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Universidade Federal do Rio de Janeiro O CARÁTER DIALÓGIGO-IDEOLÓGICO NO PRO MARCELLO: UM DISCURSO EPIDÍCTICO DE CÍCERO. Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira 2016

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O CARÁTER DIALÓGIGO-IDEOLÓGICO NO PRO MARCELLO: UM DISCURSO EPIDÍCTICO DE CÍCERO.

Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira

2016

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O CARÁTER DIALÓGIGO-DEOLÓGICO NO PRO MARCELLO: UM DISCURSO EPIDÍCTICO DE CÍCERO

Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requesitos necessários à obtenção do Título de doutor em Letras Clássicas.

Orientador: Profa. Dra. Arlete José Mota

Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

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O CARÁTER DIALÓGIGO-IDEOLÓGICO NO PRO MARCELLO – UM DISCURSO EPIDÍCTICO DE CÍCERO

Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira

Orientadora: Profa. Dra. Arlete José Mota

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da

Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Aprovada por:

___________________________________________________________________________ Presidente, Profa. Dra. Arlete José Mota - Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas/UFRJ

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva – Programa de Pós-Graduação em Letras/UERJ

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Thereza Basilio Vieira – Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas/UFRJ

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Programa de Pós-Graduação em História Comparada/UFRJ

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Auto Lyra Teixeira - Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas/UFRJ _________________________________________________________________________ Profa. Dra. Márcia Regina de Faria da Silva - Programa de Pós-Graduação em Letras/UERJ - Suplente _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo de Souza Nogueira – Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas / UFRJ - Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

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OLIVEIRA, SANDRA VERÔNICA VASQUE CARVALHO DE

048 C O CARÁTER DIALÓGIGO-IDEOLÓGICO NO PRO MARCELLO: UM DISCURSO EPIDÍCTICO DE CÍCERO. / SANDRA VERÔNICA VASQUE CARVALHO OLIVEIRA. -- Rio de Janeiro, 2016. 174 f. Orientadora: ARLETE JOSÉ MOTA. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós Graduação em Letras Clássicas, 2016. 1. PRO MARCELLO. 2. DISCURSO EPIDÍCTICO. 3. CÍCERO 4. DIALOGISMO E IDEOLOGIA. I. MOTA, ARLETE JOSÉ, orient. II. Título.

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Quanto mais alto o cimo da árvore, maior a dificuldade em alcançá-lo, maior a satisfação em vencê-lo.

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A Deus, conforto maior e sustentáculo da minha força e perseverança, amparando-me em todas as horas de minha vida.

E a Silmar Carvalho (in memoriam), meu saudoso pai.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, pela motivação para que eu siga em frente, somente por ela existir.

Ao meu marido, Jofran de Oliveira, por estar sempre ao meu lado, mesmo em ocasiões em que me fiz ausente, por conta dos afazeres acadêmicos.

Às minhas filhas, Sáran Vasque, Verônica Vasque e Káren Vasque, pelo seu amor incondicional, mesmo em momentos tortuosos durante o doutoramento; e pela grande ajuda nos meus afazeres, inclusive, neste trabalho.

À minha mãe, para quem a eduacação esteve sempre em primeiro lugar, mesmo diante das adversidades.

À minha irmã, responsável por me introduzir no mundo da literatura.

Ao Prof. Amós, querido e sempre zeloso, em suas orientações e conselhos, em grande parte de minha jornada acadêmica.

A todos os companheiros docentes e discentes da Faculdade de Letras da UFRJ, pelo cuidado e amizade.

Aos meus amigos, que me ouviram, que me apoiaram, que me deram seu ombro e me confortaram sempre.

À CAPES, por me auxiliar durante o curso.

Aos funcionários da Faculdade de Letras da UFRJ, pelo auxílio; em particular à Cila, que me emprestou seu empenho e compreensão.

Em especial, à minha Orientadora Arlele, por seu carinho, dedicação, orientação para este trabalho; e pela relação de afeto durante anos.

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RESUMO

O CARÁTER DIALÓGIGO-IDEOLÓGICO NO PRO MARCELLO: UM DISCURSO EPIDÍCTICO DE CÍCERO

Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira

Orientadora: Profa. Dra. Arlete José Mota

Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Clássicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Este estudo tem como objetivo analisar o discurso Pro Marcello de Cícero, que foi proferido pelo orador em 46 a.C diante do Senado romano e perante Caio Júlio César, na época, ditador. Além de demonstrar características que o classificam como um discurso do gênero epidíctico, um dos gêneros do discurso elencados por Aritóteles, aponta aspectos no decorrer de sua produção que evidenciam o caráter ideológico/dialógico presente. O discurso de Cícero pode ser classificado dentro desse gênero, pois tece elogios a Júlio César, enaltecendo vários de seus feitos e de suas características e coloca-o no patamar de um herói. Traz, como todo discurso, assim como entende Bakhtin, a faceta ideológica e dialógica, na medida em que, apesar de único, é também determinado pela conjuntura política e social da época em que foi produzido e reflete, apresentando ressonâncias, outras vozes e, às vezes, a do próprio orador em momentos diferentes.

Palavras-chave: Pro Marcello, discurso epidíctico, ideologia, dialogicidade.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

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ABSTRACT

THE DIALOGIC - IDEOLOGICAL CHARACTER IN PRO MARCELLO - A EPIDÍCTICO SPEECH CÍCERO

Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira

Orientadora: Profa. Dra. Arlete José Mota

Abstract de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Clássicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

This study aims to analyze the Cicero's Pro Marcello speech, which was delivered on 46 B.C. in front of the Roman Senate and of the Gaius Julius Caesar, who at the time was dictator.In addition to demonstrating characteristics that classify it as a speech of the epidíctico genre, one of the speech genres listed by Aritóteles, points out aspects in the course of its production which shows the ideological / dialogical character present.Cicero's speech can be classified within that genre, because it weaves praise to Julius Caesar, highlighting several of his achievements and of his characteristics and places it on the porch of a hero.As well as understand Bakhtin, the speech, like all speech, even brings the ideological and dialogical aspect, to the extent that, although unique, it's also determined by the political and social conjuncture of the time it was produced and reflects, with resonances, other voices and sometimes the voice of the speaker at different times.

Key-words: Pro Marcello, epidictico discourse, ideology, dialogicity

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10 2. OS FATOS SUBJACENTES AO DISCURSO: CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL....................................................................................................................................

14

2.1 A República Romana ......................................................................................................... 14 2.1.1 Os tempos finais da República Romana .......................................................................... 14 2.1.2 Os institutos políticos na República: Senado, Povo e Magistrados ............................... 22 2.1.3 Crises entre Senado e revoltas populares ........................................................................ 25 2.2 Perigo de ditadura de Pompeu e surgimento da figura de César ........................................ 29 2.3 A figura de César................................................................................................................. 36 2.3.1 César, o homem e a personalidade................................................................................... 36 2.3.2 A aproximação de César com opovo................................................................................ 36 2.3.3 César, o escritor................................................................................................................ 41 2.4 A figua de Cícero: produção à guisa de uma biografia....................................................... 48 3. NAS ENTRELINHAS DOS DISCURSOS: PRETENDENDO-SE UMA ANÁLISE.................................................................................................................................

60

3.1 A dialogicidade do discurso................................................................................................ 63 3.2 Discurso e ideologia ........................................................................................................... 66 3.3 Discurso e estilo................................................................................................................. 75 3.4 Discurso e retórica.............................................................................................................. 77 3.4.1 O surgigmento da retórica e a educação retórica ............................................................ 77 3.4.2 A retórica e os romanos .................................................................................................. 84 3.4.2.1 A retórica de Cícero .................................................................................................... 91 3.4.3 Entendendo a retórica...................................................................................................... 96 3.4.3.1 A retórica de Aristóteles: um instrumento linguístico para a persuasão...................................................................................................................................

99

3.4.4 Sobre a dialética: um meio utilizado pela retórica .......................................................... 104 3.5 A retórica para heroificação ............................................................................................... 107 3.5.1 Para uma análise do herói ................................................................................................ 108 4. OS GÊNEROS DO DISCURSO E O PRO MARCELLO COMO UM DISCUSO EPIDÍCTICO...........................................................................................................................

117

4.1 Gêneros e partes do discurso em Aristóles.......................................................................... 117 4.2 Os gêneros do discurso na visão bakhtiniana ..................................................................... 126 4.3 Pro Marcello: um discurso epidíctico ............................................................................... 136 4.3.1 Caracterizando o discurso como epidíctico ..................................................................... 138 4.3.2 Sobre os modos de persuasão em um discurso laudadório ............................................. 140 5. CONCLUSÃO .................................................................................................................... 169 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 171

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1. INTRODUÇÃO

O discurso – parte integrante e existente da realidade humana e um dos meios de

interação e comunicação do indivíduo com o outro - é estudado e classificado desde a

Antiguidade. Foram vários os estudiosos que o tentaram definir e entender as particularidades

e as especificidades de cada tipo para organizá-lo, de forma a caracterizar cada um.

Aristóteles, um desses teóricos, discorreu sobre os gêneros, nos quais é possível decompô-lo.

Entre os três gêneros do discurso, assim divididos por Aristóteles, há o epidíctico. Ele

caracteriza-se, principalmente, por ser um discurso dirigido a alguém ou a algo, com a

finalidade de louvá-lo ou censurá-lo, no tempo presente, tendo como intenção obter

admiração dos espectadores. O que será louvado ou censurado pode ser um homem qualquer,

um lugar, um herói e assim por diante.

Partindo do conceito dado ao discurso epidíctico, por Aristóteles e, dentre os

modernos, teóricos como, por exemplo, Reboul, que analisa as teorias do filósofo grego e de

outros antigos, esta tese tem como objetivo observar a presença desse gênero, no discurso Pro

Marcello, de Cícero. E, assim, pretende-se observar de que modo o discurso elaborado pelo

autor, a partir de características do gênero, apresenta a realidade – contexto histórico e

político-social - em que o autor está inserido e de que forma se pode afirmar a presença de

fatores dialógicos e ideológicos no mesmo.

Investiga-se, então, como o autor faz uso de elementos do gênero, procedendo-se à

análise dos recursos utilizados para isso, como, por exemplo, o uso de amplificações, de

grande exaltação a César, entre outros. Observa-se, também, como o orador adapta-se ao tipo

de auditório específico do gênero. Da mesma forma, analisa-se como se desenvolveu o ato de

louvar; como foi feita referência ao tempo presente, com citações de feitos passados; como os

recursos linguísticos e retóricos foram utilizados para que se conseguisse a admiração dos

espectadores; e, entre outras observações, como o orador aborda a nobreza de caráter e as

virtudes, principalmente, a clemência, de quem é louvado – valor que norteia o discurso em

questão.

Ainda é investigada a forma como o autor conduz a elaboração do discurso para a

persuasão do público, usando escolhas individuais na construção, mas, da mesma forma,

acolhendo o discurso do outro ou de outros para a formulação do seu próprio discurso. Para

tanto, inicialmente foram coletados dados, no Pro Marcello, que apresentavam os recursos

estilísticos usados por Cícero para persuadir o público ouvinte a admirar e louvar César –

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destinatário do discurso selecionado para análise – acolhendo a opinião do orador em relação

à importância e aos feitos do governante. Acrescentam-se no trabalho dados sobre a

caracterização de César – elementos que o elevaram a um patamar digno de um herói, e, ao

mesmo tempo, outros que colocavam o próprio orador como favorável à política do ditador e,

também, à reconstrução da República.

Como fundamentação teórica, serão utilizados ensinamentos sobre retórica e sobre os

gêneros do discurso encontrados em teóricos de épocas e propostas metodológicas distintas.

Recorrer-se-á, então, a teorias existentes a partir de Aristóteles, confrontando suas assertivas

com as de estudiosos contemporâneos como Reboul e Bakhtin, entre outros. Para análise do

discurso, no que diz respeito ao teor dialógico-ideológico inerente a ele, igualmente serão

consultados textos que tratam de teorias referentes à construção e produção de discursos, de

autores como Bakhtin e Fiorin.

A condução do trabalho ora apresentado, na coleta, seleção e análise dos dados é feita

de forma a oferecer subsídios que comprovem a existência dos elementos característicos do

discurso epidíctico, além daqueles que apontem o teor dialógico e ideológico, no texto

escolhido para estudo. Isso, na tentativa de reforçar a tese de que em tal discurso, para além

de recursos constitutivos do próprio gênero em que se enquadra, ao ser analisado, pode-se

confirmar a realidade dialógica do mesmo e, ainda, traços de outro gênero do discurso. A

dialogicidade será apresentada na interpretação do discurso do outro, como matéria para a

construção do próprio discurso, assim como para a existência da carga ideológica no mesmo.

Portanto, pretende-se demonstrar como Cícero dialoga com outros discursos – os discursos de

seus interlocutores -, como compreende, interpreta o discurso do outro e, a partir disso realiza

o seu. Intenciona-se, desse modo, evidenciar que estão presentes duas vozes dentro desse

discurso (a do enunciador e a do enunciatário) e, portanto, que ele é um discurso porta-voz,

também dos desejos do outro e não apenas daquele que o formula. Nesse contexto, almeja-se

demonstrar quem seria o outro e como esse outro agiria ativamente na construção desse

discurso - assim como provar ser o Pro Marcello uma realização que, a um passo, é única e

irrepetível, pois que formulada por um indivíduo, mas que está também representando outras

falas.

E, sendo a voz não somente do orador, como discurso que é, traz em si características

ideológicas presentes, do mesmo modo que é determinado pelo contexto, apesar de, ao

mesmo tempo, essa fala, traduzir, igualmente, uma vontade particular.

A ideologia presente seria a representação de conceitos e valores da época na qual o

discurso foi escrito, em quem Roma assistia o final do período republicado, após um bom

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tempo de vicissitudes sofridas. As intenções particulares, por seu turno, seriam traduzir, pela

fala individual, a vontade do orador em construir um perfil heroico e benevolente para César

e, talvez, para ele próprio, com a finalidade de se colocar ideologicamente a favor do ditador e

como pretendente à reconstrução da República. E, do mesmo modo, convencer, além de César

sobre isso, também o Senado.

Em relação à metodologia empreendida para a construção do trabalho, o método

escolhido para abordagem ao tema, quanto aos fins, foi do tipo descritivo-explicativo, por

meio do qual pretende-se mostrar, as propriedades do discurso, os meios, as etapas e as

condições de construção do discurso. E, desse modo, descrever e explicar quais e como são

suas propriedades e como são apresentadas e construídas; e quais fatores influenciadores. O

método do tipo descritivo, segundo Vergara (s/d, p.16), define-se por ser “aquele que expõe

características de determinada população ou determinado fenômeno. Pode também

estabelecer correlações entre variáveis e definir sua natureza. Não tem compromisso de

explicar os fenômenos que descreve.”. Já a investigação explicativa “é aquela cujo principal

objetivo é tornar inteligível, é justificar os motivos de alguma coisa. Visa, portanto, esclarecer

quais fatores contribuem, de alguma forma, para a ocorrência de determinado fenômeno.

Pressupõe pesquisa descritiva como base para suas explicações.” (VERGARA, s/d, p. 16 e

170). Igualmente, o tipo de pesquisa realizada foi a qualitativa que, conforme entendimento

dos autores Marconi e Lakatos (2010), é aquela realizada por um trabalho que tem como

finalidade interpretar dimensões mais profundas, realizando análises mais detalhadas sobre as

investigações.

Quanto aos meios, foram feitas, ao longo da pesquisa, consultas aos materiais teórico-

bibliográficos acessíveis sobre retórica, oratória, gêneros do discurso; e sobre discursos

propriamente ditos, dialogicidade dos discursos, ideologia e a respeito da construção de um

herói. Igualmente, foram consultados os discursos de Cícero para aplicação e análise segundo

essas teorias.

Como corpus, tem-se o discurso Pro Marcello, de Cícero, proferido no ano 46 a.C.,

após um longo período sem nenhum pronunciamento do orador. Do discurso ciceroniano

serão apresentados excertos que, além de analisados no original, foram traduzidos pela autora

da tese. Optou-se, quanto ao texto latino, por utilizar a edição crítica Les Belles Lettres.

A partir das considerações teórico-metodológicas expostas acima, assim será

estruturada a tese. Com o auxílio teórico comentado, assim como com o apoio de estudiosos

da produção ciceroniana, procurar-se-á demonstrar de que modo as características do gênero

epidíctico são apresentadas, pelo autor, no discurso Pro Marcello e como ele é construído a

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partir da inter-relação com outros discursos, apresentando, assim, numa certa medida, a

realidade pretendida e conceitos ideológicos presentes. Para isso, através da análise do próprio

discurso, pretende-se evidenciar como as escolhas individuais foram feitas, refletindo

características, principalmente, desse gênero de discurso. Ao mesmo passo, objetiva-se

verificar como as ressonâncias de outras vozes e de todo o contexto histórico, social e político

também causaram influências e determinações nas escolhas e na produção.

No primeiro capítulo, são delineados fatos históricos e político-sociais ocorridos nos

períodos, imediatamente anterior, e durante a época em que o discurso foi produzido, com

intuito de fundamentar a influência dos acontecimentos sobre a própria construção do

discurso. Além disso, apresentam-se dados sobre o perfil de Júlio César e de Cícero, como

personalidades e como escritores. A fundamentação para isso foi encontrada, principalmente,

nos livros de Alföldy, Grant, Montanelli, Rostovtzeff, Ayres e Cardoso.

No segundo capítulo, é apresentada a fundamentação teórica para o estudo dos

discursos de forma geral, no que diz respeito à análise, à presença do caráter dialógico e

ideológico e às características de estilo. Como já se salientou, anteriormente, nesse caso, são

usados como suporte, sobretudo, os ensinamentos de Bakhtin e Fiorin. Ainda são expostas,

nesse espaço, as teorias sobre retórica e dialética apresentas em Aristóteles e, entre os

modernos, Reboul, por exemplo. E, também, são apontados dados sobre o surgimento e

desenvolvimento da retórica na Grécia até a introdução dela em Roma, assim como os

apontamentos teóricos para a construção do herói.

E, no terceiro e último capítulo, é estudada a disposição dos discursos nos três

gêneros, segundo Aristóteles, classificando o Pro Marcelo no gênero epidíctico,

predominantemente; e também são apresentados os gêneros dos discursos na visão

bakhtiniana. São, da mesma forma, elencadas e definidas as partes do discurso, e

demonstrados os tipos de argumentos e algumas de suas características, novamente, segundo

o filósofo grego. E, para finalizar, o Pro Marcelo é analisado como um todo e, através da

eleição de diversos excertos, sob à luz das teorias anteriormente expostas.

Desta feita, espera-se, com este trabalho, contribuir, enriquecendo os estudos

realizados, até então, sobre o tema e sobre o próprio discurso em questão. Para tanto,

apresentando, além da análise de características do discurso do gênero epidíctico, da

investigação de como o orador conduziu tais características, da compreensão do discurso do

orador e do próprio destinatário e das influências ideológicas, uma observação na forma como

Cícero apresentou seu personagem, conferindo-lhe traços de herói.

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2 OS FATOS SUBJACENTES AO DISCURSO: O CONTEXTO HISTÓRICO E

SOCIAL

2.1 A República em Roma

César viveu no final da República romana, momento em que, após vários movimentos

político-sociais, a sociedade presenciou grande crise, abalando a sua estrutura.

Muitos desses movimentos influenciaram o crescimento do poder de Júlio César,

favorecendo o seu fortalecimento e impulsionando-o para o que acabaria por se tornar:

aliando-se aos populares e, inicialmente, a personalidades importantes na época, galgou

espaço em Roma e tornou-se um grande ditador.1

Devido a tais fatores, serão delineadas características da sociedade romana naquele

período, com o fito de fundamentar os fatos importantes ocorridos um pouco antes e na época

em que o corpus alvo desta pesquisa foi produzido.

2.1.1 Os tempos finais da República Romana

Acabada a Segunda Guerra Púnica (218 a 201 a.C.), ocorreu rápida mudança na

estrutura social romana. Isso favoreceu a uma grande crise nessa sociedade, acarretando lutas

sociais e políticas. Saindo vitoriosos da batalha contra os cartagineses, os romanos galgaram

outras conquistas, como, por exemplo, o controle sobre o Mar Mediterrâneo ocidental, o

início de anexação da Península Ibérica, o complemento do domínio sobre a Península Itálica

e expansão para o Oriente. Todo esse crescimento trouxe consigo, é fácil de entender,

problemas de toda a sorte para a sociedade. Para Alföldy (1989), uma das causas seriam as

contradições encontradas no centro da organização social romana, aliadas às fraquezas

latentes do governo republicano. Os conflitos, de acordo com esse autor, sangrentos e brutais,

foram uma constante nos últimos anos da República, até que findassem as guerras civis em 30

a.C.

1. O termo ditador é amplamente utilizado para identificar Júlio César neste trabalho, pois é o último e mais importante posto alcançado por ele e, no qual, encontrava-se durante o período de produção do discurso aqui analisado. Neste posto, o ditador realizou grandes ações no que diz respeito a Vrbs, deixando sólidas bases para que Roma se tornasse um grande Império. E, a partir de seus feitos, César entrou definitivamente para a história.

Este posto, vale ressaltar, poderia ser assumido, em Roma, por um magistrado, eleito pelos cônsules, em momentos de emergência, por um período de seis meses. Quem o assumia detinha autoridade suprema para atuar em assuntos de cunho político e militar. No caso de Júlio César, o posto foi assumido algumas vezes, sendo a última, de forma vitalícia.

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Essa crise política e social em fins da República teve, então, diversos conflitos

declarados e violentos, dentre os quais pode-se citar “as lutas dos escravos, a resistência dos

habitantes das províncias contra o domínio romano e a luta dos itálicos contra Roma.”

(ALFÖLDY, 1989, p. 82) e, também, a luta de grupos formados por cidadãos romanos, que

tinham interesses diversos.

Os grupos de escravos eram mais homogêneos, pois se tratavam, em sua maioria, de

escravos rurais, que tinham como objetivo confrontarem-se com os seus senhores e contra o

aparelho do Estado. A luta contra este último se explica pela proteção que dava a esses

senhores. No caso da luta dos habitantes das províncias e da luta dos itálicos, o objetivo

encontrava-se em se rebelarem contra o domínio romano. Esses grupos, diferentemente dos

escravos, eram bem distintos, sendo de camadas sociais diferentes, e pretendiam a libertação

de comunidades, povos ou Estados anteriormente livres.

Em relação às causas das lutas dos escravos, Alföldy (1989, p. 83 e 84) observa:

Radicavam, com efeito, na evolução sofrida pela escravatura romana a partir de finais da segunda guerra púnica, a importância da escravatura na economia romana aumentara enormemente, assim como, num curto espaço de tempo, o número de escravos. As massas de escravos eram brutalmente exploradas e cruelmente tratadas, principalmente nas propriedades agrícolas, podendo os escravos ser facilmente substituídos graças às guerras, ao comércio de escravos ou ao rapto, sendo a sua situação desesperada. Por outro lado, o controlo dos escravos, entre os quais havia muitos homens inteligentes e cultos, antigos cidadãos livres dos Estados helenísticos, não era levado suficientemente a sério pelos seus senhores.

Nesse período, após a segunda guerra contra Cartago, o número de escravos foi

bastante ampliado. Existia, por um lado, a necessidade de mão-de-obra nas grandes

propriedades e o trabalho dos escravos era muito vantajoso para os proprietários, devido à

falta de direitos dos mesmos e, por outro, havia a facilidade de compra – a oferta de mão-de-

obra escrava entre os prisioneiros de guerra era grande. Muitos foram levados para Roma e

seu trabalho utilizado em grande escala e em tarefas diversificadas.

Os escravos, nos últimos tempos da República principalmente, tiveram tratamento

muito pior do que em outras épocas da história de Roma. Eles eram desprovidos de qualquer

direito, eram explorados intensamente e sofriam muito desprezo. Essas condições eram muito

mais do que favoráveis a revoluções e acabaram por precipitá-las. Assim também entende

Ayres, ao comentar: “Era de se esperar que tal estado de coisas gerasse uma reação desta

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massa de homens explorados e isto ocorreu tanto através de iniciativas isoladas (fugas) como

coletivas (as revoltas civis).” (AYRES, 1992, p. 32).

Mesmo assim, as rebeliões realizadas pelos escravos não eram totalmente coesas.

Havia escravos em várias regiões do mundo romano, não havia uma ideologia única, por falta

de comunicação suficiente entre eles, e os interesses também eram diferentes.

No entanto, os movimentos escravistas tinham muitas características em comum,

como os grupos de escravos rurais e isolados, que tinham acesso às armas e eram de difícil

vigilância. O objetivo de sua luta não era acabar com a situação de escravidão, mas, sim,

inverter a situação. Pretendiam fazer de escravos os seus antigos senhores, ou seja, a revolta

desse grupo não tinha a possibilidade de modificar a organização social. E, além disso,

segundo Alföldy (1989, p.86), eles estavam fadados ao fracasso

(...) dado que careciam de apoio de outros grupos sociais, de uma organização revolucionária coerente e de um programa revolucionário efectivo. Os seus métodos de luta eram tão cruéis como os dos seus inimigos, ainda que o heroísmo que mostraram fosse reconhecido por dirigentes romanos. Mas o seu destino estava decidido desde o início.

As consequências que teriam advindo das lutas escravistas não seriam uma mudança

nas bases do sistema da sociedade romana, mas, de certo modo, provocaram alguns acertos. A

situação dos escravos começou a receber algumas melhoras, visto que seus proprietários

perceberam que o modo como os tratavam não conseguiria manter a economia escravista, seja

economicamente, seja politicamente.

A partir de então, muitos escravos passaram a apoiar políticos que lhes prometessem

algo, como a liberdade e uma vida melhor. Alguns começaram a aderir a causas como a de

Catilina e a de Pompeu. Os escravos eram usados, assim, como um meio para a obtenção de

uma finalidade.

A luta dos habitantes das províncias teve um resultado parecido com a dos escravos.

Eles tinham como objetivo “sacudir o jugo do Estado romano” (ALFÖDY, 1989, p.88).

Contudo, esses grupos também não dispuseram de coesão em suas revoltas e as lutas

acabaram por não provocar nenhuma mudança estrutural no sistema social romano. Eles

também fracassaram, porém conseguiram amenizar a brutalidade da opressão sofrida pelas

províncias.

No que diz respeito aos itálicos, após a Segunda Guerra Púnica, passaram a ser muito

discriminados e maltratados, sofrendo opressão política e econômica, principalmente as

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camadas mais pobres. Isso desencadeou a sua revolta contra Roma. O principal objetivo da

insurreição era obter a cidadania romana e não uma revolução social, apesar de pretenderem

resolver problemas sociais.

Sobre a condição dessas pessoas, coloca Ayres (1992):

A condição destes indivíduos tem suas origens nos primeiros tempos de expansão romana. Durante o período compreendido entre os séculos V e III a.C. Roma sustentou guerras incessantes contra os povos vizinhos da Península Itálica. Defensivas a princípio estas guerras acabaram conduzindo, no século III a.C., à unificação da Itália sob o poderio romano. (1992, p. 33).

O fato de não ter cidadania romana implicava muitas perdas para os itálicos, como não

obter os benefícios advindos do Estado e não poder participar ativamente da política.

Contudo, se por um lado eles não tinham direitos, por outro, tinham muitos deveres. Entre as

obrigações, eles tinham de participar e de engrossar as fileiras dos exércitos romanos. Toda

essa situação desfavorável acarretou uma grande insatisfação desses indivíduos.

Entretanto, a revolta dos itálicos foi dominada por Roma, “mas só depois de a Lex

Iulia ter concedido, em 90 a.C., a cidadania romana a todos os itálicos que se haviam mantido

fiéis a Vrbs, cidadania essa que foi alargada através da Lex Plautia Papriria, em 89 a.C., a

todos os revoltosos que se rendessem (...).” (ALFÖLDY, 1989, p. 89).

Mesmo podendo, com a cidadania, atingir os objetivos políticos, não conseguiram

realizar uma transformação social. As diferenças encontradas no sistema social romano não

foram dissipadas, com tais investidas.

Esses conflitos, desse modo, acabaram amenizando-se nas décadas de 80 a 70 a.C. Os

itálicos conseguiram conquistar a cidadania romana, a resistência a Roma findara na Grécia e

na Ásia Menor, com a vitória de Sila2sobre Mitridades; e a revolta dos escravos acabou após o

movimento de Espártaco3, em 71 a.C., quando eles passaram a receber um tratamento menos

opressivo de seus senhores. (ALFÖLDY, 1989).

O conflito referente à rivalidade entre cidadãos romanos tinha como principal

finalidade de uma parte – a dos políticos reformistas – resolver os problemas do povo de

Roma, opondo-se à resistência de outra - da oligarquia. O primeiro grupo passou a ser

conhecido como o grupo dos populares e o segundo, dos optimates.

2. Foi um ditador romano que, segundo Ayres (1992), foi o primeiro a dar um golpe no Estado Romano. Antes disso, trabalhou a serviço de Mário.

3. Gladiador, líder dos escravos.

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Os populares “eram todos aqueles que tinham a atitude comum de se apoiar na ‘plebe’

e de procurar ganhar o favor do povo como meio para atingir o poder” (AYRES, 1992, p.37).

Esse grupo era formado por pessoas muito variadas no que diz respeito a sua origem social,

suas características intrínsecas e seus interesses.

Também eram chamados de nobilitas “a nobreza”, os optimates “os ótimos”. Eles

eram a ordem da Nobreza Senatorial. Era uma ordem

representativa da riqueza e da distinção e da qual o povo elegia os magistrados e se escolhiam os representantes para o Senado. Este Senado, em fins do século IV e princípios do século III principal órgão do governo, formado basicamente por ex-magistrados, era composto em sua totalidade por membros desta ordem, daí o nome que ela recebe Aristocracia Senatorial. (AYRES, 1992, p. 19).

A aristocracia detinha grande poder e prestígio, principalmente após o início da

Segunda Guerra Púnica, a qual lhe exigiu, devido às proporções e à duração, uma atuação

eficiente. Também, porque as vitórias conseguidas avalizaram a sua política e renderam-lhe

muitos lucros, fazendo-lhe “senhora do Estado Romano inteiro” (1992, p.20).

Assim, em meados do século II a.C., o grupo de populares que fazia oposição aos

optimates se organiza e ganha forças, passando a combater o poder do Senado, porque, apesar

de todo esse poder conseguido pela aristocracia, a expansão romana acabou provocando

desequilíbrios na estrutura econômica e social da Vrbs e essa aristocracia, que passou a

segurar o poder do Estado, inicia um processo de incapacidade de liderança diante de tantas

demandas suscitas pelo crescimento, oriundo do grande domínio.

O embate entre esses dois grupos era, principalmente, de cunho político e referente ao

que dizia respeito ao exercício do poder político do Estado. Sendo assim, o conteúdo social de

tais conflitos foi sendo colocado de lado e o caráter político das lutas foi ganhando maior

importância, passando depois a ter unicamente o objetivo referente à liderança dos

agrupamentos políticos.

Os conflitos entre os populares e optimates teriam sido, historicamente, os mais

relevantes para a sociedade de Roma em fins da República. Os confrontos suscitados por

esses conflitos teriam provocado a guerra civil, seguida da implantação do principado,

iniciado por Otávio.

O cunho político, como dito, sobrepunha-se ao social nesses conflitos e a

consequência disso seria a alteração do “enquadramento político da organização social

romana, e não organização em si.” (ALFÖDY, 1989, p.90). As tensões surgidas, então, entre

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os cidadãos romanos tinham como causa principal as transformações ocorridas na estrutura

social romana nesses tempos finais da República e se tratavam de tensões bem mais

complexas do que as outras, devido à grande diferenciação social existente entre esses

cidadãos.

Eram tensões que tinham origem no interior da aristocracia senatorial, principalmente entre os diferentes grupos da nobilitas dominante, apoiada pela massa de clientes e, ainda, entre a nobreza senatorial e a nova ordem equestre – que incluía nas suas fileiras os empresários ricos e os detentores de contratos de financiamento – e, posteriormente, entre os grupos dominantes do Estado romano e as massas proletárias concentradas em Roma, além dos conflitos entre os ricos proprietários de terras e os camponeses pobres. (ALFÖLDY, 1989, p. 90).

Com o acirramento dessas tensões, durante os anos 30 do século II a.C., os aristocratas

tentaram realizar algumas reformulações.

É mais ou menos nesta época em que se situam as tentativas de reforma empreendidas pelos Gracos (Tibério Graco em 132 a.C. e Caio Graco em 123 a. C.). As mesmas tiveram profundas influências no futuro do “partido popular” e seus idealizadores são considerados (…) os primeiros grandes líderes do mesmo. (AYRES, 1992, p. 38)

Nesse período, os pobres livres desapossados deslocavam-se para as cidades, sem

emprego e famintos. Inicialmente, houve uma tentativa de uma reforma agrária. Contudo, essa

reforma não obteve sucesso. Além de não acontecer de forma pacífica, acarretou em conflitos

entre grupos políticos detentores de interesses diferenciados. Tibério Semprônio Graco, que

fora anteriormente tribuno da plebe, conseguiu a promulgação de uma lei agrária na

assembleia popular. Sobre essa proposição de Tibério à Assembleia, Grant (1967, p.16)

observa que, para auxiliar esses pobres

E renovar a prosperidade da Itália, o jovem e generoso nobre Tibério Semprório Graco ressuscitou os antigos poderes revolucionários do seu cargo de tribuno da plebe. Este cargo, posto que destinado, séculos antes, a proteger as classes mais baixas, de há muito que se tinha submetido, obedientemente, à máquina senatorial. Mas Tibério Graco, familiarizado com as idéias gregas de soberania popular, ignorou o Senado, e antes propôs à Assembléia, primeiro, que a terra ocupada – agora precariamente – pelos arrendatários estaduais, fosse confirmada

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em certos casos, mas limitada noutros; e, em segundo lugar, que o excedente assim obtido fosse arrendado a pobres sem terras.

Foi um dos conflitos entre os cidadãos romanos. A lei determinava que ninguém

poderia dispor de propriedade que tivesse mais de 500 a 1000 jeiras4. As terras que

ultrapassassem esse limite seriam distribuídas numa determinada medida (30 jeiras) para os

camponeses pobres. Contudo, elas pertenceriam ao Estado, que receberia um pagamento

simbólico. Essa lei de distribuição de terras não obteve total sucesso, culminando na morte do

tribuno Tibério e de muito de seus partidários. Tal ocorrência não conseguiu impedir que

novas tentativas de reformas fossem realizadas.

Tibério, ao contrário, foi tomado como um símbolo de político voltado às questões

populares e às reformas em seu favor, mas, ao mesmo tempo, como um agitador para aqueles

que se encontravam do lado da oligarquia.

Sobre o assassinato de Tibério Graco, Grant (1967, p.16) dispõe: “quando (...) Tibério

se candidatou a uma imediata reeleição, ele e trezentos partidários foram mortos. Esta

primeira carnificina na luta civil romana, durante perto de quatrocentos anos, inaugurou um

século de violência política.”.

O irmão de Tibério, o tribuno Caio Semprônio Graco, também implementou

programas de reformas. Ele, igualmente, foi considerado um símbolo para o grupo dos

populares. As medidas tomadas por esse tribuno tiveram, entre outros propósitos, a intenção

principal de melhorar a situação dos camponeses e garantir-lhes a sobrevivência econômica,

não possibilitando a compra de sua porção de terra pelos ricos.

Entre as medidas tomadas pelo tribuno Caio Semprônio, houve a de destinar os

cavaleiros5 aos cargos de juízes do tribunal – cargos, até então, destinados aos senadores. Esse

júri era composto, instituído, para “proteger os provincianos da má governação, a fim de

julgarem acusações de extorsão apresentadas contra os governadores romanos” (GRANT,

1967, p. 17). Isso, é claro, não foi bem recebido pelos senadores.

Caio Graco também implantou, entre outras medidas, com o propósito de melhorar a

situação dos camponeses, uma reforma agrária e, assim como a de Tibério, fracassou numa

certa proporção e, do mesmo modo, provocou reações violentas. Acabou o tribuno e seus

partidários sendo derrubados por meio da força. Como comenta Grant (1967, p. 17), “no meio

de árdua luta e da repressão que se seguiu, Caio e três mil outros perderam a vida”.

4. Antiga medida para terrenos agrícolas.

5. “Cavaleiros” ou “Ordem Equestre” estava, segundo Ayres, abaixo da Aristocracia Senatorial, “que direta ou indiretamente também influíam no poder.” (1992, p. 21).

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Com o fracasso das tentativas de reforma agrária e a morte dos Gracos, a aristocracia

senatorial renova o domínio que detinha dentro do Estado. Logo em seguida, mesmo havendo

ainda oposição, não se conseguiu ameaçar o poder do Senado. Só mais tarde as investidas dos

populares voltariam a se repetir, quando a aristocracia foi alvo de duas derrotas políticas. Isso

aconteceu quando os populares, após reorganizarem-se, elegem Caio Mário para o consulado

– por conta de resultados ruins na guerra contra Jugurta6 - quando “o comando de guerra

contra o reino Numídia foi transferido, por plebiscito, do aristocrata Cecílio Metelo para o

novo Cônsul.” (AYRES, 1992, p. 59).

Sobre isso comenta Grant (1967, p.17):

Metelo sustentou duas prometedoras campanhas, mas seu obstinado, ardiloso subalterno e protegido Mário – oriundo de uma família de agricultores de Arpino -, teceu intrigas contra Metelo por meio de influências comerciais e populares, de forma que a Assembleia o elegeu cônsul (sem considerar o Senado e, consequentemente, as presumíveis lutas partidárias) e o indicou como substituto de Metelo.

Mário foi amplamente bem visto aos olhos do povo romano, após conquistar tais

cargos, lograr êxito e conseguir findar a guerra contra Jugurta em 105 a.C. Ao fim da guerra,

surge um novo líder que iria se destacar diante do povo: Sila.

Mário também iria se destacar e se consagrar ainda mais junto ao povo, devido a

várias vitórias conseguidas. Assim, foi reeleito várias vezes consecutivas ao consulado.

Contudo, como conjectura Ayres, ele não era um verdadeiro líder popular, mas alguém que,

pelos atrativos – “pelo brilho que dele irradiava” (1992, p. 61), levou os populares a reunirem-

se a sua volta, dando a essa oposição “meios mais eficazes de chegar ao poder” (1992p. 62).

Foi durante o sexto consulado de Mário que nasceu Caio Júlio César, sobrinho de

Mário, por parte de sua esposa, oriundo, também, de uma família aristocrática, como será

visto com mais detalhes adiante. Essa condição de nascimento era por ele utilizada, segundo a

autora supracitada, quando pretendia angariar diante do povo, entre outras coisas, admiração

por, apesar de sua origem, ter optado por ficar ao lado dos populares. Ele, que mais tarde veio

a se tornar um dos “chefes dos populares” (AYRES, 1992, 43), cuja posição que tomavam era

a de defensores do povo, mas que, segundo a mesma autora, “ao mesmo tempo almejavam o

poder político dentro da República”.

6. Houve guerra, de 112 a 105 a.C., entre Roma e Jugurta, príncipe do reino Numídia no norte da África.

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Depois de vários conflitos, Mário solicitou o comando contra o rei do Ponto (norte da

Ásia Menor), que era Mitrídates. Todavia, o comando foi confiado não a ele, mas a Sila.7

Mário tentou impedi-lo de conseguir o comando, mas não obteve sucesso nessa

empreitada, foi abatido e “fugiu para o norte da África” (p. 19). Depois, ainda volta à capital

e, perturbado, organiza, segundo o autor, carnificinas como nunca visto antes. Ele morre

prematuramente e seus sucessores não conseguem impedir a volta de Sila.

Contudo, como ditador, Sila não tentou modificar a tradicional administração do

Senado; ao contrário, angariou o apoio da aristocracia. E, após algumas medidas fortalecendo-

a, “cansado de guerra, de poder e de Roma e sem aspirar à solução final do poder vitalício,

anunciou a sua abdicação da vida romana em favor da vida privada” (GRANT, 1967, p. 20).

Morre, assim, pouco tempo depois.

2.1.2 Os institutos políticos na República: Senado, Povo e Magistrados

Sobre os institutos políticos na República romana, serão utilizados, como

fundamentação, os ensinamentos da estudiosa Norma Musco Mendes, no livro Roma

Republicana.

Os institutos políticos conhecidos pelos romanos, na República, eram o Senado, o

Povo e os Magistrados. Não se tinha a separação entre poderes legislativo, executivo e

judiciário. Todavia, as práticas institucionais em Roma eram realizadas por meio da

organização de regras institucionais. Não existiu uma constituição republicana, mas tais regras

constitucionais, baseadas nos costumes e na tradição.

De acordo com Mendes, o historiador grego, Políbio de Queronéia, foi o primeiro a

estudar as instituições romanas, considerando o sistema de governo engendrado pelos

romanos como ideal, devido ao fato de conseguir reunir três regimes políticos, produzindo,

assim, uma “constituição mista” (p. 37). O historiador, segundo ela, afirmou existirem três

institutos políticos com soberania em Roma: o consulado, o Senado e o poder do povo.

Entendeu o estudioso haver um equilíbrio entre esses institutos e, dessa forma, existir um

7. Foi a ele que o comando contra Mitridades teria sido confiado, no lugar de ser confiado a Mário. Ele era “um patrício empobrecido, que após renhida luta nas ruas de Roma, defendeu a sua pretensão colocando-se à frente do seu exército, fora da capital, e marchando em seguida (...) sobre a cidade. (...)” e, assim, mesmo a despeito de investidas de Mário contra ele “tomou a Grécia a Mitridades (...) Após três anos de guerra civil e o derramamento de sangue de milhares de antagonistas, que pretendiam terras para os seus 120000 soldados licenciados, Sila nomeou-se a si próprio para o antigo cargo de emergência de ditador (81 a.C.), protelando o primitivo tempo-limite de seis meses neste posto até ao restabelecimento da ordem nacional.” (Grant, 1967, p.19).

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controle de um sobre o outro. Contudo, a historiadora analisa não ser a equidade uma

característica desse sistema de governo, já que o controle sobre a política e a vida pública

exercido pelo Senado comprometia essa particularidade. Ponderando sobre estar anulada a

possibilidade de um modelo democrático, ela comenta, apontado os fatores responsáveis por

isso:

A possibilidade de evolução de um modelo democrático em Roma foi anulada pelos seguintes fatores: o funcionamento político-institucional da comunidade romana, as formas de relacionamento social baseadas na clientela, os mecanismos ideológicos e jurídicos que justificavam a obediência e desigualdade social, as exigências oriundas da conquista e expansão territorial. (MENDES, 1988, p. 38).

Em relação ao exercício do poder, apesar de o povo romano possuir seus direitos como

tal, apenas poderia realizá-lo aquele que tinha a dignitas “dignidade” e a auctoritas

“autoridade”. Essas qualidades eram essenciais para vida tanto pública quanto privada do

cidadão romano. Em relação à dignidade, ela define como “o prestígio político daqueles que

tinham condições sócio-econômicas para ocupar cargos públicos” e acrescenta que “Aos

poucos foi revestida de caráter hereditário, tonando-se monopólio da aristocracia.” (p.31). Já,

no que diz respeito à autoridade, a detinham aqueles indivíduos que, “por sua conduta moral e

ação pública e militar, demonstraram possuir autoridade superior aos demais para o exercício

do poder”. De acordo Mendes, essa ideia sobre autoridade conferiu aos que a possuíam uma

obediência em relação a eles que, normalmente, era bem aceita, incorrendo isso, na

“importância política da auctoritas patrum (autoridade dos senadores)” (p. 31).

Esse instituto político (o Senado) ocupava posição de relevo na República e só

poderiam a ele pertencer membros de grandes famílias. Eram, principalmente, selecionados

entre membros da aristocracia e de forma vitalícia.

O instituto destacava-se no comando do Estado e no âmbito da sociedade romana.

Segundo Mendes (1988, p.32), “Não havia praticamente domínio no Estado em que os

senadores não fizessem sentir a sua influência, fundamentada no prestígio político-militar,

moral e na condição financeira dos senadores.”. Interferiam sobre todas as coisas, inclusive,

sobre a confirmação da eleição dos magistrados superiores – cônsules, censores e pretores.

Além disso, era um instituto que detinha a perpetuação no poder de famílias influentes da

aristocracia de Roma.

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Em relação aos cidadãos, a princípio, todos eram iguais perante a lei, mas eles foram

divididos desigualmente pela organização censitária (censo feito de cinco em cinco anos, de

caráter militar, fiscal e político) em: recrutáveis – os que poderiam participar das legiões, por

terem recursos suficientes e qualificação moral e cívica. Estes eram, ainda, subdivididos de

acordo com o tipo e quantidade de recursos que possuíam. Os que não se encaixavam nesse

caso eram os não recrutáveis, que não possuíam tais características, sendo recrutados somente

em último caso, em extrema necessidade. Entre estes estavam os que possuíam como bem

maior unicamente a sua pessoa – os capite sensi (literalmente, aqueles que eram contados por

cabeça) – e aqueles que poderiam oferecer ao Estado a sua pessoa e, ainda, um pouco mais, a

sua prole – os proletarii.

A participação popular em Roma encontrava várias limitações. Além da “posição

preeminente do Senado” e da necessidade de se ter dignitas e auctoritas, o povo ainda

encontrava restrições para que pudesse participar politicamente devido às práticas realizadas

pelas Assembleias romanas.8Conhecendo o funcionamento dessas Assembleias, conhecem-se

também as limitações encontradas pelo povo, no que diz respeito a sua participação política,

pois que as suas atribuições acabam por favorecer essas restrições. Assim também o sistema

de votação limitava a participação do povo, pois, entre outros fatores, muitos não conseguiam

– por vários motivos -deslocar-se do local onde se encontravam até o local onde seria a

eleição. Do mesmo modo, o cidadão não indicava candidato nem propunha projetos de lei,

assim como pode ser atribuída essa limitação a outras práticas, que acabavam por afastar a

participação política popular.

Desse modo, a participação popular era restritra e nem sempre as suas ações estavam

em consonância com o Senado, “But nor shoud it be assumed that popularis activities ever

constituted a movement against the Senate: all senators were aristocrats invested in the

continuity for existing institutions of the Republic.”(ROSENSTEIN; MORSTEIN-MARX,

2006, p. 191).9

8. As Assembleias eram uma estrutura político-admistrativa existente na Roma Antiga, além do Magistrado e do Senado. Elas tinham atribuições legislativas, eleitorais e judiciárias.

9. Mas não se deve presumir que as atividades populares sempre constituíram um movimento contra o Senado: todos os senadores eram aristocratas que investiam na continuidade das instituições existentes na República. (Tradução Nossa).

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2.1.3 Crises entre Senado e revoltas populares

Nesses tempos finais da República em Roma, muitos estavam insatisfeitos desde o

início das guerras civis. O ódio partidário existente intensificava-se cada vez mais.

A Constituição do Senado e de Sila tinha muitos inimigos, - os filhos dos líderes democratas condenados à morte, os proprietários cujas terras haviam sido tomadas para ser entregues aos veteranos de Sila e os soldados dos exércitos democratas, que nunca receberam as terras prometidas. (ROSTOVTZEFF, 1983, P.119).

Muitos distúrbios aconteceram desse modo. Por seu lado, os populares que tinham

como chefe, Lépido, pensavam, após a morte de Sila, recuperar o poder. Várias foram as

tentativas nesse sentido, mas acabaram fracassando e o Senado, através de sua força, os

derrotou.

Para isso, o Senado, na época, teve de lançar mão de medidas que contrariavam a

Constituição de Sila, como a criação de comandos extraordinários, que eram confiados a

pessoas especiais. Durante um período extenso, muitos aspirantes a isso, após a morte daquele

ditador, tentaram ocupar tal lugar, pois, segundo Rostovtzeff (1983), havia a possibilidade de

um desses generais, sendo vitorioso, tornar-se senhor de Roma.

Esse fato apresentou-se como um problema para o Senado, porque, assim, seria mais

seguro procurar eleger alguém entre os interessados, que não parecesse ter condições de

rebelar-se contra ele. Vários foram os comandos criados, então, por esse instituto. Um deles

foi o referente a Pompeu.

Pompeu foi um desses homens interessados em ocupar o lugar de Sila. Ele já havia

tido destaque enquanto o ditador ainda vivia, inclusive, combatera ao seu lado durante a

guerra civil. O seu desempenho nesse período dera-lhe essa posição de privilégio. Venceu na

Itália e, depois disso, combateu alguns populares na Sicília e na África.

Por tais feitos, Pompeu ganhou o título de Magnus - honra triunfal com a qual somente

heróis eram recebidos. Tal honra era considerada ilegal, pois deveria ser apenas destinada a

magistrados – e ele não o era. Além disso, deveria ser um benefício destinado a um general

por ter vencido o inimigo estrangeiro, em uma guerra justa. E o que Pompeu tinha conseguido

não poderia ser assim considerado. Tratou-se de um grande massacre de cidadãos.

(ROSTOVTZEFF, 1983).

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Após a morte de Sila e por ocasião da tentativa revolucionária de Lépido, Pompeu

serviu ao Senado para tentar coibir essa ação do chefe dos populares.

Diz Rostovtzeff, (1983, p. 121) que,

Quando Sila morreu, Pompeu estava na Itália, comandando um exército. O Senado serviu-se dele para esmagar a tentativa revolucionária de Lépido, mas teve de pagar alto preço: ele exigiu um comando extraordinário na Espanha, a fim de combater Sertório, e era impossível recusar tal pedido.

Sobre o porquê desses desentendimentos entre Sertório10 o os outros romanos,

Montanelli assevera:

(...) indignado pelas barbaridades tão inúteis, desertou, chamou às armas as outras tribos, com elas constituiu um exército e, durante oito anos, conduziu esse exército de vitória e vitória contra os romanos. Como Metelo, o general que o Senado enviara para combatê-lo não chegasse a dar-lhe cabo, prometeu-se algo como duzentos milhões de liras e dez mil hectares de terras a quem conseguisse matá-lo. Perpena, outro refugiado romano do acampamento de Sertório, o apunhalou. (MONTANELLI, 1957, p. 195 e 196).

O assassino de Sertório, no lugar de ir receber a recompensa pelo feito, ficou no lugar

do morto e continuou a guerra. Sendo assim, Pompeu foi enviado pelo Senado para combatê-

lo e obteve sucesso. Assim coloca Montanelli: “O Senado expediu contra êle Pompeu, que

não teve dificuldade em bater o renegado, dêle apoderar-se e suprimi-lo – fazendo que a

Espanha voltasse ao regime dos desatinos de seus governadores.” (MONTANELLI, 1957 p.

196).

Além desse comando extraordinário, existiram outros, como o que tinha à frente L.

Lúculo e Aurélio Costa, cônsules de 74 a.C., comando instituído para tentar derrotar

Mitrídates, na Ásia Menor. Ainda houve o comando extraordinário de Marco Antônio,

encarregado de combater, no Mediterrâneo, os piratas aliados de Mitrídates.

O Senado também tinha outras revoltas para combater, como a revolta dos escravos e

outros tantos descontentes com sua situação, como os gladiadores comandados por Espártaco.

Este vencia “batalha após batalha” (p.196). Espártaco, escolhido como chefe dos gladiadores,

“lançou um apêlo a todos os escravos da Itália, cujo número atingia a milhões, organizou

70.000 dêles, que formaram um exército ávido de liberdade e vingança, ensinou-lhes a

10. Partidário de Mário.

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fabricar armas e bateu os generais que contra ele enviou o Senado.” (MONTANELLI, 1957,

p. 196).

Contudo, o poder dos escravos foi diminuindo na medida em que muitos do seu

exército preferiram continuar na Itália, atentando contra os antigos senhores.

Desse modo, e também com o auxílio de outro comando extraordinário, de M. Licínio

Crasso, pretor e um dos oficiais de Sila, que foi encarregado de dar fim à guerra realizada por

aqueles gladiadores: “Crasso destroçou 90000 escravos em revolta, que ameaçavam

perigosamente sob o comando do gladiador Espártaco.” (Grant, 1967, p.20).

Quando Crasso foi designado para dar fim a isso, em um novo comando,

Espártaco deu-se conta de que era o próprio Império que tinha à sua frente; retirou-se para o sul, na esperança de fazer passar suas tropas primeiro para a Sicília e, a seguir, para a África. Crasso o seguiu, entrou em contato com suas tropas, destruiu a retaguarda, perseguiu-o. (MONTANELLI, 1957, p. 197).

O chefe dos gladiadores estava, nesse tempo, consciente de que o fim da luta

aproximava-se. Sendo assim, “lançou-se em plena luta, matou dois centuriões e ficou ele

próprio de tal modo crivado de golpes que se tornou impossível, a seguir, identificar-lhe o

cadáver.” (MONTANELLI, 1957, p.197).

O Senado, então, conseguiu mais uma vitória nessa guerra. “Em 70 a.C. a crise nos

assuntos externos estava encerrada: a paz fora restabelecida na Espanha, as garras de

Mitrídates haviam sido aparadas, na Itália os escravos eram exterminados sem piedade e

somente os piratas zombavam do poder de Roma” (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 123).

Apesar de todo esse clima de estacionamento de tais crises na Espanha, na Ásia Menor

e na Itália, havia ainda um grande problema a ser resolvido internamente. Sila havia destinado

a constituição dos júris dos tribunais somente ao Senado. Alguns grupos sociais, além de

perderem esse direito, tinham sido enormemente prejudicados pela destruição impetrada pelos

escravos, pela ação dos piratas e pela guerra do leste, como o grupo dos cavalheiros e dos

homens de negócios.

Nesse meio tempo, acontecimentos fizeram com que Pompeu e Crasso, apesar de não

terem boas relações, ficassem unidos e, então,

Os dois generais vitoriosos, de retorno a Roma, não dissolveram os seus exércitos, como o queria a lei e o desejava o Senado. Não

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gostavam um do outro. Ambos eram ambiciosos. Porém, quando o Senado recusou o triunfo a Pompeu e aos seus veteranos a distribuição de terras que lhes fora prometida, aliaram-se e fizeram com que seus homens se acampassem, ameaçadores, nas cercanias imediatas da cidade. (MONTANELLI, 1957, p. 197).

Nessa situação, o grupo dos populares começava agir novamente. E poderiam libertar-

se da Constituição de Sila, com o auxílio de Pompeu. Pompeu juntamente com Crasso

pensou, então, em forçar um acordo com o Senado, usando, para isso, a sua união (apesar das

divergências) e, igualmente, atraindo os cavaleiros e populares para perto de si - homens que,

até o momento, ambos haviam tentado destruir. Para isso, a Constituição de Sila teria de ser

violada.

Sobre as ações dos populares em relação a Pompeu e Crasso, Montanelli (1957, p.

197) relata: “(...) os ‘populares’, que, desde a morte de Sila, esperavam o momento de poder

vingar-se dos abusos da aristocracia, se enfileiraram à volta dêles, fizeram-nos os seus

campeões e os elegeram cônsules para o ano – 70.”.

A respeito da derrubada da Constituição de Sila, Pompeu e Crasso obtiveram sucesso

em tal empreitada, fazendo o Senado ceder, e, desse modo, foram cônsules em70 a.C., como

mencionado.

Apesar de os dois – Pompeu e Crasso – não pertenceram ao grupo dos populares, pois

eram aristocratas de nascimento, eles, assim como outros de seu grupo, voltaram-se para o

grupo dos populares, por conta de estes terem sofrido com ações impetradas pela aristocracia.

Desse modo, segundo MONTANELLI (1957, p. 197), a primeira medida efetivada

pelos dois foi, justamente, a derrubada daquela Constituição, realizando “a restauração do

poder aos tribunos, de que Sila os despojara, e a retirada aos patrícios do monopólio do júri

nos tribunais, aí readmitindo os cavaleiros.”.

Mais tarde, Pompeu venceria totalmente Mitrídates na Ásia Menor, pois conseguiu

substituir Lúculo nesse comando. Com essas vitórias alcançadas, Pompeu agradou a vários,

com a anexação de domínios territoriais e a possibilidade de enriquecimento.

Todo esse poder obtido acarretou em novo perigo, que seria uma ditadura posterior a

de Sila: a nova ditadura de Pompeu.

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2.2 Perigo de ditadura de Pompeu e surgimento da figura de César

Nesse momento, em que Pompeu se fortalece e parece obter possibilidade de se tornar

um novo ditador, surge a figura de César.

Enquanto Pompeu permanecia no Oriente, os populares, em Roma, assim como o

próprio Senado, desconfiavam dele, pois conheciam seus desejos de poder. Ele os havia

ajudado, é certo, para que se libertassem da Constituição de Sila, mas não deixava de ser um

perigo devido às suas próprias características e suas ações como partidário que fora daquele

ditador.

Nesse contexto, aparece César, como líder dos populares, que pretendiam, na ausência

de Pompeu, conseguir dominar a conjuntura em Roma. César tornou-se seu líder após

manobras políticas financiadas por Crasso, que invejava Pompeu. Crasso era um homem de

posses, que patrocinou tais manobras, com o fito de enfrentamento a Pompeu.

Mesmo tendo César como líder, na ausência de Pompeu, os populares não se

encontravam em boa situação. Eles não conseguiam se impor e não conquistavam novas

posições em Roma. “Os opitimates vigiavam-nos atentamente e impediam que obtivessem

comando militares e magistraturas para seus líderes (...). (ROSTOVTZEFF, 1983, p.124).

Outro homem da aristocracia foi alvo dos populares para servir de instrumento de

alcance desse objetivo de dominar Roma: Catilina. Era, segundo o autor supracitado, assim

como Pompeu e também César, um homem que buscava poder e tinha muita influência junto

ao povo. Além disso, havia tido divergências com o Senado e pretendia aliar-se a César, caso

isso lhe garantisse fácil acesso ao consulado.

Sobre a origem de Lúcio Catilina, Montanelli (1957, p. 198 e 199) dispõe: “Catilina,

ainda que de nascença aristocrática, passou para o lado dos ‘populares’ mais excitados, (...).

Seu programa era radical (...)” e acrescenta ter o mesmo apresentado sua candidatura ao

consulado, esperando serem unânimes aqueles contra o Senado.

Essa tentativa do grupo dos populares de usar Catilina como meio para atingir os seus

objetivos não deu certo, pois o Senado conseguiu sustá-la, assim como o grupo dos cavaleiros

não tinha a intenção de iniciar nova revolução, pois poderia trazer muitos problemas.

Com o apoio dos líderes dos populares – César e Crasso – Catilina fez várias

tentativas de conseguir chegar ao consulado. Contudo, também não foi bem sucedido.

Nessa primeira tentativa de alcançar o consulado, houve uma situação que contribuiu

para que a investida não lograsse êxito. Marco Túlio Cícero, ao servir de mediador entre

cavaleiros e Senado, acabou facilitando e impedindo que a manobra dos populares vingasse.

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Assim se verifica nas palavras de Montanelli (1957, p.199): “[A alta burguesia] Estava

com a plebe quando tratavam de diminuir os monopólios da aristocracia; aliava-se, contudo, à

aristocracia e, por conseguinte, ao Senado, uma vez que estivessem em jogo o Estado(...)”,

acrescentando: “Viu-se bem isso pela atitude de Cícero, que opôs a própria candidatura à de

Catilina e o bateu, promulgando a ‘concórdia das Ordens’ ou seja a Santa-Aliança da

aristocracia com a alta burguesia, das quais foi, naquele ano, o grande intérprete.”.

Como se vê, Cícero, àquela época já era um homem de prestígio:

Cicero was rapidly rising to prominence in te 60s. Though a “new man” from a municipality, his eloquence and his brilliant intellect, his strong connections within teh equestriam order, all in combination with integrity and prudence,rendered him attractive to most segments of Roman society and compensated for his deficient heritage. (ROSENSTEIN; MORSTEIN-MARX, 2006, p. 194).11

A estudiosa Rosa (2002, p. 7), comenta que o próprio Cícero entendia que o preparo

que teve foi fundamental para que assumisse posições importantes sócio-política. Assim

pode-se confirmar: “De nascimento relativamente obscuro para os padrões da nobilitas,

Cícero afirma que jamais chegaria aos ofícios mais destacados se não tivesse se preparado

para tal”.

Cícero havia dado início a sua carreira política, lutando ao lado dos populares, contra

as atitudes do Senado, mas entendendo, através de sua astúcia, que uma revolução traria

muitos males a Roma, resolveu aliar-se ao outro lado. Ficou, assim, nessa questão, contra os

populares: “Estava, portanto, pronto a um entendimento com o Senado; e contra Catilina,

desertor dos aristocratas, o Senado apresentou Cícero, desertor dos democratas.”

(ROSTOVTZETT, 1983, p. 125).

O Senado, então, colocou contra Catilina, Cícero, como candidato ao consulado.

Tendo este sido eleito em 63. a.C., César e Crasso retiraram o anterior apoio dado a Catilina.

Sobre Catilina, Citroni et alli colocam:

As eleições consulares decorreram num clima de pesada tensão. Um dos candidatos

era um nobre corrupto e decadente, Lúcio Sérgio Catilina, que já tinha sido rival de Cícero na

anterior ronda eleitoral (2006, p. 271).

11. Cícero rapidamente ascendeu à proeminência nos anos 60. Apesar de ser um "homem novo" de um município, sua eloquência e seu intelecto brilhante, suas fortes ligações dentro da ordem equestre, tudo em combinação com integridade e prudência, rendeu-lhe atração para a maioria dos segmentos da sociedade romana e compensou sua herança deficiente. (Tradução Nossa).

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Ao ser novamente derrotado nas eleições para cônsul daquele ano, Catilina não se fez

de rogado e resolveu se unir a outros impetuosos políticos, começando a incitar uma anarquia

em Roma, inclusive, convocava, na Etrúria, partidários, que eram veteranos de Sila.

Seus partidários em Roma deveriam iniciar o massacre dos magistrados e senadores, atear fogo à cidade e assumir o controle, ao passo que os veteranos de Sila deveriam marchar da Etrúria, tomar a cidade e organizar o novo governo. (ROSTOVTZETT, 1983, p 127).

Confirmam-se esses dados nas palavras de Grant:

(...), Catilina, outro aristocrata sem dinheiro e ex-partidário de Sila, tendo sido mal sucedido na sua pretensão ao consulado, mobilizou o apoio de refugiados políticos e proprietários de terras endividados, a favor de um programa de cancelamento de dívidas e, também, de uma insurreição armada. (GRANT,1967, p. 20).

Ao que Grimal corrobora:

Catilina uma desses homens ambiciosos que consideravam as magistraturas como meios de enriquecer, não obtivera o consulado. Saindo da legalidade, este formou uma conjuração para obter o poder pela força. Cercou-se de nobres contrariados, esmagados por dívidas, e também de veteranos de Sula, pequenos proprietários em situação difícil, reunindo aqueles que tinham tudo a esperar de uma revolução e nada a perder. (GRIMAL, 2011, p. 109).

Depois que Cícero sabe, anonimamente, da conspiração, ele: “apresenta no senado as

cartas anónimas que alertavam algumas figuras ilustres para a chacina urdida contra os

políticos mais notáveis de Roma (...)”. (CITRONI et alli, 2006, p. 271).

Cícero teve, assim, um papel decisivo para que essas investidas de Catilina e seus

comparsas não dessem certo, como aponta Rostovtzett (1983, p. 127):

Descoberta a conspiração, graças à ação vigorosa de Cícero, Catilina foi obrigado a deixar Roma prematuramente, a fim de formar seu exército. Os demais cabeças foram presos em Roma e executados sem julgamento por proposta de Catão, o Moço, apoiado por Cícero e com a aprovação do Senado. O pequeno exército de Catilina foi derrotado, e ele tombou na Itália.

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Ao que corrobora Grant (1967, p. 20), dizendo: “Cícero, cônsul em 63 a.C., aprisionou

seis conspiradores do grupo de Catilina e fê-los executar. Primeiro, porém, conquistou o apoio

do Senado, guiado pelo astuto e imbuído de austeros princípios Catão, o Moço”. Montanelli

assim fala a respeito da ação de Cícero:

(...) Cícero pediu a condenação dos acusados à morte; Solano e Catão, o Jovem, o apoiaram. De novo, para defender os acusados apenas se elevou uma voz jovem, e fresca, a de César, fiel advogado dos ‘populares’, que solicitou se limitasse a pena a uma simples detenção. Contrariamente à de Cícero, sua eloquência era sóbria e despojada. Quando acabou de falar, alguns jovens aristocratas tentaram assassiná-lo. César conseguiu fugir (...) (MONTANELLI, 1957, p. 200).

Também Grimal informa a respeito das ações de Cícero sobre a conspiração:

Cícero foi assaz vigilante para surpreender a conjuração antes que Catilina tivesse tempo de agir. Denunciou-a ao Senado – que no primeiro momento não acreditou. Todavia, alguns dias mais tarde, Cícero conseguiu apreender nas bagagens de deputados gauleses, que estavam em Roma, cartas comprometedoras para os conjurados. Estes não buscavam nada menos do que provocar uma revolta na província romana da Gália para criar uma diversão que lhes permitiria realizar seu golpe. O Senado, enfim persuadido, entregou os conjurados ao cônsul, que mandou executá-los na prisão. (GRIMAL, 2011, p. 109 e 110).

Assim como afirma Rostovtzett, os populares não obtiveram sucesso em seus planos e

o retorno de Pompeu como ditador tornava-se, assim, evidente. Contudo, ele voltou a Roma,

em 62 a.C., sem exército e como um cidadão qualquer e não se sabe, ao certo, porque tomou

tal atitude. A verdade é que tanto os populares quanto os senadores eram seus inimigos. E,

apesar daquele desfile triunfal que obteve ao voltar, não conseguiu nada além disso.

Como a conspiração promovida por Catilina não houvesse tido o sucesso pretendido e,

por ter César ligações com ele, resolveu este afastar-se de Roma, ficando por um tempo na

Espanha. Assim que voltou, aliou-se a Pompeu e a Crasso, formando o Primeiro Triunvirato.

“Pompeu, César e Crasso formaram o não oficial e irreprimível Primeiro Triunvirato,

consolidado pelo casamento de Pompeu com Júlia, filha de César” Grant (1967, p. 21).

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Havia ainda, desse modo, a ameaça:

Três ambiciosos, Pompeu, César e o rico Crasso, haviam secretamente feito um pacto, que se chama ‘o primeiro triunvirato’. Eles haviam prometido assistência mútua entre si para dividir o poder e, primeiramente, assegura o consulado a César, de que era a vez. Dos três cúmplices, só César tinha um verdadeiro pensamento político. Isso pôde ser visto durante seu consulado. Ele quis, de fato, realizar as reformas necessárias de maneira pacífica; quis dar terras aos miseráveis, limitar os excessos dos governadores nas províncias; é também a ele que se deve a publicação, pela primeira vez na história, de um Jornal de Roma, que comunicava ao público as notícias importantes e permitia à opinião pública tomar partido com conhecimento de causa. Em suma, durante seu consulado, César fez um real esforço para abrir para o exterior a vida pública e renovar a atmosfera asfixiante e envenenada em que o Senado se comprazia. (GRIMAL, 2011, p. 111).

Sobre a relação de César com Pompeu e Crasso, pode-se acrescentar: “Caesar had

valuable and wealthy friends, the chief of whom were Pompey and Crassus, men whose

interests he had long and publicly upheld. It was time to demand

reciprocity.”(ROSENSTEIN; MORSTEIN-MARX, 2006, p. 198).12

Em 59 a.C., César é, então, eleito cônsul e responsável pela parte executiva dessa

união. Entre as medidas que tomou, estava deixar para si o governo das Gálias Cisalpina e

Transalpina, durante cinco anos. Essa decisão foi de extrema importância para seu

fortalecimento, apesar de, aparentemente não parecer grande coisa. Com esse governo e após

conseguir a missão que tomou para si, adquiriu “reputação militar, um exército devotado e

recursos materiais ilimitados” (ROSTOVTZETT, 1983, p. 128).

Pretendia que pairasse sobre ele a responsabilidade de, assim como um sucessor de

Mário, defender Roma dos povos bárbaros que a ameaçavam. Queria conquistar outras

províncias no Ocidente, enquanto Pompeu conquistava algumas no Oriente. Tinha uma

espécie de missão:

Uma missão própria, difícil, a cumprir – pôr fim à luta com os celtas que haviam tomado Roma no passado e que haviam sido, numa época

12. César tinha amigos valiosos e ricos, dos quais os principais foram Pompeu e Crasso, homens cujos interesses ele, há muito tempo, havia julgado procedente publicamente. Era hora de exigir reciprocidade. (Tradução Nossa).

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ainda próxima, expulsos da Itália, com dificuldade, juntamente com os germanos. (ROSTOVITZETT, 1983, p.128 e 129).

O significado dessa missão ele mesmo propagou, para o conhecimento do povo, nos

seus Commentarii, no qual fez relatos militares.

As vitórias de César nas Gálias perturbavam tanto o Senado quanto Pompeu e Crasso.

Era perigosa, para todos, essa força adquirida por César. Além disso, havia a possibilidade de

desentendimento entre Pompeu e Crasso e de uma consequente dissolução do triunvirato, mas

César conseguiu conciliar os dois.

Em uma conferência em Luca, no norte da Itália, ele conseguiu esse feito e ainda

reforçou o triunvirato, quando, em 55 a.C., conferiu o consulado aos outros dois, o governo da

Espanha para Pompeu, o da Síria para Crasso e mais cinco anos para ele mesmo na Gália.

Contudo, Crasso acabou sendo assassinado na Síria. A morte deste e o falecimento de C.

Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, em 55 a.C., acabaria por agravar as relações entre os

dois.

Pompeu não voltou a sua província. Ficou em Roma e nada fez para acabar com os

muitos motins. Como estivessem as coisas em estado muito ruim, o Senado acabou sendo

obrigado a deixar que ele fosse eleito como único cônsul, tendo poderes de ditador. Depois

disso, levou suas tropas para a cidade e conseguiu reaver ali a ordem. Contudo, como

governava sem tentar destruir a antiga Constituição e, ainda, tendo de dividir o poder com

César, as coisas não ficaram totalmente tranquilas.

Tanto o Senado quanto Pompeu receavam a volta de César da Gália, quando a sua

missão havia terminado por lá. Nessa época, César pretendia concorrer a cônsul mesmo sem

estar em Roma e conservar o seu exército e isso era perigoso tanto para um quanto para o

outro. Nesse caso, César seria mais importante e mais forte do que Pompeu – os exércitos

deste estavam longe. Do mesmo modo, César seria uma ameaça ao Senado, já que, na

primeira vez que foi cônsul, ele mostrara-se “contra o senado e recusara-se a reconhecer

limitações constitucionais.” (ROSTOVTZEFF, 1983, p.131).

Sendo assim, o Senado pensou em ter Pompeu a seu lado, já que este era mais fiel à

Constituição. Com esse objetivo, tentaram de tudo para afastá-lo de César. Quando

conseguiram fazer com que Pompeu rompesse com ele, em 49 a.C., César estava em

vantagem militar e, ao entrar e marchar sobre Roma, sobrou para Pompeu sair da Itália.

A respeito do rompimento entre Pompeu e César, Grant (1967, p. 22) diz: “Pompeu foi

impelido por uma facção conservadora de senadores para um rompimento com César, no

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intuito de limitar o período de exercício deste no cargo de governador da Gália e impedi-lo de

se candidatar de novo ao consulado”.

E acrescenta:

César atravessou o Rubicão (49 a.C) e ocupou a Itália, pelo que Pompeu se retirou para os Balcãs. Perseguindo-o, depois de uma breve expedição a Espanha, César saiu vencedor em Farsalo, na Tessália (48 a.C.), devido à coragem dos seus veteranos na carga de cavalaria. Ao desembarcar no Egito – há muito semidependente de Roma – Pompeu foi assassinado.

Pompeu é morto por Ptolomeu, rei do Egito, que mais tarde foi perseguido por César

até Alexandria e, em luta com sua irmã Cleópatra – a quem César se uniu com interesse em

dela conseguir abastecimentos de guerra -, quase consegue, com o apoio do exército e da

população, derrotar César.

Todavia, César consegue reforços da Ásia Menor e sai vitorioso dessa batalha. Depois

de outras batalhas, inclusive com os remanescentes do exército de Pompeu e com a frota

senatorial na África, ele acaba quebrando a resistência do Senado e derrotando e matando as

suas últimas forças. Ficou, dessa forma, “só, sem rival, e com um novo Senado por ele

escolhido, inteiramente subserviente, e com um exército admiravelmente treinado e

absolutamente dedicado ao seu chefe.” (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 131).

Sobre o potencial de César para atacar e a respeito da adesão dos legionários e do

carisma do ditador, Grant (1967, p. 23) coloca: “César possuía um surpreendente sentido do

momento para atacar, uma perfeita compreensão dos problemas a resolver e o supremo poder

de utilizar e inspirar os seus incomparáveis legionários”.

Assim, passa a ser o chefe do Estado romano de 46 a 44 a.C.. Segundo Rostovitzeff,

“Não se julgava preso a seu passado democrata. Jamais pensou em restaurar o poder do

Senado ou reconhecer a soberania da plebe romana.” (1983, p. 134).

Todavia, no lugar de instaurar terror – porque não entendia que através disso

conseguiria sustentar o poder – pediu a ajuda daqueles adversários que lhe pudessem ser úteis

em alguma coisa no Estado. Entre eles, conta-se Cícero. Outros, também, como Cássio,

Marco e Décimo Bruto, que mais tarde viriam a conspirar contra César levando-o à morte.

Sobre essa conspiração e a sua morte Grant nos informa:

(...) no meio de grandiosos projectos de construção, para estabelecer os seus veteranos em colónias comerciais, e de preparativos para uma expedição ao Oriente, com que tentava igualar Alexandre, foi abatido

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por Bruto, Cássio outros que tinham usufruído do seu favor e perdão, mas que não podiam suportar a autocracia. (1967, p. 23).

2.3 A figura de César

César, além de ser um homem histórico, que viveu e realizou, de fato, vários

feitos notáveis, é também considerado como uma personalidade ou figura, com características

que não se pode comparar, quem sabe, a nenhum outro ser humano. Na verdade, a ascensão

dele a tal patamar, deve-se, inclusive, à sua personalidade ímpar e à grande capacidade de

realizar atos também singulares.

Sendo assim, é relevante uma incursão por dados que permeiam a vida,

educação e circunstâncias que envolveram suas origens e formação.

2.3.1 César, o homem e a personalidade

César, homem inteligente e ambicioso, teve a sua personalidade moldada em ambiente

a um passo aristocrático, segundo suas origens familiares; a outro passo popular, por ter como

lugar de origem e parte da vivência um bairro popular. Do mesmo modo, teve uma vida

influenciada pelas vivências de um momento em que Roma assiste uma crise no padrão de

República romana.

O político e militar que se tornou seria considerado, pelos estudiosos e historiadores,

talvez, o homem mais notável de Roma. Uma personalidade que, com seus feitos e inovações,

conseguiu transformar instituições do momento em que viveu, assim como propulsionou uma

nova forma de atuar politicamente, forma que tinha como base a centralização do poder e

como sustentáculo o apoio popular. Esse modelo perseguido e realizado por César, através de

suas ações, e conseguido por meio de uma política de promoção pessoal, teve como fonte de

inspiração o modelo grego com o qual teve contato – com governo centralizado e amparado

no carisma pessoal, dotado de feições divinas.

Nascido em Roma, no ano 101 a.C13 (ACCIOLY, 1968), e durante o sexto consulado

de Caio Mário - o líder popular -, Caio Júlio César pertencia a uma família da aristocracia.

13. Ayres (1992) aponta 13 de julho deste ano como sendo a data exata do seu nascimento.

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Pelo que se conta, a gens Júlia era descendente de Iulo Ascânio, filho de Enéias, o troiano.

Assim também, a avó paterna de César era descendente da casa real dos Márcios (AYRES,

1992). Contudo, nasceu e viveu parte da juventude em bairro popular de Roma, como foi

exposto por Suetônio, na Vita Divi Juli (“A vida do Divino Júlio César”).

A respeito da origem aristocrática de César, Ayres (1992, p. 62) salienta:

A origem aristocrática de César foi sempre exaltada tanto pelas fontes antigas quanto pelas modernas. Inclusive o próprio César, durante sua vida, destacou muitas vezes este aspecto com finalidades políticas na medida em que isto lhe dava um ‘charme’ especial diante das massas e tornava mais significativa sua opção pelos ‘populares’.

Na época do nascimento de César, os meses do ano ainda não eram denominados

assim como os conhecemos atualmente. O mês de julho, por exemplo, mês em que nasceu,

receberia mais tarde esse nome justamente em homenagem ao ditador – Mensis Iulius14, assim

como outros meses foram nomeados para homenagear personalidades ou deuses, como, por

exemplo, o mês Iunius, dedicado à deusa Juno; o mês Aprilis, dedicado ao deus Apolo; o mês

Martius, dedicado ao deus Marte.

Em Saraiva (1993, 647), o termo Iulius, -i é um substantivo masculino que significa

“Júlio, nome dos membros d’uma numerosa família romana;” e “Nome da família de César”

e, também, um adjetivo, significando “de Júlio César, de seus antepassados e descendentes; e

“do mez de julho” (p.647).

O nome César – Caesar – teria a possível origem em caesus, -a, -um, de caedo - que

tem o significado de cortar - como referência ao fato de uma matrona da família, que deu à luz

a um dos Júlios, ter sofrido uma incisão para isso, procedimento que até os dias atuais recebe

o nome de cesariana. Essa palavra, que é um particípio passado, significa morto, imolado. Já,

em Saraiva (1993), está com o sentido de fazer cair, cortar, brilhar, abrir, entre outros. Talvez

o nome tenha origem no fato de um dos Júlios ter nascido com o cabelo muito longo. Sobre

essa possível origem, pode-se citar o significado da palavra caesaries, -iei que, segundo

Saraiva (2000), é um substantivo feminino, com sentido próprio de “cabeleira”, “cabelo

comprido”, a princípio só de homem, tendo, por extensão, o sentido de pelo. Também aparece

com o significado “César”- sobrenome da família Julia – e, ainda, como “Caio Júlio”.

14. O próprio César renomeou o mês que era denominado anteriormente de Quintilis, pois era o quinto mês do ano, antes de ser instituído o Calendário Juliano.

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Pertencente César, assim como já mencionado, a tal gens Júlia, é filho de um homem,

cujo nome é o mesmo do ditador, Caio Júlio César. Entre outras posições, o pai de Júlio César

foi pretor e recebeu como honras, segundo Accioly (1968), duas estátuas em Delos. Ele

morreu quando César ainda era jovem, “por volta de 86 a.C.” (AYRES, 1992, p.63). Portanto,

quando César contava ainda 16 anos de idade.

A mãe chama-se Aurélia. Era de uma família menos distinta, mas respeitada em

Roma. Contudo, era prima de três irmãos que exerceram o consulado, sucessivamente, nos

anos de 75, 74 e 65 a.C. Foi ela a responsável por presidir a educação de César. Pessoa de

grande caráter, conforme avaliação de Accioly, conseguiu desenvolver no filho ótimas

inclinações para enfrentar os porvires da vida.

Apesar de, em sua família, pessoas terem conseguido galgar posições como, por

exemplo, a de cônsules, ninguém se destacou como personalidade ilustre em Roma e, do

mesmo modo, pode-se dizer que César pertencia a uma família sem riquezas. Era uma família,

na verdade, considerada pobre diante dos padrões da época. Viveu, como dito, parte da vida

em bairro pobre e a falta de dinheiro foi uma realidade experimentada por ele. Portanto, por

esse motivo, ficou muitas vezes endividado, assim como recebeu dinheiro de outras pessoas

para realizar diversas empreitadas que o conduziram para o lugar almejado – à liderança. A

respeito disso nos esclarece Ayres (1992, p. 63 - 64): “(...) ainda que tivessem havido parentes

de César Pretores, Questores e até mesmo Cônsules nenhum destes possuíram especial

destaque nem estavam entre os personagens ilustres da História Romana.”. E completa: “A

falta de dinheiro, as dívidas, a necessidade de obter empréstimos para colocar em prática suas

idéias o perseguiram durante grande parte de sua carreira política.” (p. 64).

No que diz respeito à formação, pode-se citar o fato de ter sido discípulo de Marco

Antônio Gnifo, homem livre e gaulês, que possuía grande memória e era profundo

conhecedor tanto de latim quanto de grego. Inclusive, abriu em sua própria casa uma escola

que foi frequentada, entre outras pessoas, por Cícero. Gnifo foi mestre de César na própria

casa do ditador. E, sendo de nacionalidade gaulesa, pode, de acordo com Accioly (1968), ter

influenciado suas convicções políticas.15 O mestre também parece ser o responsável por

lapidar o talento de César no que concerne à oratória. O ditador é considerado um dos

melhores oradores do seu tempo, podendo ser colocado em pé de igualdade com próprio

15. Como visto anteriormente, César ficou por muito tempo nas Gálias e, com todas as ações vitoriosas lá realizadas, angariou mais fama.

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Cícero, cujo extremo talento na arte de discursar é notório, conforme atesta Quintiliano (apud

ACCIOLY, 1968).

Esse fato de ser um grande orador deve-se à formação recebida na casa dos pais, mas

também por sua inclinação e aprofundamento nos estudos. Dessa forma, com o talento que

possuía e com estudos efetivados, foi responsável por pronunciar vários discursos, que se

tornaram notáveis na época. Tal característica de exímio orador, assim como os seus feitos,

fez com que alcançasse muitas colocações na vida política.

Em relação à personalidade de César, pode-se dizer, por meio de relatos de estudiosos,

que era possuidor de caráter forte, resoluto, inteligente, destemido e dominador, e cedo fez

transparecer essas características através de atitudes como a de desobedecer, por exemplo, a

ordem de Sila, ditador na época logo posterior à iniciação de César na carreira política, para

que abandonasse a mulher. Conforme assertiva de Accioly (1968), tais características podem

ser confirmadas e foram ostentadas por ele nos atos realizados em sua vida, desde o tempo em

que ainda era jovem. A própria opção por ficar ao lado dos populares denota essas

características.

Sobre essa escolha de ficar ao lado dos populares, Ayres analisa como sendo uma

estratégia, já que, não pertencendo a uma família abastada, teria dificuldade de se estabelecer

no poder ao lado da aristocracia que, no final da República, caracterizava-se, justamente, pela

riqueza.

Apesar da origem aristocrática, portanto, como não era provido de riqueza, não teve

fácil acesso à vida política de Roma. Assim, vislumbrou uma possibilidade de poder, aderindo

à causa dos populares.

Ainda que César pudesse ter aderido ao partido dos Nobres – que era até certo ponto esperado que fizesse como chefe de uma ilustre família patrícia – seu caminho para o poder não teria sido fácil principalmente pelo fato de ele não possuir fortuna.

Assim sendo, pensamos que sua opção pelos ‘populares’ foi, ao invés de uma autêntica ‘virada de mesa’, uma escolha lógica e promissora, motivada pelas circunstâncias. Embora esta opção oferecesse mais riscos lhe oferecia, em contrapartida, maiores possibilidades de ganhos. (AYRES, 1992, p. 65).

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A escolha pelo lado dos populares, de acordo com a mesma autora, teve também

influência de parte de sua família, por exemplo, a tia Júlia, irmã de seu pai e mãe de Mário, o

grande general, casou-se com Mário, o Velho. Sofreu influências, desse modo, de dois lados:

“de seus tios, que defendiam a causa ‘popular’ contra o Senado e de sua origem nobre.”

(AYRES, 1992, p. 66).

Ainda na adolescência, como já apontado, por volta dos dezesseis anos de idade, fica

órfão de pai. Logo após essa perda, foi instituído como sacerdote de Júpiter. Sobre o aceite de

César para ser sacerdote de Júpiter, em 85 a.C, indicado pelos partidários do seu primo Mário,

diz Ayres (1992) não haver um acordo entre os autores. Uns dizem ter César aceitado o

convite feito pelos populares, outros dizem tê-lo recusado.

Casa-se, mais tarde, com Cornélia, filha de Cina, um líder popular – mantendo, assim,

suas relações com os populares. Teve uma filha com ela, a quem chamou Júlia. Cina, por essa

época, estava no poder em Roma. Contudo, César não tem tanta sorte, pois o sogro morre

pouco depois (84 a.C.), assassinado pelos próprios companheiros, em uma rebelião.

Em 82 a.C., Sila vence os populares e instaura a sua ditadura em Roma, que dura até

79 a.C. Esse período não foi muito propício para César, no que tange às suas intenções

políticas (AYRES, 1992).

Sila, nesse contexto de ditadura, fez de tudo para evitar qualquer reação dos populares.

Entre as medidas, como matar todos os seus líderes, tentou evitar o surgimento de outros,

como César, que tinha grande potencial para a posição.

Conforme Ayres (1992), César ainda era muito novo para ser sacrificado. Então, Sila

contenta-se em lhe dar a ordem para repudiar a segunda esposa, Cornélia. César não o

obedece e como castigo o ditador retira-lhe o dote da mulher e a herança familiar, tornando-o,

também, inimigo – não foi morto, como queria Sila, mas foi proscrito por ele. Viveu, desse

modo, por um período, fugindo e escondendo-se de seus perseguidores até que, enfim,

conseguisse o perdão do ditador. Esse perdão foi concedido a pedido de parentes influentes de

César, políticos ilustres na época e aliados do então ditador. O perdão foi dado, mas o próprio

Sila previu que estava perdoando alguém que, no futuro, seria a ruína da aristocracia.

Mesmo após receber o perdão, nessa época, não havia ainda lugar para ele na política

de Roma. Sendo assim, serviu como militar fora da Vrbs por um tempo, quando soube da

morte de Sila e para lá retornou, pretendendo aliar-se a Marco Lépido, chefe dos populares.

Todavia, isso não se realizou, pois, segundo Suetônio, desconfiava do gênio de Lépido e não

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achou o momento propício para isso. Nesse período, deu-se o início verdadeiro de César na

política romana. Assim entende Ayres:

Retornou a Roma no ano de 78 a.C. – após a abdicação e morte de Sila – para então se iniciar verdadeiramente na vida política romana. Contava então com cerca de vinte e dois anos, pelos padrões romanos ‘um pouco tarde para começar’16 (AYRES, 1992, p. 74).

Dirigiu-se, então, a Rodes para tomar lições de eloquência com Apolônio Molon, que

era retor grego, estabelecido na cidade. No caminho, foi sequestrado por piratas que, apesar

de o tratarem bem, somente o libertaram quando ele conseguiu o dinheiro do resgate.

Quando soube que aliados de Roma estavam em perigo, foi para a Ásia, onde reuniu

forças auxiliares e conseguiu manter no dever os povos ali inconstantes, ainda segundo

Suetônio.

2.3.2 Aproximação de César com o povo

No regresso a Roma, César recebeu, como honra pelos sufrágios do povo, o tribunato

militar (71 a.C.). Isso foi uma grande prova de sua popularidade diante da população. Como

Tribuno Militar, tomou medidas que defendiam o interesse dos populares, o que o tornou

ainda mais admirado entre eles. Depois, antes mesmo da morte de Cornélia, reveste-se do

cargo de questor. Durante esse período, conseguiu obter a Espanha Ulterior, onde passou a

servir. Sobre a investidura do cargo de questor Ayres (1992) diz ter ocorrido em 69 a.C.

Quando a esposa Cornélia morre e também sua tia Júlia, César realiza funerais

pomposos e discursa a favor dos antigos líderes populares: Mário, marido de Júlia e Cina, pai

de Cornélia. Pronunciando discursos fúnebres para Cornélia, que era jovem, César vai contra

as tradições romanas, que somente os realizavam para mulheres maduras. Esse desapego às

tradições, segundo Ayres (1992), foi uma constante em sua vida.

Tal atitude foi favorável a César diante do público, que o ovacionou:

16. Duggan, A. Julius Caesar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958. (apud Ayres).

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Assim, César, ao mesmo tempo em que demonstrava sua valentia e ousadia refrescava na mente do povo a lembrança de seus antigos líderes e deixava claro sua ligação com estes, induzindo-os a verem-no como um líder natural do ‘partido popular’. (AYRES, 1992, p. 80).

Com a intenção clara de conseguir a adesão popular, empregava nesses discursos um

tom excessivo de religiosidade, que é era cara aos populares:

explorando aspectos realtivos à decendência mítica, assunto muito caro aos romanos – o que, no caso de Júlia, indiretamente atingia a si mesmo, enquanto sobrinho – enfatizando o nome de antepassados heróicos, como Anco Márcio (os Júlios por vez de Vênus). (GUEDES, 2005, p. 56).

Conforme considerações de Suetônio, partiu depois para Gades, na Gália, onde, diante

de uma estátua de Alexandre, no templo de Hércules, lamentou por ele próprio não ter ainda

realizado nenhuma grande façanha, tendo a idade na qual Alexandre já havia dominado o

mundo.

Após isso, a interpretação que os áugures fizeram a respeito de um sonho que teve

estuprando sua própria mãe, deu-lhe novas esperanças. Era uma interpretação de que César

seria o árbitro do mundo, sendo a mãe do sonho a representante da Terra – mãe de todos.

Esses bons auspícios aliados ao temperamento empreendedor e dominador de César, deram-

lhe grande ânimo, fazendo-o voltar novamente a Roma.

César tinha abandonado o cargo de questor mesmo antes do fim do mandado e

tinha voltado a Roma. Na Vrbs, proferiu discursos a favor de revoltosos na Gália e nas

colônias latinas do vale do Pó, aumentando, com isso, sua popularidade. Em 66 a.C., foi eleito

Edil junto a Bíbulo, para o ano de 65 a.C.. As realizações na Edilidade, apesar de feitas com

um companheiro, foram com objetivos claros de promover sua própria carreira. Entre outros

feitos, Ayres (1992, p.81) aponta:

Encarregado de promover os jogos públicos ele os fez da maneira mais faustosa possível fazendo propaganda de sua pessoa. Organizou um fabuloso combate de gladiadores com tão grande número de recrutados que o Senado fez com que este número fosse diminuído evocando uma Lei que limitava a quantidade de gladiadores com permissão para habitar em Roma. Embelezou não somente o ‘Comitium’, os ‘Forum’ e as basílicas mas também o Capitólio dotando-o de pórticos provisórios.

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Em fins de 66 a.C. e início de 65 a.C., conspiradores populares, tendo César e Crasso

como líderes, pensam em assassinar os Cônsules aristocratas que tinham tomado o poder e

também os Senadores que os auxiliaram. O golpe acabou não ocorrendo, pois foi descoberto

pelo Senado e, assim, arrefeceu.

Em 63 a.C, ano considerado, segundo Ayres (1992), como o ano do consulado de

Cícero17, antes que este e Antônio Hibrida fossem eleitos Cônsules, César, durante o processo

de eleição, fez campanha tentando, ao que parece, denegrir a imagem de Catilina – um dos

concorrentes ao cargo no lado dos populares.

Ainda, segundo essa autora, no mesmo ano de 63 a.C., César, ao se candidatar e ser

eleito Pontífice Máximo, conseguiu um grande avanço no que diz respeito à elevação de seu

poder junto aos populares18, mesmo porque, conforme ela, esse era um cargo

“tradicionalmente reservado a homens públicos idosos, com uma vida dedicada ao Estado e

ele não preenchia nenhum destes requisitos.” (AYRES, 1992, p. 91). E essa, segundo Guedes

(2005, p.58), foi “uma posição que sempre o ajudou sendo fundamental para associar uma

aura sagrada à sua imagem de chefe vitorioso.”.

No mesmo ano, igualmente, ainda na sua primeira metade, César é eleito Pretor. Logo

em seguida ocorre a mencionada e famosa Conjuração de Catilina. Assim, quando a

conspiração de Catilina foi descoberta e foi decretada a pena capital para os sediciosos nessa

conspiração, César exercia o cargo de pretor. Nesse fato, ao contrário do Senado, foi o único a

propor que os conspiradores apenas fossem detidos e seus bens confiscados, ou seja, pediu

clemência para os condenados. Usava como argumento para isso ser arriscado aplicar a pena

capital, pois essa atitude poderia provocar o ódio do povo. Quase todo o Senado, inclusive

17. Esse ano é tido como “o ano do Consulado de Cícero”, pois Hibrida, o outro Cônsule eleito no mesmo ano, deixou que Cícero atuasse sozinho. (AYRES, 1992)

18. A relação entre religião e outros aspectos da vida na Roma Republicana Rosa assinala no trabalho intitulado Prudentia e prudens em Cícero: religião, jurisprudência e os poderes do Magistrado: “(...) no mundo no qual o direito e a religião não são aspectos separados da experiência humana” (2014, p. 51)“(...) naquele mundo a religião permeava todos os aspectos sociais, incluindo a lei (...) (2014, p. 52)”; “Essa conexão entre lei e religião provavelmente teve uma importância considerável no que tange ao funcionamento institucional da urbs, particularmente sobre os magistrados e sacerdotes” (2014, p. 53).

A autora Rosa continua essas reflexões em outro texto, intitulado Arte, religião e poder na Roma Antiga: inovações e conservadorismo na República tardia.: “Não é exagero dizer que a competição entre os líderes políticos da República tardia – Sila e Mário, Pompeu e César, Marco Antônio e Otaviano, o futuro Augusto – travou-se, em grande medida, em termos da linguagem religiosa. Suas carreiras foram acompanhadas por presságios de sucesso e triunfo; reivindicavam ligações especiais com deusas e deuses. Uma das melhores declarações sobre este fenômeno talvez seja a de Cícero, quando comentava os méritos de Pompeu, defendendo a idéia de que a ele, e não a seus rivais, devia ser entregue o comando do exército romano no Oriente” (2008, p.17).

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Cícero, ficou ao seu lado, mas um discurso proferido por Marco Catão fez com que a

assembleia se dissuadisse do proposto. César não conseguiu convencer o Senado e, inclusive,

foi ameaçado de morte pelo destacamento de cavaleiros romanos responsáveis por guardá-lo.

Nesse caso, correu um grande um perigo, foi acusado, além disso, de ser cúmplice de

Catilina, por Lúcio Vétio e Quinto Cúrio, que dizia obter tal informação do próprio Catilina.

Considerou tais acusações como inconcebíveis. Diante disso, para sua defesa, chamou Cícero

como testemunha a seu favor. Tendo ao seu lado, nesse momento, o exímio orador,

conseguiu, assim, privar todos os que tentavam incriminá-lo dos favores que receberiam em

troca por isso. Retirou-se, desse modo, e conforme Suetônio, não foi à Cúria por um bom

tempo.

Mais tarde, Cecílio Metelo, tribuno do povo, propôs leis que César ajudou a defender.

O Senado, por conta disso, decretou a suspensão de duas de suas funções. Ele não abandonou

logo o cargo, até que percebesse que seria destituído do mesmo pelas armas. Contudo, o povo

ofereceu-lhe apoio para que mantivesse sua autoridade. César acalmou-se com isso e o

Senado, sem alternativas, agradeceu-lhe e devolveu-lhe as funções.

No ano de 60 a.C., forma-se a aliança conhecida como o “Primeiro Triunvirato”. Dela

participaram César, Crasso e Pompeu. César, como grande articulador político, idealizou essa

união, com pessoas que se destacavam no momento:

César foi o grande idealizador desta aliança dando mais uma vez mostras de seu extraordinário gênio político. No momento em que a mesma foi concebida ele continuava sua escalada política almejando um poder cada vez maior dentro do Estado. Fora Pretor no ano de 62 a.C e Propretor na Espanha Ulterior no ano seguinte mas, a oposição Senatorial a suas ambições era muito forte. César provavelmente sabia que sozinho não conseguiria vencê-la apesar de sua notável popularidade junto às massas, o que o fazia tão temido pelos aristocratas. Um novo caminho se fazia necessário. (AYRES, 1992, p. 100).

Depois de deixar a pretoria e de obter a Espanha Ulterior, almejou angariar o

consulado, conseguindo ser eleito juntamente a Marco Bíbulo, que tinha sido anteriormente

seu parceiro na Edilidade “e que, por suas posições conservadoras e afins com a Aristocracia

poderia ser considerado seu opositor” (AYRES, 1992, p. 105).

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Todavia, os opitimates designaram-lhe funções com importância muito pequena, o que

o deixou incomodado. Tratou, então, de aliar-se a Pompeu e a Marco Crasso, depois de

reconciliá-los, pois ambos estavam brigados desde o consulado exercido pelos dois. Nessa

aliança, resolveu-se que nenhum deles faria qualquer coisa na República que os desagradasse.

Começa, a partir daí, a tomar algumas iniciativas e a realizar ações que acabam

fazendo Bíbulo recolher-se e a deixá-lo sozinho com todo o governo do Estado. O seu

governo passou a ser, desde então, autoritário e ele a ser temido por muitos. Entre os feitos

realizados, promulga a lei agrária, expulsando do Forum, à mão armada, um colega contrário

à lei. Esse homem, por sua vez, queixa-se ao Senado, que nada faz em relação ao fato.

Enquanto isso, Bíbulo, o outro cônsul, não demonstra nenhuma grande oposição e

mantém-se encerrado em casa, à espera do abandono de César do poder. A partir desse

momento, governa o Estado, de fato, sozinho e do jeito que queria. Não enfrentava grande

resistência de ninguém, pois sabia atemorizar quem o fizesse.

Depois disso, escolheu a Gália, entre as províncias, porque a entendia como um grande

local de triunfo. E, em pleno sucesso, diante do Senado, diz que conseguiu tudo o almejado,

driblando os inimigos e que, desse modo, futuramente, ficaria em lugar de destaque no

mundo.

A partir desse momento, mesmo tendo sido ameaçado por Lúcio Domício – candidato

ao consulado – de ser afastado do exército que chefiava, impetrou várias lutas, das quais saiu

vitorioso, tendo fracassado somente na Bretanha, uma vez na Gália e na Germânia.

Nessa época, o Senado pretendia nomear apenas um cônsul, e queria para o cargo

Cnéio Pompeu. Por outro lado, os tribunos pretendiam ter César junto ao mesmo.

César possuía, então, projetos ousados. Para isso, começou a fazer generosidades para

todos que o que cercavam. Muitos foram aqueles que, desse modo, passaram a dever-lhe esses

benefícios. Realizava também benfeitorias e enfeitava grandes cidades da Itália, das Gálias, da

Espanha, da Ásia e da Grécia, com monumentos exuberantes.

Todas essas manobras políticas foram então questionadas e Marco Cláudio, que, na

época, era cônsul, pretendeu dar um sucessor a César e, segundo ele, salvar de tal modo a

República. Esperava ele retirar as províncias de César e também privá-lo de todos os

privilégios que tinha. Caio Marcelo, primo-irmão e sucessor de Marco Cláudio, igualmente

investiu contra o César.

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Ele resistiu a todas essas investidas, e ainda a outras, com toda força de que poderia

lançar mão, valendo-se, inclusive, dos tribunos e recorrendo, com o dispêndio de muito

dinheiro com essa finalidade e, assim, conseguiu outros apoios. Contudo, encontrando muita

resistência e vendo que muitos se voltavam contra ele, afrontou o Senado por meio de uma

carta, impondo, entre outras coisas, que não lhe retirasse o que havia sido concedido pelo

povo.

A partir disso, trilha uma caminhada rumo ao que seria a sua ditadura, porém, não aos

moldes que se entende atualmente, baseada somente em autoritarismo, mas em um modelo

inspirado nas perspectivas gregas e respaldado pelo apoio popular.

2. 3.3 César, o escritor

Júlio César, além de ser considerado grande personalidade militar e política, é, da

mesma maneira, tido como exímio escritor. Entre seus trabalhos, escreveu o poema intitulado

Laudes Herculis e o poema Iter; escreveu a tragédia Edipus, a Apophtegmata – coletânea de

palavras e sentenças; e o De analogia – um tratado gramatical. Produziu um tratato sobre o

movimento dos astros, intitulado de De astris, e, também, Auguralia, Epigramma e dois livros

intitulados Anticato. Compôs, do mesmo modo, numerosas cartas, inclusive, para o Senado e

para Cícero.

Também escreveu duas obras históricas: Commentarii de Bello Gallico e De Bello

Civilli Commentarii.

César, desde muito novo participou da vida pública. Segundo Cardoso, aliou à

atividade política uma grande dedicação a atividades militares. Conseguiu, assim, conquistar

cargos elevados. Como salienta a autora: “Ocupou os mais elevados cargos, chegando a

cônsul, triúnviro e ditador, e participou, na qualidade de general, de guerras de conquistas e

lutas civis.” (CARDOSO, 2013, p. 132).

A atuação e presença nessas guerras e as conquistas serviram de material e de tema

para a produção dos Commentarii de Bello Gallico “Comentários sobre a guerra da Gália” e

para a produção do De Bello civilli commentarii “Comentário sobre a guerra civil”. Nessas

obras, utilizou uma linguagem, apesar de simples, apurada. Assim verifica-se em Cardoso:

“Com essas obras Júlio César construiu um verdadeiro modelo de exposição histórica,

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utilizando-se de uma linguagem simples, sem ornamentos, mas elegante em sua sobriedade.”

(2013, p. 132). Comenta ainda a estudiosa que “O estilo de Júlio César é claro e a língua

correta. O autor parece empenhar-se em não empregar neologismos, vocábulos poéticos e

figuras de linguagem, impróprios, talvez, a seu ver, para uma obra da natureza da que

escreve.” (2013, p. 133).

Sobre esse estilo, com linguagem simples, mas, ao mesmo tempo, apurada pode dizer

que diferia de Cícero, no qual o uso da palavra parece mais plena:

Cicéron (né em 106) conserve de cette plénitue, parce que la parole de plein air doit avoir du volume; mais César, de cinq ans plus jeune, écrit des Commentaires ‘nus et élégants’ où même les discours ne visent qu’à l’action: chez l’un et l’autre, pourtant, les qualités s’équilibrent de façon à donner l’impression d’une rare perfection, (...)” (BAYET, 1996, p. 114).19

Os “Comentários sobre a Guerra da Gália”, publicados em 51 a.C., são compostos de 7

livros, acrescidos de mais um por Hírcio, auxiliar de César na guerra. Neste, Hírcio narra os

fatos ocorridos entre 51 a 50 a. C., segundo anotações feitas por César. Nos sete primeiros

livros, são contados os fatos acontecidos em seis anos, do total de nove anos de guerra.

Cardoso (2013) diz que Júlio César é muitas vezes acusado de alterar os fatos,

tentando colocar em relevo a sua própria pessoa, apesar de demonstrar, através da escrita,

“impassibilidade e objetividade” (p. 133). Isso, segundo ela, não compromete de forma séria a

verdade dos acontecimentos.

Os “Comentários sobre a guerra civil”, inicialmente, não teriam sido de autoria

atribuída a César. Contudo, Cardoso (2013) aponta que, atualmente, tal autoria não é

contestada, devido à observação do estilo próprio do autor, pois, conforme análises feitas, é

parecido com o que imprimiu à primeira obra histórica.

Essa segunda obra é composta de três livros e não foi concluída. De acordo com

Cardoso (2013), tem o cunho claramente político, com prováveis intenções de César em

conseguir a simpatia e adeptos a ele, fazendo, para isso, uma apologia sobre a sua pessoa.

19. Cícero (nascido em 106) conserva desta plenitude, porque a palavra proferida ao ar livre deve ter volume; mas César, cinco anos mais jovem, escreveu os Comentários ‘nus e elegantes’ onde até os discursos só visam a pronunciação: entre um e outro, porém, as qualidades se equilibram de forma a dar a impressão de uma rara perfeição, (...) (Tradução Nossa)

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São narradas, no primeiro livro, as causas da guerra civil entre César e Pompeu, além

de serem descritos o momento da passagem do Rubicão e como tentou a reconciliação o

general inimigo. No segundo livro, há a exposição sobre o que ocorreu na Espanha, entre as

forças de César e de Pompeu; e também é descrita a rendição de Marselha. No livro terceiro, é

demonstrado o modo como César se tornou ditador; e são narrados os episódios que

aconteceram quando houve o cerco de Dirráquio e a batalha de Farsália. No final desse livro,

são feitas descrições sobre o episódio do assassinato de Pompeu, no Egito.

2.4 A figura de Cícero: Produção literária à guisa de uma biografia

Cícero ficou famoso, entre outros motivos, devido à produção dos seus discursos. Para

Rosa (2005), eles são considerados atuais, porque, segundo a autora, representam grande

fonte de pesquisa para o conhecimento da República tardia em Roma e são produzidos a partir

de uma oratória, num cenário em que ela era considerada a maior atividade realizada na vida

política. E, como se sabe, esse autor teve enorme participação nesse panorama.

Cícero nasceu em 106 a.C., quando o helenismo já fazia parte da formação e da

educação dos jovens romanos da época, sendo os estudos sobre retórica amplamente

difundidos.

Conforme Cardoso (2013), ele dedicou-se à oratória desde cedo. A participação do

orador e sua produção são tão importantes, que o período literário em que produziu é

chamado de “época de Cícero”, a primeira fase do período clássico da literatura latina (81 a

43 a.C.). O período é delimitado, segundo a autora, pela oratória do autor, tendo como marco

inicial o primeiro discurso do orador, que foi pronunciado em público, em 81 a.C., quando ele

contava com 25 anos.

Nesse discurso, Cardoso (2013) diz ter Cícero empregado o que, para ele, eram

primordiais à arte oratória:

era escrito com inteligência e sensibilidade, explorava o poder da palavra e tinha o objetivo de persuadir. O próprio plano de composição mostra que todo o discurso é voltado para essa finalidade. A preocupação de Cícero, ao compor tal obra, foi evidentemente, a de ganhar a causa, adquirindo reputação e satisfazendo ao cliente e a sua própria ambição. Para isso era preciso convencer o público e os juízes.

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Cícero empregou todos os meios para esse fim. No exórdio chamou a atenção para sua falta de prática, colocando-se em confronto com o ‘eloquentíssimo’ advogado adversário. Na narração e nas proposições ressaltou a injustiça de que fora vítima seu cliente. Na peroração valeu-se do patético, utilizando-se paralelismos abusivos, em que as antíteses se justapõem, num desejo de efeito retórico (...). (CARDOSO, 2013, p. 152 e 153).

Cícero viveu em momento em que teve muitas oportunidades de atuar como

advogado, podendo, desse modo, demonstrar toda a capacidade que detinha. Além disso, pôde

exercer aquilo que o próprio orador considerava importante para um eloquens, a prática.

Assim, com todo o exercício e demonstração de talento, conseguiu ser considerado um dos

maiores oradores de todos os tempos.

Na denominada “época de Cícero” foram compostas pelo autor várias peças oratórias,

das quais, de acordo com Cardoso (2013), cinquenta e seis chegaram até nós.

Cardoso divide tais peças, de forma geral, em discursos judiciários (civis e criminais)

e discursos políticos. Entre os primeiros, destacam-se, conforme a importância, no entender

da autora, os seguintes:

Em favor de Róscio Amerino (Pro Roscio Amerino – 79 a.C.), as Verrinas (In Verrem – 70 a.C.), Em favor de Murena (Pro Murena – 63 a.C.), Em favor de Árquias (Pro Archia – 62 a.C.), Em favor de Célio (Pro Caelio – 56 a.C.) e Em favor de Milão (Pro Milone – 52 a.C.). Entre os discursos, lembramos as Catilinárias (In Lucium Catilinam orationes IV – 63 a.C.) e as Filípicas (Philippicae orationes – 44/43 a.C.). (CARDOSO, 2013, p. 153).

A autora diz que, depois de ter pronunciado um discurso contra pessoas ligadas a Sila,

o ditador, - o discurso Pro Roscio Amerino - e ter saído vencedor, Cícero vai para a Grécia,

retornando somente dois anos mais tarde à Itália, na Sicília. Lá, ficou como questor. Nesse

lugar, anos depois, acusou o antigo pretor Verres, através de sete discursos judiciários –

criminais, apontando os crimes cometidos por ele e acusando-o de corrupção.

Entre outros discursos de defesa e acusação estão as Catilinárias e as Filípicas,

considerados os discursos detentores de maior fama. Sobre as Filípicas, e a sua

responsabilidade sobre a morte do autor, ela dispõe:

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As Filípicas – inspiradas nas orações homônimas de Demóstenes – são cartoze discursos escritos entre 44 e 43 a.C. Neles Cícero ataca violentamente a vida particular e pública de Marco Antônio, o triúnviro. Escritas sob forma de panfletos e divulgadas em toda a Itália, as Filípicas não chegaram a ser pronunciadas em sua totalidade, mas marcaram o fim da carreira oratória e política de Cícero, tendo sido as grandes responsáveis por sua condenação e morte. (CARDOSO, 2013, p. 155).

Cardoso diz não ter sido Cícero coerente no pronunciamento dos discursos, não

demonstrando “atitude moral coerente ou posição política uniforme”. Defendia, por exemplo,

causas com motivos semelhantes a de outras que acusava. Assim confirma-se em: “A

hesitação do orador torna-se claramente perceptível. Suas atitudes são contraditórias: para

casos semelhantes, as soluções são diferentes”. (2013, p. 155). Segundo ela, esses discursos

são exemplos práticos daquilo que o autor escreveu como sendo os princípios retóricos em

seus tratados.

Outro fato importante citado por ela é a questão sobre não se saber ao certo até que

ponto o texto escrito dos discursos de Cícero corresponde ao que, de fato, havia sido

pronunciado na tribuna ou na praça pública pelo autor. Ela afirma que, talvez, conforme

especulações de Quintiliano, ele tenha reproduzido, na escrita, somente o que considerava

importante, acrescentando o restante. Do mesmo modo, pelo que se sabe, parece que nem

todos os discursos pronunciados pelo orador foram depois escritos.

Os discursos que eram anotados por um liberto de Cícero eram publicados logo depois

do pronunciamento. Portanto, as alterações, em muitos, não devem ter sido grandiosas, pois,

se isso ocorresse, seriam notadas pelo público.

Sobre os discursos jurídicos realizados por Cícero, a análise de Bornecque indica que

eles “Deslocam ou escamoteiam os problemas essenciais e os fatos. Cícero estava, aliás, em

seu direito de advogado, ao dissimular as fraquezas da causa que defendia” (1976, p. 32).

Bornecque entende que o orador usava a habilidade que tinha para desviar o discurso das

causas principais, levando, assim, de modo invencível, à comoção dos juízes.

Além desses e outros trabalhos apontados, Cícero fez vários discursos políticos que,

no entender de Reyes (1942), são falhos no que tange à unidade, pois se prestam às mais

variadas conjunturas.

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O discurso Pro Marcello, considerado um discurso epidíctico, segundo a classificação

de discursos feita por Aristóteles, pode também ser interpretado como um discurso político,

que dentro da teoria aristotélica estaria enquadrado com discurso deliberativo. Esse outro

olhar sobre ele pode ser justificado pela presença de características que levam a entendê-lo

como um discurso dotado de intenções persuasivas de cunho político. Assim como as

interpretam Santos e Mendes (2014), por ser um pronunciamento feito depois de longo tempo

de silêncio do orador e durante um momento em que o governo de Roma estava nas mãos de

um só homem. César, essa pessoa, é então elogiado, exaltado por seus feitos e colocado com

perfil que se assemelharia a de um herói por Cícero. Essas incursões e o modo como são

realizadas podem levar e entendê-lo, também, como um discurso com intensões e motivações

políticas. Esses autores o percebem como uma nova abertura a Cícero do caminho para a

política.

O discurso Pro Marcello (46 a.C.) rompe o silêncio de Cícero – diuturni silentii, ganhando voz de tal forma a se posicionar e reabriu seu caminho à política, pois o orador havia se calado por quase seis anos, desde o discurso Pro Milone, 52 a.C. A expressão diuturni silentii inicia o discurso ciceroniano, enfatizando o rompimento do silêncio, provocado pelo sentimento de gratidão a César que havia perdoado Marcelo, contrário às ambições do Conquistador das Gálias. (SANTOS E MENDES, 2014, p. 2).

Tal discurso epidíctico, com interpretações de intenções políticas, segundo Guedes

(2005), foi proferido depois de longo silêncio do orador, por conta da guerra civil começada

em 49 a.C.

(...) nesta fase, estão os denominados discursos sob a ditadura de César. Esse momento vai do ano 46, com a consolidação de César no poder, até o assassinato de Cícero, no ano de 43. São dessa época: Pro Marcello, Pro Q. Ligario, Pro rege Deiotaro e as 14 Philippicae. (GUEDES, 2005, p. 40).

Ainda sobre os discursos dessa fase, Guedes discorre:

(...) Cícero, que apoiara as forças senatoriais, mas fora dos primeiros a serem anistiados por César, retorna do exílio. Nessa fase difícil de sua carreira, profere três magistrais discursos, considerados como os mais

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tensos de sua produção oratória, os denominados Discursos sob a ditadura de César. (...). A razão da diferença desses discursos em relação ao conjunto de sua obra oratória é clara. Se antes, Cícero, regularmente, estava acostumado a se dirigir a um auditório mais ou menos repleto e, ordinariamente, sua tarefa era, basicamente, a de apelar ao Senado, a um tribunal ou a uma assembléia popular, servindo-se, para isso, de todo o seu arsenal persuasivo, a partir de então, com a vitória dos cesaristas, o seu modus discursivo transformou-se completamente. Cícero se encontrava, agora, como indivíduo, sozinho, frente a alguém, que não só concentrava todo o poder em suas mãos, o que era extremamente perigoso, mas também conhecia e sabia empregar muito bem as técnicas retóricas. (2015, p. 46 e 47).

Da mesma forma que formulou vários discursos, Cícero também produziu tratados de

retórica. No que diz respeito a essa disciplina, sabe-se que era muito cara aos romanos. Desde

muito cedo eles se dedicavam a seu aprendizado. Precisavam dela para lapidar a oratória, que

era necessária nas atividades políticas e jurídicas, além de ser útil na vida cotidiana.

Com a finalidade de munir os romanos de condições para aprenderem a retórica, foram

criadas escolas específicas nesse ensino. Segundo Cardoso (2013), eram escolas que se

diferenciavam bastante de acordo com a “época e a ‘moda’ do momento” (p. 161).

A partir do trabalho dessas escolas, surgiram, então, tratados sobre retórica. Os

primeiros datam do início do século I a.C.. O primeiro tratadista romano, nesse aspecto, teria

sido Marco Antônio. Ele foi um dos mestres de Cícero e escreveu De ratione discendi “Sobre

a razão de falar”. Nesse tratado retórico, ensinava o modo como um orador deveria ser

formado. Contudo, Rhetorica ad Herennium “Retórica a Herênio” seria uma obra mais

conhecida do que a outra. Essa obra foi, às vezes, atribuída a Cornifício, às vezes, a Cícero; e

foi escrita entre 84 e 82 a.C.. Sobre o texto, comenta Cardoso: “composta de quatro livros e

inspirado em modelos gregos, o texto analisa as três partes da eloquência (invenção,

disposição e elocução) e procura mostrar aos romanos os cânones da oratória grega”.

(CARDOSO, 2013, p. 161e 162).

Cícero escreveu De inventione “Sobre a invenção” mais ou menos no mesmo tempo

em que a “Retória a Herênio” foi escrita. Essas duas, segundo Cardoso (2013), “são os

primeiros ensaios no campo da retórica.” e “Sobre a invenção” é uma “Obra de juventude,

considerada, por vezes, como uma reedição da Retórica a Herênio, o texto se compõe de dois

livros nos quais é analisada a questão referente à busca de argumentos.” (p. 162).

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Contudo, para a autora, os expressivos textos sobre retórica, em Roma, só irão surgir,

por volta de 55 a.C., durante a maturidade e experiência de Cícero. São eles: De oratore,

“Sobre o orador”, Orator “O orador”, Brutus, “Bruto”, e De optimo genere oratorum, “Sobre

o melhor gênero de oradores”.

Em De Oratore, são apresentadas as ideias de Cícero a respeito da arte da oratória. O

autor entendia que o talento era o principal elemento para tal arte, mas também acreditava que

era preciso desenvolvê-lo. Essa lapidação do talento deveria ser realizada, entre outras coisas,

através do conhecimento geral em torno de vários assuntos, como as ciências, a História, o

Direito, e a Filosofia. A respeito desse tratado, Cardoso (2013, p. 163) acrescenta,

confirmando que Cícero dava valor ao talento ou dom, ao exercício e à cultura geral do

orador:

Sobre o orador, dedicado a seu irmão Quinto e publicado em 55 a.C., em três livros, é composto em forma de diálogo, como se fosse um ‘conversa’ que teria sido travada em 91 a.C. e da qual participavam Antônio e Crasso – dois antigos mestres de Cícero -, Cota e Sulpício Rufo – discípulos dos primeiros – e outras figuras conhecidas no mundo da oratória, tais como Múcio Cévola e César Estrabão. No livro I, Crasso e Antônio expõem suas opiniões no que diz respeito à formação do orador. O primeiro considera a cultura geral como o principal requisito: o orador dever ser dono de grande saber; o segundo julga que a prática de eloqüência é mais importante. Em seguida, os interlocutores discorrem sobre as qualidades exigidas de quem vai dedicar-se à oratória: aptidões naturais, gosto pela arte, conhecimento de matérias várias, como o direito e a história, e perseverança nos exercícios. O livro II é consagrado à composição do discurso, às partes principais do processo oratório (invenção, disposição e elocução). O livro III analisa os diversos passos da elocução.

Cícero escreve Brutus e Orator anos mais tarde, em 46 a.C. – mesmo ano em que

escreveu o Pro Marcello - depois de um tempo afastado da vida pública, devido a

conjunturas políticas. Nesse momento, segundo Cardoso, pregava-se uma eloquência mais

simples. Para a autora, parece que o orador, com a escritura de tais tratados, tenta preservar a

sua imagem. Sabe-se que Cícero pregava o contrário sobre a oratória. Para ele, a oratória

deveria ser “veemente e apaixonada”. Foi dessa forma que o orador atingiu toda a glória

adquirida. (CARDOSO, 2013, p. 163).

Em Brutus, é apresentada a história da eloquência em Roma. O tratado é:

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Composto sob forma de diálogo, do qual participam o próprio Cícero, Bruto e Ático, o livro apresenta uma galeria de oradores, de Ápio Cláudio Cego aos dias de Cícero, mostrando a evolução do gênero oratório em Roma. Embora o escritor dê mostras de que está exaltando sua própria atividade, o tratado, mais uma vez, aponta as ideias de Cícero no tocante às características de um bom orador: (...). (CARDOSO, 2013, p. 163 e 164).

No Orator, Cícero defende a própria eloquência contra os Áticos. É um tratado

dedicado a Bruto. Ele, segundo Cardoso (2013, p. 164) “(...) tem um tom polêmico e

doutrinal. Cícero responde aos neoáticos, que preconizam uma eloquência simples, fazendo

um retrato do que seria o grande orador e expondo a técnica que sempre utilizara em seus

discursos.”.

Entre 46 e 44 a.C., escreve ainda, De optimo genere oratorum que, para Cardoso, não

é, exatamente, um tratado retórico, assim como os outros o são. Contudo, nele, Cícero,

novamente, expõe o que acha sobre o neoaticismo, que defende uma eloquência simples.

Assim observa Cardoso (2013, p.164) “Foi escrito para ser uma espécie de prefácio a uma

tradução do Contra Ctesifonte, de Ésquines, e do Sobre a coroa, de Demóstenes.

Além dos tratados retóricos referidos anteriormente, o escritor dedicou-se à

composição de obras de caráter filosófico. Essas obras “abordam, predominantemente, os

problemas de ordem política, moral e religiosa.” (CARDOSO, 2013, p. 171). Entre esses

tratados, estão os que falam de teoria política: De Republica, De Legibus; e os de pura

filosofia: De Finibus Bonorum et Malorum, Tusculanae Disputationes, De Officiis; além dos

que falam sobre problemas religiosos como o De Natura Deorum e o De Divinatione.

Escreveu, em 54 a.C., De Republica, “Sobre a república”, e De Legibus, “Sobre as

leis”. Essas duas obras são tratados políticos. De Republica é um diálogo, em seis livros, que

procura discutir a melhor forma de governo. (CARDOSO, 2013, p. 171). Segundo a autora,

nesse tratado, Cícero tenta expor a importância da participação na vida política e o dever em

relação isso. Conforme Cardoso, ele teria sido uma resposta ao Epicurismo, depois de saber

da existência do poema de Lucrécio. Cícero era inimigo dessa escola que, entre outras coisas,

“pregava a abstenção de qualquer atividade pública” (p. 172).

De Legibus foi escrito em 52 a.C. e trata-se de uma continuação do primeiro. Para

Cardoso (2013, p. 172), “Pode ser considerado um verdadeiro tratado de filosofia do direito

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no qual o escritor procede a uma pesquisa sobre os bens filosóficos do direito romano (livro I)

e mostra seus aspectos religiosos (livro II) e seu lado público e constitucional (livro III).”.

Os tratados morais são, no ver da autora, os que mais atraem os leitores. Talvez por

eles apresentarem o que de fato Cícero acumulou de conhecimento e também o potencial do

seu trabalho. Foram tratados escritos quando o autor já não participava de forma muito ativa

da vida pública e no final de sua vida. A essa altura já tinha alcançado muito conhecimento e

dispunha de tempo.

Escreveu, assim, De Finibus Bonorum et Malorum, “Sobre as definições do bem e do

mal”, no qual procura determinar a essência do supremo bem, considerado um fim em si

mesmo; e Tusculanae disputationes, “Discussões em Túsculo”. Nesse, faz uma ilustração do

outro, identificando a virtude como bem supremo. O primeiro foi escrito logo após a morte da

filha de Cícero, Túlia. Ele, como analisa Valente (1984), tem como característica uma

profunda reflexão e um intenso trabalho. O objeto do seu estudo, segundo o autor, é “a

definição do bem supremo: que finalidade a natureza propõe à ação do homem e a que fim

último vão chegar todas as coisas que dela recebem o nome de ‘bens’.” (VALENTE, 1984, p.

402)

Para Cardoso, esses dois tratados morais são os mais complexos, devido a sua

temática. Outros, considerados menores, são escritos entre 45 e 44 a.C. – são De officiis,

“Sobre os deveres”, De Senectude, “Sobre a velhice”, e De amicitia, “Sobre a amizade”.

Já os tratados filosóficos de cunho religioso são De natura deorum, “Sobre a natureza

dos deuses”, De divinatione, “Sobre a adivinhação”, e De fato, “Sobre o destino”. No

primeiro, o autor combate, principalmente o Epicurismo, mas também combate o Estoicismo,

no que tange à teoria sobre os deuses. No segundo, essa discussão é continuada, combatendo a

crença “em profecias, presságios, sonhos e sinais” (CARDOSO, 2013, p.174). No último,

discute ainda sobre o Estoicismo, mas o Epicurismo, dessa vez, é mais condenado.

Além de escrever esses tratados, Cícero também se dedicou às cartas. Escreveu-as a

várias pessoas, como, por exemplo, ao próprio César. As cartas destinadas ao ditador se

perderam junto a outras escritas a Pompeu e a Otávio (CARDOSO, 2013). Sobraram, porém,

muitas escritas “à esposa, aos filhos, a vários amigos e companheiros.” (p.200). Foram cartas

escritas de 68 a 43 a.C.

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As cartas, a um passo que apresentam uma imagem do autor, igualmente, são fontes

que retratam a vida romana no período. Assim, trata-se de grande registro do fim da

República em Roma.

Conforme concepções de Cardoso, nessas epístolas, Cícero, como homem, é

apresentado de formas variadas. Portando, podem ser consideradas, igualmente, como um

registro de sua personalidade múltipla.

Formal e preocupado com o estilo literário quando se dirige a políticos, a intelectuais, a pessoas de seu próprio nível; cheio de vivacidade e por vezes deixando extravasar os sentimentos mais diversos, nas cartas a Ático, o confidente de todas as horas; terno, inquieto, cuidadoso, ao dirigir-se a Terência, a esposa, ou a Tutíola e ao pequeno Cícero, os filhos. (CARDOSO, 2013, p. 201).

Como se depreende, Cícero foi um exímio advogado, mas, também, escreveu teorias a

respeito da própria prática. Ele utilizou, para isso, a própria experiência e, também, os

conhecimentos obtidos, anteriormente, em outros teóricos. Sobre a verdade em refletir a

respeito de sua própria ação como orador e de falar a respeito de sua arte, pode-se atestar na

fala seguinte: “Cicerón es um práctico que se recoge a meditar sobre su experiência, um

artista que habla de su arte, um orador que construye su teoria según los ensanamientos de la

acción oratoria.” (REYES, 1942, p. 85).20

Assim como já refletido, para Cícero, o bom orador tem talento inato para a

eloquência. Todavia, mesmo o talento já existindo, ele necessita ser melhorado com ensino

profundo de cultura geral. A isso os gregos chamavam de Paidéia e Cícero denominou

Humanitas. Esse conhecimento profundo de várias áreas era, então, importante para que o

orador lapidasse a sua arte. (REBOUL, 2000).

Cícero, como é notório, é considerado um orador de grande capacidade, com poder

sobre a palavra e que, por isso, deva servir de modelo para outros em todos os tempos.

Caracterizando o orador, nesse e em outros sentidos, Reyes aponta (1942, p. 82):

Lo cierto es que ‘Cicerón es interesante’. Lo acompana el aura verbal. Va cobijado en la enciclopedia, aunque algo combiante y movediza, y

20. “Cícero é um prático que se pega a meditar sobre sua experiência, um artista que fala de sua arte, um orador que constrói sua teoria segundo os ensinamentos da ação oratória” (Tradução nossa).

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traza la senda de todo verdadero humanismo. Explora con feliz instinto la naturaleza, la historia, el alma, cielo y tierra.21

O escritor acrescenta, ainda, ser imperativo à história política, econômica, à Filosofia e

ao Direito conhecer Cícero, pois a contribuição desse teórico em todas essas áreas é relevante,

como aponta:

La historia política no puede dispensarse de conocerlo: mucho antes de Tito Livio o de Dionísio de Halicarnaso, nos brinda el relato de los antiguos reyes, así como es el primer autor que cuenta de los Gracos. La historia económica tampoco podría ignorarlo, porque a él debemos la descripción más precisa sobre las compañías financieras por acciones, organizadas en Roma para explotar las provincias. No podría olvidarlo la filosofía, porque él es arsenal de noticias, fuente principal para los tres siglos anteriores al Cristianismo y porque él determinó la vocación espiritual de San Agustín. El derecho encuentra en sus páginas la noción de la “guerra justa”, que luego reaparece en San Agustín, Isidoro de Sevilla, Graciano, Santo Tomás, Suárez y Grocio. (REYES, 1942, p. 83).22

O poder que tinha Cícero sobre a palavra é enorme; e a forma como usava e variava o

uso da língua, de acordo com o assunto, fornecia-lhe, entre outras coisas, a capacidade de ser

vitorioso em suas causas. Quanto à essa extraordinária eficácia e controle de Cícero sobre a

língua, Reyes (1942, p.82) o intitula de “hijo y padre de la palabra”23 e coloca:

El conocedor de la lengua que fue Cicerón difícilmente admite rival. A pesar de su purismo instintivo, y aun debido a eso, es capaz de ensanches idiomáticos para recoger los matices del pensamiento griego. No es poco haber puesto a la ruda lengua latina en estado de recibir la cultura helénica. El tono varía con el asunto, aunque la

21. “O certo é que Cícero é interessante. O acompanha a aura verbal. Vai amparado na enciclopédia, ainda que algo modificada e movediça, e traz o caminho de todo verdadeiro humanismo. Explora com feliz instinto a natureza, a história, a alma, o céu e a terra.” (Tradução nossa).

22. “A histórica não pode prescindir de conhecê-lo: Muito antes de Tito Lívio ou Dionísio de Halicarnasso, nos dá o relato dos antigos reis, assim como é o primeiro autor que nos fala sobre os Gracos. A história econômica tampouco poderia ignorá-lo, porque é a ele que devemos a descrição mais precisa sobre as sociedades financeiras por ações, organizadas em Roma para explorar as províncias. Não poderia esquecê-lo a filosofia, porque é ele o arsenal de notícias, fonte principal para os três séculos anteriores ao Cristianismo e porque ele determinou a vocação espiritual de Santo Agostinho. O direito encontra em suas páginas a noção de ‘guerra justa’, que logo reaparece em Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha, Graciano, Santo Tomaz, Suárez e Grocio.” (Tradução nossa)

23. “Filho e pai da palavra” (Tradução nossa).

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continuidad en la perfección lo disimula a los ojos de los lectores apresurados. (REYES, 1942, p. 84).24

Ao que Cardoso (2013, p. 174) acrescenta:

Em todos os tratados filosóficos, Cícero se mostra como o verdadeiro mestre da palavra. A prática de eloquência e o conhecimento de retórica sustentam a argumentação. A correção da frase, o cuidado com o estilo, as belas imagens, os exemplos históricos e a fluência do diálogo encobrem a superficialidade com que são focalizados alguns assuntos e a fragilidade de certas informações.

Contudo, isso não deve caracterizar a personalidade de Cícero. Como Reyes observa,

o próprio orador reflete a respeito do fato de não se dever entendê-lo, como homem, por meio

de seus discursos, pois, para Cícero, os discursos não seriam capazes de expressar as suas

opiniões pessoais. Ao contrário, Cícero entendia-os como demonstrações representantes das

causas e das circunstâncias.

A respeito da linguagem das cartas escritas por Cícero, Cardoso escreve, continuando

com análise sobre a perfeição com que Cícero trabalha a língua:

As cartas de Cícero nos mostram mais uma vez sua imensa capacidade de manejar a língua latina, adotando um estilo elegante e puro nos textos mais cerimoniosos e convencionais, não hesitando em utilizar-se da linguagem afetiva e de expressões populares quando escreve para amigos ou se dirige a familiares. (2013, p. 202).

Dando prosseguimento ao assunto, a autora reflete sobre a linguagem empregada nos

textos oratórios, como sendo altamente elaborada, com correção e estilo:

Escritos com o maior cuidado e preocupação, os textos oratórios não só revelam a arquitetura da composição como também, e principalmente, a pureza e a correção da língua e a riqueza de estilo. O vocabulário é vasto, erudito, escolhido; o ritmo da frase é trabalhado e intencional; as figuras da harmonia são usadas com freqüência. (2013, p. 157).

24. “O conhecedor da língua que foi de Cícero dificilmente admite rival. Apesar de seu purismo instintivo, e ainda devido a isso, é capaz de usar extensões idiomáticas para conseguir os matizes do pensamento grego. Não é pouco ter posto a rude língua latina no estado de receber a cultura helênica. O tom varia com o assunto, ainda que continue na perfeição, ele dissimula aos olhos dos outros leitores apressados.” (Tradução nossa).

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E acrescenta, ponderando sobre o poder encontrado nas palavras de Cícero:

Todas essas qualidades fizeram de Cícero o grande orador que o mundo romano conheceu, mas levaram-no também à ruína e à destruição. A causticidade das Filípicas alvejou Marco Antônio, mas atingiu, de forma mais violenta aquele que as concebeu. (2013, p. 157).

Sobre o estilo de Cícero e os recursos estilísticos utilizados pelo escritor e orador,

pode-se apontar as seguintes colocações: “Entre os diversos processos (...) merecem especial

atenção, as figuras de repetição como anáfora, as figuras de som, como o homoteleuto. Cícero

dispõe desses recursos sobretudo nos casos onde a oração exige estilo mais solene e mais

elevado.” (CITRONI et alli, 2006, p. 306). E, sobre os períodos usados por Cícero, eles

acrescentam: “(...) construiu um período amplo e harmonioso, baseado no equilíbrio e na

correspondência das partes.” (p.306)

A respeito do relevo dado por meio, por exemplo, de amplificações e exageros, pode-

se comentar

(...) o facto de ele privilegiar um estilo susceptível de exercer um forte impacto emotivo no auditório. É em função desse objetivo que se pode explicar a grandiloquência, criticada pelos áticos, e, que, mais do que no recurso à ‘copia verborum’ (‘abundância de palavras’, que muitas vezes significa expressões reduntantes, a fim de pôr em relevo um conceito) ou ‘amplificatio’ (a ‘dilatação’ de um conceito, a fim de fazer com que pareça mais grandioso, majestoso ou espantoso), se exprime na sábia construção do período em prosa. (CITRONI et alli, 2006, p. 306).

Contudo, os autores colocam que ele também sabe variar e ser conciso, para dizer o

essencial quando preciso.

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3 NAS ENTRELINHAS DOS DISCURSOS: PRETENDENDO-SE UMA ANÁLISE

Segundo Fiorin (2007), a linguagem pode ser investigada somente no que concerne

aos fatos linguísticos puramente – internamente -, mas também pode ser analisada em função

da sua relação com as estruturas sociais, ou seja, ela pode ser investigada naquilo em que ela

remete para além dela própria intrinsecamente.

Conforme o entendimento do estudioso, quando o indivíduo usa a linguagem na

formulação do seu discurso, ele tanto usa um desses ângulos, como pode também utilizar o

outro. O indivíduo que formula o discurso, pode se amparar unicamente em sua capacidade

autônoma de produzi-lo, não atrelando a linguagem utilizada a fatores sociais, mas, do mesmo

modo, pode ser influenciado e condicionado por certas ideologias. Logo, como analisa o

autor, existem alguns níveis autônomos da linguagem, enquanto outros são determinados.

O discurso é o resultado da organização-combinação que o falante faz dos elementos

linguísticos que tem a seu dispor na língua, para que possa exprimir seus sentimentos,

pensamentos e visões do mundo, mas para que esse discurso seja exteriorizado, existe o que o

autor chama de fala, que, de acordo com sua definição é “a exteriorização psico-físico-

fisiológica do discurso” (FIORIN, 2007, p.11). Para ele, a fala é individual, na medida em que

cada indivíduo é responsável por efetivá-la para a realização do discurso. Nessa fala, o

indivíduo concretiza e manifesta a linguagem, não sofrendo, segundo o autor, qualquer

determinação social, ao contrário do discurso, no qual é possível localizar coerções sociais

que possam determinar usos da linguagem. Na concepção de Orlandi (1999, p.154) “O

discurso (...) é efeito de sentidos entre locutores”. É a interpretação e a língua significando na

história “regida pelo mecanismo ideológico”.

Entende-se que, no Pro Marcello, a um passo que há a fala individual de Cícero, há

também, o que é inerente ao que Fiorin denomina de discurso. Em vários momentos de

manifestação através de sua fala, nota-se a presença de determinações do contexto político-

social em que vivia o orador, ou seja, o que é dito por ele está amplamente influenciado pelo

entorno e pela situação em que se encontrava Cícero nesse contexto de fim da República

Romana.

No excerto abaixo, por exemplo, pode-se entrever que a construção do texto feita por

Cícero para iniciar o discurso apresenta talvez uma espécie de desculpa e ao mesmo tempo

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abre o caminho para a sua fala, deixando clara a situação em que se encontrava até aquele

momento, por ter sido adversário do ditador.

Diuturni silentii, patres conscripti, quo eram his temporibus usus –

non timore aliquo, sed partim dolore, partim uerecundia – finem

hodiernus dies attulit, idem que initium quae uellem quaeque sentirem

meo pristino more dicendi (I, 1).

(O dia de hoje, senadores, trouxe o fim de um prolongado silêncio de

que eu vinha usando nestes tempos - não por algum temor, mas em

parte pela dor, em parte pela vergonha – e o mesmo (dia) trouxe o

início de falar o que eu queria e (o que eu) sentia, de acordo com meu

antigo costume.)

Ao continuar com as reflexões acerca dos discursos, Fiorin diz que é no campo da

sintaxe discursiva que o falante tem instrumentos para a manipulação consciente do que vai

dizer, pois ela goza de relativa autonomia, enquanto no campo da semântica discursiva o

falante pode usar meios inconscientemente determinados. Por exemplo, a maneira de ver e

interpretar o mundo numa determinada época irão determinar discursos recorrentes entre os

homens. Contudo, o falante pode organizar e manipular estrategicamente o seu discurso de

modo a modificar esses sentidos e “criar efeitos de sentido de verdade ou de realidade com

vistas a convencer seu interlocutor.” (FIORIN, 2007, p. 18). Essa faceta, ao mesmo tempo

autônoma e determinada pode, assim, ser investigada em discursos e falas de qualquer esfera.

Da mesma forma, a recepção dos discursos, seja pelo ouvinte ou pelo leitor, pode estar

atrelada ao contexto histórico e social, mas também ao histórico do receptor. Um único leitor

pode fazer diferentes leituras do um único texto. E um único texto pode ser lido de diferentes

formas por leitores diferentes, de acordo com o momento, com as condições, ou com suas

próprias diferenciações enquanto seres singulares. Desse modo, expõe Orlandi: “O mesmo

leitor não lê o mesmo texto da mesma maneira em diferentes momentos e em condições

distintas de produção de leitura, e o mesmo texto é lido de maneiras diferentes, em diferentes

épocas, por diferentes leitores.” (1999, p.153).

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Em alguns momentos do discurso analisado, pode-se notar o modo como o orador o

organiza, levando-nos a conjecturar sobre que sentido pretendia evidenciar e demonstrar para

o público ouvinte e sobre que realidade tinha ele a intenção de demonstrar e apresentar aos

interlocutores, tentando convencê-los da verdade a respeito dela.

De fato, Cícero produziu um discurso determinado pelas instâncias sociais e políticas

da época e de sua própria vida enquanto participante delas, desse modo, determinado.

Contudo, sabendo da capacidade e do entendimento do autor sobre os meios de organizar o

discurso, é devido dizer ser o mesmo conduzido e formulado com intenções.

Na verdade, o orador pretendia comunicar algo e esse algo pode ser direcionado para o

convencimento sobre determinada coisa. E, tendo-se em mente que um discurso só se realiza

prevendo também o outro lado, o lado daquele para quem ele é direcionado, tal discurso teria

sido formulado com algum objetivo. Teria sido produzido com a finalidade intencional de

dialogar com o outro. Portanto, pode-se refletir e avaliar em que medida ele seria um discurso

igualmente do outro. O orador estaria também pensando, então, no discurso do outro, que

reflete no seu próprio.

No excerto do capítulo I, parágrafo 2, abaixo, por exemplo, nota-se que as palavras

pronunciadas pelo orador poderiam, certamente, refletir o pensamento e as ideias de muitos

outros presentes sobre a República.

Erro et mihi meae pristinae uitae consuetudidem, C. Caesar,

interclusam aperuisti, et his omnibus ab bene de omni re republica

sperandum quase signum aliquod sustulisti.

(Portanto, Caio César, não só me concedeste o interrompido hábito da

minha vida passada, mas também ergueste uma espécie de símbolo a

todos estes para bem esperarem de toda a república.)

Assim, pode-se verificar que, a um passo que o orador foi ao encontro do discurso do

auditório e de outros discursos com os quais teve contato para a produção do próprio discurso,

ele também o realizou individualmente, fazendo escolhas pessoais para a formulação. Nesse

sentido, é correto dizer que, mesmo sendo uma manifestação individual, houve um diálogo

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entre várias vozes, porque ele também tinha a intenção de comunicar ideias que poderiam ser

do outro. Esse discurso, logo, é por um lado determinado, por outro, autônomo.

3.1 A dialogicidade do discurso

De acordo com o pensamento Bakhtiniano sobre o discurso, ele está sempre ligado à

dialogicidade e tem como propriedade e como característica intrínseca essa dialogicidade, ou

seja, para o estudioso, o discurso tem, em todo o caminho que percorre até alcançar o

objetivo, o contato com outrem e, como discurso vivo, interage, comunica, dialoga com esse

outrem. De fato, entende que qualquer discurso participa de dois extremos, o extremo daquele

que pretende comunicar e outro, daquele com quem se comunica.

O conceito de dialogismo, para Fiorin (2007), seria o princípio fundador dos estudos

feitos por Bakhtin. A língua viva para o pensador russo, com o caráter de uso prático e real,

teria, assim, essa característica principal de dialogar.

Nessas condições, tudo o que é dito é dirigido a alguém, para o outro e, por isso, é

pensado para o outro e deste também é, de certo modo, o discurso produzido, isto é, o

discurso pertence também àquele para quem se diz algo. Quando o enunciador elabora seu

discurso, ele tem como respaldo o discurso daquele para quem ele o produz, porque o seu

próprio discurso tem reflexo do discurso do outro. Esse fator seria a faceta determinante do

discurso, ou seja, o discurso seria determinado por outro discurso. Sobre o assunto, Fiorin

reflete: “Toda palavra dialoga com outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras,

está rodeada de outras palavras.” (FIORIN, 2007, p. 19).

E as palavras constituintes do discurso não são a realidade propriamente dita, mas a

representação dessa realidade e como ela é entendida de forma variada. Isso entendendo as

palavras tomadas em seu conjunto, como enunciados, que realizam, de fato, a comunicação. E

não isoladas nos seus níveis, como o morfológico e o fonológico, por exemplo. Os

enunciados, assim, seriam dotados de características dialógicas, mas com nuances particulares

do enunciador.

Nesse ínterim, que parece seguir a lógica do dialogismo pregado por Bakhtin, Orlandi

(1999) acrescenta que, quando constrói o discurso, o autor está impregnado do discurso do

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outro e, mais ainda, parece querer adiantar o que o outro, aquele receptor do discurso, o leitor,

por exemplo, espera. Assim verifica-se

(...) na própria produção discursiva, há a inscrição do outro. Se pensamos o campo da leitura, isso fica assim: a função-autor tem seu duplo no efeito-leitor. E isto está constituído na materialidade do texto. Não se pode falar do lugar do outro, no entanto, pelo mecanismo de antecipação, o sujeito-autor escuta e, assim, ‘guiado’ por esse imaginário, constitui, na textualidade, um efeito-leitor que lhe corresponde, com um seu duplo. (ORLANDI, 1999, p. 152).

Essas ressonâncias e interpretações de outros discursos podem ser identificadas, para

ele, na própria tessitura e na materialidade do texto.

Um outro fato analisado por Bakhtin é o caráter único de cada enunciado constituído.

Para o estudioso, as unidades da língua são passíveis de repetição. Desse modo, uma palavra

ou um som ou um morfema qualquer podem ser repetidos várias vezes, ao passo em que o

enunciado, com a característica de ser único, tem intrinsecamente a qualidade de ser

irrepetível.

As unidades da língua não pertencem a ninguém, portanto, podem ser utilizadas e

repetidas por qualquer um. Um enunciado, por sua vez, que pretende transmitir e comunicar

algum significado particular, pertence àquele que o formulou, pois a intenção comunicativa

para a sua elaboração é determinada por outro discurso e não pode ser repetida, porque haverá

tantas intenções quantas situações de diálogo existirem.

Fiorin (2008) explica que uma das tarefas do estudioso25 russo foi tentar estabelecer

uma filosofia primeira que desse conta dessa realidade viva existente nos atos irrepetíveis do

ser humano. Segundo o autor, Bakhtin entendia haver uma separação entre o mundo da teoria

e da vida, pois o primeiro daria conta de generalizações, enquanto o segundo da historicidade

viva. Ele criticava esse mundo da teria, por não dar conta e não se preocupar “jamais com

evento, o ato particular, o singular” (p. 16) e com a existência concreta do ser humano, que é

único. Essa “unicidade do ser humano existe na ação, no ato individual e responsável.” (p.

17). Sendo essa ação e esse ato sempre relacionado ao outro dialogicamente.

25. Sobre o pensamento de Bakhtin, Fiorin coloca: “Há três eixos básicos do pensamento bakhtiniano: unicidade do ser e do evento; relação eu/outro; dimensão axiológica. São essas coordenadas que estarão na base da concepção dialógica da linguagem.”. ( 2008, p.17).

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O Pro Marcello seria, desse modo, um discurso único, irrepetível, formulado por um

indivíduo que tem o seu discurso influenciado pelo discurso do outro, mas é único na medida

em que representa o entendimento de uma realidade – o entendimento do orador e dos seus

interlocutores -, a qual pretende ser comunicada, esperando, assim, dialogar com outro

discurso, em uma situação de diálogo específica.

No caso desse discurso, ao elogiar César e os seus feitos e, principalmente, o feito

responsável pela formulação de tal discurso, Cícero o organiza na tentativa de, entre outras

coisas, mostrar seu apoio ao ditador e à própria República, sendo o discurso, desse modo,

único, pois representa a intenção de um indivíduo e a representação da realidade assim como

esse indivíduo a entende. Contudo, ao formulá-lo, a partir do diálogo que tem com os outros,

o discurso representa também a realidade entendida pelo outro ou que deva também ser

entendida pelo outro.

Fiorin (2007), seguindo, acrescenta que um enunciado, então, na medida em que

dialoga com outro, constitui-se a partir de outro enunciado. O sentido, dessa forma, realiza-se

no momento em que pretende dialogar.

Segundo o autor, a partir da aplicação do conceito dialógico da linguagem, o discurso

terá sempre, pelo menos, duas vozes, duas facetas, duas posições. A voz de quem o produz e o

reverso dessa voz, podendo essas facetas dialogar divergentemente ou convergentemente.

“Com efeito, um enunciado solicita uma resposta, resposta que ainda não existe. Ele espera

sempre uma compreensão responsiva ativa, constrói-se para uma resposta, seja ela uma

concordância ou uma refutação.” (FIORIN, 2007, p. 32).

Essas outras vozes, ou os discursos alheios, concordantes ou não, são mostrados no

discurso produzido, participando, desse modo, da elaboração. É a isso que Fiorin chama,

analisando o pensamento bakhtiniado, de dialogismo.

Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados. (FIORIN, 2008, p. 19).

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Entende-se, ao se analisar o Pro Marcello, que Cícero empreende o discurso,

conduzindo-o para uma resposta positiva a suas proposições, ou seja, colocando a sua voz e as

outras vozes com quem dialoga numa perspectiva de concordância em relação a suas

pretensões políticas, mostrando as vozes alheias em uma consonância com a sua voz, na

tentativa de angariar a adesão dos ouvintes- espectadores e, principalmente, a de César.

3.2 Discurso e ideologia

Como visto, de acordo com estudos de Fiorin (2007), os discursos podem ser

autônomos, mas também podem sofrer determinações sociais. Nessa perspectiva, os

discursos, numa certa medida, podem ser tomados como realizações autônomas,

independentes, se forem analisados, por exemplo, do ponto de vista de sua estruturação.

Apesar disso, como se sabe, um discurso precisa de uma certa estruturação dentro da língua

para que seja caracterizado como um texto. Não basta apenas dispor frases após frases para

que se possa conceituá-las como texto. Para isso, é necessário existir tal estruturação. Uma

lógica estrutural por assim dizer. Por outro lado, os discursos estão atrelados a determinações

e fatores sociais. Nesse caso, entram em jogo os conteúdos que podem ser veiculados, além

do que aparece na organização lógica, e estão presentes nos discursos.

Desse modo, segundo Fiorin (2007, p. 18), há na construção dos discursos “o campo

da manipulação consciente e o da determinação inconsciente”. Baseando-se nisso, o indivíduo

que constrói um discurso tem autonomia consciente para manipular e formular a sua estrutura,

mas, ao mesmo tempo, inconscientemente, acaba reproduzindo conteúdos determinados pelas

estruturas sociais e por suas vivências.

No campo da retórica argumentativa, por exemplo, o falante utiliza recursos

argumentativos para que o seu interlocutor receba o seu discurso como possível verdade e

como realidade, produzindo efeitos para isso. Nesse caso, o falante, conscientemente,

organiza a estratégia usada na formulação discursiva, fazendo escolhas, de acordo com a

situação e de acordo com as imagens, como coloca Fiorin. Ele

organiza sua estratégia discursiva em função de um jogo de imagens: a imagem que ele faz do interlocutor, a que ele pensa que o interlocutor tem dele, a que ele deseja transmitir ao interlocutor etc. É

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em razão desse complexo jogo de imagens que o falante usa certos procedimentos argumentativos e não outros. (FIORIN, 2007, p. 18).

Todavia, os discursos acabam, inconscientemente, revelando conteúdos que foram

assimilados pelo falante, o qual acaba por reproduzi-los. Nesse ponto, o discurso é

determinado pelos sentidos contidos, por exemplo, numa determinada época, num

determinado tempo histórico e num determinado espaço. Seria a forma de ver o mundo

adquirida e implícita, através dos sentidos contidos no discurso. A determinação

ideológica26ganha nesse item um campo fértil, mas apesar de os conteúdos veiculados pelo

discurso poderem ter essa faceta inconsciente, da mesma forma, podem ser usados

conscientemente pelo falante, com algum propósito específico. Nessa medida, os discursos,

podem, por meio de ideologias adquiridas por quem o constrói, manipular a recepção ao se

materializarem em texto. Para Orlandi (1999, p. 157)

a materialidade da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua. A relação material contraditória entre língua e ideologia, apreensível nesse objeto particular que é o discurso, é que está em questão. A linearização do discurso em texto – dispondo assim em um espaço com uma dimensão e direção (o texto) o que é de outra natureza material, dispersa, multidimensional e não redutível a uma relação cronológica do antes e do depois (o discurso) – é que materializa a relação com a interpretação.

Por essa leitura, a interpretação estaria ligada à articulação do texto com o discurso.

Não é só o que está no texto (“as marcas visíveis na língua”) ou no contexto. São as relações

estabelecidas a partir dessa articulação material fundamental, a do texto com o discurso.

Sobre a questão de os discursos serem determinados inconscientemente, de uma certa

forma, por outros discursos, por outros dizeres já pronunciados, Orlandi chama isso de

interdiscurso, ou memória discursiva. Segundo ele, é assim que denominam esse fato os

estudiosos que se atém a trabalhar com a análise do discurso27. Essa memória discursiva ou

interdiscurso é, nas suas palavras,

26. Para isso, é necessário saber o que se entende por ideologia, cujos conceitos serão estudados mais adiante.

27. O objetivo aqui não é realizar a investigação exaustiva sob a ótica de teorias desses estudiosos. É tão somente utilizar, vez por outro, algumas de suas análises no que for relevante para esta pesquisa.

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o conjunto de dizeres já-ditos e esquecidos que determinam o que dizemos, que sustentam a possibilidade mesma do dizer. Para que nossas palavras tenham sentido é preciso que já tenham sentido. Esse efeito é produzido pela relação com o interdiscurso, a memória discursiva: algo fala antes, em outro lugar, independentemente. Filiamo-nos a redes de sentidos em um gesto de interpretação, na relação com a língua e a história, e em que trabalham a ideologia e o inconsciente. (ORLANDI, 1999, p. 151).

Ele diz que esse saber, esse conhecimento não é, de fato, transmitido, ensinado ou

aprendido. Contudo, é um saber existente no indivíduo, por meio de tudo que já foi falado e

vivido anteriormente e, que, inconscientemente, o indivíduo apreende. É um “saber que não se

aprende” (p. 151), mas que se tem.

Uma leitura que contemple esse fato estará atenta ao que é dito em um determinado

discurso e o que é dito em outro de forma diferente, em uma busca de encontrar “a presença

do não-dito no que é dito: presença produzida por uma ausência necessária”

(ORLANDI,1999, p. 151). Com essa leitura, para o autor, será entendido, no que se diz,

aquilo que não se diz. E esse não dito também será importante para a construção de todo o

sentido do que se diz.

No Pro Marcello, o que Cícero faz é, através de citações de feitos do ditador e também

de suas características, tentar projetar uma imagem de César talvez de herói, a partir da

imagem que faz dos ouvintes do discurso, da imagem que tem do próprio ditador e da imagem

que ele acha que os ouvintes têm dele mesmo, tentando fazer uma representação da realidade.

Isso para que os seus interlocutores recebam os argumentos apresentados como possíveis

verdades, mesmo que o não sejam. Fazendo isso, Cícero, de acordo com as assertivas de

Fiorin (2007), estaria, por meio do seu discurso, materializando uma representação da

realidade.

Numa certa medida, estaria também, dizendo coisas que não estão claramente latentes

no discurso materializado em texto, mas que subjazem a ele, completando o sentido. Ele

estaria dizendo o que não diz aparentemente, mas que pretende dizer.

Quando, por exemplo, no excerto abaixo, presente no capítulo IX, parágrafo 27, ele

faz uma exortação a César para a reconstrução da República, apontando que, com esse ato, o

mesmo poderá descansar com tranquilidade, Cícero pode dizer, implicitamente, estar ao lado

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do ditador nesse restabelecimento, ou melhor, ter essa pretensão. Se o aconselha a fazer, é

porque também teria o mesmo intuito.

(...) in hoc elaborandum est, ut rempublicam constituas,(...)

(Deve-se trabalhar nisto, para que restaures a República,)

Sendo assim, é relevante entender o que seja ideologia, de que modo a realidade se

relaciona com ela e em que medida o discurso representa uma ideologia.

A realidade vivida pelo indivíduo é formada por níveis. O nível profundo, nem sempre

observado por todos, e o nível superficial, que participa das aparências. Atitudes e fatos que

ocorrem no nível aparente muitas vezes mascaram a verdade existente no nível profundo da

realidade. É quando, segundo Fiorin (2007), a realidade se coloca invertida.

As igualdades, por exemplo, entre as relações sociais, apresentam-se afirmadas na

aparência superficial e, por vezes, negadas na essência, ou seja, no nível profundo.

É justamente essa superfície, essa aparência que é percebida, imediatamente, por nós,

que a tomamos como a própria realidade no seu todo, não conseguindo perceber o que vai

além dela.

As ideias que se formam no indivíduo tentam, assim, explicar e justificar tal realidade

tida, erroneamente, como total. Desse modo, são entendidas como naturais algumas

convicções advindas dessas formas de racionalização, mesmo sendo totalmente contrárias à

realidade existente no nível profundo. Como exemplo disso, conforme pondera o autor

comentado, pode-se citar a ideia de que as desigualdades contidas nas relações sociais têm

origem natural.

São essas ideias formadas e essas representações da realidade que denominamos, de

acordo com Fiorin (2007), de ideologia. Assim, a ideologia, ao ser elaborada, tomando como

ponto de partida as aparências do real, não é, de fato, esse real. Oculta, desse modo, as

relações contidas no nível profundo, apresentando-as de forma invertida. É, então, segundo

essa teoria, a ideologia o reverso da realidade. É o ponto de vista, o modo de ver o mundo e de

explicar dados da realidade e justificar a ordem estabelecida. E como existem vários pontos de

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vistas e diversos ângulos de se ver o mundo, existem, da mesma forma, várias ideologias. E

Fiorin (2007) vai ainda mais longe, dizendo que cada classe social tem um desses pontos de

vista. Logo, cada uma tem a sua ideologia.

Afirma, ainda, que, para cada ideologia equivalerá uma formação discursiva, que

possa materializar essa concepção de mundo, por isso é o discurso, basicamente, o local de

reprodução ideológica. Ele determina o que deve ser dito sobre o que ideologicamente se

pensa. Então, haverá tantos discursos quantas ideologias ou formas de pensar houver. Tanto

as ideias, como os discursos que as reproduzem, acabam por expressar, assim, a realidade

entendida, mas nem sempre real.

O estudioso também tem a opinião de que o caráter conceitual do pensamento humano

o coloca dependente de uma linguagem, ou seja, o pensamento só irá existir dentro da

linguagem, sendo, apesar de diferente dela, indissociável da mesma. Sendo assim, “Por causa

dessa indissociabilidade, pode-se afirmar que o discurso materializa as representações

ideológicas” (FIORIN, 2007, p.34).

É, desta forma, com a formação discursiva assimilada que o homem constrói seus

discursos, que ele reage linguisticamente aos acontecimentos, que ele representa a realidade,

da maneira como a entende.

O real, segundo Fiorin (2008), é sempre mediado pela lingugem. Ele “apresenta-se

para nós sempre semioticamente, ou seja, linguisticamente.” (p. 19). Devido a isso diz o autor

que o Círculo de Bakhtin dá uma importância primordial à linguagem.

Contudo, para o estudioso, enquanto umas ideologias se atrelam à visão aparente da

realidade entendida por umas pessoas, outros indivíduos conseguem atingir a sua

profundidade, encontrando a essência. Algumas ideologias representam a realidade invertida,

outras não. A realidade, assim, faz parte da ideologia, do mesmo modo que a ideologia dela se

alimenta, mesmo que de forma invertida.

Nesse sentido, poderia se pensar em ideologias que expressam a realidade como um

todo e outras que apenas mostram uma de suas facetas. Imagina-se, então, em como seria

possível distinguir um tipo de outro. Como seria possível conseguir classificar alguma

ideologia de uma forma ou de outra – ou como representantes da essência da realidade ou

como representante apenas de uma aparência.

No discurso de Cícero, por exemplo, poderíamos especular que ideologia estaria sendo

expressa: talvez a ideologia do grupo senatorial, talvez apenas a concepção de Cícero sobre tal

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ideologia ou a ideologia entendida por César ou até mesmo como sendo uma tentativa de

demonstrar outra ideologia.

Apresentar a benevolência de César, glorificá-lo, talvez na tentativa de heroificá-lo,

poderia demonstrar a ideologia do próprio orador de que, colocando-se ao lado de César, em

um momento tão conturbado na vida político-social de fins da República, seria uma forma de

apresentar a sua adesão ao ditador e a crença na reconstrução da República.

Continuando as reflexões sobre o que seja ideologia no entendimento de alguns

teóricos, nos reportamos também à estudiosa Marilena Chauí (1980). Segundo ela, o termo

ideologia é utilizado pela primeira vez por Destutt de Tracy, em 1801, em seu livro Eléments

d’Idéologie. A autora afirma que o estudioso, juntamente a outros (o médico Cabanis, De

Gérando e Volney) “pretendia elaborar uma ciência da gênese das idéias, tratando-as como

fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com

o meio ambiente.” (1980, p.10).

Sobre esse primeiro uso termo, BOTTOMORE (1988) assim dispõe:

O termo parece ter sido primeiro usado, no seu sentido básico do estudo das ideias, por D. de Tracy, em fins do séc. XVIII. Nessa acepção (...) foi empregado por vários escritores franceses do séc. XIX. Mas, logo depois, a palavra adquiriu uma conotação pejorativa. (p. 570).

A conotação pejorativa teria sido adquirida a partir de um fato ocorrido na França.

Segundo Chauí, alguns ideólogos franceses foram partidários de Napoleão que, como cônsul,

nomeou vários deles como senadores ou tribunos. Contudo, descobriram estes não ser

Napoleão “um liberal continuador dos ideais da Revolução Francesa” (CHAUÍ, 1980, p. 10),

assim como pensavam. Devido a isso, opõem-se às leis que diziam respeito à segurança do

Estado, sendo, com essa atitude, punidos com a perda do cargo de tribunos e com o

fechamento de sua Academia. Os ideólogos voltam-se, então, para a oposição.

Dessa feita, foi criada uma nova acepção para a palavra ideologia. Conforme a autora,

a partir de uma declaração feita por Napoleão ao Conselho de Estado de 1882, os termos

“ideologia” e “ideológico” assumiram sentido pejorativo no seu entender, fazendo uma

acusação sem fundamentos aos ideólogos da França. Chauí transcreve a declaração:

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Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história. (1980, p.10 e 11).

A autora acrescenta que esse sentido dado ao termo por Napoleão é conservado

quando Marx critica os ideólogos alemães. No sentido empreendido pelo filósofo:

o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as idéias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua relação real com o real. (CHAUÍ, 1980, p11).

Prosseguindo, Marilena Chauí diz que o termo foi novamente empregado, com o

sentido aproximado do original, por Augusto Comte. De acordo com ela, o termo aí

possui dois significados por um lado, a ideologia continua sendo aquela atividade filosófico-científica que estuda a formação das idéias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, tomando como ponto de partida as sensações; por outro lado, ideologia passa a significar também o conjunto de idéias de uma época, tanto como “opinião geral” quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época. (1980, p.11).

Já para Durkheim, segundo Chauí, o ideológico é tudo que foge à objetividade

científica, entendida por ele como a “separação entre o sujeito do conhecimento e objeto do

conhecimento”. O ideológico, então, é “um resto, uma sobra de idéias antigas, pré-

científicas.” Durkheim as considera como preconceitos e pré-noções inteiramente subjetivas,

individuais, “noções vulgares” ou fantasmas que o pensador acolhe porque fazem parte de

toda a tradição social em que está inserido.” (CHAUÍ, 1980, p.12)

No entender da educadora, a ideologia é justamente um fato social por ser produzida

pelas razões sociais. Ela diz que é “uma certa maneira da produção das idéias pela sociedade,

ou melhor, por formas históricas determinadas das relações sociais.” (p.13).

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Segundo a autora, para Marx, ideologia é uma praxis social. É

uma das formas da práxis social: aquela que, partindo da experiência imediata dos dados da vida social, constrói abstratamente um sistema de idéias ou representações sobre a realidade. Para percebermos que a ideologia não é o mero “reflexo” invertido da realidade na consciência dos homens. (CHAUÍ, 1980, p.41).

A grande tarefa da ideologia seria, através desse pensamento, substituir o real pelo

imaginário e não apenas ser um reflexo invertido dessa realidade, como apresentado neste

trabalho anteriormente, ao serem apontados os entendimentos de Fiorin e Bakhtin.

Por esse prisma, ao discursar e ao apresentar as ideias sobre os feitos de César, o

orador do discurso Pro Marcello não estaria, de fato, os colocando tal como ocorreram, tal

qual a realidade de sua existência, mas também não estaria invertendo totalmente essa

realidade. Isso porque realidade é aquilo que ocorreu e, quando alguém a ela se refere, já não

é ela própria e sim a visão daquele que a referiu ou a visão que ele pretendeu ou intencionou

representar. Cícero estaria, sim, apresentando o seu entendimento, as suas ideias e

representações sobre a realidade e, mais ainda, elaborando e escolhendo como discursar, de

que modo iria expor a realidade; estaria apresentado possíveis ideias e representações dessa

realidade, ou seja, expondo aquilo que poderia ser crível por quem ouvia, aquilo que, se

verdade não era, poderia ser tomado como tal.

Essas ideologias presentes no discurso de Cícero apresentariam construções feitas,

então, a partir das suas vivências e das vivências dos ouvintes do discurso, assim como do

contexto social e das relações existentes nesse social. O seu discurso, portanto, seria

determinado por tais vivências e tais relações.

Conforme essas convicções, se o orador pretendia demonstrar a sua adesão a César,

colocá-lo com um perfil de herói e sua crença sobre a reconstrução da República, movido por

tais determinações sociais, mas, ao mesmo tempo, consciente daquilo que intencionava

demonstrar, construiu a fala nesse sentido.

Na tentativa, ainda de definir ideologia, a partir do pensamento de alguns estudiosos

sobre o assunto, podemos apontar também a concepção de Bottomore (1988). Para o autor,

ideologia se define por ser “um conjunto de convicções e conceitos (concretos e normativos)

que pretende explicar fenômenos sociais complexos com o objetivo de orientar e simplificar

as escolhas sócio-políticas que se apresentam a indivíduos e grupos.” (p. 570).

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Prosseguindo, o autor, ao dar tal definição, não pretende retratar as multiplicidades de

facetas do termo e “nem os diversos sistemas intelectuais considerados ideológicos, os modos

pelos quais eles têm sido legitimados, o equilíbrio interno entre os seus componentes éticos e

factuais etc.” (p. 570). Para ele, alguns aspectos do termo poderiam ser estruturados não

somente à luz de sua história, mas, do mesmo modo, por estudos realizados pela sociologia.

De acordo com Bottomore (1988), os marxistas passaram a utilizar o termo com uma

conotação ambígua. Marx e Engels, segundo ele, deram-lhe uma acepção essencialmente

baseada na falsa consciência. “Para eles, as ideologias são formas de consciência falsa, i.e.,

são sistemas de idéias distorcidas e enganadoras, baseadas em ilusões – contrapondo-se às

teorias e opiniões científicas.” (p.571).

Diz o autor que Marx apresenta a ideologia como a consciência da realidade em que

“os homens e as circunstâncias aparecem de cabeça para baixo, tal como numa câmera

obscura...” (MARX, K. & ENGELS, F. apud BOTTOMORE, 1988, p. 571).

Esses sistemas, segundo o autor,

manifestam-se ainda sobre a forma de credos em que se alicerçam tais avaliações, definições e como diriam os marxistas, as superestruturas, i.e., fenômenos mentais, determinados ou regulados por classes, tais como a linguagem e a moral. (p. 571).

Bottomore aponta, ainda, que, a partir das opiniões dos marxistas sobre suas próprias

doutrinas - de as mesmas terem qualidade científica - chega-se à conclusão de que elas não

são ideologias, nem são produtoras de ideologias com aquele sentido dado a elas.

Bottomore (1988, p. 571) diz que a ambiguidade existente no sentido de ideologia

dado pelos marxistas acaba refletindo no emprego do termo feito por K. Mannheim, em

Ideology and utopia, quando comenta: “O estudo das ideologias incumbiu-se de desmascarar

as decepções e os disfarces mais ou menos conscientes dos grupos de interesse...”. Aponta,

também que, depois, esse teórico teria analisado dois tipos de falsidade relacionadas às

observações e afirmações: as ideologia particulares, que se manifestam no nível psicológico e

que, por isso, parecem mentiras; e as ideologias totais, que são a disposição mental que o

homem tem de entender as coisas com a determinação do contexto histórico e social.

Bottomore cita, em seguida, H. Arendt que, além de destacar os elementos de

falsidade e normativos das ideologias, também aponta o caráter explicativo, ou melhor, a

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função de explicação dentro de “certos sistemas abstratos e dedutivos do pensamento social.”

(BOOTOMORE, 1988, p. 571).

Como se pode entrever, depois das sucintas e, por vezes, distintas definições

apresentadas acima, percebe-se que o termo ideologia foi concebido originalmente, desde a

primeira vez que foi usado, de uma forma, mas foi, ao longo do tempo e através do uso e das

análises de alguns estudiosos, adquirindo novos conceitos e concepções.

Para as análises deste trabalho, cabe ressaltar que apenas algumas dessas facetas foram

observadas, já que são elas que norteiam o estudo, no que diz respeito à influência da

ideologia, sobre o discurso Pro Marcello.

3.3 Discurso e estilo

O estilo usado na construção do discurso, como poderá ser verificado, também tem

relação com o caráter dialógico/ideológico presente. O dialogismo inerente ao discurso,

segundo Bahktin, por ser dependente do discurso do outro, faz com que o estilo do enunciador

seja também em relação ao outro e oposto a ele. O estilo, então, não é entendido pelo

estudioso como subjetivo, pois está em relação a outros estilos, mas é, ao mesmo tempo,

numa certa medida, individual.

Enquanto, para alguns estudiosos do estilo, ele teria essa faceta de subjetividade, para

Bakhtin, não. Ele define estilo como todos os procedimentos e todos os recursos empregados

na elaboração do discurso e que estão à disposição, no sistema linguístico, para o enunciador

escolhê-los e arrumá-los a seu modo.

Fiorin, citando Bakhtin, assim define a faceta individual do discurso: “O estilo é o

conjunto de traços fônicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, lexicais, enunciativos,

discursivos, etc., que definem a especificidade de um enunciado e, por isso, criam um efeito

de sentido de individualidade” (2008, p.46).

A forma como autor escolhe e organiza aquilo que tomou do sistema linguístico cria

um sentido de particularidade do seu discurso, caracterizando-o em oposição a outro.

Contudo, o estilo, apesar de apresentar características e efeitos de particularidade do

enunciador, não é subjetivo, pois depende das relações-entendimentos com outro ou outros

discursos e fica atrelado, desse modo, a uma visão de mundo de quem produz o enunciado.

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Seria, então, o discurso, nessa medida, apesar de individual, um reflexo de uma ideologia. Ao

mesmo tempo que particular, também determinado, como já salientado.

Assim, na constituição do discurso, a imagem feita do interlocutor é importante para a

elaboração, havendo, dessa forma, uma determinação, ou seja, o estilo é determinado também

pela imagem que se faz do outro. Não se diz a mesma coisa, do mesmo modo, para qualquer

interlocutor. A formulação do discurso dependerá das características de cada interlocutor e o

enunciador o elaborará a partir do conhecimento que tem daquele para quem diz.

Bakhtin (2000) diz que o estilo está estritamente ligado ao enunciado e aos diferentes

tipos de enunciados, ou seja, aos diferentes gêneros do discurso. Para ele, qualquer enunciado

pode ser individual, isto é, pode apresentar um estilo individual, sendo os enunciados

literários os mais propícios a essa individualidade.

Acrescenta que, se para cada esfera da atividade humana há um gênero, para cada

gênero poderá haver um determinado estilo. O estilo, para Bakhtin, é “elemento na unidade de

gênero do enunciado”. Portanto, para que se estude, por exemplo, uma estilística da língua,

deve-se levar em conta, a princípio, o estudo da diversidade dos gêneros, pois “os estilos

pertencem por natureza ao gênero” (2000, p. 284).

Outra questão salientada por ele é que as mudanças que ocorrem nos gêneros do

discurso estão totalmente atreladas às “mudanças históricas do estilo da língua” (p. 285). E

tais alterações nos gêneros do discurso existem por refletirem as mudanças sociais. Verifica-

se isso nas seguintes palavras: “Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros

do discurso, são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da

língua.” (2000, p. 285).

A língua é, desse modo, marcada, em cada fase de seu desenvolvimento, pelos gêneros

dos discursos. Assim, um fato linguístico concreto, quando visto pelo prisma do enunciado

individual é um “fato estilístico”. Contudo, quando é encarado pelo prisma da língua, é

“gramatical”. Para Bakhtin, esses dois pontos de vistas sobre os quais o fato linguístico é

analisado não devem se excluir, ao contrário, devem concordar-se.

Portanto, para isso, mais uma vez diz ser necessário entender profundamente “a

natureza do enunciado e da particularidade dos gêneros do discurso” (2000, p.287).

Compreendendo-se o enunciado, na concepção do autor, pode-se também compreender a

natureza das unidades da língua, isto é, da língua tomada como um sistema.

Nesse sentido, no que diz respeito ao Pro Marcello, Cícero, ao elaborar seu discurso, o

formulou particularmente, escolhendo no sistema linguístico os recursos que achou

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necessários, e, ao mesmo passo, procurou, naquele para quem o discurso foi feito,

características que auxiliassem nessa elaboração, assim como também procurou no próprio

caso em questão, nas próprias circunstâncias e histórias a respeito do caso, os meios que o

levassem a uma demonstração eficiente.

Nesse ínterim, pode-se dizer que entram os recursos retóricos na construção do

discurso. O orador, além de utilizar a língua para a elaboração, irá, a partir daquilo que

pretende causar no público, construir o discurso com intenções definidas. As suas escolhas

particulares – o seu estilo - estarão, assim, a serviço do que pretende, do que objetiva. O

discurso, desse modo, é individual, mas não subjetivo, porque depende igualmente do outro,

como já apontado, para sua construção, do mesmo modo que depende das finalidades

almejadas a partir de sua construção.

Sendo assim, no próximo tópico deste trabalho, será tratada a retórica sob a luz das

teorias apresentadas por estudiosos como Aristóteles – e, a partir dele - com a finalidade de

entender de que modo Cícero lançou mão dos recursos dessa arte para pronunciar o discurso

Pro Marcello.

3.4 Discurso e retórica

3.4.1 O surgimento da retórica e a educação retórica

Com a transformação da sociedade grega antiga em uma sociedade democrática, o

pensamento mítico-religioso anterior não é mais suficiente para explicar a realidade. Surge,

em decorrência dessa necessidade, o pensamento filosófico. Aparece, então, na Grécia Antiga,

um novo modelo de se pensar.

Inicialmente, tenta-se, através desse pensamento, explicar a realidade natural através

dela própria, usando, por exemplo, elementos como a água, o ar e a terra.

Os conhecidos como os primeiros filósofos de que se tem notícia, são os chamados de

pré-socráticos. Como primeiro de todos eles e visto como o principiador da forma de

pensamento que se passou a conhecer pelo nome de filosofia, tem-se Tales de Mileto, como

expõe Marcondes (2001, p. 32):

Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo (...) e, embora conheçamos muito pouco sobre ele e não exista nenhum fragmento seu, foi desde a Antigüidade visto como o iniciador da visão de mundo e do estilo de

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pensamento que passamos a entender como filosofia. Duas características são fundamentais nesse sentido; em primeiro lugar, seu modo de explicar a realidade natural a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou ao misterioso, formulando a doutrina da água como elemento primordial, princípio explicativo de todo o processo natural; e, em segundo lugar, o caráter crítico de sua doutrina, admitindo e talvez mesmo estimulando que seus discípulos desenvolvessem outros pontos de vista e adotassem outros princípios explicativos.

Contudo, somente com Sócrates é que se tem a inauguração da filosofia clássica. Ele é

justamente tomado como um marco, por ser o responsável por introduzir na filosofia um novo caráter

e preocupação. É ele que coloca nas discussões filosóficas as questões ético-políticas, desse modo,

refletindo sobre o problema da humanidade e da vida em sociedade.

É considerada tão relevante a sua filosofia que até mesmo a denominação dada aos primeiros

filósofos a demonstra – o título de pré-socráticos. Ele é responsável por iniciar, então, a reflexão e a

discussão sobre a problemática ético-política, colocando-as em primeiro plano e pondo de lado a

natureza como fonte da temática principal da filosofia. (MARCONDES, 2001).

Aparece, assim, a filosofia como “fato cultural, como produto de um determinado contexto

histórico e social” (MARCONDES, 2001, p. 40). Ela passa a ter seu próprio estilo, com fins

específicos. Tal surgimento está diretamente relacionado ao início da estabilização grega, e a partir

dessa estabilização, da necessidade de harmonização dos diferentes interesses que passam a coexistir.

Uma harmonização conseguida por um consenso democrático.

A democracia representa exatamente a possibilidade de se resolverem, através do entendimento mútuo, e de leis iguais para todos, as diferenças e divergências existentes nessa sociedade em nome de um interesse comum. As deliberações serão todas tomadas, assim, em reuniões de cidadãos, as assembleias. Isso significa que as decisões são tomadas por consenso, o que acarreta persuadir, convencer, justificar, explicar. (MARCONDES, 2001, p. 41).

Os cidadãos, agora, organizados na polis28, têm a necessidade de discutir, de avaliar,

de justificar, de explicar etc., para a chegada a um consenso.

Nesse caso, a razão deverá superar a força que era empregada anteriormente. Entra em

cena, nesse contexto, o poder da linguagem, do diálogo, da possibilidade de usar a discussão.

A filosofia irá, para isso, como diz o autor, procurar bases em que possa alicerçar essas

discussões, como:

28. São as chamadas cidades-estados da Antiga Grécia, nas quais os cidadãos viviam em comunidade organizada.

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(...) o que é a verdade? Quais os princípios da razão? Com base em critérios se pode justificar aquilo que se diz? É nesse sentido que podemos entender o contexto histórico e político de surgimento do discurso filosófico, da filosofia, que encontra seu apogeu nos sécs. V-IV a.C.. (MARCONDES, 2001, p. 41).

É pela palavra, agora, que o cidadão grego poderá defender o que for do seu interesse

e os seus direitos. É ela que esse indivíduo precisa saber usar para convencer sobre alguma

coisa, para explicar ou justificar algo, para mostrar o que precisa.

Verifica-se, a partir disso, o surgimento da retórica e da oratória, artes pelas quais o

homem, por meio do discurso, galgará seus objetivos. Aparece uma filosofia, segundo a qual

“(...) um discurso em que tudo que se afirma deve ser submetido à discussão, à argumentação,

à justificação, preocupando-se assim com os critérios de verdade e de justificabilidade.”

(MARCONDES, 2001, p.42).

A respeito do fato de a retórica ter se desenvolvido a partir do processo de

democratização da Grécia e sobre o a sua invenção, Nunes reflete:

Desde o tempo de Homero (séc. IX ou VIII a.C.) que a capacidade de persuadir do discurso fascinou os gregos, mas o seu interesse por essa capacidade só se desenvolveu a partir do momento em que a democracia substituiu os regimes monárquicos e oligárquicos nalgumas das principais cidades da Grécia. Segundo uma tradição que remonta a Aristóteles, a retórica teria sido inventada por Empédocles de Agrigento, filósofo pré-socrático do séc. V a.C. de quem Górgias, um dos mais reputados professores de retórica, teria sido discípulo. Outra tradição atribui a origem da retórica a Córax e Tísias, que, após a queda dos tiranos e a instauração da democracia em várias cidades da Sicília em meados do séc. V a.C., teriam sido os primeiros a escrever um tratado de retórica para responder às necessidades dos litigantes numa questão de disputa de terras. (NUNES, 2015, p.1).

É, desse modo, nesse contexto de democratização da Grécia, que aparecem essas artes

do discurso. Considerados mestres de tais artes são os sofistas, os quais são contemporâneos

de Sócrates e também seus adversários.

Refletindo sobre as origens da retória, Reboul (1998), por seu turno, pondera que a

retórica propriamente dita seria anterior a sua própria história, pois não se pode acreditar ter o

homem vivido sem fazer uso da linguagem com o fito de persuadir alguém. Contudo, diz que

a retórica como técnica e teoria foi inventada pelos gregos, como ele mesmo pondera:

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(...), os gregos inventaram a ‘técnica retórica’, como ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois, inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas à compreensão, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teoria da arte, da literatura, da religião. (REBOUL, 1998, p.1).

Depois de terem os gregos a elaborado, não houve, segundo Reboul, nos tempos

posteriores, mudanças significativas em seu sistema. Apenas pequenas alterações.

Conforme o autor, são os sofistas que conferem os fundamentos da retórica. São eles

os responsáveis por criar a retórica como “a arte do discurso persuasivo”, sendo objeto “de

um ensino sistemático e global” (p.9). Para eles, qualquer um poderia ser ensinado a persuadir

qualquer um.

...é aos sofistas que a retórica deve os primeiros esboços de gramática, bem como a disposição do discurso e um ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a idéia de que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível. A eles se deve a insistência no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na fuga incessante das coisas, ao que se dá o nome de espírito da oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de qualquer retórica viva. (REBOUL, 1998, p.9).

Os sofistas pregam uma retórica que não pretende mostrar o verdadeiro, nem mesmo o

verossímil. A pretensão é ser eficaz, é convencer, através do uso das palavras, através do

discurso elaborado. É uma retórica para o poder e não para o saber.

A origem, de fato, da retórica não é literária e, sim, judiciária, como o autor coloca,

conferindo a Córax, um sofista, a responsabilidade pela primeira definição de retórica, que é,

justamente, a de ser criadora de persuasão.

A retórica não nasceu em Atenas, mas na Sicília grega por volta de 465, após a expulsão dos tiranos. E sua origem não é literária, mas judiciária. Os cidadãos despojados pelos tiranos reclamaram seus bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros conflitos judiciários. Numa época em que não existiam advogados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua causa. Certo Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e o seu próprio discípulo, Tísias, publicaram então uma ‘arte oratória’ (teckhné rhetoriké) coletânea de preceitos práticos que continha exemplos para uso das pessoas que recorressem

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à justiça. Ademais, Córax dá a primeira definição de retórica: ela é ‘criadora de persuasão’. (REBOUL, 1998, p. 2).

Essa retórica inicial não tinha, portanto, alcance nem literário nem filosófico. Ela

servia às questões jurídicas. Era um instrumento que auxiliava os litigantes nas suas causas.

Além disso, foi colocado à disposição deles o que Reboul chamou de instrumento de

persuasão:

Os retores, com seu senso agudo de publicidade, ofereceram aos litigantes e aos logógrafos um instrumento de persuasão que afirmavam ser invencível, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. Sua retórica não argumenta a partir do verdadeiro, mas a partir do verossímil (eikos). (1998, p.2).

Isso, partindo-se do princípio de que, se no âmbito jurídico não se conhece a verdade,

necessário torna-se trabalhar com o verossímil.

A retórica, assim, passa a ser uma disciplina que servia para organizar a elaboração de

discursos com teor persuasivo, assim como para formar o orador.

Córax, discípulo do filósofo Empédocles, segundo Reboul (1998), criou então um

argumento que é denominado também de “córax”. Esse argumento tem como propriedade

mostrar que uma coisa é inverossímil por ser muito verossímil. Na verdade, é a tentativa de

provar que uma coisa, por parecer muito ser, pode não o ser. Pode-se exemplificar o

argumento córax com o próprio exemplo do autor: “se o réu for fraco, dirá que não é

verossímil ser ele o agressor. Mas, se for forte, se todas as evidências lhe forem contrárias,

sustentará que, justamente, seria tão verossímil julgarem-no culpado que não é verossímil que

ele o seja”. (p. 3).

Se o réu sabe que ele era forte o suficiente para cometer uma agressão, justamente por

isso não cometeria porque seria muito óbvia a autoria. Contudo, essa realidade argumentativa

de córax poderia ser usada contra o próprio autor.

O mais maçante é que o córax pode ser voltado contra seu autor, afirmando que ele cometeu o crime por achar que parecia suspeito demais para que dele suspeitassem, e que chegou a acumular propositadamente acusações contra si mesmo, para depois refutar com facilidade. (REBOUL, 1998, p.3).

Será somente o siciliano Geórgias que iniciará a nova retórica em Atenas, a retórica

literária. Anteriormente a ele a prosa só servia a uma transcrição da “linguagem oral comum”

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(REBOUL, 1998, p.4) e os gregos relacionavam literatura somente à poesia, como a épica,

por exemplo.

Como um dos fundadores do discurso epidíctico, Geórgias cria uma prosa diferente,

com eloquência, para qual utiliza muitas figuras de palavras e de pensamento. Como diz

Reboul (1998, p. 4), “Geórgias pôs a retórica a serviço do belo”. Ele usava uma prosa bela

assim como era bela a poesia.

Considerado um sofista, foi também professor de eloquência e de filosofia e, com isso,

recebia salários altos. Anteriormente, os gregos só tinham uma educação elementar. Os

retores inovaram e iniciaram um ensino mais aprofundado. “É aos retores que se deve essa

inovação: ensino intelectual aprofundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro

objetivo senão a cultura geral.” (REBOUL, 1998, p. 6).

Já Protágoras, o primeiro o homem a se interessar por estudos, que depois foram

chamados de gramática, segundo Reboul, também ensinou eloquência e filosofia e valeu-se

ainda mais de sofismas. Com ele, é que haverá uma ligação maior entre sofística e retórica. É

considerado o fundador da erística, que utilizava, segundo o autor, os piores sofismas.

Passa por fundador da erística, que depois virá a ser dialética. Partindo do princípio de que a todo argumento pode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado ou refutado, ele ensina a técnica erística, arte de vencer uma discussão contraditória (‘erística’ vem de éris, controvérsia). Essa arte, extremamente elaborada, não hesita em recorrer aos piores sofismas. (REBOUL, 1998, p. 7).

Os sofistas foram combatidos por pensadores como Aristóteles e Platão, mas apesar

disso, e também por isso, parecem ter tido o seu valor. A partir do conceito de Protágoras, por

exemplo, de que o homem é a medida de todas as coisas, chega-se a uma relativização da

verdade, pois o critério de verdade passa a ser o de que as coisas são como se aparentam a

cada homem, ou seja, cada homem tem a sua verdade, sendo todas verdadeiras.

Relativismo pragmático, tal parece ter sido a doutrina de Protágoras. Não existe verdade em si, mas uma verdade de cada indivíduo, de cada cidade; e o importante é aquilo que lhe permite fazer-se valer e impor-se, que é precisamente a retórica. Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto a violência quanto a tolerância. (REBOUL,1998, p. 8).

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Talvez por isso tenha sido condenado por pensadores como Platão que, apesar de tê-lo

combatido, escreveu sobre o filósofo dois textos que o colocam em um patamar de respeito.

(REBOUL, 1998).

Outros surgiram depois disso, mas houve pouca mudança em relação ao modelo de

retórica aí estabelecido. Somente Isócrates e Aristóteles iriam mais tarde sistematizar mais

completamente essa disciplina (GUEDES, 2005).

Isócrates, que foi grande professor de retórica, segundo Reboul (1998), entendia que

para um bom orador deveria haver aptidão, prática e sistematização, ou seja, a prática e a

sistematização sozinhas não seriam capazes de produzir um orador. Um bom orador deveria

ter uma aptidão natural.

A retórica proposta por ele é “mais plausível e mais moral do que a dos sofistas.”

(REBOUL, 1998, p.10). Ele ensina uma retórica voltada para a reflexão. Principalmente,

moraliza a retórica, ao afirmar enfaticamente que ela só é aceitável se estiver a serviço de uma

causa honesta e nobre, e que não pode ser censurada, tanto quanto qualquer outra técnica, pelo

mau uso que dela fazem alguns.

Isócrates une de vez a filosofia à retórica: “...para Isócrates, ‘filosofia’ é cultura geral,

centrada na arte oratória; numa palavra: retórica.” (REBOUL,1998, p.12).

Conforme ponderações de Reboul (1998), a contribuição de Isócrates é o sentido de

beleza que dá ao discurso. O discurso é próprio do homem – pois só ele tem a capacidade de

falar – e se ele é belo, tem o “valor por excelência”.

No que diz respeito a Aristóteles, a verossimilhança será relevante, tendo a retórica o

objetivo de persuadir de forma crível o auditório. As formulações realizadas por esse filósofo

irão servir de fundamento para diversos tratados que vieram depois. Inclusive, Cícero e

Quintiliando, tratadistas latinos, irão tomá-las como base, apenas reiterando um ou outro

ponto.

Sobre a importância que a retórica assumiu no mundo grego e a respeito de a

sistematização da retórica ser atribuída a Aristóteles, pode-se acrescentar:

Pela própria natureza do estado grego, tornava-se imperativo para certas camadas sociais dominar as regras e normas da boa argumentação. O exercício do poder, via palavra, era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte, pois estavam implicados o conhecimento das técnicas persuasivas e o modo de melhor dizê-las; explorar a amplitude convincente do discurso significava a possibilidade de formação dos consensos de mando. È compreensível que surgissem, nessas circunstâncias, as primeiras sistematizações e reflexões acerca

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dos problemas envolvidos com a linguagem verbal. Os pensadores gregos, de Sócrates a Platão, escreveram sobre o assunto, porém é com Aristóteles que a estrutura do discurso será dissecada revelando-se como funcionava em suas unidades compositivas voltadas a produzir persuasão.” (CITELLI, 2005, p.9)

E no que diz respeito ao fato de ter sido a sistematização e o modelo dados por

Aristóteles à retórica os que tenham sido seguidos no mundo grego e romano a partir das

incursões do filósofo, Nunes coloca:

Esta actividade simultaneamente de investigação e ensino produziu oradores e retores ilustres como Lísias (c. 445-380 a.C.), Isócrates (436-338 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), que continuaram a cultivar e a desenvolver as técnicas retóricas dos seus mestres. Contudo, foi apenas com Aristóteles (384-322 a.C.), que curiosamente não era sofista nem retor, mas filósofo, que a retórica grega clássica atingiu o ponto máximo de sofisticação e sistematização com que entrou no mundo helenístico e romano. (NUNES, 2015, p. 1).

3.4.2 A retórica e os romanos

Entre os romanos, temos também valiosas ponderações sobre retórica. A retórica

herdada dos gregos encontrará momento propício em Roma, a partir do helenismo ali

constituído e de todas as transformações vivenciadas pela sociedade romana a partir daquele

momento histórico. Tanto na Grécia, imbuída de democracia, como na Roma daquela época –

período republicano – encontravam-se, então, condições propícias para o desenvolvimento da

retórica. Eram momentos em que o uso da palavra tomava grandes proporções na vida política

A herança dos gregos foi muito importante em Roma, sobre a prosa e necessidade de

instrução retórica Bayet observa:

La prose offre um tout autre spectacle: elle a mûri plus vite; puremente latine, elle s’est cependant assimilé et a jeté dans le courant de la vie romaine toutes les qualités de la littérature grecque. Elee doit la rapidité de ses progrès à l’exercice illimité et a la valeur pratique de l’éloquence. Le jeune homme qui se destina à la vie publique, après une éducation très èlargie qui, à côté de la dialectique et de la retórique, touche à la philosophie, aux mathématiques, à l’astronomie, à la musique, et qui le plus solvent s’achève en Grèce, à Athènes, à Rhodes, à Mytilène, revient en Italie très hellénisé et cependant

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contraint à parler le latin le plus général ou le plus tecnique.” (1996, p.113).29

A partir do século II a.C., começam a aparecer retóricos gregos em Roma, para o

ensino de retórica também ali, como era feito na Grécia. Contudo, a expectativa que se tinha

do homem romano a respeito do aprendizado dessa matéria era distinta da esperada na Grécia.

As escolas de retórica que existiram então naquela cidade parecem ter-se dedicado à instrução de homens para que pudessem atuar nos fóruns. Favorecido pelas atribulações institucionais que atingiram a República, dividida em entre os optimates e os populares, e pela lei Acília, de Caio Graco, que possibilitava a não romanos o direito de acusar, o ensino da oratória se expande.(FREITAS, 2014, p. 235).

Assim, o homem romano, passou a ter a necessidade de aprender retórica como forma

de se projetar, além de publicamente, na vida política. Saber falar bem em público dava ao

novo homem romano uma qualidade almejada para que conseguisse prestígio. Logo, um bom

orador passou a ser um modelo para o novo romano, para a definição de um novo tipo de

homem. (FREITAS, 2015).

Em Roma, o poder sobre a palavra ia além de mostrar ou comprovar uma verdade. O

discurso poderia mostar que tipo de homem era o orador. Assim entende Freitas (2014, p.

236): “Mais do que a exposição de um pensamento ligado à comprovação de alguma verdade

alheia ao indivíduo que o profere, um discurso é exatamente a apresentação de quem o

profere.)”.

Assim, com o relevo que foi dado à retórica em Roma, a educação nessa disciplina foi

cada vez mais sendo difundida. Portanto, quando Cícero começa a aparecer como orador em

Roma, a retórica já tinha percorrido o caminho de consolidação em terras latinas, após o

processo de helenização.

Sobre a retórica em Roma, Barilli assim assinala:

29. A prosa oferece um outro espetáculo: ela amadureceu mais rápido; puramente latina, ela foi, entretanto, assimilada e lançou no percurso da vida romana todas as qualidades da literatura grega. Ela deve a rapidez de seu progresso ao exercício ilimitado e ao valor pratico da eloquência. O jovem que se destina à vida pública, após uma educação bastante ampliada que, ao lado da dialética e da retórica, engloba a filosofia, a matemática, a astronomia, a música, que se encontrava mais frequentemente na Grécia, em Atenas, em Rodes, em Mitilieno, volta à Itália bastante helenizado e forçado, no entanto, a falar o latim o mais genérico ou o mais técnico. (Tradução nossa).

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a retórica latina dos primeiros séculos vive sobretudo da reconstrução histórica que dela fez Cícero no Brutus (...)Na base de uma documentação directa, a retórica latina começa só nos inícios do século I a.C. com dois tratados: a Rhetorica ad Herennium, durante muito tempo atribuída a Túlio, ou seja, ao próprio Cícero, enquanto hoje nos inclinamos a ver aí a obra de um autor muito próximo dele, mas distinto; e o De inventione, autenticamente ciceroniano, mas escrito num período jovem (...), de tal modo que o autor o renegará depois, ou o confiará à indulgência dos leitores. (BARILLI, 1979, p. 39).

Todavia, para esse estudioso, o pensamento ciceroniano só alcançará relevo nessa

questão no ano 56 a.C., como expõe:

É pois necessário esperar alguns decênios e chegar pelo menos ao ano 56 a.C do De oratore para que o pensamento ciceroniano se manifeste em toda a sua imponência. Seja como for, esta é de tal forma grande que faz desse um dos grandes momentos da retórica; ao lado do da negação platónica, e do da olímpica aceitação e organização aristotélica, o modelo ciceroniano vem introduzir o triunfo, o privilégio da retórica, fazendo-a elevar-se ao nível de arte das artes. (BARILLI, 1979, p. 41).

De acordo com reflexões desse mesmo autor, Cícero chega a esse nível, “preparando

uma visão de mundo, uma concepção global da cultura, na qual a retórica encontra um papel

centralizador e unificador.” (p. 41). Tal entendimento, para Barilli, seria próprio da visão da

romanidade republicana e do Senado, com fundamentos no primado da práxis sobre a teoria.

Na primeira, o cidadão romano deve limitar-se à res publicae, à prática (BARILLI, 1979).

Ao se dedicar à retórica, Cícero, conforme apresentação de Barilli, à matéria

aristotélica não acrescenta nada. O que ele faz é reformular, fazendo retiradas e deslocações e

realizando simplificações. Não é por isso que não terá originalidade. Dá maior relevo, por

exemplo, à dialética. Assim pode-se confirmar nas próprias palavras de Barilli: “não há

introdução de novos elementos, mas uma redistribuição das partes; todavia, também esta é

uma forma de originalidade, mérito que deve ser indubitavelmente reconhecido a Cícero.”

(p.43).

Nas palavras de Carmem Bobes et alli, Cícero tem entendimento da retórica como a

razão de dizer (1995, p. 159):

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Cicerón es el gran orador romano, que representa la concepción ‘filosófica’ de la retórica, a la que considera como uma ratio discendi que exige amplios y profundos conocimientos de las artes e las cienciais, y sobre todo de la filosofia; en ningún caso entiende la retórica como la aplicación mecánica de las reglas de la elocuencia.30

Conforme os autores acima, Cícero percebe a retórica não apenas como a arte do falar,

mas, além disso, a arte do pensar. Não é uma ciência, uma técnica especial. É uma arte geral,

conduzida pela sabedoria e pelo conhecimento geral, tendo a filosofia como a base para o

preparo e a formação do bom orador.

Como se percebe pelas concepções de Bobes et alli, Cícero, assim como Aristóteles, a

entende como uma arte, mas amplia essa concepção, introduzindo a capacidade do orador em

usar os recursos de sua sabedoria e a utilização da filosofia para isso. Cícero entendia, assim,

a filosofia como muito importante na formação de um bom orador.

E por que dir-se-ia, como Aristóteles e Reboul, que usar recursos retóricos é fazer arte,

ou melhor, que a retórica é uma arte? Segundo este último, a palavra arte é uma tradução do

grego techné e possui certa ambiguidade. Isso porque é um termo que designa a habilidade, a

um passo natural, mas que também pode ser adquirida através da técnica e também porque, do

mesmo modo, designa ora uma simples técnica e ora um ato criador, ultrapassando a técnica.

A retórica seria a união de todos esses sentidos dados à palavra arte. (REBOUL, 2000).

O bem expressar, através da retórica, pode, assim, ser uma coisa nata, mas,

igualmente, um orador pode aprender técnicas para melhororar a expressão e a comunicação.

Mas a técnica, na retórica, assim como Aristóteles dispôs, está aliada, além disso, à

capacidade de o orador em descobrir argumentos específicos e mais eficazes para sua causa,

usando o estilo próprio para alcançar seus objetivos.

No caso do autor aqui estudado, Cícero, ele também se dedicou aos estudos da

retórica, assim como tantos outros de sua época, mas se destacou por ter aptidão e capacidade

que parece nata para influenciar os ouvintes. Quando, em Pro Marcello, faz uso, por exemplo,

de recursos próprios do gênero epidíctico, apresenta o domínio sobre as técnicas que conhece,

mas, ao mesmo tempo, demonstra o talento particular sobre isso, como é notório.

30. “Cícero é o grande orador romano, que representa a concepção ‘filosófica' da retórica, a que considera como uma ratio discendi que exige amplos e profundos conhecimentos das artes e das ciências, e sobretudo da filosofía; em nenhum caso entende a retórica como a aplicação mecânica das regras da eloquência. (Tradução Nossa).

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Ao utilizar amplificações ao longo do discurso, com o objetivo de colocar em destaque

as ações, a virtude e a benevolência de César, entre outras características, Cícero utiliza o

próprio conteúdo temático do discurso que é o fato de o ditador ser complacente com seus

adversários – no caso Marcelo, a quem acabou de conceder o perdão.

Logo, ele desempenhou, na execução desse discurso a chamada arte da retórica: o uso

de técnicas adquiridas pelo estudo somadas à capacidade singular do orador em fazer suas

escolhas na hora de proferir um discurso. Pode ser considerado um orador que se esmera em

encontrar no seu caso tudo o que ele pode ter de persuasivo, para alcançar a vitória, como

apontou Aristóteles ser importante. Sabe perfeitamente encontrar no próprio caso o que

conduzirá à vitória na obtenção dos objetivos.

Cícero, assim como Quintiliano, foi o orador romano que teorizou sobre a sua prática,

como visto anteriormente. Os dois são considerados grandes advogados que viveram e

atuaram na Antiga Roma. Eles praticavam a arte retórica e também escreveram teorias sobre

elas.

Alguns termos da retórica grega foram traduzidos, então, pela retórica latina. O termo

epidíctico, por exemplo, foi denominado em latim de demonstrativum. Retor, em grepo

rhetor, foi traduzido em latim por orator “aquele que faz discursos” e por rhetor, “o professor

de retórica”.

O adjetivo demonstrativus, -a, -um é aquele que serve para demonstrar, indicar. O

substantivo oratur, -oris, em uma primeira acepção, seria a de um embaixador que tem a

incumbência de uma mensagem verbal; em segunda acepção, seria o “orador”. E o

substantivo masculino rhetor, -oris seria o retórico.

Para Cícero, a eloquência é um dom natural. Não é pela técnica que o homem será um

bom orador. Para ele, esses ensinamentos não são eficazes sozinhos. Além do mais, são

necessários, além do dom, alguns conhecimentos do orador para que ele tenha uma boa

eloquência, assim como aponta Reboul sobre o entendimento de Cícero a respeito da

eloquência (1998, p. 72):

(...) se ela é autêntica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruído em todas as áreas essenciais: direito, filosofia, história, ciências. As receitas retóricas, os ‘truques’ para se impor são ineficazes.

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Sobre o estilo, o orador tem a mesma opinião. Não pode ser construído, segundo ele,

de forma artificial. É uma qualidade natural. Reboul (1998, p. 72) assim discorre:

O estilo também nada tem de artificial; longe de ser um ornamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do fundo. A escolha das palavras (electio), a composição das frases, as figuras, o ritmo – principalmente o ritmo – são expressões naturais do que se tem para dizer, e tudo que soa artificial deve ser riscado.

O ensino da retórica, então, seria no sentido de instruir o homem profundamente,

desde a infância, formando-o de uma cultura geral. Essa formação é que permitirá ao homem

atuar de forma justa e de modo apropriado ao caso.

Quintiliano retomará as ideias de Cícero. Assim como este, considera que tudo o que é

inútil deva ser descartado e dá à retórica um caráter funcional. Ela também, para o advogado,

é o mesmo que cultura. O indivíduo deveria ser assim educado desde a primeira infância.

A arte oratória, portanto, em vez de criar ‘desvio’ permite atingir a expressão mais justa, e nosso pretenso ‘grau zero’ do discurso ‘normal’ para Quintiliano não passaria de inaptidão, desjeito, incultura, ‘garrulice improvisada’. (REBOUL, 1988, p. 72 ou 73).31

Quintiliano, nas considerações de Reboul (1998), harmoniza a retórica e a ética, as

quais o grego Aristóteles tinha separado. E entende que a retórica deve se prestar ao justo. Ele

a entende como “a arte do bem dizer”, ou de dizer com virtude.

Este advogado e tratadista romano tem a cultura como um grande valor e a entende

como reconciliadora da retórica e da moral. Assim aponta Reboul (1998, p. 74):

Concordando com Isócrates, ele escreve que, sendo a linguagem e a razão características do homem, a retórica que as cultiva constitui a virtude humana por excelência. Falar bem é ser homem de bem; inversamente, só o homem de bem, honesto e culto, fala bem.

31. Grau zero para Dubois et alli, seria “uma norma” (p.57) ou, em uma definição como mesmo diz, intuitiva: “aquele discurso ‘ingênuo’ e sem artifícios, desnudado de subentendidos, para o qual ‘um gato é um gato’” (p. 53).

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Assim, enquanto as condições políticas propiciavam o uso da retórica, ela se destacou,

e bastante, no mundo romano. No período em que o poder era angariado através de debates

públicos, pelo uso da palavra, ela floresceu. O período que vai do século II a.C., o chamado

século dos Cipiões, até o fim do primeiro século de nossa era, “pode ser considerado como a

época por excelência da retórica no mundo latino, presente na vida pública e alicerçando a

produção oratória” (GUEDES, 2005, p. 24).

Contudo, com o fim da República, a retórica irá arrefecer. Referindo-se ao texto

Diálogo dos oradores, de Tácito, quando há uma tentativa de explicar porque houve uma

decadência da eloquência depois de Cícero, Reboul (1998) explica o porquê do surgimento da

arte oratória, colocando-se na voz de um dos oradores do diálogo:

A arte oratória desenvolvera-se na sociedade em que era indispensável, qual seja, a democracia. Quando todas as decisões eram submetidas a debates públicos, o futuro orador formava-se naturalmente no fórum, ouvindo as discussões e depois tomando parte delas; descobria assim as técnicas dos diversos oradores e, principalmente, as reações do público. (REBOUL, 1988, p. 75).

E arremata, com passagem no texto de Tácito, explicando porque na época deste já

não havia tanto essa necessidade e a retórica aprendida era artificial:

‘Hoje’ (na época dos imperadores), quando esses debates não são mais correntes, os jovens aprendem eloqüência na escola, ou seja, de modo artificial, sem outro público senão camaradas tão pueris quanto eles, sem outros temas de debate senão assuntos irreais, absurdos. (REBOUL, 1998, p. 75).

E sobre a importância da retórica, mesmo depois de sua época áurea, ele acrescenta:

Se o ensino da retórica perdurou durante o Império Romano, se sobreviveu em Bizâncio, tanto sob o islamismo quanto na Europa medieval, com métodos semelhantes, significa que não era tão inútil. É verdade que a retórica perdeu os grandes debates políticos, que só recuperará nas democracias modernas, mas ganhou outros gêneros: a epístola, a descrição, o testamento, o discurso de embaixada, a consolação, o conselho ao príncipe, etc. (REBOUL, 1998, p. 76).

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3.4.2.1 A retórica de Cícero

Neste item do trabalho, o objetivo não é o estudo minucioso da retórica teorizada por

Cícero, pois a intenção não é esgotar esse assunto na análise do corpus. Apenas são realizados

aqui alguns apontamentos sobre as três obras a seguir.

Brutus, De oratore e Orator, assim como já destacado no item referente à produção de

Cícero, são três obras que o orador e estudioso escreveu sobre a eloquência e a retórica.

Nesses tratados, ele apresenta suas ideias a respeito do orador ideal. “(...) el orador perfecto es

el que, además de dominar la técnica terórica, goza de cualidades innatas para ello e de uma

amplia cultura que abarque el conocimiento de las más diversas disciplinas.” (Nuñez, 2000, p.

7).32

Cícero, pela fala de Crasso, um dos participantes do diálogo, no excerto abaixo,

assinala a importância de o bom orador ter essas qualidades inatas (De Oratore I, XXV):

“Sic igitur" inquit "sentio," Crassus "naturam primum atque ingenium

ad dicendum vim adferre maximam”

(“Assim, portanto,” diz Crasso, “É a natureza e a aptidão, em

primeiro lugar, que atribuem a propriedade máxima para falar.”)

Na época da produção de Brutus e de Orator, Cícero passava um momento angustiante

em sua vida. A participação do orador na vida política havia diminuído bastante devido à luta

pelo poder que se travava na época, assim como sofria com a morte da filha Tulia. Esse

cenário favoreceu o surgimento de obras de maior reflexão, inclusive, a produção de obras

teóricas.

No De Oratore (55 a.C.), Cícero aponta o ideal do bom orador e de todos os atributos

que alguém deva ter para assim ser caracterizado,

32. “O orador perfeito é o que, além de dominar a técnica retórica, goza de qualidades inatas para isso e de uma ampla cultura que englobe o conhecimento das mais diversas disciplinas”. (Tradução Nossa). (Comentários de Nuñez em Bruto: Historia de la elocuencia romana)

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Est enim et scientia comprehendenda rerum plurimarum, sine qua

verborum volubilitas inanis atque inridenda est, et ipsa oratio

conformanda non solum electione, sed etiam constructione verborum,

et omnes animorum motus, quos hominum generi rerum natura tribuit,

penitus pernoscendi, quod omnis vis ratioque dicendi in eorum, qui

audiunt, mentibus aut sedandis aut excitandis expromenda est (...). (I,

V, 17)

(Na verdade, deve se compreender a ciência dos mais variados

assuntos, sem o que o fluir das palavras fica vago e ridículo, e o

próprio discurso dever ser conformado não só pela escolha, mas

também pela disposição das palavras, e todos os movimentos dos

espíritos, os quais a natureza atribuiu a todo gênero de homem, devem

ser inteiramente conhecidos, porque toda força e razão de dizer deve

se manifestar no espírito ou dos que ouvem calmos ou dos excitados)

Cícero coloca, assim, um ideal de orador, em um homem com muita instrução. Além

disso, um bom orador deve ter o tal magnum ingenium, acrescenta Vasconcelos (2000, p.

179): “O magnum ingenium é condição indispensável para a formação do summus orator:”.

A oratória em Cícero vai, então, além de técnicas de retórica. É uma qualidade que irá

distinguir um homem que tem o domínio sobre ela de outros, tornando-o superior pelo dom

singular que detém. Logo, o ensino sistematizado das regras de retórica não é o único fator

decisivo para a formação de um bom orador. O bom orador deve ter essa capacidade nata,

aliada à experiência e à prática dessa capacidade no fórum. Daí Cícero criticar os manuais de

retórica, usados pelos retores, com os quais os aprendizes instruíam-se somente com técnica.

No De Oratore, também é enfatizada a importância da educação filosófica para um

bom orador, ampliando, assim, como deva ser o método de formação oratória em Roma:

“Valorizando o estudo da filosofia, Cícero pretende ampliar não só o ensino grego dos retores,

mas também a própria formação oratória romana tradicional” (VASCONCELOS, 2000,

p. 186). E continua:

Para Cícero a doutrina oratória ideal seria então esta em que estivesse presente a antiga unidade do saber que os antepassados conheceram; uma doutrina capaz de fazer o orador eloqüente e filósofo, disserto e douto, homem público e erudito; uma doutrina que não se apartasse da

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prática do dizer, ao mesmo tempo em que proporcionasse uma ampla cultura. Em duas palavras: uita e sapientia, esta a doutrina romana digna de formar o sumo orador. (2000, p. 187).

Sobre essa formação oratória própria da tradição romana e o método de ensino de

oratória preconizado por Cícero, no De Oratore Liber I, que aponta quais são os homens

apropriados a esse ensino, pode-se conferir esse fato:

dabis hanc veniam, mi frater, ut opinor, ut eorum, quibus summa

dicendi laus a nostris hominibus concessa est, auctoritatem Graecis

anteponham (I, 23)

(... meu irmão, dar-me-ás esta autorização, de acordo com meu

julgamento, que eu anteponha aos gregos a autoridade daqueles aos

quais o supremo louvor de discursar foi concedido pelos nossos

homens.)

O De Oratore não é apenas um manual e, sim, faz uma proposta de como deva ser a

formação para que se tenha um bom orador. Assim, aponta os conhecimentos e os

procedimentos que este deva tomar para isso.

Esse tratado é formado em estrutura de diálogo que ocorre na casa de Crasso, um

antigo mestre de Cícero, e outros convidados como, por exemplo, Antônio, também antigo

mestre do orador. Nesse diálogo, há um debate entre eles sobre eloquência e oratória.

Também se organiza como epístola, já que Cícero é o outro personagem, que, em cartas para

o irmão, expõe as suas próprias convicções sobre o tema (FREITAS, 2014).

No tratado retórico Brutus ele faz um apontamento da história e do desenvolvimento

da prosa e da eloquência em Roma, desde suas origens, apresentando vários oradores que

existiram ao longo do tempo. Do mesmo modo, aponta quem tem condições melhores ou

piores de adaptar-se às teorias sobre retórica apresentadas por ele em Orator e De oratore.

Citroni et alli, ponderando sobre Brutus, dizem que o mesmo foi escrito durante o

período de ditadura de César e que, nele, o orador volta a falar sobre a oratória – o que tinha

deixado de lado por um tempo. Além disso, fala da questão de a eloquência de Cícero ter sido

criticada pelos aticistas. Assim confirma-se nas palavras abaixo:

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No Brutus, escrito em 46, durante a ditadura de César, Cícero retoma a reflexão sobre a oratória, que suspendera alguns anos antes. Os princípios fundamentais de sua eloquência tinham vindo a ser criticado por um grupo de oradores mais jovens, os chamados aticistas. (2006, p. 287).

Em Brutus, Cícero apresenta, igualmente, uma estética da eloquência e da busca da

beleza como prazer estético e elemento de persuasão e, entre outros aspectos de que trata, faz

algumas considerações sobre política.

Tenta mostrar, segundo Nuñez, que a eloquência em Roma, apesar de suas origens

incultas e rudes, foi crescendo ao longo do tempo até chegar quase à perfeição.

Nessa obra, a eloquência de Roma é narrada por Cícero num diálogo entre ele, Ático e

Bruto. Nele, o orador conclui que “La elocuencia, propriamente entendida como la capacidade

humana de hablar bien y persuadir, existió siempre; lo que tardó em conseguirse fu ela

elocuencia artística” (NUÑEZ, 2000, p. 13).33

Sobre Brutus, Seabra F. (s/d, p. 4) escreve:

O tratado Brutus, em forma de diálogo entre Cícero e seus dois amigos Ático e Bruto, apresenta um panorama da arte oratória, resumidamente, entre os gregos, e em seguida, exposta mais extensamente, entre os romanos. A eloquência em Roma é apresentada desde as origens, com Catão o Antigo e seu tempo. Bruto, um dos dialogantes, apoia a tese defendida em De oratore: a arte da palavra é a mais difícil de todas; exige dom, qualidades naturais de corpo e mente, prática, educação literária, filosófica, jurídica, conhecimentos gerais. Tal concepção do orador ideal perpassa pelas análises feitas sobre oradores, desde os antigos da época de Catão.

Ainda nesse tratado, é a Isócrates que Cícero confere a aquisição do período rítmico e

a Péricles e a Demóstenes que identifica como modelos de um bom orador. Também, nesse

tratado, o primeiro orador a ser destacado por Cícero, com muita admiração, foi Catão.

Assim como nos outros dois tratados mencionados, nesse, Cícero apresenta o modelo

que deve ter também um político, que precisa ser um bom orador, isto é, precisa ser bom em

persuadir por meio da palavra. Assim coloca Nuñez, (2000, p.8) “ (...) no había um buen

33. “A eloquência, propriamente entendida como a capacidade humana de falar bem e persuadir, existiu sempre; o que tardou em conseguir-se foi a eloquência artística.” (Tradução nossa). (Comentários de Nuñez em Bruto: Historia de la elocuencia romana)

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político que no fuera um buen orador y vice-versa”34. O autor diz que ele também defende

que são esses políticos-oradores os responsáveis por ensinar aos jovens, através da prática,

tudo em relação à matéria de retórica.

Uma doutrina para a formação de um orador ideal deveria, para Cícero, levar em conta

a tradição oratória, para, assim, formar um orador com eloquência, com conhecimento amplo,

erudito, voltado à vida pública. Essa doutrina teria de levar em consideração a prática da ars

dicendi e uma formação cultural para o indivíduo.

Assim, o bom orador deveria também aprender na prática, além de ter o dom e de

aprender as técnicas, pois, além do mais, para os romanos, antes mesmo da teorização da

retórica, já existia tal exercício. Então, ele deveria servir de experiência e de aprendizado para

a formação de um orador ideal nessa disciplina. Em De Oratore, Cícero coloca na fala de

Crasso, dizendo que, para ele, a:

disciplina fuerit forum, magister usus et leges et instituta Populi

Romani mosque maiorum. (III, 74)

(o estudo foi o fórum; o professor a prática e as leis, as instituições do

povo romano e as tradições dos antepassados.)

Em Brutus, escrito no início da ditadura de César, Cícero é o mestre e Brutus é o

discípulo, ao qual pretende fazer seu sucessor. Isso porque, para o tratadista, o político-orador

que defendia era o único que poderia devolver à República a liberdade. E Brutus, segundo ele,

tinha talento para isso.

Núñez assinala que, no Orator (46 a.C.), Cícero trata das condições que um orador

ideal deve possuir. Contudo, fala também dos diversificados tipos de oratória, da harmonia da

frase, das partes que tem um discurso e do ritmo da prosa. Assim o define Seabra F.

(s/d):“Orator é uma espécie de complemento do De oratore. Em Orator, Cícero procura

apresentar o retrato do orador ideal. Daí a indicação das três tarefas do orador”. As tarefas

seriam “o dizer”, “em que ordem dizer” e “de que modo dizer”.

34. “não havia um bom político que não fora um bom orador e vice-versa.” (Tradução nossa). (Comentários de Nuñez em Bruto: Historia de la elocuencia romana)

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Em Orator Cícero também expõe que, além do talento, o bom orador precisa de

outros conhecimentos:

Esse igitur perfecte eloquentis puto non eam tantum facultatem

habere quae sit eius propria, fuse lateque dicendi, sed etiam vicinam

eius ac finitimam dialecticorum scientiam adsumere (XXXII, 113)

(Então, eu penso que ela, perfeitamente, não tem de ser tanto o talento

do bom orador, que é próprio dele, de falar profusa e amplamente,

mas também, por outro lado, deve adicionar a ciência da dialética,

vizinha e semelhante dele.)

O Orator não foi escrito com a estrutura de diálogo, como De Oratore e Brutus. Nele,

Cícero analisa, entre outras coisas, os três gêneros do discurso definidos por Aristóteles: o

judiciário, o deliberativo e o demonstrativo – epidíctico. Também apresenta a divisão da

retórica em cinco partes: a inventio, a dipositio, a memoria (recordar o que se preparou

anteriormente); a elocutio e a actio. Ainda, segundo Seabra F. (s/d, p.6), os meios de

convencimento de um auditório, como ele mesmo apresenta:

1) instruir o auditório, provar-lhe o que é apresentado (docere, probare) – é o apelo à razão, pela argumentação e demonstração; 2) insinuar-se nas boas graças, agradar, encantar (conciliare, placere, delectare) – é o apelo ao sentimento e à simpatia; 3) comover, suscitando no auditório a piedade ou o ódio (mouere, flectere) é o apelo à paixão, ao patético.

3.4.3 Entendendo a retórica

Para a realização da análise de um discurso, na procura de características de um

determinado gênero e das concepções ideológicas explícitas ou implícitas e de como o orador

responsável pelo discurso faz uso dessas características, é forçosamente necessário o

entendimento, entre outros dados, de elementos da retórica.

Julga-se ser a retórica, a partir de Aristóteles, a arte do bem se expressar, com estilo e

argumentos, tendo a intenção de expor ideias de forma lógica para outrem, com a finalidade

de influenciá-lo e persuadi-lo de algo. Precisa comover e convencer, às vezes, para que possa

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conduzir o raciocínio do ouvinte. Reboul a apresenta como a arte de persuadir pelo discurso e

“Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou

por uma seqüência de frases que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido.”

(2000, p. 14).

Segundo Reboul (1998), a retórica é definida de forma distinta por alguns estudiosos

mais modernos. Por exemplo, citando Perelman, diz Reboul que esse estudioso entende a

retórica como a arte de argumentar, já, para outros, conforme o autor, ela é entendida como o

estudo do estilo, o estudo das figuras. Fazendo uma reflexão, ele nos apresenta a articulação

dessas duas definições - argumentos e estilo – em uma mesma função. Essa articulação seria a

observada pelas assertivas e as conjecturas da retórica clássica, que vem desde Aritóteles e

que, para Reboul, é usada para definir retórica. Ele próprio assim a define: “retórica é arte de

persuadir pelo discurso” (REBOUL, 1998, p. XIV).

O que seria, então, para o autor, um discurso persuasivo? O discurso propriamente

dito, para ele, é toda e qualquer produção verbal. Pode ser apenas uma frase ou uma sequência

de frases, basta que tenham unidadede sentido. Segundo Reboul, persuadir é “levar alguém a

crer em alguma coisa” e a retórica não se aplica a qualquer tipo de discurso, “somente àqueles

que visam a persuadir” (p. XIV). Ela “diz respeito ao discurso persuasivo, ou ao que um

discurso tem de persuasivo” (p. XV)

A respeito de discurso e persuasão tem-se a seguinte reflexão:

Generalizando um pouco a questão, é possível afirmar que o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão; talvez a arte, algumas manifestações literárias, jogos verbais, um ou outro texto marcado pelo elemento lúdico. (CITELLI, 2005, p.6).

Reboul diz que persuadir, para a retórica, não é levar alguém a simplesmente fazer

algo, mas levar a acreditar nesse algo. Mesmo que se consiga persuadir alguém a realizar

alguma coisa, só se tratará de persuasão retórica se, além de fazer, essa pessoa acreditar no

que faz. Diz que um homem pode ser persuadido por uma ameaça, por uma promessa, por ser

beneficiado com dinheiro, por exemplo. Contudo, se ele não acredita no que faz, essa não é

uma persuasão retórica.

O autor afirma que apenas alguns tipos de discurso tentam persuadir como, por

exemplo, o sermão, o discurso político, o publicitário. Outros não têm essa finalidade como o

poema lírico e a comédia.

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A argumentação persuasiva, conforme Reboul, serve, então, para levar a crer. Ele

aponta ter a retórica algumas funções. A primeira dessas funções seria a persuasiva, que

advém de sua própria definição de “arte de persuadir”.

Os meios de persuasão, nesse contexto, são relevantes. Para que um discurso seja

persuasivo, podem ser utilizados meios de ordem mais racional e meios de ordem mais

afetiva.

Já para Cícero, segundo Reboul, o discurso persuasivo é aquele que comporta o

docere, o delectare e o movere “ensinar, deleitar e comover”. Diz ele que Cícero assim os

distinguiu:

Docere (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do discurso./Delectare (agradar) é seu lado agradável, humorístico, etc./Movere (comover) é aquilo com que ele abala, impressiona o auditório. (REBOUL, 1998, p. XVIII).

O discurso persuasivo teria também dois aspectos: o argumentativo e o oratório.

Todavia sendo difícil separar, às vezes, um aspecto do outro. Alguns recursos considerados

como oratórios, como as figuras de estilo, podem, ao mesmo tempo agradar, comover, mas

também servirem de argumento, pois fazem com que o argumento fique mais contundente.

Por outro lado, existem outros recursos considerados apenas oratórios, como os gestos, as

expressões e a colocação da voz pelo orador.

Ao observar entendimentos de estudiosos gregos, Reboul diz que Aristóteles apresenta

a retórica como arte de se encontrar o que tem cada caso ou que meios de persuasão cada caso

tem. Já Platão, conforme o mesmo estudioso, entendia a retórica como a “que se auto define

como arte onipotente, não é arte de modo algum, pois é cega no que faz e no que quer. Por

ignorar o verdadeiro, não é nem mesmo verdadeiro poder” (REBOUL, 2000, p.26).

Lausberg define a retórica

por ars bene dicendi “a arte do bem dizer”, designando por bene a virtus específica do discurso partidário, constituída pelo sucesso da persuasão. Esta virtus geral do discurso partidário realiza-se, de um modo específico, em cada fase da elaboração e em cada parte do discurso. A virtus geral discursiva pode, neste caso, ser identificada como aptum, que visa ao sucesso da persuasão. (1982, p. 86).

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Sobre ser a retórica um sistema, o autor pondera:

A retorica é um sistema mais ou menos bem elaborado de formas, de pensamento e de linguagem, as quais podem servir à finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o efeito que pretende com determinada terminologia, pelo retor escolar. (LAUSBERG, 1982, p.76).

Santos e Mendes continuam a reflexão sobre retórica, entendendo-a como uma arte de

bem falar e expressar-se, através de argumentos e estilo, tendo como objetivo demonstrar as

ideias do orador, claramente, para o auditório, com o intuito de persuadi-lo na formação de

um raciocínio construído logicamente. (SANTOS e MENDES, 2014).

Desta feita, passa-se agora a comentar mais especificamente algumas características da

retórica de acordo com o filósofo Aristóteles que, como já mencionado, serviu de modelo para

muitos retóricos posteriores, inclusive para Cícero.

3.4.3.1 A retórica de Aristóteles: um instrumento linguístico para persuasão

O homem, talvez pela inclinação própria da natureza humana e para sua inerente

defesa enquanto ser humano único, vive em constante embate com o outro e, muitas vezes,

consigo mesmo. Nessa luta, lança mão de artifícios, no seu dia a dia, de recursos para essa

finalidade. Um desses recursos é o linguístico, que lhe permite, mesmo não tendo o domínio

de técnicas específicas, alcançar ou, ao menos tentar atingir, os objetivos desejados. Nesse

sentido, os recursos retóricos entrariam em auxílio do homem nessa perspectiva.

De acordo com Reboul, não é muito fácil definir retórica, já que, nos últimos tempos,

ela ganhou novos moldes, adquirindo sentidos variados. No senso comum, por exemplo,

“retórica é sinônimo de coisa empolada, artificial, enfática, declamatória, falsa.” (1998, p.

XIII).

Entendendo-a como a arte que tenta persuadir pelo discurso, Reboul observa ser a

retórica uma arte que não pode ser aplicada a qualquer discurso, somente àquele que tem a

finalidade intrínseca de persuadir, como, por exemplo, os discursos advocatícios, políticos,

religiosos, publicitários etc35. Entre eles, pode-se contar, igualmente, o discurso laudatório, ou

35. Pode-se refletir sobre essa característica dos discursos em geral. Se o assunto for tomado de forma genérica, parece que todos os discursos trazem em si uma peculiaridade persuasiva, em maior ou menor grau. Contudo, existem aqueles que têm o objetivo intrínseco de persuadir o ouvinte ou ouvintes sobre o que é dito. É sobre estes, então, que a retórica como arte, sistematizada e organizada, deve incidir.

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seja, que pretende tecer elogios a alguém ou algo, na tentativa de persuadir o público de que

tudo falado a respeito é verdade, como, por exemplo, o discurso Pro Marcello, de Cícero,

dirigido a Caio César.

Para Artistóteles (2007), tanto a retórica quanto a dialética são usadas pelos homens, já

que fazem referência a temas de âmbito geral que interessam à compreensão humana, no

sentido de auxiliarem em sua defesa e, ao mesmo passo, na acusação a outrem. Trata-se, para

o filósofo, de uma prática utilizada por indivíduos comuns, de forma aleatória. Sendo assim,

alguns podem, desse modo, utilizá-la espontaneamente; outros, contudo, de forma

sistematizada, ou seja, o homem, de um modo geral, aprende com as práticas da vida a utilizar

mecanismos da retórica e pode fazer uso dos mesmos naturalmente. Todavia, ele pode,

igualmente, lapidar esse uso, sistematizando-o.

A retórica, para Aristóteles, teria, então, uma utilidade. Seria capaz de fornecer algum

tipo de serviço. Nesse caso, ser útil na constante disputatio implementada pelos homens na

sua vida, nesse combate e na tentativa de vitória, assim, servindo ela ao discurso persuasivo,

para persuadir e convencer alguém, de alguma coisa, levando-o a crer nessa coisa ou a fazer

alguma coisa. Desse modo, “Ela diz respeito ao discurso persuasivo, ou ao que um discurso

tem de persuasivo” (REBOUL, 1998, p. XV.).

Em vários âmbitos da vida, os homens são levados a situações de contrariedades e de

polêmicas, já que os homens não são iguais e não pensam igualmente. Saber usar o discurso a

favor ou contra algo torna-se, desse modo, necessidade imperativa. Como diz Reboul: “Se a

palavra é característica do homem, é mais desonroso ser vencido pela palavra que pela força

física” (1998, p.25). A arte e as técnicas da retórica entrariam aí em ação. Por esse

pensamento, discorre o autor (1998):

No campo do direito, da política, da vida internacional, vivemos sempre uma situação polêmica, em que as armas mais eficazes são as da palavra, visto que só ela – e não a força física – define o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o nobre e o desprezível. A retórica, arte ou técnica da palavra, é, portanto, indispensável. E aí está o que a legitima. (REBOUL, 1998, p. 25)

Um argumento utilizado para provar que a retórica é útil seria o de que as coisas

verdadeiras e justas o são por natureza e que, se o contrário sobre a natureza é provado, é

porque o adversário utilizou melhor a sua argumentação. Nesse caso, os litigantes, tentando

provar tal assertiva, não souberam sobrepujar a retórica de seus concorrentes. Em tal fato, a

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arte dos oponentes se sobrepõe à natureza. Logo, é preciso que os litigantes lapidem essa arte,

para que seja útil ao propósito de devolver à natureza os direitos que lhe são inerentes.

Sobre a utilidade da retórica, Aristóteles comenta:

A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e o justo mais força natural que os seus contrários, se os julgamentos não são proferidos como conviria, é necessariamente por sua única culpa que os litigantes (cuja causa é justa) são derrotados. Sua ignorância merece, portanto, censura. (2007, p. 22).

A retórica é, desse modo, celebrada pelo filósofo, por sua utilidade. Entende-a, assim,

não como um poder para dominar, mas como um poder que o homem pode usar para sua

defesa, tornando-a, dessa forma, legítima, mesmo que a use desonestamente. E, argumentando

sobre esse mau uso da retórica, diz poder ser ela corrompida, justamente por ser um bem,

mesmo que relativo, pois “é preferível saber utilizar a força do discurso”. (REBOUL, 1998, p.

23).

Sobre a definição dada a ela por Aristóteles, Reboul acrescenta: “Ela não se reduz, diz

ele, ao poder de persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no essencial, é arte de

achar os meios de persuasão que cada caso comporta.” (1998, p.24).

Para que a retórica sirva, então, ao propósito do homem, com maior eficácia, ela pode

ser sistematizada. Assim, a retórica pode ser tratada ordenadamente. Pode-se elaborar,

metodicamente, “os modos argumentativos de persuasão”. Vale ressaltar que a chamada

persuasão argumentativa é, para Aristóteles, um tipo de demonstração, sendo que a

demonstração própria da retórica são os entimemas, que são meios de persuasão técnicos,

construídos pelo orador. Eles tratam de como a retórica demonstra: “são a substância da

persuasão retórica” (ARISTÓTELES, 2007, p. 19). E a argumentação persuasiva, para Reboul

(1998), nos moldes apontados por Aristóteles, sempre objetiva, ou seja, tem a finalidade de

levar a crer.

Para esse autor, existe, então, uma retórica espontânea e uma que pode ser ensinada. O

homem, assim, pode ter espontaneamente a aptidão “para persuadir pela palavra”, mas

também pode ser ensinado sobre as técnicas para melhor se expressar e comunicar. Ele pode,

por exemplo, aprender a elaborar bons entimemas.

Os entimemas – meios técnicos de persuasão - estão integrados no raciocínio

silogístico. São os chamados silogismos retóricos. Eles são meios de persuasão racional (pois

existem os mais afetivos, de acordo com Reboul). O silogismo, segundo Reboul (1998, p,

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XVII), é, normalmente, “voltado para um auditório especializado, como o tribunal” e é de

fundo dedutivo. Enquanto outro tipo de argumentação, que é o exemplo, é voltado para um

público mais geral, sendo de cunho indutivo.

Usar o silogismo é levar a raciocinar de forma lógica, compreendendo o costume do

homem e suas virtudes e entendendo emoções e paixões e como elas são geradas.

A palavra silogismo significa, em grego, “ligação” ou “conexão de ideias”. Nessa

ligação, através de duas proposições – as premissas - chega-se a uma terceira, que seria a

conclusão. É, assim, o silogismo, um argumento dedutivo, que parte do geral para argumentos

particulares.

Para o grego, estudar a retórica refere-se a estudar os meios existentes de persuasão,

pois sendo esta um tipo de demonstração, saber como usá-la facilita a aceitação da

proposição. Isso porque, quando algo é demonstrado, fica mais fácil de conseguir a adesão

daqueles sobre os quais incidimos e destinamos o nosso discurso. Assim o filósofo grego diz:

“somos mais persuadidos quando consideramos a demonstração de uma determinada coisa.”

(ARISTÓTELES, 2007, p. 21). O entimema, como dito – esse silogismo retórico - é uma

demonstração.

Deve-se observar, então, de que modo teria demonstrado e o que teria demonstrado

Cícero no discurso Pro Marcello, para que o público ouvinte aceitasse e fosse persuadido.

Ele, de fato, como se pode observar nas passagens seguintes, usou o recurso da demonstração

para conseguir os seus objetivos. O orador encontrou no caso em questão os meios próprios

de persuasão que ele fornecia, assim como deve fazer um bom orador. O excerto Quos

amisimus cives, eos Martis vis perculit, non ira victoriae, “Os cidadãos que perdemos,

abateu-os o poder de Marte, não a cólera da vitória”, retirado do capítulo VI, parágrafo 16,

pode ser um exemplo dessa demonstração, em que Cícero exibe um fato ocorrido após a

vitória de César: o caso de o ditador não ter sido tão veemente na punição àqueles que foram

seus adversários. Realmente, isso ocorreu, e foi utilizado como recurso pelo orador, para

apresentar o que o próprio caso continha de positivo, procurando, com isso, lograr êxito, na

tentativa de levar os ouvintes a talvez perceber a figura de César, como uma figura que está

acima da capacidade de muitos homens, isto é, que vai além do que muito homem poderia ir –

nesse caso, perdoar os seus inimigos. Para isso, diz que as mortes ocorridas entre os cidadãos

foram apenas aquelas impelidas pela força da guerra, ou seja, pelo poder do deus Marte. E não

pelo poder do vitorioso.

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Assim, através dessa demonstração retórica, a proposição de Cícero poderia ser aceita:

se César é capaz de realizar o ato tão glorioso de perdoar e preservar a vida dos inimigos, é

capaz de outras atitudes ainda mais gloriosas, somente possíveis por meio de atos heroicos.

Ainda segundo o pensador grego, todos usam vez ou outra tanto a retórica quanto a

dialética. Uns em maior grau, outros, em menor. As situações vivenciadas por eles os fazem

utilizar os seus recursos, quando questionam argumentos de outrem ou quando sustentam os

seus próprios. Tais recursos podem servir ao litigante para que demonstre que algo apontado

por ele é ou não de uma certa forma e se, de fato, ocorreu ou não. Para que isso aconteça com

maior eficácia, é necessário que se busque os meios de persuasão em cada caso.

Desse modo, assim como a retórica, a dialética, é útil, da mesma forma que é

universal, ou seja, não se liga a assuntos especificamente definidos. Qualquer assunto pode

ser tratado por ela, dependo do caso em questão. A sua função é descobrir através de que

meios pode-se chegar a um sucesso em determinado caso. Aquele que faz uso da retórica,

segundo entendimento de Aristóteles, precisa saber descobrir, então, os meios de persuasão

aparentes ou reais disponíveis no caso, que conduzirão ao aceite do que por ele é exposto,

sustentado ou contestado. Ele precisa descobrir o que há de persuasivo no caso. A retórica

seria, assim, nas palavras de Aristóteles (2007, p), “a faculdade de observar os meios de

persuasão disponíveis em qualquer caso dado”. O indivíduo que a utiliza deve, dessa forma,

deter o saber de encontrar no seu caso esses meios de persuasão, isso valendo em “quase

todos os assuntos que se nos apresentam” (ARISTÓTELES, 2007, p. 23).

Além disso, existem, segundo o pensador, três espécies de persuasão. A primeira

espécie é quando a persuasão é alcançada devido ao caráter pessoal do orador. Nesse caso, o

próprio orador, através do seu caráter, leva o público a acreditar no seu discurso. Pelo o que o

orador diz: “seu caráter pode ser quase chamado de o mais eficiente meio de persuasão que

ele possui” (ARISTÓTELES, 2007, p. 24). A segunda espécie de persuasão pode ocorrer

quando, por estarem em determinado estado psicológico, os ouvintes são persuadidos devido

às próprias emoções. E a terceira espécie vai ser fornecida pelo próprio discurso, quando,

através dele, uma verdade ou verdade aparente é provada.36 E isso se consegue, através de

argumentos persuasivos encontrados no próprio caso. É nisso que entra a dialética.

O discurso, conforme Aristóteles (2007) é assim formado pelo orador, pelo assunto e

pelo ouvinte. É ao ouvinte que o discurso é dirigido e é ele o responsável por determinar o fim

36. Esses três tipos de persuasão serão detalhados mais à frente.

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e o objeto do discurso. Ele, igualmente, poderá ser um juiz, pois julgará ou tomará decisões,

ou ainda pode ser somente um observador.

Foi, ainda, segundo Reboul (1988), o filósofo grego que conferiu uma sistematização à

retórica, que será apreciada por seus sucessores, os quais não a modificarão.

Segundo o autor, Aristóteles decompõe e classifica a retórica em quatro partes, por

cujas realizações terá de passar aquele que produz um discurso. São elas a inventio

“invenção”, a dispositio “disposição”, a elocutio “elocução” e a actio “ação”.

A inventio é o momento em que o orador procura os argumentos e as outras formas de

persuasão que o seu caso ou o tema do discurso comporta.

A dispositivo é o momento em que o orador fará a organização interna do discurso,

ordenando os argumentos. É o plano de organização.

A elocutio é o momento de construção escrita do discurso, no qual são empregados

todos os recursos encontrados pelo orador, os quais conferirão o estilo, como o uso das

figuras de estilo, por exemplo.

A actio é o momento em que o discurso é proferido efetivamente. Nessa parte,

auxiliam o tom da voz, a postura do orador com os gestos, a mímica, as expressões etc.

Reboul acrescenta que muitas vezes, na realidade, não é, exatamente, nessa ordem que

um orador formula o discurso, mas que são necessárias todoas essas tarefas, independente da

ordem. Assim verifica-se em suas palavras: “Mas pouco importa a ordem cronológica. As

quatro partes na realidade são as quatro ‘tarefas’ (erga) que devem ser cumpridas pelo orador.

Se este deixar de cumprir alguma delas, seu discurso será vazio, ou desordenado, ou mal

escrito, ou inaudível.” (1998, p. 44).

Cícero, em Pro Marcello, encontra os meios de persuadir no seu próprio discurso, na

forma como o elaborou e nas escolhas que fez para a sua realização. Foi através de colocações

e escolhas cuidadosas que o orador construiu um discurso com intenções, certamente, bem

definidas e, partir disso, elaborou os argumentos na tentativa de persuadir os interlocutores.

Ele também teve no seu auditório um elemento para construção do discurso persuasivo, pois o

mesmo, formado pelo Senado e pelo próprio César, apresentavam a disposição e ânimo para

receber o que estava sendo proferido como realidade.

3.4.4 Sobre a dialética – um meio utilizado pela retórica

Entre tantas as práticas de lutas e competições, os gregos antigos também praticavam

uma disputa esportiva verbal. Essa disputa se define pelo enfrentamento de dois adversários,

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em que um sustenta uma tese e outro, através de todos os argumentos encontrados, tenta

derrubá-la. Essa disputatio, como chamam os latinos, acontece perante um público, saindo

perdedor aquele que for colocado em silêncio por seu adversário, o qual o cerca em suas

contradições e tornar-se o vencedor da disputa. Tal disputatio verbal é a chamada dialética.

Fazendo elucidações sobre a dialética, Desborde escreve:

(...)Dialectique et rhétorique sont au départ deux pratiques, deux formes de la discussion contradictoire. On a vu que la situation rhéorique de base est celle de la contradiction judiciaire, avec ses deux discours antithétiques à l’appui de deux thèses entre lesquelles les juges doivent trancher. Dans la joute dialectique, l’un des deux interlocuteurs défend une these contre un attaquant que veut l’amener à se contredire; par exemple A soutient une thèse comme “l’âme est um nombre” et B tente l’amener par questions et réponses, à admettre que “l’âme n’est pas um nombre”; il n’y a pas de juges, mais éventuellement des spectateurs de la joute que constatent le succès ou l’échec de l’attaque. Protagoras aurait été le premier à organizer de tels tournois de parole, que l’on voit ensuite attestés dans les écoles de philosophie tout ao long de l’Antiquité et au Moyen Âge ... (DESBORDES, 1996, p. 69).37

O primeiro tipo de dialética, segundo Reboul (1998), teria sido a erística dos sofistas,

que daria permissão ao triunfo do absurdo ou do falso. Para Sócrates e Platão, a dialética foi

colocada a serviço da verdade, sendo usada como o método da filosofia. Já para Aristóteles,

ela está a serviço do provável. Seu raciocínio é a partir do que é provável, de forma rigorosa e

“respeitando as regras da lógica” (p. 28).

Essa disputa – a dialética - para Reboul, na verdade, é um jogo e, em um jogo, a

intenção é ganhar, precisando, para isso, convencer. Logo, mesmo que não parta da verdade,

não pode ser considera moral ou imoral. É apenas um jogo.

Esse provável para o qual a dialética está a serviço, seria o consenso verdadeiro, ou

seja, aquilo que parece verdadeiro para todos, ou, ao menos, para a maioria ou para os tidos

como competentes, e não um consenso aparente – Reboul afirma estar Aristóteles preocupado

em diferenciar este consenso do verdadeiro consenso. Sendo assim, “o silogismo dialético

37. “...Dialética e retórica são de início duas praticas, duas formas da discussão contraditória. Viu-se que a situação retórica essencial é a da contradição judiciária, com seus dois discursos antitéticos como apoio de duas teses entre as quais os juízes devem decidir. Na discussão dialética, um dos dois interlocutores defende uma tese contra um adversário que quer leva-lo a se contradizer; por exemplo, A defende uma tese como “a alma é um número” e B tenta levá-lo, através de perguntas e respostas, a admitir que “a alma não é um número”; não há juízes, mas, eventualmente, espectadores da discussão que confirmam o sucesso ou o fracasso do ataque. Protágoras terá sido o primeiro a organizar tais disputas de palavra, que se vê em seguida atestadas nas escolas de filosofia ao longo da Antiguidade e da Idade Média...” (Tradução nossa).

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parte de premissas simplesmente prováveis”. Então, “a dialética renuncia à verdade das coisas

em benefício da opinião aceita.” (1998, p. 28). Ela abdica da verdade em prol daquilo que

convence por parecer verdadeiro.

Sendo assim, a dialética por si só tem, então, um fim em si mesma, como jogo que é,

em que os jogadores dão tudo de si para ganhar. Todavia, respeitando as regras da lógica, sem

enganar. Conduzindo por meio do raciocínio lógico. O conflito apresentado pelos adversários

é, também, apenas aparente. Ao defender uma tese, por exemplo, um adversário pode nela não

crer. A defende por jogo, pelo prazer da disputa. É nesse sentido que, conforme Reboul, ela se

difere da retórica. Contudo, é a ela indispensável.

Apesar de ter um fim em si mesma, esse jogo dialético pode ser implementado

pensando-se em uma atividade séria. Aristóteles, entre outros benefícios, aponta o seu uso

social. Relacionando-a à retórica, seriam os serviços que a dialética poderia lhe conceder.

O filósofo grego, entre outras coisas, aproxima uma da outra, dizendo serem

semelhantes. Coloca, finalmente, a retórica no mesmo plano da dialética, provando isso a

partir da apresentação de suas semelhanças: as duas tanto podem provar uma tese quanto o

seu contrário, ou seja, podem também argumentar por uma tese fraca; são universais, pois

possibilitam o debate sobre qualquer controvérsia; podem ser praticadas normalmente ou

ensinadas metodicamente, como técnicas; as duas podem distinguir o verdadeiro e o aparente;

e usam a indução e a dedução como tipos de argumentação.

Contudo, explica Reboul que a retórica é apenas uma aplicação, entre outras, da

dialética; é uma de suas quatro funções. Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um

meio, entre outros, de persuadir. A dialética é um tipo de prova da retórica, é o raciocínio

resultante do logos. O raciocínio em ambas, no que tange as concepções aristotélicas, escora-

se no verossímil, no que é aceito, ficando a argumentação racional. É a prova “por meio de

uma aparência de raciocínio”. A argumentação pode até não ser irrefutável, mas deve ser

verossímil.

Numa palavra, a dialética constitui a parte argumentativa da retórica. Cabe esclarecer, porém, que a argumentação não tem a mesma função, portanto o mesmo sentido, em ambos os casos. A dialética é um jogo especulativo. A retórica, por sua vez, não é um jogo. É um instrumento de ação social, e seu domínio é a deliberação (buleusis); ora, esse domínio é precisamente o do verossímil. De fato, não se delibera sobre o que é evidente – por exemplo, para saber se a neve é branca! - nem sobre o que é impossível; delibera-se sobre fatos incertos, mas que podem realizar-se (...). (REBOUL, 1998, p.37).

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Conforme observação de Reboul, retórica e dialética, apesar de disciplinas diferentes,

se tocam:

Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes, mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. Pois bem, se os dois círculos podem cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano, e – indo mais longe – porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo. (1998, p.39)

O que seria a verdade, de fato, apresentada por Cícero no discurso aqui estudado ou a

verdade aparente, que poderia ser crível por quase todos? Pode-se dizer que, como verdade,

existe a clemência concedida a Marcelo, responsável imediata pelo pronunciamento do

discurso. Como crível, a possibilidade de ter César, realmente, características de uma espécie

de herói, a partir de todas as demonstrações feitas pelo orador, sobre os feitos e a

benevolência do ditador, tendo como objetivo, talvez colocá-lo nesse patamar. Estaria aí,

então, uma forma de convencer, de persuadir ou ouvinte a respeito dessa possível verdade,

mas não através de trapaças e, sim, do emprego de raciocínio lógico, mostrando, através de

fatos que ocorreram realmente, algo que poderia também ser tomado como real.

A adesão de Cícero à causa de César pode não ser verdadeira, pode não ser irrefutável,

mas com certeza, é crível, é verossímil. A sua presença ali diante do Senado e do ditador,

proferindo um discurso em louvor do último pode demonstrar essa adesão. Assim como César

pode não ser, exatamente, um herói, mas os atos e personalidade do ditador, da forma como

foram demonstrados e apresentados no discurso, levam à credibilidade disso.

3.5 A retórica para a heroificação

A partir do momento em que se pretende analisar se houve a intenção de, na

elaboração do discurso, construir na recepção dos ouvintes a verdade sobre César, realmente,

ter características heroicas, é preciso, então, entender como um herói é construído e que tipo

de herói pode ter sido delineado por Cícero.

Assim, pretende-se, refletir sobre isso, a partir de uma análise feita por Bakhtin a

respeito de como é realizada a criação de um herói por um autor. Depois, procurar entender

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como se efetivou a construção no próprio discurso, através dos recursos retóricos e por meio

das influências do contexto histórico e político-social.

Também objetiva-se, apontando as definições de herói épico delineadas por Silva,

tentar demonstrar que César parece ter sido caracterizado, assim como suas ações, de um

modo que pode elevá-lo à categoria de herói dentro dos moldes de herói épico.

3.5.1 Para uma análise do herói

Conforme convicções de Bakhtin (2000), para uma análise do herói, deve-se não pôr

de lado a existência do princípio criador na relação entre o autor e seu herói. Costuma-se, para

ele, confundir-se, na análise, o “autor-criador”, aquele que compõe, com o “autor-homem”,

que compõe a vida.

Portanto, de acordo com o estudioso, acaba-se tendo como resultado a distorção do

autor enquanto homem e, ao mesmo tempo, uma falta geral de compreensão do princípio

criador-produtor encontrado na relação do autor com o herói por ele construído. Assim, ele

entende, por exemplo, que utilizar uma obra de arte como fonte para uma biografia, muitas

vezes é insuficiente, porque, nesse caso, não se leva em consideração tal princípio criador-

produtor. Igualmente não é possível entender o todo que define o herói, como vindo de dentro

dele mesmo – o herói. Tal “todo” do herói lhe é fornecido, assim como um dom, pela

“consciência criadora do autor” (p. 32). Seria um todo advindo da unidade global, de um todo

da obra e um todo do próprio herói.

No caso do Pro Marcello, teria Cícero utilizado a sua consciência criadora, pois é ele

o autor da obra, que a entende como um todo; e teria ele acrescentado a isso um todo vindo da

própria figura heroica de César. Cícero produziria, portanto, a consciência do herói e do

mundo dele, que é uma consciência obtida pelo autor, a partir daquilo que extrapola a

consciência do próprio herói, ou seja, que o herói não tem.

O fato é que, no discurso, o autor delineou e criou essa consciência de herói e criou

esse herói indo além dele mesmo.

Essa consciência do autor, que fornece o todo do herói,

é consciência de uma consciência, ou seja, é uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo, que engloba e acaba a consciência do herói por intermédio do que, por princípio, é transcendente a essa consciência e que, imanente, a falsearia. (BAKHTIN, 2000, p.32).

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Nesse sentido, o autor é aquele que sabe e vê tudo o que seu herói vê e sabe. Ele

conhece tudo, e ainda mais, o que a sua criatura sabe, assim como conhece tudo o que os

heróis de uma forma geral sabem, também além do que os próprios conhecem. Tem

conhecimento, até mesmo, daquilo a que jamais o herói tem acesso: “é precisamente esse

excedente, sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o saber do autor, em

comparação com cada um dos heróis.” (BAKHTIN, 2000, p.32).

A partir disso, como avalia o estudioso, é o autor o responsável por dirigir tudo do

herói, por dirigir o herói no seu existir. E esse mundo de existência do herói é um mundo

acabado. O herói é, então, acabado, assim como os acontecimentos no seu entorno o são,

exatamente pelo poder do autor.

A consciência do herói, seu sentimento e seu desejo do mundo – sua orientação emotivo-volitiva-material -, é cercada de todos os lados, presa em um círculo, pela consciência que o autor tem do herói e do seu mundo, cujo acabamento ele assegura. (BAKHTIN, 2000, p. 33).

Cícero, então, dotado desse poder, fez um acabamento tanto de César, como um

personagem heroico, assim como de seus feitos, como sendo heroicos. Esse herói Júlio César

tem, por exemplo, uma sabedoria que extrapola os limites da humanidade. É uma sapiência

divina, assim como forja Cícero no início do exórdio, dizendo não poder deixar em silêncio a

(...) divinam sapientiam (Capítulo I, parágrafo 1)

(“a divina sabedoria”)

E, do modo, como o orador o entende:

Sed simillimum deo iudico (Capítulo III, parágrafo 8)

(“porém o julgo muito similar a um deus)”

É um ser muito justo, muito clemente, com supremo poder, com vitórias

incomparáveis, inclusive, vencendo a si mesmo e a própria vitória, ao perdoar os inimigos,

como se observa nas passagens abaixo:

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1 - At haec tua iustitia (...) (Capítulo IV, parágrafo 11) (“Mas esta tua justiça”) 2 - (...) clementiae tuae iudicio conservati sumus. (Capítulo IV, parágrafo 12) (“somos preservados pelo juízo de tua clemência”) 3 - (...) tantum in summa potestate rerum omnium modum, (“tanta moderação, no supremo poder de todas as coisas”)

4 - Vicisti te ipsum (Capítulo III, parágrafo 12) (“Venceste a ti próprio”)

5 - Videris vicisse ipsam victoriam (Capítulo III, parágrafo 12)

(“A própria vitória pareces ter vencido”) .

Assim é criado e forjado o personagem-herói na figura histórica de César, com

nuances que extrapolam a condição humana, por meio de um desenho feito pelo seu criador.

A partir de tais considerações sobre ser o autor o responsável por toda a consciência

do herói, por tudo que ele sente e deseja, chega-se à conclusão de que, do discurso que o herói

tem de si mesmo emana o discurso do autor a respeito do herói. Assim, o discurso do herói

não é propriamente dele, mas sim, daquele que o cria – o autor-criador.

Ora, o discurso que César parece dizer pela fala do orador, não é, de fato, dele, mas

uma criação do autor – Cícero. É o autor que o conduz, logo o herói é passivo. Tudo o que

Cícero diz ser César, no discurso ele o é, pois assim quer o autor. Ele, o herói, não tem

participação efetiva nisso. Pode até ocorrer que o seja na realidade, mas não obrigatoriamente,

porque ali ele é apenas um personagem com feições de herói.

A criação de um homem com todas aquelas qualidades realçadas, com todas as

pretensões e sentimentos que possa ter é somente um acabamento dado ao herói pelo seu

criador.

O autor, desse modo, conforme Bakhtin, é capaz de assumir a postura de saber e ver

mais do que seu herói, indo além da direção do olhar deste, indo além do que este pode

acessar. O autor deve, então, importar-se com o todo formador do herói e do acontecimento

em torno do mesmo. É, dessa forma, que a objetividade estética, para Bakhtin, irá imperar. Na

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ótica do estudioso, “para objetividade estética, o que está no centro dos valores é o todo do

herói e do acontecimento que lhe concerne, aos quais serão subordinados todos os valores

éticos cognitivos.” (BAKHTIN, 2000, p. 31).

O autor é responsável pela unidade do todo, pelo acabamento do herói dado à obra.

Essa atividade realizada pelo autor confere passividade ao todo do herói, ou seja, ele, para seu

acabamento, é passivo, está à mercê das atividades realizadas pelo autor. Depende disso para

ser acabado, para ser criado como um todo.

Nesse processo criativo, o autor torna o seu herói em um todo, justamente a partir

daquilo que usa e que não é acessível ao herói, ou seja, a sua imagem externa ao próprio

herói. Essa totalidade do herói é criada, então, por aquilo que o herói não conhece. Somente o

seu criador conhece e tem acesso. Desse modo, ele não tem como participar dessa construção.

Assim, também, apesar de ver e de criar a partir dessa visão, o criador não toma partido, não

se envolve no acontecimento.

Destarte, o herói distancia-se e não fica ao lado do autor, nem como companheiro,

nem como opositor e nem no próprio interior dele. Ele é um homem criado “a partir do ponto

de vista real-cognitivo e ético de um espectador que não toma parte do acontecimento”. A

essa característica o estudioso russo denomina “exotopia do autor ao herói” (BAKHTIN,

2000, p. 35).

O autor fica de fora, afasta-se, distancia-se da existência do herói, para que, desse

modo, haja liberdade para o próprio herói. É o tal distanciamento necessário para a existência

do herói.

O herói só se completa e fica acabado quando há esse distanciamento. O autor vive a

vida do herói desse modo apartado, diferente de sua própria vida e dos valores que a cercam.

Ele vive e pensa a vida do herói em contextos de valores distintos do de sua vida.

Contudo, fatores ético-cognitivos são determinantes para a construção do todo do

herói. Portanto, a relação entre autor e herói irá variar em decorrência disso. Tudo que

envolve o herói, o fundo que o cerca, o pano de fundo, tudo que o transcende pode ser

utilizado para “heroificar o herói que sobe ao palco”, para lhe dar o acabamento estético.

Segundo Bakhtin (2000, p. 42),

Quando o herói e autor coincidem ou então se situam lado a lado, compartilhando um valor comum, ou ainda se opõem como adversários, o acontecimento estético termina e é o acontecimento ético que o substitui (panfleto, manifesto, requisitório, panegírico e elogio, injúria, confissão, etc.). (GRIFO NOSSO).

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Pode-se dizer que, a despeito do discurso Pro Marcello se tratar, principalmente,

de um elogio, ele apresenta esse distanciamento entre o autor e o herói, pois o autor, para

traçar o perfil deste último, utiliza o que vai além da visão que o herói tem dele mesmo. O

autor o contempla com essa distância. Contudo, ao mesmo tempo, pode-se aventar alguma

coincidência, pois que, elogiando, o orador-criador, no caso, pretende colocar-se ao lado de

César, apontando seu apoio a ele.

O acontecimento estético não pode ser produzido por consciências coincidentes, pois

depende daquilo que transcende, que esteja fora da consciência. Ele precisa, para que exista,

dos dois lados de duas consciências distintas, que não se coincidem. Seria isso o chamado

pelo autor de “excedente” necessário para que exista a visão estética, ou seja, a visão obtida

fora do eu.

O excedente de minha visão, com relação ao outro, instaura uma esfera particular da minha atividade, isto é, um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-se. (BAKHTIN, 2000, p. 44).

Contudo, somente os atos de contemplação – e não os atos éticos – é que são atos

estéticos. Esse “a mais”, essa visão interna e externa do outro faz com que o outro seja

acabado, completado. Assim, com essa visão e saber decorrente dela, o outro é criado.

Através da vivência do outro, proporcionada por essa visão excedente, é que se tem a

condição de completá-lo, fornecendo-lhe um acabamento – isso, segundo Bakhtin, é um ato

estético – a identificação com o outro e a experimentação da sua realidade irá permitir

conhecer o que outro não percebe, não tem acesso e não tem, portanto, consciência. Só o

contemplador pode ter acesso a isso. Só aquele que está de fora tem esse acesso.

Na contemplação, obtém-se os materiais dados pela expressividade do outro, que

fornecem a identificação com ele, depois, uma volta a si mesmo, para a recuperação do seu

lugar fora do outro e, segundo o estudioso,

A atividade estética propriamente dita começa justamente quando estamos de volta a nós mesmo, quando estamos no nosso próprio lugar (...), quando damos forma e acabamento ao material recolhido mediante nossa identificação com o outro, quando o completamos com o que é transcendente à consciência (...). (BAKHTIN, 2000 p. 46).

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Quando um completa o outro com o que é transcendente à consciência que o outro tem

do mundo, isso seria um acabamento dado à imagem do outro, a partir do que é retirado do

excedente de visão – a exotopia do autor ao herói. O autor, desse modo, dá ao herói um

complemento, um acabamento feito de fora – de fora do herói – a partir da consciência que

ele tem desse outro, obtida pela sua visão excedente, ou seja, ele o completa com o que é

recebido pela contemplação do herói, cujas observações não estão acessíveis, portanto,

transcendem à consciência do herói.

A partir dessa exposição sobre o que Bakhtin pensa precisar ter e fazer o autor que

constrói um herói, pode-se procurar analisar de que modo Cícero estaria construindo um perfil

de herói para César, utilizando, justamente essa exotopia, ou seja, aquilo que transcende a

consciência do próprio herói, para formá-lo. Assim como ele estaria realizando essa

contemplação do interior e do exterior do herói, ou seja, como estaria usando o conhecimento

que tem do contexto que envolve o herói, que o transcende para, assim, fazer o seu

acabamento. Aquilo que não parece acessível ao ditador – o seu exterior, a imagem que o

outro faz dele – estaria sendo utilizado para a criação do perfil heroico e esse distanciamento

entre os dois e a visão interna e externa do outro é capaz de criar o herói.

Cícero, assim, com o uso de recursos linguísticos e literários, cria no discurso a

caracterização de um personagem com traços e perfil de herói. Apesar de, na verdade, existir

César, o homem, general e ditador; com a manipulação do orador (criador) sobre o discurso, o

ditador assume o tom e as características de um personagem no e para o discurso. Assim,

como persona, pode assumir características físicas e de comportamento de um personagem

tecido no próprio discurso e para o próprio discurso.

Além disso, pode-se pensar em que medida esse herói criado por Cícero teria

características até mesmo daquilo que se entende como herói épico. A respeito de ser César

heroificado através do discurso proferido por Cícero, podem-se fazer algumas reflexões, nesse

sentido.

Citando os feitos de César, com usos linguísticos e recursos literários, de forma a

glorificá-los, Cícero pode alçá-lo à categoria de herói. Mas o que seria, por exemplo, um herói

dentro dos moldes épicos? Quanto a isso, veem-se as reflexões de Silva (1984) como

relevantes.

Cícero narra os fatos ocorridos, pintando-os sob sua ótica, apesar de influenciado pelo

discurso do outro. Elabora, assim, uma proposição de realidade. A despeito de retirar os fatos

da realidade objetiva, ou seja, fatos que aconteceram dentro dessa realidade, ele não os cria.

Apenas estrutura e elabora uma proposição da realidade ocorrida.

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Os fatos eram realidade em si, quando aconteceram. A partir do momento que são

narrados, depois de terem acontecido, eles passam a ser uma espécie de recriação dessa

realidade. Isso se dá por meio de “um processo mimético” (SILVA, 1984, p. 13). É o que

ocorre na elaboração de uma narrativa ficcional e de uma narrativa épica, por exemplo. Na

narrativa épica, a estruturação da proposição de realidade é feita por ela mesma, apoiada no

histórico e no mítico, a partir da matéria épica que utiliza. Segundo Silva, o fato quando

acontece é realidade e quando é relatado passa a ser história.

No caso do discurso Pro Marcello, o que se apresenta não é uma narrativa ficcional,

nem muito menos épica. Contudo, a partir da forma como os feitos de César e sua

caracterização foram narrados, pode-se pensar em uma estruturação da proposição de uma

realidade com o uso do que se chama de matéria épica.

Quando um fato histórico é colocado de forma grandiosa e desproporcional, acaba

ultrapassando o limite da realidade, entrando no campo do mito. A partir daí constitui-se a

matéria épica. (SILVA, 1984).

Segundo o autor, nessa constituição, unem-se, de tal modo, a dimensão real e mítica

que já não se pode mais “distinguir o fato histórico da aderência mítica.” (p. 14). Nesse

momento, o fato é desrealizado por essa aderência mítica.

Essa matéria épica constituída, que é “uma formação de processo da realidade” (p.14),

pode ser manifestada de formas diferentes. Não somente através do discurso épico.

Desse modo, pode-se entender haver matéria épica sendo manifestada no discurso aqui

analisado, mesmo não sendo ele uma epopeia. Alguns fatos e feitos são narrados, assim como

é caracterizado o próprio sujeito histórico dessas ações (César), de tal forma, que parece ter

havido uma desrealização deles, pela aderência mítica. Essa aderência estaria desrealizando os

fatos e também o sujeito histórico dos fatos. Isso, conforme Silva (1984), o alçaria à categoria

de herói. Contudo, essa é a formação do herói épico na epopeia.

Aqui não há uma epopeia, mas, talvez, exista um herói caracterizado de determinado

modo, que lembre o herói épico da epopeia. Assim como os fatos narrados também talvez

esbarrem na categoria de material épico, pela desrealização conseguida, por meio da

grandiosidade. No excerto abaixo, por exemplo, Cícero atribui a César uma vontade grandiosa

que vai além do que possa o homem César querer e pretender. E esse ir além da realidade

propriamente dita pode levar o fato e o próprio ditador e ser uma espécie de material épico.

C. Caesar excitaret ab inferis multos. (Capítulo VI, parágrafo 17).

(“Caio César faria sair do mundo dos mortos a muitos.”)

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Outro fator colocado por Cícero no discurso pode, também, levá-lo a essa

caracterização. É o uso de um tema considerado épico, relacionando-o a César – a vontade de

conseguir glória e fama. Sobre isso ser épico, Joly comenta: “Um tema, em particular,

emblemático da composição épica (...) o tema da perseguição heroica por glória e fama.”

(2007, p. 17).

No caso do personagem histórico Caio Júlio César, conseguindo essa existência

mítica, através da grandiosidade como que é apresentado, ganharia a qualificação de herói e

conquistaria, desse modo, a imortalidade. Com os feitos imortais, por exemplo, ele se tornaria

também imortal, assim como o seu espírito, a sua vontade, coloca Cícero, era ser imortal:

(...) semper immortalitatis amore flagravit. (Capítulo IX, parágrafo 27)

(“Pelo amor da imortalidade sempre inflamou”)

Na epopeia, para que o sujeito histórico seja um herói, ele tem de sair do plano

histórico e adentrar o plano maravilhoso. Isso ocorre através da grandiloquência – grandes

guerras, grandes acontecimentos, grandes atos.

No Pro Marcello, não é feita, propriamente dita, a narração desses fatos. Todavia, eles

são elencados de forma grandiosa, através, por exemplo, de grandes adjetivações, com

superlativos, com advérbios intensificadores e com várias outras formas de amplificar os

acontecimentos e os atos, o caráter e a clemência de César.

Com isso, César poderia sair da história, de fato, e ser projetado para outra, na qual ele

vai além das suas características de humano, tornando-a uma história somente sua. Sobre esse

entendimento do herói em relação a outros tipos de herói, pode-se observar:

O que ajuda a engrandecer o herói épico é a sua dimensão trágica. O herói

épico é o sonho de o homem fazer a sua própria história; o herói trágico é a

verdade do destino humano; o herói trivial é a legitimação do poder vigente;

o pícaro é a filosofia da sobrevivência feita gente. (KOTHE,1995, p. 15).

A glorificação de César pelos atos vitoriosos, pelos feitos inumeráveis, pela clemência

infinita, talvez o tenha retirado do plano estritamente histórico, transportando-o para o

maravilhoso, para o mítico.

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Se assim ocorre, tem-se o herói dentro do modelo de padrão épico. Pode-se dizer,

dessa forma, que existe uma espécie de discurso épico, em uma manifestação específica.

Nesse caso, uma manifestação retórica, com finalidade, principalmente, de louvor. E,

justamente, para louvar e para enaltecer, de forma também grandiosa, teriam sido usados os

recursos linguísticos e literários escolhidos pelo autor e capazes de levar o personagem

histórico para o plano do maravilhoso.

Assim pode-se analisar, pois, conforme Silva (1984, p. 105), o discurso pode ser

encarado como “uma conversão do processo literário de criação”. Nesse caso, passa por uma

estruturação específica que tem várias possibilidades de manifestação. No caso do Pro

Marcello, seria uma manifestação em forma de discurso retórico.

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4. OS GÊNEROS DO DISCURSO E O PRO MARCELLO COMO UM DISCURSO EPIDÍCTICO

Neste capítulo tem-se o objetivo de, além de fazer uma análise mais atenta no próprio

corpus alvo da tese, apontar algumas classificações sobre os discursos e as suas partes

integrantes.

4.1 Gêneros e partes do discurso em Aristóteles

Reboul diz que a classificação dos discursos, segundo a postulada por Aristóteles, tem

a importância de apresentar que eles podem ser assim distribuídos, conforme o auditório a que

eles falam e de acordo com os seus objetivos.

Voltando, então, à questão das partes que deve ter um discurso, na inventio

“invenção”, o orador deve procurar saber, exatamente, interpretar o discurso que vai ser

produzido. Ele deve saber sobre o que o discurso vai tratar, qual é o assunto. Deve também, a

partir daí, definir o tipo e o gênero do discurso, para que, depois, possa procurar os

argumentos e organizá-los.

A invenção é, nas palavras de Reboul (1998, p. 54):

o ‘inventário’, a detecção pelo orador de todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. (...) é a ‘invenção’ no sentido moderno, a criação de argumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristóteles, a confiança inspirada pelo orador, deve ser ‘obra de seu discurso’.

De acordo com Reboul (1998), segundo ponderações de Aristóteles, em sua Retórica,

os gêneros do discurso são divididos em três e isso se deve ao tipo de auditório que cada um

terá, pois para cada auditório haverá uma forma específica de falar. Cada auditório exigirá

traços específicos na construção do discurso.

Os três gêneros são o judiciário, o deliberativo e o epidíctico. Para o primeiro, o

auditório é o tribunal. O ato pertinente a esse gênero é o de acusar ou defender. Em relação ao

tempo a que se refere, o judiciário faz alusão ao tempo passado, pois tem que versar,

esclarecendo e julgando fatos que já ocorreram. Nesse discurso, os valores que o norteiam são

o justo ou o injusto e o tipo de argumentação usada é, preferencialmente, o raciocínio

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silogístico – o entimema – ao qual já se fez referência, pois segundo Reboul, ponderando

sobre a sistematização de Aristóteles, esse tipo de argumento é próprio no esclarecimento de

causas. A respeito desse gênero, Aristóteles expõe: “O discurso jurídico ou ataca ou defende

alguém. Uma ou outra dessas duas coisas são sempre feitas pelas partes no caso.” (2007, p.

30).

Para o segundo tipo, ou seja, para o gênero deliberativo, o auditório é a Assembleia –

o Senado - e seu ato é aconselhar ou desaconselhar algo relacionado a coisas sobre a cidade,

como, por exemplo, sobre a paz ou a guerra. Em relação ao tempo que pretende projetar,

como “inspira decisões e projetos” (REBOUL, 1998, p. 45), faz menção ao tempo futuro.

Nesse tipo de discurso, os valores norteadores são a utilidade ou inutilidade de algo para a

cidade, por exemplo. Sobre o tipo de argumento usado por ele, Reboul diz que Aristóteles

aponta que o preferido é o “exemplo”, pois “permite conjecturar o futuro a partir de fatos do

passado” (p. 46). Sobre esse tipo de discurso Aristóteles assinala: “O discurso político os

estimula a fazer ou não fazer algo. Um desses dois cursos é adotado pelos conselheiros

particulares, bem como pelos homens que se dedicam às assembléias públicas.” (2007, p. 30).

Para o gênero do tipo epidíctico (o tratado, em específico, neste trabalho), o auditório

é formado por espectadores, ou seja, todos “os que assistem a discursos de aparato, como

panegíricos, orações fúnebres ou outras” (REBOUL, 1998, p. 45). O ato desse discurso é

emitir uma censura ou um louvor a um homem, a uma cidade, a um herói etc. O tempo a que

ele se refere é o tempo presente, apesar de utilizar para a censura ou louvor, argumentos do

passado. Isso porque pretende persuadir os espectadores presentes, naquele momento do

discurso, de que a censura feita ou o louvor feito são assim como ditos por ele. Em relação

aos valores norteadores do discurso, o epidíctico aponta o que pode ser vil, no caso da

censura, e que pode ser nobre, quando o discurso for de louvor, como é o caso do Pro

Marcello. Sobre o tipo de argumento ideal para esse gênero do discurso, pode-se dizer que o

mais utilizado é a chamada “amplificação”, isto é, o realce de algo, como ações, fatos e

características, que já são conhecidas dos espectadores, mas que tentam ser mais valorizados,

assim, pelo orador, dando-lhe maior relevo, maior realce, maior importância.

O discurso epidíctico será, desse modo, um discurso persuasivo não de forma

imediata, mas a longo prazo, pois não pretende, como o judiciário, dizer o que é justo ou

injusto no momento. E não pretende, como o deliberativo, dar um conselho sobre algo que

precisa ser realizado. Nele, no gênero epidíctico, ao valorizar ou desvalorizar algo, louvando

ou censurando, o orador orienta ações e escolhas que possam vir a ocorrer no futuro. Ele não

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dita, então, uma escolha presente, mas orienta escolhas futuras. Para Reboul, por isso, é um

gênero de discurso com feições pedagógicas.

A respeito desse tipo de discurso, Aristóteles observa: “Aqueles que elogiam ou

agridem um homem, fazem-no com o intuito de provar a esse homem o mérito da honra ou o

seu contrário, e eles também apresentam todas as considerações com referência a esse

assunto” (2007, p. 30).

Os gêneros dos discursos são divididos, então, nesses três tipos, por Aristóteles: o

judiciário, o deliberativo e o epidíctico. Dessa feita, o filósofo divide a retórica, em retórica

jurídica, retórica política e retórica exibicional.

Segundo Reboul (2000), Aristóteles viu a necessidade de dividir os discursos por

esses três gêneros, pois, como visto, se existem espécies de auditórios diferentes e as

finalidades são também diversas, para cada um, deve haver uma forma diferente de direção

das palavras.

Nos três tipos, a forma de argumentação também é diversa. No judiciário é usado o

raciocínio silogístico, o deliberativo dá preferência ao uso de exemplos e o epidíctico ao uso

de amplificações, como foi apontado.

Assim, sabendo o assunto, o tipo de auditório, sabendo o gênero do discurso a ser

produzido, o orador poderá escolher o tipo de argumento próprio a ser utilizado. Contudo, por

exemplo, mesmo havendo um tipo de argumento melhor para cada gênero, outros tipos

também podem ser usados no mesmo gênero. É o que o ocorre no Pro Marcello: não são

usadas apenas as amplificações.

Os tipos de argumentos

Os modos de persuasão podem ser técnicos ou não técnicos. Estes últimos não

pertencem estritamente à arte retórica. Os modos de persuasão técnicos são os que podem ser

elaborados e preparados pelo orador. Fazem parte da argumentação retórica.

Conforme Reboul, Aristóteles irá definir três tipos de argumentos, de acordo com os

instrumentos utilizados para a persuasão. São eles o “etos”, o “patos” e o “logos”. Os dois

primeiros, segundo Reboul, são de ordem afetiva, enquanto o último é de ordem racional.

Os meios de ordem racional – o logos - são, então, os argumentos, que podem ser de

dois tipos: os entimemas (do raciocínio silogístico) e o exemplo. De acordo com Reboul, para

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Aristóteles, o exemplo, que é dirigido geralmente ao grande público, é mais afetivo do que o

silogismo – que é dirigido a um auditório especializado, como o tribunal.

E os meios de persuasão de ordem afetiva propriamente ditos são o etos e patos. O

etos se refere ao caráter, ao “caráter que o orador deve assumir para chamar a atenção e

angariar a confiança do auditório”. O patos, por sua vez, são “as tendências, os desejos, as

emoções do auditório das quais o orador poderá tirar partido”. (REBOUL, 1998, p. XVII).

Um discurso religioso ou político, por exemplo, muitas vezes faz uso do patos, que é

um meio de persuasão afetivo. Esses tipos de discurso, frequentemente têm, como ouvintes,

pessoas com predisposição a acreditar devido, talvez, a alguns sentimentos ou à vontade de se

obter algo.

O “etos” é, assim, o caráter, a moral que adota o orador diante do auditório. Esse

caráter irá garantir-lhe a confiança do auditório sobre a sua pessoa. Ele “é definido como o

caráter moral que o orador deve parecer ter, mesmo que não o tenha deveras”. (REBOUL,

1998, p. 48). A sua construção leva a crer no discurso proferido, pela confiança no orador.

Assim, com a exposição do seu caráter, o orador faz com que os ouvintes vejam suas

qualidades, como a virtude e a benevolência, que ele possa ter. (ARISTÓTELES, 2007).

No que diz respeito ao Pro Marcello, o etos é desenvolvido, entre outros fatores, pelo

fato de ser Cícero um homem bem conhecido publicamente. Ele tem valores considerados

pelos homens que o ouvem. É um homem que já participou de muitas coisas e, portanto, seus

dotes são bem reconhecidos.

O “patos” é tudo o que o orador consegue produzir sobre o auditório, através dos

argumentos utilizados no discurso, como as emoções e os sentimentos que auditório tem, a

partir do discurso. Ele é capaz de perturbar as emoções dos ouvintes, de deixar o espírito dos

ouvintes, em um estado favorável. (ARISTÓTELES, 2007). O patos, no Pro Marcello, é

desenvolvido, demonstrando o orador que o os feitos já realizados por César - e os que ele

poderá ainda fazer - são bons para a República. Tenta angariar, assim, o apoio dos Senadores

ao governo de César e, ao mesmo passo, a crença de César nele próprio – Cícero.

Sobre a argumentação ter como o alvo o auditório, Perelman e Tyteca assim expõem:

“Com efeito, como a argumentação visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por

inteiro, relativa ao auditório que procura influenciar.” (2005, p. 21).

O “logos” “diz respeito à argumentação propriamente dita do discurso” (REBOUL,

1998, p. 49). Então, o “logos” é o argumento propriamente dito, por isso, a parte racional do

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discurso, pois é a parte procurada, elaborada e organizada racionalmente pelo orador. Assim,

como já mencionado, Aristóteles irá distinguir o argumento denominado “entimema”, que é

dedutivo do denominado de “exemplo”, que é indutivo.

Para compor o “etos”, ou seja, para deixar o auditório favorável ao seu discurso, a

partir do caráter por ele assumido, o orador precisa ser, aos olhos do público, “sensato, sincero

e simpático” (REBOUL, 1998, p. 48), mesmo que não o seja. Com essa finalidade, o orador

deverá analisar características do auditório, pois para cada auditório, um perfil diferente do

orador agradará, pois as suas expectativas irão variar conforme determinadas características

deles próprios. Por exemplo, se o auditório é o povo, o perfil será um; se o auditório é o

Senado, o perfil será outro. No “patos”, o orador precisará de usar a psicologia para conseguir

a adesão do auditório. Ele desenvolverá o seu etos e construirá os seus argumentos, tentando

conseguir despertar os sentimentos e emoções no auditório.

O orador precisa arrolar, então, as provas. Ele pode encontrar os seus argumentos

através de provas, através dos chamados tópoi “os lugares”. Ele precisa, então, ajustar aos

lugares. Esses lugares são os assuntos, a partir dos quais se podem elaborar os argumentos e

também os contra-argumentos.

As provas podem ser extrínsecas ou intrínsecas. As extrínsecas são as extra-retóricas.

São aquelas expostas antes da invenção, como as leis, as testemunhas, os contratos e, no caso

do gênero epidíctico, tudo aquilo que se conhece sobre quem ou o que está sendo censurado

ou louvado.

As provas intrínsecas são as intra-retóricas. São aquelas criadas pelo orador na sua

construção retórica. No caso do gênero epidíctico, as amplificações feitas, por exemplo, de

algo que se sabe anteriormente sobre quem está sendo censurado ou louvado, é o argumento

intrínseco. Assim, o orador usa o que se sabe anteriormente – o extrínseco -, amplificando o

sabido, para conseguir o efeito que pretende no auditório. Nesse tipo de argumento, o bom

orador poderá transformar aquilo que poderia não ser muito nobre ou vantagem em coisa boa.

Os tópoi, segundo Reboul, podem ser argumentos prontos, já formados – os

argumentos-tipo - que podem ser usados pelo orador como, por exemplo, o uso do seguinte

argumento em um discurso, na tentativa de provar que são melhores os que não estão mais

presentes: “os melhores são o que partem” (REBOUL, 1998, p. 51).

Eles podem ser, também, um tipo de argumento, a formação de um esquema para

argumentar, como o citado por Reboul e retirado de Aristóteles, “o lugar do mais e do

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menos”: “Se os deuses não são oniscientes, muito menos os homens” (ARISTÓTELES, apud,

REBOUL, 1998, p. 51).

E ainda podem ser “uma questão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-

argumentos” (REBOUL, 1998, p. 52). Através dessa questão, o orador poderá encontrar

argumentos favoráveis à sua tese. Um lugar específico a cada causa. No caso do Pro

Marcello, assuntos como a justiça, a sabedoria, a honra, a dignidade, por exemplo, que são

relacionadas ao louvor que é feito a César.

Algumas características do argumento

A seguir expõem-se algumas características apontadas por Reboul sobre o

argumento, dizendo que, nesse caso, o etos e patos serão mais fortes que o logos. Para tanto,

ele se inspira nas conjecturas de Perelman-Tyteca.

- Primeira: um argumento sempre é dirigido a um auditório. Os diversos auditórios que

podem existir são, naturalmente, diferentes entre si e comportam pontos de vistas diferentes.

Para modificar essa questão da diversidade, da particularidade inerente a cada auditório em

específico, o orador se dirige a ele como se estivesse se dirigindo a outros “que estão além

dele”, tentando superá-lo. Assim é o entendimento de Reboul sobre o que Perelman-Tyteca

chamou de “auditório universal”, que é oposto ao auditório especializado.

Quando o orador lança mão disso, ele pode se eximir de problemas que teria quando se

reportasse a um auditório muito heterogêneo. Nas palavras dos próprios Perelmam e Tyteca

(2005, p. 29), pode-se observar o que ele entende importante sobre isso: “Talvez seja esta uma

das razões pelas quais o que suscita acima de tudo o interesse e uma técnica argumentativa

que se imporia a todos os auditórios (...)”.

- Segunda: o argumento é sempre em língua natural. Sendo em uma língua natural,

está sujeito a ambiguidades, pela possibilidade de usar “termos polissêmicos e com forte

conotação” (p. 94), além de sintaxes ambíguas. E o que uma palavra e uma frase ou oração

significam para um orador pode ter significado diferente para outro.

- Teceira: as suas premissas são verossímeis. O objeto a ser tratado, que não é

cientificamente comprovado, pode não ser verdadeiro ou falso, mas “mais ou menos

verossímil”. Sobre a argumentação em relação ao verossímil, Reboul arremata que ela “deve

respeitá-lo como inerente a seu objeto e não ter pretensões a um cientificismo que não passará

de engodo (...).” (1998, p. 95).

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A respeito de verossímil o autor diz ser “tudo aquilo em que a confiança é presumida”

(p. 95), ou seja, tudo o que se leva a confiar, a se presumir que é verdadeiro. E sobre as

premissas verossímeis acrescenta: “(...) o simples fato de invocá-las equivale, pois, a apelar

para a confiança do auditório, para a sua ‘presunção’, e comporta um aspecto oratório.” (p.

96).

-Quarta: a progressão dos argumentos depende do orador: não há uma sequência

lógica para que ocorram os argumentos e, sim, psicológica. O orador é que irá avaliar a ordem

em que eles aparecerão de acordo, por exemplo, com o ânimo do auditório.

- Quinta: há conclusões sempre controversas: o orador pede uma conclusão que se

deve impor, acabando com a discussão, mas o auditório pode aceitá-la ou não. Ela não é uma

coisa obrigatória, ao contrário, pode ser contestada.

Dando continuidade às partes, no caso da dispositio “disposição”, Reboul apresenta

quatro partes:

- O “exórdio”: é o início do discurso. Nessa parte, o orador precisa tornar o auditório

dócil – favorável a aprender e compreender; atento – por exemplo, dizer algo bem enfático,

para atrair a atenção; e benevolente – receptivo ao que vai ser dito. No caso do gênero

epidítico, o orador tenta fazer com que o auditório se sinta parte integrante do que vai dizer.

Ele inclui o auditório no fato. Quando Cícero chama a atenção dos Senadores e do próprio

César, pelos vocativos que usa, por exemplo, colocando a importância daquele momento em

que retoma o ato de se pronunciar, ele está, também, fazendo-os parte daquilo que vai dizer.

De acordo com Reboul, a retórica do exórdio está, às vezes, justamente, em não ter

uma chamada inicial, ou seja, em ir-se direto ao que interessa de fato.

- A “narração”: é quando o orador irá expor os fatos relacionados à causa. Ela deve ser

objetiva, mesmo que, de fato, não seja. As características principais para sua eficácia é que

seja clara, breve e crível.

A narração no discurso epídictico é de tanta relevância que até mesmo pode ser

dividida, de acordo com as questões a serem apresentadas, como, por exemplo, “os fatos que

ilustram a coragem, os que ilustram a generosidade” de alguém.

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- A “confirmação” é a parte em que se apresentam as provas, por exemplo. Ela recorre

ao que se chamou de “patos”. Irá procurar despertar sentimentos no auditório como piedade,

indignação, esperança, crença etc..

A confirmação pode vir junto da narração. Não precisa, necessariamente, vir uma

parte e depois a outra.

Outro fato apontado pelo autor é a questão da ordem dos argumentos, que vai variar

para um ou outro estudioso de retórica. Aponta, então, o que Cícero preconiza em De oratore,

que seria a chamada “ordem homérica”, na qual se deve começar com argumentos mais

fortes, partindo para os mais fracos e voltando, no final, aos fortes.

Segundo Reboul, nessa ordem, o orador teria de ter muitos argumentos fortes. Ele

entende que há, na verdade, em cada discurso, apenas um argumento e que os outros seriam,

então, apenas formas diferentes de apresentar. Remete “à dupla argumentação de Aristóteles

em Retórica” (1998, p. 58). Ele diz que “Nos dois casos, desenvolve-se um argumento único

apresentando-se diversos aspectos seus e refutando os argumentos contrários.” (p. 58 e 59).

- A “digressão”: é o momento em há um “relaxamento”. É usada no discurso

judiciário. Serve para distrair o público “mas também apiedá-lo ou indigná-lo” (p. 59). Pode

vir em qualquer lugar do discurso.

- A “peroração”: é o final do discurso. Pode ser, às vezes, bem longa e ser dividida por

partes. Ela é “o momento por excelência em que a afetividade se une à argumentação, o que

constitui a alma da retórica” (p. 60).

Para Reboul, um verdadeiro plano, ou seja, a “disposição” só deve aparecer depois da

“elocução”, isto é, da redação. Também para o autor, essa parte do discurso tem função

heurística.

A parte do discurso chamada de elocutio “elocução” é justamente a sua redação. É

quando o discurso é escrito. Segundo Reboul, os antigos entendiam como o primeiro

problema da elocução, o caso da correção linguística. O orador deveria primar por um bom

vernáculo. Escolher as palavras e as formas de modo a produzir um discurso com correção e

beleza.

Seria o uso da chamada prosa retórica. Diferente da poesia e da prosa do dia a dia, da

prosa vulgar. O orador deveria escolher palavras e construções que fossem claras no que diz

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respeito ao sentido. As construções e até mesmo o uso de figuras deveriam ser de sentido

claro. Seria o que o autor chamou de “retórica da prosa”, como assim se verifica:

Portanto, a retórica criou uma estética da prosa, uma estética puramente funcional, da qual tudo o que é inútil é excluído, em que o mínimo efeito de estilo se justifica pela exigência de persuadir, em qualquer artifício gratuito engendra preciosismo ou vulgaridade. (REBOUL, 1998, p. 62).

Outra questão seria o estilo. O estilo do orador estaria ligado, então, “aos três pólos do

discurso: assunto, auditório e orador” (p. 62). O mais eficaz é o que se adapta ao assunto.

Dependendo, assim, do assunto, o orador deverá usar um estilo. Para cada assunto, ele deve

usar um estilo diferente, conforme a conveniência.

Outro fator importante é adaptação ao auditório, pois o que é claro para um pode não

ser para outro auditório. O orador até poderá usar de obscuridade no discurso, contanto que

seja um uso consciente e com finalidades definidas.

Uma terceira regra seria a de como o orador deve mostrar-se no discurso. Ele deve ser

bastante vivaz. “A vivacidade é capital para o etos, pois ela torna o discurso marcante,

agradável, cativante; e, principalmente, confere-lhe o indispensável cunho de autenticidade. O

verdadeiro estilo é o do discurso onde é possível encontrar o seu autor.” (REBOUL, 1998, p.

64).

A actio “ação” é quando o orador profere o discurso. Nesse ato, ele usa, entre outros

recursos, os gestos, as mímicas, a impostação de voz e as expressões. Ao apontar a etimologia

da palavra “ação” em grego – hypocrisis - , Reboul diz que uma de suas primeiras acepções

seria a “interpretação do ator”. O orador, assim como o ator, pode demonstrar, na sua atuação,

quando profere o discurso, sentir o que não sente, ser o que não é. A hypocrisis é, então,

fundamental. Sobre a ação, lê-se em Brutus (parágrafo 143):

...talesque oratores videri facit, quales ipsi se videri volunt.

(Faz tais oradores parecerem, tal como eles próprios querem parecer.)

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A memória também tinha grande importância para o orador proferir um discurso. O

orador, entre os antigos, tinha de memoriza-lo. Ele precisava empregar essa a arte de

memorização. Reboul diz que Cícero entendia isso como um dom natural, enquanto

Quintiliano, por exemplo, dizia que a memória era um dom natural, mas que também poderia

ser aprendida com técnica.

4.2 Os gêneros do discurso na visão bakhtiniana

Gênero textual é normalmente visto, como diz Fiorin, como agrupações de textos que

têm características e traços comuns em relação a sua forma, a como são compostos

formalmente. Já Bakhtin, segundo o autor, irá trabalhar a questão dos gêneros, não

preocupado com o produto em si, mas com como esse produto é produzido, ou seja, vai

preocupar-se com o processo de produção, o modo de constituição do produto.

Para ele, inicialmente, deve-se levar em conta o caráter interativo dos enunciados, ou

melhor, a característica primeira da linguagem, que é comunicar. Para que o indivíduo

comunique-se em qualquer esfera das várias atividades que compõem sua vida, ele irá utilizar

a linguagem “em forma de enunciados”. Portanto, ele a utiliza em momento de ação. E cada

agir irá exigir um tipo de enunciado diferente. “Só se age na interação, só se diz no agir e o

agir motiva certos tipos de enunciados, o que quer dizer que cada esfera de utilização da

língua elabora tipos relativamente estáveis de enunciados.” (FIORIN, 2008, p.61).

Para Bakhtin (2000), tudo o que envolve as variadas atividades do homem está ligado

ao uso da língua. E é, também, por esse motivo, que são variados os modos de utilização da

língua, que se adequa a cada situação de uso. São, para o autor, os enunciados os responsáveis

por efetuar a utilização da língua, nesse sentido. Assim confirmamos em suas palavras: “A

utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos,

que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.” (BAKHTIN, 2000,

p. 279).

Dessa citação feita por Bakhtin, reafirma-se a hipótese de que o discurso, numa certa

medida, é único e irrepetível, pois é formulado por um determinado indivíduo que faz suas

escolhas de acordo com as condições e finalidade pretendidas. É ele que seleciona no sistema

linguístico, de acordo com suas necessidades, os recursos lexicais, gramaticais e fraseológicos

que são precisos. Isso lhe confere o chamado estilo.

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Contudo, para o autor, além do estilo, para a composição do enunciado, necessita-se

do conteúdo temático, de acordo com a situação e, também, do que ele chama de “construção

composicional”, sendo esses três componentes marcados, segundo ele, pela “especificidade de

uma esfera de comunicação” (BAKHTIN, 2000, p. 279).

Tomando o enunciado de forma isolada, o autor o caracteriza como individual.

Todavia, para ele, a língua, quando utilizada em cada esfera da atividade humana, irá elaborar

“tipos relativamente estáveis de enunciados”. Esses tipos são os denominados gêneros do

discurso. E, conforme Fiorin, “O estilo é um dos componentes do gênero. Há, assim, um

estilo do gênero e, dentro do gênero, podem aparecer os estilos que criam os efeitos de sentido

de individualidade.” (FIORIN, 2008, p. 48).

Logo, a princípio, os gêneros do discurso são tipos de enunciados diferentes, que

contêm características relativamente estáveis cada um deles. São, também, da mesma forma,

amplamente diversificados, já que as esferas de atividades humanas igualmente são amplas.

Segundo Bakhtin (2000), por ser tão enorme e diversificada a gama dos gêneros do discurso,

poder-se-ia pensar ser difícil “um terreno comum para ser estudado” (BAKHTIN, 2000, p,

280).

Conforme o autor, a diversidade funcional dos gêneros do discurso pode fazer com

que os traços comuns a eles sejam abstratos e, talvez por isso, o problema geral destes não

tenha sido discutido.

O autor aponta serem estudados, sobretudo, os gêneros literários desde a Antiguidade,

mas, segundo a sua especificidade intrínseca e não de acordo com suas características

particulares que os diferenciam de outros discursos, mas que, ao mesmo tempo, contêm em

comum a natureza verbal-linguística. (BAKHTIN, 2000).

Diz, também, desde a Antiguidade, serem estudados os gêneros retóricos, dando-se

maior atenção à natureza verbal e aos princípios constitutivos dos enunciados, entretanto

ocultando-se a sua natureza linguística. Depois, também foram estudados, conforme seu

entendimento, os gêneros dos discursos cotidianos, do ponto de vista da linguística geral

(Saussure e continuadores). Do mesmo modo, esse estudo não contemplaria a “definição

correta da natureza linguística do enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 281), pois evidenciava as

particularidades do discurso cotidiano oral.

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Para o estudioso, o que de fato é relevante é a análise e a distinção do que ele chama

de gêneros primários e gêneros secundários, para que, a partir disso, elucide-se e defina-se a

natureza do enunciado.38

A relação existente entre os gêneros primários e secundários e o “processo de

formação dos gêneros secundários” é que poderá dar conta da elucidação sobre a natureza do

enunciado. E, segundo ele, “acima de tudo, o difícil problema da correlação entre língua,

ideologias e visões de mundo” (BAKHTIN, 2000, p. 282).

Conhecer a natureza do enunciado em geral e todos os tipos particulares de enunciados

(dos gêneros do discurso) é, para o autor, fundamental para qualquer estudo, pois

Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre língua e vida. (BAKHTIN, 2000, p.282).

Os enunciados concretos realizam a língua e esta, desse modo, entra na vida e a vida

nesta. (BAKHTIN, 2000).

Os gêneros primários são, para o autor, os mais simples que se formam nas mais

variadas circunstâncias de “comunicação verbal espontânea”. Já os secundários são mais

complexos – “aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e

relativamente mais evoluída” (p. 281), como, por exemplo, o teatro e o discurso ideológico.

Um discurso como o Pro Marcello, de acordo com essa divisão que faz o estudioso

russo, é pertencente ao gênero secundário, pois a sua formulação é mais complexa e tem

traços, além de tudo, da ideologia presente no momento histórico em que foi construído e das

questões políticas que o perpassam.

Apesar dessa divisão, há o que o autor chama de inter-relação entre os primários e os

secundários. Essa inter-relação e o processo histórico existente na produção dos gêneros

secundários dariam conta de esclarecer a natureza do enunciado e o que está em jogo entre a

língua, a ideologia presente e o entendimento sobre o mundo.

Os primários são absorvidos e modificados pelos secundários no processo de formação

destes, ou seja, os secundários integram e transformam os gêneros primários, os quais ficam,

assim, destituídos de relação com realidade existente.

38. Enunciado, para Bakhtin, é a “unidade real da comunicação verbal” (2000, p.287).

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Um gênero secundário é, assim como um gênero primário, um tipo de enunciado. No

entanto, um é enunciado secundário, mais complexo – como um romance, por exemplo -,

enquanto o outro é um enunciado primário, mais simples, surgido em momento de

comunicação espontânea – como um diálogo cotidiano.

Para Bakhtin, os gêneros do discurso são formas típicas de enunciados, estando o

estilo estritamente relacionado ao próprio enunciado e a essas formas. O enunciado, por sua

vez, de qualquer natureza, de qualquer faceta da comunicação verbal é uma realização

individual, pois reflete o indivíduo quando fala ou escreve. Nesse sentido, o enunciado

carrega em si um estilo individual. Contudo, para o estudioso, nem todos os gêneros são

capazes de refletir esse estilo, como o são os gêneros “artísticos-literários”. Para ele, de fato, a

maioria dos gêneros não reflete esse estilo único, individual, apenas reflete a superficialidade

da individualidade, como o exemplo, citado pelo autor, dos documentos oficiais. Destarte,

“Na maioria dos gêneros do discurso (com exceção dos gêneros artísticos-literários), o estilo

individual não entra na intenção do enunciado, não serve exclusivamente às suas finalidades,

sendo, por assim dizer, seu epifenômeno, seu produto complementar.” (2000, p. 283).

Sendo assim, há, segundo o autor, a necessidade de um estudo aprofundado da

natureza do enunciado e de toda a diversidade existente de gêneros do discurso, para que se

chegue à definição de um estilo tanto geral, quanto de um estilo individual.

A relação, então, entre o estilo e o gênero do discurso apresenta-se, para o autor,

extremamente associada no que diz respeito ao estilo linguístico ou funcional, pois que é o

“estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da comunicação humana. Cada

esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem

determinados estilos.” (2000, p. 284).

Cada função – e aí se inclui a ideológica - e as “condições específicas para cada uma

das esferas da comunicação verbal” irão dar origem a um determinado gênero, isto é, a um

determinado enunciado “relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e

estilístico” (p. 284).

Sendo assim, a função de elogiar, de louvar e, também, de apresentar ideologicamente

a posição de Cícero e o contexto histórico de final de República, determinam o tipo de gênero

do Pro Marcello.

O estilo, conforme Bakthin, está estritamente relacionado ao que chama de unidades

temáticas e, igual e intrinsecamente, a unidades composicionais. Entre as quais pode-se citar o

tipo de relação estabelecida entre o locutor e os demais companheiros da comunicação verbal:

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“(relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, como o discurso do outro, etc.)”

(p. 284).

Para que se estude um estilo linguístico, desse modo, faz-se necessário, segundo ele,

partir-se do estudo dos gêneros diversos, pois ao gênero pertencem os estilos da língua.

Para Bakthin, é indispensável, desse modo, para uma descrição dos estilos, a atenção

peculiar ao problema dos gêneros dos discursos, entendendo a sua diversidade, enquanto são

também diversas as esferas de atividades humanas e, da mesma forma, são mutáveis.

O autor aponta ser somente a compreensão profunda entre a natureza do enunciado e a

especificidade do gênero do discurso capaz de conseguir solucionar a complexidade existente

em se estudar léxico e gramática e, em se estudar léxico e estilística. Estudando-se o

enunciado como “unidade real da comunicação verbal”, pode-se chegar à compreensão da

natureza das unidades da língua, ou seja, das palavras e das orações.

Conforme suas conjecturas, a gramática e a estilística estão juntas e, ao mesmo tempo

separadas, em “qualquer fato linguístico concreto”, dependendo uma coisa ou outra do ponto

de vista em que se encare esse fato. Se se encara do “ponto de vista da língua, é um fato

gramatical, encarado do ponto de vista do enunciado individual, é um fato estilístico”, ou seja,

os dois pontos de vista não devem excluir um ao outro, ao contrário, precisam “combinar-se

organicamente” sobre o concreto, o que é o real fato linguístico. (BAKHTIN, 1997, p. 287).

Assim, não se deve separar o que é estritamente gramatical do que é estritamente

estilístico, pois, por exemplo, quando o indivíduo seleciona uma forma gramatical, ele já está

realizando um ato linguístico, um ato com caráter linguístico. A um passo que usa um item

lexical ou escolhe uma determinada frase para formular o discurso, ele está, por certo,

utilizando o que a língua lhe fornece. Ao mesmo tempo, é ele e não o outro – apesar de este

também contribuir para sua escolha – que faz essa seleção.

Bakhtin faz uma análise sobre como, muitas vezes, a linguagem vem sendo encarada,

deixando-se em segundo plano o caráter, para ele primordial, que é a sua função

comunicativa. Ele não nega terem alguns estudiosos apontado outras funções da linguagem,

mas diz ainda se deterem na questão de ser ela algo imanente da individualidade do locutor,

não dando a devida importância ao outro no ato comunicativo. Diz o estudioso:

a linguagem é considerada do ponto de vista do locutor como se este estivesse sozinho, sem uma forçosa relação com os outros parceiros da comunicação verbal. E, quando o papel do outro é levado em consideração, é como um destinatário passivo que se limita a compreender o locutor. O enunciado satisfaz ao seu próprio objeto (ou

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seja, ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao próprio enunciador. (2000, p. 288).

Teríamos, assim, a atitude ativa do locutor na formulação do discurso e a atitude

passiva de percepção/compreensão do ouvinte/leitor/receptor. Sendo encarado dessa forma, o

estudo sobre a linguagem não representa o “todo real da comunicação verbal”. Nesse todo, em

que se acredita aqui, como o estudioso apresenta, tanto o locutor quanto o receptor são

responsáveis pela elaboração e realização do discurso. É o que Bakhtin chama de atitude

responsiva ativa. Com ela, o ouvinte/leitor participa ativamente, concordando/discordando,

acrescentando, completando, modificando e muito mais. É a resposta esperada pelo

enunciador “e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de

audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras

emitidas pelo locutor.” (BAKHTIN, 1997, p. 290).

Essa ação responsiva do ouvinte/leitor pode não vir imediatamente, mas ela acaba

aparecendo. No exemplo dado pelo autor – os gêneros líricos – há o que ele chama de ação

responsiva retardada. E é esse tipo de compreensão retardada que, segundo ele, acontece na

maioria dos gêneros secundários da comunicação verbal.

Até mesmo o enunciador é, numa certa medida, um “respondente”, pois o seu discurso

está impregnado de discursos de outros que anteriormente os formularam- “pressupõe (...)

também a existência dos enunciados anteriores” (1997, p. 291), que podem ser seus próprios

enunciados anteriores, assim como enunciados proferidos por outros.

Por essa perspectiva, o outro tem um papel fundamental e ativo do processo de

comunicação verbal, portanto deve ter importância em estudos sobre a linguagem.

Para Bakhtin, a própria palavra “discurso” ainda não havia sido estritamente definida.

Isso, segundo ele, porque não se deu a devida importância aos problemas relacionados ao

enunciado e aos gêneros do discurso e é resultado de “um menosprezo total pelo que é a

unidade real da comunicação verbal: o enunciado” (1997, p 293). A fala só existe, na

realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo, do sujeito de um discurso. E,

por sua vez, “o discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito

falante e não pode existir fora dessa forma” (1997, p. 293).

Os enunciados têm, assim, segundo ele, “características estruturais que lhe são

comuns” e fronteiras precisamente delimitadas. Essas fronteiras “são determinadas pela

alternância dos sujeitos falantes”, ou seja, pela alternância das vozes daqueles que

estabelecem entre si o ato de comunicação. Essa é uma especificidade do enunciado.

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O enunciado tem sempre um início e o fim, havendo, antes dele, o enunciado do outro

e, depois dele, os enunciados como resposta do outro. Assim, o enunciado é uma unidade real

da comunicação, sendo estritamente delimitado pela alternância dos sujeitos falantes. É o

diálogo real, o lugar que, por excelência, apresenta mais clara e evidentemente tal alternância.

Conforme análise do estudioso russo, o que ocorre nos gêneros retóricos – como os

aqui elencados – que são gêneros secundários do discurso, é uma contradição a esse princípio

de alternância no enunciado, pois o próprio locutor/escritor fará as perguntas, por exemplo, e

as responderá. Ele fará colocações, refutadas, depois por ele mesmo e assim por diante.

Desse modo, a alternância não é com a fala explícita do outro, mas com sua própria

fala. Contudo, entende-se ter o outro sempre uma atitude responsiva, mesmo não estando

concretamente presente. Nesse caso, é um outro – que pode ser um auditório – a quem o

enunciador se dirige. Quando isso ocorre, há o que Bakhtin define de “simulação

convencional da comunicação verbal e dos gêneros primários do discurso” (1997, p. 295),

dizendo ser exatamente esse um jogo caracterizante dos gêneros retóricos.

Os enunciados, por sua vez, diferem-se das unidades da língua. Eles constituem-se a

partir do auxílio dessas unidades (palavras, combinações de palavras, orações). Contudo, ao

comunicar-se, o indivíduo não faz uma troca, uma alternância dessas unidades, e sim, a troca

de tais enunciados.

4. 3 PRO MARCELLO: UM DISCURSO EPIDÍCTICO

Assim como já discutido amplamente, o corpus desta tese é classificado, conforme a

divisão dada aos discursos por Aristóteles, em um discurso epidíctico. Verificou-se existirem

nele, apesar disso, traços de outro gênero do discurso, que é o deliberativo. Entretanto, em

consonância com o relevo dado a determinadas características presentes, ele é, de fato,

considerado, principalmente, como pertencente ao gênero epidíctico.

4.3.1 Caracterizando o discurso como epidíctico

Como exposto em outras partes deste estudo, o escritor teve uma grande participação

no governo e na política de Roma. Toda essa incursão acabou por refletir em registros nas

suas produções. Assim, ao pronunciar os seus discursos, deixou um testemunho de fatos

históricos e sociais da época em que foram realizados. No Pro Marcello, por certo, também

são vistos registros de eventos políticos e sociais do momento histórico em que foi produzido.

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Esse discurso faz parte da produção escrita sob o período de ditadura de César, assim

como outros. Essas realizações ocorreram depois de um grande período de silêncio do orador,

que foi quebrado, em 46 a.C., com o Pro Marcello, e que durou até a morte do ditador.

Entre os discursos desse período, temos o Pro Marcello (46 a. C.), o Pro Ligario (46

a.C.) e o Pro rege Deiotaro (45 a.C).

Sobre o Pro Ligario e o Pro rege Deiotaro tem-se o seguinte:

O Pro Ligario corresponde ao seu discurso público em favor de Ligário, um outro pompeiano; o Pro rege Deiotaro reflete o discurso proferido na residência privada de César em favor de Deiótaro, o velho tetrarca da Galácia que tomara partido de Pompeio durante a guerra civil, para, depois de Farsalo, se passar para as hostes de César, e que agora estava sendo acusado de ter conspirado contra ele. (CITRONI et allii, 2006, p. 281).

O Pro Marcello é um discurso em que orador Cícero apresenta o agradecimento a

César por ter este perdoado a Marcelo, que era adversário do ditador, mas amigo do orador

durante toda a vida. Isso ocorre depois de grande tempo sem se pronunciar, como já dito.

Antes dele, até aquele momento, só havia proferido o discurso Pro Milone, em 52 a.C.

Marcus Claudius Marcellus foi, assim como Cícero, um grande estudioso de retórica,

também se dedicando ao direito. Foi grande jurisconsulto, orador e advogado. Ele ossuía

convicções políticas que o levaram a ser inimigo de César. Portanto, entre outras ações,

durante o seu consulado, em 51 a.C., Marcelo contrapôs-se, amplamente, às ambições do

ditador.

Por ocasião da passagem de César pelo Rubicão, foi Marcelo um dos que apontou com

ênfase que ele deveria se licenciar do comando nas Gálias para participar das eleições ao

consulado. Foi ele também um dos responsáveis, tendo César recusado a se licenciar, em

torná-lo inimigo de Roma.

A guerra civil, em sua segunda fase, tem como principal teor o conflito entre César e

as forças do Senado, que lhe faziam oposição. Marcelo toma o partido pompeiano, em

oposição a César, assim como também o fez Cícero. Contudo, os aliados de Pompeu perdem

na batalha de Farsália e Marcelo exila-se, de forma voluntária, em Mitilena, na ilha de Lesbos.

É lá que, tempos depois, foi comunicado de que havia recebido o perdão de César, no ano de

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46 a.C. Entretanto, ele não consegue usufruir desse perdão, pois, quando regressava a Roma,

enquanto passava pela Grécia, é assassinado por Mágio Quilão, um companheiro de exílio. O

porquê de ter sido assassinado não se sabe.

O perdão dado a Marcelo foi um ato praticado por César também referente a outros

antigos adversários seus, como o próprio Cícero, que foi um dos primeiros a receber o induto.

Ele procurou, dessa forma, como já visto, angariar forças para seu lado, principalmente,

trazendo aqueles que poderiam lhe ser úteis.

Marcelo, um desses que obteve a clemência de César, era um republicano e defendia a

autoridade do Senado. Homem honrado e moralmente reconhecido em Roma, não entendia o

perdão recebido como um bom acontecimento.

Esse perdão não foi aceito nem dado tão facilmente. Por um lado – o de Marcelo –

havia toda uma resistência em aceitar que fosse pedido o perdão, pois as suas convicções

políticas de republicano não o deixavam acolher facilmente o fato de subordinar-se à postura

política de César. De outro lado – o do ditador – houve também, amplamente, uma hesitação,

em perdoar alguém que tinha sido um opositor em potencial anteriormente.

O pedido para que César desse o perdão a Marcelo foi feito durante uma sessão do

Senado, e César, depois de muito relutar, acabou cedendo aos pedidos da maioria presente,

pois seria interessante tê-los a seu lado.

Logo, o pronunciamento do Pro Marcello foi o agradecimento a César pelo perdão

dado ao amigo e foi feito diante do ditador e do Senado. Entretanto, também foi uma forma de

o orador colocar-se como adepto às intenções do ditador, dando-lhe apoio político e fazendo-

lhe recomendações. Esse foi um discurso produzido, obviamente, sob a influência dos fatos

decorrentes da guerra civil em Roma.

Para a estudiosa Santamaría, o momento em que Cícero pronunciou o Pro Marcello,

no Senado, era um momento difícil para um republicano e, ao usar sua autoridade enquanto

orador, pronunciando esse discurso, colocava-se em posição de aliado de César no que diz

respeito à reconstrução da República. Assim comprova-se em suas palavras:

Cuando en el 46 a.C., con motivo del perdón de César al pompeyano Marcelo, Cicerón interviene en el senado en difíciles circunstancias políti-cas para un republicano, su única auctoritas residía en su elocuentia; su palabra era, entonces más que nunca, su poder. Puesto que el silencio era el signo de la disidencia más radical, un orator

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tacens suponía una reprobación del poder de César y, en cambio, la intervención de Cicerón contribuía decisivamente a la construcción de la res publica. (2014, p. 1)39

A respeito do teor e do propósito de Cícero no pronunciamento do Pro Marcello,

Citroni et alii asseveram:

Em setembro de 46, toma de novo a palavra no senado, desta vez para agradecer a César a sua decisão de perdoar a Marco Marcelo (Pro Marcello). O discurso está fortemente imbuído de um tom adulatório, o que revela a incapacidade de Cícero, neste caso, de manter sua verdadeira dignidade. Apesar de tudo, o discurso não se reduz a um ecómio servil. As suas ilusões já não eram muitas, mas Cícero ainda procura indicar a César um programa de reforma de estado, baseado no respeito pelas formas republicanas e pelas prerrogativas do senado. (2006, p. 281).

Como se percebe, para os autores acima, no Pro Marcello, Cícero, apesar de usar um

tom muito elogioso ao ditador, ainda tenta mostrar que a República pode ser reformada,

verificando as prerrogativas do Senado. A respeito dos discursos Pro Ligario e Pro rege

Deotaro, Citroni et alii alinhavam: “Nos dois discursos seguintes dirigidos a César, adopta

um tom mais digno e mais firme e adequado à apologia dos que se tinham pautado pela defesa

da causa do senado (...).” (2006, p. 281).

O orador, ao proferir o Pro Marcello, estava amplamente feliz com o perdão que fora

conferido ao grande amigo de anos e, assim, foi exímio no que diz respeito à demonstração de

agradecimento pelo feito, colocando, dessa forma, em relevo, a clemência de César. Exalta,

desse modo, amplamente, muitas virtudes do ditador, principalmente a clemência.

Pode-se dizer que o Pro Marcello é um discurso em que são encontradas, então, as

características do gênero epidíctico. Por ser proferido, assim como se analisa aqui, em

39. “Quando, em 46 a.C., com motivo do perdão de César ao Pompeiano Marcelo, Cícero intervém no Senado em difíceis circunstâncias políticas para um republicano, sua única autoridade residia em sua eloquência; sua palavra era, então mais que nunca, seu poder. Posto que o silêncio era sinal de dissidência mais radical, um orador calado supunha uma reprovação do poder de César e, ao contrário, a intervenção de Cícero contribuía decisivamente com a construção da república.” (Tradução nossa)

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agradecimento ao perdão de César a Marcelo, utiliza elementos de louvor ao governante. O

orador procura valorizar o ato deste, demonstrando a sua importância e enaltecendo sua

virtude, bem como tenta conseguir a admiração dos espectadores e apresentar a sua posição,

por meio de destaque e apontamentos de feitos de César. Do mesmo modo, apresenta ao

auditório a atitude de César como relevante no que concerne à restituição da posição e

autoridade dele próprio, Cícero, e de todos os republicanos. No capítulo I, parágrafo 2, isso

fica evidente:

M. enim Marcello vobis, patres conscripti, reique publicae reddito,

non illius solum, sed etiam meam vocem et auctoritatem et vobis et rei

publicae conservatam ac restitutam puto. Dolebam enim, patres

conscripti, et vehementer angebar, virum talem, cum in eadem causa

in qua ego fuisset, non in eadem esse fortuna; nec mihi persuadere

poteram, nec fas esse ducebam, versari me in nostro vetere curriculo,

illo aemulo atque imitatore studiorum ac laborum meorum, quasi

quodam socio a me et comite distracto. Ergo et mihi meae pristinae

vitae consuetudinem, C. Caesar, interclusam aperuisti, et his omnibus

ad bene de [omni] re publica sperandum quasi signum aliquod

sustulisti.

(De fato, restituído Marco Marcelo a vós, senadores, e à república,

entendo que foi conservada e restituída para vós e para república, não

somente a voz e autoridade dele, mas também a minha. Na verdade,

eu sofria, ó senadores, e atormentava-me intensamente o fato de que

um tal homem, quando esteve na mesma causa em que eu, não

estivesse na mesma sorte; nem poderia convencer-me, nem entendia

ser lícito que eu ficasse em nossa antiga atividade, separando-me

daquele êmulo e imitador dos meus estudos e trabalhos, como um

aliado e companheiro. Portanto, Caio César, não somente deste a mim

o costume interrompido de minha antiga vida, mas também levantaste

quase um símbolo pra todos estes, para que bem esperassem de toda a

república.)

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Além disso, acreditando numa possível reconstrução da República, empenhou-se em

mostrar o seu apoio ao ditador. Apontou, do mesmo modo, uma espécie de conselho visando

ações futuras para que a reconstrução pudesse feita. Apresentou-se, igualmente, como um

aliado futuro de César, o que seria muito útil para a República. Confirma-se isso no excerto

abaixo:

Omnia sunt excitanda tibi, C. Caesar, uni, quae iacere sentis, belli

ipsius impetu, quod necesse fuit, perculsa atque prostrata (...) (Cap.

VIII)

(Caio César, por ti, unicamente, devem ser levantadas todas as coisas,

que tu sentes jazerem, arrasadas e abatidas, pela precipitação da

própria guerra, o que foi preciso.)

Nesse sentido, de tentar levar o auditório a uma decisão para realizações a serem

implementadas no futuro, pode-se classificar o discurso também com características do

gênero deliberativo. Por conseguinte, é um discurso intrinsecamente do gênero epidíctico,

mas apresentando nuances do gênero deliberativo.

Sobre o que perfaz um discurso epidíctico, além de se tratar de louvor a alguém ou

algo, ele apresenta alguns elementos constitutivos, como os já elencados no item destinado

aos gêneros do discurso, segundo Aristóteles. Desta feita, o auditório é específico, o tempo

usado e os tipos de argumento também o são. Apesar disso, são usados, largamente, na

constituição, recursos retóricos não específicos desse gênero, como os exempla.

Em relação ao tempo utilizado no discurso, para realçar a clemência de César, o seu

poder bélico e as suas realizações, fazendo com que ele seja admirado pelos espectadores no

presente, Cícero recorre, muitas vezes, a argumentos retirados de feitos do passado. Assim

verifica-se no capítulo IV, parágrafo 12:

(...) Cum ea, quae illa erat adepta, uictis remisisti. (Grifo Nosso)

(Quando restituíste aquelas coisas aos vencidos, que ela havia

conquistado.)

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Realça as ações no presente, cita fatos já ocorridos no passado, mas remete a

possibilidades futuras - uso próprio do discurso exibicional como apontado por Aristóteles.

Como se pode constatar no excerto do capítulo III, parágrafo 9:

Itaque, C. Caesar, bellicae tuae laudes celebrabuntur illae

quidem non solum nostris, sed paene omnium gentium litteris

atque linguis (...). (grifo nosso)

(Desse modo, Caio César, aquelas tuas glórias bélicas,

seguramente, serão celebradas, não somente nos nossos, mas nos

escritos e línguas de quase todos os povos...)

Através dessa realização no discurso, menciona o passado com intenções implícitas de

suscitar admiração no presente e pretendendo ações no futuro.

Os valores de César são muito destacados no discurso. Valores como a nobreza do

político, apresentada pelo orador, por ter o ditador concedido o perdão a Marcelo. Pode-se

exemplificar isso, quando Cícero diz ter César, ao perdoar Marcelo, feito resgatar a lembrança

de todos os nobres Marcelos.

(...) quibus tu etiam mortuis, M. Marcello conseuato, dignitatem

suam reddidisti; nobilissimamque familiam, iam ad paucos

redactam paene ab interitu uindicasti. (Cap. IV).

(...aos quais, mesmo mortos, tu restituíste, quando conservaste,

Marco Marcelo, a sua dignidade e livraste quase da destruição

uma família nobilíssima, já restringida a poucos.)

Santamaría (2014), na passagem abaixo, observa que Cícero parece cumprir

uma obrigação – que o próprio orador discute em seus tratados - de o beneficiário

quando algo declara, em público, estar grato a quem fez o benefício.

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En sus tratados Cicerón discute la creación de vínculos por medio de beneficium y gratia y en bastantes pasajes de sus discursos él mismo cumple el código ético que obligaba al beneficiario a declarar públicamente su condición de gratus. (2014, p. 389).40

Sobre gratia, -ae, segundo o que se observa, por exemplo, em Gaffiot (1934), o

vocábulo tem múltiplas acepções. Entre outras significações, é o ato de ser agradável com

outra pessoa, levando-se em consideração também a reciprocidade. Designa também, o favor,

a complacência, a graça, o obséquio, o reconhecimento, a gratidão. Há ainda os seguintes

valores: relações amigáveis, amizade, charme e graça.

No discurso, a palavra gratia aparece em algumas passagens. Um exemplo é o trecho

abaixo, retirado da peroração, no qual diz Cícero voltar, nesse momento, ao lugar onde o

discurso começou: ao agradecimento e reconhecimento à clemência de César:

Maximas tibi omnes gratias agimus, C. Caesar, maiores etiam

habemus. (XI, 33)

(Damos a ti, Caio César, as máximas graças, ainda maiores as temos.)

O uso de amplificações é um dos recursos retóricos usados como recurso característico

dos discursos espidícticos, para aumentar o valor ou a falta de valor daquele que se louva ou

censura. Em Pro Marcello, tem-se o exemplo abaixo, em que o superlativo do adjetivo bonus

amplia a bondade de Marcelo, aumentando, por conseguinte, a bondade de César em perdoá-

lo.

Equidem cum C. Marcelli, uiri optimi, (...) (Capítulo IV - grifo nosso)

(Na verdade, quando, de Caio Marcelo, varão ótimo ...)

40. Em seus tratados Cícero discute a criação de vínculos por meio de benefício e graça e em muitas passagens de seus discursos ele mesmo cumpre o código ético que obrigava ao beneficiário a declarar publicamente sua condição de grato. (Tradução nossa).

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Sobre esse recurso retórico, próprio do discurso epidíctico, pode-se dizer que foram

utilizados em larga escala na produção do discurso aqui estudado. Portando, muitos outros

exemplos de amplificação serão apontados mais à frente, principalmente aqueles que se

referem ao enaltecimento da clemência de César e dos seus feitos. Além disso, alguns

exempla, também serão apresentados.

4.3.2 Sobre os modos de persuasão retórica em um discurso laudatório

Aristóteles, refletindo sobre uma forma de fazer com que os ouvintes do discurso

acreditem e confiem no que é dito pelo orador diz: “Os modos com os quais os fazemos

confiar na bondade de outros povos são também os modos com os quais eles confiarão nos

nossos.” (2007, p. 51).

O filósofo assim apresenta um método de persuasão: o modo como o orador consegue

fazer com que o ouvinte confie, por exemplo, na honra, na virtude de outros, poderá ser o

mesmo caminho para que esse ouvinte confie existirem essas qualidades no próprio orador e

naquilo que ele apresenta.

Colocando César, no discurso Pro Marcello, como homem de honra, com tamanhas

virtudes e realizador de atos de justiça pode, além de conduzi-lo, talvez, a um status de herói,

estar conduzindo os ouvintes, principalmente César, a tomá-lo – o próprio Cícero – como um

homem provido, também, dessas qualidades.

Como já discutido, o discurso Pro Marcello tem o objetivo de enaltecer a figura de

César. O louvor a alguém é uma característica própria do gênero epidíctico laudadório, no

qual tal discurso é classificado. Dentre as qualidades do ditador apresentadas por Cícero para

que César seja louvado, estão a nobreza de caráter e a virtude. Sobre ambas, Aristóteles

pondera:

O nobre é aquilo que é tão desejável para o seu próprio interesse quanto digno de elogio, ou é tão bom quanto agradável, pois é bom. Se essa é a definição correta de Nobre, segue-se que a virtude deve ser nobre, visto que ela é tanto uma coisa boa quanto louvável. A virtude é, de acordo com o senso comum, uma faculdade de dar e preservar coisas boas, ou uma faculdade de conferir muitos grandes benefícios, e benefícios de todos os tipos, em todas as ocasiões. As formas de Virtude são a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a generosidade, a gentileza, a prudência e a sabedoria. (2007, p.51).

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Para o filósofo, então, a virtude é uma qualidade nobre já que se apresenta como boa e

também louvável, ou seja, boa de se ter e digna de ser louvada. Pensando-se nisso, para

analisar o Pro Marcello, é fácil notar que, por vários momentos do discurso dirigido a César,

encontram-se referências a atitudes, características e realizações virtuosas do ditador, segundo

apontam as palavras do orador.

Ao dizer, por exemplo, que atos realizados por César são considerados atos justos, o

orador aponta uma virtude do ditador. Entende-se, nesse contexto, ser a justiça uma virtude

assim como a apresenta Aristóteles em sua Retórica. Logo, o ditador seria virtuoso e teria

nobreza de caráter, digna de ser louvada, como assim faz Cícero no discurso.

Aristóteles também afirma ser a virtude, entre outras características, beneficente.

Assevera, portanto, serem os tipos superiores de virtudes aquelas que se mostram úteis para os

outros. Então, indica a justiça e a coragem como virtudes elevadíssimas e, segundo ele, os

homens que as possuem em alto grau são homens honrados. Entre outros fatores, porque

“coragem é útil aos outros na guerra e a justiça é útil tanto na guerra quanto na paz” (2007,

p.51).

Em seguida a essas duas virtudes, diz o filósofo vir a generosidade, em terceiro lugar

de importância, dentre todas as virtudes que possam existir.

Ao discursar, Cícero apresenta, por meio de palavras por ele escolhidas no léxico de

sua língua, essas qualidades como características do ditador. Tais vocábulos estão presentes,

por exemplo, no excerto a seguir, no qual o orador mostra ser louvável a atitude de clemência

de César em relação aos partidários de Pompeu, como o foi o próprio Marcelo, pois mesmo

depois de conseguir vitória, o ditador não derramou sangue desnecessário, ao contrário,

preservou a seu lado muitos dos que, anteriormente, haviam sido seus adversários. Assim

observa-se

Cetera cum tua recordabere, etsi persaepe virtuti, tamen plerumque

felicitati tuae gratulabere: de nobis, quos in republica tecum simul

solvos esse voluisti (...). (VI, 19)

(Quando lembrares os teus outros feitos, ainda que muito

frequentemente (te louves) da tua virtude, porém, na maior parte do

tempo, parabenizará à tua felicidade: de nós, que, na República,

quiseste que fôssemos salvos, juntamente contigo...)

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Dando continuidade às colocações de Aristóteles: o filósofo grego diz que aquilo

originado na virtude é, assim, também nobre, pois tende à virtude. Do mesmo modo

os efeitos da virtude, isto é, os sinais de sua presença e os atos aos quais ela conduz. Visto que os sinais da virtude, o os atos que se assemelham a ela são o símbolo que fazem ou fizeram dele o homem virtuoso, são nobres, segue-se que todos os atos ou sinais de coragem, e tudo o que é feito corajosamente, devem ser coisas nobres, assim como o que é justo e as ações feitas merecidamente. (ARISTÓTELES, 2007, p. 52).

Referindo-se à coragem de César, sobre vários atos realizados por este, o orador diz

que o ditador estará ciente e parabenizará sua própria atitude corajosa e, assim, virtuosa. Para

isso, utiliza o termo virtus – palavra que aparece em outros momentos do discurso – que, entre

outras acepções, pode ser traduzida pela palavra coragem.

O sentido etimológico dessa palavra seria “força”, uma característica advinda do

próprio homem, o vir, termo também utilizado em outros momentos do discurso para referir-

se ao destinatário.

No dicionário de Saraiva (1993, p. 1282) virtus, -tutis aparece como “força corpórea,

robustez, vigor”; “ânimo, valor, coragem”; “força d’alma, energia"; “virtude (em geral), amor

e practica do bem”; “boas qualidades moraes, virtude, mérito”; “poder de eloquência em um

orador”.

Presentes em Gaffiot (1934) estão as seguintes definições: qualidades que fazem o

valor do homem, quanto à moral e à forma física; caráter distintivo do homem, mérito

essencial virtude, as qualidades, o mérito e valor de qualquer um em qualquer coisa. Mas

também, com arboris, equi...(Cícero), por exemplo: valor de uma árvore, de um cavalo.

Outros sentidos: qualidades morais; qualidades viris, vigor moral, energia; a bravura, a

virtude, a perfeição moral.

Seria César esse vir, dotado de força, vigor, inerente à condição viril, mas que, por

conta da personalidade única e honrada, representa ainda mais tal característica, indo além do

conceito etimológico. Assume, assim, o sentido próprio que é o de valor e coragem; e

também, o sentido moral, que é o de virtude e mérito.

Para esse termo, vir, Gaffiot (1934) apresenta os sentidos de: homem (oposto à

mulher); homem, na plenitude do termo, distinto de homo, ser humano, homem em geral;

personalidade, personagem, homem exercendo um papel na sociedade; marido, esposo. Há

também: o sentido de homem feito (em oposição à criança); soldado; virilidade.

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Ainda no que diz respeito ao termo vir, -i, pode-se encontrá-lo, em Saraiva (1993, p.

1280), como substantivo masculino, que pode significar “homem, varão”; “os homens, o

gênero humano, a humanidade”; “homem feito, adulto”; “homem de caráter”.

Logo, os usos do termo vir, no discurso, remetem ao fato de serem os atos praticados

por César dignos de louvor e exaltação. E assim o faz o orador, reafirmando o que foi visto

em Aristóteles, através do uso desse vocábulo, uma das formas de virtude – que é a coragem.

Nesse caso, uma coragem com força, valor e moral.

Não negando perdão àqueles que estiveram em lado oposto ao seu na luta pelo poder,

mas, ao contrário, sendo com eles clemente e, ainda mais, deixando a seu lado alguns, César,

além da coragem empregada nos feitos realizados durante as batalhas – o que lhe garantiu a

vitória – teve, também a virtus em salvar e colocar junto a si, na República, pessoas como o

próprio Cícero.

Conforme conjecturas de Pereira (1989), o termo virtus é um dos mais complexos, por

estarem nele presentes e unidas ideias gregas e também romanas. Segundo ela, a influência do

sentido grego sobre a evolução da palavra romana é “um dos aspectos mais salientes do

contributo do helenismo.” (p. 409). Contudo, apesar disso, seria um valor “fundamentalmente

romano” (p.399). E também se trata de uma palavra muito antiga na língua latina, estando

presente já na Lei das Doze Tábuas. Sobre seus vários sentidos e formas em que foi

empregada a palavra, a autora faz várias incursões, começando pelo sentido primitivo.

Pereira diz já ter sido atestado, em texto do próprio Cícero, ter derivado a palavra

virtus, -tutis da palavra vir. Acrescenta a seguir, que a palavra, por isso e por ter o sufixo –tut

– indicando um estado, significa, então, “‘ser homem’ no sentido de ‘ser homem direito’” (p.

400). Seria esse o seu sentido primitivo.

Pereira ainda reflete sobre ser a virtus romana muito parecida com a da aretê dos

gregos:

Do sentido restrito de ‘valentia’, ‘coragem’, sobretudo na acepção militar, passando pelas qualidades de caráter, a evolução da virtus romana é muito semelhante à da aretê grega, que, por sua vez, percorre um longo caminho, desde o campo da acção bélica e da palavra ajustada, dos heróis da Ilíada, ao sentido preciso e profundo de ‘virtude’ que assume a partir de Sócrates. (PEREIRA, 1989, p. 409).

Sobre o termo grego aretê, Miguel Spinelli (2014, p. 11 e 12) reflete, no estudo

intitulado “A aretê filosófica de Platão sobreposta à do éthos tradicional da cultura grega”:

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Em sentido amplo, por aretê, os gregos designavam qualquer boa qualidade conformada tanto com dotes e valores inerentes e/ou agregados (anexados) aos seres e aos objetos ou coisas, quanto com o bem ou a excelência almejada e presente, por anuência ou concessão, em qualquer prática, ação ou conduta. Distante do que a virtus dos latinos veio a significar, a aretê dos gregos ultrapassava qualidades de um sujeito humano em particular, quer a título de requisição para o exercício de uma função quer para o ornamento público, como mera vestimenta de um modelo. Aqui, enfim, o significado mais amplo e saliente, sobretudo expressivo, do termo aretê entre os gregos: levar – no que implica habilidade, competência, destreza, e, por suposto, instrução e educação – para dentro de algo, a título de uma adaptação, adequação ou ajuste em termos de excelência possível e plausível, uma qualificação condizente ou consoante à natureza deste algo,(...).

Pode-se observar que, conforme o que se vê no discurso, César realizou diversos feitos

e teve comportamentos que lhe conferiram essa virtus, apontada por Pereira, isto é, deram a

ele essa característica de ser um “homem direito”, um homem honrado, com coragem, força

de caráter e tudo o mais que o vocábulo possa lhe atribuir.

Os termos virtus e vir ocorrem em várias passagens do discurso Pro Marcello. O

substantivo vir em (Grifos Nossos):

- Talem virum (I, 2): “tal homem”, como uma referência a Marcelo.

- Cum summis vires (III, 8): “com supremos homens”, com referência a não comparar

César com homens notáveis, mas, sim, com um deus.

- C. Marcelli, viri opitimi (IV): “de Caio Marcelo, ótimo varão”, com relação às

lágrimas de Caio Marcelo.

- (...) reliquos viros amplissimos (V, 13): “outros varões muito eminentes”, fazendo

referência a terem os Senadores, ao conservar Marcelo na República, pelos pedidos que

fizeram, restituído o próprio Cícero e, também, outros homens eminentes.

- (...) in conservandis bonis viris (VI, 20): “de manter bons homens”, em relação ao

fato de César conservar alguns homens probos, mesmo que tenham pecado.

E o substantivo virtus em (Grifos Nossos):

- Et certe in armis milutum virtus (II, 6): “E certamente o valor do soldado nas

guerras”, a respeito do fato de que o valor dos generais é distribuído por muitos. Os

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guerreadores têm valor, sim, assim como tudo que contribui para o andamento de uma guerra,

mas a ação de César, o que esse general fez deve ser reivindicado, quase tudo para ele. Ele

deve ser o maior responsável.

- Praestantem nobilitate, ingenio, virtute, (...) iacentem, (...) (III, 8): “que jaz valoroso

pela nobreza, pelo engenho, pela virtude”, a respeito de ter sido César capaz de levantar, de

erguer o adversário que jaz, sim, mas com valor.

- Etsi persaepe virtuti (...) (VI, 19:) “ainda que muitas vezes de (tua) virtude”, quando

Cícero diz a César que o ditador, quando se parabenizar, ao recordar da própria virtude e

coragem, por seus feitos, congratulará mais aqueles que salvou junto dele. No caso, Cícero e

os outros adversários, pois isso é de singular sabedoria.

- Ut haec virtute donata (...) videantur (VI, 19): “que estas coisas parecem ter sido

dadas pela virtude”, porque esse ato – a clemência – parece ter sido dado pela virtude do

homem – César. Enquanto os outros feitos, pela sorte – Fortuna.

- Ne tua divina virtus (VIII, 26): “para que tua divina virtude”, quando o orador exorta

César a se precaver para que os seus atos clementes não estacionem apenas na admiração. Ele

precisa alcançar a glória que, segundo o orador, é a ilustre fama dos serviços prestados. E,

conforme Cícero, para isso, será necessária a reconstrução da pátria, porque esse é um

benefício maior. É ele que dará a divulgação e, consequentemente, a glória e a imortalidade.

Sobre o vocábulo virtus, na retórica, Lausberg (1982, p. 87-88, §28) coloca ser a arte

que um indivíduo possui e que comprova na prática

com o dom de levar a cabo, com sucesso e repetidas vezes, empresas importantes do ponto de vista social (ou que são, pelo menos, assim consideradas por convenção). Essas empresas, que podem ser repetidas sem restrição, visam ao serem realizadas, a perfeição (...)

A perfeição seria, então, a virtus. Ainda, segundo Lausberg (p. 116, §95): “Quando se

falta a uma virtus, sem que uma licença o justifique (...) incorre-se num vitium (....).

Na passagem abaixo, do texto o orador diz que César também congratulará a si próprio

– do mesmo modo como está sendo louvado por Cícero, através do discurso – sendo feliz por

ter salvado os próprios inimigos. O discursador colocará que a felicidade do ditador virá de

alguns atos por ele praticados, dos quais César se lembrará.

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de nobis, quos in republica tecum simul salvos esse voluisti, quoties

cogitabis, toties de maximis tuis beneficiis, toties de incredibili

liberalitate, toties de singulari sapientia tua cogitabis: quae non modo

summa bona, sed nimirum audebo vel sola dicere (VI, 19).

( ...em nós, que, na república, quiseste que fôssemos salvos,

juntamente contigo, tantas vezes refletirás, quantas vezes lembrarás de

teus vastíssimos favores, tantas vezes lembrarás de tua inacreditável

generosidade, tantas de tua singular sabedoria: bens que ousarei

nomear não somente supremos, mas, seguramente, até únicos)

O termo voluisti “quiseste”, na passagem acima, por exemplo, pode ser analisado

como uma palavra escolhida pelo orador para colocar a responsabilidade pelos feitos citados,

única e exclusivamente nas mãos daquele para quem dirige o discurso. Ter salvado os

próprios inimigos e ter concedido esse benefício são atos que somente César teria desejado

fazer, com sua própria e única voluntas “vontade”. O vocábulo voluisti também tem o sentido

próprio de querer, desejar, ter vontade de algo, ter intenção, consentir. Assim, com o uso,

Cícero deixa clara a intenção, o desejo, a vontade do ditador ao consentir a salvação, a

permanência e, até mesmo, a companhia daqueles seus opositores políticos.

Outro termo interessante é a palavra beneficium, -ii, que aparece no discurso,

inicialmente, no capítulo I, parágrafo 3, na expressão dato beneficio. Esse termo, utilizado

como referência ao perdão dado a Marcelo, significa a graça, o favor, o benefício, o bem que

se faz a alguém ou um serviço prestado, também ao Estado.

Se César consentiu que partidários políticos de Pompeu – seu inimigo, como visto

anteriormente – fossem salvos, foi porque o quis e foi um benefício concedido; foi mais um

ato virtuoso praticado por ele. Outros termos são, também, escolhidos por Cícero para

apresentar essa virtude. Verifica-se, no mesmo excerto, os termos maximis beneficiis,

incredibili liberalitate, singulari sapientia e, igualmente, summa e sola.

Beneficiis, de beneficium, por exemplo, tem o sentido próprio de benefício, favor,

serviço prestado; liberatitate, de liberalitas tem o sentido próprio e moral de bondade, doçura,

indulgência, afabilidade, derivando daí liberalidade e generosidade; sapientia, por sua vez,

tem como sentidos figurados, aptidão, capacidade e saber, podendo também designar

prudência, bom-senso, inteligência e moderação.

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No dicionário de Gaffiot, tem-se, ainda, além das já elencados, para beneficium (de

bene + facio), as definições: distinção, privilégio. O termo beneficium, -ii, além disso,

aparece em Saraiva (1993, p. 145), numa acepção primeira, como benefício e, em outras

acepções, como favor, graça, mercê, bem e, aparecendo em ablativo, como “à sombra de,

pelas circunstâncias (...), com favor de”. E, ainda, como “qualquer bem que se faz; serviço

prestado ao Estado”; “direito, privilégio”.

Esses substantivos são, respectivamente, adjetivados por maximis, superlativo de

magnus, -a, -um, que significa, propriamente, elevadíssimo, vastíssimo, altíssimo e pode

significar também, importantíssimo; por incredibili, de incredibilis, -e, que significa incrível,

inacreditável e por singulari, de singularis,-e, que tem o sentido próprio de singular e único.

Cícero diz, realçando por meio desses termos, que César irá congratular-se não só dos

feitos corajosos, mas também parabenizará a própria felicidade por ter realizado ações

louváveis, como os máximos e importantes favores prestados, as inacreditáveis generosidades

e a singular sabedoria (ou prudência) empreendidos para a efetivação dessas ações.

César, com isso, ficará feliz ao realizar os atos louváveis, assim como ficam felizes os

receptores desses feitos – aqueles que foram beneficiados pela clemência do ditador.

Em relação aos méritos que tenha o beneficiário (Marcelo) da ação, para recebê-la,

Santamaría diz que o orador muitas vezes o deixa de lado para exaltar os presentes no

beneficiador (César). Ao que o autor chama de destaque dado à generosidade do beneficium.

(SANTAMARÍA, 2014).

Esse benefício pode, assim, ser o benefício feito ou o benefício recebido. Em relação à

importância do recebido, pode-se dizer que Cícero fez menção, no discurso, com menos

destaque, do que a referência à importância do benefício dado.

Como o discurso tem o teor, principalmente elogioso e de louvor, é coerente que seja

mais enaltecido o benefício dado e quem o deu - mesmo sendo o benefício recebido o mesmo

que o dado. Assim, apresenta-se como mais importante, não o fato de Marcelo ter sido

perdoado e de ter sido devolvido à República. O mais relevante é a ação de César em perdoá-

lo.

Entre uma coisa e outra há, na verdade, um limite tênue. Contudo, pode-se notar no

excerto abaixo, por exemplo, o maior relevo conferido à atitude de César.

(...) ex quo profecto intellegis quanta in dato benefio sit laus, cum

accepto sit tanta gloria. (Capítulo I, parágrafo 3).

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(...do que, seguramente, entendes quanto louvor haja no benefício

dado, quando tanta glória exista no recebido)

Vê-se que, havendo maior glória no benefício recebido, aumenta o valor do benefício

oferecido. O que César fez, perdoando Marcelo, é ainda mais importante, por ser a volta de

Marcelo muito relevante e gloriosa para a República, para Cícero e, por que não, para o

próprio César.

Porque o julgamento de Caio César, para chegar ao perdão, conforme coloca Cícero, é

“gravíssimo e máximo”. É um julgamento, então, justo e virtuoso. Confere-se isso nas

palavras abaixo:

(...) tuo iudico gravíssimo et maximo (Capítulo I, parágrafo 3)

(...por teu julgamento gravíssimo e máximo)

Continuando, Cícero diz ser César, por esse ato (o benefício) rico de salvação, por

fazer tão feliz, como ele mesmo está, àqueles a quem concedeu favores. Observa-se tal fato

nas palavras seguintes:

Est vero fortunatus ille cuius ex salute non miror paene ad

omnes, quam ad ipsum ventura sit (...). (Capítulo I, p. 4).

(Verdadeiramente, é rico de salvação aquele do qual a alegria

vem não menor para quase todos, do que a felicidade para ele

próprio...)

Mais uma vez Cícero aponta César como virtuoso e honrado, pois, segundo

concepções aristotélicas, generosidade, sabedoria, prudência e magnanimidade, como visto,

são formas de virtudes.

Escolhendo utilizar as qualidades apresentadas acima e as amplificações, através dos

adjetivos a elas conferidos, o orador está empregando características próprias do gênero do

discurso proferido por ele – o gênero epdíctico.

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De acordo com as descrições de Aristóteles, usar amplificações e exaltar as virtudes e

nobreza de caráter são alguns recursos que podem ser empregados nesse tipo de discurso,

quando se tratar de um louvor.

O uso de summa e de sola, igualmente, são exemplos de escolhas apropriadas ao

gênero do discurso. Ao chamar de bens supremos e únicos os feitos – salvar ou ser clemente

com os inimigos – amplifica o valor dado às realizações. Elas são nobres, pois são dignas de

serem lembradas e são possuídas por uma única pessoa:

As coisas dignas de serem relembradas são nobres, e quanto mais dignas disso, mas nobres serão. Assim são as coisas que permanecem mesmo após a morte; aquelas que o são sempre dizem respeito à honra; excepcionais e aquelas que são possuídas por uma única pessoa. Estas últimas são mais fáceis de ser lembradas prontamente do que outras. Dessa maneira, elas são coisas que não trazem lucro, visto que são mais adequadas ao homem honrado. (ARISTÓTELES, 2007, p. 53).

Isso porque, para o grego, ser beneficente é uma virtude e se os mais elevados

benefícios são os que são mais úteis aos outros, são, também, mais virtuosos. César, desse

modo, com as colocações do orador, é apresentado como muito virtuoso, tendo,

consequentemente, muita nobreza.

No início do exórdio, Cícero, talvez entendendo que precisava justificar ter ficado

tanto tempo em silêncio, começa o discurso com uma tentativa de explicar a questão. Isso

porque não se posicionar, não falar naquele momento poderia dar indícios de que ele não seria

adepto à política de César.

Para isso, usa, então, palavras fortes que podem definir veementemente a sua posição:

dolor, -ris; timor,-ris; verecundia, -ae. Pode-se dizer que inicia a fala já utilizando, por meio

dessas escolhas, uma característica própria do gênero epidíctico – a amplificatio

“amplificação”.

A amplificação é um recurso retórico, como visto, para dar relevo a feitos ou

características daquele para quem o discurso é dirigido. Contudo, o uso de dolor, timor e

verecundia poderia ter a finalidade de reforçar um defeito no orador, com o objetivo de

destacar, assim, ainda mais, as ações e a benevolência de César.

A dor, o temor e a vergonha seriam tão elevados que teriam impedido o orador de se

pronunciar publicamente durante anos, parecendo, desse modo, não aderir à causa do ditador.

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Coloca, também não ser o temor o responsável, pois, se o fosse, estaria remetendo a isso a

responsabilidade de seu silêncio a César.

Sobre o silêncio e o ficar calado, utiliza os termos silentium, -i e tacitus, - i, no

capítulo I, parágrafo primeiro:

Diuturni silenti, patres conscripti, quo eram his temporibus usus—non

timore aliquo, sed partim dolore, partim verecundia—finem hodiernus

dies attulit, idemque initium quae vellem quaeque sentirem meo

pristino more dicendi. Tantam enim mansuetudinem, tam inusitatam

inauditamque clementiam, tantum in summa potestate rerum omnium

modum, tam denique incredibilem sapientiam ac paene divinam,

tacitus praeterire nullo modo possum.

(O dia de hoje, senadores, trouxe o fim de um longo silêncio de que eu

vinha usando nestes tempos - não por algum temor, mas em parte pela

dor, em parte pela vergonha – e o mesmo (dia) trouxe o início de dizer

o que eu queria e (o que eu) sentia, de acordo com meu antigo

costume. De fato, tanta benevolência, tão inusitada e inaudita

clemência, tanta moderação no supremo poder de todas as coisas.

Enfim, tão inacreditável e quase divina sabedoria, eu, de modo algum,

posso, calado, negligenciar.)

A palavra silentium, -i, substantivo neutro, tem o sentido primeiro de silêncio,

podendo, em sentido particular, significar repouso, descanso, ociosidade e, também, sombra.

E o termo tacitus, -a, -um, particípio passado do verbo taceo, significa tácito, ou seja, aquele

que cala, que está calado, silencioso ou que guarda silêncio, que é discreto, mudo.

Seguindo, o orador tece, por todo o discurso, elogios, muitas vezes amplificados, sobre

o caráter, a sabedoria e os feitos de Júlio César.

Nesse primeiro parágrafo mesmo, ele utiliza as expressões, tantam mansuetudinem,

tam inusitatam inauditamque clementiam, tantum modum, summa potestate e tam

incredibilem ac paene divinam sapitentiam. Nelas, o advérbio tam, os pronomes tantam e

tantum e o superlativo summa dão relevo, também, às qualidades do ditador, exaltadas por

Cícero.

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No parágrafo 3, do capítulo I do discurso, a amplificação é notada, da mesma forma,

em características do ato de César ao perdoar Marcelo, nos termos iudico gravissimo et

máximo “julgamento gravíssimo e máximo”, quanta laus in beneficio dato “quanto louvor no

benefício dato”. Essas expressões utilizam, igualmente, os superlativos gravíssimo e máximo,

e o adjetivo interrogativo, exclamativo quanta para destacar o benefício.

A respeito do substantivo laus, -dem, em Gaffiot (1934), encontra-se estas definições:

elogio; estima, glória, louvor; consideração. Seria, assim, o louvor, a glória de César, em ser

clemente, intensificado por quanta.

O superlativo gravissimus, -a, -um, por exemplo, é o superlativo do adjetivo graves, -i

e tem, entre os sentidos próprios, pesado e grave e como sentido figurado, forte, que tem peso,

autoridade; aquele que é sério, importante, considerado e digno e, também pode significar

severo, rígido, rigoroso.

Ora, o orador, diz ter o julgamento esse relevo e destaque, pois não é qualquer

julgamento. É um julgamento forte, importante e rigoroso.

Sobre a palavra clementia, essa virtus que é a mais exaltada no discurso, Gaffiot

(1934) dá a definição: é a clemência; a bondade, doçura; há, ainda, a deusa Clementia.

Pereira (1989), em uma alusão à homenagem que foi feita a César relacionando à

deusa, pode-se ler ser a palavra como um termo

político especialmente adequado a finalidades de propaganda, goza de uma aura extraordinária no tempo das guerras civis e fica particularmente ligado à figura de César, a quem o Senado honra com um templo dedicado à Clementia Caesaris, onde a personificação de Clementia (então realizada pela primeira vez) aparecia de mãos dadas com o general. (PEREIRA, 1989, p. 360).

Segundo a autora, Cícero faz amplo apelo a essa virtude presente em César nos

discursos já citados produzidos durante a ditadura de César: “Mas onde o grande orador

multiplica os apelos à clementia do ditador é nos discursos pronunciados entre 46 e 45 a.C.,

Defesa de Marcelo, Defesa de Ligário, Defesa de Rei Dejótaro.” (PEREIRA, 1989, p. 361).

No capítulo I, quarto parágrafo, o orador diz ser César, por sua ação clemente, mais

digno do merecimento do que Marcelo talvez o seja. Aponta essa sua crença, colocada por

meio da própria amplificação que é notada pela reiteração de qualidades conferidas ao

ditador, mas também pelo uso que faz da pergunta retórica.

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Quis enim est illo aut nobilitate aut probitate aut optimarum artium

studio aut innocentia aut ullo laudis genere praestantior? (Capítulo I,

parágrafo 4).

((pois) quem é, de fato, mais notável do que ele, ou pela probidade ou

pela inclinação às belas artes ou pela retidão ou por algum tipo de

mérito?)

A amplificação pode ainda ser notada, quando são caracterizados, com adjetivos que

denotam grandeza, os povos e lugares dominados por César. No capítulo III, paráragrado 8,

pode-se confirmar essa assertiva, através dos sintagmas abundantes omni genere copiarum

“abundantes em todo gênero de recursos”; innumerabilis multidudine “inumeráveis pela

multidão” e infinitas locis “infinitos pelos lugares”.

Domuisti gentis immanitate barbaras, multitudine innumerabilis, locis

infinitas, omni copiarum genere abundantis: sed tamen ea vicisti, quae

et naturam et condicionem ut vinci possent habebant. Nulla est enim

tanta vis, quae non ferro et viribus debilitari frangique possit. Animum

vincere, iracundiam cohibere, victoriam temperare, adversarium

nobilitate, ingenio, virtute praestantem non modo extollere iacentem,

sed etiam amplificare eius pristinam dignitatem, haec qui facit, non

ego eum cum summis viris comparo, sed simillimum deo iudico.

(Domaste povos bárbaros, pela ferocidade; inumeráveis, pela

multidão; infinitos, pelos lugares; em todo gênero de recursos

abundantes: mas, todavia, venceste essas coisas, que tinham não só

natureza como também condição para que pudessem ser vencidas. Na

verdade, nenhuma fortaleza é tamanha que não possa ser atenuada e

quebrada pela(s) arma(s) ou pelas forças. Vencer o desejo, coibir a ira,

conter a vitória, não somente erguer o adversário que jaz admirável

pela nobreza, pelo engenho e pela virtude, mas também ampliar a sua

antiga dignidade: quem realiza essas coisas, eu não o comparo com

ilustríssimos homens, mas o tenho muito semelhante a um deus.)

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No capítulo 9, mais destaque, por meio do uso dos advérbios, intensificando,

fortalecendo os feitos de clemência de César para com seus adversários, mesmo depois de

vencê-los quando poderia até mesmo condená-los à morte. Os advérbios são: clementer “com

clemência”, mansuete “brandamente”, iuste “com justiça”, moderate “com limite”, sapienter

“com sabedoria”. Apesar de esses advérbios não denotarem, exatamente, intensidade, eles

intensificam, de uma certa forma, a virtus de César em ser clemente.

Continua a colocar em relevo as atitudes de César, quando, no capítulo VI, parágrafo

17, confere-lhe a possibilidade de almejar, caso fosse possível, trazer os mortos na guerra de

volta do mundo dos mortos, já que conserva com vida todos aqueles que pôde. Assim

observa-se no excerto abaixo, já mencionado anteriormente:

(...) excitaret ab inferis multos, (...)

(..Faria sair muitos do mundo dos mortos...)

Eximindo o ditador da culpa pela explosão da guerra civil, imputa aos diis imortalibus

“aos deuses imortais” tal feito (capítulo VI, parágrafo 18). Diz, apesar disso, estarem os

deuses saciados, pois a salvação foi confiada, por eles, ao vencedor da guerra – César.

(...) vel placati iam vel satiati aliquando omnem spem salutis ad

clementiam victoris et sapientiam contulisse. (Capítulo VI, parágrafo

18)

(...ou abrandados ou já satisfeitos, enfim, por terem confiado toda a

expectativa de salvação para a clemência e para a sabedoria do

vencedor)

Remetendo à lembrança que César terá dele mesmo futuramente – e, possivelmente, os

outros também terão – Cícero continua com a série de adjetivações, amplificando os favores

do ditador.

No capítulo VI, parágrafo 19, tem-se expressos em tuis maximis beneficiis “de teus

máximos benefícios”; incredibili liberalitate “de tua incrível liberalidade”, singulari sapientia

“de tua singular sabedoria”, aos quais Cícero declara ousar denominar não somente de

supremos, mas de únicos.

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(...) quae no modo summa bona, sed nimirum audebo vel sol dicere.

(Capítulo VI, parágrafo 19).

(....bens que arriscarei chamar não só de supremos, mas, certamente,

de únicos)

Adjetivando, extremamente, a glória na ação de César, continua, no mesmo parágrafo:

Tantus est enim splendor in laude vera, tanta in magnitudine animi et

consilli dignitas. (Capítulo VI, parágrafo 19).

(De fato, existe tanto esplendor no verdadeiro louvor e tão grande

dignidade na grandeza de espírito e de sabedoria.)

Fazendo referência àqueles que muito temeram a autoridade de César e dele foram

adversários, o orador diz não ser isso culpa do ditador. Contrariamente, é uma grande glória

que a maioria não o tenha temido. Mais uma vez amplifica o sentimento da maioria em

relação a César, ou seja, o não temor. Confere esse fato, unicamente, à grandeza de louvor de

César.

(...) summa laus, quod plerique minime timendum fuisse senserunt.

(Capítulo VI, parágrafo 20).

(...É tua extrema glória, o fato de muitos avaliarem que não deves ser

receado em nada.)

Acrescentando mais realce, diz também ser César muito desejoso de glória, mas que

essa – a clementia - talvez não seja a maior. A maior seria, então, a reconstituição da

República. A glória seria o que o orador chama de “ilustre e divulgada fama”.

E para conseguir essa fama somente reconstituindo a pátria. Seriam, então, os serviços

prestados aos cidadãos, à pátria e a toda a raça de homens, que o levariam a ser famoso, logo,

glorioso.

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(...) siquidem gloria est illustris ac pervagata multorum et magnorum,

vel in suos cives, vel in patriam, vel in omne genus hominum, fama

meritorum. (Capítulo VIII, parágrafo 26).

(... já que a glória é a sublime e anunciada fama de muitos e grandes

trabalhos ou para com os cidadãos, ou para com a pátria, ou para com

todo o gênero de homens.)

O relevo em determinados pontos do discurso não é somente concernente a amplificar

as ações já realizadas do ditador. Ele também é dado a ações que podem ainda ser efetivadas

por Júlio César, para que o mesmo alcance a glória póstuma, isto é, para que atinja a

imortalidade.

O termo gloria, -ae é assim definido em Gaffiot (1934): glória, renome, reputação,

desejo de glória. Assim, a reputação, os louvores futuros, conseguindo, desse modo a

imortalidade, seriam produzidos pela glória alcançada.

A palavra gloria, segundo Pereira (1989) não tem uma etimologia conhecida e pode

ser documentada desde Ênio. A autora aponta, também, ser um termo muito usado em Cícero,

que o define e confessa o seu amor à glória. Associa-a o orador à virtus, procurando esta, na

verdade, o louvor e a glória, porque alcança a glória o indivíduo considerado bom pelos bons.

Logo, de acordo com Pereira (1984, p. 335), “a gloria é público reconhecimento das

qualidades do cidadão”.

O orador, no Pro Marcello, também dá destaque àquilo que possa acontecer, caso as

ações de reestabelecimento da pátria não se realizem. Nota-se isso, quando refere-se à

discórdia que poderá existir entre os homens que ainda estão por nascer, sem ter a pátria

reconstituída. O excerto abaixo denota a intensificação dessa discórdia:

Erit inter eos etiam, que nascentur (...) magna dissensio (...) (Capítulo

IX, parágrafo 29)

(Além disso, haverá, entre aqueles que nascerem, grande discórdia.)

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O substantivo dissensio, -onis além de ter a acepção de discórdia, pode também

significar separação e oposição. Assim, pode-se inferir que esteja o orador fazendo um alerta,

quem sabe, sobre o fato de que os homens vindouros não fiquem do lado do ditador, caso ele

não faça o que deve fazer.

O adjetivo magna, do superlativo magnus, -a, -um é o item lexical encarregado de

atribuir tamanha intensificação a esse fato. Ele está colocando em destaque ou aumentando o

tamanho da discórdia, da oposição que poderão fazer aqueles nascidos depois, sem que César

tivesse reconstituído a República. Cícero eleva, assim, a oposição e o sentimento ruim que

terão esses juízes vindouros do ditador.

Igualmente é destacada a vontade e animus de César em se tornar imortal por suas

ações. O destaque é efetivado por meio do verbo flagravit, presente no capítulo IX, parágrafo

27, do qual já se falou. Ele se refere ao estado de espírito e à voluntas de Júlio César.

Para o vocábulo animus, -i, a definição pode ser, espírito pensante, mas, também, pode

significar coração, vontade, desejo, inclinação, paixão. O verbo referente a ele vem de flagro,

significando arder em chamas, estar em brasa, entre outros sentidos. Estes, de fato, são

sentidos denotativos de algo forte, intenso e extremo. Assim, o sintagma animus flagravit faz

referência a um intenso e profundo sentimento e vontade do ditador em ser imortal.

O relevo, além disso, é dado a Marcelo, pelo amigo orador, quando agradece ao

ditador pela sua clemência e diz ser ele – Cícero – o mais indicado a fazer esse

agradecimento, devido à grande amizade existente entre o orador e Marcelo, cuja verdade é

notória.

Cícero coloca na peroratio:

(...) C. Marcello, optimo et amantissimo fratri. (Capítulo XI, parágrafo

34)

(... a Caio Marcelo, esplêndido e muito querido irmão.)

Optimo de optimus, -a, -um, superlativo do adjetivo bonus, -a, -um “bom, boa” e

amantissimo de amans, -antis, particípio presente do verbo amo irão atribuir a Marcelo uma

categoria de excelente amigo e de muito querido por Cícero.

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Dessa forma, o orador além de elevar as qualidades do amigo e o seu próprio

sentimento por ele, amplia e intensifica a ação do ditador em fazer clemência. Ela não foi

destinada a qualquer um e, sim, a um homem com merecimento, com méritos.

Portanto, também Cícero se coloca merecedor e se sentindo honrado com tal feito,

julgando-o como o máximo dos favores que o ditador poderia realizar. Nesse ponto, usa

novamente a amplificatio:

(...) maximus hoc facto cumulus (...) (Capítulo XI, p. 34)

(... com este teu feito, o máximo dos favores ...)

Entre as definições para cumulus, -i, verifica-se o sentido de excesso de medida e para

maximus, superlativo de magnus, -a, -um, pode-se ter a definição de o máximo, ou grande

quantidade de favores. Nesse caso, o maior de todos os favores, de todos os benefícios

concedidos, principalmente, ou unicamente, a Cícero.

Desta feita, a despeito de, no exórdio, fazer referência ao benefício prestado e

recebido, Cícero termina o discurso dando ênfase, de forma definitiva, a ele.

Ele é, então, nobre por fornecer benefícios, por ser generoso, por agir com sabedoria e

prudência em relação aos outros, porque tudo isso é virtude, como se observou.

Aristóteles diz, igualmente, serem nobres “todas as ações feitas para o interesse dos outros, visto que menos do que outras ações sejam feitas para o interesse próprio, isto é, todo êxito que beneficie os outros e não a si próprio; e todos os préstimos feitos aos benfeitores, pois isto é justo, e em geral, as boas ações, visto que elas não estão direcionadas ao próprio bem. (ARISTÓTELES, 2007, p.52).

Contudo, observando-se outros pensamentos do filósofo grego, como os que se

seguem, pode-se pensar que vão de encontro ao que coloca Cícero na passagem do discurso

aqui analisado. Assim, Aristóteles (2007, p. 53) apresenta como também sendo nobres: “a

nobreza de justiça e as ações justas são qualidades nobres, pois dão mais prazer às outras

pessoas do que aos seus possuidores”. E, mais adiante: “É nobre vingar-se dos inimigos e não

chegar a um acordo com eles, pois a vingança é justa, e o justo é nobre, e não render-se é um

sinal de coragem.”.

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No excerto, já apresentado anteriormente, o orador diz claramente que o próprio César

terá prazer sobre os seus feitos e um desses feitos é justamente não ter se vingado dos

inimigos, como já exposto. Assim verifica-se nos termos em destaque: ...tamen plerumque

felicitatituae gratulabere: de nobis quos in republica tecum simul salvos esse

uoluisti..,.(VI,19, Grifo Nosso), “porém, na maior parte do tempo, louvarás a tua felicidade:

em nós, que, na República, quiseste que fôssemos salvos, juntamente contigo...”.

Sim, nesse caso, César deve sentir mais prazer sobre seus feitos nobres do que devem

sentir aqueles que dele receberam os benefícios e, de fato, ele foi clemente com os inimigos.

Todavia, é bom refletir se essas ações seriam, realmente, apenas pela sua máxima

generosidade ou bondade.

Os benefícios foram concedidos, vários inimigos receberam clemência, alguns

ficaram, inclusive, ao lado do ditador. Contudo, a generosidade e a sabedoria apontadas por

Cícero nessa questão poderiam estar a favor do próprio benfeitor.

É óbvio que os atos foram, de fato, realizados, mas muitas vezes com intenções, pois,

por exemplo, colocar, ao seu lado, antigos inimigos, como Cícero, poderia auxiliá-lo no

governo. Ao contrário, agir com “mão de ferro” poderia não favorecê-lo. Assim pensa

Rostovtzeff (1983, p. 134):

Após a vitória contra o Senado, conquistada na África no ano de 46 a.C., César tornou-se o chefe do Estado romano, posição que manteve até sua morte em 15 de março de 44 a.C. Não julgou necessário fortalecer a situação recorrendo aos métodos de Mário e Sila, nem procurou destruir todos os que haviam lutado contra ele, ou de cuja lealdade pudesse duvidar. Repugnava-lhe tal atitude e provavelmente julgava que o reino de terror era um meio inadequado pra sustentar qualquer espécie de poder. Pelo contrário, convocou a cooperação de todos os adversários cuja capacidade lhe parecia útil ao Estado, inclusive alguns políticos atuantes como Cícero, Cássio, Marco e Décimo Bruto.

Cícero parece não ter dúvidas sobre isso, mas a intenção era exaltá-lo naquele

momento, diante do Senado e do próprio ditador, porque, além do mais, a exposição sobre ter

o ditador dado clemência a Marcelo foi solicitada, assim como aos outros presentes, pelo

próprio César. E, também, como já apontado, os argumentos para conseguir a persuasão não

precisam ser verdadeiros, necessitam ser somente verossímeis, sob a ótica da retórica

aristotélica, na qual Cícero se inspira.

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O orador diz que o destinatário de seu discurso se felicitará, então, com os próprios

feitos e aponta serem esses atos dignos de louvor, colocando-os como singulares. Logo,

entende-se serem, certamente, virtudes e, por conseguinte, atos de nobreza do ditador,

indicados por Cícero. Tornando-se, desse modo, recursos próprios de um discurso de louvor,

ainda que tais atos apresentem, no cerne, intenções do benfeitor, talvez não muito louváveis, e

sim realizações de boas ações em benefício próprio. Contudo, do modo como é apresentado e

demonstrado no discurso tornam-se críveis e possíveis verdades.

Os exempla são recursos retóricos utilizados para dar também ênfase às realizações de

César. Eles são de uso próprio dos discursos deliberativos, conforme teorias de Aristóteles,

como já apontado, mas também são usados no Pro Marcello.

Viu-se, anteriormente, ter o Pro Marcello uma certa faceta desse tipo de discurso, pois

é apresentada, como sendo relevante, a permanência de César no governo, assim como a

possibilidade dele mesmo em reconstituir a República. Logo, tem, também, intenções

políticas.

O exemplo, uma prova lógica, racional, que tenta persuadir sobre algo racionalmente,

é de cunho indutivo. Logo, quando Cícero cita os fatos ocorridos no passado, está utilizando

esses exemplos, com a finalidade de induzir os fatos que virão no futuro.

No capítulo I, parágrafo 2, cita o próprio ato de clemência a Marcelo – fato já

realizado pelo ditador. Com isso, induz os senadores a verificarem que ele restituiu à

República não só Marcelo, como a ele também – Cícero – e, talvez, a todos os presentes, de

uma certa forma. Esse ato pode ser que garanta participação e voz também no futuro.

M. enim Marcelo vobis, patres conscripti reique publicae reddito, non

ilius solum, sed etiam meam vocem et auctoritatem vobis et rei

publicae conservatam ac restitutam puto. (Capítulo I, parágrafo 2).

(De fato, sendo Marco Marcelo restituído a vós, senadores, e à

república, entendo que foi conservada e restituída para vós e também

para república, não somente a voz e autoridade dele, mas também a

minha).

No capítulo III, parágrafo 8, já citado anteriormente, como exemplos de amplificação,

encontram-se também exempla. O grande general César, no passado, domou povos, com

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grandes multidões, em lugares infinitos, com muitas riquezas. E, além disso, domou a própria

ira para com os opositores derrotados. Um homem capaz disso é capaz de muito mais.

Assim, ao citar essas glórias e vitórias de César, principalmente em ter clemência, o

orador induz à aceitação de que César é um homem de ações extraordinárias, só podendo ser

comparado a um deus. Por isso, deve ser louvado, agora, e pelos vindouros, por esse fato.

A verdade de ser clemente, não somente quando está com ira, mas, principalmente

por, sendo vitorioso, não parecer insolente e soberbo, pois

(...) et in victoria, quae natura insolens et superba est. (Capítulo III, p.

9).

(... e, na vitória, que é de natureza arrogante e altiva.)

Se não o foi nem mesmo sendo vitorioso, é, então, um homem extraordinário em quem

se deva confiar. Ele é, de fato, o único invencível, desse modo, deve-se apoiá-lo. Dando esse

exemplo de virtude e de clemência máxima, Cícero está deixando os ouvintes propensos a

acreditar no que vai continuar dizendo e persuadindo esse auditório a acreditar na

extraordinariedade de César – “patos”.

No capítulo V, parágrafo 13, Cícero aponta aos Senadores que a invencibilidade

conferida a César, por meio da extrema clemência, pode também ser provada como fato de

isentar de crime os seus adversários.

Nesse ponto do discurso, citando tal feito, tece uma desculpa, fortalecendo a intenção

de mostrar, assim, o apoio ao ditador.

Omnes enim, qui ad illa arma fato sumus nescio quo rei publicae

misero funestoque compulsi, etsi aliqua culpa tenemur erroris humani,

scelere certe liberati sumus. (Capítulo V, parágrafo 13).

(De fato, todos que fomos compelidos àquelas batalhas, por um

destino não sei qual, infeliz e nefasto da República, ainda que sejamos

onerados por alguma culpa de erro humano, estamos, certamente,

isentos de crime.)

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Tenta convencer também de que os homens isentos desse crime são dignos de serem

seus aliados. Para tanto, aponta terem quase todos aqueles que se opuseram a César feito isso

ou por ignorância ou por algum temor falso e sem cabimento. Assim confere-se abaixo:

(...) a plerisque ignoratione potius et falso atque inani metu (...)

(Capítulo V, parágrafo 13)

(... pela maioria antes, por ignorância e por receio falso e sem

cabimento ...)

Neque enim ego illa (...) secutus sum arma civilia, (...) (Capítulo V,

parágrafo 14)

(Nem eu, na verdade, segui aquelas guerras civis ...)

Isso aconteceu até mesmo com Cícero e o com o próprio Marcelo, que, segundo o

orador, sempre está em consonância consigo. Induz, desse modo, a crença de que ele, Marcelo

e outros (a maioria) não queriam, na verdade, a guerra. Todos queriam, de fato, a paz.

Portanto, são dignos da clemência de César. E este mais digno ainda, por, sendo vencedor,

amar os autores da paz.

(...) pacis autores diligit (...). (Capítulo V, parágrafo 15)

(...ama os autores da paz...)

Todos esses exemplos, conduzem, tentam levar, induzir a uma direção. Dentro dessa

perspectiva, tem, entre outras intenções, a de exortar César a conservar aqueles que são

probos e a não temer os que ficaram. Isso porque os que ficaram isentos de crimes são amigos

de César.

(...) qui superfuerunt sint amicissimi. (Capítulo VII, p. 21)

(...aqueles que ficaram sejam muito amigos.)

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O exerto abaixo é mais um exemplo

No Capítulo VI, parágrafo 11,

Hunc tu igitur diem tuis maximis et innumerabilibus gratulationibus

iure antepones. Haec enim res unius est propria C. Caesaris; ceterae

duce te gestae, magnae illae quidem, sed tamen multo magnoque

comitatu. Huius autem rei tu idem et dux es et comes; quae quidem

tanta est, ut tropaeis monumentisque tuis allatura finem sit aetas (nihil

est enim opere aut manu factum, quod aliquando non conficiat et

consumat vetustas), ati haec tua iustitia et lenitas animi florescet

quotidie magis, ita ut, quantum operibus tuis diuturnitas detrahet,

tantum afferat laudibus.

(Tu, então, com justiça, antepões este dia, aos teus máximos e

inumeráveis reconhecimentos. Esta ação, de fato é própria apenas de

Caio César; as outras realizadas quando tu eras comandante, aquelas,

certamente, são grandes, mas, contudo, (realizadas) com grande e

numeroso séquito. Deste feito, entretanto, tu és, ao mesmo tempo, não

só chefe como também parceiro; e esta, com certeza, é tamanha que o

tempo há de causar o fim a teus troféus e monumentos (de fato, nada é

feito pelo trabalho e pela mão, que, finalmente, a velhice não dissipe e

não consuma), por outro lado, esta tua justiça e suavidade de caráter

florescerá, cada dia mais, de tal modo que cause aos teus louvores

tanto quanto tempo retirará às tuas obras.)

Conforme se pode entrever na passagem acima, segundo Cícero, o dia no qual César

concedeu a clemência a Marcelo deve ser colocado à frente de todos os feitos até então

realizados pelo ditador. De acordo com o pronunciamento de Cícero, tal ato de clemência a

Marcelo teria sido um dos mais louváveis se comparado a todas as vitórias conseguidas por

César, porque, nesse caso, ele as realizou sozinho, sem o auxílio de nenhuma outra pessoa, de

nenhum outro companheiro. E, ainda mais, diz ser César o único capaz de tamanha ação, com

tamanha benevolência e clemência.

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O orador demonstra ter a intenção de, através de recursos por ele utilizados, apresentar

o feito de Caio César – ser benevolente com Marcelo, concedendo-lhe o perdão e o retorno a

Roma – como de responsabilidade unicamente de César, comparando-o a outras realizações

vitoriosas do ditador, em que os feitos são divididos com terceiros. Ao mesmo tempo,

apresenta o feito como indestrutível e para louvor eterno de sua justiça e caráter, comparando-

os a outros troféus e monumentos (homenagens materiais) de César que, por seu turno, são

destrutíveis.

Usa um argumento verossímil, ou seja, passível de ser entendido como real, para

persuadir o público ouvinte, incluindo o próprio ditador, a acreditar que o ato de perdão a

Marcelo é justo, de caráter incomparável e unicamente referente a quem o praticou. Tenta

conduzir ao raciocínio de que só César é o responsável por tal benevolência, não sendo ela

mérito de mais ninguém.

Desta feita, como se vê, Cícero emprega termos, expressões e construções frasais,

como os citados, que escolhe na língua para pronunciar o discurso. Essa escolha é uma

seleção individual dentro dos recursos existentes no sistema linguístico, que o orador conhece

bem, como se sabe. Sendo assim, ao escolher, está realizando um ato individual, particular e

único para aquele discurso, porque ninguém, nesse sentido, faz as mesmas escolhas

igualmente às que outro faria, assim como refere Fiorin (2008). O próprio Cícero não as faria

da mesma forma como as feitas em outros discursos.

No entanto, Cícero pretende conseguir a admiração dos espectadores, dos ouvintes e,

no caso do Pro Marcello, dos observadores. É para eles que o discurso é direcionado. É claro

que, principalmente, Júlio César é a quem o orador se dirige. Tal fato pode ser conferido

através dos vocativos utilizados, dos verbos em segunda pessoa do singular, do uso de alguns

pronomes e do próprio teor do discurso. Contudo, o discurso é, igualmente, proferido diante

de outras pessoas, daquelas que estavam presentes no Senado, por ocasião da clemência dada

a Marcelo. Isso também pode ser confirmado por alguns termos usados no discurso. Assim

existem como público – César a quem ele se dirige - e os senadores, que ele tenta envolver,

“lançando mão”, nesse contexto, de recursos do “patos” para conseguir tal objetivo.

Alguns exemplos de usos que se referem a César:

Capítulo I

No parágrafo 1: o vocativo C. Caesar; os verbos aperuisti e sustulisti.

No parágrafo 3: os verbos concessisti, intellegis; os pronomes te, tuis, tuo.

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Capítulo II

O vocativo C. Caesar; o verbo consecutus es; os pronomes tuas, tua.

No parágrafo 5: o pronome tuis.

No parágrafo 7: o vocativo C. Caesar; o verbo habes; os pronomes tuum, tibi, tuam.

Capítulo III

No parágrafo 8: os verbos domuisti e vicisti.

No parágrafo 9: o vocativo C. Caesar; os pronomes tuae, tui.

No parágrafo X: o verbo velis; os pronomes te, tibi.

Capítulo IV

Os verbos reddidisti e vindicasti; o pronome tu.

No parágrafo 11: o verbo antepones; os pronomes tu, tuis, tua.

No parágrafo 12: os verbos viceras, vicisti, videris, remisisti; os pronomes te, tuae, es.

Capítulo VI

No parágrafo 16: o vocativo C. Caesar; o pronome tua.

No parágrafo 17: o vocativo C. Caesar.

No parágrafo 19: os verbos gaude, fruere, voluisti, cogitabis; os pronomes tuo, tuis,

tua, tuae, tecum.

No parágrofo 20: o verbo noli defatigari; os pronomes te, tua.

Capítulo VII

No parágrafo 21: o verbo reddisti; os pronomes tuam, tibi, tua, tuis, tui, tecum.

No parágrafo 22: os pronomes tuam, tua, te.

Capítulo VIII

O vocativo C. Caesar: o verbo sentis.

No parágrafo 24: os pronomes tibi, te.

No parágrafo 25: os verbos vis, omite, nolli esse, abes, viveres ieceris, cogitas; os

pronomes tuam, te, tibi, tuae, tu, te.

No parágrafo 26: o vocativo C. Caesar os verbos inquies, relinqueres; os pronomes

tuorum, tibi, tua.

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Capítulo IX

No capítulo 27: os verbos constituas, perfruare, solveris, debes, expleveris, voles,

vixisse; os pronomes tibi, tu, te, tuus.

No parágrafo 28: os verbos inservias, ostentes; os pronomes tua, tu, te, tuos.

No parágrafo 29: os verbos restinxeris, servi; os pronomes tuis, tuum, tuas, te.

No parágrafo 30: os pronomes te, tuas.

Capítulo X

No parágrafo 32: o vocativo C. Caesar; o verbo putas; os pronomes te, tuae, tibi.

Capítulo XI

No parágrafo 33: o vocativo C. Caesar; o verbo putuisti sentire; os pronomes tibi, te.

No parágrafo 34: o vocativo C. Caesar; os pronomes tibi, te, tua.

Alguns exemplos de usos que se referem aos Senadores:

Capítulo I

No parágrafo 1: o vocativo Patres Conscripti.

No parágrafo 2: o vocativo Patres Conscripti e o pronome vobis.

Capítulo V

No parágrafo 13: o vocativo Patres Conscripti; o verbo videtis, na segunda pessoa do

plural; o pronome vobis; o verbo attendite.

Desse modo, como se pode observar, a forma como organizou e estruturou o discurso,

a partir de escolhas lexicais, seleção de alguns sintagmas e orações, demonstra ser o mesmo

direcionado para alguns entendimentos específicos. O orador, tendo como ouvintes,

observadores de sua fala, precisaria utilizar mecanismos de oratória exibicional, conforme

apresentado por Aristóteles em sua Retórica, com a finalidade de, no caso, tecer elogios a

César, objetivando elevá-lo quase à condição de herói.

Para isso, igualmente, por conta dessa necessidade, o que selecionou e como

organizou os itens selecionados, certamente, foi determinado pelo que objetivava alcançar. Da

mesma forma, foi influenciado pelos acontecimentos históricos e político-sociais que

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antecederam o momento do discurso e, também, os atuais, assim como dialogou com outros

discursos.

Todos os fatos históricos que conduziram Roma ao estado de coisas, em que se

encontrava, no momento do discurso (46 a.C. – ano do início do poder de César como

ditador), e todos os fatos presentes ao discurso – como a própria clemência concedida a

Marcelo – foram determinantes para o modo como Cícero construiu o Pro Marcello. Os fatos

que ainda estariam por vir, da mesma forma influenciaram o que o orador disse.

Ele apresentou o panorama atual ao discurso, no se referia às atitudes de César e a

condição deste como homem virtuoso, ou provavelmente virtuoso. E para que houvesse

aceitação dos ouvintes sobre o que dizia e provar o que apresentava como verdade, mesmo

que nem tudo assim o fosse, Cícero conduziu o discurso realizando demonstrações e

argumentações próprias da retórica de um discurso epidíctico.

Um discurso pode ser direcionado para públicos diferentes e também para intenções

diferentes. Ele, então, pode ser direcionado para a obtenção da benevolência dos ouvintes,

incluindo o ditador e, do mesmo modo, pode ser direcionado para influenciar esses ouvintes

na construção da figura do ditador, com um perfil que se aproxima do que se entende como

herói. E, também, para influenciar o ditador, na construção de uma imagem sobre os intuitos

de Cícero.

Sendo assim, no que tange ao caráter dialógico e ideológico presente no discurso Pro

Marcello, verifica-se existirem vários elementos que corroboram as teorias aqui apresentadas.

O discurso, como qualquer outro, de qualquer tipo ou gênero, carrega em si a

particularidade de comunicar, ou seja, de dialogar. O objetivo, logo, do Pro Marcello, é o de

estabelecer um diálogo com outro, no caso, o auditório – César e o Senado. Nesse sentido, o

discurso não é somente de Cícero, mas, igualmente, daquele para quem ele é dito.

Ao discursar, assim, Cícero não coloca somente as suas intenções. Ele tenta dispor,

também, o pensamento do outro. Isso porque o discurso é sempre dirigido a alguém, que

acaba participando da construção.

O discurso, dessa feita, está impregnado do discurso daquele para quem ele é

direcionado, em uma relação dialógica. Na verdade, são as duas vozes existentes no discurso,

a de Cícero, que é o enunciador e a do auditório, que é o enunciatário. Essas duas vozes

acabam produzindo o discurso em conjunto.

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O enunciador espera sempre uma resposta do enunciatário, que pode ser positiva ou

não em relação ao que o produtor do discurso espera. Cícero, nesse caso, conduz o seu

discurso na expectativa de uma resposta positiva. Para isso, em algumas passagens, ele tenta

demonstrar estarem as vozes dos outros em consonância com a sua. A partir dessa tentativa,

espera conseguir a adesão dos ouvintes.

Desse modo, o discurso Pro Marcello é determinado pelo contexto, sofrendo, assim,

influências. O conteúdo veiculado por ele é construído e organizado de forma a conseguir

resultados esperados, numa espécie de manipulação consciente. Ao mesmo passo, também é,

inconscientemente, influenciado por tudo o que orador vivenciou e por todas as circunstâncias

sociais, espaciais e históricas que o envolveram.

Como se vê, o discurso foi, portanto, determinado pelas instâncias históricas da época,

mas, ao mesmo tempo, teve autonomia, na medida em que o orador tem conhecimentos

suficientes e também intenções para manipular os sentidos nele contidos.

Cícero, através das escolhas feitas para a produção e manifestação concreta do

discurso, empregou a sua individualidade. Assim, quando escolheu determinados vocábulos,

quando elaborou o texto, usou a faceta autônoma em relação à produção.

A fala do orador, nesse ínterim, é distinta da do outro, desvinculada da de outros

discursos do próprio Cícero e até do próprio contexto. Nesse caso, são escolhas singulares que

não se pode repetir, nem mesmo pelo próprio enunciador. É o que se chama, conforme visto,

de irrepetível.

Irrepetível, a partir do momento em que cada escolha feita e organizada pretendeu

dialogar de uma certa forma particular e individual. Cada termo e construção utilizados teve o

propósito de significar algo, indo além, muitas vezes, do próprio sentido intrínseco das

palavras. De tal modo, quando Cícero escolhe palavras como clementia, virtus, vir, gratia,

beneficium e tantas outras no decorrer do discurso, ele, às vezes, confere a elas um sentido

que vai além da sua acepção básica.

Pretendendo comunicar um significado específico, esse enunciado de Cícero não pode

ser repetido, pois tem intenções particulares a esse caso e ao objetivo específico.

Verifica-se, do mesmo modo, que os usos e as escolhas, igualmente, não apresentam,

muitas vezes, a realidade. São apenas tentativas de representar essa realidade. No caso de

Cícero, ele pretendia representar, por exemplo, a sua posição de aliado a César, naquele

momento. Assim, o Pro Marcello foi formulado, pretendendo representar o que Cícero

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entendia dessa realidade e também o entendimento do outro sobre ela. E, de tal modo,

conduzir a um convencimento sobre isso.

Ideologicamente, o que foi adquirido e assimilado pelo orador “entra em jogo” na

construção do discurso. Isso ocorre, principalmente, objetivando obter uma recepção

almejada. O discurso materializa essa ideologia, enquanto a língua é responsável por

materializar esse discurso. Desse modo, ao organizar o que será dito, utilizando todos os

recursos disponíveis no sistema linguístico, o orador materializa o seu discurso,

transformando-o em texto. Nessa materialização do discurso em texto é igualmente

materializado um entendimento, uma interpretação, isto é, a forma como o discurso será

interpretado.

Com todos esses expedientes, o que está latente e visível no texto comunica, mas o

“não dito”, da mesma forma, dialoga, promovendo sentidos. No Pro Marcello, todos os

recursos linguísticos e retóricos utilizados para materializar o discurso comunicam, na

tentativa de convencer o auditório. Esses recursos dizem, ou tentam dizer, até mesmo aquilo

que não está claramente exposto no texto.

Partindo desse foco, no qual o discurso pretende representar uma determinada

realidade, pode-se dizer que ele foi ideologicamente construído. Sendo assim, ele é uma

espécie de representação ideológica ou reprodução ideológica. Isso seria uma certa percepção

de alguém ou de um grupo da realidade através da aparência. Uma forma, então, de

representação dessa realidade, pelas ideias formadas aparentemente. Ao formular o Pro

Marcello, Cícero reproduz, assim, ideias ou pensamentos sobre determinada realidade.

No caso desse discurso, a ideologia do orador e, talvez, do próprio Senado, seria a de

que, apoiando César, a República teria a possibilidade de ser reconstruída. Essa consistiria na

visão da realidade que Cícero tentou representar.

Da mesma forma, o estilo próprio do orador, ou seja, tudo que usou e como empregou

no discurso foi com intenções de convencimento sobre o que pretendia demonstrar. O

discurso tem essa faceta individual, mas, apesar disso, reflete uma ideologia que o orador

pretendeu comunicar, inclusive, pelo modo como elegeu o que ali colocaria. Essas escolhas

individuais feitas pelo orador acabaram ficando a serviço da finalidade objetivada.

Então, tudo no discurso, como as amplificações, os exempla, a organização desses

recursos dentro dele, entre tantos outros usos particulares, que só Cícero poderia fazer, - pois

se trata de uma fala só dele -, acabaram por realizar o diálogo pretendido pelo orador.

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5. CONCLUSÃO

O discurso, corpus desta tese, após todas as análises efetivadas, pode ser, de fato,

como visto, classificado dentro do gênero epidícito, no que diz respeito às características

definidoras do gênero, conforme as assertivas de Aristóteles e de autores que estudam o

filósofo, como é o caso de Reboul.

O Pro Marcello apresenta características básicas e intrínsecas do gênero epidíctico,

assim como as elencadas pelo grego, que o classifica, segundo o auditório a que se reporta e

conforme a finalidade a que se destina, a saber: um auditório específico do gênero, um tipo de

ouvinte especial, que são os espectadores, os observadores, que ouvem e observam o discurso

e o ato de discursar de Cícero. No caso, o auditório é o próprio César e todo o Senado

presente, dos quais o orador tenta angariar a admiração e aos quais ele se adapta. Tem um fim,

um objetivo próprio, um ato próprio que, neste, é louvar, é enaltecer, principalmente, a

benevolência de César e a própria adesão ao ditador. Apresenta o tempo presente – mesmo

que se refira a feitos passados para consubstanciar o presente – e o valor, quando tenta

evidenciar, no momento atual ao discurso, que César é digno de honra, pretendendo provar a

sua nobreza de caráter, expressa pelos atos realizados e pelas escolhas feitas.

Apesar de todas essas características estarem amplamente impressas no discurso

caracterizado como epidíctico, observou-se existirem, da mesma forma, outras que não lhe

são definidoras. Nesse sentido, além de ser um discurso epidíctico, carrega expresso nele

traços marcantes de outro gênero – o deliberativo. Este é um gênero através do qual o orador

delibera e tenta aconselhar e conduzir o auditório a tomar decisões sobre algo, tendo um

caráter político. Tem, também, como característica, o uso dos exempla, para através deles,

mostrar que algo pode ser bom ou ruim.

No que concerne ao Pro Marcello, verificou-se existirem algumas ocorrências

próprias do discurso deliberativo as quais foram analisadas no decorrer deste texto. Tais

recursos, no caso do discurso aqui estudado, demonstraram apresentar a intenção de que, entre

outras coisas, para o bem da República e sua possível restituição, era necessário ser aliado de

César. E, igualmente, demonstrar que César, por seu ato de clemência, por seus grandes feitos

e pela caracterização que dele é efetivada, deveria ser visto como aquele possível restaurador

da República e, por isso, seria bom, para a pátria, manter-se ao lado dele.

Para isso, além de elogiar e enaltecer os feitos de César, Cícero delineou um perfil

para o ditador, traçando-o de tal modo extraordinário que, pode-se dizer ter construído um

personagem com caraterísticas heroicas, dentro dos moldes clássicos de heroificação.

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Além disso, como comprovação da tese aqui levantada, verificou-se que, como todo

discurso, ele, apesar de ser a fala individual de quem o produziu, carrega implícita e, às vezes,

explicitamente, a fala do outro, ou seja, há uma dialogicidade entres os discursos. Portanto, ao

expressar não somente a visão de mundo, ou seja, a realidade enxergada pelo orador-produtor

do discurso, traz em si a determinação sob a qual ele também é moldado. A um passo que é

individual e único, pois não pode ser repetido por outro e nem pelo próprio dono, é,

igualmente, consonante com outros e, acaba reproduzindo a visão desses outros. Assim é

determinado ideologicamente.

A faceta individual do discurso está em, ao usar o seu estilo particular, o orador

conseguir construir um discurso irrepetível e único. Por todas as escolhas que fez, sejam elas

o material coletado no sistema linguístico ou os recursos retóricos eleitos ou, ainda, o modo

como organizou tudo isso, o Pro Marcello é um discurso individual e singular. Sendo assim,

por esse prisma, é uma produção autônoma, sem determinações para a sua produção.

Contudo, no momento em que pretende comunicar e que, para isso, as escolhas são

feitas com esse objetivo, ele assume um caráter dialógico, sendo influenciado pelo contexto,

ou seja, sofrendo determinações que influenciam a formação.

O discurso é um elogio a César, por ter concedido a Marcelo, amigo de Cícero, o

perdão. Anteriormente, o próprio orador teria conseguido a mesma benevolência do ditador.

Sabe-se que ambos, tanto Cícero quanto Marcelo, foram adversários de César que, ao

conseguir o poder, no lugar de atentar contra todos os inimigos e contra àqueles que lutaram

em oposição a ele, colocou ao lado os que poderiam ser úteis a sua causa. É um discurso que

tem como espectadores o ditador e o Senado. Desse modo, nesse ínterim, ele dialoga com

César, com Marcelo, com todos os presentes e dialoga com todos os discursos com os quais

estabelece contato, inclusive, com outros do orador.

Os acontecimentos, os conflitos anteriores à constituição da ditadura e o próprio fato

de César ser, no momento, o detentor do poder maior na República, de certa maneira,

condicionaram a formulação da fala de Cícero, assim como as intenções particulares e

individuais do orador, levando-o a construir um perfil de herói para Júlio César. O orador

tinha a intenção individual de elogiar e elevar César talvez a um patamar de herói e, pelo que

se observou nas análises feitas, também tinha o objetivo de mostrar-se como partidário de sua

causa na reconstrução da República. Assim, não se deve afastar o fato de ser, numa grande

medida, influenciado pelas vivências naquele contexto histórico-político-social.

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