o canto na aula de música - reflexões sobre uma prática em uma escola pública - teresa mateiro e...

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  Anais do IX Fórum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013. 204 O CANTO NA AULA DE MÚSICA: REFLEXÕES SOBRE UMA PRÁTICA EM UMA ESCOLA PÚBLICA Teresa Mateiro 1  [email protected] Marisleusa de Souza Egg 2  [email protected] Resumo O objetivo desta pesquisa foi investigar o uso do canto na aula de música de uma turma de 6º ano de uma escola pública da cidade de Curitiba. Os dados foram coletados através de filmagens das aulas por meio da observação não participante. O canto foi utilizado nas aulas de música como um recurso pedagógico para a aprendizagem das melodias a serem tocadas na flauta doce e, em alguns momentos, para a aprendizagem de elementos musicais básicos. Concluiu-se que o professor necessita de um preparo específico para trabalhar com a voz do público infantil, pois ele é o modelo vocal em sala de aula. Para tanto, constatou-se que investir na formação continuada dos professores acerca deste assunto é de grande importância, expandindo os horizontes sobre o uso da voz e as implicações destes modelos quanto ao desenvolvimento vocal dos alunos do ensino fundamental. Palavras-chave:  Aula de música; Ensino do canto; Formação do professor.  Abstract This research investigates the use of singing in music class with students 11-13 years old in a classroom of a public school in the city of Curitiba/Brazil. The data were collected by videotaping classes in a non-participant observation manner. The singing was used in music classes as a pedagogical resource for learning melodies to be played on recorder and, at times, to learn basic musical elements. We found that teachers need a specific training to work with the children’s and teenagers’ voices , as they are the vocal role-models in the classroom. Therefore, promoting further teachers’ education on this subject is of great importance, as well as expanding the horizons on the use of the voice, and the awareness of the implications of the teacher as a role- model for the vocal development of school students. Keywords: Music Classes; Singing Teaching; T eacher’s Education 1  Doutora em Filosofia e Ciências da Educação Educação Musical pela Universidad del País Vasco (Espanha), Mestre em Educação Musical e licenciada em Educação Artística com Habilitação em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora do Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e da Escola de Música, Arte e Teatro da Örebro University (Suécia). Atua também como professora do curso de Música-Licenciatura a distância da Universidade Aberta do Brasil/Universidade de Brasília (UAB/UnB) 2 Professora de música, integrante do Grupo de Pesquisa Educação Musical e Formação Docente, vinculado à Udesc.

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  • Anais do IX Frum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013.

    204

    O CANTO NA AULA DE MSICA:

    REFLEXES SOBRE UMA PRTICA EM UMA ESCOLA PBLICA

    Teresa Mateiro1 [email protected]

    Marisleusa de Souza Egg2 [email protected]

    Resumo O objetivo desta pesquisa foi investigar o uso do canto na aula de msica de uma turma de 6 ano de uma escola pblica da cidade de Curitiba. Os dados foram coletados atravs de filmagens das aulas por meio da observao no participante. O canto foi utilizado nas aulas de msica como um recurso pedaggico para a aprendizagem das melodias a serem tocadas na flauta doce e, em alguns momentos, para a aprendizagem de elementos musicais bsicos. Concluiu-se que o professor necessita de um preparo especfico para trabalhar com a voz do pblico infantil, pois ele o modelo vocal em sala de aula. Para tanto, constatou-se que investir na formao continuada dos professores acerca deste assunto de grande importncia, expandindo os horizontes sobre o uso da voz e as implicaes destes modelos quanto ao desenvolvimento vocal dos alunos do ensino fundamental.

    Palavras-chave: Aula de msica; Ensino do canto; Formao do professor.

    Abstract This research investigates the use of singing in music class with students 11-13 years old in a classroom of a public school in the city of Curitiba/Brazil. The data were collected by videotaping classes in a non-participant observation manner. The singing was used in music classes as a pedagogical resource for learning melodies to be played on recorder and, at times, to learn basic musical elements. We found that teachers need a specific training to work with the childrens and teenagers voices, as they are the vocal role-models in the classroom. Therefore, promoting further teachers education on this subject is of great importance, as well as expanding the horizons on the use of the voice, and the awareness of the implications of the teacher as a role-model for the vocal development of school students.

    Keywords: Music Classes; Singing Teaching; Teachers Education

    1 Doutora em Filosofia e Cincias da Educao Educao Musical pela Universidad del Pas Vasco

    (Espanha), Mestre em Educao Musical e licenciada em Educao Artstica com Habilitao em Msica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. professora do Departamento de Msica da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e da Escola de Msica, Arte e Teatro da rebro University (Sucia). Atua tambm como professora do curso de Msica-Licenciatura a distncia da Universidade Aberta do Brasil/Universidade de Braslia (UAB/UnB) 2

    Professora de msica, integrante do Grupo de Pesquisa Educao Musical e Formao Docente, vinculado Udesc.

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    INTRODUO

    O objetivo deste trabalho refletir sobre as observaes realizadas nas aulas

    de msica de uma turma de 6 ano de uma escola pblica, da cidade de Curitiba.

    Entre os aspectos em potencial a serem explorados, foi escolhido o canto, tendo como

    questo de pesquisa: de que forma a atividade do canto se desenvolveu nas aulas de

    msica? Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem como finalidade

    analisar aulas de msica, enquanto componentes curriculares em escolas da rede

    pblica de ensino, sob perspectivas culturais e educacionais.

    Trabalhos produzidos na rea de educao musical tm apontado o canto

    como uma atividade presente tanto nas prticas escolares quanto nas aulas de

    msica. Pode-se observar a associao entre as instituies escolares e suas prticas

    cantadas (FUCKS, 1993), entre o canto e a formao de indivduos com esprito

    coletivo, patriota e cvico3 (SOUZA, 1991; FUCCI-AMATO, 2012), entre os processos

    de ensino e aprendizagem na educao infantil (PINTO, 1988; GUIMARES, 1999;

    SPECHT, 2007; MACEDO, 2008) e no ensino fundamental (SOUZA, 1992; FLIX,

    1997; IWAMOTO, 2010), ou, ainda, entre a formao dos professores e suas

    concepes sobre a aula de msica nos primeiros anos do ensino fundamental

    (PINTO, 1988; SOUZA, et al., 2002; BELLOCHIO, 2000).

    Fucks (1993), em seu estudo sobre a prtica musical da escola pblica do Rio

    de Janeiro, analisa o lugar ocupado pelo canto escolar e sua relao com o agente

    que o promove. Constata que a escola pblica sempre cantou, mas a tarefa de

    conduzir esse canto nem sempre coube ao professor (p. 154). Nesse sentido, os

    resultados da pesquisa de Souza et al. (2002) mostram que as prticas musicais, e

    entre elas o canto, sempre estiveram presentes no contexto escolar, apesar da

    ausncia da msica como disciplina ou contedo obrigatrio no currculo das escolas

    de educao bsica. Esse trabalho foi realizado com quatro instituies das cidades

    de Porto Alegre, Florianpolis e Salvador, durante os anos de 1996 a 1998.

    A presena do canto marca os anos 30 e parte dos 40 do sculo XX por meio

    do programa de educao musical de Villa-Lobos, conhecido como Canto Orfenico.

    Souza (1991) ressalta que a funo principal dessas canes era provocar um forte

    apelo ao sentimento nacionalista e promover a aprovao das decises polticas do

    governo. O repertrio de canes demonstrava objetivos claros, cultuando a ptria, a

    figura do presidente e exaltando a nao brasileira. Alm disso, estavam presentes a

    insistente propaganda poltica, o disciplinamento dos alunos, o povo brasileiro e a

    3 Ver outros trabalhos como: Lucas (1991), Santos (1998), Avancini (2001), Guimares (2003) e vila

    (2010).

  • Anais do IX Frum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013.

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    formao da conscincia cvica (p. 19). A autora relata que, ao perceber a utilidade do

    canto coletivo na escola para os objetivos nacionalistas, Villa-Lobos encontrou uma

    maneira de solucionar o problema da identidade com a ptria. Assim, naquele perodo

    o canto tinha um carter funcional, visto pela proposta oficial de uma educao moral

    e cvica.

    A pesquisa de Tourinho (1993) discute as vrias funes e mltiplas

    interpretaes que podem ser dadas ao ensino da msica na escola fundamental e

    aponta que o canto a atividade mais reconhecida e valorizada entre as demais

    performticas realizadas nas salas de aula. Souza et al. (2002) mencionaram que o

    canto, a execuo instrumental, a confeco de instrumentos, a audio/apreciao e

    a composio poderiam ser atividades desenvolvidas pela educao musical escolar.

    No entanto, mais uma vez, a nfase foi dada s atividades de execuo vocal.

    Houve um momento na histria da educao musical no pas em que as aulas

    de msica deixariam, aos poucos, de ser cantadas (FUCKS, 1993, p. 146), em

    consequncia tanto da contestao ao canto orfenico quanto do movimento das

    novas propostas pedaggicas voltadas para a educao artstica. Gradativamente, a

    msica foi perdendo o seu espao na sala de aula, mas, de uma forma ou de outra,

    continuou presente no cotidiano escolar (SOUZA, et al., 2002), tanto que, de acordo

    com Fucks (1993, p. 148) apesar do professor de msica haver silenciado a sua

    prtica cantada, a escola continua a priorizar o seu canto.

    Frente ao exposto, pergunta-se como se encontra a msica no currculo

    escolar aps a implementao da Lei n 11.769 de 18 agosto de 2008, que alterou a

    Lei de Diretrizes e Bases da Educao n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para

    dispor sobre a obrigatoriedade do contedo de msica na educao bsica. E,

    consequentemente, o que acontece nas aulas de msica. Este trabalho discute

    apenas uma pequena parte dessa abrangente questo: o canto nas aulas de msica.

    O PROFESSOR E O ENSINO DO CANTO NA EDUCAO BSICA

    Apesar de ter uma enorme utilizao no espao escolar, o canto tem sido pouco

    usado em situaes de ensino e aprendizagem como, por exemplo, para explorar

    aspectos da msica ou para outras formas diversas de produo vocal, afirma

    Tourinho (1993). A autora acrescenta que o canto na sala de aula tem sido pensado

    sem conceb-lo como meio para a compreenso mais ampla de conceitos musicais e

    sem analis-los como uma ao poderosa que serve para fins variados e

  • Anais do IX Frum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013.

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    contrastantes (TOURINHO, 1993, p. 95-96). Fucks (1993) ressalta que os aspectos

    musicais e extramusicais so indissociveis no canto escolar.

    O modo como o canto desenvolvido em sala de aula pode ser explicado pelo

    tipo de formao que se oferece aos professores, destaca Tourinho (1993). Figueiredo

    (2004) concorda com esse pensamento quando escreve sobre o escasso acesso dos

    professores generalistas ao conhecimento musical e sobre o pouco enfoque dado

    rea do canto nos cursos de Licenciatura em Msica, que quase sempre esto

    voltados ao estudo de um instrumento e/ou ao canto coral. Tais formaes no so

    condizentes com as habilidades necessrias para a conduo da atividade de cantar

    em sala de aula.

    Specht (2007) levanta a hiptese de que um dos motivos de se cantar menos

    na escola se d pelo despreparo vocal do professor, que pouco cantou na escola e

    no teve informaes durante sua formao pedaggica, criando, assim, um crculo

    vicioso relacionado ao conhecimento vocal e musical. O professor necessita de

    subsdios tcnicos essenciais para compreender o funcionamento da voz, conforme

    esclarece a autora. Ao conhecer o seu aparelho fonador e a fisiologia da voz, o

    professor obter novas possibilidades em sua emisso vocal. Specht aponta que a voz

    no trabalhada fica limitada ou pode inibir os sons que o cantor quer externar. Todo

    esse conhecimento vocal fornecer as bases de um cantar saudvel, seguro, criativo e

    com qualidade para o desenvolvimento de atividades com o canto em sala de aula.

    Egg (2011) discute sobre a necessidade de formao do professor no que diz

    respeito utilizao do canto e seu desenvolvimento na sala de aula, constatando que

    o professor funciona como modelo vocal em diferentes momentos no espao escolar.

    A criana tem, naturalmente, a caracterstica de imitar o que ouve e este trabalho trata

    da importncia de o professor conhecer os princpios sobre a formao da voz infantil.

    A autora ressalta contribuies relevantes sobre o canto ao considerar que a forma

    mais completa para o desenvolvimento musical, pois alm de ser uma expresso

    musical acessvel e primordial ao alcance de todos, o canto ainda colabora no

    desenvolvimento das habilidades vocais gerais da criana, auxilia no desenvolvimento

    da voz falada e contribui para o treinamento da memria, concentrao e autocontrole,

    bem como auxilia na formao musical e na fixao de contedos.

    De acordo com Ilari (2003), o canto faz parte da musicalizao de crianas em

    todas as partes do mundo e o perodo escolar exatamente a idade que elas devem

    ser estimuladas a desenvolv-lo. O ato de cantar, espontaneamente ou de forma

    dirigida em sala de aula, pode ativar os sistemas da linguagem, da memria e da

    ordenao sequencial, sistemas que so vitais para o desenvolvimento cognitivo

    infantil.

  • Anais do IX Frum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013.

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    Ferreira (2007) investigou os aspectos indicativos da influncia da performance

    vocal no desenvolvimento das funes cognitivas e comunicativas da linguagem oral

    da criana. A autora discorre sobre o desempenho e domnio da voz na emisso

    sonora, no que diz respeito ao seu uso correto, saudvel, esttico e musical, seja na

    voz falada ou cantada, envolvendo aspectos tcnicos, expressivos e cognitivos. Outro

    ponto relevante a escolha do repertrio e sua prtica, conforme certos requisitos de

    performance vocal, que podem colaborar ou influenciar no desenvolvimento da

    linguagem. Ao confirmar essa hiptese, a autora coloca o canto no mesmo nvel de

    importncia da fala para a educao infantil.

    DELINEAMENTO METODOLGICO

    O objeto de estudo desta pesquisa foram as aulas de msica curriculares de

    uma escola pblica, uma vez que se pretendeu investigar de que forma se desenvolve

    a atividade de cantar durante as aulas. A busca por uma escola aconteceu por

    intermdio da Secretaria Municipal de Educao, que selecionou a instituio

    conforme os critrios justificados no projeto de pesquisa enviado: escola que oferea

    aulas de msica como disciplina curricular, para sries do ensino fundamental

    ministradas por um(a) professor(a) especialista.

    As duas turmas selecionadas para a pesquisa, entre outras sugeridas pela

    professora de msica da escola, atenderam aos requisitos: eram turmas entre o 4 e

    6 ano, anos preferenciais para o estudo em questo4, assim como a disponibilidade

    de horrio das pesquisadoras. Ressalta-se, entretanto, que para o presente trabalho

    foram analisadas as aulas de uma das turmas: um 6 ano, com 29 alunos, com idade

    mdia entre 11 e 13 anos.

    Aps os contatos via telefone e correio eletrnico com a escola e a professora,

    iniciou-se o perodo da coleta de dados que foi realizada em momentos distintos,

    porm complementares: visita escola e observao das aulas. A visita escola teve

    como principal objetivo conhecer o ambiente, a infraestrutura, o corpo docente e

    discente, a direo e os funcionrios.

    O uso de tcnicas de observao foi fundamental, pois possibilitou o contato

    direto com a realidade da sala de aula. As aulas, com durao de 45 minutos, foram

    observadas e gravadas em vdeo de forma contnua, durante cinco semanas. O papel

    4Aulas de msica de outras escolas em cidades diferentes fazem parte da pesquisa mencionada e, por

    isso, as turmas participantes so entre 4 e 6 anos.

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    desempenhado pelo investigador durante as observaes foi o de observador

    participante (LDKE; ANDR, 1986), ou seja, ele registrou os acontecimentos sem

    relacionar-se com os alunos e com a professora. Para outros autores (FLICK, 2004;

    TRIVIOS, 1994) essa forma de observar denominada como observao no

    participante por ser uma observao natural, durante a qual o pesquisador permanece

    passivo e no se envolve com o desenrolar dos acontecimentos.

    As gravaes em vdeo foram transcritas cuidadosamente, com ausncia de

    pontos de vista particulares, assim como de qualquer tipo de comentrios, atendo-se a

    descrever unicamente o desenrolar dos acontecimentos nas aulas e sem a

    preocupao de uma transcrio extremamente literal. Optou-se por transcrever a

    filmagem atravs do sistema de minutagem, ou seja, organizando os acontecimentos

    da aula cronologicamente. Em seguida, o material foi revisado por duas pessoas

    diferentes, pertencentes ao grupo de pesquisa 5 . Esse trabalho de transcrio de

    vdeos e reviso foi fundamentado, principalmente, em Loizos (2004) e Rose (2004).

    Para o processo de anlise seguiram-se as fases propostas por Maroy (1997):

    primeiro, a reduo de todo o material bruto, depois a organizao e sua interpretao

    e, por fim, a verificao. Tais etapas exigiram a leitura e releitura dos dados,

    permitindo, assim, a reflexo sobre o material recolhido e o constante retorno aos

    objetivos principais e iniciais da pesquisa. Utilizando as palavras de Gaskell (2004, p.

    85): o objetivo amplo da anlise procurar sentidos e compreenso. O que

    realmente falado constitui os dados, mas a anlise deve ir alm da aceitao deste

    valor aparente. A procura por temas com contedo comum e pelas funes destes

    temas.

    Tendo a aula de msica como tema central, os dados foram, ento,

    organizados nas seguintes categorias: repertrio, contedo, flauta doce, canto,

    aspectos tcnicos e musicais, professora e alunos. Neste artigo, sero apresentados e

    discutidos os resultados parciais referentes categoria canto. Nessa categoria foram

    inseridos todos os trechos transcritos das cinco aulas observadas que descrevem

    momentos em que a execuo vocal estava sendo desenvolvida, ou seja, quando a

    professora ensinava alguma cano ou dava algum exemplo musical por meio da voz

    cantada e quando os alunos cantavam.

    5 Educao Musical e Formao Docente: o grupo integra o Diretrio dos Grupos de Pesquisa no Brasil

    na Plataforma Lattes do CNPq, sob a coordenao da Profa. Doutora Teresa Mateiro.

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    APRESENTAO E DISCUSSO DOS DADOS

    Ao analisar os vdeos gravados, a forma como a professora organizou as aulas

    a partir do repertrio do ensino da flauta doce chamou a ateno. O material utilizado

    pela professora baseado no livro Canto e flauta doce, de autoria de Walmir

    Marcelino Teixeira (TEIXEIRA, 2008)6. Apesar de o foco ser o ensino da flauta doce, o

    canto perpassou todas as aulas observadas, pois, em vrios momentos, a professora

    utilizou a voz cantada para demonstrar algum exemplo de conceito musical ou para

    reforar a melodia que estava sendo trabalhada no instrumento.

    Tourinho (1993) ressalta que ensinar msica por meio da voz um artifcio

    pouco utilizado pelos professores. Durante as cinco aulas observadas, algumas vezes

    a professora utilizou o canto explorando aspectos musicais. Em uma das aulas,

    cantou a escala de D Maior, explicando esse assunto para os alunos. Na mesma

    aula, ela deu exemplos de sons graves e agudos, cantando uma escala ascendente e

    descendente, iniciando na nota Sol 2 e terminando no Sol 3, completando uma oitava.

    A tonalidade de Sol Maior pareceu ser a adotada pela professora para os exemplos

    vocais.

    As canes utilizadas durante as aulas eram de repertrio variado, incluindo

    msicas populares brasileiras e do cancioneiro infantil: Minha Cano (L. Enriquez

    trad. e adapt. de Chico Buarque), Canto do povo de um lugar (Caetano Veloso),

    Orquestra (Annimo), As mocinhas da cidade (Belarmino e Gabriela), Po quentinho e

    Bamba-lalo (Folclore). A msica Minha Cano foi cantada pela professora enquanto

    os alunos tocavam a melodia na flauta doce. Por no se sentir confortvel com a

    tonalidade da flauta, durante a execuo da msica, a professora passou a cantar uma

    oitava abaixo (D 3 para a melodia da flauta e D 2 transposta pela professora). Por

    vezes, o canto foi utilizado para recordar a melodia de uma msica, como o que

    aconteceu na aula em que a professora e os alunos cantaram a cano de Caetano

    Veloso antes de tocar no instrumento.

    As melodias eram tocadas pelos alunos de memria, sem o auxlio da partitura.

    Assim, as canes foram, inicialmente, ensinadas pela professora por meio do canto.

    Os alunos memorizaram as canes para, em seguida, tocar na flauta doce. s vezes,

    a professora utilizava outros procedimentos metodolgicos, como escrever por

    extenso as notas no quadro (sol-l-si-d) e reforar a aprendizagem do ritmo a partir

    da melodia cantada. Percebeu-se que o ato de cantar as msicas reforava a

    6 Esse livro se deve a uma iniciativa do governo do estado do Paran em estabelecer um programa de

    aula de msica em torno do instrumento e do canto.

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    memorizao e a aprendizagem, complementando a experincia com o instrumento.

    Isso evidencia o que foi apontado por Ilari (2003), que defende que o canto pode ativar

    os sistemas da linguagem, da memria e da ordenao sequencial.

    Outra forma evidenciada de utilizao do canto foi que, enquanto os alunos

    tocavam a flauta, a professora cantava a melodia. Interpretamos esse cantar junto

    como uma forma de auxiliar os alunos a no se perderem na execuo meldica e

    rtmica das canes. Entretanto, a professora, frequentemente, cantava uma oitava

    abaixo por no se sentir confortvel com a tonalidade original proposta no material

    didtico que, geralmente, encontra-se entre o Sol 3 e o R 4.

    Essa prtica de transposio revelou que a tonalidade adotada pela professora

    dificultou a execuo por parte dos alunos, pois estava em uma regio muito grave,

    no adequada tessitura do grupo. Na terceira aula, observou-se outro exemplo: os

    alunos no alcanavam algumas notas ao cantarem (por exemplo, L 3), apesar de

    ser uma regio confortvel para a voz infantil e, consequentemente, cantavam

    gritando. Em ambos os momentos, nos remetemos ao debate sobre a importncia de

    o professor conhecer os princpios acerca da formao da voz infantil (EGG, 2011) e

    compreender o seu funcionamento (SPECHT, 2007). De um lado, o exemplo vocal

    essencial para os alunos e, de outro, propor formas para desenvolver a voz infantil so

    tcnicas didticas fundamentais para as aulas de msica.

    Mrsico (1982, p. 83) ressalta que o desenvolvimento da audio e da voz vai

    depender dos bons exemplos e modelos que lhes forem propostos, da organizao

    sequencial das canes, dos exerccios e atividades e de sua sistematizao, bem

    como da formao de hbitos auditivos. O aluno precisa aprender a ouvir. Portanto,

    como as canes so ensinadas por audio, isto , por imitao do modelo

    apresentado, importante que o(a) professor(a), como recurso pedaggico, adapte

    seu registro vocal ao do aluno, cantando na tessitura que convm ao grupo, conclui a

    autora.

    Nesse sentido, Specht (2007) afirma que o conhecimento vocal fornece as

    bases de um cantar saudvel, seguro e com qualidade para o desenvolvimento de

    atividades com o canto em sala de aula. Outro ponto de debate a escolha do

    repertrio. Ferreira (2007, p. 76), ao tratar sobre o canto como recurso pedaggico na

    educao infantil e no ensino fundamental, afirma que a influncia da performance

    vocal no desenvolvimento oral da criana [...] atravs do canto, est diretamente

    associada qualidade do repertrio, considerando aspectos tcnicos e expressivos.

    Na aula de msica analisada neste trabalho verificou-se a adequao do repertrio

    tanto para sua execuo na flauta doce quanto para cantar, uma vez que as canes

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    foram tocadas entre o Sol 3 e o R 4, regio considerada confortvel para crianas

    entre 5 a 11 anos de idade.

    Estudos sobre extenso e tessitura das crianas apontam vrias concluses e

    variam conforme o autor e os objetivos ou o tipo de aula de que se trata. Pensando

    num contexto mais especfico de aula de msica e baseando-se em estudos de

    autores norte-americanos, Carnassale (1995) apresenta um quadro de tessituras que

    variam conforme a idade e que ficam no mbito de R at L, para crianas de 7 anos

    e de R a R para a idade de 11 anos, conforme apresentado na Figura 1.

    Figura 1: Tessituras indicadas por Carnassale (1995), para crianas de 7 e 11 anos.

    Carnassale (1995, p. 85) diferencia extenso de tessitura, sendo o primeiro

    termo usado para as notas que os alunos so capazes de atingir em exerccios vocais

    e preferindo tessitura como o mbito de notas que as crianas so capazes de

    executar com dico, ou seja, no contexto de uma cano. Considera tambm que a

    tessitura das crianas consideravelmente menor do que sua extenso, tendendo a

    aumentar com o treino e a maturao do aparelho fonador.

    CONSIDERAES FINAIS

    Este trabalho apresentou e discutiu resultados parciais acerca do canto nas

    aulas de msica. Buscou-se perceber de que forma a atividade de cantar se

    desenvolveu, durante as aulas de msica, na turma do 6 ano de uma escola pblica

    da cidade de Curitiba. Respondendo questo de pesquisa possvel afirmar que, de

    um lado, a professora utilizou a voz cantada para dar exemplos de conceitos musicais

    e, de outro, os alunos aprenderam as canes que tocavam na flauta doce por meio

    do canto. Em ambos os casos, cantar foi um recurso pedaggico.

    A utilizao do canto e da flauta doce nas aulas observadas justifica-se pela

    adoo do livro de Teixeira (2008). Ao apresentar as duas propostas de aprendizagem

    no material didtico, o autor considerou apropriada a relao da flauta doce com a

    extenso vocal do pblico infanto juvenil. As atividades so apresentadas de forma

    que se faz necessria a interveno da professora para mediar as prticas cantadas.

    Nesse sentido, observou-se que a abordagem adotada ao direcionar o canto nem

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    sempre seguiu o recomendado no material que a professora tinha em mos, pois a

    escolha de tonalidades em regies graves dificultou, por vezes, a execuo vocal dos

    alunos.

    Outra questo a da memria musical ou, mais especificamente, da memria

    vocal (de intervalos) que necessita de tempo, experincia e bons exemplos para

    adquirir independncia. A voz reproduz o que ouve, evidentemente, o aluno canta o

    que escuta. Tendo um bom modelo vocal, o aluno ter parmetros para distinguir entre

    o afinado ou no, se a tonalidade a ideal ou no. Esses cuidados e outras

    informaes so adquiridos inconscientemente durante as atividades cantadas. Com o

    tempo, o aluno adquire confiana e estar apto a mudar a tonalidade quando esta no

    estiver no registro ideal para a sua voz, adquirindo subsdios para brincar,

    experimentar, criar e inventar.

    Uma simples cano, bem desenvolvida na aula de msica, pode contribuir

    para a compreenso de elementos bsicos como: ritmo, tonalidade, fraseado,

    estrutura musical, memria e outros. Nas aulas observadas verificou-se essa tentativa,

    pois a professora, algumas vezes, explorou aspectos musicais por meio da voz

    cantada. Fizeram parte do processo de ensino e aprendizagem os sons graves e

    agudos, escalas ascendentes e descendentes, frases rtmicas e a relao entre a

    melodia e o nome das notas musicais correspondentes. Musicalmente falando, o canto

    tem muito a contribuir se bem explorado em sala de aula.

    Os autores referenciados neste trabalho concordam em afirmar que a atividade

    do canto em sala de aula uma prtica recorrente. Sendo to importante na vida da

    escola, estratgico que o professor tenha um bom preparo para trabalhar a voz

    infantil e juvenil, planejando as atividades de modo que elas tenham um bom resultado

    pedaggico. Desse modo, o canto ser mais do que apenas uma ferramenta ou um

    canto funcional (SOUZA, 1991), contribuindo para o desenvolvimento vocal do aluno.

    Foi possvel observar que, por vezes, os exemplos vocais da professora

    evidenciaram a necessidade de um preparo especfico para se trabalhar com a voz

    infantil que deveria partir do desenvolvimento da prpria voz como modelo. Nesse

    sentido, oferecer cursos de formao continuada seria de grande auxlio aos

    professores especialistas e/ou generalistas. Essa questo geral e comum nas

    escolas, considerando que a prpria formao docente durante os cursos de

    graduao, sejam a Licenciatura em Msica ou a Pedagogia, no privilegiam o estudo

    da voz infantil e o desenvolvimento da voz do estudante ou do futuro professor.

    Este estudo confirma a necessidade de ampliar o nmero de aulas de msica,

    pois o cantar um fenmeno complexo. O papel do professor nesse contexto

    primordial para o desenvolvimento da voz infantil e, consequentemente, para o

  • Anais do IX Frum de Pesquisa em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2013.

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    desenvolvimento musical do aluno. Constata-se que investir na formao continuada

    dos professores da rede pblica acerca deste assunto de extrema importncia,

    expandindo os horizontes sobre o uso da voz e as implicaes desses modelos quanto

    ao desenvolvimento vocal dos alunos do ensino fundamental.

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