para Hélio, essahistória de Comando Vermelho é algo que foi esti-

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mulado pela imprensa, de um lado, e por policiaiscorruptos, de outro.

A questão parece ser mais de uma aliança entre a vontade decomer de grandes comerciantes internacionais e a fome de algunspobres que percebem na vida dita criminosa a oportunidade deascender socialmente. O caso do tráfico de armas é emblemático:

Veja só, a Líbia não consegue comprar armas. Seo Kadhafi (governante da Líbia) não consegue com-prar, por que os traficantes do Rio conseguem? Acaba,então, acontecendo o seguinte: a concentração de rendae o desemprego repõem os bandidos que a políciaprende e o comércio internacional repõe as armas queela apreende (HÉLIO LUZ apud BENJAMIN, idem).

Não há como crer que negócios, como o de narcóticos e de ar-mamentos militares, que arregimentam uma incomensurável quan-tidade de dinheiro, possam estar nas mãos de gente como Fernan-dinho Beira-Mar, o ícone midiático do “crime organizado”. O ne-gócio de drogas, por exemplo, tem vários níveis de estratificação,com relação à tarefa desempenhada. Há o plantio, o processa-mento, o transporte, a distribuição e a venda. A maior parte dos“líderes do crime organizado” apontados pelos jornais cariocasestá na ponta desse processo, na venda, o negócio menos lucra-tivo e o mais perigoso. São, poderíamos sem sombra de dúvidadizer, os peões da empresa, osoffice-boysda corporação. Beira-Mar, por sua vez, conseguiu ascender um pouco mais na vida ban-dida, e era, ou é, distribuidor, uma espécie de “gerente de filial”.Ainda pouco para poder desfrutar do status de liderança a não sersobre os peões. Num plano social mais abrangente, pode ser con-siderado um “emergente”, assim como Jair “rei das quentinhas”Coelho ou Vera Loyola. Assim como eles, Beira-Mar “desemer-giu”.

A maior organização coletiva que se pode perceber nos gru-pos de venda de droga nas favelas cariocas está projetada na iden-tidade com um ideal, uma espécie de referência imaginária a um

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estado idílico no qual há não somente um espírito de proteção aseus membros – motivo pelo qual nasceu – mas também uma pro-jeção norteadora de um “quadro revolucionário” semelhante aoidealizado pelos revolucionários marxistas, o Comando Verme-lho Rogério Lemgruber, o CVRL. Diferencia-se, assim, das outrasfacções nomeadas pela mídia, o Terceiro Comando (TC) e a Ami-gos dos Amigos (ADA), diretamente voltadas para os negócios,sem grandes pretensões além disso. Os membros do CV tem essediferencial e a criação dessa “organização” se deu exatamente porpessoas politizadas e escoladas na vida bandida, que compreen-diam esta como um revés patrocinado pelo massacre social daselites. Os membros do Comando Vermelho são como irmãos, oque não impede que haja eventuais e sangrentas rusgas fraternais.A história de sua formação é emblemática num ponto crucial: arelação de seus fundadores com presos políticos no Presídio daIlha Grande, litoral carioca.

Carlos Amorim (1993 e 2004), afirma ter havido não apenasum contato na Galeria de Segurança Nacional, cujos prontuárioseram marcados com uma tarja vermelha, daí o nome Falange Ver-melha, inicialmente, e, depois, Comando Vermelho – como vere-mos mais tarde, aparentemente de autoria do diretor do presídioà época. Para Amorim, os “bandidos” presos aprenderam a im-portância da organização e inúmeras táticas de guerrilha urbana,que viriam a ser utilizadas para assaltos a bancos. O motivo de sereunir assaltantes de banco aos militantes políticos tinha sido exa-tamente a identidade entre os dois grupos no que dizia respeitoao alvo de suas ações, as agências bancárias. A estratégia paraarrecadar fundos dos grupos de ação política como a VanguardaPopular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucio-nária Palmares (VAR Palmares) e o Movimento Revolucionário 8de Outubro (MR-8) era a mesma dos bandidos que com eles con-viviam no pavilhão separado dos demais. Como relata William daSilva Lima (1991, p. 39), um dos fundadores do Comando10 , num

10 Trata-se do “Professor”, que, segundo Carlos Amorim (ibidem) teria sidoo idealizador da organização inicial da Falange Vermelha, que teve como líder

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dos assaltos que fez para levantar algum dinheiro para si próprio,foi preso e torturado, como se pertencesse à guerrilha urbana:

Embora já tivesse consciência da situação polí-tica do país, não pensava em me ligar a nenhuma or-ganização revolucionária. Tampouco me interessavaacumular propriedades: o negócio era viver melhor,enquanto fosse possível. Bater carteiras na rua, fa-zer pequenos furtos, assaltar transeuntes – isso nuncamais. Saí da prisão [ele se refere à Casa de Detençãode São Paulo, o antigo presídio do Carandiru, no qualesteve preso no início da década de 70], na qual resol-vido a buscar nos bancos, à mão armada, os recursosque não tinha e que não obteria por meio de traba-lho comum, meramente escravizante. Havia riscos,é claro, mas me dispunha a enfrentá-los. A prisãome profissionalizara no crime. Com quase 30 anosde vida e mais de dez na cadeia, não via como voltaratrás.

Não tardei a ser preso de novo, na fuga de umaação. Ironia: enviaram-me para o DOI-CODI, orga-nismo do Exército encarregado da repressão política,na rua Barão de Mesquita, onde fui torturado – cho-ques, pau-de-arara – para confessar a que organiza-ção política pertencia. Quatro dias levaram para seconvencer que eu não era um “subversivo”.

Pelo que Silva Lima relata nessas e em outras linhas, já havianele uma certa noção da realidade brasileira e o encontro com pre-sos de organizações da ação armada revolucionária apenas veio apô-lo em contato mais próximo com uma nova “subjetividade”,um novo sentido para os seus atos:

mais ativo e destacado o assaltante Rogério Lengruber, o “Bagulhão”, ao quala agremiação citada teria homenageado no seu nome.

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Cheguei na Ilha, moído de pau, direto para o ladoB da segunda galeria. Era a mesma que, anos an-tes, recebera os marinheiros e outros presos políticosda velha geração, depois da fuga da Lemos de Brito[uma fuga comandada por um grupo armado que li-bertou presos políticos dessa penitenciária, em 1969,o que levou ao isolamento desses presos]. Gradativa-mente libertados, a partir de 1971 foram substituídospelo grupo ao qual me integrei. Assaltáramos ban-cos, mas sem vinculação com as organizações arma-das, que faziam o mesmo num contexto de luta contrao regime de exceção. Mesmo assim, para preservar oque os juristas chamam de isonomia – mesmo trata-mento jurídico para os mesmos crimes –, estávamosentregues a foros militares e submetidos a todos os ri-gores da Lei de Segurança Nacional, instrumento declara inspiração política. Essa ambigüidade tornou-se nossa marca registrada, inclusive do ponto de vistasubjetivo. (SILVA LIMA, idem, p. 45).

O estabelecimento desse estado ambíguo, foi fundamental paraa organização da Falange e do Comando. Se tomarmos o relatodo “Professor”, não foi tanto o contato com os demais presos dagaleria, os políticos, mas a condição de isolamento e de integra-ção que adveio disso, somados a uma consciência política que jáse desenvolvia em outros tempos e em outras cadeias:

Presos comuns têm, em todo o mundo, certa tra-dição de adesão a movimentos revolucionários. Aquino Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiumuitas lições do contato havido na década de 1930com os membros da Aliança Revolucionária Liberta-dora, encarcerados na Ilha Grande. Quando os presospolíticos se beneficiaram da anistia que marcou o fimdo Estado Novo, deixaram nas cadeias presos comuns

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politizados, questionadores das causas da delinqüên-cia e conhecedores dos ideais do socialismo. Essaspessoas, por sua vez, de alguma forma permaneceramestudando e passando suas informações adiante. Suainfluência não foi desprezível. Na década de 1960ainda se encontravam presos assim, que passavam demão em mão, entre si, artigos e livros que falavam derevolução. De vez em quando apareciam publicaçõesdo Partido Comunista, então na ilegalidade. Lembro-me, por exemplo, do velho João Batista, que, na rua,batia carteiras e, na prisão, ficava lendo e escrevendopelos cantos do pátio, sempre disposto a orientar eajudar os demais. Lembro-me também de Mardo-queu, que desde a época do Estado Novo freqüen-tava a cadeia, onde alternava as atividades de enca-dernador de livros e divulgador de idéias de esquerda.(SILVA LIMA, idem, p. 27)

Havia, pelo menos por parte de Silva Lima, já uma consci-ência política, envolvendo uma adesão ao projeto revolucionáriomarxista, que viria a ser importante na Ilha Grande dos anos 70.Segundo ele, ao contrário do que Amorim (idem) afirma, nãohouve tanta participação dos presos políticos da Galeria de Se-gurança Nacional na organização dos “presos comuns”:

Nossa marca objetiva era a situação de isolamento.Depois de permanecerem algum tempo em quartéismilitares, a maioria dos presos oriundos das organiza-ções armadas dos anos 70 também tinha regressado àIlha Grande. Alegando incompatibilidade de hábitose de ideologias, eles pediram que a galeria fosse divi-dida, o que foi feito, cabendo a nós a parte conhecidacomo Fundão. Eram vinte cubículos individuais, ocu-pados porém por quatro a cinco pessoas, em regimede tranca dura, com direito de circulação pela galeriaapenas nos instantes que antecediam o café da manhã

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e o almoço, servidos em grandes panelas. Abertosos cubículos, fazíamos filas para encher nossos pra-tos com a combinação quase invariável: feijão-com-arroz e carne-com-batata. Além desses parcos minu-tos, meia hora de banho de sol e curtas visitas quinze-nais era o tempo disponível fora das celas. Quase 90homens assim permaneciam, isolados duplamente –da comunidade em geral e dos demais presos – e comidentidade social e jurídica pouco definida: apesar desubmetidos a tribunais de exceção e combatidos pelamáquina repressiva do regime, não éramos conside-rados presos políticos. (SILVA LIMA, idem, p. 45)

Tendemos a crer na versão de Silva Lima, pois incorpora di-retamente um histórico de integração entre ideais de organizaçãopolítica à consciência difusa de “bandidos comuns” sem clarezado significado político de suas ações. Talvez a versão de CarlosAmorim seja “chapa branca” demais para admitir que “bandidos”pudessem pensar por si próprios. De todo modo, se a convivên-cia com os presos políticos da Ilha era parca, havia experiênciasanteriores que parecem ter sido aproveitadas para reforçar a estra-tégia de sobrevivência pautada pela união, pela disciplina e pelaorganização de ações planejadas, que começaram contra o grupoque dominava, com extrema violência, o “Caldeirão do Diabo”,o presídio da Ilha Grande, onde, como reza a tradição e comocanta Bezerra da Silva no samba intitulado “Ilha Grande”, “o fi-lho chora e a mãe não vê”. Além disso, há o fato de que outro“bandido”, este muito conhecido nos anos 70, Lúcio Flávio VilarLírio, também tinha, segundo José Louzeiro, citado por Amorim(1993, p. 52), uma aproximação com grupos armados de orienta-ção política:

Lúcio era meu amigo – conta Louzeiro. Eu eraum repórter policial conhecido e ele sempre me pro-curava nos raros momentos de liberdade que tinha.Foi assim que soube dos detalhes da história dele e

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pude escrever o livro e o roteiro doPassageiro daAgoniapara o cinema. Foi assim também que soubeda cooperação com Lamarca [Carlos Lamarca, umcapitão do exército que se engajou na guerrilha ur-bana nos anos 60, líder da VPR]. Não posso precisarcomo isto aconteceu, mas parece que envolveu di-nheiro e armas. Lúcio era muito consciente. Sabiaque era bandido por desajuste social.

Várias condições, entre elas o contato com os presos políti-cos da galeria da Lei de Segurança Nacional, parecem ter influ-enciado a formação do Comando Vermelho. A condição peculiarde estar num campo de ambigüidade, isolados dos outros presosmuito embora não houvesse diferenças fundamentais entre eles,viabilizou a organização e a união necessárias para o enfrenta-mento de boa parte das dificuldades encontradas, principalmentea cruel ditadura interna exercida pela Falange Zona Norte ou Fa-lange Jacaré, segundo Amorim (idem) a precursora do TerceiroComando. O isolamento, se era ruim por um lado, trouxe maiorintegração entre os membros do Fundão. Some-se às condiçõesanteriormente citadas a iniciação política de presos como Williamda Silva Lima. E é este quem afirma que a designação ComandoVermelho surgiu não do grupo, mas do diretor do presídio:

Na prisão, “falange” quer dizer um grupo de pre-sos organizados em torno de qualquer interesse co-mum. Daí o apelido de “falange da LSN”, logo trans-formada pela imprensa em “Comando Vermelho”. Queeu saiba, essa denominação apareceu pela primeiravez num relatório de fins de 1979, dirigido ao Desipepelo Capitão PM Nélson Bastos Salmon, então dire-tor do presídio da Ilha Grande: “Após os assassinatosde setembro de 1979, quando foi quase totalmente ex-terminada a Falange do Jacaré, a Falange da LSN, ouComando Vermelho passou a imperar no presídio da

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Ilha Grande e a comandar o crime organizado intra-muros em todo o sistema penitenciário do Rio. Comisso, as outras falanges ficaram oprimidas, passandoa acatar as ordens da LSN, sob pena de morte”.

Estava aberta a temporada de caça contra nós, completamentedemonizados. As palavras não são inocentes: éramos um co-mando, o que em linguagem militar denomina o centro ativo, cujadestruição paralisa o inimigo; como se isso não bastasse, éramostambém “vermelho”, adjetivo que desperta velhos e mortais re-flexos em policiais e militares. Coincidência ou não, vivera-se oocaso da guerrilha urbana, fenômeno que deixara na orfandadeum aparato repressivo ainda cheio de vigor, desejoso de exibiçõesde força e utilidade. (SILVA LIMA, idem, p. 83)

O diagnóstico parece correto. Como bem ilustra Zizek (2003a),não é correto falar em “choque de civilizações” – se referindo aosuposto confronto entre o mundo ocidental, leia-se Europa e Esta-dos Unidos, e o fundamentalismo islâmico – mas de “cismas” nointerior delas, sendo que uma das partes do “racha” ocidental veioa gerar a facção contrária contra a qual peleja, formada por agen-tes de um terror que mais têm afinidades do que divergências como terror do ocidente, eminentemente estatal –, tendo sido inventa-dos e financiados por este, como ocorreu com Osama bin Ladendurante a ocupação soviética no Afeganistão. A mesma compre-ensão se aplica no caso carioca. O maior incentivo à formação dotal “Comando” veio, como bem se pode perceber, das próprias au-toridades que o viabilizaram e, inclusive, batizaram. Fomentandoa violência nas cadeias e fora delas, participando ativamente dela– com a polícia sendo usada quase que exclusivamente para com-bater não exatamente o crime, mas toda uma população pobre que,desde o inchamento urbano do Rio de Janeiro, foi pré-classificadacomo potencialmente criminosa – o Estado criou as condiçõese alimentou as circunstâncias que geraram o problema que hojese apresenta incontornável. A sua parceira nessa empreitada foi,inegavelmente, a imprensa. Foi esta que passou a divulgar para

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a população versões irreais sobre a organização que surgira noFundão da Ilha Grande:

De volta à rua depois de longos anos de sofri-mento, eu e alguns companheiros sentimos necessi-dade de ajudar quem havia ficado na cadeia. Maisuma vez, um gesto normal de solidariedade não tar-dou a ser apresentado à opinião pública de forma dis-torcida: segundo os jornais, formara-se um pacto,pelo qual se destinavam 10% dos assaltos para o fi-nanciamento de fugas. Não era essa a única fantasia:falava-se em guerra na Ilha Grande para obter o con-trole do jogo e do tráfico dentro dos presídios. Ora,todos sabem que comércio algum pode gerar gran-des lucros abastecendo uma freguesia miserável. Porque correr riscos imensos, traficando produtos ile-gais para dentro das cadeias, se o poder aquisitivo damassa é tão baixo? Alguma droga que entra é agrado,e não comércio atacadista. Nem vale a pena morrerpor isso.

Nunca houve tal guerra, nem tal tipo de pacto,nem a anunciada “falange”, sua patrocinadora. O quese fez foi completamente espontâneo. A ajuda rece-bida na cadeia nunca ultrapassou aquele mínimo ne-cessário para diminuir a miséria. Infelizmente, nuncacontamos com montanhas de dinheiro para financiarfugas. Aliás, é bom lembrar que assaltar bancos émenos rendoso do que se diz, pois os montantes di-vulgados são sempre maiores do que os reais. Quemmais rouba, não sei. Os bancários talvez roubem dobanco. Ou – quem sabe? – o banco rouba do fisco oudo seguro tudo o que perde para nós. Os riscos é quesão todos nossos, coadjuvantes na indústria do crime.(SILVA LIMA, idem, p. 82)

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A entrada em cena de uma verdadeira organização com in-teresses econômicos precisos, o narcotráfico, trouxe a certeza deque, se não eram reais as perorações midiáticas, os “bandidos”as incorporaram e, a partir de então fechados no “jogo finito” daeconomia, aparentemente morderam a isca para lucrar. Entraramna vida, romperam a barreira que os fazia ser sempre o lixo dahistória. Se era para ser bandido, então que se fosse. Se há umjogo, é preciso jogá-lo, com audácia e virilidade. É um jogo mas-culino, um “jogo finito” em sensibilidade, mas infinito em inte-ligência, no qual a posse dolinguam– o dinheiro – é o prêmioque dá acesso a uma vida “existencializada”. Há dois fatores aconsiderar nesse ponto:

1. a opção pela “vida bandida” é um ato de vida, a instituiçãode umdasein, abrindo o campo experiencial, existencializan-do-o;

2. essa mesma opção, na medida em que se torna eminente-mente comercial, é essencializada como “a” realidade pos-sível.

Cremos que ambos podem ser pensados a partir de um trechode Henri Miller no seu brilhante Trópico de Câncer:

Por uma razão qualquer, a compreensão de quenada havia a esperar teve salutar efeito sobre mim.Durante semanas e meses, durante, na realidade, todaa minha vida, eu tinha esperado que acontecesse algo,algum fato extrínseco que alterasse minha vida; e ago-ra, de repente, inspirado pela absoluta desesperançade tudo, sentia-me aliviado, sentia como se tivessearrancado um grande peso de meus ombros. (...) Ca-minhando em direção a Montparnasse, decidi deixar-me arrastar pela maré, não opor a menor resistênciaao destino, fosse qual fosse a forma sob a qual seapresentasse. Nada do que me acontecera até então

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fora suficiente para destruir-me; nada fora destruído,exceto minhas ilusões. Eu mesmo estava intacto. Omundo estava intacto. Amanhã talvez houvesse umarevolução, uma epidemia, um terremoto; amanhã tal-vez não restasse uma única alma a quem se pudesserecorrer para obter simpatia, auxílio, fé. Pareceu-meque a grande calamidade já se manifestara, que eunão poderia ficar mais verdadeiramente sozinho doque naquele próprio momento. Decidi que não meapegaria a nada, que não esperaria mais nada, que apartir de então viveria como um animal, como umafera carnívora, um nômade, um rapinante. Mesmoque declarassem a guerra e fosse meu destino partir,eu agarraria a baioneta e a enterraria até o punho. Ese o estupro for a ordem do dia, então estuprarei, epra valer. Nesse próprio momento, no quieto alvo-recer de um novo dia, não estava a terra tonta comcrime e miséria? Algum único elemento da naturezado homem teria sido alterado, vitalmente, fundamen-talmente alterado, pela incessante marcha da histó-ria? Pelo que ele chama de melhor parte de sua na-tureza, o homem foi traído, só isso. Nos extremoslimites de seu ser espiritual, o homem se encontra denovo nu como um selvagem. Quando encontra Deus,por assim dizer, ele está bem arrumado: é um esque-leto. A gente precisa afundar-se de novo na vida afim de ganhar carne. O verbo precisa fazer-se carne; aalma tem sede. Qualquer migalha em que meus olhospousem, agarrarei e devorarei. Se viver é a coisa su-prema, então viverei, mesmo que precise tornar-meum canibal. Até agora eu vinha tentando salvar meuprecioso couro, preservar os poucos pedaços de carneque escondem meus ossos. Estou cheio disso. Atingios limites da resistência. Minhas costas estão contraa parede; não posso recuar mais. No que tange à his-

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tória, estou morto. Se existe algo além terei de saltarpara trás. Encontrei Deus, mas ele é insuficiente. Sóespiritualmente é que estou morto. Fisicamente estouvivo. Moralmente estou livre. O mundo que aban-donei é uma jaula. A aurora está nascendo sobre omundo novo, um mundo de selva no qual os espíritosdescarnados rondam com garras afiadas. Se sou umahiena, sou uma hiena descarnada e faminta: avançopara engordar-me (MILLER, 1987, p. 98).

A proposta do narcotráfico é, em boa medida, a do abandonodo mundo-jaula da pobreza e da exclusão. Embora se possa com-preender que esta última se acirre, o jogo especular nos mostraque há uma diferenciação, a midiatização. Pode ser compreen-dida, num primeiro momento, como o estabelecimento de um“ser-aí”, o rompimento com as expectativas essenciais que amar-ram o destino. Se é para ser excluído, que seja, pois, como emHenri Miller, nada há a esperar, as costas já estão na parede. Esseaspecto do “mundo paralelo”, da assunção da sigla midiática CV,das ostensivas e intensivas aparições midiáticas, pode nos reme-ter à estratégia do bailarino dos “jogos infinitos”. Algo como uma“comunicação negativa”, uma assunção do estigma como fórmulapara furar o bloqueio dalimes.

Num segundo momento, porém, há que se considerar que háum aprisionamento, uma “essencialização” exatamente onde de-veria haver uma “existencialização”. As intenções podem serboas, como o confronto com as inertes classes médias, sacudindoum pouco as suas vidas insossas. E enquanto manifestação cul-tural, o funk trazia embutida essa proposta criativa. No entanto,as vias são estreitas e há um estreitamento cultural. As classesmédias rejeitaram o funk, assim como rejeitam qualquer apro-ximação com a pobreza que não seja na clássica pantomima dosenhor-escravo, ou na calada da noite, em encontros furtivos paracomprar pó. Então, como queria Miller, se é para engordar-se,que se avance para isso. O preço é a redução das perspectivas

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possíveis a apenas uma, a do sucesso econômico. Morre odaseine renasce o cogito.

Não é mais ou menos esse o percurso esperado para um em-preendedor de sucesso? O jovem empresário precisa perder asilusões, mas não o ímpeto. O que leva alguém a entrar no “jogofinito” não é unicamente a vontade de vencer, mas também a pos-sibilidade de estar tentando vencer. Numa realidade competitiva,é preciso primeiro estar no jogo, para depois vencê-lo. E entrarnele não é tão fácil quanto possa parecer. Essa lógica, aliada àsedução de “ser”, ou, em outras palavras, de “estar” na mídia,mesmo que, ou principalmente como, animais peçonhentos, foi adeixa para a “existencialização essencial” de alguns pobres. As-sim – se o mundo midiático insiste em transmitir uma imagemirreal e pernóstica de uma organização de presos que nasceu paradefender a dignidade destes, combatendo os que assaltavam, es-tupravam e assassinavam dentro das cadeias com a anuência doEstado –, por que não fazer como no mundo artístico e aceitar opapel? Se há um caminho para vencer, que se use esse caminho,ainda mais quando a vitória passa a ser entendida como a únicaalternativa.

A imagem midiática do Comando Vermelho foi uma boa ins-piração para quando a oportunidade surgiu: com a chegada dedrogas ilegais e grandes somas de dinheiro decorrentes da ali-ança com o crime de alta patente, a “vida bandida” se tornoumais atraente, mas isso trouxe mais desorganização do que orga-nização, recrudescendo o espírito empreendedor dos novos líderesdo já assumido Comando Vermelho, os narcotraficantes que mos-tram cada vez mais que aprenderam bem as lições do capitalismo,tornando-se rapidamente dignos representantes de seu ideário –lucratividade acima de tudo, custe o que custar, mesmo que vidasem profusão. Para estes, conhecidos internamente como “funkei-ros”, o “espírito comunitário” que gerou o CV vai aparentementeficando em segundo plano. Os princípios que nortearam o surgi-mento da solidariedade entre os presos do Fundão, foram paulati-namente substituídos por uma lógica competitiva que nada fica a

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dever ao mundo empresarial. O espírito inicial, descrito por SilvaLima (idem, p. 82), praticamente não existe mais, com a profissi-onalização desses novos pequenos empresários:

O que eles chamavam de “Comando Vermelho”não poderia ser destruído facilmente: não era umaorganização, mas, antes de tudo, um comportamento,uma forma de sobreviver na adversidade. O que nosmantinha vivos e unidos não era nem uma hierarquia,nem uma estrutura material, mas sim a afetividadeque desenvolvemos uns com os outros nos períodosmais duros das nossas vidas. Como fazer nossos car-cereiros (ou mesmo a sociedade) acreditarem nisso?

Ninguém acreditou nas boas intenções dos “bandidos”, e oque temos hoje diante de nós é uma realidade inteiramente criadaa partir dessa descrença, que alimentou o surgimento de novaslideranças e de um novo rumo para a organização da qual fala-mos. Como afirmamos, esta não tem, hoje, tantas afinidades como comportamento citado por Silva Lima do que com os procedi-mentos empresariais que predominam no mundo “capitalístico11”.No entanto, ainda guarda certas identidades, como a referêncianuma suposta irmandade que cuidaria e defenderia seus integran-tes, protegendo-os das adversidades relacionadas ao contato comoutras facções e com o poder discricionário do Estado. Essa éa maior organização que se lhe pode atribuir. A outra, a semprereiterada pela imprensa, é bem mais fantasiosa do que real, poisnão se compara àquela alcançada pelo mundo empresarial que fi-nancia esses negócios. Se a tal organização existisse, poderíamos

11 Guattari (1999, p. 23) compreende que a adição do sufixo “ístico” éimportante para designar não apenas as sociedades propriamente capitalistas,como as do Terceiro Mundo e as socialistas – ainda existentes quando o autorformulou o termo. Segundo ele, por exemplo, o conceito de cultura seria capi-talístico, ou seja, abrange um universo estreito de significações que se espraiam“e permeiam todos os campos de expressão simbólica.” A cultura seria, assim,“um conceito reacionário.”

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acreditar efetivamente na “guerra civil” citada pela imprensa, poishá gente, armas e rancor acumulado suficientes para que o con-fronto fosse mais direto e mais sangrento, visando a uma tomadade poder. No entanto, não é isso que os “bandidos” parecem que-rer e conseguir com sua parca organização.

Os traficantes cariocas, por mais que façam parte de um es-quema bilionário, são apenas os peões, com a organização possí-vel e compatível para essa escala de poder, a menor na “empresa”.Esse ramo de negócios, se possibilita uma vida com menores difi-culdades financeiras para alguns moradores das favelas cariocas,leva-os a uma situação na qual os freqüentes conflitos por espa-ços comerciais resultam em extermínios. Como afirma MV Billno rap “Soldado do Morro”, nessas condições“o papo não fazcurva, (...) o papo é reto”12. Qualquer sinuosidade, por maisleve que seja, acaba em morte, e para tomar o lugar de um con-corrente nesse mundo de lógica cada vez mais individualista ecomercial, que tem desprezado frontalmente a solidariedade refe-rida por Silva Lima, muitos conflitos e assassinatos ocorrem peloforjamento de “curvas” acentuadas no comportamento de um ououtro “soldado” a quem seus inimigos querem eliminar, muitasvezes por ter alguém para pôr no lugar, como acontece nas em-presas e no preenchimento de cargos políticos. No fim das contas,como na Sociedade de Controle capitalista, na organização criadacomo um “comportamento solidário”, todos acabam se tornandoinimigos de todos.

Um trecho do livro “CV-PCC13: a irmandade do crime”, deCarlos Amorim, é ilustrativa da lógica comercial que passou apredominar nessa “irmandade”. O tema abordado é o motim ocor-rido na penitenciária Bangu 1, quando o líder do Terceiro Co-mando, Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi executado por ho-mens comandados por Fernandinho Beira-Mar, do Comando Ver-

12 Trecho do rap “Soldado do Morro”, de MV Bill, gravado no CD Trafi-cando Informação, produzido pela BMG em 1999.

13 Sigla de Primeiro Comando da Capital, uma articulação criminosa quesurgiu nos presídios paulistas nos anos 90.

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melho, no dia 11 de setembro de 2002, um ano após o atentadocontra os Estados Unidos:

A “batalha das duas torres” [uma referência aosdois bandidos que deveriam morrer: Uê e Celsinho daVila Vintém, ambos do TC – este teria se unido ao CVdepois de ter sido ameaçado e sobreviveu] envolveumenos de 50 pessoas, incluindo os reféns. Mas alise travava uma disputa cujo alcance estratégico estáalém das aparências. Se não fosse assim, Celsinho daVila Vintém não teria sido poupado. O bando dele fa-tura quatro milhões de reais com a venda de drogas eé um dos mais bem armados da cidade, contando comex-militares das forças especiais. Outro traficante im-portante, Marcelo Soares Medeiros, o Marcelo PQD,tido como um desertor do Comando Vermelho, tam-bém sobreviveu. Após o massacre, a polícia esperavauma guerra entre as facções, com a invasão das áreascontroladas por Uê. Os delegados trocavam telefo-nemas preocupados e havia a informação de que seteônibus e alguns caminhões tinham sido roubados noRio, sinal de que grandes “bondes” iriam se deslocar,levando homens e armas para as favelas do TerceiroComando. E nada aconteceu. Nos territórios contro-lados pela ADA tudo estava calmo também. O motimcomandado por Fernandinho Beira-Mar e MarcinhoVP14 fez parte de um processo de unificação das orga-nizações ligadas ao tráfico. Mais um passo na cons-trução da Federação do Crime Organizado. O velhosonho de Pablo Escobar – a unificação do tráfico sobuma mesma bandeira – pairou sobre o tiroteio dentrodo presídio. (AMORIM, 2003, p. 434)

14 O Marcinho VP a que o texto se refere não é o retratado na biografiaescrita por Caco Barcellos (2003), mas Márcio dos Santos Nepomuceno, doMorro do Alemão, também membro do CV como Márcio Amaro de Oliveira,o Marcinho VP da favela Santa Marta.

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Parece óbvio que o assunto tem raízes comerciais, como pra-ticamente tudo o que ocorre na sociedade ocidental, inclusive boaparte dos casamentos, mas não parece ter havido apenas isso. Pa-rece óbvio também que, como já afirmamos, baseados em fontesde um dos presídios de Bangu, os novos líderes do CV, os chama-dos “funkeiros” têm um tino comercial acima do normal e aparen-temente muito menos fraternidade do que os “antigos”, incluindoBeira-Mar. No entanto a versão de Barcellos (2003) incorpora umelemento ligado ao cumprimento da palavra, fator fundamental do“papo reto” citado acima. Para ele, em primeiro lugar estava a pa-lavra empenhada por Beira-Mar na vingança da morte de OrlandoConceição, o Orlando Jogador, um dos líderes do CV – enquantovivo, um dos “bandidos” mais “considerados” entre os “irmãos”–, traído e assassinado a mando de Uê em 1994. Desde aqueletempo, este estaria jurado de morte pelo CV. Um plano do próprioUê para matar Beira-Mar, que contaria com a participação de umagente penitenciário, foi o estopim para a ação de 11 de setem-bro, quando “duas torres” – o TC e a ADA – foram derrubadas,uma por perder seu líder e a outra por ter sido absorvida pelo CV.Celsinho da Vila Vintém teria denunciado o plano a Beira-Mar,que teria, por sua vez, dobrado a oferta ao agente penitenciário,conseguindo a sua prestimosa ajuda. Se o caso fosse apenas deconcorrência empresarial, muito provavelmente Celsinho estariamorto a esta hora. Parece ter havido o que muitos “civilizados”não levam em conta, o cumprimento da palavra dada. Celsinhofoi poupado não apenas porque “avermelhou”, mas porque sal-vou a vida de Beira-Mar. Se há algo contra ele – e certamentenão há algo tão grave quanto havia contra Uê – essas contas serãoajustadas num outro momento.

Se for verdade que a lógica empresarial estaria tomando contado Comando, isso demonstra que a lógica capitalística efetiva-mente venceu e que o “salve-se quem puder” é cada vez maiseminente, com o acirramento das disputas por pontos de venda dedrogas e o assassinato a sangue frio de rivais, sendo que todos sãorivais num negócio que envolve muito dinheiro, até os “irmãos”.

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Se isso efetivamente estiver ocorrendo, os habitantes das favelasque picham os muros com as inscrições “CV”, “CVRL”, “RL” ou“Paz, Justiça e Liberdade”, imbuídos da crença numa revoluçãofutura, descobrirão que este não é mais um lema em que possamconfiar. Se isso for verdade, será a vitória completa do “sistema”a que o CV se definiu originariamente como inimigo. Significarámais uma “guerra-sem-fim” a produzir pesadelos. Uma guerrainglória, na qual não se combate por qualquer ideal, mas ape-nas pelo butim, do mesmo modo como fazem os grandes empre-sários. E, pelas informações que colhemos em alguns contatosno sistema prisional carioca, infelizmente isso está efetivamenteacontecendo, sendo a maior façanha desse novo grupo a chacinaocorrida entre os dias 29 de maio e 1o de junho de 2004, na Casade Custória de Benfica, Zona Norte do Rio, quando 31 presosnão ligados ao CV foram assassinados para “fazer mídia”, comoum instrumento publicitário terrível de “fixar a marca” do Co-mando Vermelho. Bem podemos ver como certas lições estãosendo aprendidas rapidamente pelos “bandidos”. Certamente oincremento de novos ataques com objetivos midiáticos serão pos-tos em prática para prejuízo de todos. A lógica comercial venceu,mais uma vez e o Ocidente pode comemorar a “canonização” des-ses bárbaros.

Amorim fala, no final do trecho citado, de um sonho distante– o da “unificação do tráfico sob uma bandeira” – que provavel-mente agracia o sono de muitos desses bandidos pobres, ou seriamelhor dizer desses bandidos “novos ricos”. No entanto, Amo-rim comete, nos seus dois livros sobre o tema, o pecado de con-siderar esses personagens como aqueles que devem ser enfocadosquando se fala de uma organização do crime. Sua visão, comoreferido anteriormente, torna-se um tanto “chapa branca”, umacerta manifestação de assombro e temor em relação à parca, mascrescente, organização desses até pouco tempo pobres habitantesde favelas cariocas, sem em nenhum momento aventar a lógica hi-pótese de que essa é apenas a ponta do iceberg quando se trata defalar de crime, organização e violência. Caso Amorim quisesse

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realmente falar de uma portentosa “irmandade do crime”, real-mente lesiva para a sociedade, o cidadão e a cidadania, poderiaescrever sobre os lobbies empresariais, as negociações que envol-vem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em todos os níveisde poder, com entidades privadas. Ou poderia penetrar nos mean-dros da imprensa que acoberta os grandes crimes de uma minoriasensacionalizando os pequenos crimes de uma maioria. Podemosmesmo hipotetizar que o seu olhar jornalístico do fato traz consigoa distorção que o discurso da objetividade busca ocultar: semprehá um ângulo de descrição de algo. E tanto as intenções quantoo caráter se desnudam nessa escolha. Cremos ser um exemplo deposicionamento que muito pouco acrescenta para a compreensãodo tema. Não traz nada de novo, é tão “objetivo” e “elucidativo”como as matérias dos jornais cariocas. Não se refere em nenhummomento ao grande negócio que movimenta quinhentos bilhõesde dólares ao ano. Para ele, o tráfico é o problema e o traficantepobre a sua encarnação. Trata-se de um bom exemplo de um dis-curso que parece comprometido com tudo o que parece criticar,como a maioria dos publicados nos jornais cariocas.

Reiteramos que a organização à qual devemos temer com maisardor não está nas favelas ou nos presídios, podemos garantir. Elaestá em outros círculos. Como ilustra José Carlos Blat, promotorpúblico do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao CrimeOrganizado (Gaeco) em entrevista à revista Caros Amigos (AnoVI, número 70, janeiro de 2003, p. 37):

Eles são até colunáveis, não é? Outro dia, fui aum Estado fazer uma palestra para promotores e ha-via lá umas mil e tantas pessoas, foi um evento aberto,e de repente anunciaram um cidadão que tinha um tí-tulo nobiliárquico, conde não sei das quantas, que foiaplaudido de pé ao entrar no salão. Comentei comum promotor: “Esse cidadão é importante, não?” Eo promotor: “Ele não só tem um título nobiliárquico,como controla o jogo do bicho, o tráfico de entor-pecentes e financia campanhas. Dá um milhão para

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o candidato A, um milhão para o candidato B e ummilhão para o candidato C. E recebe como contrapar-tida, no mínimo, três milhões em concessões, entãonunca perde. É um cidadão respeitado”.

Se existe crime realmente organizado, que planeja e executaações lesivas ao cidadão, ele definitivamente não é o dos pobres.O curioso é que, a imprensa insiste em nos fazer crer que são ospobres os criminosos organizados que devemos temer. Mesmoque tentemos considerar a parca organização destes, nos chamaa atenção o fato desta ser tratada como algo consistente e querepresente o maior risco de violência a que os cariocas se jul-guem expostos. Mesmo que consideremos a aliança entre facçõese comandos, como parece ocorrer entre membros do ComandoVermelho carioca e do Primeiro Comando da Capital paulista, omal que essas entidades podem fazer à sociedade ainda está aindamuito aquém do que supõe a idealização que delas se faz. Que eleexiste, é claro que existe – e os “funkeiros” do CV ainda acabarão,com sua estrita consciência empresarial, nos mostrando que essemal pode ser grande –, mas é muito menor do que outros “bandi-dos” causam. E, queira ou não queira, é a estes que os jornalistasprotegem com o silêncio. E é neles que os não tão organizados“bandidos” cariocas se inspiram para uma maior organização.

4.2 O silencioso ódio das ovelhas

As classes médias têm ódio e se remexem em seus sagrados lares-túmulos, nos quais somente há espaço para ozappingde suas fic-ções de personalidade. A “guerra a Beira-Mar” parece ser umdos sinais do quão grande é esse ódio. No entanto, os adeptos do“Partido da Ordem” crêem na polaridade essencial do Ser. Co-mungam, ao largo de todas as suas perversões, sempre mais vicá-rias que reais, do ideal de que a justiça vencerá, pois há o bem e omal, e os filmes e novelas sempre terminam com a vitória daquele.

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Mesmo nas noites atormentadas pela perspectiva da falta de recur-sos para manter os sonhos agenciados, o sujeito mediano sempretenta encontrar o melhor caminho entre os dois oferecidos. Comoambos levam ao mesmo lugar, acaba no meio da estrada, expostoaos mais diversos salteadores.

Como se não bastassem suas péssimas condições psicológi-cas, sua necessidade de aportes constantes de imagens para lhereferenciar a identidade, seu terror de tudo o que não é familiare controlável, o sujeito de ideais medianos está cercado e sem al-ternativas a não ser o pânico. De um lado, os peixes grandes, oscriminosos de grosso calibre financeiro; do outro, os de grosso ca-libre bélico. Aqueles são seus aliados tradicionais, embora sejamquem mais lhes tira o sono. Estes são seus inimigos há tempos,embora seus ataques lhe causem menores danos do que o dos pri-meiros. Os ricos os “cooptam”, os pobres os afugentam.

Há várias maneiras de se saquear as classes médias: os im-postos estão entre as mais diretas, mas também há as drogas, astarifas públicas, as aplicações financeiras e o próprio trabalho. Osbancos, as operadoras de telefonia, os fornecedores de energia, osgrandes traficantes de drogas ilícitas e o poderoso Estado neoli-beral15 parecem saber bem disso. Como há uma morte subjetiva,todas são bem aceitas, contanto que façam parte do Real, princi-palmente se delimitarem seus contornos.

O último século culminou com a rearticulação da lógica daprodução. Bens simbólicos e bens imaginários substituem os bensde produção clássicos. A indústria cultural em seu formato infor-macional domina as ações e iniciativas do circuito em que antespredominava a transformação de matéria prima natural em bensde consumo. Isso correspondeu ao nó górdio16 que, ao ser desa-

15 No jogo especular, porém, o neoliberalismo postula o enfraquecimento doEstado.

16 Para Houaiss (ibidem): “Segundo a lenda, nó que prendia ao timão o jugoda carreta do rei Górdios, depositada no templo de Zeus, em Górdios, capitalda Frígia, sobre o qual existia a profecia de que quem o desatasse tomaria parasi a Ásia; nó gordiano. Pela tradição, o conquistador Alexandre da Macedôniacortou tal nó com sua espada e invadiu a Ásia”.

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tado, abriu caminho para a invasão “definitiva” da lógica capita-lística, o “fim da história”. Se antes era necessário um certo tipode escravo, o proletário, este simplesmente deixa de existir, comonum passe de mágica, como a realização concreta de um cenáriohá muito projetado como ideal pelas classes médias. Um mundosem pobreza sempre foi o sonho do homem mediano, pois à suasimples visão há a perspectiva do pensamento soturno de que umdia ele poderia passar por isso. Ou, mais precisamente, esse pen-samento é necessário para representar o seu nojo pelo diferente.As condições estão dadas para isso, mas, como num conto ma-cabro, eis que o fado vem cobrar os seus tributos. E, consoanteà prática dualista dessa gente que escolheu a mediocridade, a co-brança vem em duas frentes.

No plano simbólico ocidental, alguém sempre tem que ocuparo local do “não-saber”. Isso não significa afirmar que os demaissaibam de algo, mas simplesmente que há uma região remetida àcoordenação do plano imaginário que serve como termostato doprocesso civilizatório por trazer em si uma significação voltadapara a demanda de preenchimento de sentido. Essa região con-centra a ação do organismo social projetado pelos “jogos finitos”.Trata-se do núcleo de onde parte o equilíbrio do sistema e, porisso, deve ser monitorado. As massas trabalhadoras das indústriasocuparam esse espaço durante bastante tempo, mas a transforma-ção do estatuto regido pela lógica de acumulação de capital trazuma nova proposta axial.

O proletariado era a região do “não-saber” na medida em queo trabalho braçal se mostrava a solução para a arregimentação dasforças produtivas. O operário precisava estar estofado de sen-tido para se portar adequadamente na linha de produção e as-sumir o seu lugar no mercado consumidor, “mediatizando-se”pela crescente mídia de massas. Na medida em que isso ocor-ria, demonstra-se como era necessário fundar uma cultura pecu-liar para essa “massa” que, na simulação da conformidade, perdiaseu caráter informe obtendo as informações adequadas para a in-tegração perfeita ao todo através dos meios de comunicação e o

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conhecido trabalho de Richard Hoggart (1958) sobre a literaciavoltada para os trabalhadores ingleses parece apoiar nosso pensa-mento. Ele bem demonstrou como a iniciativa da literatura mi-diática era, naquele momento, coordenada pela tentativa de “co-optar” os velhos e sólidos hábitos comunitários tradicionais parauma nova linguagem e uma nova estrutura de sentido. Tratava-seda aparentemente bem sucedida implementação da vontade bur-guesa como fechamento semântico de todo o senso cultural. Opopular, “tradicionalmente tradicional”, precisava ser “cooptado”e as diferenças que o marcavam singularmente apagadas. Assimfoi.

O cultural foi, assim, trazido para primeiro plano numa estra-tégia de hegemonia de um padrão universal, que aparentementeobteve sucesso mesmo que consideremos o caráter híbrido de todae qualquer interação no plano da cultura. No entanto, é possívelconsiderar que se tratou de uma simulação na qual a dita culturateve espaço instrumental, sempre com uma articulação de cunhopolítico a lhe sustentar o sentido e comandar formatos e conteú-dos. O proletariado adquiria uma nova cultura, uma sofisticaçãodo tradicional recondicionado em “moderno”. E não é possívelesquecer que sofisticar significa fraudar, enganar, falsificar. Nãohá dúvidas de que há uma proximidade muito grande entre Hog-gart e os frankfurtianos.

Esse ponto é fundamental para compreender a evolução doprocesso de articulação do sistema “capitalístico” da contempo-raneidade. O chamadofake, a trapaça assumida pelo discursoda pós-modernidade, nesse sentido, tem tudo de moderno. Seposto numa proporção adequada no percurso de falsificação daexperiência comunitária proposto por Hoggart, redunda no quetemos hoje proposto como realidade, formatando o “bios midiá-tico” pensado por Muniz Sodré (2002). Este bem pode ser enten-dido como o paroxismo dofakemodulado pelas linhas editoriaisdos veículos de cultura de massa do século XX. E é no olho dessefuracão, cuja perda do senso ancorado na ordem racionalstrictosensuengendra uma ordem algo heterodoxa para a ordenação do

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sistema, que as classes médias, elas próprias, passam ao foco dasatenções, assumindo o lugar do “não-saber”, ou seja, na lingua-gem “capitalística”, o lugar do investimento do saber. Assume,desse modo, o papel daquele que necessariamente precisa de al-guém que lhe diga quem é. E, se por um lado, podemos afirmarque em sociedade todos precisam disso, é na configuração de va-lores caracterizados como adequados a uma determinada classesocial que essa necessidade de saber toma forma num determi-nado momento histórico. Logo, “saber quem se é” para os tem-pos do proletariado parece ser muito diferente nos tempos de fococoncentrado na projeção do que seja a classe média. Naquelestempos, a configuração estava calcada, como bem mostrou Hog-gart (idem), na literacia, no discurso de acesso de uma comuni-dade iletrada ao mundo da literacia, para que melhor pudesse serincorporada e, conseqüentemente, controlada, em nossos temposisso é diferente.

A atenção pela classe média não é tão nova. Essa antes obs-cura fatia da população que se avolumou até tomar totalmente ofoco do sistema, cresceu em importância exatamente na seqüênciada realidade exposta por Hoggart e pelos frankfurtianos. O “pontode mutação” parece ter se materializado na metade do século pas-sado, com a rearticulação do poder em torno do neoliberalismo,nas últimas duas décadas desse mesmo século, selando uma trans-formação da lógica de produção e de acumulação de riquezas. Apartir de então, com o eixo da produção voltado para o subjetivo– com as coisas deixando de ser fixas e passando a circular livre-mente, enquanto as pessoas passam a se fixar cada vez mais emparâmetros predefinidos midiaticamente que lhes dão, porém, ailusão de vertiginoso movimento –, as classes médias, tradicio-nais trabalhadoras do ramo de serviços, saltam a primeiro plano,e o olho do “grande irmão” midiático se voltou para elas. Se atéum tempo a política era um terreno de oposição entre elites e pro-letários, de um momento para outro passou a ser um confrontofictício entre ideais medianos: os bons administradores e os maus

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administradores, os “técnicos” e os “políticos”17 . Enquanto asclasses médias se distraem no debate simulado, lhe esvaziam osbolsos. Se não há mais proletários para tirar o sangue em formade lucratividade, é preciso muito circo para agitar os mortos en-quanto alguém lhes tunga a carteira. Não há bem um mercadomundial a ser alimentado e satisfeito, mas um exíguo grupo depiratas a saquear o que pode. E, na situação atual, somente háum grupo populacional a ser saqueado, as classes médias. Dupla-mente: pelo trabalho e pela tributação (direta e indireta).

Temos diante de nós um quadro bastante preocupante. Háque se pensar na participação da imprensa na construção dessaconjuntura terrível. Como vemos nas matérias jornalísticas en-xertadas neste texto, há uma inequívoca tendência para o fomentodo medo direcionado para uma entidade que ora recebe o nomede “Crime Organizado”, ora de “Poder Paralelo”, ora, generica-mente, de “Tráfico”. Essa entidade abstrata e essencializada como“o” mal guarda semelhanças com a outra entidade demonizada noinício dos anos 90, o Funk. Dela fazem parte negros e pobres,aqueles que historicamente são acusados pela ocorrência de cri-mes na cidade.

Cabe pensarmos o que é o crime. Trata-se da transgressão deuma lei. Comete o crime quem infringe a lei propositalmente,quando é crime doloso, ou não propositalmente, quando é crimeculposo. Perceba-se, aqui, que se parte de uma referência legalque, conforme pensava Durkheim (1977) representava a organi-cidade da “consciência coletiva” dirigida para um padrão que,necessariamente, gerava o crime como oposição a ele. Haveriauma oposição entre individualidade e coletividade, pois, comocrê Durkheim, “uma vez que não pode haver sociedade em queos indivíduos não divirjam mais ou menos do tipo coletivo, é ine-vitável também que, entre estas divergências, existam algumasque apresentem caráter criminoso” (ibidem, p. 60). Essa no-ção é estruturante para a sociedade ocidental. Assim, ela pode se

17 Ver, no anexo 7, matéria do Jornal do Brasil, edição de 26 de setembro de2004, intitulada “Voto pragmático mostra mudança no perfil do eleitor”.

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pensar como homogênea, como um organismo a funcionar har-monicamente que, via de regra, gera insatisfeitos estatisticamentemenos significativos que os satisfeitos. Quando ocorre o contrá-rio, para Durkheim (ibidem) há a necessidade de transformaçãodo padrão ditado pela “consciência coletiva”, pois marca um mo-mento em que a antiga conformidade não é mais adequada para amaioria. No pensamento organicista, a transformação se daria poruma contradição considerada como

disfunção efetiva, que tende à readaptação, ao re-equilíbrio desejado; o “conflito” aparece mais comocompetição, onde métodos ilegítimos mas racional-mente eficazes substituem os emperramentos que atra-palham muitos indivíduos de alcançar o êxito; e a“mudança” aparece, finalmente, como a forma da “so-ciedade humana em geral” reencontrar-se na sua uni-dade homogênea originária, necessária e eterna (DÍL-SON MOTA e MICHEL MISSE, 1979, p. 23).

Logo, há uma noção de que a sociedade é um todo orgânico,

um sistema social já dado, “funcionando”. A har-monia e o equilíbrio, a partir daí, surgem automati-camente. Existe uma fase hipotética, inicial, quandoo sistema está “funcionando normalmente”. O pro-cesso de mudança social pode ocasionar desequilí-brios e conflitos, mas a tendência “natural” será o re-torno a um estado de equilíbrio e harmonia. Mesmoque surjam modificações na estrutura social, haveráum momento em que as coisas se encaixarão nos res-pectivos lugares e os níveis social e cultural voltarãoa se ajustar. Uma nova ordem poderá até ter sido ins-taurada (GILBERTO VELHO, 1979, p. 15).

O desvio teria, assim, um caráter “benéfico”, pois estabelece-ria a necessidade de mudanças na ordem social. Não há brechas,não há vácuo. Tudo está integrado, mesmo o crime.

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A imprensa carioca, porém, não pensa assim. O crime, nassuas páginas, é, prioritariamente, objeto de opróbrio. Como bemafirma Moretsohn (2003), assume o papel do Poder Judiciário,julga, condena e promove execuções públicas. Há uma identi-ficação com a função do Estado autoritário, de julgar e executarpessoas, boa parte das vezes, senão sempre, cometendo, por contadisso, o crime da calúnia. A única solução para o desvio, na li-nha editorial dos jornais da grande imprensa carioca, é o castigo:penas mais duras, incremento da repressão, mais prisões, etc. Noséculo XIX, há mais de cem anos, Durkheim escrevia:

É preciso que a autoridade de que goza a consci-ência moral não seja excessiva; d’outra maneira, nin-guém ousaria levantar a mão contra ela e ela se cris-talizaria facilmente numa forma imutável. Para queevolua, é preciso que a originalidade individual possavir a lume; ora, para a originalidade do idealista, quesonha ultrapassar seu século, se manifeste, é necessá-rio que a do criminoso, que está abaixo do seu tempo,seja possível (ibidem, p. 61).

Ou os jornalistas não leram Durkheim ou preferem uma so-lução rápida, a condenação do criminoso como essencialmentehediondo, como um “doente”, um “degenerado”, um “bandido”.Neste caso, obtura-se a compreensão do sentido do crime que,mesmo no organicismo estreito de Durkheim, pode ser reconhe-cido como algo que indica uma transformação da tal “consciênciacoletiva”. Não há sequer a profundidade durkheimeana nos textosjornalísticos do Rio de Janeiro. Para a grande imprensa, o castigoé o único remédio pois há um pré-juízo, ou um pré-conceito, noqual o criminoso é codificado como um “ser” patológico. A ques-tão é fechada numa captura do sentido no esquema dos “jogosfinitos”. O criminoso já perdeu, pois ganhou a essência do “ser”patológico, ou seja, do “não ser” platônico. Na sala de espelhosda subjetividade ocidental, duplicações como essa são explosivas.

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Não exatamente pelos conflitos que trazem, mas pela natureza au-tofágica desses conflitos.

Retornando ao tema do “choque de civilizações” de SamuelHuntington (1998), cremos que não há como sustentar essa novamodalidade esquizoparanóide de subjetivação. O que efetivamentetem se afigurado é um choque intracivilizacional, o velho “bem”contra o “mal” dos filmes estadunidenses se consubstancia nosmonstros que se voltam contra o próprio criador. Baudrillard(2004, p. 38) ilustra com sagacidade o drama do Império: “Já sedisse: ‘Deus não pode declarar guerra a si mesmo’. Pois pode!O Ocidente, na posição de Deus (de potência total divina e delegitimidade moral absoluta) torna-se suicida e declara guerraa si mesmo”. Percebemos, nas palavras de ordem bélicas que sealastram pela imprensa um envolvimento direto da mídia nesseconfronto insano, porém inevitável, o de Deus contra si próprio.Tudo indica que o Ocidente se encontra em uma daquelas “sinu-cas de bico” cujo qualquer movimento leva ao “suicídio”.

“A guerra à beira-mar” carioca, tão perto do oceano que ba-nhou a fama da cidade como linda em relevo e em espírito, perso-nifica-se no redobramento do massacre quinhentão promovido pe-los exploradores europeus e por seus descendentes em carne ealma. Transforma-se, simbolicamente, num momento estratégico,numa “guerra a Beira-Mar”, como forma de essencializar o malque atormenta a já tão atormentadas classes médias cariocas. Éuma guerra inglória, um movimento suicida de uma lógica civili-zacional que não aprendeu com os próprios erros, tendo esgotadopraticamente todas as artimanhas para ocultar suas atrocidades.Eis que a lógica mágica do “inimigo externo”, da alterofagia eda guerra santa, utilizada com sucesso durante tanto tempo, vemcobrar os seus tributos ilógicos. O velho jogo de atirar para foratodo o mal, fazendo do outro o algoz de todos os martírios chegouao paroxismo que prenuncia o seu declínio. E é aí que ele se tornamais cruento e doloroso.

A representação carioca da “luta contra o terror” é, assimcomo a matriz de onde tirou sua inspiração, uma falácia perigosa

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para a própria “civilização”. Trata-se de uma corruptela provin-ciana da bravata estadunidense de “polícia do mundo”. E, comotodo poder de província, o jornalismo carioca quer mais, quer nãoapenas ser polícia, mas ser magistrado. Tomar a “organização”pela organização chega a ser ridículo, se não fosse trágico paratanta gente. Mais uma vez, porém, está fiel ao “modelo ameri-cano”. Os jornais estadunidenses também suspenderam qualquerrigor crítico e promovem, até hoje, um julgamento e uma conde-nação sumária dos “terroristas” que alimentaram. Durante déca-das, os assassinatos das torres foram encomendados pelo Estadoe pela mídia que o reafirma, quando ocorreram, foram cobertospela mesma mídia e aproveitados pelo redobramento do discursoinsano do Estado. O mundo capitalista lucra mesmo quando de-cepa o próprio braço.

No dia 28 de setembro de 2004, há poucos meses atrás, o jor-nal carioca O Dia noticiou, em sua primeira página, a execução dedois suspeitos de ter atirado contra um helicóptero da polícia civilcom fuzis. Foi um fuzilamento sumário de dois rapazes que, nãose pode afirmar com exatidão, trabalhariam para a quadrilha lo-cal. Nada de anormal nisso, pensa “objetivamente” o jornalismode mídias como O Dia. Se é uma guerra e se o inimigo é o mal,nada de estranho em que seja exterminado. O cinismo da grandeimprensa é, no entanto, absolutamente ilimitado. A notícia davaconta de uma execução apenas porque havia um fotógrafo e umarepórter do jornal no helicóptero. Logo, era um “furo”. Não amorte dos rapazes, mas a presença da mídia. Noticiar mortes detraficantes “em confronto”, como “vítimas de auto de resistên-cia” é banal e aceitável, faz parte da “objetividade”, não merecemaiores questionamentos. O que o fotógrafo registrou e o quea repórter descreveu, no entanto, era o banal duplicado pelo tes-temunho essencial da imprensa, pela mesma “objetividade” queNelson Rodrigues inúmeras vezes classificou como um atributodos idiotas. Assim, precisava “ser”, muito embora tais execuçõessumárias “não fossem”, pois constam “objetivamente” nas pági-nas do mesmo jornal no rol das “mortes em confronto”. Diaria-

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mente o mesmo jornal fala de “Terror”, “Guerra”, que brada que“O Rio não merece”, repete em praticamente todas as edições aspalavras “medo” e “violência” incessantemente.

Eis um exemplo de um dos efeitos mais fascinantes da salade espelhos: a negatividade dos “bandidos” encontra a negativi-dade da objetividade camufladora de assassinatos, tudo se tornapositivo e há o furo jornalístico. As mortes encomendadas pelaimprensa carioca são os furos da imprensa carioca. Trata-se, semqualquer dúvida, de um jogo que só admite vitórias, mesmo queisso signifique massacres ou execuções sumárias rotineiras. Mes-mo que isso signifique estar destruindo boa parte dos jovens quetêm tanto direito de sonhar com uma vida de classe média quantoos jovens da classe média têm de sonhar com suas futilidades. Éum jogo perdido, pois traz em si um elemento muito mais per-verso do que este, que já tem perversidade de sobra. Um jogo“finito” na natureza e na inteligência.

A “guerra à Beira-Mar” é uma guerra do sistema contra si pró-prio, contra uma parte de si próprio. Uma guerra travada não dosincluídos nalimescontra os excluídos dela, mas entre os incluí-dos, pois que dos excluídos nada se pode tirar além da vida, eo butim é fundamental nessa guerra. Fernandinho Beira-Mar estáincluído, assim como todos os “bandidos” que conseguem um “lu-gar ao sol”. Fosse Beira-Mar um ladrão de galinhas, um perfeitoexcluído, jamais teria destaque na mídia. Esta não teria como po-sitivar uma negatividade absoluta. Mas, quando esta se redobra naintenção do “bandido” em negar a sua negatividade, positivando-a como participação efetiva no mundo econômico, eis que surgeo charme essencial que assegura sua presença midiática. Fernan-dinho Beira-Mar é um ídolo ao qual as elites rendem as maioreshomenagens. É aquele que abre as portas para a captura das clas-ses médias no espelho de suas almas, no recôndito de seu ódio.

Para as elites, então, ao negativar a sua negatividade, Beira-Mar torna-se positivo, pois sua existência erige loas ao sistemaque aquelas comandam e este integra. Já para os excluídos, a posi-tividade duplicada do “bandido”, um “excluído” que se “incluiu”

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pelo confronto com as elites e que, por conta disso, consegue umainaudita projeção midiática, inclusive no exterior, se torna nega-tividade. Discursa que não há opções fora do jogo econômicocivilizatório, logo não deixa alternativas subjetivas. O “excluído”continua excluído, mesmo “incluído”. Não contribui com seus va-lores, ou contribui e não obtém sucesso, logo estes precisam serabandonados. A ascensão das “alas jovens” do CV, o já extinto“CV Jovem” e os “funkeiros”, mostra que isso vem ocorrendo.

Para as classes médias, Beira-Mar é, conjunturalmente, o pre-enchimento entre a negatividade e a positividade especular. O“bandido” é a própria imagem da classe média, o dançarino solistade uma pantomima que tem como coro a própria classe média. Odestino de Beira-Mar, preso, isolado, execrado publicamente, comos bens arrestados, é a metáfora da vida medíocre a quem WrightMills (1976, p. 14) chamou dewhite collar:

Num mundo povoado de grandes forças ameaça-doras atribui-se logo ao homem de colarinho brancotodas as supostas virtudes da criatura modesta. Podeser que ele esteja no nível mais baixo da escala so-cial, mas tem, ao mesmo tempo, o aspecto tranqüili-zador de classe média. É fácil e seguro compartilharseus problemas; pode fazer muito pouco, ou nada, poreles. Outros atores sociais ameaçam tornar-se pode-rosos e agressivos, defender exclusivamente seus in-teresses e fazer política. O grande negociante man-tém a nação em suspenso com um simples arquear desuas espessas sobrancelhas, até que todas as reivindi-cações sejam atendidas; o grande fazendeiro cultivao Senado para que os latifundiários consigam o quequerem. Mas os colarinhos-brancos não podem fa-zer isso. Coletivamente, são mais lastimáveis do quetrágicos, lutando contra uma inflação anônima, sus-tentando até mesmo na miséria a esperança de umarápida ascensão à americana. Eles são impelidos por

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forças que não podem controlar, arrastados para mo-vimentos que não compreendem; metem-se em situ-ações nas quais a sua posição é a mais desamparada.O homem de colarinho branco é o herói-vítima, a cri-atura modesta que sofre a ação, mas não age, que tra-balha despercebida num escritório ou numa loja, quejamais levanta a voz, jamais retruca, jamais toma umaposição.

Transforme-se um ponto ou outro tomando em consideração anova conjuntura, e a definição continua válida. A classe média écomo o rebanho que aguarda silencioso o abate, todas as manhãs,até que ele chega, geralmente no início do mês seguinte, quandotem que pagar suas contas e tributos. Não opina, pois repete so-mente aquilo que lhe foi ensinado pela objetividade essencial daimprensa. Continua a não ter nenhum controle sobre seus proble-mas, nenhum poder político. A do Rio de Janeiro, dá ensejo a um“populismo de direita” ressuscitado do túmulo de Carlos Lacerda,que um dia sonhou lavar a cidade com as águas de um rio da bai-xada fluminense, ainda sem contar, naquela época, com a GuardaMunicipal com seu aparato para-militar e seu spray de pimenta.As classes médias mantêm-se como medíocres “heróis-vítimas”que sofrem o ataque de poderosas e rapinantes forças econômi-cas, mas, orientados pelo “tautismo” jornalístico, odeiam os po-bres pelo pouco que estes lhes roubam.

O Fernandinho Beira-Mar da imprensa é como um reflexo re-velador, aquele a que temos dar mais atenção na sala de espelhosmidiática do Rio de Janeiro contemporâneo. Sob o ponto de vistacomercial, Beira-Mar é um dos “melhores” entre os “excluídos”,por isso foi capaz de se positivar, assim como ocorre com os “me-lhores” entre a classe média brasileira desde o “milagre econô-mico”18 da década de 70. Buarque e Pontes (1980), num texto

18 Processo de crescimento econômico artificial, fomentado pela entrada decapital estrangeiro, principalmente através de empréstimos, ocorrida durante adécada de 70, na ditadura militar que se instalou em 1964 e só deixou o poderem 1985.

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escrito ainda sob o efeito da eclosão do “milagre” – pois foi es-crito em 1975, quando do lançamento da peça “Gota d’Água –,mas que ainda traz uma atualidade impressionante, ilustram bemcomo se deu a cooptação da classe média para o sistema capita-lista que “enfim” se implantava no país pela imobilização políticae cultural das chamadas “classes subalternas”, o “povo”, comoocorreu na bem mais recente demonização do funk no Rio, sem-pre contando com o prestimoso da classe média:

(...) a experiência capitalista que se vem implan-tado aqui – radical, violentamente predatória, impie-dosamente seletiva – adquiriu um trágico dinamismo.O santo que produziu o milagre é conhecido por to-das as pessoas de boa-fé e bom nível de informação: abrutal concentração da riqueza elevou, ao paroxismo,a capacidade de consumo de bens duráveis de umaparte da população, enquanto a maioria ficou no ora-veja. Forçar a acumulação de capital através da dre-nagem de renda das classes subalternas não é novi-dade nenhuma. Novidade é o grau, nunca ousado an-tes, de transferência de renda, de baixo para cima.(...) No futuro, quando se puder medir o nível dedesgaste a que foram submetidas as classes subalter-nas, nós vamos descobrir que a revolução industrialinglesa foi um movimento filantrópico, comparadocom o que se fez para acumular o capital do mila-gre. (...) No movimento que redundou num avançotão grande dos interesses das classes dominantes so-bre os das classes subalternas, as camadas médias têmdesempenhado um papel fundamental. Elas, ao ladodo autoritarismo, e de forma mais profunda, têm le-gitimado o milagre. Seria ingênuo, a partir daí, fa-zer qualquer julgamento moral da classe média brasi-leira. Se a raiz desse problema fosse moral, viver nãodava trabalho nenhum. A verdade é que o capitalismocaboclo atribuiu uma função, no tecido produtivo, aos

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setores mais qualificados das camadas médias. Nãoapenas como compradores, beneficiários do desvarioconsumista, mas, sobretudo, comoagentesda ativi-dade econômica. Em outras palavras, o capitalismocaboclo começou a ser capaz de cooptar os melho-res quadros que a sociedade vai formando. E isso, decerta forma, é inédito no Brasil (BUARQUE e PON-TES, idem, p. xi).

Da histórica tradição de rebeldia dos intelectuais da pequenaburguesia brasileira citada pelos autores – Gregório de Matos,Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Plínio Marcos, CinemaNovo, Teatro Oficina, etc. – restou o conformismo com um bompagamento e o sucesso midiático:

A ironia, o deboche, a boêmia, a indagação de-sesperada, a anarquia, o fascínio pela utopia, um certoorgulho da própria marginalidade, o apetite pelo novosão algumas marcas dessa nossa tradição de rebeldiapequeno-burguesa. Hoje é possível perceber que essarebeldia era fruto da incapacidade que os diversosprojetos colonizadores sempre tiveram em assimilaramplos setores das camadas médias e dar-lhes umafunção dinâmica no processo social. O que estava re-servado ao intelectual pequeno burguês antes do pe-ríodo a que estamos nos referindo? O jornalismo malpago, o funcionalismo público, uma cadeira de pro-fessor de liceu, o botequim, a utopia, a rebeldia. Porfalta de função ele era posto à margem. (...) O queacontece agora, inversamente, é que a radical experi-ência capitalista que se faz aqui começa a dar sentidoprodutivo à atividade dos setores intelectualizados dapequena burguesia: na tecnocracia, no planejamento,nos meios de comunicação, na propaganda, nas car-reiras técnicas qualificadas, na vida acadêmica orien-tada num sentido cada vez mais pragmático, etc. O

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disco, o livro, o filme, a dramaturgia, começam a serprodutos industriais. O sistema não coopta todos por-que o capitalismo é, por natureza, seletivo. Mas atraios maiscapazes(PONTES e DE HOLANDA, idem,p. xiii)

O “milagre econômico” promovido pela ditadura militar, viá-vel pela “entrada de cabeça” no mundo econômico capitalista apartir da década de 70 e pelo conseqüente endividamento do país,foi sustentado principalmente pela classe média que, um poucomais tarde, viria a ocupar o espaço dedicado ao proletariado nahistória do capitalismo. O sistema capitalista transformou suasestratégias e, ao contrário do que poderiam esperar os marxistas,tornaram o proletariado dispensável. Pelo menos se considerar-mos o proletário como o trabalhador que apenas vende o seu tra-balho, para que outros consumam as mercadorias que ele produz.

A condição da sustentação do sistema está cada vez mais naclasse média, o que deixa entrever uma auto-fagocitose do sis-tema, o que não significa sua ruína. A reorganização coloca esses“incluídos” no olho do furacão. São as vítimas preferenciais deambas as criminalidades. É com a poupança dessas classes mé-dias que vivem as elites e é com a sua gana por drogas ilegais quevivem os pobres. Está, efetivamente, no centro da sala de espelhosidentitária e midiática. Eis aí o grande Estranho da Sociedade deControle. Essa classe mediana economicamente e rasa cultural-mente constitui-se, neste momento histórico, como a referência aser pensada para a compreensão do futuro do capitalismo. É nasvielas de seus relacionamentos com o terror que vem de ambos oslados, que pode surgir efetivamente o “pulo-do-gato” para enten-dermos o que será feito com relação ao exposto nesta dissertação.

O “novo proletariado” parece estar entre as classes médias,produtoras de riquezas e consumidoras de simulacros de riquezas.Aqueles que foram um dia cooptados para servir ao sistema têmagora que o sustentar com a própria carne e sangue. A chavenão está mais na hora trabalhada, muito embora o capitalismomantenha essa fonte de lucro. O novo foco dos ganhos de capital

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se concentra cada vez mais na circulação financeira e nos saques àpoupança e não há excluídos que apliquem no mercado financeironem que reúnam poupança considerável para ser saqueada.

O sistema começa a mastigar a si próprio, pois se esgotaramos recursos àlimes. Esta, foi mantida como simulação da divisãoentre dois mundos que, na extremidade da simulação, torna-seinexistente. Os “excluídos” se descobriram no direito de fazerparte da festa e transpõem alimesalavancados por um grande ne-gócio capitalista. Uma parte deles, é claro, mas que representam,para a outra parte, o reflexo de uma realização antes tida comoimpossível. Há uma “inclusão excludente”, mas há uma “inclu-são”.

A classe média, porém, necessita dalimessimulada pela im-prensa para que se sinta segura quanto à própria identidade, afi-nal, ela não sabe bem exatamente onde, no mar revolto de seudrama econômico, termina o seu devaneio de ascender à elite eonde termina o seu risco de “exclusão” do sistema, com a falên-cia ou o desemprego. Assim, ao entrar em contato com a imagemmidiática de Beira-Mar, o sujeito de classe média pode sentir-seseguro, pois “sabe” que tudo está no lugar essencial de sempre.O problema, pensa, é a falta de autoridade, a “impunidade” –uma das palavras mais repetidas no noticiário. Se a ordem forrestabelecida, tudo voltará ao normal. Isso é simplesmente umaalucinação, devaneios de mortos-vivos.

Nada é como antes e a vítima é, a partir de agora, o própriocidadão “médio”, aquele que sempre quis se esconder por trásde seus sonhos de sucesso imediato, que passa as noites dianteda televisão a engolir toda a densidade especular das essênciasdo mundo ocidental. Não é à toa que os antigos zoológicos hu-manos19 do século XIX, e mesmo os mais atuais, das favelas e

19 Os chamados “Zoológicos Humanos” eram “exposições etnológicas” queexibiam principalmente “as raças humanas inferiores”. Segundo Nicolas Blan-cel, Pascal Blanchard e Sandrine Lemaire (2000, p. 16): "Les zoos humains,expositions ethonologiques ou villages nègres restent des sujets complexes àaborder pour des pays qui mettent en exergue l’égalité de tous les étres hu-

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seus bailes funks cobertos por “heróis” como Tim Lopes, foramsubstituídos pelo “Reality Show” dos Big Brothers. O estranho,o bizarro, está entre as classes médias, que desnudam a sua bar-baridade e o seu “primitivismo” na exibição de algumas pessoasque se digladiam moral e emocionalmente por alguns milhares dereais. O que acontece quando alguém absolutamente ególatra, al-guém que controla magicamente – através de uma folha impressaou de um controle remoto – uma sala de espelhos identitária, des-cobre a sua própria degeneração? A resposta é fácil. Precisa deum outro que possa acusar, de um espelho para culpar por suasrugas. O “velho truque” de acusar o outro pelas próprias faltas.

Beira-Mar é apenas o reflexo de um sistema que a tudo temabarcado, engoliu os antigos rebeldes pequeno-burgueses e imo-bilizou as antigas “forças populares” no crime. Os grandes anun-ciantes precisam de seu charme para suavizar a dor da classe mé-dia e, de reflexo, o “bandido” passa a espelho, e é o culpado nãoapenas pelas rugas, como também pelas espinhas e pelas olheirasmatutinas.

Trata-se, no entanto, por identificação direta, da imagem deuma entidade que chamamos as “classes médias”, posta no reflexoespecular midiático. Assim como o detento “Beira-Mar”, trans-ferido, em fevereiro de 2003, da cadeia carioca Bangu 1 – ondegozava da companhia dos amigos e parceiros e provavelmente ti-nha outras regalias – para a penitenciária de Presidente Prudente,cidade do interior do Estado de São Paulo, isolado e sem amigos,as tais “classes médias” “perderam”. Perderam a chance de enten-der que as elites que as exploram forjaram, através da imprensa,uma imagem da lua no poço, e mergulharam no poço. Perderama oportunidade de entender de forma “global” a sinuca em que seencontram não apenas elas, as classes médias, mas toda a civiliza-ção ocidental à qual ainda tentam se agarrar. Perderam também a

mains. De fait, ces zoos, où des individus “ exotiques ” mêlés à des bêtes sau-vages étaient montrés en spetacle derrière des grilles ou des enclos à un publicavide de distraction, constituent la preuve la plus évidente du décalage existantentre discours et pratique au temps de l’édification des empires coloniaux.”

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chance de evitar uma tragédia maior para si próprias, isolando-seno seu mundinho murmurante, cheio de ressentimentos e ranco-res indissociados, provavelmente como se encontra FernandinhoBeira-Mar no interior paulista.

A festa acabou, juntamente com os milagres econômicos deantanho. Quando o sistema chega a um paroxismo de seu poder,derrubando praticamente todos os limites possíveis para a sua in-vasão, quando efetivamente se torna Império onipresente, restaalimentar-se da própria carne, e, ao menos economicamente, nãohá carne nos “excluídos” do sistema produtivo. E, assim, todos sa-bemos bem quem está sendo servido nesse churrasco. Enquanto aclasse média se distrai com o charme midiático, ainda que nefasto,de Beira-Mar, enquanto se mantém no pedestal do “herói-vítima”,alguém lhe tempera para o banquete. E o que é pior, agindo “den-tro da lei”.

Ilude-se, porém, quem pensa que as classes médias acreditaminteiramente no que lhe conta a mídia. Porém, sua vingança con-tra o opressor econômico é, como tudo na sua vida, mesquinha ecínica, comedida, quase silenciosa. Um golpe aqui, um “se darbem” ali, coisas do mundo dos “jogos finitos”. Mas, dentro de si,cada cidadão mediano traz o gozo da tragédia. O mesmo gozo queviabilizou o ataque de 11 de setembro de 2001, pois como afirmaBaudrillard (2002, p. 11),

À la limite, c’est eux qui l’ont fait, mais c’estnous qui l’avons voulu. Se l’on ne tient pas comptede cela, l’événement perd toute dimension symbo-lique, c’est un accident pur, un acte purement arbi-traire, la fantasmagorie meurtriére de quelques fana-tiques, qu’il suffirait alors de supprimer. Or nous sa-vons bien qu’il n’en est pas ainsi. De là tout le délirecontre-phobique d’exorcisme du mal : c’est qu’il estlà, partout, tel un obscur objet de désir. Sans cettecomplicité profonde, l’événement n’aurait pas le re-tentissement qu’il a eu, et dans leur stratégie sumbo-

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lique, les terroristes savent san doute qu’ils peuventcompter sur cette complicité inavouable.

É esse mesmo sentimento de cumplicidade que alimenta ocharme que a imprensa evoca em Fernandinho Beira-Mar e outros“heróis midiáticos” do crime. É por esse mesmo senso suicidaque a classe média pode se odiar nos terroristas, nos pedófilos,nos “bandidos” ou em qualquer outro “maldito”. E é por essesmesmos meios que pode se premiar e se punir, se orgulhar de terexpulsado Beira-Mar do Rio de Janeiro – assim como expulsouos demais “emergentes” da cena midiática – e se infligir o castigodo silêncio de sua condição de rebanho. Nesse jogo infernal deespelhos no qual nada é bem o que é, tudo se volta contra si, ocharme de Beira-Mar é apenas mais um dos reflexos que fasci-nam e aterrorizam a classe média urbana carioca. Mais um dosfantasmas, porém não o único ou o mais assustador.

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Capítulo 5

Considerações finais

A guerra no Rio de Janeiro já existe há muito. Não foram osescravos libertos que a foram inventar atacando as elites, muitomenos seus descendentes. Não foram nem mesmo os “bandidos”dos jornais que a criaram. Estes já pegaram “o bonde andando”,e cresceram em grande parte exatamente no rastro de rancor pa-trocinado pelo massacre promovido historicamente pelas elites.Na estrutura subjetiva da ocidentalidade é sempre necessário ha-ver um pólo negativo para que haja positividade. Não para queconvivam, não para que se completem, mas para que o positivovença o negativo. Se este vence, há uma representação maléficado caos. Mas, note-se bem, apenas uma representação, parte deuma simulação. Entendemos que esse é o fetiche que organizatoda a subjetividade ocidental. Porém, se lembrarmos que tudoisso se dá num ambiente especular, podemos suspeitar que a ne-gatividade está sempre presente e é o pólo dominante. Mas issonão importa muito, pois não temos mais tempo a perder com jogosespeculares.

Essa constatação nos obriga a assumir a compreensão de quenão há, assim, algo nessa redoma subjetiva que possa ser consi-derado “o” Real a não ser todo o seu conjunto. Isso exclui, comojá dito, noções como a de ideologia, pois não há como conside-rar que há um Real por trás do Real. Essa promessa, porém, é

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um dos venenos que mantém as classes médias mortas subjeti-vamente. Enquanto brincam de manipular essências, com meta-relatos como o científico e o econômico, e julgam desvendar oque há por trás das aparências da caverna platônica, os assim cha-mados “sujeitos” são essencializados e não descobrem nada alémda própria nulidade enquanto sujeitos. Em termos diretos, se su-jeitam no mesmo movimento em que se pretendem donos de suasubjetividade. No entanto, se pretendem assim, e assim se perce-bem no jogo especular. O que crêem desconhecer lhes é conhe-cido, todos os mistérios são desvendados pelo mundo da comuni-cação, esse “mundo das idéias” portátil, onipotente, onipresente eonisciente. O que efetivamente desconhecem é exatamente o quecrêem conhecer, isto é, a si próprios. Essa posição, na psicanálise,é denunciante de uma alienação e, conseqüentemente, de uma su-jeição. Nesse sentido, podemos afirmar que se trata de uma mortesubjetiva, um estado semelhante ao que vemos nas histórias devampiros, quando estes vivem uma existência crepuscular, nemmorta, nem viva. Os negros africanos costumavam chamar isso de“zumbi” ou “cazumbi”, algo como um fantasma. Há uma relaçãoentre o mergulhar no “fantasma”, isto é, na fantasia de realizaçãode todos os desejos, e ser um “fantasma”. O fantasista é necessa-riamente “midiatizado”, vive presa de um “Outro” que o define ediscursa sua identidade, e assim Lacan (1979) compreendeu he-gelianamente o jogo alienante que configura o que chamamos de“sujeito”: a coisa não é a coisa, mas o sujeito “coisificado”.

O fantasista midiático de nossa contemporaneidade leva umavida vicária, vive através de um outro que, por sua vez, é o fan-tasma do “Outro”, a coisa em si por excelência, o resumo essen-cial de toda e qualquer coisa. O outro é a própria experiênciae, especularmente, o sujeito só tem acesso a esta se remetendo àimagem que o outro faz de si, ou mais precisamente, que o “Ou-tro”, que poderíamos chamar de “Matrix”, utilizando o termo dofilme dos irmãos Wachowsky, constrói. Esse “Outro”, conformeestamos percebendo, porém, é o próprio Real, não uma imagemproduzida dele, como o filme citado sugere. O Real, referido a

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essa alteridade, estaria marcado por um caráter anamorfótico, noqual, como na arte minimalista ou aready-art, se distorcem ouretiram os conteúdos da realidade para formalizar-se o vazio designificação que é exatamente preenchido pelos conteúdos, comorefere Zizek (2003b, p. 273), ao traçar a referência da tríade psi-canalítica do Imaginário-Simbólico-Real na arte contemporânea:

O Real está presente, em primeiro lugar, como amancha anamorfótica, ou a distorção anamorfótica daimagem direta da realidade – como uma imagem dis-torcida, uma pura semelhança que “subjetiva” a rea-lidade objetiva. Em segundo lugar, o Real está pre-sente como o local vazio, como uma estrutura, umaconstrução que nunca está presente, mas só pode serconstruída retroativamente e assim deve ser pressu-posta – é o Real como construção simbólica. E, fi-nalmente, o Real é o Objeto obsceno para a excreção,deslocado, o Real “em si”. Esse último Real, se iso-lado, é um mero fetiche cuja presença fascinante oucativante mascara o Real estrutural, do mesmo modoque, no anti-semitismo nazista o judeu como objetopara excreção é o Real que mascara o insuportávelReal “estrutural” do antagonismo social.

Essas três dimensões do Real resultam dos três modos de de-terminar a distância da realidade “comum”: submete-se essa rea-lidade à distorção anamorfótica; nela é introduzido um objeto quenão tem lugar ali; ou todos os conteúdos (objetos) da realidadesão subtraídos ou apagados, e tudo o que sobra é o próprio lugarvazio preenchido por esses objetos.

Parece claro que no jogo midiático essa anamorfose tem o ob-jetivo de realçar esses conteúdos, naturalizando-os na categoriade hiper-realidade – e sob esta paira o espectro do abismo, a com-pleta falta de sentido. O jogo especular brinca com o “morto-vivo”, fazendo com que se entenda “muito-vivo” enquanto mani-pula imagens especulares em sua fantasia. Dessa forma, se pro-

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duz um fenômeno fantástico: o “morto-vivo” se crê ameaçadode morte, sendo esta a representação do fim da possibilidade de“brincar” com essas imagens, e se volta contra o alvo que lhe éapresentado pelo seu algoz, enquanto outros algozes agem livre-mente. Não é à toa que proliferam os sites que divulgam inúmeras“teorias conspiratórias”. Trata-se de um jogo dentro do jogo, daartimanha de imaginar um “Outro” do outro, manipulador, agindosorrateiramente nas sombras, tramando contra o “Um”. Ora, tudoestá claro e não há a necessidade de imaginar conspirações. Oproblema é que o jogo especular jamais perde o prumo e mesmoquando parece denunciar algo, não o faz. Não há exatamente umaconspiração, assim como não precisamos ficar rodando no mesmolugar a imaginar qual o construto ideológico em voga. O que há éuma forma particular de entender o mundo na qual não há enganosa não ser a própria idéia de que há enganos. A suposta “Matrix” éo próprio engano e a idéia do engano. O círculo se fecha e lá es-tão os mortos-vivos no redemoinho, gozando a “finitude” de seusjogos. Para eles, resta a ilusão como meio de sobrevivência. Mas,haverá outra forma de vida? Certamente não, se estivermos nasala de espelhos. Ou, talvez haja, mas não no imbróglio pendu-lar da identidade ocidental. Nela, sempre há dois lados em tudo,porém qualquer dos lados redunda na mesma coisa. Não há reala não ser algum “orifício topológico” que permite a projeção paraalém da polaridade. O telefone de Matrix ou o vaso sanitário deZizek (2003b, p. 275):

O real, portanto, não é primariamente aquela coisahedionda e nojenta emergindo novamente do vaso sa-nitário, mas sim a própria abertura, o espaço que servede passagem para uma diferente realidade ontológica– o orifício topológico que “curva” o espaço de nossarealidade, de modo que percebemos/imaginamos osexcrementos desaparecendo numa dimensão alterna-tiva, que não faz parte de nossa realidade diária.

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As classes médias, porém, acreditam na polaridade que leva asfezes e ameaça trazê-las de volta. Para elas, o mundo “é” ou “nãoé”, embora apostem no discurso econômico que interpõe quan-tidades entre as categorias do ser. O paraíso, para essa grandefaixa de mortos-vivos, é a descarga do vaso sanitário funcionandopara ejetar o mal – incluindo os “bandidos” –, e o inferno é apermanência ou a volta desse mal, com sua aparência nojenta eseu cheiro nauseabundo. Entre esses pólos, tudo se move, em-bora fique no mesmo lugar. Essa polaridade é a matéria prima daMatrix midiática. Se um ou outro prevalecesse, como nos sonhose pesadelos dos medianos, não haveria a experiência do Real. Éexatamente a inconstância que faz a realidade midiática parecer“real” e é ela que aprisiona, no mesmo movimento em que pro-mete a liberdade.

Quanto à vivência da alteridade, percebemos que o vazio estáexatamente onde deveria haver o “enchimento iluminista”, o su-jeito. Neste, não somente está a ignorância, como a projeção distocomo mal, no “outro”, que recebendo sua forma maléfica, podeser amado à moda cristã, ser “salvo”, catequizado, anulado. Numaexplicação rápida e cínica, poder-se-ia dizer que isso ocorre paraque se possa representar o diferente. No entanto, há uma anulaçãocompleta da diferença e uma anulação do pensamento, ou, em ou-tras palavras, os estranhos, os bárbaros ou os “bandidos” são o queo saber quer para si, o que o saber é para si mesmo na tentativa dese definir enquanto uno, identificando a representação do vaziocom o nada, com a falta (de sentido), hipertrofiando seu caráterfictício, conforme refere Alain Badiou (1996, p. 80):“O efeito-de-um fictício se revela quando, por uma comodidade (...), eu meautorizo a dizer que Ø é ‘o vazio’, atribuindo assim o predicadodo um à sutura-ao-ser que é o nome, e apresentando o inapresen-tável tal qual.” Não há o vazio, todo o universo é povoado porelementos que correspondem a algo, ao “Um” demiúrgico. Daía extrema ilusão a que essa crença nos remete. Não há vácuo navida simbólica ocidental; se há, não há o ser, logo não há nada,pois nela o ser tudo abarca. A alteridade, nessa realidade é o risco,

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o perigo, o sintoma do desmoronamento do sistema no qual tudotem lógica, exceto ele próprio, como lembram Deleuze e Guattari(2000).

Fernandinho Beira-Mar não é um estranho. Sua essência estádescortinada e somente por isso é um personagem midiático. Éum comerciante como outro qualquer, com a diferença em queatua num dos ramos mais lucrativos do mundo mercantil, o dedrogas, que movimenta anualmente algo em torno de U$ 500 bi-lhões, sendo menos rentável apenas que o de armas. Como afirmaCoggiola (2004): “Estes são índices objetivos da decomposiçãodas relações de produção imperantes: o mercado mundial, ex-pressão mais elevada da produção capitalista, está dominado,primeiro, por um comércio da destruição e, segundo, por um trá-fico declaradamente ilegal.” Cremos que Coggiola é, apesar desua postura crítica, muito complacente com a lógica capitalista.A decomposição parece, a nosso ver, absolutamente prevista eadequada ao sistema. Para escapar da percepção dessa realidade,há a simulação da decomposição na caça aos “bandidos”. No en-tanto, essa caça, apesar de estar custando muitas vidas, não passade uma farsa.

A sociedade que afirma o “ser” apenas nos negócios consen-tidos, “legais”, engendra o “não ser” do ilegal como duplicaçãoe pratica, desde o seu surgimento, a ilegalidade consentida pelareflexão de conceitos. No entanto, encena ter controle sobre essasatividades que a compõem de forma denegada, como “não ser”que “é”. Falando de Beira-Mar, estamos nos referindo, então, aalguém que domina uma especialidade comercial que, pelo vo-lume de dinheiro envolvido, é fulcral para o funcionamento dosistema do capital. Segundo fontes do United Nations Office onDrugs and Crime (UNODC), algo em torno da metade da cifra ci-tada anteriormente circula no mercado financeiro mundial. Trata-se, inequivocamente, de uma fonte de recursos inestimável para osistema.

O que chama a atenção é o descortinamento essencial dessepersonagem midiático como “mal”. Numa reflexão especular sim-

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ples, podemos aceitar que essa “maldade”, esse “não ser” objeti-vado como “ser”, é apenas algo que a identidade ocidental pos-tula como própria na negatividade. No mundo midiático isso ficapatente, pois é a materialização da sala de espelhos identitária.Beira-Mar é o “mal” por uma escolha feita há muito tempo, muitoantes dele próprio existir ou mesmo desse comércio tão lucrativose tornar a fulgurante realidade que hoje “é” para o mundo capita-lista. Como afirma Malaguti Batista (2003, p. 29), “é no nível doimaginário que se desenvolvem as principais batalhas pela hege-monia política” e, nesse caso, como pontua a mesma autora, to-mando como referência Tzvetan Todorov (1992), “o encontro dacivilização européia com o “outro” exterior se dá no momentoem que a Espanha repudia seu “outro” interior, na vitória sobreos mouros e na expulsão dos judeus”. O Rio de Janeiro, como járelatamos no primeiro capítulo, se caracterizou, a partir do “14 demaio de 1888”, como uma sociedade que gerou a sua identidadepela execração da maior parte de sua população: “o projeto deconstrução da ordem burguesa no país se deparou sempre comoo medo da rebeldia negra” (MALAGUTI BATISTA, idem, p. 36).Beira-Mar é um desses temíveis negros que assolam o imaginá-rio das classes médias cariocas. Nesse nível, sua essência já estátraçada desde que nasceu. Trata-se, então, de um jogo de car-tas marcadas, um “jogo de sociedade”, no qual Beira-Mar nasceucom a marca do “perdedor”.

O Ocidente é um mundo fechado nas suas próprias formas, nasimulação de uma existencialidade plena de essências embutidas.Um mundo convulso, tenso, principalmente porque representa,para si próprio, ser o fim, a definitiva manifestação do humano.Até a ocidentalização do mundo, cada tribo podia se considerar ocentro do mundo e estabelecer uma guerra contra quem não acei-tasse o fato. Com a ocidentalização, não há mais quem não aceiteo fato de sua supremacia. Até mesmo seus inimigos mais ferozessão familiares – o marxismo com sua redução à economia política;Osama bin Laden e os talibãs, patrocinados para se opor à ocupa-ção soviética no Afeganistão; Saddam Hussein, inventado para

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combater os xiitas iranianos; os “bandidos” dos morros cariocas,muito apropriados para dar vazão aos caros produtos do extrema-mente lucrativo mercado das drogas ilegais. Aparentemente, nãohá inimigos externos a ser considerados pelo Ocidente, só os cria-dos pela própria civilização. Que, convenhamos, nem sequer sãoinimigos, mas representam o papel. Assim, o que assistimos noRio de Janeiro, assim como no conflito Estados Unidos x “Ter-ror”, é um jogo de compadres. Não há coluna um ou dois a sercravada. Acertou quem marcou a do meio, o empate. Um zero azero que castiga quem aposta na seriedade deste mundo “tautista”.

O econômico a tudo determina, codifica e decodifica todos ossentidos, manda no jogo, abre e fecha portas, cria e destrói mi-tos, simula a liberdade enquanto essencializa todas as relações,num processo de controle que assume contornos sufocantes. Afi-nal, quando é que a grande imprensa vai começar a achar estranhoque o “aumento da criminalidade” de que fala ocorreu exatamentequando o neoliberalismo se ergueu como a nova ordem? Será quese trata de alguma coincidência? Quando será que os jornalistasvão se interessar pelas grandes somas de dinheiro movimentadaspelos “crimes” oficiais, que espoliam uma grande parcela da po-pulação? A resposta é: nunca. Em parte porque são simplóriosdemais para isso, em parte porque os que não o são não conse-guem espaço na grande imprensa.

A grande imprensa está fechada no seu mundinho de essênciasboas e más, seus heróis e vilões, seu “mundo das idéias” portátile acessível nas leituras matutinas e noszappings. Sua objetivi-dade é pura subjetividade de agenciamento, mas os jornalistas,notadamente os “moguls” e seus editores “castos”, continuam arepetir a mesma ladainha sobre ser “objetivo” e “isento”. Fer-nandinho Beira-Mar é, assim como, por exemplo, Romário, o jo-gador de futebol, um ícone a ser explorado e uma “existência”a ser essencializada. Diria-se, um “homem público”, uma per-sonalidade exposta no supermercado identitário, pronta para serconsumida e subsumida no velho jogo de montar pensamentos,ou de simulá-los, do mundo ideativo que distrai as classes médias

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enquanto lhe são esvaziadas as parcas economias. Em outras pa-lavras, enquanto o cidadão mediano – econômica e culturalmente– se preocupa com os Beira-Mar, os Celsinho da Vila Vintém ouos Gangan da vida, há quem esteja lhes “passando a mão” na pou-pança.

O jogo é finito e a cultura padece no funil do sentido. A infini-tude não pode conviver com as limitações do jogo jogado unica-mente pela vitória. O funk poderia ter promovido uma integraçãomaior entre as classes por essa via, pelo jogo que se joga por pra-zer, fator que, como lembra Hermano Vianna (1988) é exatamentea característica mais marcante dessa manifestação cultural: o êx-tase do momento, a infinitude do gozo da vida sobrepujando afinitude do tempo de duração do baile. No entanto, nada pode serassim na sociedade econômica. Tudo tem que estar amarrado pelaquantificação e nela encerrar o seu sentido. Trata-se, repetimos,de uma aparente objetividade que, no entanto, é plena subjetivi-dade agenciada e agenciadora. A imprensa que o diga. É ela queamarra o sentido e o dissimula.

Contrariando o que dissemos anteriormente, pode-se dizer quenão há charme em Beira-Mar, a não ser para as elites que usama imprensa para forjar o mundo das aparências essenciais. Estas,como já sugerimos, precisam desses personagens para confirmarque o mundo que propõem é, senão o melhor, o único possível. Os“excluídos” nada ganham atribuindo alguma graça ao “bandido”.Assim fazendo, confirmam que a única alternativa é o econômicoe nesse campo estão marcados para a derrota, e o rap tem dis-cursado bem contra esse destino cruel. Para as classes médias, aconsumidora prioritária da informação midiática, a que mais crêna simulação, vivendo-a intensamente, Beira-Mar é mais do quebom ou mau, é a própria imagem da falta de senso de suas vidas.Nesse sentido, até há algum charme no “bandido”. Um charmemórbido, é claro. Mas o que esperar desses que precisam da farsaconsentida para definir a própria identidade? O que esperar dosque aceitam não somente jogar como ajudar a promover um jogo“finito”, mesmo sabendo que serão inapelavelmente derrotados?

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Somente uma coisa se pode esperar, a derrota. Mas, será que po-deria ser diferente?

Fernandinho Beira-Mar preso e isolado no interior de SãoPaulo é a encenação da tragédia de cada indivíduo das classesmédias. Tanto um com o outro “perderam”.

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Capítulo 6

Anexos

Anexo A

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Anexo B

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Anexo C

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Anexo D

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Anexo E

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Anexo F

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Anexo G

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Capítulo 7

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