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O NOVO COLONIALISMO TERCEIRO MUNDO É VENDIDO AOS PEDAÇOS O CEMITÉRIO DAS BALEIAS No Chile, desvendado mistério da morte em massa de cetáceos pré-históricos QUANDO A CIÊNCIA ERA PECADO Como a Inquisição “limpou” as bibliotecas portuguesas O SUOR DA FLORESTA Ele cria um rio que corre sobre nós OÁSIS #188 EDIÇÃO

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O NOVO COLONIALISMO

Terceiro mundo é vendido aos pedaços

O CEMITÉRIO DAS BALEIAS

no chile, desvendado mistério da morte em

massa de cetáceos pré-históricos

QUANDO A CIÊNCIA

ERA PECADO como a inquisição

“limpou” as bibliotecas portuguesas

O SUOR DA FLORESTA

ele cria um rio que corre sobre nós

Oásis#188

edição

2/35OáSIS . Editorial

por

Editor

PEllEgriniLuis

O instituto internacional de Pesquisa da Política de alimentos, base-ado nos Estados Unidos, avalia que entre US$ 20 bilhões e US$ 30 bilhões são gastos anualmente por países ricos na compra de

terras em nações em desenvolvimento. a tendência está se acelerando e o quadro pode se agravar muito mais. todos os países observam uns aos outros e, quando um vê os outros comprando terras, faz o mesmo.”

a preferência dos investidores tem recaído em países para lá de carentes, localizados sobretudo na África, como Camarões, Etiópia, Sudão e Zâm-bia. Caracterizados pela miséria da população e por governos em geral ditatoriais ou autoritários, nos quais a corrupção corre solta, esses países podem assistir, no futuro, a uma situação paradoxal, antevista pela onU: enquanto estoques imensos de produtos agrícolas cultivados em suas terras são embarcados para outros destinos, seus habitantes sofrem com a fome.

Enquanto EstoquEs imEnsos dE produtos agrícolas cultivados Em suas tErras são

Embarcados para outros dEstinos, os habitantEs dE vários paísEs pobrEs sofrEm com a fomE. É o

novo colonialismo Em ação

OáSIS . Editorial

por

Editor

PEllEgriniLuis

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os números referentes às aquisições de terras em países pobres por parte de países mais endinheirados são impressionantes. a Coreia do Sul adquiriu 690 mil hectares no Sudão; a arábia Saudita abocanhou 500 mil hectares na tanzânia; os Emirados Árabes Unidos, 324 mil hectares no Pa-quistão. a Índia emprestou dinheiro para 80 de suas companhias compra-rem 350 mil hectares em países africanos. Sem falar nas aquisições feitas por empresas e por conglomerados multinacionais privados.

o pior de tudo, como explica Eduardo araia em nossa matéria de capa, é que os cidadãos desses países pobres pouco ou nada ganham com isso. tudo se passa nas altas esferas dos governos e das empresas, e o dinheiro que corre acaba indo mesmo é para os bolsos dos senhores do poder...

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O NOVO COLONIALISMO Terceiro mundo é vendido aos pedaços

OáSIS . rEPortagEm

m janeiro de 2009, Madagascar – ilha na costa leste da África famosa por ser o lar dos lêmures – foi aba-lada por manifestações contra o go-verno do presidente Marc Ravaloma-nana. Mais de 170 pessoas morreram antes que ele renunciasse. Entre as

malfeitorias de que o presidente era acusado estava um negócio pelo qual o conglomerado industrial sul-coreano Daewoo arrendaria por 99 anos 1,3 milhão de hectares de terras malgaxes (13 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase metade do solo arável do país e a pouco menos de 60% da área de

Edesde a última grande crise alimentar, governos e empresas de nações ricas têm comprado ou arrendado terras férteis de países em desenvolvimento, em especial na áfrica. benefícios desses negócios para as populações locais? poucos ou nenhum

Por Eduardo araia

Sergipe) a fim de plantar milho e dendê. Detalhes adicionais: a maior parte das ter-ras negociadas é “primitiva” – em outras palavras, floresta tropical intocada – e o retorno para a população local viria apenas por meio da criação de um limitado núme-ro de empregos na Daewoo. Uma das pri-meiras medidas do novo presidente, Andry Rajoelina, foi revogar o acordo com os sul--coreanos.

A deposição de Ravalomanana foi a face-ta mais visível de um problema derivado da crise dos alimentos de 2007/2008 que inquieta a comunidade internacional: a compra ou arrendamento, por governos e empresas de países ricos, de terras férteis em nações em desenvolvimento, escolhi-das em geral por serem bem abastecidas com água e estarem próximas de portos ou outros centros de escoamento. Segundo relatórios divulgados em 2009 pela ONU e por analistas norte-americanos, ingleses e indianos, pelo menos 30 milhões de hec-tares (300 mil km2, pouco mais do que a soma dos territórios do Paraná e de Santa Catarina e equivalente a 75% de toda a ter-ra arável da Europa) estão sendo ou foram adquiridos no mundo por empresários ou governantes de países que enfrentam con-dições climáticas adversas ou escassez de terras cultiváveis e dispõem de muito di-nheiro em caixa, como China, Coreia do

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Sul, Suécia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Tendência está se acelerando

O Instituto Internacional de Pesquisa da Política de Alimentos, baseado nos Estados Unidos, avalia que en-tre US$ 20 bilhões e US$ 30 bilhões são gastos anual-mente por países ricos na compra de terras em nações em desenvolvimento. E o quadro pode se agravar mui-to mais, salienta Olivier De Schutter, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação: “[A tendência] está se acelerando rapidamente. Todos os países ob-servam uns aos outros e, quando um vê os outros com-prando terras, faz o mesmo.”

Algumas das nações nas quais há terras para vender já têm certa importância no contexto agrícola mundial, como Brasil, Rússia e Ucrânia. Nesses lugares, porém, a simples procura já serve para elevar os preços das propriedades e dificultar os negócios. A preferência dos investidores tem recaído em países para lá de ca-rentes, localizados sobretudo na África, como Cama-rões, Etiópia, Sudão e Zâmbia. Caracterizados pela miséria da população e por governos em geral ditato-riais ou autoritários, nos quais a corrupção corre solta, esses países podem assistir, no futuro, a uma situação paradoxal, antevista pela ONU: enquanto estoques imensos de produtos agrícolas cultivados em suas ter-ras são embarcados para outros destinos, seus habi-tantes sofrem com a fome.

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Bersalheiros italianos na Líbia

África ocidental

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atenção. A sueca Alpcot Agro, por exemplo, arrema-tou 120 mil hectares na Rússia; a sul-coreana Hyundai investiu US$ 6,5 milhões para conseguir participação majoritária na Khorol Zerno, que possui 10 mil hecta-res na Sibéria Oriental; o banco norte-americano Mor-gan Stanley adquiriu 40 mil hectares na Ucrânia.

Crise alimentar incrementou o neocolonialis-mo

De Schutter observa que o movimento em busca de terras aráveis se intensificou depois que, com a crise alimentar de 2007/2008, vários países descobriram o severo impacto na balança de pagamentos causado pe-las importações de alimentos. O quadro os levou, en-tão, a trabalhar para “se garantir”. Mas isso, segundo

O agrocolonialismo já apresenta números impressio-nantes. A Coreia do Sul adquiriu 690 mil hectares no Sudão; a Arábia Saudita abocanhou 500 mil hectares na Tanzânia; os Emirados Árabes Unidos, 324 mil hec-tares no Paquistão. A Índia emprestou dinheiro para 80 de suas companhias comprarem 350 mil hectares em países africanos.

As aquisições feitas por empresas também chamam a

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Campanha anticolonialista na rússia Neocolonialismo é sinônimo de roubo

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insustentável. “A terceirização da produção agrícola garantirá segurança alimentar para os países investi-dores, mas deixará atrás de si um rastro de fome, ina-nição e escassez alimentar para as populações locais”, afirmou Devinder Sharma, analista do Fórum de Bio-tecnologia e Segurança Alimentar na Índia. “A conta ambiental da agricultura altamente intensiva – solos devastados, aquíferos secos e ecologia arruinada por infestações químicas – será deixada para o país anfi-trião pagar.”

Um relatório divulgado em 2009 pelo Instituto Inter-nacional de Ambiente e Desenvolvimento, baseado em Londres, apresenta os negócios com terras como fon

o representante da ONU, funciona como especulação, aposta em preços futuros, já que a população mundial deve crescer cerca de 50% até 2050, e certamente pre-cisará se alimentar. “Sabemos que a volatilidade cres-cerá nos próximos anos”, afirma De Schutter. “Os pre-ços das terras continuarão a subir.”

Ele acrescenta que aproximadamente 20% dessas compras devem ser destinadas ao cultivo de vegetais para biocombustíveis. “Mas é impossível saber ao cer-to, porque as declarações não são feitas com relação a quais plantas serão cultivadas”, declarou.Mais grave do que isso é a perspectiva de que os novos donos e arrendatários das terras usem-nas de maneira

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Mapa Mundi do colonialismo em 1945

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tes de “riscos e oportunidades”. Os autores ponderam: “Investimentos ampliados podem trazer benefícios tais como o crescimento do Produto Interno Bruto e recei-tas governamentais mais robustas, e podem criar opor-tunidades para o desenvolvimento econômico e me-lhora no padrão de vida. Mas podem resultar na perda de acesso dos habitantes locais aos recursos dos quais dependem para sua segurança alimentar – particular-mente enquanto alguns países-chave que receberão os

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alimentos estão, eles próprios, às voltas com seus desa-fios de segurança alimentar.”

Uma saída para isso seria os países que cedem suas terras optarem por contratos de produção. Nesses ca-sos, os investidores estrangeiros entrariam com a tec-nologia e o capital, enquanto os agricultores locais, cultivando terras próprias ou arrendadas, produziriam grãos ou outros vegetais a preços fixos. Mas essa fór-mula, defendida por especialistas como De Schutter e Jean-Philippe Audinet, do Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (Ifad), não interessa aos novos investidores. Os planos destes, no geral, são bem claros: além de segurança, controle absoluto do meio produtivo e grandes margens de lucro. Para os habitantes locais, nada ou migalhas. Como se vê, o es-pírito colonialista do homem não desapareceu no sécu-lo 20 – só havia entrado em estado de hibernação.

Caricatura do século 19, mostra a inglaterra, alemanha, rússia, França e Japão (da esquerda para a direita) repartindo a China

Colosso de rodes colonialista, caricatura do século 19

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Entre a fartura e a miséria

O Sudão vive um estado de guerra civil há anos e é governado por um ditador condenado pelo Tribunal Penal Internacional, mas a instabilidade decorrente disso não assusta os investidores agrícolas. O maior país da África em área já negociou 1,5 milhão de hec-tares de terras férteis para a Coreia do Sul, o Egito e os Emirados Árabes Unidos por 99 anos. Enquanto isso, porém, o Sudão aparece como o maior recebedor mundial de ajuda internacional – 5,6 milhões de seus cidadãos dependem do envio de alimentos.

Neocolonialismo, caricatura de Jong Preang

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Generosidade a perder de vista

Negociações envolvendo um patrimônio tão importan-te quanto as terras férteis de um país deveriam, su-postamente, estar cercadas de cuidados e precauções. Não é essa a aparência transmitida por declarações e atos de autoridades de alguns dos países que põem áreas de cultivo à disposição do mercado pós-crise alimentar de 2007/2008. Há alguns anos, o primeiro--ministro da Etiópia declarou que seu governo estava “ansioso” para oferecer acesso a centenas de milha-res de terras agrícolas. Em meio a uma guerra com o Taleban, o Paquistão ofereceu milhares de hectares a xeques dos Emirados Árabes Unidos, prometendo aos interessados redução de impostos, isenção de leis tra-balhistas e o envio de 100 mil membros de suas forças de segurança para proteger as propriedades de es-trangeiros.

Em sua busca frenética por investidores, países afri-canos têm baixado os preços de suas terras em relação à concorrência, assinala Olivier De Schutter, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação. Segun-do ele, alguns contratos que envolvem centenas de mi-lhares de hectares de terra mal chegam a três páginas de extensão. Embora mencionem os produtos a serem cultivados, o local e o preço da compra ou arrenda-mento, tais acordos não tratam de nenhuma norma ambiental, de investimentos necessários em contra-partida ou da criação de empregos.

Transações nebulosas

Alguns dos negócios com terras acertados nos últimos anos

Fontes: International Food Policy Research Institute (IFPRI), Der Spiegel

País

cessor País investidor Terras cedidas (em hectares)

Camboja Kuwait 130.000 Filipinas Bahrein 10.000 Filipinas Coreia do Sul 94.000 Sudão Jordânia 25.000

Paquistão Emirados Árabes Unidos (com entidades privadas) 324.000

Quênia Catar 40.000 Tanzânia Arábia Saudita 500.000

Sudão Coreia do Sul (com entidades privadas) 690.000

Sudão Jordânia 25.000 Tanzânia Arábia Saudita 500.000 Uganda Egito 840.000

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IMA

LO CEMITÉRIO DAS BALEIASNo Chile, desvendado mistério da morte em massa de cetáceos pré-históricos

Paleontólogos trabalham em Cerro Ballena, sob o sol inclemente

do deserto de atacama

OáSIS . animal

localidade agora conhecida como Cerro Balena fica no norte do Chile, no deserto de Atacama, perto da cidade portuária de Cal-dera. Em 2010, a expansão da au-toestrada pan-americana naquela região levou à descoberta de um

grande sítio paleontológico. Nele, um grupo de cientistas descobriu mais de 40 esquele-tos de mamíferos marinhos pré-históricos.

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no passado remoto, quando o deserto de atacama, no chile, era fundo de mar, aconteceram ali enormes mortandades de cetáceos e outros animais marinhos que morreram quase ao mesmo tempo. o mistério acaba de ser revelado. o vilão foi uma toxina do tipo maré-vermelha que, ainda hoje, prolifera em nossos oceanos

Por: EquiPE oÁsis. Fotos: sMithsoNiaN iNstitutioN

Esses fósseis representam os vestígios de pelo menos quatro episódios de morte massiva de baleias e de outros mamíferos marinhos em antigas praias do Miocênico Superior, há cerca 7 milhões de anos, o que sugere que esses desastres tiveram uma natureza semelhante e repetitiva. Entre os achados mais espetaculares está uma intei-ra família de baleias, com macho, fêmea e o filhote, todos juntos.

Três anos de investigação culminaram na identificação da causa mais provável para esses enigmáticos eventos: Nos oceanos, o único possível culpado por mortandades deste gênero são as algas unicelulares, al-gumas das quais são altamente tóxicas. Em algumas ocasiões, quando ocorre uma pro-liferação excessiva dessas algas, esses mi-núsculos organismos produzem uma molé-cula extremamente tóxica, capaz de matar em pouco tempo qualquer animal que delas engula uma grande quantidade. Exa-tamente como o fazem as baleias e outros animais marinhos. Com efeito, nos fósseis foram encontradas minúsculas esferas de dimensões similares às das algas.

Em expressão científica, o fenômeno é cha-mado de “florescências de dinoflagelados produtores de toxinas”. É comum e rela-tivamente frequente até hoje, e uma das suas manifestações são as chamadas “ma

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rés vermelhas”. O trabalho resultou de uma cooperação entre a Instituição Smithsonian, nos EUA, e cientistas da Universidade do Chile, e foi publicado há pouco na revista Proceedings of the Royal Society B.

Entre os fósseis descobertos encontram-se dúzias de esqueletos completos de espécies extintas de baleias--corcundas e de cachalotes, bem como vestígios de outros mamíferos marinhos, incluindo um golfinho pré-histórico extremamente raro pertencente ao gêne-ro Odobenocetops, e uma antiga preguiça marinha da espécie Thalassocnus natans. Os investigadores iden-tificaram ainda dentes de Carcharodon hastalis, um gigantesco tubarão muito comum nas épocas do Miocê-nico e do Pliocênico, e restos fossilizados de pinguins, peixe-espada e de outros peixes ósseos predadores. “[Foram identificados] pelo menos 10 tipos diferentes de animais marinhos, recorrentes em quatro camadas diferentes”, afirmou Nicholas Pyenson, investigador da Smithsonian e primeiro autor deste trabalho. “Isso exi-gia uma explicação.”

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Posição intrigante

O que mais intrigou os investigadores foi a forma como os esqueletos estavam posicionados. “As baleias--corcundas estavam, na sua maioria, de barriga para cima, e as baleias apenas ficam de barriga para cima se chegarem a algum sítio já mortas”, disse Pyenson. “Isto é um cemitério, não é o local do crime – o crime aconteceu noutro local.” Os esqueletos apresentavam ainda uma orientação semelhante, com a cabeça dire-cionada no sentido contrário ao do mar, o que dá mais

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Fósseis de vários cetáceos extintos fazem parte do acervo de Cerro Ballena

Em área protegida, técnicos reconstroem os fósseis com

o uso de técnica laser

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togênicos tendem a ser mais específicos, pelo que não serviam para explicar a diversidade de animais encon-trada em Cerro Ballena.

“Percebi que existia apenas uma única boa explicação: florescências de algas nocivas”, disse Pyenson. Quando as condições são favoráveis, as microalgas proliferam em grandes massas, disponibilizando grandes quanti-dades de nutrientes para os organismos situados nos degraus superiores da cadeia trófica. Os dinoflagela-dos encontram-se entre os grupos de microalgas mais comuns nos oceanos e podem produzir florescências muito exuberantes conhecidas por marés vermelhas.

consistência à hipótese dos animais terem morrido no oceano, antes de serem arrastados para a praia. A distribuição dos fósseis em quatro camadas distintas sugere que as mortes resultaram não de uma catástro-fe isolada, mas sim de quatro mortandades ocorridas num período de 5 a 16 mil anos.

A equipe investigou vários fenômenos que pudessem explicar tamanha mortandade, desde tsunâmis até surtos de vírus. No entanto, nenhuma dessas hipóte-ses encaixava nas observações. Os investigadores não encontraram quaisquer evidências geológicas de tsu-nâmis nos sedimentos analisados, e os fósseis estavam em excelentes condições. Os vírus e outros agentes pa-

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os novos trechos da autostrada Panamericana passam a poucos metros de alguns fósseis

o trabalho de reconstrução a laser envereda noite adentro

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também por efluentes ferruginosos provenientes de encostas ricas em depósitos de ferro, localizadas nos Andes.

Análises realizadas dos sedimentos de Cerro Ballena mostram a presença de finos depósitos tingidos com óxidos de ferro, bem como de esférulas de apatite com dimensões semelhantes às dos cistos de dinoflagela-dos. A equipe planeja ainda regressar ao local na busca de provas ainda mais convincentes que apoiem esta sua hipótese. Enquanto isso, em Cerro Ballena, os fós-seis permanecem na superfície, à beira da Estrada Pa-namericana...

Algumas espécies de dinoflagelados produzem toxinas extremamente potentes, que são concentradas ao lon-go da cadeia trófica, podendo causar a morte de peixes e de outros animais, incluindo o homem.

Estas florescências podem surgir como consequência da atividade humana, como por exemplo, descargas de efluentes ricos em nutrientes inorgânicos. No entanto, grande parte é desencadeada pelo enriquecimento sa-zonal das águas com nutrientes como o ferro, minerais trazidos pelas correntes oceânicas ou pela lixiviação de depósitos naturais presentes nos continentes. Curio-samente, a produtividade das águas junto à costa chi-lena, nas proximidades de Cerro Ballena, é fortemente moldada não só pelas correntes de afloramento costei-ro, ou upwelling (correntes ricas em nutrientes), como

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Extraordinária abundância de fósseis em Cerro Ballena

Paleontólogo organiza e classifica fósseis de tamanho menor

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RIAQUANDO A CIÊNCIA ERA PECADO

Como a Inquisição “limpou” as bibliotecas portuguesas

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“borracha” da censura nos sécu-los 16 e 17 era a tinta ferrogálica. Se estivesse muito concentrada, a tinta utilizada para expurgar tex-tos de uma obra podia queimar o papel. Se fosse em menor quanti-dade, as palavras censuradas vol-

tavam a ser legíveis. De qualquer forma, esta vertente da Inquisição afetava a leitura das obras, dando-lhes uma conotação insidiosa

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reunidos em lisboa, estudiosos investigam o efeito devastador da censura da inquisição sobre os livros científicos existentes nas bibliotecas portuguesas durante os séculos 16 e 17. para eles, esse efeito perdura até os dias de hoje na cultura do país

Por: NiCoLau FErrEira, do sitE PúBLiCo, LisBoa (httP://www.PuBLiCo.Pt/)

de pecado e culpa. A literatura técnica e científica em Portugal não escapou a esse controle, como no caso dos livros de Ama-to Lusitano, médico judeu português que fugiu da Península Ibérica.

“Qualquer expurgação perturba a con-fiança na leitura de livros de ciência - um ato que passa pelo desejo de querer saber mais”, defende Hervé Baudry, do Centro de História da Cultura da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida-de Nova de Lisboa. O efeito que a censura teve no desenvolvimento científico e cul-tural do país é ainda difícil de contabili-zar, diz o historiador francês, orador num workshop sobre as bibliotecas e os livros científicos dos séculos 15 a 18 na Bibliote-ca Nacional, em Lisboa. Mas Hervé Bau-dry está apenas no início de um projeto de investigação sobre aquilo a que chama de “biblioteca limpa”, ou seja, a expurgação de livros dos séculos 16 e 17.

Como acontecia a censura

O francês analisou a censura em 105 exem-plares de cinco obras de medicina, que es-tão em bibliotecas do país, e sistematizou a forma como decorreu a censura da Inqui-sição, um trabalho inédito em Portugal. As obras analisadas eram de quatro autores: os portugueses Amato Lusitano e Gonçalo

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Cabreira, cirurgião contemporâneo de Lusitano, e dos espanhóis Andrés Laguna, médico humanista que se dedicava especialmente à farmacologia e botânica, e Oliva Sabuco, filósofa e médica.

“Essa censura foi eficaz, sistemática, tinha um lado ro-tineiro”, explica. Os responsáveis pela expurgação não se viam como “donos” dos livros que “limpavam”, se-guiam uma lista de passagens proibidas.

Assim, nos textos médicos apareciam riscadas datas judaicas, casos médicos sobre sexualidade na Igreja ou dizeres que acompanhavam receitas medicinais tradi-cionais. “A censura é a resposta técnica, formal [da In-quisição] ao crescimento enorme do livro como veículo

da heterodoxia”, salienta Hervé Baudry.

Na segunda metade do século 15 foram impressos na Europa entre 15 a 20 milhões de livros. No século se-guinte, este valor multiplicou-se por 10. Apesar de os autos da fé serem os rituais mais conhecidos da Inqui-sição, e o seu lado mais sangrento, em que “hereges”, desde judeus a sodomitas, eram mortos na fogueira, a censura livresca era intensa.

Havia listas de livros de autores proibidos, mas tam-bém havia o Índex Expurgatório, onde passagens de muitos outros livros deviam ser cortadas. Entre elas estavam as obras de Amato Lusitano, Sete Centúrias

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de revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico. Curiosamente, essa obra não foi censurada pela inquisição

Livro censurado pela inquisição em Portugal

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de Curas Medicinais e Matéria Médica de Dioscórides; de Gonçalo Cabreira, Tesouro de Pobres; outra de An-drés Laguna, Pedacio Dioscorides; e a quinta de Oliva Sabuco, Nueva Filosofia de La Naturaleza del Hombre. “Nas bibliotecas, quando estas obras foram publicadas e lidas nos séculos 16 e 17, foram todas controladas. Quem lia sabia que estava penetrando em terreno mi-nado”, diz o investigador, considerando que um dos efeitos era um clima de medo psicológico na sociedade.O impacto que a expurgação teve na cultura científi-ca portuguesa é difícil de avaliar. É preciso ver livro a livro. A obra Sete Centúrias de Curas Medicinais, onde o famoso médico português relatou casos de medicina, é o exemplo de um livro bastante censurado.

Amato Lusitano era judeu, estudou na Espanha e teve de fugir da Península Ibérica para manter a sua fé. Nas Centúrias, as datas hebraicas foram cortadas. Há casos médicos sobre sexualidade descritos por Amato Lu-sitano que são censurados só por estarem associados à Igreja, explica Hervé Baudry. Um exemplo de uma passagem totalmente expurgada listada no Índex dizia respeito a uma freira grávida. “Uma freira, daquelas que vivem em religião longe da multidão, sentia-se mal, dizendo que alguma coisa se mexia na barriga dela. (...) Na realidade, esta mulher engravidara de sê-men viril depois de ter ficado no banho”, lê-se no ori-ginal.

Alguns textos não foram tocados

Noutro caso, que Hervé Baudry diz não estar nas listas oficiais de expurgação, é censurado o comentário de

Estátua em homenagem ao médico e cientista amato Lusitano, em Lisboa

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disciplinas, como a física, a história natural ou o direi-to, para se ter uma visão global.Há, por outro lado, textos que não foram tocados. É o caso da obra emblemática De revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico, onde o astrônomo polonês expõe, em 1543, a teoria heliocêntrica (na épo-ca, a Igreja defendia que era o Sol que girava em volta da Terra).

Os exemplares desta obra em Portugal e na Europa, diz o historiador de ciência Henrique Leitão, não apre-sentam atos de censura. “As obras que eram muito

Lusitano sobre a gravidez entre duas mulheres. Mas a narrativa do caso em si não está riscada: “Duas mulhe-res turcas vizinhas, em virtude de muitos atos de coito, íncubos e súcubos, contaminavam-se e poluíam-se. Uma era viúva e a outra tinha marido. (...) Neste tra-balho do coito e abraços, o útero da viúva súcuba sor-veu (...) não só o sêmen da mulher íncuba, mais ainda algum sêmen viril deixado antes no útero dela. Em virtude deste sêmen ficou prenhe.”

Os efeitos diretos na discussão científica da época des-te tipo de censura não são certos. Os livros que Hervé Baudry estudou só diziam respeito a casos médicos, mas o historiador argumenta que é impossível a cen-sura não alterar a sociedade, principalmente ao durar séculos, mas é necessário estudar as obras de outras

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Primeira edição, de 1587, do livro Nova Filosofia da Natureza, da médica e filósofa oliva sabuco. a obra foi severamente censurada pela inquisição

Membros da juventude do Partido Nazista promovem queima de livros censurados. salzburgo, Áustria, abril de 1938

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pouco consultadas, por serem muito técnicas e só esta-rem acessíveis aos especialistas, muitas vezes não apre-sentam as expurgações exigidas”, infere o investigador, do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT) de Lisboa e um dos organiza-dores do workshop.

O inventário dos inventários

Sabe-se muito pouco sobre a cultura científica portu-guesa dos últimos 500 anos, por que é que a sua pro-dução foi escassa e sem nomes proeminentes, com poucas exceções como a do matemático Pedro Nunes. A análise do lugar do livro científico permitirá compre-ender essa situação. “O livro tem um papel absoluta-

mente central no estabelecimento da cultura científica. Não só acumula como transmite informação. Serve como ponto de junção de pessoas, catalisa fenômenos sociais”, explica Henrique Leitão.

Na conferência, o investigador falou do livro científico em Portugal, partindo de um “paradoxo”: a obsessão historiográfica em tentar compreender as causas do fracasso de Portugal em alcançar a modernidade, ao mesmo tempo que neste esforço a história da ciência é ignorada, uma falha que o investigador tenta preen-cher. “Não há nenhuma noção de modernidade que não passe pela ciência. Acho estranho que os historia

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No mesmo período em que livros científicos eram censurados, pessoas acusadas de bruxaria eram queimadas vivas em praça públicailustração da queima de livros considerados heréticos

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revelar os círculos da cultura científica portuguesa e pode ajudar a perceber por que é que a modernização falhou.

“Nas coleções da Biblioteca Nacional, reparamos que os exemplares tinham marcas de posse de antigos con-ventos”, diz Luana Giurgevich. Foi assim que nasceu esta ideia de fazer ‘um inventário dos inventários’ des-sas coleções, até agora inexistente, para ‘saber os hábi-tos de leitura’ e ver ‘que tipo de ciência está associada a que tipo de ordem”.

Ainda preliminares, os resultados (que serão publica-dos pela Biblioteca Nacional) indicam que haveria, nas 200 bibliotecas alvo da pesquisa, centenas de milhares de livros entre os séculos 16 e 18. A biblioteca do Mos

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Livro censurado pela inquisição em Portugal

dores andem em torno da questão da modernidade e depois não deem atenção à ciência. Um paradoxo da historiografia portuguesa.”

Henrique Leitão e Luana Giurgevich, investigadora ita-liana também do CIUHCT, estão finalizando a primeira etapa do levantamento de todos os livros nas bibliote-cas portuguesas desde o século 16 até 1834, quando fo-ram extintas as ordens religiosas masculinas. Essas bi-bliotecas, cujos catálogos foram um instrumento-chave de pesquisa, pertenciam principalmente a mosteiros e conventos. Em algumas, os catálogos foram feitos por vontade própria, a maioria foi uma exigência do Mar-quês de Pombal. Quase todos os livros estão perdidos, mas saber o que existia em cada lugar pode ajudar a

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Leitão, recém-eleito mem-bro efetivo da Academia Internacional de História das Ciências. “Até agora, o trabalho [na história da ciência] foi a análise de texto. Mas é muito interes-sante estudar as práticas de leitura. Quem eram os colecionadores de livros? Quem os lia? Como eram conseguidos? Temos de passar dos textos para as instituições e para a práti-ca a nível social.”

Naquela altura, surgiram grandes pensadores, gente que revolucionou a ciên-cia como Isaac Newton.

Ao contrário de Portugal, é conhecida a cultura cien-tífica da Real Sociedade de Londres na altura, quando Newton publicou o seu Principia em 1687, onde enun-ciou as três leis da mecânica clássica.

“Na Real Sociedade de Londres, um grupo de cava-lheiros reunia-se para fazer experiências”, conta ou-tro orador no workshop, o britânico Adrian Johns, da Universidade de Chicago, nos EUA. “Era a primeira vez que um grupo de pessoas se intitulava ‘de filósofos experimentais’ e utilizava consistentemente a filosofia para chegar a uma prática experimental”, diz o histo-riador da ciência.

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teiro de Santa Maria de Alcobaça, com cerca de 16 mil volumes, era das mais completas.Os livros científicos podiam chegar entre 8 a 10% de algumas coleções. Noutras eram praticamente ausen-tes. Mas este trabalho mostrou que a maioria dos livros de ciência do século 16 existia em Portugal. O seu uso é desconhecido.

Fragilidade das instituições científicas

“Temos de fazer a radiografia dos grandes coleciona-dores de livros científicos”, diz por sua vez Henrique

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Esses senhores alimentavam as suas experiências cien-tíficas com leituras e discussão constantes. Em reuniões debatiam as leituras, os resultados das experiências e propunham novos procedimentos expe-rimentais. “Esses protocolos de leitura não eram natu-rais, tinham de ser aprendidos e deram origem a uma investigação científica contínua”, diz o britânico. Do pouco que se conhece, o cenário seria muito diferente em Portugal. “Não vemos verdadeiras discussões cien-tíficas”, diz Henrique Leitão. “Rapidamente elas se tor-navam disputas retóricas pessoais e o conteúdo cientí-fico perdia-se.”

Para o historiador português, esse problema passa pela “fragilidade das instituições científicas”, em que uma educação de má qualidade tem um efeito “devastador” na ciência e na modernidade: “Há um conjunto com-plexo de questões que tem de ser estudado aos poucos. Vamos tentar perceber este problema secular. Não pode ser uma razão conjectural. Vemos isso ainda hoje, quando as performances das universidades portugue-sas são uma vergonha, a não ser em algumas poucas honrosas exceções”.

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O SUOR DA FLORESTAEle cria um rio que

corre sobre nós

TER

RA

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ientista de renome internacional, o brasileiro Antonio Donato Nobre investiga os sistemas naturais da Amazônia. Seu trabalho ilustra a bela e imensa complexidade dessa região, bem como a sua fragilidade diante das atuais mudanças do cli-ma global.

C

antonio donato nobre estuda as interações entre as florestas e a atmosfera. sua pesquisa mostrou que há verdadeiros rios de vapor correndo sobre a floresta amazônica e levando umidade para boa parte do continente. graças a esses rios, a américa do sul não é um deserto como a áfrica. sua pesquisa revela a fragilidade das florestas diante das atuais mudanças climáticas e o risco que corremos se as perdermos

tradução: tEd oPEN traNsLatioNrEvisão: LEoNardo siLva

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Antonio Donato Nobre vê a natureza como uma sinfonia muito bem orquestrada. Cien-tista do Instituto Nacional para a Pesquisa Espacial (INPE) e pesquisador sênior do Instituto Nacional da Pesquisa Amazônica (INPA), ele estuda o solo, a hidrologia e a bio-química da Amazônia com o objetivo de au-mentar nossos conhecimentos a respeito dos complexos sistemas integrados daquilo que ele chama de “maravilha geológica”, a Amazô-nia. Donato Nobre dedica-se particularmente à compreensão das interações entre a floresta e a atmosfera, e de como “o suor da floresta”, a transpiração das árv ores, forma uma gi-gantesca corrente que se desloca carregando umidade para outras regiões da América do Sul e do mundo. Seu estudo “O futuro climá-tico da Amazônia” sintetiza o que se sabe hoje a respeito do delicado equilíbrio ecológico naquela região, e o grande risco que corremos de perdê-la por completo.

Vídeo integral da conferência de Antônio Donato Nobre ao TED

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Tradução integral da conferência de Antônio Donato Nobre ao TED

O que vocês acham? [Para] quem viu a memorável palestra de Sir Ken, no TED, eu sou um típico exemplar do que ele descre-ve: “Um corpo carregando uma cabeça”. Professor universitá-rio, né? E vocês poderiam achar que é uma covardia me colo-car, depois dessas duas primeiras apresentações, para falar de ciência. Não consigo balançar meu corpo no ritmo. E depois de um cientista que se tornou filósofo, eu tinha que falar da ciên-cia pura. Poderia ser um tema muito árido e, no entanto, eu me sinto agraciado. Nunca na minha carreira; e já vai longe a mi-nha carreira; eu tive a oportunidade de começar uma palestra com tamanha inspiração, como esta.

Normalmente, falar de ciência é como se exercitar numa terra árida. No entanto, eu tive a felicidade de ser convidado para vir aqui falar sobre água. E “água” e “árido” não combinam, né? Melhor ainda, falar sobre água na Amazônia, que é um berço esplêndido de vida, né? Fresca. Então, é o que me inspirou. Por isso estou aqui, apesar de estar carregando a minha cabeça aqui, “malemá”, eu estou aqui tentando, vou tentar, transmi-tir essa inspiração. Espero que a história os inspire, que vocês multipliquem.

A gente sabe que há controvérsia -- a Amazônia é o pulmão do mundo, né? -- pelo poder que ela tem de trocar massivamente gases vitais -- a floresta com a atmosfera. A gente também es-cuta falar do celeiro da biodiversidade. Embora muitos acredi-tem nisso, poucos conhecem. Se vocês saírem aqui fora, nesse igapó, vocês vão se maravilhar com a... Vocês quase não con-seguem ver os bichos. Os índios dizem: “Na floresta, tem mais olhos do que folhas.” E é real, e eu vou tentar mostrar alguma coisa para vocês.

Hoje, eu trouxe uma outra abordagem aqui, uma aborda-

gem em que, inspirado por essas duas iniciativas aqui, uma harmônica e outra filosófica, eu vou tentar colocar a abordagem que é um pouco material, mas ela tenta transmitir também que existe, na natureza, uma filosofia e uma harmonia extraordinárias. Não vai ter música na minha apresentação, mas eu espero que vocês vejam a música da realidade que eu vou mostrar. [Vou] falar de fisiologia -- não é pulmão, é de outras analogias com a fisiologia humana e, principalmente, o coração. A gente começa... pensando que a água é como o sangue. A circu-lação no nosso corpo leva o sangue fresco, que alimenta, que nutre e que sustém, e traz de volta o sangue usado, para ser renovado. Na Amazônia, ocorrem coisas muito semelhantes. E a gente começa falando sobre o poder de todos esses processos.

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o cientista antonio donato Nobre durante palestra no tEd

Tradução integral da conferência de Antônio Donato Nobre ao TED

Isso aqui é uma imagem, em movimento, das chuvas. E o que vocês estão vendo ali são os anos passarem a cada segundo. As chuvas no mundo inteiro. E o que vocês veem? Que a região equatorial, em geral, a Amazônia em particular, é enormemente importante para o clima do mundo. É um motor poderoso. Existe aqui uma atividade frenética em relação à evaporação. Se a gente olhar outra imagem, que mostra os fluxos de vapor de água, o que é preto ali é ar seco, o que é cinza é ar úmido e o que é branco são nuvens. Vocês veem ali um ressurgimento extra-ordinário na Amazônia. Que fenômeno -- se não é um deserto, que fenômeno faz com que a água jorre do solo para a atmosfe-ra, com tamanho poder, que a gente vê do espaço? Que fenôme-no é esse? Poderia ser um gêiser. O gêiser é a água subterrânea

aquecida pelo calor do magma, que explode para a at-mosfera, transfere essa água para a atmosfera. Nós não temos gêiseres na Amazônia, a menos que eu me engane. Eu não sei se alguém conhece algum. Mas nós temos algo que faz o mesmo papel, mas com muito mais elegância: são as amigas e benfazejas árvores, que, assim como os gêiseres, conseguem transmitir uma quantidade enorme de água do solo para a atmosfera.

São 600 bilhões de árvores na Amazônia, 600 bilhões de gêiseres. E isso com uma sofisticação extraordinária. Não precisam do calor do magma. Usam a luz do Sol para fazer esse processo. Então, em um dia, um típico dia en-solarado na Amazônia, uma árvore grande chega a pro-duzir mil litros de água através da sua transpiração. Mil litros. Se você pegar toda a Amazônia, que é uma área muito grande, e você somar toda essa água que está sen-do transpirada -- é o suor da floresta --, você chega num número extraordinário: 20 bilhões de toneladas de água. Vocês sabem -- isso em um dia. Vocês sabem quanto é isso? O rio Amazonas, o maior rio da Terra, um quinto de toda a água doce que sai dos continentes no mundo in-teiro e que chega nos oceanos, despeja 17 bilhões de to-neladas de água por dia no Oceano Atlântico. Esse rio de vapor, que sai da floresta e vai para a atmosfera, é maior que o rio Amazonas. Só para vocês terem uma ideia. Se a gente pudesse pegar uma chaleira bem grandona, aque-las de botar na tomada, chaleira elétrica, e colocar todos esses 20 bilhões de toneladas dentro, de quanta eletrici-dade você precisaria para evaporar essa água? Alguém tem ideia? Uma chaleira bem grande mesmo. Chaleira dos gigantes, né? 50 mil Itaipus. Itaipu, para quem não sabe, é a maior hidroelétrica do mundo, ainda, e é um

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o desmatamento intensivo da amazônia, pode desequilibrar todo o sistema climatológico do Brasil e do continente sulamericano

Tradução integral da conferência de Antônio Donato Nobre ao TED

orgulho brasileiro porque fornece mais de 30% da energia que é consumida no Brasil. E a Amazônia está aqui, fazendo isso de graça. É uma poderosíssima e viva usina de serviços ambien-tais.

Ligando nesse tema, nós vamos falar sobre o que eu chamo de “paradoxo da sorte”, que é uma curiosidade. Se você olhar o mapa-múndi -- é fácil perceber isso --você vê que, na zona equatorial, você tem as florestas, e os desertos estão organi-zados a 30 graus de latitude norte e a 30 graus de latitude sul, alinhados. Veja ali, no hemisfério sul, o Atacama, o da Namíbia e o Kalahari na África, o deserto da Austrália. No hemisfério norte, o Saara, Sonora e etc. E tem uma exceção, e é uma curio-sidade: é o quadrilátero que vai de Cuiabá a Buenos Aires, de São Paulo aos Andes. Esse quadrilátero era para ser deserto. Está na linha dos desertos. Por que não é? Por isso que eu cha-mo de “paradoxo da sorte”.

O que tem na América do Sul de diferente? Se a gente puder usar a analogia da circulação sanguínea no corpo e do sangue, com a circulação da água na paisagem, a gente vê nos rios que eles são veias, eles drenam a paisagem, eles drenam o tecido da natureza. E onde estão as artérias? Algum palpite? O que leva... Como que a água chega a irrigar os tecidos da natureza e trazer de volta tudo pelos rios? Tem um novo tipo de rio, que nasce no oceano azul, que flui pelo oceano verde -- não só flui, mas ele é bombeado pelo oceano verde -- e cuja foz é a terra da gen-te. Toda a nossa economia, aquele quadrilátero, 70% do PIB da América do Sul saem daquela região. Depende desse rio. E esse rio flui, invisível, acima de nós. Estamos flutuando aqui nesse flutuante, num dos maiores rios da Terra, que é o rio Negro. Está meio seco, meio bravo, mas estamos flutuando aqui, e em cima de nós tem um rio invisível passando. E esse rio, ele

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pulsa. E aqui está a pulsação dele. Por isso que a gente fala de coração também. Você vê ali as estações do ano. Chove uma época... Na Amazônia, a gente costumava ter duas estações, a úmida e a mais úmida. Agora temos a estação seca. E você vê ali ele lambendo essa região que deveria, de outra forma, ser um deserto e não é. A gente, cientistas... Você vê que estou com dificuldade aqui para levar minha cabeça de um lado para o outro aqui. Os cientistas estudam como funciona, por que, etc., e esses estudos estão gerando uma série de descobertas absolutamente extraordinárias para nos trazer a cons-ciência da riqueza, da complexidade e da maravilha que nós temos, da sinfonia que nós temos nesse funciona

Preservar as árvores da amazônia não é apenas uma questão de economia. É vital para a nossa sobrevivência

Tradução integral da conferência de Antônio Donato Nobre ao TED

mento. Um deles é: como é que se forma a chuva? Em cima da Amazônia, tem ar limpo, igual a em cima do oceano. O ocea-no azul tem ar limpo e forma muito poucas nuvens, quase não chove. No oceano verde, o ar limpo é igual, e forma muita chu-va. O que acontece aqui que é diferente? A floresta emite chei-ros, e esses cheiros são núcleos de condensação, que formam gotas na atmosfera, e aí formam-se as nuvens que chovem torrencialmente. O regador do Jardim do Éden. Essa relação de uma entidade viva, que é a floresta, com uma entidade não viva, que é a atmosfera, é virtuosa na Amazônia, porque a flo-resta joga água e joga sementinhas, a atmosfera forma chuva e devolve, e aí garante-se a sobrevivência da floresta.

Tem outros fatores também. Falamos um pouco do coração, e agora vamos falar de uma outra função: o fígado! Quando ar úmido, uma alta umidade e radiação são combinados junto

com esses compostos orgânicos, que eu chamo de “Vita-mina C Exógena”, generosa vitamina C gasosa, as plan-tas liberam antioxidantes que reagem com os poluentes. Vocês podem estar tranquilos porque vocês estão respi-rando o ar mais puro da Terra aqui na Amazônia, porque as plantas estão tomando conta dessa característica tam-bém. E isso favorece o próprio funcionamento das plan-tas, outro ciclo virtuoso.

Falando de fractais, e a relação com o nosso funciona-mento, a gente vê outras comparações. Como nas vias superiores do pulmão, o ar da Amazônia é limpo do ex-cesso de poeira. O ar que a gente respira é limpo da po-eira pelas vias respiratórias. Isso impede que o excesso de poeira prejudique a chuva. Quando tem queimadas na Amazônia, a fumaça acaba com a chuva, para de chover, a floresta seca e o fogo entra. Tem uma outra analogia fractal. Como nas veias e artérias, você tem um retorno na água que chove e volta para a atmosfera. Como nas glândulas endócrinas e nos hormônios, você tem aqueles gases, que eu expliquei para vocês, que formam, como se fossem hormônios soltados na atmosfera, que promovem a formação da chuva. Como o fígado e os rins, acabei de falar: a limpeza do ar. E, por fim, como um coração: o bombeamento da água que vem de fora, do oceano, para dentro da floresta.

A gente está chamando isso de “A Bomba Biótica de Umi-dade”. É uma teoria nova que é explicada de uma manei-ra muito simples. Se você tem um deserto no continente, e você tem um oceano contíguo, a evaporação no oceano é maior, produz uma sucção e puxa o ar de cima do de-serto. O deserto está preso nessa condição. Ele vai ser

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sempre seco. Se você tem uma condição inversa, com floresta, a evaporação, como a gente mostrou, é muito maior, pelas ár-vores, e essa relação se inverte. Então, o ar é puxado de cima do oceano e aí você tem a importação da umidade. Essa aqui é uma imagem que foi feita um mês atrás, de satélite -- Manaus está ali embaixo, nós estamos ali embaixo -- que mostra esse processo. Não é um riozinho bonitinho, daqueles que fluem num canal, mas é um rio poderoso, que irriga a América do Sul e tem outras finalidades. Essa imagem mostra, naquelas trajetórias ali, todos os furacões de que nós temos registros. E vocês veem que, no quadrado vermelho, quase não tem fu-racões. Isso não é por acaso. Essa bomba, que puxa umidade para dentro do continente, também acelera o ar sobre o oceano e isso impede a organização dos furacões.

Para encerrar essa parte, numa síntese, eu queria falar alguma coisa um pouco adversa. Eu tenho várias colegas que participa-ram no desenvolvimento dessas teorias, que são da opinião, eu inclusive, de que nós podemos recuperar o planeta Terra. Eu não estou falando hoje aqui só da Amazônia. A Amazônia nos dá uma lição de como a natureza primordial funciona. Nós não entendíamos esses processos antes porque o resto do mundo está todo detonado. Aqui nós pudemos entender. Então, esses colegas colocam: “Nós podemos, sim, recuperar as outras áre-as, inclusive desertos”. Se a gente consegue estabelecer flores-tas nessas outras áreas, nós podemos reverter o clima. Inclusi-ve, o aquecimento global.

E eu tenho uma colega muito querida na Índia, chamada Su-prabha Seshan, que tem um lema. O lema dela em inglês é: “Gardening back the biosphere”, Reajardinando a biosfera. Faz um trabalho maravilho de reconstrução de ecossistemas. Nós precisamos fazer isso. Concluída essa introdução rápida,

a gente chega à realidade que nós estamos vendo aqui fora, que é a seca, essa mudança climática, e coisas que nós já sabíamos. E aqui, eu queria contar uma historinha para vocês. Eu, uma vez, escutei, quatro anos atrás, uma declamação de um texto do Davi Copenaua, um sábio representante do povo ianomâmi, que dizia mais ou me-nos o seguinte:”Será que o homem branco não sabe que, se ele tirar a floresta, vai acabar a chuva? E se acabar a chuva, ele não vai ter o que beber, nem o que comer?” E eu escutei aquilo, eu cheguei às lágrimas,porque eu falei: “Nossa! Estou há 20 anos estudando isso, supercomputa-dor, dezenas, milhares de cientistas, e a gente está come-çando a chegar a essa conclusão, e ele já sabe!” Um agra-vante: os ianomâmis nunca desmataram. Como

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o cientista antonio donato Nobre

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eles podem saber que acaba a chuva? Aí, eu fiquei com isso na cabeça e fiquei completamente impactado. Como ele podia sa-ber? Alguns meses depois, eu o encontrei, num outro evento, e eu falei: “Davi, como é que você sabia que, tirando a floresta, acaba a chuva?” Ele falou: “O espírito da floresta nos contou”. E isso daí, para mim, foi um game changer, né? Foi uma mu-dança total, porque eu falei assim: “Poxa! Então, por que eu estou fazendo toda a ciência, para chegar à conclusão do que ele já sabe?” E aí, me bateu algo absolutamente crítico, que é... “o que os olhos não veem o coração não sente”. “Out of sight, out of [mind]”, né? E isso é uma necessidade que o meu ante-cessor colocou, que nós precisamos ver as coisas -- nós, quan-do eu digo, é a sociedade ocidental que está se tornando global, civilizada, -- nós precisamos ver. Se a gente não vê, a gente não registra. A gente vive na ignorância. Então, eu faço a seguin-te proposta: Vamos -- claro que os astrônomos não vão gostar

-- mas vamos virar o Hubble de ponta-cabeça. E vamos fazer o Hubble olhar para cá. Não para os confins do uni-verso. Maravilhosos os confins do universo, mas, agora, nós temos uma realidade prática, que é: nós vivemos num cosmos desconhecido, e nós somos ignorantes. Nós estamos tripudiando sobre este cosmos maravilhoso que nos dá morada e abrigo. Converse com um astrofísico: a Terra é uma improbabilidade estatística. A estabilidade e o conforto que nós apreciamos,com todas as secas do rio Negro, com todos os calores e frios, tufões, etc., não exis-te nada igual no universo, nada conhecido. Então, vire-mos o Hubble para cá e vamos olhar a Terra. Vamos co-meçar pela Amazônia! Vamos dar um mergulho, vamos chegar na realidade em que nós vivemos cotidianamente, e olhá-la bem de perto, já que a gente precisa disso. O Davi Copenaua não precisa. Ele já tem algo que eu acho que eu perdi. Eu fui educado pela televisão, né. Eu acho que eu perdi esse algo, que é um registro ancestral, que é uma valorização daquilo que eu não conheço, que eu não vi. Ele não precisa da prova de São Tomé. Ele acredita com veneração e reverência naquilo que os ancestrais lhe ensinaram, e os espíritos. Já que a gente não consegue, então vamos olhar a floresta. Mas mesmo quando a gente está com o Hubble lá, olhando para o céu -- essa daqui é a visão do pássaro, né? Mesmo quando isso acontece, a gente vê algo que também desconhecemos. Os espanhóis chamaram de inferno verde. Se você sair aqui, nesse mato aqui, e se perder, e você for, por acaso, para o oeste, são 900km para chegar na Colômbia. Mais mil para sair em algum lugar. Então, dá para entender por que eles chamavam de inferno verde. Mas vai lá olhar o que tem ali dentro. É um tapete vivo. Cada cor ali é uma espécie de árvore. Cada árvore, cada copa, chega a ter 10 mil es

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um oceano feito de árvores. É a amazônia

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pécies de insetos dentro dela, sem falar nos milhões de espé-cies de fungos, bactérias, etc. Tudo invisível. Tudo um cosmos mais estranho para nósdo que as galáxias distantes, a bilhões de anos-luz da Terra, que o Hubble nos trás todos os dias nos jornais. E eu encerro a minha apresentação -- eu tenho só pou-cos segundos -- mostrando esse ser maravilhoso, que quando a gente vê -- a borboleta morpho -- na floresta, a gente tem a sensação de que alguém esqueceu a porta do paraíso aberta e essa criatura escapou de lá, porque é muito bonita. Mas, eu não posso terminar sem mostrar um lado tecnológico. A gente tem a arrogância da tecnologia. Nós despossuímos a natureza da sua tecnologia. Uma mão robótica é tecnológica, a minha mão é biológica;e a gente não pensa mais no assunto. Então, vamos olhar a borboleta morpho, que é um exemplo de uma invisível competência tecnológica da vida, que está no âmago da nos-sa possibilidade de sobrevivência no planeta, e vamos dar um zoom nela. De novo, o Hubble lá. Vamos entrar na asa da bor-boleta. E esses estudiosos tentaram explicar: por que que ela é azul? E vamos dar um zoom lá. E o que vocês veem é que a ar-quitetura do invisível humilha os arquitetos melhores do mun-do. Isso tudo numa escala muito pequena. Além da beleza e do funcionamento, tem um outro aspecto. Tudo o que é, na natu-reza, organizado em estruturas extraordinárias, tem uma fun-ção. E essa função, da borboleta morpho -- ela não é azul, não tem pigmento azul nela. Ela tem cristais fotônicos na superfície -- segundo quem estudou isso -- cristais extremamente sofis-ticados. Nada igual ao que a nossa tecnologia tinha ainda na época. Agora, a Hitachi já fez um display de monitor que usa essa tecnologia e é usada em fibra ótica para transmissão de... A Janine Benyus, que já veio várias vezes aqui, fala sobre isso: biomimética.E já acabou o meu tempo. Então eu vou concluir com o que está na base dessa capacidade, dessa competência da biodiversidade, de produzir todos aqueles serviços maravi-

lhosos: a célula viva. É uma estrutura de alguns mícrons, que é uma maravilha interna. Tem palestras do TED so-bre isso, não vou me alongar, mas cada um nessa sala, in-clusive eu, tem 100 trilhões dessa micromáquina no seu corpo, para que vocês apreciem esse bem-estar. Imagi-nem o que tem na Floresta Amazônica. 100 trilhões. Isso é mais do que o número de estrelas no céu. E nós não temos consciência. Muito obrigado. (Aplausos)

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