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O Charme de MadureiraTRANSCRIPT
por JOÃO CARVALHO
Edição 108 > _esquina > Setembro de 2015
Bailes suingados na terra do samba
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Faltavam poucos minutos para as oito e meia da noite de uma segunda-feira, em julho, quando umas três
dezenas de pessoas caminharam apressadas para baixo do viaduto Prefeito Negrão de Lima, em
Madureira, no subúrbio carioca. Ia à frente um rapaz de cabelos curtos, tingidos de castanho-claro e
raspados nas laterais. Tão logo atravessou o portão que dá acesso a uma extensa pista de dança sob o
elevado, Eduardo Gonçalves, de 30 anos, tratou de ir até a área aos fundos, onde ficam os banheiros.
Espetou uma das pontas de um fio desencapado na tomada e emendou a outra a cabos elétricos que saíam
da parede. Estava ligada a caixa de som que – conectada a um celular – embalaria mais uma oficina de
charme do Viaduto de Madureira.
Ao notar que a instalação improvisada por Gonçalves fora bem-sucedida, Lucas Leiroz não perdeu tempo.
O baixinho de 18 anos com piercing no nariz e a cabeça coberta por um boné de tamanho exagerado
organizou os alunos da turma de iniciantes em pequenas fileiras.
Os primeiros movimentos que ele ensinou eram relativamente simples, consistindo apenas em mexer o pé
direito para a frente e para trás. Não demorou muito e a lição ficou mais complexa, combinando os passos
com giros de corpo, ondulações de tronco e gingados de ombros. Leiroz parava a música a todo momento
para retomar uma parte da coreografia ou ensinar outra que viria a seguir. Uma das pausas serviu para
ordenar as fileiras de aspirantes a charmeiros.
“No charme, é importante que as pessoas estejam alinhadas, fazendo as coreografias da dança em
sincronia. Causa um efeito em quem vê”, explicou.
Ele e o amigo Eduardo Gonçalves, a quem chama de “irmão”, são professores da oficina de dança que
começou há um ano e ajudou a consolidar Madureira, tradicional reduto do samba no Rio de Janeiro,
como point do charme na cidade. Também no Dutão – apelido carinhoso usado pelos charmeiros para se
referir ao local – acontece o principal e maior baile do gênero no Rio, aos sábados. Os dois são contratados
pela associação que administra a quadra. Com a ajuda de outros dois professores, recém-admitidos,
orientam os passinhos de 300 alunos, em aulas que acontecem cinco vezes por semana. Leiroz cuida dos
iniciantes, enquanto Gonçalves se dedica às turmas mais avançadas.
Aquadra sob a via elevada surgiu há 25 anos, por iniciativa do bloco carnavalesco Pagodão de Madureira,
que ainda hoje usa o espaço durante o Carnaval. Ali, de certa forma, o charme ganhou uma versão mais
popular.
No final dos anos 80 os bailes charme faziam sucesso no subúrbio do Rio, mas era preciso estar
bem-vestido para frequentá-los. As mulheres usavam salto alto, e os homens, camisas de botão e sapatos
reluzentes de tão engraxados; quem estivesse de jeans ou tênis era barrado na portaria. Incomodados com
a restrição, alguns camelôs do bairro – adeptos de uma indumentária mais informal – queriam encontrar
um lugar onde pudessem dançar à vontade. Atenta à demanda, a diretoria do bloco instituiu o baile do
viaduto e fez a alegria dos ambulantes.
Atualmente, a festa – autointitulada a maior do gênero no Brasil – leva cerca de 2 mil pessoas, todos os
sábados à noite, à pista de dança em declive na parte de baixo do viaduto.
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O espaço, iluminado apenas por lâmpadas de boate, abriga uma alta concentração de penteados black por
metro quadrado. No auge da festa, lá pela uma da manhã, é possível ver boa parte do público – centenas de
pessoas – engajada numa mesma grande coreografia de passinhos.
O gênero musical que embala o público é o rhythm and blues, com suas batidas fortes em ritmo
compassado e vozes bem impostadas, influenciadas pelo gospel. Música dançante, foi chamada de
“charme” pela primeira vez no início dos anos 80, no clube Mackenzie, no Méier, Zona Norte do Rio.
Tocava por lá um certo Corello DJ, que, aproveitando o ocaso do sucesso de ritmos como o soul e a disco
music na cidade, resolveu inovar. Sacou de sua coleção de vinis álbuns de R&B que vinha acumulando ao
longo de anos. E, toda vez que começava uma festa, convidava o público para a pista com a seguinte frase:
“Chegou a hora do charminho, transe seu corpo devagarinho.”
“Seria complicado falar que estava na hora do rhythm and blues”, explicou o DJ, hoje com 61 anos, numa
tarde recente. Ele também fez questão de esclarecer a celebrada diferença entre o charme e o funk. “As
músicas do funk têm uma batida forte, enquanto o charme é mais lento e tem melodia mais refinada. Na
dança, o funk tem um apelo mais sensual. O charme tem raízes no hustle, o estilo dançado por John
Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, só que é mais elaborado.” Gonçalves classifica o charme como
uma dança “social”. “Não se dança o charme sozinho. É preciso – sempre – estar acompanhado”, observou.
A maioria dos alunos da dupla é composta por jovens. Uma exceção é o paraibano Ivanildo Rodrigues, de
42 anos, que mora numa rua logo atrás do viaduto. O homem de cabelos curtos enrolados e aparelho nos
dentes conta que já estava cansado de perder o sono por causa das batidas do baile e se rendeu. Virou
frequentador do Dutão há uns três anos. Já tentou levar a mulher para a festa, mas ela não gostou do
ritmo.
Pergunto se as idas dele ao viaduto não a deixam enciumada. “Deixam, mas na maior parte do tempo eu só
olho. Aqui no viaduto, pra se dar bem com as mulheres, o cara tem que ser pintoso ou saber dançar.”
Apesar das aulas, ele disse que ainda não domina “esses passos rodopiando que o pessoal faz aí”. Eduardo
Gonçalves insiste, porém, que a coisa é menos complicada do que parece.
“O charme é o charme. Como o próprio nome diz, quem dança tem que ter... charme. Às vezes é um
sorriso, um jeito de piscar o olho, um modo de se vestir. A dança acaba vindo só depois”, afirmou,
enquanto ajeitava o cabelo.
Mais: Assista ao filme da NOOTV sobre o Baile Charme de Madureira
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