o caso do novo banco: nacionalizar ou internacionalizar? · a entrega de graça do novo banco a um...

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01-06-2017 Economia Escolhas decisivas no sector bancário O caso do Novo Banco: nacionalizar ou internacionalizar? Com a crise, as instituições europeias colocaram os governos dos países periféricos a injectar somas astronómicas para salvar bancos que «não podiam falir». Depois da nacionalização dos prejuízos, esperam as mesmas instituições que os governos nacionais favoreçam a internacionalização da propriedade das instituições bancárias, abdicando de intervir na sua gestão para impor a defesa de lógicas públicas ao serviço do desenvolvimento e da democracia. Como será uma próxima crise se este rumo não for invertido? JOÃO RODRIGUES NUNO TELES * I cão Salgueiro foi durante décadas um dos rostos da banca nacional, quer como banqueiro público, do já extinto Banco de Fomento Nacional à Caixa Geral de De- pósitos (CGD), quer como ministro das Fi- nanças na década de oitenta, quer sobre- tudo como presidente, entre 1994 e 2009, da todo-poderosa Associação Portuguesa de Bancos, um sector fundamentalmente con- trolado por privados desde a liberalização e priv,itização dos anos oitenta e noventa e onde pontificava o Banco Espírito Santo - um sector por isso cada vez menos nacio- nal a prazo, ou seja, destinado a ser cada vez mais controlado pelo capital estrangeiro. Em entrevista recente, este apoiante de sempre da europeização liberal da economia política nacional, incluindo o euro, denuncia agora o corolário deste processo: a opacidade do co- mando central europeu, que culminou na entrega, forçosamente apressada e prejudi- cial, do Novo Banco à norte-americana Lone Star, com garantias públicas do Estado por- tuguês ainda por quantificar. Conclui João Salgueiro: «A União Europeia gostava de aca- bar com todos os bancos portugueses, penso eu, quanto muito ficava a Caixa E ardo o que é aparente mostra isca lá no Banif foi assim»ill. De facto, como já detalhámos neste jornal, no Banif tinha ficado visível a lógica da União Europeia, que, como Salgueiro reconhece, «dificulta a vida» à banca nacional que resta, a CGD, enquanto facilita a vida ao capital es- trangeiro, do Santander à Lone Star 121. Entretanto, Paulo Macedo estreou-se com pompa e circunstância numa das grandes ta- ras das empresas sujeitas à ditadura do curto prazo por accionistas que açambarcam uma fatia crescente do valor. a apresentação de resultados trimestrais. Este ritual representa apenas o lado simbólico de uma série de im- posições europeias que obrigam a CGD a comportar-se como se fosse um banco pri- vado. Entre essas imposições está a sangria do banco público, através do pagamento de juros usurários por emissões obrigacionis- tas dispensáveis, mas que o submetem aos humores dos mercados, enquanto que nas zonas mais vulneráveis do interior do país vão encerrando balcões junto de populações que deles necessitam para a sua vida, parte de um plano dito de reestruturação coman- dado, em última instância, pela Comissão Europeia, em Bruxelas, e pelo Banco Central Europeu, em Frankfurt Salgueiro tem experiência suficiente para saber que o Estado pode e deve ser o «senhor do tempo», para usara expressão de um livro sobre alguns dos seus papéis económicos in- contornáveisPl. Na realidade, é na banca que este papel assume uma importância particu- larmente crucial. Só o Estado, através da li- quidez do seu Banco Central, o prestamista de último recurso, e das suas finanças públi- cas, injectando capital, está em condições de dispor de um horizonte temporal mais am- plo para garantir a recuperação necessária dos bancos, que é ajudada pela, e ajuda na, recuperação da economia Salgueiro faz uma comparação, na mesma entrevista, entre o Novo Banco, em Portugal, e o Lloyds Bank, no Reino Unido: «É possível viabilizar um banco em semanas? O doutor Horta Osório viabilizou o Lloyds em oito anos». Onde está «doutor Horta Osório» leia-se o Estado bri- tânico, que assumiu o controlo do banco nos seus tempos e nos seus termos. O plano de recuperação do Lloyds Bank só foi possível através de uma estratégia ar- ticulada entre o Tesouro britânico e o seu Banco Central, disponível para injectar a li- quidez necessária para manter este banco operacional até recuperar a sua solvabili- dade. Esta defesa da estabilidade de um sis- tema bancário nacional, cujo modelo de in- tervenção tem, ainda assim, muito de criti- cável, só foi possível com um Banco Central nacional. Em Portugal, não é este o caso: o nosso banco central é uma mera sucursal de um BCE orientado por outros objectivos que não a protecção da economia e das finanças portuguesas. Com as regras definidas entre Frankfurt e Bruxelas, o país é, nesta área mo- netária e financeira, o equivalente a uma co- lónia. Se dúvidas houvesse sobre o compor- tamento e a lógica do BCE face à periferia eu- ropeia, bastaria relembrar o papel do BCE no esmagamento do governo grego, aquando da vitória do Syriza. Perante um sistema bancário completamente dependente da li- quidez do Banco Central, o BCE foi fechando a torneira do seu financiamento à medida que as negociações entre Bruxelas e Atenas se iam degradando. A pressão político-finan- ceira chegou ao seu auge quando, depois de anunciado o referendo de Junho de 2015 ao acordo com a Troika, o BCE impôs, pura e simplesmente, o encerramento dos bancos gregos, numa manobra de ingerência polí- tica inaudita, detalhadamente descrita no úl- timo livro do ex-ministro das Finanças grego Yanis Vamufalds 141. Nacionalizar os prejuízos, internacionalizar a propriedade No caso português, não existiu qualquer desafio ao poder do eixo Bruxelas-Frankfurt- -Berlim, mas a arrogância do poder finan- ceiro europeu não foi aqui menos sentida Tal como a Grécia, Portugal é tratado como departamento territorial longínquo e irrele- vante. O futuro e horizontes temporais de ac- ção política no campo económico e bancário são definidos na metrópole. A colónia serve, neste caso, para experiências de resolução bancária em tudo contrárias ao interesse pú- blico, acompanhadas das ameaças: pagam e não mandam ou liquida-se o banco, gerando o caos já experienciado na Grécia. A lógica desta nova metrópole é dara: na- cionalizar, de forma tão opaca quanto possí- vel, os prejuízos do sector bancário, através do governo local, e internacionalizar a sua propriedade, através de incentivos dados também pelo governo locaL Desta forma, impede-se o reforço da propriedade pública, que naturalmente adviria da canalização, já efectivada, de milhares de milhões de euros de recursos públicos nacionais para a banca. O resultado observado para o Novo Banco segue a linha já anunciada pelo BCE para toda a banca europeia através da União Ban- cária e da União dos Mercados de Capitais. Através da primeira, cria-se um modelo de resolução agressivo, com imposição de perdas que, em nome dos custos orçamen- tais dos anteriores rasgastes bancários, só é aplicável a pequenos bancos à escala euro- peia O capital disponível para o mecanismo de resolução é manifestamente insuficiente para recapitalizar qualquer banco europeu de grande dimensão. É impensável que um grande banco europeu, como, por exemplo, o periclitante Deutsche Bank - com activos que rondam os 85% do produto interno bruto (PIB) alemão - possa impor uma per- centagem similar ao Novo Banco de perdas aos seus credores. Assistiríamos ao pânico e a um imediato contágio financeiros, de resto já observados com o Lehman Brothers em 2008. A grande banca europeia, domiciliada na Alemanha e em França, sabe por isso que este modelo não é para ela Em caso de ne- cessidade, contará sempre com todo o apoio do BCE, que aliás a supervisiona agora di- rectamente. Finalmente, o prometido me- canismo europeu de garantia de depósitos continua sem ver a luz do dia Os depósitos continuam garantidos por cada Estado na- cional, fazendo com que um euro depositado em Portugal ou na Grécia tenha, em caso de crise, um valor necessariamente diferente de um euro depositado na Alemanha, favo- recendo os bancos aí sediados. A menos falada União dos Mercados de Capitais pode afigurar-se como mais per- versa ainda. Sob pretexto de desbloquear o acesso ao financiamento às pequenas e médias empresas, pretende-se promover o acesso directo destas aos mercados financei- ros através, por exemplo, da emissão de obri- gações que possam ser titularizadas e tran- saccionadas no espaço europeu. Pretende- -se assim aproximar o modelo de negócio da banca europeia ao anglo-americano, es- quecendo-se que foi exactamente neste tipo

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  • 01-06-2017

    Economia

    Escolhas decisivas no sector bancário

    O caso do Novo Banco: nacionalizar ou internacionalizar? Com a crise, as instituições europeias colocaram os governos dos países periféricos a injectar somas astronómicas para

    salvar bancos que «não podiam falir». Depois da nacionalização dos prejuízos, esperam as mesmas instituições que os

    governos nacionais favoreçam a internacionalização da propriedade das instituições bancárias, abdicando de intervir na

    sua gestão para impor a defesa de lógicas públicas ao serviço do desenvolvimento e da democracia. Como será uma

    próxima crise se este rumo não for invertido?

    JOÃO RODRIGUES NUNO TELES *

    I cão Salgueiro foi durante décadas um

    dos rostos da banca nacional, quer como

    banqueiro público, do já extinto Banco

    de Fomento Nacional à Caixa Geral de De-

    pósitos (CGD), quer como ministro das Fi-

    nanças na década de oitenta, quer sobre-

    tudo como presidente, entre 1994 e 2009,

    da todo-poderosa Associação Portuguesa de

    Bancos, um sector fundamentalmente con-

    trolado por privados desde a liberalização

    e priv,itização dos anos oitenta e noventa e

    onde pontificava o Banco Espírito Santo -

    um sector por isso cada vez menos nacio-

    nal a prazo, ou seja, destinado a ser cada vez

    mais controlado pelo capital estrangeiro. Em

    entrevista recente, este apoiante de sempre

    da europeização liberal da economia política

    nacional, incluindo o euro, denuncia agora o

    corolário deste processo: a opacidade do co-

    mando central europeu, que culminou na

    entrega, forçosamente apressada e prejudi-

    cial, do Novo Banco à norte-americana Lone

    Star, com garantias públicas do Estado por-

    tuguês ainda por quantificar. Conclui João

    Salgueiro: «A União Europeia gostava de aca-bar com todos os bancos portugueses, penso eu, quanto muito ficava a Caixa E ardo o que é aparente mostra isca lá no Banif foi assim»ill.

    De facto, como já detalhámos neste jornal,

    no Banif tinha ficado visível a lógica da União

    Europeia, que, como Salgueiro reconhece,

    «dificulta a vida» à banca nacional que resta, a CGD, enquanto facilita a vida ao capital es-

    trangeiro, do Santander à Lone Star121.

    Entretanto, Paulo Macedo estreou-se com

    pompa e circunstância numa das grandes ta-

    ras das empresas sujeitas à ditadura do curto

    prazo por accionistas que açambarcam uma

    fatia crescente do valor. a apresentação de

    resultados trimestrais. Este ritual representa

    apenas o lado simbólico de uma série de im-

    posições europeias que obrigam a CGD a

    comportar-se como se fosse um banco pri-

    vado. Entre essas imposições está a sangria

    do banco público, através do pagamento de

    juros usurários por emissões obrigacionis-

    tas dispensáveis, mas que o submetem aos

    humores dos mercados, enquanto que nas

    zonas mais vulneráveis do interior do país

    vão encerrando balcões junto de populações

    que deles necessitam para a sua vida, parte

    de um plano dito de reestruturação coman-

    dado, em última instância, pela Comissão

    Europeia, em Bruxelas, e pelo Banco Central

    Europeu, em Frankfurt

    Salgueiro tem experiência suficiente para

    saber que o Estado pode e deve ser o «senhor do tempo», para usara expressão de um livro sobre alguns dos seus papéis económicos in-

    contornáveisPl. Na realidade, é na banca que

    este papel assume uma importância particu-

    larmente crucial. Só o Estado, através da li-

    quidez do seu Banco Central, o prestamista

    de último recurso, e das suas finanças públi-

    cas, injectando capital, está em condições de

    dispor de um horizonte temporal mais am-

    plo para garantir a recuperação necessária

    dos bancos, que é ajudada pela, e ajuda na,

    recuperação da economia Salgueiro faz uma

    comparação, na mesma entrevista, entre o

    Novo Banco, em Portugal, e o Lloyds Bank,

    no Reino Unido: «É possível viabilizar um banco em semanas? O doutor Horta Osório viabilizou o Lloyds em oito anos». Onde está «doutor Horta Osório» leia-se o Estado bri-

    tânico, que assumiu o controlo do banco nos

    seus tempos e nos seus termos.

    O plano de recuperação do Lloyds Bank

    só foi possível através de uma estratégia ar-

    ticulada entre o Tesouro britânico e o seu

    Banco Central, disponível para injectar a li-

    quidez necessária para manter este banco

    operacional até recuperar a sua solvabili-

    dade. Esta defesa da estabilidade de um sis-

    tema bancário nacional, cujo modelo de in-

    tervenção tem, ainda assim, muito de criti-

    cável, só foi possível com um Banco Central

    nacional. Em Portugal, não é este o caso: o

    nosso banco central é uma mera sucursal de

    um BCE orientado por outros objectivos que

    não a protecção da economia e das finanças

    portuguesas. Com as regras definidas entre

    Frankfurt e Bruxelas, o país é, nesta área mo-

    netária e financeira, o equivalente a uma co-

    lónia. Se dúvidas houvesse sobre o compor-

    tamento e a lógica do BCE face à periferia eu-

    ropeia, bastaria relembrar o papel do BCE no

    esmagamento do governo grego, aquando

    da vitória do Syriza. Perante um sistema

    bancário completamente dependente da li-

    quidez do Banco Central, o BCE foi fechando

    a torneira do seu financiamento à medida

    que as negociações entre Bruxelas e Atenas

    se iam degradando. A pressão político-finan-

    ceira chegou ao seu auge quando, depois de

    anunciado o referendo de Junho de 2015 ao

    acordo com a Troika, o BCE impôs, pura e

    simplesmente, o encerramento dos bancos

    gregos, numa manobra de ingerência polí-

    tica inaudita, detalhadamente descrita no úl-

    timo livro do ex-ministro das Finanças grego

    Yanis Vamufalds141.

    Nacionalizar os prejuízos, internacionalizar a propriedade

    No caso português, não existiu qualquer

    desafio ao poder do eixo Bruxelas-Frankfurt-

    -Berlim, mas a arrogância do poder finan-

    ceiro europeu não foi aqui menos sentida

    Tal como a Grécia, Portugal é tratado como

    departamento territorial longínquo e irrele-

    vante. O futuro e horizontes temporais de ac-

    ção política no campo económico e bancário

    são definidos na metrópole. A colónia serve,

    neste caso, para experiências de resolução

    bancária em tudo contrárias ao interesse pú-

    blico, acompanhadas das ameaças: pagam e

    não mandam ou liquida-se o banco, gerando

    o caos já experienciado na Grécia.

    A lógica desta nova metrópole é dara: na-

    cionalizar, de forma tão opaca quanto possí-

    vel, os prejuízos do sector bancário, através

    do governo local, e internacionalizar a sua

    propriedade, através de incentivos dados

    também pelo governo locaL Desta forma,

    impede-se o reforço da propriedade pública,

    que naturalmente adviria da canalização, já

    efectivada, de milhares de milhões de euros

    de recursos públicos nacionais para a banca.

    O resultado observado para o Novo Banco

    segue a linha já anunciada pelo BCE para

    toda a banca europeia através da União Ban-

    cária e da União dos Mercados de Capitais.

    Através da primeira, cria-se um modelo

    de resolução agressivo, com imposição de

    perdas que, em nome dos custos orçamen-

    tais dos anteriores rasgastes bancários, só é

    aplicável a pequenos bancos à escala euro-

    peia O capital disponível para o mecanismo

    de resolução é manifestamente insuficiente

    para recapitalizar qualquer banco europeu

    de grande dimensão. É impensável que um

    grande banco europeu, como, por exemplo,

    o periclitante Deutsche Bank - com activos

    que rondam os 85% do produto interno

    bruto (PIB) alemão - possa impor uma per-

    centagem similar ao Novo Banco de perdas

    aos seus credores. Assistiríamos ao pânico e

    a um imediato contágio financeiros, de resto

    já observados com o Lehman Brothers em

    2008. A grande banca europeia, domiciliada

    na Alemanha e em França, sabe por isso que

    este modelo não é para ela Em caso de ne-

    cessidade, contará sempre com todo o apoio

    do BCE, que aliás a supervisiona agora di-

    rectamente. Finalmente, o prometido me-

    canismo europeu de garantia de depósitos

    continua sem ver a luz do dia Os depósitos

    continuam garantidos por cada Estado na-

    cional, fazendo com que um euro depositado

    em Portugal ou na Grécia tenha, em caso de

    crise, um valor necessariamente diferente

    de um euro depositado na Alemanha, favo-

    recendo os bancos aí sediados.

    A menos falada União dos Mercados de

    Capitais pode afigurar-se como mais per-

    versa ainda. Sob pretexto de desbloquear

    o acesso ao financiamento às pequenas e

    médias empresas, pretende-se promover o

    acesso directo destas aos mercados financei-

    ros através, por exemplo, da emissão de obri-

    gações que possam ser titularizadas e tran-

    saccionadas no espaço europeu. Pretende-

    -se assim aproximar o modelo de negócio

    da banca europeia ao anglo-americano, es-

    quecendo-se que foi exactamente neste tipo

  • CARLOS NO . Checkpoint (2017) Fotografia: Gilberto Colaço . Na Galeria Bangbang, Lisboa, até 28 de Julho

    de mercado financeiro, o de títulos de dí-vida garantidos por hipotecas, que começou a maior crise financeira da história desde a Grande Depressão em 1929. A banca euro-peia passaria, desta forma, a estar menos de-pendente do crédito que concede, e dos (bai-xos) juros que cobra, para se focar nas suas actividades de banca de investimento, orga-nizando estes mercados e cobrando comis-sões aos emissores. Ora, a banca de investi-mento europeia está concentrada nos gran-des bancos alemães e franceses, reflectindo a forte concentração internacional destes mercados (por exemplo, o mercado interna-cional de títulos derivados é controlado em 82% do seu valor por meros catorze gran-des bancos). Neste modelo, a banca nacio-nal não tem lugar face à concorrência inter-nacional. O projecto político é pois o da cons-trução de grandes bancos europeus com al-cance territorial que cubram a Zona Euro.

    A entrega de graça do Novo Banco a um fundo «abutre»

    A submissão a esta lógica faz agora com que o Novo Banco, ou seja, cerca de 15% do sector bancário português, esteja a ser entre-gue de graçaa um fundo «abutre», conhecido pelos negócios ruinosos feitos no sector ban-cário sul-coreanoisl. O Lone Star consegue, assim, ter acesso a informação, por exemplo, sobre o mercado imobiliário nacional, onde já estava fortemente envolvido, e adquirir activos a preço de saldo que serão vendidos mais tarde, na esperança não só da sua va-lorização, mas também de urna mudança de «apetite» da banca europeia fornecida pelas

    mudanças regulatórias em curso e, concomi-tantemente, pelo aumento da rendibilidade e solvabilidade financeiras. O fundo público de resolução, depois de ter canalizado 4,9 mil milhões de euros, fica reduzido a 25% de um banco onde não tem capacidade de deci-são e onde a norte-americana Lone Star pon-tifica com 75%, tendo de investir aí apenas mil milhões de euros. Num negócio ruinoso para o país, o fundo público fica com o essen-cial do risco de desvalorização de uma car-teira de activos do Novo Banco, que, se afec-tar os seus rácios de capital, implica a injec-ção nos próximos oito anos de até 3,89 mil milhões de euros. Entretanto, é claro, pelos juros baixos e pelos prazos cada vez mais prolongados de reembolso, que a responsa-bilidade da banca pelos empréstimos do Es-tado ao tal fundo público é mais nominal do que real.

    Em artigo recente, o ministro das Finanças Mário Centeno faz um balanço de tudo isto: «A mais relevante alteração das condig-x-.5 de funcionamento da economia portuguesa prende-se coma estabilidade financeira, hoje, finalmente, uma realidade Os bancos foram capitalizados e provaram a sua capacidade para atrair capital de todo o mundo, refle-tindo a confiança dos investidores internacio-nais na solidez da economia e numa estabili-dade política, tantas vezes questionada, mas que, hoje, é invejada em muitas partes da Eu-ropa. Portugal não deve ter vergonha de ser um exemplo»16). O governo português tem, na realidade, fortes motivos para ter vergo-nha por ter consentido com um padrão de acentuado reforço do controlo estrangeiro na banca que a deixa mais vulnerável numa

    próxima crise internacional. É sob as perife-rias que as instituições financeiras interna-cionais privadas fazem recair os primeiros custos do ajustamento, através de retiradas de capitais e de contracções de crédito mais súbitas. Pior do que a banca privada nacio-nal, que resultou das privatizações e que tão eficaz se revelou na destruição de capital e na geração de endividamento externo, será a banca privada estrangeira A experiência das periferias da economia mundial nas úl-timas décadas mostra como, nos casos em que o sector bancário é dominado por capi-tal estrangeiro, qualquer crise é exacerbada por este regime de propriedade. Exemplos como os do Sudoeste Asiático, em 1998, da Argentina, em 2001, ou da Europa de Leste, em 2009, mostram como a banca estran-geira esvazia rapidamente as suas sucursais de recursos na ânsia de limitar as perdas em mercados não estratégicos.

    A alternativa a este estado de coisas passa por reconhecer as especificidades de um sector estratégico com amplos poderes: o poder de criar e de destruir moeda através do crédito; o poder de lidar com o futuro, ou seja, com a incerteza, concentrando muita da melhor informação disponível sobre a ac-tividade económica geral, cujo andamento passa pelas decisões tomadas nos bancos; e

    o poder de não poder verdadeiramente falir, dado o caos que tal gera num sector que lida com a confiança, porque lida com a moeda e com o futuro. Entre a Segunda Guerra Mun-dial e os anos oitenta, quando as crises ban-cárias eram bem menos frequentes, devido à chamada repressão financeira, estes po-deres foram institudonalmente reconheci-dos através de muitos bancos públicos com lógica públicas, de controlos de capitais ge-neralizados e de regulamentação que des-confiava de uma concorrência geradora de aventureirismo neste sector. Hoje, quem qui-ser gerir o crédito com uma lógica pública, ao serviço das necessidades do tecido pro-dutivo nacional, tem de começar por recu-sar a lógica política de um euro onde não há futuro decente para a economia portuguesa. Sem esta recusa, não voltará a haver estabi-lidade financeira duradoura, assente numa mudança do regime de propriedade: nacio-nalizar é preciso, para impor lógicas de de-fesa do interesse público. Neste, como nou-tros sectores, internacionalizar é colocar em risco também a democracia e o desenvolvi-mento. ■

    * Economistas. Respectivamente, professor da

    Faculdade de Economia da Universidade de

    Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais. Co-autores do blogue Ladrões de Bicicletas.

    [1] Entrevista ao Jornal de Negócios, 22 de Maio de 2017. [2] Ver João Rodrigues e Nuno Teles, «Não gostar, mas aplicar: o caso Banif», Le Monde diplomatique —edição portuguesa, Janeiro de 2016, disponivel em http://pt.mondediplo.cornispip.php?article1092. [3] Philippe Delmas, O Senhor do Tempo — A Modernidade da Acção Pública, Afrontamento, Porto, 1993. [4] Yanis Varoufakis, Adults in the Room: My Battles with Europe's Deep Establishment, Bodley Head, Londres, 2017. [5] Ver «The Billionaire Banker in the Shadows», Forbes Magazine, 1 de Março de 2016. [6] Mário Centeno, «Um ponto de viragem para Portugal: construir o futuro com base na confiança», Público, 25 de Maio de 2017.

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    ESCOLHAS DECISIVAS NO SECTOR BANCÁRIO

    O caso do Novo Banco: nacionalizar ou internacionalizar? JOÃO RODRIGUES

    NUNO TELES

    Os anos loucos SERGE HALIMI

    Aos olhos deles, a tempestade passou, a eleição de Donald Trump e o Brexit quase estão esconjurados. A ampla vitória de Emmanuel Macron entusiasmou os meios dirigentes da União Europeia. Um dos seus comen-tadores ajuramentados, ronronando de felicidade, considerou mesmo que se tratava do «primeiro golpe decisivo contra a vaga populista»111. Aproveitar o momento para fazer passar em força o programa neoliberal da Comissão Europeia entu-siasma, portanto, os novos governantes franceses, que têm em mira o Código do Trabalho. Uma orientação política idên-tica será agora representada em Paris por um homem mais jovem, mais culto e menos radicalmente desprovido de ima-ginação e de carisma do que o seu antecessor. Os milagres da comunicação e do «voto útil» permitem travestir esta ligeira mudança e apresentá-la como uma viragem histórica que abre caminho a toda a audácia. O apagamento da clivagem entre os dois campos, de que se faz chantre uma comunica-ção social ocidental à beira de desfalecer perante o seu mais recente prodígio, é também uma fantasia. Com efeito, desde 1983 que a esquerda e a direita francesas aplicam, à vez, a mesma política. Doravante, sectores de uma e de outra vão encontrar-se num mesmo governo. No futuro encontrar-se--ão numa mesma maioria parlamentar. Ganha-se em clareza, mas não mais do que isso.

    A incrustação no poder de uma direita espanhola corrupta, a vitória dos liberais nos Países Baixos, e o novo contrato governamental prometido, talvez de forma imprudente, aos conservadores britânicos e alemães sugerem que o tempo das cóleras que marcou o ano passado pode ter perdido fôlego, por falta de saídas políticas. A eleição de Macron, tendo

    como pano de fundo a bandeira azul e dourada e a sua visita imediata a Berlim, assinalam em todo o caso que as grandes orientações europeias defendidas pela chanceler Angela Merkel serão vigorosamente reconduzidas. Para os gregos, essas orientações acabam de conduzir a um corte de 9% das suas pensões de reforma; os peritos já só discordam no momento de determinar se se trata do décimo terceiro ou do décimo quarto corte do género. Quanto a Donald Trump, que tem tido alguns arrebatamentos e fanfarronices capazes de preocupar por alguns momentos as diplomacias ocidentais, diga-se que a normalização da sua presidência está bastante avançada; em caso de necessidade, o seu impedimento (impeachement) está também organizado. Para garantir a completa serenidade dos timoneiros do velho mundo já só falta um regresso ao poder de Matteo Renzi, em Itália, nos próximos meses.

    Durante a década de 1920, constatando que depois de uma era de greves e de revoluções a maior parte dos Estados europeus — em particular o Reino Unido e a Alemanha — haviam recuperado a sua velocidade de cruzeiro, a Internacional Comunista teve de admitir a «estabilização do capitalismo». Ainda assim, empenhada em não desarmar, em Setembro de 1928 a organização anunciou que a acalmia seria «parcial, temporária e precária». O anúncio pareceu mecânico, senão mesmo um palavreado inútil. Vivia-se a euforia dos possidentes, os Anos Loucos. A «quinta-feira negra» de Wall Street rebentou passado um ano.

    [1] Alain Duhamel, «Macron: première victoire contre le populisme», Libération, Paris, 10 de Maio de 2017.

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