o caminho de santiago cap 02

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Capítulo II

Uma Nova Identidade De Roncesvalles a Zubiri

Navarra, 04 de Setembro de 1999

Fotos:

Odia estava amanhecendo e, no interior

do dormitório, escutavam-se os primeiros movimentos dos

Fotos:

Da esquerda para a direita: Colegiata de Roncesvalles; O Caminho em

Espiñal; O Bosque do Erro.

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peregrinos, que se aprontavam para a nova etapa da caminhada. Para nós, por se tratar do início da peregrinação, tudo era novidade no que se referia aos procedimentos matinais do grupo. As pessoas procuravam fazer movimentos leves, preservando o sono dos que ainda descansavam, porém, a uma certa altura, todos se movimentavam simultaneamente, gerando pequenos ruídos que, somados entre si, impossibilitavam o sono de qualquer pessoa que ainda estivesse tentando dormir. Os pequenos fachos das lanternas se confundiam entre a penumbra do amanhecer, no interior do cômodo, e logo alguns caminhantes já começavam a sair do refúgio. Na noite anterior imaginávamos que o uso das instalações sanitárias, por parte de todas as pessoas simultaneamente, seria difícil e demorado ao amanhecer, mas, pelo fato de todos estarem imbuídos do espírito de solidariedade e colaboração, este processo ocorreu de maneira muito natural e organizada, sem gerar qualquer desconforto para a maioria. No refúgio não havia café da manhã e, como não tínhamos nos aprovisionado de gêneros no dia anterior, saímos por volta das sete e meia da manhã esperando encontrar algum bar no caminho, onde fosse possível fazer o desjejum.

A primeira jornada apenas começava naquelas

paragens da Espanha. A escuridão da noite ainda não havia sido completamente vencida pelo clarão da manhã; uma neblina espessa e fria tomava conta da região e ali iniciávamos os primeiros passos rumo a Santiago de Compostela. Logo à saída de Roncesvalles, confrontamo-nos com a famosa cruz dos peregrinos, que recorda os monumentos que, na Idade Média, marcavam a rota do

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Caminho. A cruz de Roncesvalles é uma das poucas que ainda se conservam. Original do século XV, ergue-se sobre um embasamento de pedra com relevos de Sancho, el

Fuerte e sua esposa Clemência. O Caminho se mostrava tortuoso e se desenvolvia

pela mata fechada de um bosque de eucaliptos; ora pela mata, ora por estreitas estradas rurais e pequenos trechos pelo asfalto da rodovia; aquele mesmo asfalto que percorreramos de táxi no dia anterior. Por diversas vezes paramos, os três, para fazer um “ajuste” em nosso meio de transporte, as botinas que, por serem novíssimas, ainda não haviam adquirido a forma de nossos pés.

Conforme previamente combinado, após

aproximadamente cada hora de caminhada, faríamos 10 minutos de parada para descanso, especialmente das costas, com a retirada das mochilas. Às 8:25 h fizemos a nossa primeira parada do dia e do Caminho; sentamos à beira de um regato, bebemos água, comemos algumas amêndoas que compráramos em Roncesvalles para podermos, assim, enganar o estômago até encontrarmos um bar que servisse café da manhã. Tal parada foi providencial, pois logo a seguir enfrentamos um cerrito, pequeno trecho em aclive contínuo, que nos fez suar um bocado, mesmo estando o clima mais para frio naquele início de manhã. Chegando ao topo, maravilha, uma descida e, ao longe, outro povoado. A partir daí começamos a nos dar conta de que os nossos dias seriam, na verdade, uma sucessão de subidas e descidas... Mais adiante, após o povoado avistado, divisamos outro cerrito, sendo que este nos parecia encostar-se ao céu!

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O horizonte agora já estava claro: eram quase nove

horas da manhã. Por alguns trechos caminhamos sozinhos e por outros em companhia de peregrinos que vinham de muitas partes do mundo. Encontramos nosso amigo mineiro, Raí, um senhor espanhol vindo de Barcelona e que fazia o caminho pela primeira vez, além de outros caminhantes que fomos conhecendo depois.

Ao longe se avistava um pueblo - pequeno povoado

- onde esperávamos encontrar um bar para o café da manhã. A paisagem era realmente de cartão postal. À medida que chegávamos próximos ao lugarejo, o aroma do pão recém assado se misturava com o ar fresco da manhã e passamos a participar da vida dos que que ali habitavam. Todos nos cumprimentavam e, às vezes, se referiam ao Brasil de uma maneira alegre e amistosa, pois sabiam que éramos brasileiros ao verem as bandeiras afixadas em nossas mochilas; minha irmã levava, ainda, mais uma em um pequeno mastro na lateral da bagagem. O lugar se chamava Burguete e distava apenas três quilômetros de Roncesvalles. A povoação foi erguida por espanhóis que emigraram para o Canadá e, anos mais tarde, ao retornarem com sua descendência, resolveram fundar o burgo, com o auxílio de verba canadense. Logo pudemos avistar, numa esquina do pueblo, uma aglomeração de mochilas e bicicletas indicando que ali havia um bar repleto de peregrinos em pleno reabastecimento. Entramos, pedimos café e sanduíches para o desjejum. O dono do estabelecimento, muito habituado com o atendimento aos peregrinos, nos serviu o café e ofereceu uns bolinhos doces

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enquanto esperávamos os sanduíches serem preparados e aquecidos.

De repente, notamos que todos os peregrinos

haviam partido e ali só ficáramos nós terminando o café. Pagamos a conta e prosseguimos, seguindo as setas amarelas distribuídas por todo o trajeto, indicando o caminho correto a ser trilhado. Encontramos uma padaria, logo adiante, onde compramos pães para qualquer eventualidade e seguimos viagem, atitude que seria repetida por muitas manhãs nas próximas semanas.

Em poucos minutos deixamos aquele pueblo e

tomamos o caminho rumo a Larrazoaña, a localidade onde imaginávamos pernoitar ao final do dia. O caminho passou então a se desenvolver por meio de um terreno acidentado que percorrêramos com o táxi horas antes até Roncesvalles. Durante este percurso, começamos a entender perfeitamente o comportamento das distâncias dentro de um táxi e o comportamento destas mesmas distâncias quando percorridas a pé. Começávamos a vivenciar a experiência do tempo único e real; o tempo natural do ser humano, isento de artifícios tecnológicos para os quais não fomos criados e somos obrigados a nos submeter diariamente no cotidiano das cidades.

Descíamos algumas encostas íngremes, quando

encontramos um grupo de brasileiros que haviam começado o trajeto no dia anterior, a partir da fronteira com a França. Eram quatro pessoas vindas de São Paulo: ele, Augusto, sua amiga e dois senhores com idades entre sessenta e setenta anos, desciam felizes aqueles

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despenhadeiros, conversando muito entre si e conosco após os termos encontrado. Augusto brincava muito com nosso pai, contando algumas piadas de gaúcho, já que soubera que éramos do sul; desta forma, fomos conversando e nos conhecendo, por alguns quilômetros. Era meio-dia, Augusto e seus companheiros já haviam tomado uma boa dianteira, quando começamos a nos dar conta do peso de nossas mochilas. Nosso pai estava bastante cansado e reclamava da dificuldade de carregar toda aquela tralha. Minha irmã, durante uma parada para descanso, resolveu dar uma olhada no que ele levava. Havia uma infinidade de supérfluos que estavam contribuindo enormemente para o aumento do peso da mochila. Então ali, na beira do caminho, nosso pai se desfez de uma grande quantidade de utensílios e roupas que não teriam a menor utilidade durante a caminhada. Esta foi a primeira lição de que aquilo que necessitávamos poderia ser perfeitamente carregado com o nosso próprio esforço; tudo o que carregássemos a mais faria peso e deveria ser descartado para que pudéssemos prosseguir confortavelmente. Concluído este alívio de peso, continuamos a caminhada, atravessando o pueblo de Espiñal, comunidade tipicamente pirenaica fundada em 1269 pelo rei Navarro Theobaldo II. Um paraíso: um burgosinho de uma rua, longa, casas com gerânios às janelas, um ar medieval que leva a gente lá ... para o tempo não sei do quê! Logo a seguir, atingimos o Alto de Mezkiritz onde o Caminho se reencontra com a carretera,

ou seja, um trecho de rodovia pavimentada. Nesse Alto existe uma lápide, à beira da trilha, recordando que “Aquí

se reza una salve a Ntra. Sra. de Roncesvalles”. Deixamos a carretera logo adiante e entramos em Biscarreta, um

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povoado dedicado à criação de gado. A menos de um quilômetro, atravessamos a pequena povoação de Lintzoain com suas interessantes casas vasco-navarras, dali saindo em ascensão, por um trecho acidentado, rumo a Alto de Erro, aonde chegamos depois de uns quatro quilômetros de subida por entre um lindíssimo bosque de carvalhos, bétulas, freixos e pinheiros centenários. Ali encontramos o busto do Cavaleiro Roldão, um dos doze pares do imperador Carlos Magno e seu sobrinho, que nos remete à infância, quando nosso pai declamava para nós, seguidamente: “Era um tal cavaleiro Roldão, que calçava

bota e espora e montava um branco rabão...”. O sol da primeira hora da tarde era causticante. O

caminho agora era percorrido sobre o leito rochoso de um antigo córrego seco, dificultando enormemente a caminhada. Pela manhã havíamos completado a água de nossos cantis em uma fonte, após termos tomado o café da manhã, porém de lá para cá não completáramos mais nossa reserva de líquido, o que por um lado aliviara o peso que carregávamos, mas, por outro, nos faria percorrer alguns quilômetros com sede sob o sol quente.

Durante a descida pelo leito de pedras, fui me

distanciando de minha irmã e meu pai na esperança de encontrar uma fonte de água fresca para beber e reabastecer o cantil. Durante muitos quilômetros de descida a fonte não chegava e, então, entrei em um pequeno pueblo, por meio de uma ladeira ascendente. Ao chegar ao topo, avistei um menino, no quintal de sua casa, e o chamei:

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- Olá menino! Onde há uma fonte por aqui? Ele logo veio para perto da cerca e, num gesto singular, apontou:

- Ali señor! La fuente!

Havia uma, do tipo hidrante, a menos de cinco

metros de onde eu estava e não conseguira vê-la da primeira vez.

- Muchas gracias hombre! Disse ao menino, com entusiasmo. Ele me olhou e sorriu.

O hidrante, equipado com uma válvula do tipo

registro, ficava próximo à rua, numa área de sombra com um lindo gramado a sua volta. Acionei a válvula e deixei que a água gelada fluísse pela minha cabeça e pescoço. Após ter bebido muito daquela água e abastecido o cantil, deitei na grama recostando a cabeça sobre mochila e aguardei até que meu pai e minha irmã chegassem.

Passados vários minutos, sem que eles chagassem, o menino se aproximou de mim e perguntou:

- De onde você é? - Sou do Brasil. - O Brasil de Rivaldo, o jogador de futebol? - Sim. E você como se chama? - Meu nome é Felipe e vivo aqui com meu pai,

minha mãe e minha irmãzinha menor. - Como se chama este lugar Felipe? - Aqui é Zubiri. Você vai dormir aqui hoje? Temos

um bom refúgio de peregrinos na cidade.

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- Acho que não. Pensamos em ir até Larrazoaña.

Neste instante avistei meu pai e minha irmã, vindos ladeira acima, completamente exaustos. Indiquei a fonte a eles e logo se dirigiram até ela para beber. O calor era insuportável após todo aquele tempo sob o sol. Nosso pai deitou-se no piso em concreto, sobre o qual a casa de Felipe projetava sua sombra, e disse não ter mais condições de dar um passo. Pediu que chamássemos um táxi para buscá-lo, pois não conseguiria nem se locomover até o refúgio. Dissemos a ele que descansasse e certamente a exaustão e o mal estar passariam, voltando tudo ao normal. Confesso que fiquei preocupado, vendo seu estado, porém, não podia deixar transparecer meu receio para que não se sentisse derrotado.

Os dias seguintes mostrariam, a mim e Ana Maria,

que aquele homem, com vontade férrea e muita determinação, nos seus setenta e sete anos de idade, faria todo o percurso dali para diante com a disposição de um jovem de 20 anos: mais uma emocionante surpresa guardada pelo nosso velho e amado pai, que nos seria revelada aos poucos, até a chegada à Galícia.

Aguardamos uns minutos ali, nosso pai se

recuperou e decidimos encerrar o dia de caminhada naquele mesmo lugar, Zubiri, pois também eu e minha irmã estávamos muito desgastados.

Passamos a ponte medieval, a uns duzentos

metros de onde estávamos, e nos dirigimos à rua principal da cidade. Era a hora da sesta e o mundo por ali parecia

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viver em estado letárgico. Entramos em um restaurante, o único que ainda funcionava àquela hora, e então almoçamos.

Zubiri é um pueblo situado no sopé do Alto do

Erro, no vale do rio Arga, todo ele impregnado pela poluição da fábrica de magnesita, e seu povo demonstra a perda ou o esquecimento de sua personalidade e das tradições vascas secularmente mantidas na região pirenaica da Espanha.

Nosso pai preferiu se hospedar em um hotel, ao

invés do refúgio de peregrinos. O hotel ficava próximo ao centro do povoado e, após ele se ter hospedado ali, fomos - minha irmã e eu - para o refúgio municipal a fim de nos instalarmos. Muito boas as instalações do refúgio de peregrinos, com aposentos bem amplos e ventilados, o banho era frio (coisa que não nos incomodou naquele momento), máquina de café e leite, enfim perfeitamente confortável para quem procurava um local para se refazer. Tomamos banho, lavamos nossas roupas e fomos em direção ao mercado em busca de gêneros para prepararmos o jantar, pois onde nosso pai estava hospedado havia cozinha e estrutura completa para se preparar refeições.

Eu fui o cozinheiro daquela noite. Preparei

spaghetti com almôndegas enlatadas, salada e sobremesa comprada pronta no mercado. Como acompanhamento, vinho da região de Navarra, pães e refrigerantes. Foi um ótimo jantar, pois até então não havíamos tido uma refeição tão completa desde que saíramos do Brasil.

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Após o jantar voltamos para o refúgio e ali tivemos

uma ótima noite de sono realmente reparador.