o caráter pictórico da cidade ideal: uma análise do passo ... · isto quer dizer que a arte da...

23
231 O CARÁTER PICTÓRICO DA CIDADE IDEAL: UMA ANÁLISE DO PASSO 19B DO TIMEU DE PLATÃO LETHICIA OURO DE OLIVEIRA Departamento de Filosofia Colégio Pedro II “... há um termo fixo a alcançar, um problema a resolver: como fazer um ho- mem com pedra sem petrificá-lo? É tudo ou nada: se o problema é resolvido, a quantidade de estátuas pouco importa. Se eu pelo menos soubesse fazer uma, diz Giacometti, poderei fazer milhares. Enquanto isso não ocorre, não há estátua nenhuma, mas apenas esboços que só interessam a Giacometti na medida em que o aproximam da sua meta. Ele quebra tudo e refaz mais uma vez.” 1 Jean-Paul Sartre Este texto faz parte de um estudo que objetiva esclarecer o papel da arte pictórica no que se convencionou chamar de último desenvolvimento do pensamento platônico 2 . Para isso, é preciso, em primeiro lugar, apreen- der o sentido atribuído por Platão a essa arte nos diálogos tardios. Aqui, trataremos especificamente do Timeu 3 . Nele, a que tudo indica, a pintura sempre aparece em usos comparativos, analógicos ou metafóricos. Isto quer dizer que a arte da pintura não é abordada em si mesma ou diretamente; somente sua imagem aparece, sendo usada como um recurso linguístico 1 SARTRE, Jean-Paul. A busca do absoluto. Tradução Célia Euvaldo. In: EUVALDO, Célia. (Org.). Alberto Giacometti, textos de Jean-Paul Sartre. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 11-40. 2 A maior parte dos comentadores de Platão concorda com a distinção do seu pensamento em três momentos. Sobre o último período, cf., por exemplo, SAYRE, Kenneth. Plato’s Late Ontology: a riddle resolved. Chicago: Parmenides Publishing, 2005; e IGLÉSIAS, Maura; RODRIGUES, Fernando. Apresentação do diálogo. In: PLATÃO. Parmênides. Ed. bilíngue. Tradução de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003. p. 7-13. 3 Cf. as cronologias dos diálogos que classificam o Timeu como pertencente à última fase do pensamento platônico em, por exemplo, Lutoslawski, Raeder, Ritter, Wilamowitz e Ross em ROSS, David. The order of the dialogues. In: ______. Plato’s Theory of Ideas. 2nd. ed. Oxford: Clarendon Press, 1953. p. 1-11. Uma exceção é a leitura de Owen. Acreditando que Platão abandona a teoria das ideias em suas últimas obras, o comentador galês localiza o Timeu na fase média, logo após a República. Cf. OWEN, Gwilym. The place of Timaeus in Plato’s dialogues. Classical quarterly, London, v. 47, p. 79-95, 1953. K LÉOS N . 16/17: 231-253, 2012/13

Upload: lythuy

Post on 14-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

231

o cAraacuteTEr PicToacuterico dA cidAdE idEAL umA ANaacuteLiSE do PASSo 19b do tIMeU dE PLATAtildeo

letHicia OurO de Oliveira

Departamento de FilosofiaColeacutegio Pedro II

ldquo haacute um termo fixo a alcanccedilar um problema a resolver como fazer um ho-mem com pedra sem petrificaacute-lo Eacute tudo ou nada se o problema eacute resolvido a

quantidade de estaacutetuas pouco importa Se eu pelo menos soubesse fazer uma diz Giacometti poderei fazer milhares Enquanto isso natildeo ocorre natildeo haacute estaacutetua

nenhuma mas apenas esboccedilos que soacute interessam a Giacometti na medida em que o aproximam da sua meta Ele quebra tudo e refaz mais uma vezrdquo

1

Jean-Paul Sartre

este texto faz parte de um estudo que objetiva esclarecer o papel da arte pictoacuterica no que se convencionou chamar de uacuteltimo desenvolvimento do pensamento platocircnico

2 Para isso eacute preciso em primeiro lugar apreen-

der o sentido atribuiacutedo por Platatildeo a essa arte nos diaacutelogos tardios aqui trataremos especificamente do Timeu

3 Nele a que tudo indica a pintura

sempre aparece em usos comparativos analoacutegicos ou metafoacutericos Isto quer dizer que a arte da pintura natildeo eacute abordada em si mesma ou diretamente somente sua imagem aparece sendo usada como um recurso linguiacutestico

1 SaRtRe Jean-Paul a busca do absoluto traduccedilatildeo Ceacutelia euvaldo In eUvaldo

Ceacutelia (org) Alberto Giacometti textos de Jean-Paul Sartre Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 11-40

2 a maior parte dos comentadores de Platatildeo concorda com a distinccedilatildeo do seu pensamento

em trecircs momentos Sobre o uacuteltimo periacuteodo cf por exemplo SAYRE Kenneth Platorsquos Late Ontology a riddle resolved Chicago Parmenides Publishing 2005 e IglEacuteSIaS Maura RodRIgUeS Fernando apresentaccedilatildeo do diaacutelogo In PlatAtildeo Parmecircnides ed biliacutengue traduccedilatildeo de Maura Igleacutesias e Fernando Rodrigues Satildeo Paulo loyola Rio de Janeiro PUC-Rio 2003 p 7-13

3 Cf as cronologias dos diaacutelogos que classificam o Timeu como pertencente agrave uacuteltima fase

do pensamento platocircnico em por exemplo lutoslawski Raeder Ritter Wilamowitz e Ross em RoSS david the order of the dialogues In ______ Platorsquos Theory of Ideas 2nd ed oxford Clarendon Press 1953 p 1-11 Uma exceccedilatildeo eacute a leitura de owen Acreditando que Platatildeo abandona a teoria das ideias em suas uacuteltimas obras o comentador galecircs localiza o Timeu na fase meacutedia logo apoacutes a Repuacuteblica Cf oWeN gwilym the place of timaeus in Platorsquos dialogues Classical quarterly london v 47 p 79-95 1953

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

232

para a tematizaccedilatildeo que interessa ao filoacutesofo nesse diaacutelogo especiacutefico O recurso imageacutetico da pintura seraacute usado tanto no preluacutedio do diaacutelogo na conversa entre Soacutecrates Criacutetias Hermoacutecrates e timeu quanto propriamente no mito narrado pelo personagem que daacute nome agrave obra atentos agrave funccedilatildeo literaacuteria dos empregos da noccedilatildeo de pintura pretendemos em primeiro lugar aproximarmo-nos de sua funccedilatildeo filosoacutefica tendo em vista o desen-volvimento dos temas que entatildeo interessam a Platatildeo em outras palavras nosso primeiro passo seraacute evidenciar o caraacuteter da apropriaccedilatildeo realizada por Platatildeo em sua construccedilatildeo literaacuterio-filosoacutefica dessa arte mimeacutetica a pintura tendo em vista suas intenccedilotildees conteudiacutesticas ao longo do Timeu Soacute assim seraacute possiacutevel perceber como ele qualifica a proacutepria pintura para entatildeo em reflexotildees posteriores compreender genericamente o lugar dessa arte no seu uacuteltimo pensamento Esse encadeamento loacutegico ou sistematizaccedilatildeo de objetivos deste estudo facilmente determinados distinguidos e elencados racionalmente seratildeo muitas vezes alcanccedilados de forma casual ou fora de ordem de fato a funccedilatildeo da imagem da pintura o que eacute essa arte e seu lugar na filosofia de Platatildeo se misturam nos diaacutelogos

4 ainda assim para

nossa mais clara exposiccedilatildeo pretendemos retomar essas etapas na conclusatildeo de nosso texto elas satildeo resumindo o que dissemos em primeiro lugar a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo filosoacutefica dos usos da imagem da pintura em se-gundo como esses usos delineiam o sentido dessa arte aos olhos de Platatildeo e em textos futuros o lugar que esse sentido indica agrave pintura no contexto da filosofia platocircnica desde seus diaacutelogos tardios

Para isso tomaremos como instrumento a seleccedilatildeo que realiza-mos ateacute esse momento de nossa pesquisa dos empregos dos substantivos grafh que possui como sentido possiacutevel ldquopinturardquo e zwgrafia que significa pintura exclusivamente ao longo do diaacutelogo como um todo estivemos atentos aos termos gregos correlatos que aparecem na forma de particiacutepio verbal na forma verbal e no resultado da incorporaccedilatildeo de dois prefixos ao termo principal a saber as partiacuteculas muitas vezes usadas como pre-posiccedilotildees dia e a)po

4 Sobre isso cf por exemplo RIvaUd albert Notice In PlatoN Timeacutee traduction

par albert Rivaud Paris les Belles lettres 1985 p 3-123 Cf p 28 ldquodiferentemente de nossos meacutetodos escolares a arte platocircnica eacute muito haacutebil em tratar ao mesmo tempo diversas questotildeesrdquo (nossa traduccedilatildeo)

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

233

Sabemos que a pintura nunca foi tomada pelo filoacutesofo como objeto de aprofundadas reflexotildees basta compararmos sua presenccedila nos diaacutelogos com temas mais recorrentes e diretamente discutidos tais como o da educaccedilatildeo das virtudes da poliacutetica da poesia do discurso dentre outros

5

todavia eacute exatamente a pintura que eacute usada por Soacutecrates personagem de Platatildeo numa das passagens do corpus platonicum mais conhecidas citadas e muitiacutessimas vezes profundamente criticadas tanto por filoacutesofos como por comentadores de Platatildeo e teoacutericos da arte em geral falamos da gradaccedilatildeo mimeacutetica apresentada na primeira parte do deacutecimo livro da Repuacuteblica Neste contexto a pintura aparece como sabemos retratando aquelas artes mimeacute-ticas que satildeo coacutepias de objetos que jaacute satildeo coacutepias das ideias produzidas por deus o sentido dessa gradaccedilatildeo eacute objeto de debate constante por parte dos inteacuterpretes de Platatildeo tomada de uma forma geral tal questatildeo natildeo recebeu ateacute hoje uma resposta consensual nos textos acadecircmicos

6 Natildeo conveacutem

5 Isso eacute apontado em KeUlS eva Plato and Greek Painting leiden e J Brill 1978

trata-se de um dos pontos centrais da tese de Keuls sobre a questatildeo da pintura nos diaacutelogos Para ela a ausecircncia de um tratamento direto da questatildeo da pintura evidenciaria o desinteresse de Platatildeo por esse modernamente chamado gecircnero artiacutestico

6 Cf algumas possibilidades de leitura apresentadas resumidamente em lodge Ru-

pert Platorsquos Theory of Art oxford Routledge 2010 Mimesis i) Platatildeo critica a arte mimeacutetica em geral (ver CRoCe Benedeto Aesthetic as science of expression and general linguistic translated by douglas ainslie a digireadscom Publication 2004 p 158) ii) ele rechaccedila somente a arte mimeacutetica enquanto entretenimento isto eacute feita para o simples prazer (leitura de NettleSHIP Richard lewis Lectures on Platorsquos Republic 2nd ed london Macmillan amp Co New York St Martinrsquos Press 1964 p 353) iii) ele expulsa da cidade exclusivamente a arte representativa que identifica agravequela feita para a diversatildeo (cf CollINgWood Robin george The principles of art london oxford University Press 1958 p 46-52) a primeira leitura eacute a mais difundida Segundo Pa-nofsky eacute feita desde Plotino (cf PaNoFSKY erwin Idea a evoluccedilatildeo do conceito de belo traduccedilatildeo de Paulo Neves Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 8 PlotINUS on the intellectual beauty In ______ The six Enneads translated by Stephen MacKenna Chicago Willian Benton Publisher 1952 v 8 e a traduccedilatildeo em liacutengua portuguesa da passagem mais importante sobre essa temaacutetica em que Plotino critica o desprezo da arte e sua compreensatildeo ndash a que tudo indica platocircnica ndash como simples coacutepia de apa-recircncias em PINHeIRo Marcus Reis o aprendiz do belo a ldquoarte-eacuteticardquo em Plotino VISO Cadernos de Esteacutetica Aplicada n 3 set-dez 2007 disponiacutevel em lthttpwwwrevistavisocombrpdfviso_3_MarcusReispdfgt) ela perdura ateacute a atualidade e se encontra em por exemplo oSBoRNe Harold Esteacutetica e teoria da arte uma introduccedilatildeo histoacuterica traduccedilatildeo de octavio Mendes Cajado 4 ed Satildeo Paulo editora Cultrix sd p 81-82 HaaR Michel a depreciaccedilatildeo platocircnica da arte In ______ A obra de arte ensaio sobre a ontologia das obras traduccedilatildeo de Maria Helena Kuumlhner 2 ed Rio de Janeiro difel 2007 p 16-21 veRNaNt Jean-Pierre Image et apparence dans la theacuteorie platonicienne de la mimecircsis Journal de Psychologie Paris v 72 n 2 p 133-160

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

234

aqui nos posicionar quanto a essa controveacutersia o que ultrapassaria os limi-tes da presente proposta entrementes tal discussatildeo evidencia o valor em se examinar o uso da arte pictoacuterica em outros momentos do pensamento platocircnico para que assim possamos em reflexotildees posteriores nos utilizar de um maior nuacutemero de recursos textuais que nos auxiliem a melhor com-preender tema tatildeo controverso na histoacuteria da filosofia como o da possiacutevel expulsatildeo dos poetas e artistas mimeacuteticos da cidade ideal

Isso se mostraraacute devidamente pertinente ao logo dessa investiga-ccedilatildeo vejamos agora o motivo dessa pertinecircncia apresentando os contextos nos quais a pintura eacute referenciada no Timeu

a arte pictoacuterica se encontra em trecircs momentos diferentes do diaacutelogo o primeiro deles eacute o proecircmio onde sua imagem aparece em duas passagens a pintura eacute usada por Soacutecrates personagem principal na cons-truccedilatildeo da cidade utoacutepica da Repuacuteblica como sabemos logo apoacutes se relem-brar das principais caracteriacutesticas presentes provavelmente nessa cidade

7

ele estabelece uma analogia entre a cidade ideal e uma obra pictoacuterica a

imagem da pintura eacute logo em seguida retomada por Criacutetias quando ter-mina de relatar o que contara seu avocirc tambeacutem chamado de Criacutetias sobre a cidade ancestral de atenas semelhante agrave cidade utoacutepica Curiosamente ou propositalmente o primeiro contexto em que a pintura aparece no di-aacutelogo eacute exatamente quando se tem como tema a cidade ideal ou utoacutepica e

avril-Juin 1975 e lICHteNSteIN Jacqueline da toalete platocircnica In ______ A cor eloquente traduccedilatildeo de Maria elizabeth Chaves de Mello e Maria Helena de Mello Rouanet Satildeo Paulo Siciliano 1994 p 45-62

7 Sobre a controveacutersia a respeito dessa referecircncia cf por exemplo CRoMBIe Ian

An examination of Platorsquos doctrines london Routledge Kegan Paul 1962 p 197-199 RIvaUd 1985 p 19-20 e vIdal-NaQUet Pierre Atlacircntida pequena histoacuteria de um mito platocircnico Traduccedilatildeo Lygia Arauacutejo Watanabe Satildeo Paulo Unesp 2008 p 26 a nosso ver dado que as caracteriacutesticas da cidade de que fala Soacutecrates tambeacutem satildeo da cidade ideal da Repuacuteblica temos ao menos uma remissatildeo a esse diaacutelogo Resumidamente as diferenccedilas entre o resumo de Soacutecrates no Timeu e o texto da Repuacuteblica satildeo os perso-nagens do Timeu diferem dos da Repuacuteblica (todavia poder-se-ia levantar a hipoacutetese de que Soacutecrates no dia antecedente ao encontro relatado no Timeu relatara aos personagens desse diaacutelogo sobre a conversa a respeito da cidade ideal na casa de Ceacutefalo) a festa que ocorria na cena dramaacutetica do Timeu era as Panatenaicas (cf RIvaUd 1985 p 19) os temas somente relatam o que fora discutido do livro I ao v da Repuacuteblica e nada se fala sobre o filoacutesofo como governante usando-se somente o termo guardiatildeo

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

235

a narrativa atoacutepica8 de sua realizaccedilatildeo fatual num passado longiacutenquo

9 ndash o

que portanto evidencia a coerecircncia dessa nossa investigaccedilatildeo quando estaacute em pauta reler a dita expulsatildeo da arte mimeacutetica da cidade ideal

Para respeitar o formato de artigo acadecircmico neste texto nos limitaremos a analisar a primeira referecircncia agrave pintura no Timeu feita pelo personagem Soacutecrates este uso da pintura nos faraacute resgatar algumas passa-gens da Repuacuteblica assim como de outros diaacutelogos nas quais a arte pictoacuterica aparece em diferentes relaccedilotildees comparativas natildeo soacute com a cidade ideal mas com a proacutepria filosofia como veremos Uma pergunta entatildeo impor-se-aacute qual(is) o(s) ponto(s) comum(ns) entre obras filosoacutefica e pictoacuterica que permite(m) a analogia realizada por Platatildeo

Como dissemos ao longo do Timeu outras referecircncias satildeo feitas agrave pintura Para natildeo cometermos o erro de analisar a parte ignorantes do todo vejamos de forma sucinta os usos restantes da imagem da pintura todos no contexto do mito de timeu Num segundo momento o personagem timeu ainda no iniacutecio de seu relato mitoloacutegico sobre o princiacutepio de tudo afirma que o demiurgo divino que confecciona o universo pinta borda ou configura (diazwgrafw) as constelaccedilotildees no ceacuteu usando o dodecaedro

10

a pintura eacute uma dentre as artesanias usadas provavelmente em metaacutefora para descrever o processo de criaccedilatildeo de todo o cosmo dentre metalurgia construccedilatildeo ceracircmica tecelagem agricultura e realeza tambeacutem aparece a pintura o que aliaacutes jaacute fora apontado por Brisson em Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du timeacutee de Platon

11

Por fim haacute ainda um uacuteltimo contexto em que encontramos a arte de pintar depois de na cidade ideal e na ancestral de atenas no ceacuteu e seus astros a pintura aparece na descriccedilatildeo de como se eacute visitado por sonhos profeacuteticos

12 esse tema talvez estranho para noacutes modernos e presente na

cultura grega em geral desde pelo menos os poemas homeacutericos possivel-

8 Cf PlatAtildeo Timeu 20d-e

9 Sobre as diversas interpretaccedilotildees dessa narrativa como histoacuterica fictiacutecia alegoacuterica ou

transposiccedilatildeo poeacutetica de fatos reais cf RIvaUd 1985 p 28-3110

Cf PlatAtildeo Timeu 55c11

BRISSoN luc Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du Timeacutee de Platon un com-mentaire systeacutematique du timeacutee de Platon Paris Eacuteditions Klincksieck 1974 p 47

12 Cf PlatAtildeo Timeu 71c

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

236

mente natildeo soaria extravagante aos ouvintes de timeu e seraacute no encontro com o universo do que podemos considerar como senso comum grego da tradiccedilatildeo religiosa e ritualiacutestica que as referecircncias agrave pintura que selecionamos chegam ao fim nesse diaacutelogo em questatildeo

Sem ignorar os contextos em que a imagem da pintura eacute usada no diaacutelogo como um todo comecemos a anaacutelise da nossa parte a primeira referecircncia Como dissemos nela a pintura eacute usada para tratar do tema da cidade a que tudo indica a cidade ideal da Repuacuteblica

logo no iniacutecio do Timeu os personagens do diaacutelogo Soacutecrates Criacutetias timeu e Hermoacutecrates conversam sobre o assunto que seraacute abordado nesse dia de encontro trata-se da continuaccedilatildeo de um coloacutequio iniciado no dia anterior quando Soacutecrates expocircs sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel e os homens que deveriam executaacute-la ele diz que estaacute insatisfeito com sua exposiccedilatildeo que seu sentimento em relaccedilatildeo a ela eacute como o de um homem ao contemplar uma pintura de belos animais ou esses mesmos animais em repouso ele quer vecirc-los em movimento o desejo de Soacutecrates eacute saber como os homens da cidade ideal se comportariam em guerras ou disputas como agiriam depois de terem sido educados na virtude Criacutetias satisfaz seu desejo delineando ainda que em esboccedilo como a cidade ancestral de atenas em muitos aspectos semelhante agrave cidade ldquopintadardquo por Soacutecrates derrotou a grande e luxuosa potecircncia de atlacircntida antes de Criacutetias narrar essa estoacuteria em pormenores o que faraacute no diaacutelogo que leva seu nome caberaacute a timeu expor sobre o iniacutecio do mundo chegando ateacute o nascimento do homem

Retomemos o sentimento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave sua expo-siccedilatildeo sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel eacute o mesmo que experimenta ao contemplar uma pintura de belos animais ou os proacuteprios animais em repouso a pintura e a cidade ideal compartilham o estado de total repouso a imobilidade frente agrave qual podemos desejar ansiar como Soacutecrates sermos espectadores do movimento Nesse sentido podemos dizer que a pintura e o discurso filosoacutefico da cidade ideal ou utoacutepica satildeo como uma promessa ou uma esperanccedila a descriccedilatildeo de algo que queremos ver acontecendo em vida em movimento eis as exatas palavras que Platatildeo coloca na boca de Soacutecrates logo depois da recapitulaccedilatildeo dos principais temas discutidos no dia anterior

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 2: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

232

para a tematizaccedilatildeo que interessa ao filoacutesofo nesse diaacutelogo especiacutefico O recurso imageacutetico da pintura seraacute usado tanto no preluacutedio do diaacutelogo na conversa entre Soacutecrates Criacutetias Hermoacutecrates e timeu quanto propriamente no mito narrado pelo personagem que daacute nome agrave obra atentos agrave funccedilatildeo literaacuteria dos empregos da noccedilatildeo de pintura pretendemos em primeiro lugar aproximarmo-nos de sua funccedilatildeo filosoacutefica tendo em vista o desen-volvimento dos temas que entatildeo interessam a Platatildeo em outras palavras nosso primeiro passo seraacute evidenciar o caraacuteter da apropriaccedilatildeo realizada por Platatildeo em sua construccedilatildeo literaacuterio-filosoacutefica dessa arte mimeacutetica a pintura tendo em vista suas intenccedilotildees conteudiacutesticas ao longo do Timeu Soacute assim seraacute possiacutevel perceber como ele qualifica a proacutepria pintura para entatildeo em reflexotildees posteriores compreender genericamente o lugar dessa arte no seu uacuteltimo pensamento Esse encadeamento loacutegico ou sistematizaccedilatildeo de objetivos deste estudo facilmente determinados distinguidos e elencados racionalmente seratildeo muitas vezes alcanccedilados de forma casual ou fora de ordem de fato a funccedilatildeo da imagem da pintura o que eacute essa arte e seu lugar na filosofia de Platatildeo se misturam nos diaacutelogos

4 ainda assim para

nossa mais clara exposiccedilatildeo pretendemos retomar essas etapas na conclusatildeo de nosso texto elas satildeo resumindo o que dissemos em primeiro lugar a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo filosoacutefica dos usos da imagem da pintura em se-gundo como esses usos delineiam o sentido dessa arte aos olhos de Platatildeo e em textos futuros o lugar que esse sentido indica agrave pintura no contexto da filosofia platocircnica desde seus diaacutelogos tardios

Para isso tomaremos como instrumento a seleccedilatildeo que realiza-mos ateacute esse momento de nossa pesquisa dos empregos dos substantivos grafh que possui como sentido possiacutevel ldquopinturardquo e zwgrafia que significa pintura exclusivamente ao longo do diaacutelogo como um todo estivemos atentos aos termos gregos correlatos que aparecem na forma de particiacutepio verbal na forma verbal e no resultado da incorporaccedilatildeo de dois prefixos ao termo principal a saber as partiacuteculas muitas vezes usadas como pre-posiccedilotildees dia e a)po

4 Sobre isso cf por exemplo RIvaUd albert Notice In PlatoN Timeacutee traduction

par albert Rivaud Paris les Belles lettres 1985 p 3-123 Cf p 28 ldquodiferentemente de nossos meacutetodos escolares a arte platocircnica eacute muito haacutebil em tratar ao mesmo tempo diversas questotildeesrdquo (nossa traduccedilatildeo)

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

233

Sabemos que a pintura nunca foi tomada pelo filoacutesofo como objeto de aprofundadas reflexotildees basta compararmos sua presenccedila nos diaacutelogos com temas mais recorrentes e diretamente discutidos tais como o da educaccedilatildeo das virtudes da poliacutetica da poesia do discurso dentre outros

5

todavia eacute exatamente a pintura que eacute usada por Soacutecrates personagem de Platatildeo numa das passagens do corpus platonicum mais conhecidas citadas e muitiacutessimas vezes profundamente criticadas tanto por filoacutesofos como por comentadores de Platatildeo e teoacutericos da arte em geral falamos da gradaccedilatildeo mimeacutetica apresentada na primeira parte do deacutecimo livro da Repuacuteblica Neste contexto a pintura aparece como sabemos retratando aquelas artes mimeacute-ticas que satildeo coacutepias de objetos que jaacute satildeo coacutepias das ideias produzidas por deus o sentido dessa gradaccedilatildeo eacute objeto de debate constante por parte dos inteacuterpretes de Platatildeo tomada de uma forma geral tal questatildeo natildeo recebeu ateacute hoje uma resposta consensual nos textos acadecircmicos

6 Natildeo conveacutem

5 Isso eacute apontado em KeUlS eva Plato and Greek Painting leiden e J Brill 1978

trata-se de um dos pontos centrais da tese de Keuls sobre a questatildeo da pintura nos diaacutelogos Para ela a ausecircncia de um tratamento direto da questatildeo da pintura evidenciaria o desinteresse de Platatildeo por esse modernamente chamado gecircnero artiacutestico

6 Cf algumas possibilidades de leitura apresentadas resumidamente em lodge Ru-

pert Platorsquos Theory of Art oxford Routledge 2010 Mimesis i) Platatildeo critica a arte mimeacutetica em geral (ver CRoCe Benedeto Aesthetic as science of expression and general linguistic translated by douglas ainslie a digireadscom Publication 2004 p 158) ii) ele rechaccedila somente a arte mimeacutetica enquanto entretenimento isto eacute feita para o simples prazer (leitura de NettleSHIP Richard lewis Lectures on Platorsquos Republic 2nd ed london Macmillan amp Co New York St Martinrsquos Press 1964 p 353) iii) ele expulsa da cidade exclusivamente a arte representativa que identifica agravequela feita para a diversatildeo (cf CollINgWood Robin george The principles of art london oxford University Press 1958 p 46-52) a primeira leitura eacute a mais difundida Segundo Pa-nofsky eacute feita desde Plotino (cf PaNoFSKY erwin Idea a evoluccedilatildeo do conceito de belo traduccedilatildeo de Paulo Neves Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 8 PlotINUS on the intellectual beauty In ______ The six Enneads translated by Stephen MacKenna Chicago Willian Benton Publisher 1952 v 8 e a traduccedilatildeo em liacutengua portuguesa da passagem mais importante sobre essa temaacutetica em que Plotino critica o desprezo da arte e sua compreensatildeo ndash a que tudo indica platocircnica ndash como simples coacutepia de apa-recircncias em PINHeIRo Marcus Reis o aprendiz do belo a ldquoarte-eacuteticardquo em Plotino VISO Cadernos de Esteacutetica Aplicada n 3 set-dez 2007 disponiacutevel em lthttpwwwrevistavisocombrpdfviso_3_MarcusReispdfgt) ela perdura ateacute a atualidade e se encontra em por exemplo oSBoRNe Harold Esteacutetica e teoria da arte uma introduccedilatildeo histoacuterica traduccedilatildeo de octavio Mendes Cajado 4 ed Satildeo Paulo editora Cultrix sd p 81-82 HaaR Michel a depreciaccedilatildeo platocircnica da arte In ______ A obra de arte ensaio sobre a ontologia das obras traduccedilatildeo de Maria Helena Kuumlhner 2 ed Rio de Janeiro difel 2007 p 16-21 veRNaNt Jean-Pierre Image et apparence dans la theacuteorie platonicienne de la mimecircsis Journal de Psychologie Paris v 72 n 2 p 133-160

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

234

aqui nos posicionar quanto a essa controveacutersia o que ultrapassaria os limi-tes da presente proposta entrementes tal discussatildeo evidencia o valor em se examinar o uso da arte pictoacuterica em outros momentos do pensamento platocircnico para que assim possamos em reflexotildees posteriores nos utilizar de um maior nuacutemero de recursos textuais que nos auxiliem a melhor com-preender tema tatildeo controverso na histoacuteria da filosofia como o da possiacutevel expulsatildeo dos poetas e artistas mimeacuteticos da cidade ideal

Isso se mostraraacute devidamente pertinente ao logo dessa investiga-ccedilatildeo vejamos agora o motivo dessa pertinecircncia apresentando os contextos nos quais a pintura eacute referenciada no Timeu

a arte pictoacuterica se encontra em trecircs momentos diferentes do diaacutelogo o primeiro deles eacute o proecircmio onde sua imagem aparece em duas passagens a pintura eacute usada por Soacutecrates personagem principal na cons-truccedilatildeo da cidade utoacutepica da Repuacuteblica como sabemos logo apoacutes se relem-brar das principais caracteriacutesticas presentes provavelmente nessa cidade

7

ele estabelece uma analogia entre a cidade ideal e uma obra pictoacuterica a

imagem da pintura eacute logo em seguida retomada por Criacutetias quando ter-mina de relatar o que contara seu avocirc tambeacutem chamado de Criacutetias sobre a cidade ancestral de atenas semelhante agrave cidade utoacutepica Curiosamente ou propositalmente o primeiro contexto em que a pintura aparece no di-aacutelogo eacute exatamente quando se tem como tema a cidade ideal ou utoacutepica e

avril-Juin 1975 e lICHteNSteIN Jacqueline da toalete platocircnica In ______ A cor eloquente traduccedilatildeo de Maria elizabeth Chaves de Mello e Maria Helena de Mello Rouanet Satildeo Paulo Siciliano 1994 p 45-62

7 Sobre a controveacutersia a respeito dessa referecircncia cf por exemplo CRoMBIe Ian

An examination of Platorsquos doctrines london Routledge Kegan Paul 1962 p 197-199 RIvaUd 1985 p 19-20 e vIdal-NaQUet Pierre Atlacircntida pequena histoacuteria de um mito platocircnico Traduccedilatildeo Lygia Arauacutejo Watanabe Satildeo Paulo Unesp 2008 p 26 a nosso ver dado que as caracteriacutesticas da cidade de que fala Soacutecrates tambeacutem satildeo da cidade ideal da Repuacuteblica temos ao menos uma remissatildeo a esse diaacutelogo Resumidamente as diferenccedilas entre o resumo de Soacutecrates no Timeu e o texto da Repuacuteblica satildeo os perso-nagens do Timeu diferem dos da Repuacuteblica (todavia poder-se-ia levantar a hipoacutetese de que Soacutecrates no dia antecedente ao encontro relatado no Timeu relatara aos personagens desse diaacutelogo sobre a conversa a respeito da cidade ideal na casa de Ceacutefalo) a festa que ocorria na cena dramaacutetica do Timeu era as Panatenaicas (cf RIvaUd 1985 p 19) os temas somente relatam o que fora discutido do livro I ao v da Repuacuteblica e nada se fala sobre o filoacutesofo como governante usando-se somente o termo guardiatildeo

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

235

a narrativa atoacutepica8 de sua realizaccedilatildeo fatual num passado longiacutenquo

9 ndash o

que portanto evidencia a coerecircncia dessa nossa investigaccedilatildeo quando estaacute em pauta reler a dita expulsatildeo da arte mimeacutetica da cidade ideal

Para respeitar o formato de artigo acadecircmico neste texto nos limitaremos a analisar a primeira referecircncia agrave pintura no Timeu feita pelo personagem Soacutecrates este uso da pintura nos faraacute resgatar algumas passa-gens da Repuacuteblica assim como de outros diaacutelogos nas quais a arte pictoacuterica aparece em diferentes relaccedilotildees comparativas natildeo soacute com a cidade ideal mas com a proacutepria filosofia como veremos Uma pergunta entatildeo impor-se-aacute qual(is) o(s) ponto(s) comum(ns) entre obras filosoacutefica e pictoacuterica que permite(m) a analogia realizada por Platatildeo

Como dissemos ao longo do Timeu outras referecircncias satildeo feitas agrave pintura Para natildeo cometermos o erro de analisar a parte ignorantes do todo vejamos de forma sucinta os usos restantes da imagem da pintura todos no contexto do mito de timeu Num segundo momento o personagem timeu ainda no iniacutecio de seu relato mitoloacutegico sobre o princiacutepio de tudo afirma que o demiurgo divino que confecciona o universo pinta borda ou configura (diazwgrafw) as constelaccedilotildees no ceacuteu usando o dodecaedro

10

a pintura eacute uma dentre as artesanias usadas provavelmente em metaacutefora para descrever o processo de criaccedilatildeo de todo o cosmo dentre metalurgia construccedilatildeo ceracircmica tecelagem agricultura e realeza tambeacutem aparece a pintura o que aliaacutes jaacute fora apontado por Brisson em Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du timeacutee de Platon

11

Por fim haacute ainda um uacuteltimo contexto em que encontramos a arte de pintar depois de na cidade ideal e na ancestral de atenas no ceacuteu e seus astros a pintura aparece na descriccedilatildeo de como se eacute visitado por sonhos profeacuteticos

12 esse tema talvez estranho para noacutes modernos e presente na

cultura grega em geral desde pelo menos os poemas homeacutericos possivel-

8 Cf PlatAtildeo Timeu 20d-e

9 Sobre as diversas interpretaccedilotildees dessa narrativa como histoacuterica fictiacutecia alegoacuterica ou

transposiccedilatildeo poeacutetica de fatos reais cf RIvaUd 1985 p 28-3110

Cf PlatAtildeo Timeu 55c11

BRISSoN luc Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du Timeacutee de Platon un com-mentaire systeacutematique du timeacutee de Platon Paris Eacuteditions Klincksieck 1974 p 47

12 Cf PlatAtildeo Timeu 71c

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

236

mente natildeo soaria extravagante aos ouvintes de timeu e seraacute no encontro com o universo do que podemos considerar como senso comum grego da tradiccedilatildeo religiosa e ritualiacutestica que as referecircncias agrave pintura que selecionamos chegam ao fim nesse diaacutelogo em questatildeo

Sem ignorar os contextos em que a imagem da pintura eacute usada no diaacutelogo como um todo comecemos a anaacutelise da nossa parte a primeira referecircncia Como dissemos nela a pintura eacute usada para tratar do tema da cidade a que tudo indica a cidade ideal da Repuacuteblica

logo no iniacutecio do Timeu os personagens do diaacutelogo Soacutecrates Criacutetias timeu e Hermoacutecrates conversam sobre o assunto que seraacute abordado nesse dia de encontro trata-se da continuaccedilatildeo de um coloacutequio iniciado no dia anterior quando Soacutecrates expocircs sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel e os homens que deveriam executaacute-la ele diz que estaacute insatisfeito com sua exposiccedilatildeo que seu sentimento em relaccedilatildeo a ela eacute como o de um homem ao contemplar uma pintura de belos animais ou esses mesmos animais em repouso ele quer vecirc-los em movimento o desejo de Soacutecrates eacute saber como os homens da cidade ideal se comportariam em guerras ou disputas como agiriam depois de terem sido educados na virtude Criacutetias satisfaz seu desejo delineando ainda que em esboccedilo como a cidade ancestral de atenas em muitos aspectos semelhante agrave cidade ldquopintadardquo por Soacutecrates derrotou a grande e luxuosa potecircncia de atlacircntida antes de Criacutetias narrar essa estoacuteria em pormenores o que faraacute no diaacutelogo que leva seu nome caberaacute a timeu expor sobre o iniacutecio do mundo chegando ateacute o nascimento do homem

Retomemos o sentimento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave sua expo-siccedilatildeo sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel eacute o mesmo que experimenta ao contemplar uma pintura de belos animais ou os proacuteprios animais em repouso a pintura e a cidade ideal compartilham o estado de total repouso a imobilidade frente agrave qual podemos desejar ansiar como Soacutecrates sermos espectadores do movimento Nesse sentido podemos dizer que a pintura e o discurso filosoacutefico da cidade ideal ou utoacutepica satildeo como uma promessa ou uma esperanccedila a descriccedilatildeo de algo que queremos ver acontecendo em vida em movimento eis as exatas palavras que Platatildeo coloca na boca de Soacutecrates logo depois da recapitulaccedilatildeo dos principais temas discutidos no dia anterior

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 3: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

233

Sabemos que a pintura nunca foi tomada pelo filoacutesofo como objeto de aprofundadas reflexotildees basta compararmos sua presenccedila nos diaacutelogos com temas mais recorrentes e diretamente discutidos tais como o da educaccedilatildeo das virtudes da poliacutetica da poesia do discurso dentre outros

5

todavia eacute exatamente a pintura que eacute usada por Soacutecrates personagem de Platatildeo numa das passagens do corpus platonicum mais conhecidas citadas e muitiacutessimas vezes profundamente criticadas tanto por filoacutesofos como por comentadores de Platatildeo e teoacutericos da arte em geral falamos da gradaccedilatildeo mimeacutetica apresentada na primeira parte do deacutecimo livro da Repuacuteblica Neste contexto a pintura aparece como sabemos retratando aquelas artes mimeacute-ticas que satildeo coacutepias de objetos que jaacute satildeo coacutepias das ideias produzidas por deus o sentido dessa gradaccedilatildeo eacute objeto de debate constante por parte dos inteacuterpretes de Platatildeo tomada de uma forma geral tal questatildeo natildeo recebeu ateacute hoje uma resposta consensual nos textos acadecircmicos

6 Natildeo conveacutem

5 Isso eacute apontado em KeUlS eva Plato and Greek Painting leiden e J Brill 1978

trata-se de um dos pontos centrais da tese de Keuls sobre a questatildeo da pintura nos diaacutelogos Para ela a ausecircncia de um tratamento direto da questatildeo da pintura evidenciaria o desinteresse de Platatildeo por esse modernamente chamado gecircnero artiacutestico

6 Cf algumas possibilidades de leitura apresentadas resumidamente em lodge Ru-

pert Platorsquos Theory of Art oxford Routledge 2010 Mimesis i) Platatildeo critica a arte mimeacutetica em geral (ver CRoCe Benedeto Aesthetic as science of expression and general linguistic translated by douglas ainslie a digireadscom Publication 2004 p 158) ii) ele rechaccedila somente a arte mimeacutetica enquanto entretenimento isto eacute feita para o simples prazer (leitura de NettleSHIP Richard lewis Lectures on Platorsquos Republic 2nd ed london Macmillan amp Co New York St Martinrsquos Press 1964 p 353) iii) ele expulsa da cidade exclusivamente a arte representativa que identifica agravequela feita para a diversatildeo (cf CollINgWood Robin george The principles of art london oxford University Press 1958 p 46-52) a primeira leitura eacute a mais difundida Segundo Pa-nofsky eacute feita desde Plotino (cf PaNoFSKY erwin Idea a evoluccedilatildeo do conceito de belo traduccedilatildeo de Paulo Neves Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 8 PlotINUS on the intellectual beauty In ______ The six Enneads translated by Stephen MacKenna Chicago Willian Benton Publisher 1952 v 8 e a traduccedilatildeo em liacutengua portuguesa da passagem mais importante sobre essa temaacutetica em que Plotino critica o desprezo da arte e sua compreensatildeo ndash a que tudo indica platocircnica ndash como simples coacutepia de apa-recircncias em PINHeIRo Marcus Reis o aprendiz do belo a ldquoarte-eacuteticardquo em Plotino VISO Cadernos de Esteacutetica Aplicada n 3 set-dez 2007 disponiacutevel em lthttpwwwrevistavisocombrpdfviso_3_MarcusReispdfgt) ela perdura ateacute a atualidade e se encontra em por exemplo oSBoRNe Harold Esteacutetica e teoria da arte uma introduccedilatildeo histoacuterica traduccedilatildeo de octavio Mendes Cajado 4 ed Satildeo Paulo editora Cultrix sd p 81-82 HaaR Michel a depreciaccedilatildeo platocircnica da arte In ______ A obra de arte ensaio sobre a ontologia das obras traduccedilatildeo de Maria Helena Kuumlhner 2 ed Rio de Janeiro difel 2007 p 16-21 veRNaNt Jean-Pierre Image et apparence dans la theacuteorie platonicienne de la mimecircsis Journal de Psychologie Paris v 72 n 2 p 133-160

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

234

aqui nos posicionar quanto a essa controveacutersia o que ultrapassaria os limi-tes da presente proposta entrementes tal discussatildeo evidencia o valor em se examinar o uso da arte pictoacuterica em outros momentos do pensamento platocircnico para que assim possamos em reflexotildees posteriores nos utilizar de um maior nuacutemero de recursos textuais que nos auxiliem a melhor com-preender tema tatildeo controverso na histoacuteria da filosofia como o da possiacutevel expulsatildeo dos poetas e artistas mimeacuteticos da cidade ideal

Isso se mostraraacute devidamente pertinente ao logo dessa investiga-ccedilatildeo vejamos agora o motivo dessa pertinecircncia apresentando os contextos nos quais a pintura eacute referenciada no Timeu

a arte pictoacuterica se encontra em trecircs momentos diferentes do diaacutelogo o primeiro deles eacute o proecircmio onde sua imagem aparece em duas passagens a pintura eacute usada por Soacutecrates personagem principal na cons-truccedilatildeo da cidade utoacutepica da Repuacuteblica como sabemos logo apoacutes se relem-brar das principais caracteriacutesticas presentes provavelmente nessa cidade

7

ele estabelece uma analogia entre a cidade ideal e uma obra pictoacuterica a

imagem da pintura eacute logo em seguida retomada por Criacutetias quando ter-mina de relatar o que contara seu avocirc tambeacutem chamado de Criacutetias sobre a cidade ancestral de atenas semelhante agrave cidade utoacutepica Curiosamente ou propositalmente o primeiro contexto em que a pintura aparece no di-aacutelogo eacute exatamente quando se tem como tema a cidade ideal ou utoacutepica e

avril-Juin 1975 e lICHteNSteIN Jacqueline da toalete platocircnica In ______ A cor eloquente traduccedilatildeo de Maria elizabeth Chaves de Mello e Maria Helena de Mello Rouanet Satildeo Paulo Siciliano 1994 p 45-62

7 Sobre a controveacutersia a respeito dessa referecircncia cf por exemplo CRoMBIe Ian

An examination of Platorsquos doctrines london Routledge Kegan Paul 1962 p 197-199 RIvaUd 1985 p 19-20 e vIdal-NaQUet Pierre Atlacircntida pequena histoacuteria de um mito platocircnico Traduccedilatildeo Lygia Arauacutejo Watanabe Satildeo Paulo Unesp 2008 p 26 a nosso ver dado que as caracteriacutesticas da cidade de que fala Soacutecrates tambeacutem satildeo da cidade ideal da Repuacuteblica temos ao menos uma remissatildeo a esse diaacutelogo Resumidamente as diferenccedilas entre o resumo de Soacutecrates no Timeu e o texto da Repuacuteblica satildeo os perso-nagens do Timeu diferem dos da Repuacuteblica (todavia poder-se-ia levantar a hipoacutetese de que Soacutecrates no dia antecedente ao encontro relatado no Timeu relatara aos personagens desse diaacutelogo sobre a conversa a respeito da cidade ideal na casa de Ceacutefalo) a festa que ocorria na cena dramaacutetica do Timeu era as Panatenaicas (cf RIvaUd 1985 p 19) os temas somente relatam o que fora discutido do livro I ao v da Repuacuteblica e nada se fala sobre o filoacutesofo como governante usando-se somente o termo guardiatildeo

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

235

a narrativa atoacutepica8 de sua realizaccedilatildeo fatual num passado longiacutenquo

9 ndash o

que portanto evidencia a coerecircncia dessa nossa investigaccedilatildeo quando estaacute em pauta reler a dita expulsatildeo da arte mimeacutetica da cidade ideal

Para respeitar o formato de artigo acadecircmico neste texto nos limitaremos a analisar a primeira referecircncia agrave pintura no Timeu feita pelo personagem Soacutecrates este uso da pintura nos faraacute resgatar algumas passa-gens da Repuacuteblica assim como de outros diaacutelogos nas quais a arte pictoacuterica aparece em diferentes relaccedilotildees comparativas natildeo soacute com a cidade ideal mas com a proacutepria filosofia como veremos Uma pergunta entatildeo impor-se-aacute qual(is) o(s) ponto(s) comum(ns) entre obras filosoacutefica e pictoacuterica que permite(m) a analogia realizada por Platatildeo

Como dissemos ao longo do Timeu outras referecircncias satildeo feitas agrave pintura Para natildeo cometermos o erro de analisar a parte ignorantes do todo vejamos de forma sucinta os usos restantes da imagem da pintura todos no contexto do mito de timeu Num segundo momento o personagem timeu ainda no iniacutecio de seu relato mitoloacutegico sobre o princiacutepio de tudo afirma que o demiurgo divino que confecciona o universo pinta borda ou configura (diazwgrafw) as constelaccedilotildees no ceacuteu usando o dodecaedro

10

a pintura eacute uma dentre as artesanias usadas provavelmente em metaacutefora para descrever o processo de criaccedilatildeo de todo o cosmo dentre metalurgia construccedilatildeo ceracircmica tecelagem agricultura e realeza tambeacutem aparece a pintura o que aliaacutes jaacute fora apontado por Brisson em Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du timeacutee de Platon

11

Por fim haacute ainda um uacuteltimo contexto em que encontramos a arte de pintar depois de na cidade ideal e na ancestral de atenas no ceacuteu e seus astros a pintura aparece na descriccedilatildeo de como se eacute visitado por sonhos profeacuteticos

12 esse tema talvez estranho para noacutes modernos e presente na

cultura grega em geral desde pelo menos os poemas homeacutericos possivel-

8 Cf PlatAtildeo Timeu 20d-e

9 Sobre as diversas interpretaccedilotildees dessa narrativa como histoacuterica fictiacutecia alegoacuterica ou

transposiccedilatildeo poeacutetica de fatos reais cf RIvaUd 1985 p 28-3110

Cf PlatAtildeo Timeu 55c11

BRISSoN luc Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du Timeacutee de Platon un com-mentaire systeacutematique du timeacutee de Platon Paris Eacuteditions Klincksieck 1974 p 47

12 Cf PlatAtildeo Timeu 71c

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

236

mente natildeo soaria extravagante aos ouvintes de timeu e seraacute no encontro com o universo do que podemos considerar como senso comum grego da tradiccedilatildeo religiosa e ritualiacutestica que as referecircncias agrave pintura que selecionamos chegam ao fim nesse diaacutelogo em questatildeo

Sem ignorar os contextos em que a imagem da pintura eacute usada no diaacutelogo como um todo comecemos a anaacutelise da nossa parte a primeira referecircncia Como dissemos nela a pintura eacute usada para tratar do tema da cidade a que tudo indica a cidade ideal da Repuacuteblica

logo no iniacutecio do Timeu os personagens do diaacutelogo Soacutecrates Criacutetias timeu e Hermoacutecrates conversam sobre o assunto que seraacute abordado nesse dia de encontro trata-se da continuaccedilatildeo de um coloacutequio iniciado no dia anterior quando Soacutecrates expocircs sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel e os homens que deveriam executaacute-la ele diz que estaacute insatisfeito com sua exposiccedilatildeo que seu sentimento em relaccedilatildeo a ela eacute como o de um homem ao contemplar uma pintura de belos animais ou esses mesmos animais em repouso ele quer vecirc-los em movimento o desejo de Soacutecrates eacute saber como os homens da cidade ideal se comportariam em guerras ou disputas como agiriam depois de terem sido educados na virtude Criacutetias satisfaz seu desejo delineando ainda que em esboccedilo como a cidade ancestral de atenas em muitos aspectos semelhante agrave cidade ldquopintadardquo por Soacutecrates derrotou a grande e luxuosa potecircncia de atlacircntida antes de Criacutetias narrar essa estoacuteria em pormenores o que faraacute no diaacutelogo que leva seu nome caberaacute a timeu expor sobre o iniacutecio do mundo chegando ateacute o nascimento do homem

Retomemos o sentimento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave sua expo-siccedilatildeo sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel eacute o mesmo que experimenta ao contemplar uma pintura de belos animais ou os proacuteprios animais em repouso a pintura e a cidade ideal compartilham o estado de total repouso a imobilidade frente agrave qual podemos desejar ansiar como Soacutecrates sermos espectadores do movimento Nesse sentido podemos dizer que a pintura e o discurso filosoacutefico da cidade ideal ou utoacutepica satildeo como uma promessa ou uma esperanccedila a descriccedilatildeo de algo que queremos ver acontecendo em vida em movimento eis as exatas palavras que Platatildeo coloca na boca de Soacutecrates logo depois da recapitulaccedilatildeo dos principais temas discutidos no dia anterior

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 4: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

234

aqui nos posicionar quanto a essa controveacutersia o que ultrapassaria os limi-tes da presente proposta entrementes tal discussatildeo evidencia o valor em se examinar o uso da arte pictoacuterica em outros momentos do pensamento platocircnico para que assim possamos em reflexotildees posteriores nos utilizar de um maior nuacutemero de recursos textuais que nos auxiliem a melhor com-preender tema tatildeo controverso na histoacuteria da filosofia como o da possiacutevel expulsatildeo dos poetas e artistas mimeacuteticos da cidade ideal

Isso se mostraraacute devidamente pertinente ao logo dessa investiga-ccedilatildeo vejamos agora o motivo dessa pertinecircncia apresentando os contextos nos quais a pintura eacute referenciada no Timeu

a arte pictoacuterica se encontra em trecircs momentos diferentes do diaacutelogo o primeiro deles eacute o proecircmio onde sua imagem aparece em duas passagens a pintura eacute usada por Soacutecrates personagem principal na cons-truccedilatildeo da cidade utoacutepica da Repuacuteblica como sabemos logo apoacutes se relem-brar das principais caracteriacutesticas presentes provavelmente nessa cidade

7

ele estabelece uma analogia entre a cidade ideal e uma obra pictoacuterica a

imagem da pintura eacute logo em seguida retomada por Criacutetias quando ter-mina de relatar o que contara seu avocirc tambeacutem chamado de Criacutetias sobre a cidade ancestral de atenas semelhante agrave cidade utoacutepica Curiosamente ou propositalmente o primeiro contexto em que a pintura aparece no di-aacutelogo eacute exatamente quando se tem como tema a cidade ideal ou utoacutepica e

avril-Juin 1975 e lICHteNSteIN Jacqueline da toalete platocircnica In ______ A cor eloquente traduccedilatildeo de Maria elizabeth Chaves de Mello e Maria Helena de Mello Rouanet Satildeo Paulo Siciliano 1994 p 45-62

7 Sobre a controveacutersia a respeito dessa referecircncia cf por exemplo CRoMBIe Ian

An examination of Platorsquos doctrines london Routledge Kegan Paul 1962 p 197-199 RIvaUd 1985 p 19-20 e vIdal-NaQUet Pierre Atlacircntida pequena histoacuteria de um mito platocircnico Traduccedilatildeo Lygia Arauacutejo Watanabe Satildeo Paulo Unesp 2008 p 26 a nosso ver dado que as caracteriacutesticas da cidade de que fala Soacutecrates tambeacutem satildeo da cidade ideal da Repuacuteblica temos ao menos uma remissatildeo a esse diaacutelogo Resumidamente as diferenccedilas entre o resumo de Soacutecrates no Timeu e o texto da Repuacuteblica satildeo os perso-nagens do Timeu diferem dos da Repuacuteblica (todavia poder-se-ia levantar a hipoacutetese de que Soacutecrates no dia antecedente ao encontro relatado no Timeu relatara aos personagens desse diaacutelogo sobre a conversa a respeito da cidade ideal na casa de Ceacutefalo) a festa que ocorria na cena dramaacutetica do Timeu era as Panatenaicas (cf RIvaUd 1985 p 19) os temas somente relatam o que fora discutido do livro I ao v da Repuacuteblica e nada se fala sobre o filoacutesofo como governante usando-se somente o termo guardiatildeo

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

235

a narrativa atoacutepica8 de sua realizaccedilatildeo fatual num passado longiacutenquo

9 ndash o

que portanto evidencia a coerecircncia dessa nossa investigaccedilatildeo quando estaacute em pauta reler a dita expulsatildeo da arte mimeacutetica da cidade ideal

Para respeitar o formato de artigo acadecircmico neste texto nos limitaremos a analisar a primeira referecircncia agrave pintura no Timeu feita pelo personagem Soacutecrates este uso da pintura nos faraacute resgatar algumas passa-gens da Repuacuteblica assim como de outros diaacutelogos nas quais a arte pictoacuterica aparece em diferentes relaccedilotildees comparativas natildeo soacute com a cidade ideal mas com a proacutepria filosofia como veremos Uma pergunta entatildeo impor-se-aacute qual(is) o(s) ponto(s) comum(ns) entre obras filosoacutefica e pictoacuterica que permite(m) a analogia realizada por Platatildeo

Como dissemos ao longo do Timeu outras referecircncias satildeo feitas agrave pintura Para natildeo cometermos o erro de analisar a parte ignorantes do todo vejamos de forma sucinta os usos restantes da imagem da pintura todos no contexto do mito de timeu Num segundo momento o personagem timeu ainda no iniacutecio de seu relato mitoloacutegico sobre o princiacutepio de tudo afirma que o demiurgo divino que confecciona o universo pinta borda ou configura (diazwgrafw) as constelaccedilotildees no ceacuteu usando o dodecaedro

10

a pintura eacute uma dentre as artesanias usadas provavelmente em metaacutefora para descrever o processo de criaccedilatildeo de todo o cosmo dentre metalurgia construccedilatildeo ceracircmica tecelagem agricultura e realeza tambeacutem aparece a pintura o que aliaacutes jaacute fora apontado por Brisson em Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du timeacutee de Platon

11

Por fim haacute ainda um uacuteltimo contexto em que encontramos a arte de pintar depois de na cidade ideal e na ancestral de atenas no ceacuteu e seus astros a pintura aparece na descriccedilatildeo de como se eacute visitado por sonhos profeacuteticos

12 esse tema talvez estranho para noacutes modernos e presente na

cultura grega em geral desde pelo menos os poemas homeacutericos possivel-

8 Cf PlatAtildeo Timeu 20d-e

9 Sobre as diversas interpretaccedilotildees dessa narrativa como histoacuterica fictiacutecia alegoacuterica ou

transposiccedilatildeo poeacutetica de fatos reais cf RIvaUd 1985 p 28-3110

Cf PlatAtildeo Timeu 55c11

BRISSoN luc Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du Timeacutee de Platon un com-mentaire systeacutematique du timeacutee de Platon Paris Eacuteditions Klincksieck 1974 p 47

12 Cf PlatAtildeo Timeu 71c

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

236

mente natildeo soaria extravagante aos ouvintes de timeu e seraacute no encontro com o universo do que podemos considerar como senso comum grego da tradiccedilatildeo religiosa e ritualiacutestica que as referecircncias agrave pintura que selecionamos chegam ao fim nesse diaacutelogo em questatildeo

Sem ignorar os contextos em que a imagem da pintura eacute usada no diaacutelogo como um todo comecemos a anaacutelise da nossa parte a primeira referecircncia Como dissemos nela a pintura eacute usada para tratar do tema da cidade a que tudo indica a cidade ideal da Repuacuteblica

logo no iniacutecio do Timeu os personagens do diaacutelogo Soacutecrates Criacutetias timeu e Hermoacutecrates conversam sobre o assunto que seraacute abordado nesse dia de encontro trata-se da continuaccedilatildeo de um coloacutequio iniciado no dia anterior quando Soacutecrates expocircs sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel e os homens que deveriam executaacute-la ele diz que estaacute insatisfeito com sua exposiccedilatildeo que seu sentimento em relaccedilatildeo a ela eacute como o de um homem ao contemplar uma pintura de belos animais ou esses mesmos animais em repouso ele quer vecirc-los em movimento o desejo de Soacutecrates eacute saber como os homens da cidade ideal se comportariam em guerras ou disputas como agiriam depois de terem sido educados na virtude Criacutetias satisfaz seu desejo delineando ainda que em esboccedilo como a cidade ancestral de atenas em muitos aspectos semelhante agrave cidade ldquopintadardquo por Soacutecrates derrotou a grande e luxuosa potecircncia de atlacircntida antes de Criacutetias narrar essa estoacuteria em pormenores o que faraacute no diaacutelogo que leva seu nome caberaacute a timeu expor sobre o iniacutecio do mundo chegando ateacute o nascimento do homem

Retomemos o sentimento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave sua expo-siccedilatildeo sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel eacute o mesmo que experimenta ao contemplar uma pintura de belos animais ou os proacuteprios animais em repouso a pintura e a cidade ideal compartilham o estado de total repouso a imobilidade frente agrave qual podemos desejar ansiar como Soacutecrates sermos espectadores do movimento Nesse sentido podemos dizer que a pintura e o discurso filosoacutefico da cidade ideal ou utoacutepica satildeo como uma promessa ou uma esperanccedila a descriccedilatildeo de algo que queremos ver acontecendo em vida em movimento eis as exatas palavras que Platatildeo coloca na boca de Soacutecrates logo depois da recapitulaccedilatildeo dos principais temas discutidos no dia anterior

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 5: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

235

a narrativa atoacutepica8 de sua realizaccedilatildeo fatual num passado longiacutenquo

9 ndash o

que portanto evidencia a coerecircncia dessa nossa investigaccedilatildeo quando estaacute em pauta reler a dita expulsatildeo da arte mimeacutetica da cidade ideal

Para respeitar o formato de artigo acadecircmico neste texto nos limitaremos a analisar a primeira referecircncia agrave pintura no Timeu feita pelo personagem Soacutecrates este uso da pintura nos faraacute resgatar algumas passa-gens da Repuacuteblica assim como de outros diaacutelogos nas quais a arte pictoacuterica aparece em diferentes relaccedilotildees comparativas natildeo soacute com a cidade ideal mas com a proacutepria filosofia como veremos Uma pergunta entatildeo impor-se-aacute qual(is) o(s) ponto(s) comum(ns) entre obras filosoacutefica e pictoacuterica que permite(m) a analogia realizada por Platatildeo

Como dissemos ao longo do Timeu outras referecircncias satildeo feitas agrave pintura Para natildeo cometermos o erro de analisar a parte ignorantes do todo vejamos de forma sucinta os usos restantes da imagem da pintura todos no contexto do mito de timeu Num segundo momento o personagem timeu ainda no iniacutecio de seu relato mitoloacutegico sobre o princiacutepio de tudo afirma que o demiurgo divino que confecciona o universo pinta borda ou configura (diazwgrafw) as constelaccedilotildees no ceacuteu usando o dodecaedro

10

a pintura eacute uma dentre as artesanias usadas provavelmente em metaacutefora para descrever o processo de criaccedilatildeo de todo o cosmo dentre metalurgia construccedilatildeo ceracircmica tecelagem agricultura e realeza tambeacutem aparece a pintura o que aliaacutes jaacute fora apontado por Brisson em Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du timeacutee de Platon

11

Por fim haacute ainda um uacuteltimo contexto em que encontramos a arte de pintar depois de na cidade ideal e na ancestral de atenas no ceacuteu e seus astros a pintura aparece na descriccedilatildeo de como se eacute visitado por sonhos profeacuteticos

12 esse tema talvez estranho para noacutes modernos e presente na

cultura grega em geral desde pelo menos os poemas homeacutericos possivel-

8 Cf PlatAtildeo Timeu 20d-e

9 Sobre as diversas interpretaccedilotildees dessa narrativa como histoacuterica fictiacutecia alegoacuterica ou

transposiccedilatildeo poeacutetica de fatos reais cf RIvaUd 1985 p 28-3110

Cf PlatAtildeo Timeu 55c11

BRISSoN luc Le mecircme et lrsquoautre dans la structure ontologique du Timeacutee de Platon un com-mentaire systeacutematique du timeacutee de Platon Paris Eacuteditions Klincksieck 1974 p 47

12 Cf PlatAtildeo Timeu 71c

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

236

mente natildeo soaria extravagante aos ouvintes de timeu e seraacute no encontro com o universo do que podemos considerar como senso comum grego da tradiccedilatildeo religiosa e ritualiacutestica que as referecircncias agrave pintura que selecionamos chegam ao fim nesse diaacutelogo em questatildeo

Sem ignorar os contextos em que a imagem da pintura eacute usada no diaacutelogo como um todo comecemos a anaacutelise da nossa parte a primeira referecircncia Como dissemos nela a pintura eacute usada para tratar do tema da cidade a que tudo indica a cidade ideal da Repuacuteblica

logo no iniacutecio do Timeu os personagens do diaacutelogo Soacutecrates Criacutetias timeu e Hermoacutecrates conversam sobre o assunto que seraacute abordado nesse dia de encontro trata-se da continuaccedilatildeo de um coloacutequio iniciado no dia anterior quando Soacutecrates expocircs sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel e os homens que deveriam executaacute-la ele diz que estaacute insatisfeito com sua exposiccedilatildeo que seu sentimento em relaccedilatildeo a ela eacute como o de um homem ao contemplar uma pintura de belos animais ou esses mesmos animais em repouso ele quer vecirc-los em movimento o desejo de Soacutecrates eacute saber como os homens da cidade ideal se comportariam em guerras ou disputas como agiriam depois de terem sido educados na virtude Criacutetias satisfaz seu desejo delineando ainda que em esboccedilo como a cidade ancestral de atenas em muitos aspectos semelhante agrave cidade ldquopintadardquo por Soacutecrates derrotou a grande e luxuosa potecircncia de atlacircntida antes de Criacutetias narrar essa estoacuteria em pormenores o que faraacute no diaacutelogo que leva seu nome caberaacute a timeu expor sobre o iniacutecio do mundo chegando ateacute o nascimento do homem

Retomemos o sentimento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave sua expo-siccedilatildeo sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel eacute o mesmo que experimenta ao contemplar uma pintura de belos animais ou os proacuteprios animais em repouso a pintura e a cidade ideal compartilham o estado de total repouso a imobilidade frente agrave qual podemos desejar ansiar como Soacutecrates sermos espectadores do movimento Nesse sentido podemos dizer que a pintura e o discurso filosoacutefico da cidade ideal ou utoacutepica satildeo como uma promessa ou uma esperanccedila a descriccedilatildeo de algo que queremos ver acontecendo em vida em movimento eis as exatas palavras que Platatildeo coloca na boca de Soacutecrates logo depois da recapitulaccedilatildeo dos principais temas discutidos no dia anterior

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 6: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

236

mente natildeo soaria extravagante aos ouvintes de timeu e seraacute no encontro com o universo do que podemos considerar como senso comum grego da tradiccedilatildeo religiosa e ritualiacutestica que as referecircncias agrave pintura que selecionamos chegam ao fim nesse diaacutelogo em questatildeo

Sem ignorar os contextos em que a imagem da pintura eacute usada no diaacutelogo como um todo comecemos a anaacutelise da nossa parte a primeira referecircncia Como dissemos nela a pintura eacute usada para tratar do tema da cidade a que tudo indica a cidade ideal da Repuacuteblica

logo no iniacutecio do Timeu os personagens do diaacutelogo Soacutecrates Criacutetias timeu e Hermoacutecrates conversam sobre o assunto que seraacute abordado nesse dia de encontro trata-se da continuaccedilatildeo de um coloacutequio iniciado no dia anterior quando Soacutecrates expocircs sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel e os homens que deveriam executaacute-la ele diz que estaacute insatisfeito com sua exposiccedilatildeo que seu sentimento em relaccedilatildeo a ela eacute como o de um homem ao contemplar uma pintura de belos animais ou esses mesmos animais em repouso ele quer vecirc-los em movimento o desejo de Soacutecrates eacute saber como os homens da cidade ideal se comportariam em guerras ou disputas como agiriam depois de terem sido educados na virtude Criacutetias satisfaz seu desejo delineando ainda que em esboccedilo como a cidade ancestral de atenas em muitos aspectos semelhante agrave cidade ldquopintadardquo por Soacutecrates derrotou a grande e luxuosa potecircncia de atlacircntida antes de Criacutetias narrar essa estoacuteria em pormenores o que faraacute no diaacutelogo que leva seu nome caberaacute a timeu expor sobre o iniacutecio do mundo chegando ateacute o nascimento do homem

Retomemos o sentimento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave sua expo-siccedilatildeo sobre a melhor constituiccedilatildeo possiacutevel eacute o mesmo que experimenta ao contemplar uma pintura de belos animais ou os proacuteprios animais em repouso a pintura e a cidade ideal compartilham o estado de total repouso a imobilidade frente agrave qual podemos desejar ansiar como Soacutecrates sermos espectadores do movimento Nesse sentido podemos dizer que a pintura e o discurso filosoacutefico da cidade ideal ou utoacutepica satildeo como uma promessa ou uma esperanccedila a descriccedilatildeo de algo que queremos ver acontecendo em vida em movimento eis as exatas palavras que Platatildeo coloca na boca de Soacutecrates logo depois da recapitulaccedilatildeo dos principais temas discutidos no dia anterior

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 7: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

237

A)kouoit ) a)n h)dh ta meta tau=ta peri th=j politeiaj h(n dihlqomen oi=(on ti proj au)thn peponqwj tugcanw Proseoiken de dh tini moi toiugravede to paqoj oi=(on ei) tij zugravea kala pou qeasamenoj ei)te u(po grafh=j ei)rgasmena ei)te kai zw=nta a)lhqinw=j h(sucian de a)gonta ei)j e)piqumian a)fikoito qeasasqai kinoumena te au)ta kai ti tw=n toi=j swmasin dokountwn proshkein kata thn a)gwnian a)qlou=ntaEntatildeo ouvi o que eu sinto a respeito da [constituiccedilatildeo] por noacutes descrita Meu sentimento se assemelha ao de quem contemplou alhures belos animais ou se trate de pintura ou mesmo de seres vivos mas em posiccedilatildeo de repouso e fosse tomado do desejo de vecirc-los executar os [movimentos de luta que parecem mais condizentes] com sua constituiccedilatildeo somaacutetica13

logo agrave primeira vista percebemos que a imagem da pintura eacute utilizada nessa passagem devido a uma de suas propriedades intriacutensecas a da imobilidade chamada de repouso no caso dos animais h(sucia em grego que tambeacutem engloba os sentidos de sossego calma tranquilidade ou ainda estado de paz Soacutecrates eacute tomado pelo desejo de ver o movimento seja ao contemplar uma pintura de belos animais seja quando os vecirc diretamente sossegados Eacute por que em repouso e paz que o desejo de Soacutecrates eacute aticcedilado pelo movimento pelas lutas pela guerra essa caracteriacutestica da pintura eacute de fato oacutebvia o pintor mesmo ao retratar uma cena onde haveria movimento soacute consegue no maacuteximo sugeri-lo pela justaposiccedilatildeo de seus elementos

14 a

pintura eacute imoacutevel15

No contexto artiacutestico ou para usar as palavras de Platatildeo das artes mimeacuteticas a imagem em movimento soacute surgiraacute com o advento da arte cinematograacutefica na Contemporaneidade Jaacute seres em repouso ndash que 13

PlatAtildeo Timeu Criacutetias traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes 3 ed Beleacutem edUFPa 2001 19b Modificamos um pouco a traduccedilatildeo preferimos constituiccedilatildeo a sociedade como traduccedilatildeo de politeia e que parecem em lugar de um simulacro de para traduzir dokountwn

14 No caso da pintura grega o movimento foi sugerido de forma geral de duas maneiras pela convenccedilatildeo sinoacuteptica que compotildee elementos de vaacuterios momentos de um aconteci-mento numa figuraccedilatildeo econocircmica usada principalmente no final do periacuteodo geomeacutetrico e pelo desenvolvimento de teacutecnicas ilusionistas e da preocupaccedilatildeo com o detalhe na eacutepoca claacutessica que causam a ilusatildeo do movimento num momento especiacutefico Sobre isso cf SNodgRaSS anthony Homero e os artistas traduccedilatildeo de luiz alberto Machado Cabral e ordep Joseacute trindade Serra Satildeo Paulo odysseus 2004 p 94 e 236

15 aliaacutes a pintura eacute pela primeira vez diferenciada dos outros gecircneros artiacutesticos exatamente por seu caraacuteter espacial e natildeo temporal Isso eacute feito somente em leSSINg gotthold ephraim Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia traduccedilatildeo de Maacutercio Seligmann-Silva Satildeo Paulo Iluminuras 2011

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 8: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

238

indicam ou natildeo o movimento ndash podem ser caracterizados pela pintura sem demasiadas dificuldades Essa caracteriacutestica intriacutenseca da pintura o fato de ser imoacutevel vem acompanhada do que antes chamamos de promessa trata-se pode-se dizer de um repouso ou sossego que aponta para ou nos faz desejar a vida e o movimento como sugere essa passagem do Timeu

O sentimento de Soacutecrates parece refletir a proacutepria etimologia do termo grego especiacutefico para pintura Se grafh designa tanto pintura quanto escrita zwgrafia diz somente a primeira este substantivo feminino eacute for-mado pela junccedilatildeo de dois nomes zugraveon que quer dizer animal ou vivente e grafh que tem como um de seus primeiros sentidos traccedilar gravar e o que caracteriza a vida de forma paradigmaacutetica a animal eacute o movimento

16

Etimologicamente podemos dizer que em grego pintura significa o traccedilado do vivente do que se move Soacutecrates sublinha esse aspecto afinal ele se sente como de frente agrave grafh ao traccedilado de zugravea de viventes ou animais Propositalmente ou natildeo essa passagem do Timeu se constitui como espeacutecie de anedota reveladora do sentido etimoloacutegico da arte pictoacuterica Segundo Soacutecrates e a etimologia a pintura sempre em repouso e sossegada indica paradoxalmente o movimento e a vida

Segundo o proacuteprio Soacutecrates nessa passagem do Timeu a descriccedilatildeo da cidade utoacutepica tambeacutem compartilha desse aspecto ela sugere um mo-vimento e uma vida em si mesma tal como foi legada para a posteridade natildeo eacute nada mais que um texto escrito que como todos natildeo responde caso lhe dirijamos alguma pergunta ndash tal como dito no Fedro num paralelo entre escritura e pintura

17 No caso da cidade utoacutepica esse caraacuteter imoacutevel eacute ainda

mais marcante o texto natildeo conta uma estoacuteria mitoloacutegica rica em tramas reviravoltas com noacutes desenlaces e peripeacutecias como por exemplo ocorre na Iliacuteada de Homero mas descreve uma cidade como se de fato esta esti-vesse sendo ldquodesenhadardquo ou ldquopintadardquo frente aos nossos olhos em total repouso

18 Por meio da rememoraccedilatildeo dessa constituiccedilatildeo feita por Soacutecrates

no iniacutecio do Timeu sabemos como dissemos que se trata de uma referecircn-16

Sobre isso cf PlatAtildeo Feacutedon 105c d e aRIStOacuteteleS De anima 432b17

Cf PlatAtildeo Fedro 275d18

apesar de Soacutecrates usar o termo mito para se referir a ela no Timeu (26c) eacute notaacutevel a diferenccedila deste em relaccedilatildeo aos homeacutericos Na passagem que nos interessa do Timeu Soacutecrates distingue entre o relato da Repuacuteblica e a narrativa de Criacutetias que se apresenta como factual

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 9: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

239

cia agrave cidade idealizada na Repuacuteblica onde cada classe executa sua funccedilatildeo proacutepria e os homens satildeo educados para a virtude Sabemos que a descriccedilatildeo da cidade ideal realiza-se sob a forma ou o estilo de uma narrativa mista combinando narrativas simples e discursos mimeacuteticos

19 aleacutem disso esses

discursos ocorrem numa cena dramaacutetica especiacutefica Isso parece aproximar o texto da Repuacuteblica dos versos homeacutericos

20 Todavia em relaccedilatildeo especifica-

mente agrave cidade utoacutepica e seus habitantes natildeo encontramos a construccedilatildeo de cenas nem de diaacutelogos a cidade foi apresentada em repouso em paz sua constituiccedilatildeo foi descrita mas nenhuma situaccedilatildeo praacutetica possiacutevel foi narrada nenhuma guerra relatada ou qualquer negociaccedilatildeo Afinal a apresentaccedilatildeo do que eacute do ser distingue-se da conjectura sobre como se mostraria esse ser no mundo de incessantes transformaccedilotildees e situaccedilotildees diversas Sabemos que a cidade foi descrita para que se vislumbrasse nela o que eacute qual o ser da justiccedila

21 Natildeo se tratava de descrever como se deve agir justamente numa

ou noutra situaccedilatildeo praacuteticaessa analogia entre a cidade ideal e a pintura natildeo eacute novidade para

quem jaacute leu a Repuacuteblica assim como de forma mais geral o paralelo entre filosofia e pintura aparece tambeacutem em outros diaacutelogos como indicamos brevemente na introduccedilatildeo de nosso texto tendo em vista o levantamento de ocorrecircncias de grafh e seus correlatos no corpus platocircnico realizado por Pierre louis em Les meacutetaphores de Platon

22 ao se somar as passagens onde

haacute os diversos tipos de relaccedilatildeo analoacutegica entre cidade ideal e pintura as-sim como filosofia e pintura e por fim filoacutesofo e pintor encontramos o nuacutemero consideraacutevel de vinte passagens Soa-nos quase como uma ironia que a pintura tenha recebido a fama de companheira da poesia paralelo que segundo o levantamento de louis somente encontramos duas vezes exatamente no livro X da Repuacuteblica Mas eacute certo que para compreendermos

19 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 392c-398b

20 Uma diferenccedila relevante eacute que enquanto o proacuteprio Homero narra em parte de seus versos as narrativas simples da Repuacuteblica (como por exemplo a transposiccedilatildeo do episoacutedio do canto I da Iliacuteada em que Crises pede o resgate de sua filha aos gregos no livro III 393e-394a e o mito da origem do homem no interior da terra tambeacutem no livro III 415a-c) satildeo sempre feitas por alguns de seus personagens o proacuteprio Platatildeo nunca fala diretamente conosco seus leitores

21 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 368e-369a

22 loUIS Pierre Les meacutetaphores de Platon Paris les Belles lettres 1945 p 210

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 10: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

240

devidamente o alcance dessas relaccedilotildees o recurso numeacuterico natildeo eacute suficiente Por isso apresentaremos ao menos o tema geral em cada passagem dos diaacutelogos em que filosofia e pintura aparecem em paralelo As ocorrecircncias se encontram em Repuacuteblica livros Iv v vI e vIII Teeteto Poliacutetico e Leis livros Iv v vI IX e XI Nossa intenccedilatildeo seraacute evidenciar a pertinecircncia e natildeo simples casualidade ou ornamentaccedilatildeo desse paralelo assim como o seu sentido numa leitura geneacuterica

encontramos o paralelo tanto enquanto metaacutefora quanto como analogia aqui nesse estudo mais generalista natildeo teremos tempo de analisar de forma mais acurada cada uma das passagens bastar-nos-aacute apontar de forma mais geral o paralelo realizado pelo escritor Platatildeo apresentemos as passagens em categorias de usos semelhantes os diversos tipos de re-laccedilatildeo comparativa tecidos entre filosofia e pintura aparecem nos diaacutelogos em dois niacuteveis no niacutevel dramaacutetico da conversa entre os personagens das obras e no niacutevel dos temas discutidos entre esses personagens em relaccedilatildeo aos temas podemos ainda distinguir dois tipos de ecircnfase a filosofia pro-priamente dita e o governo filosoacutefico Sistematicamente as ocorrecircncias agraves quais nos remetemos podem ser classificadas como a relaccedilatildeo comparativa estabelecida entre

i) a investigaccedilatildeo ou a construccedilatildeo de uma cidade realizadas pe-los personagens dos diaacutelogos e a confecccedilatildeo de uma pintura esse seria o que aqui chamamos de primeiro niacutevel o niacutevel dramaacutetico dos diaacutelogos as referecircncias satildeo na Repuacuteblica livro v 472c-e na apresentaccedilatildeo do homem mais justo possiacutevel livro vI 504d quando soacute se alcanccedilou ateacute o momento um esboccedilo (u(pografh) da virtude (enquanto para o Bem eacute necessaacuteria obra a mais acabada) livro vIII 548d em que Soacutecrates apresenta um esboccedilo da timocracia sem seus pormenores no Teeteto 171e no esboccedilo da tese de Protaacutegoras construiacutedo por Soacutecrates no Poliacutetico passo 268c no qual os personagens esboccedilam a figura do rei sem que se tenha ainda um retrato fiel (a)kribeia) nas Leis livro Iv 769ab ao se tratar da necessidade de con-tiacutenua reformulaccedilatildeo das leis de uma cidade livro v 734e 737d quando se

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 11: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

241

comeccedila a esboccedilar as leis apoacutes o seu preluacutedio nos livros anteriores livro VI 768c referindo-se ao esboccedilo da legislaccedilatildeo (agora que ele fora concluiacutedo u(pografh eacute substituiacutedo por perigrafh

23) 770b comparando legislador e

pintor 778ac quando se trata da descriccedilatildeo (diagrafh) das habitaccedilotildees da cidade livro XI 876e propondo que se faccedila um novo esboccedilo de um caso especiacutefico de legislaccedilatildeo 934c quando se deve construir um esboccedilo das puniccedilotildees proacuteprias a cada caso de violecircncia ou roubo

ii) o rei ou legislador das cidades construiacutedas pelo logoj e o pintor aqui temos o segundo niacutevel isto eacute o niacutevel dos temas que satildeo discutidos entre os personagens todas as passagens das Leis citadas acima tambeacutem servem para ilustrar esse caso jaacute que os personagens do diaacutelogo e os legis-ladores da cidade satildeo muitas vezes identificados

24 ainda nas Leis somamos

o passo 711b no livro IV quando se afirma que para um governante mudar os regimes de sua cidade esboccedilando novos costumes ele deve comeccedilar por suas proacuteprias accedilotildees e pela distribuiccedilatildeo correta de honras e censuras por fim na Repuacuteblica livro vI 484c quando se diz que o guardiatildeo-rei deve olhar para o paradigma da verdade absoluta que possui na sua alma como um pintor contempla o seu modelo

iii) O filoacutesofo como tema de uma discussatildeo e o pintor das obras mais belas tambeacutem estamos no segundo niacutevel Sabemos que na Repuacuteblica a figura do filoacutesofo eacute idecircntica agrave do rei da cidade ideal Ainda assim parece-nos interessante notar que a relaccedilatildeo comparativa estabelecida com a pintura aparece tanto quando se tem em vista apresentar o filoacutesofo de forma geral quanto ao se tratar da sua funccedilatildeo enquanto governante No caso do filoacutesofo especificamente todas as referecircncias estatildeo no livro VI da Repuacuteblica em 500e pois o filoacutesofo utiliza um modelo divino e em 501a-c por ele ser um pintor de constituiccedilotildees compondo homens segundo suas funccedilotildees

25

23 ambos satildeo traduzidos por esboccedilo por Carlos alberto Nunes Eacutedouard des Places (esquisse) e g Bury (sketch) Cf PlatAtildeo Leis traduccedilatildeo de Carlos alberto Nunes Paraacute Univer-sidade Federal do Paraacute 1980 PlatoN Les Lois traduction par Eacutedouard des Places Paris les Belles lettres 1951 e Plato Laws translated by R g Bury Cambridge Harvard University Press 2001 (loeb Classical library)

24 Cf quanto aos passos das Leis citados 470a 778ab 876d e 934c

25 Repare na proximidade dessa definiccedilatildeo do filoacutesofo com seu caraacuteter legislativo ou go-vernante apontado anteriormente Nessa passagem da Repuacuteblica trata-se contudo de definir o filoacutesofo em geral a ele natildeo basta modelar-se a si mesmo mas tambeacutem quando necessaacuterio ocupar-se com os outros Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 500d

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 12: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

242

De uma forma geral eacute possiacutevel identificar tais relaccedilotildees compara-tivas afirmando que elas natildeo satildeo mais que uma os personagens dos diaacutelo-gos realizam uma busca filosoacutefica construindo a legislaccedilatildeo ou a forma de governo das melhores cidades possiacuteveis (lembrando-nos de que a legislaccedilatildeo proposta nas Leis eacute proacutepria agrave segunda melhor cidade possiacutevel como eacute dito no diaacutelogo

26) Como dissemos especificamente nas Leis os personagens

do diaacutelogo que constroem as regras legais da cidade satildeo continuamente identificados com os futuros legisladores que deveratildeo guardar e se ne-cessaacuterio reformular e ajustar tais regras com o passar do tempo de toda forma julgamos uacutetil tal distinccedilatildeo para que possamos perceber o alcance do uso platocircnico da imagem da pintura para retratar as obras filosoacuteficas nas diferentes perspectivas em que a figura do filoacutesofo aparece mergulhado na complexidade dos textos platocircnicos

A obra filosoacutefica eacute como a obra pictoacuterica pois alguns procedi-mentos usados em ambos os casos satildeo os mesmos a contemplaccedilatildeo de um paradigma a construccedilatildeo de uma obra a mais acabada possiacutevel comeccedilando por um esboccedilo ndash tanto quando temos em vista os personagens dos diaacutelogos platocircnicos quanto em relaccedilatildeo ao filoacutesofo-rei ou o legislador e seus proce-dimentos poliacuteticos Haacute tambeacutem na pintura e na filosofia a evidecircncia do caraacuteter inacabado imperfeito ou insatisfatoacuterio de suas obras Kahn afirma que para compreendermos o sentido filosoacutefico dos diaacutelogos da juventude Laques Caacutermides Eutiacutefron e Protaacutegoras eacute preciso ler a Repuacuteblica

27 segundo os

sentimentos de Soacutecrates no Timeu o texto da Repuacuteblica soacute satisfaz ao lermos o Criacutetias diaacutelogo sublinhemos inacabado vidal-Naquet levanta a hipoacutetese de que essa incompletude seja proposital e lembra a tese de lukinovich de que a caracteriacutestica da incompletude estaacute presente desde o iniacutecio do Timeu em que Soacutecrates pergunta pelo quarto convidado que falta ao encontro

28

esta leitura eacute irmatilde da nossa que chega a essa conclusatildeo pela anaacutelise da

26 Cf PlatAtildeo Leis 807b

27 KaHN Charles Plato and the Socratic dialogue a philosophical use of a literary form Cambridge Cambridge University Press 1998 p Xv

28 Cf vIdal-NaQUet 2008 p 26 que cita lUKINovICH a Un fragment plato-nicien le Critias In PoPeSCU e RUS v (ed) Un hermeneut modern In honorem Michaelis Nasta Cluj Clusium 2001 p 72-79 Sobre a relevacircncia dessa ausecircncia cf tambeacutem SCHalCHeR Maria da graccedila Franco Ferreira Mito e participaccedilatildeo no Timeu de Platatildeo Kleacuteos Rio de Janeiro v 1 n 1 p 157-165 jul 1997

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 13: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

243

pintura no proacutelogo do Timeu e em outros diaacutelogos Nas referecircncias que citamos notamos a frequecircncia do termo u(pografh rascunho ou esboccedilo que corrobora esse caraacuteter fraacutegil insuficiente e que por isso mesmo nos enche de desejo dos discursos filosoacuteficos

29

Falamos aqui da filosofia em geral todavia salta aos olhos a evi-dente preponderacircncia da imagem da pintura na Repuacuteblica e nas Leis os exatos diaacutelogos que propotildeem constituiccedilotildees poliacuteticas a nosso ver isso nos indica o valor e a relevacircncia do estudo da analogia presente no Timeu entre cidade ideal e pintura Natildeo se trata de uma comparaccedilatildeo fortuita mas de um para-lelo recorrente nos diaacutelogos em relaccedilatildeo ao tema das cidades a imagem da pintura seja ou natildeo em esboccedilo eacute usada no contexto da exposiccedilatildeo segundo o levantamento de ocorrecircncias que arrolamos do homem que governa essa cidade do que satildeo as virtudes das diferenccedilas dessa constituiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves demais das leis das habitaccedilotildees da distribuiccedilatildeo de honras e censuras dos costumes e de forma geral de constituiccedilotildees

de fato as cidades platocircnicas satildeo ldquodesenhadasrdquo ou ldquopintadasrdquo pelo logoj na Repuacuteblica vemos quais satildeo suas partes que virtude cabe a cada uma delas que funccedilotildees e nas Leis como satildeo suas habitaccedilotildees seus costu-mes e onde haacute honra e censura Eacute certo que na Repuacuteblica natildeo se fala sobre 29

Sobre a fragilidade do logoj em geral cf PlatAtildeo Carta Seacutetima 342e-343e Fica aqui em aberto a questatildeo sobre se eacute ou natildeo possiacutevel que a filosofia construa uma obra acabada No livro v da Repuacuteblica Soacutecrates diz que em relaccedilatildeo ao Bem eacute necessaacuterio construir a obra mais acabada telewtathn a)pergasian (504d) aleacutem disso no Poliacutetico o estrangeiro afirma que ateacute aquele momento ainda natildeo se alcanccedilou um retrato fiel (a)peirgasmenoi a)kribeiaj) do rei (268c) Isso parece apontar para a possibilidade de a filosofia construir obras acabadas aleacutem disso se Platatildeo fala repetidamente em esboccedilos parece somente por isso apontar agrave possibilidade de construccedilatildeo de uma obra acabada Segundo as anaacutelises que realizamos ateacute o momento natildeo nos parece contudo ser possiacutevel ter certeza sobre a existecircncia de obras filosoacuteficas acabadas entrementes mesmo que essas possam ser executadas pensamos que o que defendemos sobre o caraacuteter insuficiente da filosofia se manteacutem a analogia com a pintura tambeacutem pode indicar que suas obras partem de um ponto de vista especiacutefico o que a nosso ver poderia ser entendido no caso da filo-sofia como tomar um caminho argumentativo determinado Um pintor ao retratar seu modelo o contempla desde um ponto de vista ele pode construir vaacuterios esboccedilos ateacute chegar agrave obra acabada de toda forma essa obra apresentaraacute o modelo desde somente uma perspectiva No caso da filosofia poderiacuteamos considerar que na Repuacuteblica por exemplo os personagens chegam agrave definiccedilatildeo da justiccedila pela exposiccedilatildeo da cidade mais justa possiacutevel eles poderiam ter investigado pelo vieacutes do homem mais justo o que natildeo fazem por ser um caminho mais difiacutecil assim poderiacuteamos supor a possibilidade de construccedilatildeo de duas obras acabadas da justiccedila outras ainda poderiam ser construiacutedas o que mostra o caraacuteter insuficiente ou precaacuterio das obras filosoacuteficas

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 14: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

244

o espaccedilo ou o territoacuterio da cidade30

mas certamente Soacutecrates expotildee uma configuraccedilatildeo ou disposiccedilatildeo de funccedilotildees e virtudes Sendo assim o discurso filosoacutefico-poliacutetico assim parece se mostrar imageacutetico mas sabemos que as produccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo contempladas pelos olhos do corpo Talvez melhor que o termo imagem poderiacuteamos falar em configuraccedilatildeo esta como a obra pictoacuterica imoacutevel sossegada em repouso A configuraccedilatildeo ou dispo-siccedilatildeo de conceitos numa obra filosoacutefica eacute como a ordenaccedilatildeo de elementos numa obra pictoacuterica Afinal jaacute Parmecircnides poetizava juntando a imobilidade ao objeto de amor filosoacutefico o ser

31 O discurso da filosofia sobre o ser

no caso da Repuacuteblica sobre o ser da justiccedila apontando-nos agrave Ideia do Bem soacute poderia apresentar-se constante como o mesmo do mesmo

Havelock em Prefaacutecio a Platatildeo afirma que as obras homeacutericas e as platocircnicas divergem pelo caraacuteter imageacutetico ou visual das primeiras e o abstrato ou invisiacutevel das segundas

32 Uma diferenccedila entre eacutepica e filosofia

se daacute como aliaacutes jaacute havia dito Nietzsche33

entre respectivamente o uso de imagens e a ausecircncia dessas Havelock afirma que os versos homeacutericos quando recitados eram tambeacutem encenados e tinham o poder de controlar inconscientemente o rapsodo e o espectador

34 O uacuteltimo natildeo tinha tempo

de fazer perguntas ou refletir sobre o que estava sendo declamado sendo controlado pelas imagens poeacuteticas no que se poderia hoje chamar segundo o comentador de entretenimento ou diversatildeo

35 ndash tal como ocorre no cinema

segundo analisa o filoacutesofo contemporacircneo Adorno36

Por mais anacrocircnica que seja essa observaccedilatildeo ela natildeo parece totalmente incoerente quando lemos os versos homeacutericos vejamos um episoacutedio exemplar a Odisseia nos 30

Cf vIdal-NaQUet 2008 p 2931

Cf PaRMEcircNIdeS frag 8 (dK) v 2632

Cf HaveloCK eric Prefaacutecio a Platatildeo traduccedilatildeo de enid abreu dobraacutenzsky Cam-pinas Papirus 1996 p 203-205

33 Cf NIetzSCHe Friedrich A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo Maria Inecircs Madeira andrade lisboa ediccedilotildees 70 1995

34 Cf HaveloCK 1996 p 170 o comentador parte do diagnoacutestico do proacuteprio Platatildeo sobre o poder das declamaccedilotildees poeacuteticas em por exemplo Repuacuteblica 595a-608b e Iacuteon 535b-d

35 Cf HaveloCK 1996 p 41 e 160

36 Cf seu conceito de induacutestria cultural em ADORNO Theodor HORKHEIMER Max Dialeacutetica do Esclarecimento fragmentos filosoacuteficos traduccedilatildeo guido antonio de almeida Rio de Janeiro zahar 1985 p 112-114

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 15: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

245

conta que logo apoacutes seu retorno a Iacutetaca Ulisses se hospeda e se esconde no casebre do porqueiro eumeu este recebe a visita de telecircmaco que chega da viagem de busca a notiacutecias do pai

tw d ) au=)t ) e)n klisiV )Odusseuj kai di=oj u(forboje)ntunonto a)riston a(m ) h)oi= khamenw pu=re)kpemyan te nomh=aj a(m ) a)gromenoisi suessiThlemacon de perissainon kunej u(lakomwroiou)d ) u(laon prosionta nohse de di=oj )Odusseujsainontaj te kunaj peri te ktupoj h=)lqe podoi=inai=)ya d ) a)r ) Eu)maion e)pea pteroenta proshudaldquoEu)mai h)= mala tij toi e)leusetai e)nqad ) e(tai=rojh) kai gnwrimoj a)lloj e)pei kunej ou)c u(laousina)lla perissainousi podw=n d ) u(po dou=pon a)kouwrdquo ou) pw pa=n ei)rhto e)poj o(te oi( filoj ui(oje)sth e)ni proquroisi tafwn d ) a)norouse subwthje)k d ) a)ra oi( ceirw=n peson a)ggea toi=j e)ponei=tokirnaj ai)qopa oi)=non o( d ) a)ntioj h)=lqen a)naktojkusse de min kefalhn te kai a)mfw faea kala cei=raj t ) a)mfoteraj qaleron de oi( e)kpese dakru Entretanto no casebre Ulisses e o divino porqueirotinham feito lume ao nascer do sol para preparar o almoccedilodepois da partida dos pastores com as varas de porcosEm torno de Telecircmaco saltaram os catildees amigos de ladrarmas natildeo ladraram agrave sua chegada Apercebeu-se o divino Ulissesdos catildees a saltar e aos ouvidos lhe chegou o som dos passosLogo dirigiu a Eumeu palavras apetrechadas de asasldquoEumeu deveraacute ser um companheiro teu que se aproximaou outra pessoa conhecida visto que os catildees natildeo ladrammas saltam em seu redor Oiccedilo o som dos seus passosrdquoNatildeo acabara ainda de proferir a palavra jaacute o seu filho amadose encontrava na soleira da porta e levantou-se o porqueiroespantado e das suas matildeos caiacuteram os recipientes nos quaisestava a misturar vinho frisante Foi ao encontro do amobeijou-lhe a testa os lindos olhos e ambas as matildeosDos olhos vertia laacutegrimas abundantes37

37 HoMeRo Odisseia XvI vv 16-1 traduccedilatildeo de Frederico lourenccedilo lisboa Cotovia 2010

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 16: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

246

a nosso ver essa narraccedilatildeo da chegada de telecircmaco possui um ldquoquecircrdquo de cinematograacutefico Aqui usamos o cinema como paradigma por duas razotildees porque na atualidade ele exerce o papel de controle dos es-pectadores apontado por adorno tambeacutem pertencente agrave recitaccedilatildeo e dra-matizaccedilatildeo dos versos eacutepicos segundo Havelock e aleacutem disso porque ele eacute a arte constituiacuteda por imagens em movimento ndash eacute como se conferiacutessemos o caraacuteter moacutevel a pinturas que satildeo imoacuteveis ou fotografias que lhes vieram substituir em algumas funccedilotildees como na dos retratos por exemplo Eacute claro que no contexto da greacutecia antiga seria mais apropriado vincular a poesia homeacuterica ao teatro traacutegico como aliaacutes o fez Platatildeo ao afirmar que Homero fora o mestre e guia dos poetas traacutegicos o primeiro dos tragedioacutegrafos o corifeu da trageacutedia

38 Aqui diferentemente usamos a arte cinematograacutefica

pelas razotildees apresentadas acima Aliaacutes inuacutemeros foram os filmes produzi-dos em inspiraccedilatildeo homeacuterica sobre tramas da Iliacuteada e da Odisseia

39 Jaacute sobre

diaacutelogos de Platatildeo o nuacutemero eacute bastante reduzido e referente em relaccedilatildeo agraves peliacuteculas de nosso conhecimento agrave alegoria da Caverna agrave vida de Soacutecrates e ao diaacutelogo Banquete

40 Isso natildeo acontece por acaso Eacute faacutecil transpor os

38 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 595b 598d e 607a

39 Cf Helena de Troia de Robert Wise (1956) Helena de Troia paixatildeo e guerra de John Kent Harrison (2003) Troia de Wolfgang Petersen (2004) Ulisses de Mario Carmerini (1954) A Odisseia de andrei Konchalovsky (1997) e E aiacute meu irmatildeo cadecirc vocecirc de Joel Coen e ethan Coen (2000) em relaccedilatildeo a outros mitos gregos ainda temos Jasatildeo e os argonautas Orfeu Negro A fuacuteria dos Titatildes Persy Jackson Heacutercules Malpertius Heacutercules em Nova Iorque dentre outros

40 Cf por exemplo Soacutecrates de Roberto Rosselini (1970) O conformista de Bernardo Be-tolucci (1970) que numa cena expotildee a alegoria da Caverna e O Banquete de Marco Ferreri (1989) Note-se que a estrutura do interior da caverna de Platatildeo eacute semelhante ao teatro de sombras do extremo oriente (cf PRzYlUSKI M Le thecircatre drsquoombres et la caverne de Platon apud SCHUHl Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris Presses Universitaires de France 1947 p 60 e 61) que por sua vez lembra bastante o cinema aleacutem disso numa sala de cinema os espectadores encontram-se de certa forma presos ndash o que nos remete aos prisioneiros da caverna platocircnica que soacute olham para a frente para a ldquoparede-telardquo onde sombras satildeo projetadas Segundo essa leitura eacute possiacutevel levantar a hipoacutetese de que o interior da caverna platocircnica do livro vII da Repuacuteblica tenha sido construiacutedo para retratar as praacuteticas poeacuteticas de seduccedilatildeo e controle da alma dos espectadores Nesse sentido a libertaccedilatildeo das sombras pode ser entendida como esclarecimento sobre o que eacute a poesia a percepccedilatildeo de que o poeta natildeo possui conhecimento sobre os temas acerca dos quais versifica Como sabemos Homero pode ser qualificado de ldquoeducador da Greacuteciardquo O conteuacutedo de sua poesia era a autoridade maior sobre todos os assuntos (sobre isso cf por exemplo JaegeR Werner Homero como educador In ______ Paideia a formaccedilatildeo do homem grego

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 17: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

247

versos homeacutericos para a dramatizaccedilatildeo inclusive a cinematograacutefica o que natildeo eacute o caso da filosofia platocircnica Eacute possiacutevel descrever esse episoacutedio da chegada de Telecircmaco como se se tratasse de uma cena num filme ainda que a estranheza dessa tentativa a faccedila um pouco risiacutevel a nossos olhos de toda forma poderiacuteamos imaginar o cenaacuterio o casebre do porqueiro eumeu enquanto ele e Ulisses preparam o almoccedilo a cacircmera enfocaria a porta onde o jovem telecircmaco aparece cercado de catildees que o recepcionam alegremente logo em seguida eacute o rosto do heroacutei Ulisses que eacute exibido ele percebe que haacute algueacutem um amigo agrave porta Chama entatildeo a atenccedilatildeo do porqueiro que ao ver e beijar telecircmaco natildeo consegue conter as laacutegrimas Se enquanto descriccedilatildeo de cenas de accedilatildeo de imagens em movimento o cinema nesse sentido nasce da semente homeacuterica a pintura enquanto configuraccedilatildeo de elementos em repouso parece estar em Platatildeo segundo as referecircncias apresentadas nesse texto o caraacuteter abstrato da filosofia envolve configuraccedilotildees ordenaccedilotildees ldquodesenhosrdquo

esse desenvolvimento pode contudo parecer estranho para os conhecedores da pintura grega ora esta tem talvez como tema principal a retrataccedilatildeo visual de episoacutedios mitoloacutegicos como os descritos nos versos homeacutericos

41 Natildeo ignoramos esse fato nessa interpretaccedilatildeo o que nos levou

a ela foi a ecircnfase dada por Soacutecrates ao caraacuteter imoacutevel da pintura Eacute certo que as obras pictoacutericas podem narrar mitos pela justaposiccedilatildeo de suas imagens mas o proacuteprio movimento eacute somente indicado e natildeo diretamente apresen-

traduccedilatildeo artur M Parreira 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1994 p 61-84 e Ha-veloCK a enciclopeacutedia homeacuterica In HaveloCK 1996 p 79-104) assim os gregos viviam como se estivessem presos numa caverna sendo guiados por ilusotildees poeacuteticas Com a abertura dessa possibilidade de leitura natildeo descartamos todavia a aplicabilidade da alegoria a todo e qualquer contexto de passagem da vida baseada em opiniotildees agrave que se sustenta em e)pisthmh aleacutem da conhecida possibilidade de alusatildeo aos ritos dos misteacuterios Sobre esta uacuteltima cf SCHUHL Pierre-Maxime Eacutetudes sur la fabulation platonicienne Paris PUF 1947 p 58

41 Repare-se que tal retrataccedilatildeo natildeo reflete fielmente o texto do poeta Natildeo haacute uma de-pendecircncia entre os dois registros como afirmam SNodgRaSS 2004 e taPlIN oliver the pictorial Record In eaSteRlINg P e (ed) The Cambridge Companion to Greek Tragedy Cambridge Cambridge University Press 1997 p 69-90 Cf p 80 Sendo assim natildeo podemos nem mesmo afirmar com seguranccedila que um dos dois registros escrito ou visual seja anterior e referecircncia do outro Sobre esse tema cf tambeacutem BRaNdAtildeo Jacyntho lins Relaccedilotildees assimeacutetricas imagens e textos na greacutecia antiga In MaRQUeS Marcelo Pimenta (org) Teorias da imagem na Antiguidade Satildeo Paulo Paulus 2012 p 31-57

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 18: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

248

tado como o faz a arte cinematograacutefica Se os poemas homeacutericos fossem perdidos ser-nos-ia talvez impossiacutevel compreender completamente alguns mitos indicados na pintura de vasos por exemplo Sabe-se que em alguns casos a iconografia nos auxilia na apreensatildeo de mitos de cujos relatos soacute nos sobraram fragmentos ou que simplesmente natildeo tenham sido escritos

42

todavia eacute certo que a trama poeacutetica cumpre o papel mais determinante na compreensatildeo dos mitos que a iconografia pictoacuterica quando agravequela temos acesso daiacute ser possiacutevel a distinccedilatildeo sugerida por Soacutecrates e aqui desenvolvida entre a pintura imoacutevel e por outro lado segundo nossa leitura as tramas dos mitos poeacuteticos por exemplo em movimento

Dado o exposto reflitamos sobre o que dizem Nietzsche e Havelock Seguindo as veredas abertas nessa investigaccedilatildeo diriacuteamos que a filosofia i) natildeo possui como principal caracteriacutestica o que aqui estamos chamando de imagem em movimento isto eacute narrativas ou mitos como os homeacutericos ou traacutegicos ii) a ldquoimagem filosoacuteficardquo relembrando o livro vII da Repuacuteblica natildeo pode ser vista com os olhos do corpo mas somente pela alma pelo uso do pensamento do nou=j Segundo esse estudo poderiacute-amos afirmar que a filosofia eacute produtora de configuraccedilotildees ou ordenaccedilotildees inteligiacuteveis invisiacuteveis aos olhos Por serem invisiacuteveis a nosso ver segundo as presentes anaacutelises natildeo deixam de ser de algum modo semelhantes agraves imagens pictoacutericas o filoacutesofo expotildee configuraccedilotildees disposiccedilotildees relaccedilotildees determinadas e delimitadas entre partes de um todo Por exemplo segun-do eacute dito na Repuacuteblica numa cidade temperante o governo eacute exercido de forma harmocircnica isto eacute cabe aos filoacutesofos dirigir e aos outros habitantes obedecer quase que naturalmente

43 da mesma forma como Platatildeo tam-

beacutem um pintor ordena os elementos que compotildeem uma representaccedilatildeo imageacutetica42

Cf por exemplo na iconografia relativa a Heacuteracles a acircnfora aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 470 aC no British Museum a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas de cerca de 480 aC no Museu do louvre a peacutelike aacutetica de figuras vermelhas do iniacutecio do seacutec v aC no Staatliche Museen de Berlim e o leacutecito aacutetico de figuras negras do iniacutecio do seacutec v aC de uma coleccedilatildeo particular alematilde (Schloss Fasanerie adolphseck) que retratam o heroacutei combatendo uma personagem interpretada como a velhice esse episoacutedio natildeo consta na tradiccedilatildeo textual grega Cf SaRIaN Haiganuch a expressatildeo imageacutetica do mito e da religiatildeo nos vasos gregos e de tradiccedilatildeo grega Cultura Claacutessica em Debate Belo Horizonte v 6 p 27-35 1987

43 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 430d-432a

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 19: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

249

Algueacutem poderia objetar o que afirmamos acusando-nos de natildeo distinguir entre as ideias inteligiacuteveis e invisiacuteveis ao corpo e as obras filo-soacuteficas Sabemos que as ideias natildeo foram produzidas por filoacutesofos nem por nenhum homem como insiste Platatildeo elas satildeo a realidade uacuteltima e se confeccionadas somente por um deus

44 todavia encontramo-nos alertas a

essa diferenccedila Ainda assim pensamos que a obra filosoacutefica por ser coacutepia ou aspiraccedilatildeo de exibiccedilatildeo ou indicaccedilatildeo das ideias compartilha sua caracteriacutestica da invisibilidade O filoacutesofo trata de conceitos e suas relaccedilotildees ndash o sentido do seu discurso natildeo pode ser apreendido pela contemplaccedilatildeo de uma ou outra imagem visual ou material qualquer

Poder-se-ia nesse momento perguntar dado que as referecircncias agrave pintura se encontram principalmente em Repuacuteblica e Leis seraacute que o caraacuteter ldquopictoacutericordquo da filosofia natildeo se reduz agrave sua vertente poliacutetica Eacute soacute quando Platatildeo fala de cidades que ldquopintardquo-nos sua configuraccedilatildeo Natildeo seriacuteamos justos se natildeo respondecircssemos um tanto agrave moda de Heraacuteclito filoacutesofo dos opostos

45 a nosso ver a resposta eacute positiva mas dependendo de como

se interpreta a Repuacuteblica pode ser tambeacutem negativa Eacute certo que a imagem da pintura aparece principalmente quando Platatildeo se volta para a poliacutetica ndash todavia natildeo seria esse o tema principal da filosofia platocircnica seu fun-damento e ser

46 Ou como alguns afirmam toda a construccedilatildeo da cidade

na Repuacuteblica natildeo possui como ponto central a indicaccedilatildeo agrave Ideia do Bem47

ou ainda como outros defendem a Repuacuteblica natildeo representa o acircmago do pensamento de Platatildeo

48 Quem sabe se natildeo encontramos nela uma descri-

ccedilatildeo natildeo de uma cidade mas da estrutura da proacutepria realidade49

Por fim 44

Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 597c45

Cf HeRAacuteClIto por exemplo frags 10 49a 60 88 103 111 (dK)46

Cf por exemplo BolzaNI FIlHo Roberto Introduccedilatildeo In PlatAtildeo Repuacuteblica traduccedilatildeo anna lia amaral de almeida Prado Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 Cf p XXII

47 Cf essa concepccedilatildeo em por exemplo RoBIN leacuteon La penseacutee grecque et lrsquoorigine de lrsquoesprit scientifique Paris Eacuteditions albin Michel 1948 p 231 e goMPeRz theodor Pensadores griegos historia de la filosofia de la antiguumledad traduccioacuten Pedro von Haselberg Buenos aires editorial guarania 1952 t 2 p 482

48 Cf por exemplo KaHN 1998 p 65 Segundo ele o diaacutelogo platocircnico em que o pen-samento do filoacutesofo se encontraria mais expliacutecito eacute a Repuacuteblica BolzaNI FIlHo 2006 p IX e tambeacutem goMPeRz 1952 p 457

49 Cf HaveloCK 1996 p 19

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 20: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

250

natildeo seria a filosofia principalmente a antiga uma atividade essencialmente poliacutetica configuradora de praacuteticas e modos de ser

50 Natildeo seraacute possiacutevel aqui

nos posicionar sobre essas questotildees todavia ressalto que se se responde afirmativamente a elas o caraacuteter pictoacuterico natildeo se restringiria agrave filosofia poliacutetica mas poderia ser aplicado agrave filosofia como um todo

51

Dadas essas explicaccedilotildees finais podemos agora relembrar resu-midamente as questotildees que apresentamos na introduccedilatildeo

Em primeiro lugar perguntamos qual a funccedilatildeo filosoacutefica do uso da imagem da pintura A funccedilatildeo filosoacutefica literal do uso que aqui analisamos foi expor o sentimento de Soacutecrates frente agrave cidade ideal essa funccedilatildeo evidente ao lermos o proacutelogo do Timeu nos levou a conclusotildees maiores a compreensatildeo platocircnica da filosofia como produtora de ldquoconfiguraccedilotildees invisiacuteveis imoacuteveisrdquo isto eacute disposiccedilotildees de conceitos e aleacutem disso do caraacuteter de esboccedilo insuficiente ou insatisfatoacuterio dos pensamentos filosoacuteficos Juntas essas duas conclusotildees demandam uma explicitaccedilatildeo o caraacuteter imoacutevel da filosofia eacute rigorosamente falando de repouso por natildeo esgotar totalmente os temas abordados a filo-sofia deveraacute ldquose moverrdquo aprimorando o que jaacute fora dito o que em Platatildeo ocorre pelo embate de posiccedilotildees de todos os personagens que ilustram seu pensamento construiacutedo pelo a)gwn do logoj o proacuteprio processo dialeacutetico ou ainda agrave contemplaccedilatildeo da cidade que repousa como modelo talvez no ceacuteu como diz Soacutecrates no fim do livro IX da Repuacuteblica

52 seguem-se accedilotildees

que podem ser entendidas como decisotildees e posturas justas no contexto das

50 Cf Hadot Pierre O que eacute filosofia antiga traduccedilatildeo dion davi Macedo Satildeo Paulo loyola 1999 e FoUCaUlt Michel a eacutetica do cuidado de si como praacutetica da liberdade In Motta Manuel Barros da (org) Eacutetica sexualidade poliacutetica 2 ed traduccedilatildeo elisa Monteiro e Inecircs autran dourado Barbosa Satildeo Paulo Forense Universitaacuteria 2006 p 264-287 (ditos e escritos 5) Nesse ponto ressaltamos a indissociabilidade entre eacutetica e poliacutetica na antiguidade

51 Repare-se que essa possibilidade tambeacutem depende da posiccedilatildeo interpretativa que vecirc em algum grau uma unidade no pensamento platocircnico Se ressaltarmos as diferenccedilas far-se-ia necessaacuterio refletir sobre a presenccedila da Ideia do Movimento dentre os gecircneros supremos do Sofista Seraacute que esta Ideia invalida o caraacuteter imoacutevel das obras filosoacuteficas no caso platocircnico proacuteximas das Ideias Responder adequadamente a essa questatildeo certamente demandar-nos-ia a escrita de outro texto abordando as nuances da questatildeo das Ideias em diaacutelogos dos periacuteodos meacutedio e tardio Por isso deixamos a questatildeo em aberto e proposta para o leitor que desejar continuar a refletir sobre as conclusotildees e hipoacuteteses desse texto

52 Cf PlatAtildeo Repuacuteblica 592b

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 21: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

251

cidades histoacutericas por exemplo53

Haacute portanto movimento filosoacutefico na contiacutenua necessidade de esclarecimento das teses ou arcabouccedilos conceituais jaacute erigidos e tambeacutem na vida praacutetica que segue em conformidade com os pensamentos a que nos levaram a investigaccedilatildeo filosoacutefica

a compreensatildeo do uso da imagem da pintura permite entatildeo a res-posta agrave segunda questatildeo que levantamos a saber ldquoQual o sentido conferido por Platatildeo agrave pinturardquo Vimos que o filoacutesofo ressalta o sentido etimoloacutegico do termo zwgrafia a pintura eacute imoacutevel e paradoxalmente aponta para o movimento e a vida aleacutem disso de acordo com o que dissemos acima ela dispotildee seus elementos sem conseguir retratar o modelo que copia de forma perfeita ou impecaacutevel Eacute como se o pintor pudesse como disse giacometti passar a vida retratando a mesma paisagem de uma janela a paisagem mesma escapa agrave representaccedilatildeo pictoacuterica e o pintor eacute consciente do caraacuteter precaacuterio de suas obras

54

O objetivo final dessas conclusotildees resumidas acima eacute como dito na introduccedilatildeo a seguinte reflexatildeo qual o papel dessa arte no pensamento platocircnico visto desde a perspectiva de seus uacuteltimos diaacutelogos Natildeo era nossa intenccedilatildeo responder a essa questatildeo dado que ela exige um estudo maior do que o que aqui realizamos deste texto nasce apenas uma indicaccedilatildeo vimos que nos diaacutelogos de forma geral a pintura se encontra mais proacutexima da filosofia que da poesia Essa proximidade exige que o episoacutedio da dita ex-pulsatildeo da arte mimeacutetica da Repuacuteblica seja lido como exige o texto em suas complexidades e nuances Afinal a pintura aparece em outros livros da Repuacuteblica aleacutem do livro X em usos bastante diversos deste uacuteltimo

Por fim vale ressaltar que assim como aleacutem do pintor outras ima-gens satildeo usadas para retratar o filoacutesofo

55 a imagem da pintura aparece para

falar de temas distintos No Timeu como dissemos ela eacute usada no contexto 53

Nesse sentido a filosofia eacute irmatilde do movimento do cinema e do gesto sendo essen-cialmente poliacutetica como afirma o filoacutesofo contemporacircneo agamben em agaMBeN giorgio Notas sobre o gesto traduccedilatildeo de viniacutecius Nicastro Honesko Artefilosofia ouro Preto n 4 p 9-14 jan 2008 Sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e cinema ver princi-palmente deleUze gilles A imagem-tempo traduccedilatildeo eloisa de araujo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007

54 Cf o cataacutelogo de sua exposiccedilatildeo no MaM em 2012 Alberto Giacometti coleccedilatildeo da Fon-dation alberto et annette giacometti Paris 8 Cataacutelogo da exposiccedilatildeo no Museu de arte Moderna no Rio de Janeiro 18 jul-16 set 2012

55 Cf as diversas imagens usadas para a dialeacutetica filosoacutefica em loUIS 1945 p 42-75

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 22: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

252

do surgimento das constelaccedilotildees no ceacuteu e da formaccedilatildeo de sonhos profeacuteticos a retomada dessas outras referecircncias que aqui soacute nos coube apontar faz com que nossa exposiccedilatildeo seja vista na amplitude que lhe conveacutem Natildeo era nosso objetivo identificar as artes pictoacuterica e filosoacutefica ou afirmar que falamos aqui tudo sobre essas artes ao contraacuterio esse estudo eacute antes precaacuterio e pretendeu refletir somente sobre um passo do Timeu Ficamos tambeacutem nesse trabalho com a consciecircncia do seu caraacuteter de esboccedilo e de inacabamento assim como de promessa ou esperanccedila de desenvolvimentos futuros

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

O caraacuteter pictoacutericO da cidade ideal uMa anaacuteliSe dO paSSO 19b dO tiMeu de platatildeO

gostaria de agradecer a alguns professores que propondo-me importantes questotildees no I Coloacutequio PRagMaCeCH contribuiacuteram para a redaccedilatildeo final desse texto Sou muito grata a Jacyntho lins Brandatildeo Fernando Santoro luisa Buarque admar Costa e alice Bitencourt Haddad tambeacutem devo gratidatildeo agrave professora Maria das graccedilas de Moraes augusto pelo gentil convite em egina para a apresentaccedilatildeo de parte de minha pesquisa no PRagMa este texto integra um trabalho conjunto do grupo de pesquisa O uacuteltimo pensamento de Platatildeo e a recepccedilatildeo de Platatildeo na antiguidade coordenado por minha orientadora de doutorado na PUC-Rio a professora Maura Igleacutesias a quem estendo meus devidos agradecimentos

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie

Page 23: o cAráTEr PicTórico dA cidAdE idEAL: umA ANáLiSE do PASSo ... · Isto quer dizer que a arte da ... o primeiro contexto em que a pintura aparece no di- ... cor eloquente. tradução

253

Kl eacute o s n 1617 231-253 201213

letHicia OurO de Oliveira

ReSUMoNo proecircmio do diaacutelogo Timeu de Platatildeo os personagens Soacutecrates timeu Criacutetias e Hermoacutecrates conversam sobre o tema que seraacute abordado nesse dia de encontro Soacutecrates deve ser retribuiacutedo pelo discurso que proferiu no dia anterior sobre a melhor constituiccedilatildeo e os homens que deveriam executaacute-la esta politeia que provavelmente se refere agrave moldada na Repuacuteblica natildeo satisfaz Soacutecrates Frente a ela o filoacutesofo revela ser tomado pelo mesmo desejo que sente ao contemplar uma pintura (grafh) de belos animais ou esses mesmo animais em repouso (h(sucia) ele quer vecirc-la em movimento No texto aqui apresentado analisar-se-atildeo os desdobramentos da analogia feita por Soacutecrates entre cidade ideal e pintura a partir da caracteriacutestica que lhes eacute comum o repouso ou a imobilidade Seus objetivos satildeo esclarecer o papel da arte pictoacuterica nessa passagem e que elementos esse papel traz agrave visatildeo platocircnica desse gecircnero artiacutestico o pictoacuterico Por fim como desdobra-mento refletir-se-aacute sobre o que seja a proacutepria filosofia pela identificaccedilatildeo do que aqui chamamos de seu ldquocaraacuteter pictoacutericordquo Palavras-chave Platatildeo Timeu Pintura Repouso Filosofia

REacuteSUMEacuteau deacutebut du Timeacutee de Platon les personnages de Socrate timeacutee Critias et Hermocrate srsquoentretiennent du thegraveme qui sera abordeacute ce jour-lagrave Il faut remercier Socrate pour son discours sur la meilleure consti-tution (politeia) et sur les hommes qui doivent la mettre en oeuvre Cette constitution qui probablement se reacutefegravere agrave celle qui est deacutepeinte dans la Reacutepublique ne satisfait pas Socrate Il affirme ressentir pour la constitution un deacutesir eacutequivalent agrave celui qursquoil ressentirait devant un ta-bleau (grafh) repreacutesentant des beaux animaux ou les mecircmes animaux au repos (h(sucia) il a envie de les voir en mouvement Cet article vise agrave analyser les conseacutequences de cette analogie que propose Socrate entre citeacute ideacuteale et peinture agrave partir de la caracteacuteristique qui leur est commune le repos ou lrsquoimmobiliteacute Il srsquoagira drsquoune part drsquoeacuteclairer le rocircle de lrsquoart pictural dans ce passage drsquoautre part de comprendre quels eacuteleacutements ce rocircle apporte agrave la vision platonicienne de la peinture Enfin on reacutefleacutechira sur la deacutefinition de la philosophie elle-mecircme au prisme de ce qursquoon appellera ici son ldquocaractegravere picturalrdquo Mots-Cleacutes Platon Timeacutee Peinture Repos Philosophie