o caboclo boiadeiro: o ser dos pastos sujos por itamar pereira de aguiar

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- 1 - O CABOCLO BOIADEIRO: o Ser dos pastos sujos Itamar Pereira de Aguiar 1 Parte da região compreendida como Sudoeste da Bahia (ou, mais especificamente, como Planalto da Conquista) foi, no passado, chamada de Sertão da Ressaca. Por sua situação privilegiada, a meio caminho entre o litoral (à altura da cidade de Ilhéus) e o rio São Francisco (à altura de Bom Jesus da Lapa), Conquista constituiu-se, desde o início, em uma cidade encruzilhada, por onde passavam boiadas e onde os vaqueiros pousavam para descansar das longas viagens pelo sertão, na condução dos bois para venda em Salvador e Recôncavo da Bahia; pelos caminhos do passado que a interligavam: a leste, com Ilhéus; ao sul, com a região de mineração do estado de Minas Gerais; a oeste, com o rio São Francisco e a Chapada Diamantina; a nordeste, com Cachoeira, Nazaré das Farinhas e Salvador. Região que sofreu influência da cultura do Boi proveniente da bacia do rio São Francisco e bacias adjacentes ao longo do Norte de Minas Gerais, Sudoeste e Oeste da Bahia, literalizada por João Guimarães Rosa, sob a narração do personagem Riobaldo, o jagunço Tatarana, falando de paisagens compostas por veredas e buritis, gerais e pastos mansos, planaltos, montanhas e rios, matas fechadas e onças, caatingas e espinhos, homens cavalos e Bois, mansos, selvagens, encantados. Coronéis, Vaqueiros, jagunços, jagunços-vaqueiros, tropeiros, boiadeiros, padres, pregadores, videntes, benzedeiras e feiticeiros, negros, indígenas, brancos e mestiços de vários matizes. Tudo isso e muito mais compondo a imensidão sem fim, o Sertão. O sertão está em toda parte [...]. O diabo na rua no meio do redemunho [...]: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. [...]. Sertão é isso, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada [...]. Sertão é isso: o senhor empurra pra trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; [...]. O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado [...]. O sertão é confusão em grande demasiado sossego [...]. Sertão foi feito é pra ser sempre assim: alegrias! E fornos. Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha um 1 Itamar Pereira de Águiar, Doutor em Antropologia pela PUC/SP, vinculado à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, lotado no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH.

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Artigo do Prof. Dr. Itamar Pereira de Aguiar/UESB. Apresentado no XI Congresso Latino Americano Sobre Religião e Etinicidade - 2006.

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Page 1: O Caboclo Boiadeiro: O Ser dos pastos sujos por Itamar Pereira de Aguiar

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O CABOCLO BOIADEIRO: o Ser dos pastos sujos

Itamar Pereira de Aguiar1

Parte da região compreendida como Sudoeste da Bahia (ou, mais especificamente,

como Planalto da Conquista) foi, no passado, chamada de Sertão da Ressaca. Por sua situação

privilegiada, a meio caminho entre o litoral (à altura da cidade de Ilhéus) e o rio São

Francisco (à altura de Bom Jesus da Lapa), Conquista constituiu-se, desde o início, em uma

cidade encruzilhada, por onde passavam boiadas e onde os vaqueiros pousavam para

descansar das longas viagens pelo sertão, na condução dos bois para venda em Salvador e

Recôncavo da Bahia; pelos caminhos do passado que a interligavam: a leste, com Ilhéus; ao

sul, com a região de mineração do estado de Minas Gerais; a oeste, com o rio São Francisco e

a Chapada Diamantina; a nordeste, com Cachoeira, Nazaré das Farinhas e Salvador.

Região que sofreu influência da cultura do Boi proveniente da bacia do rio São

Francisco e bacias adjacentes ao longo do Norte de Minas Gerais, Sudoeste e Oeste da Bahia,

literalizada por João Guimarães Rosa, sob a narração do personagem Riobaldo, o jagunço

Tatarana, falando de paisagens compostas por veredas e buritis, gerais e pastos mansos,

planaltos, montanhas e rios, matas fechadas e onças, caatingas e espinhos, homens cavalos e

Bois, mansos, selvagens, encantados. Coronéis, Vaqueiros, jagunços, jagunços-vaqueiros,

tropeiros, boiadeiros, padres, pregadores, videntes, benzedeiras e feiticeiros, negros,

indígenas, brancos e mestiços de vários matizes. Tudo isso e muito mais compondo a

imensidão sem fim, o Sertão.

O sertão está em toda parte [...]. O diabo na rua no meio do redemunho [...]: sertão é

onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. [...].

Sertão é isso, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a

noite inchada [...]. Sertão é isso: o senhor empurra pra trás, mas de repente ele volta

a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; [...]. O sertão é bom.

Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado [...]. O sertão é confusão em grande

demasiado sossego [...]. Sertão foi feito é pra ser sempre assim: alegrias! E fornos.

Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha um

1 Itamar Pereira de Águiar, Doutor em Antropologia pela PUC/SP, vinculado à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, lotado no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH.

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caminho novo. Caminho de gado. Sertão é uma espera enorme [...]. Satanão! Sujo!

[...] e dele disse somente – S... – Sertão... Sertão... (ROSA, 1979, p. 9- 11- 22-121-

218-343, 380-436-448).

Ouvi de um pai-de-santo conquistense que, “O CABOCLO BOIADEIRO é o Ser dos

pastos sujos”. Os pastos sujos são lugares de diversidade da flora e fauna do Sertão, onde

depois de aberta uma clareira na mata, na mata-de-cipó e na caatinga, brotam diversas plantas,

algumas rasteiras como as gramíneas, a malícia, as malvas, os velames e muitas leguminosas,

outras arbustivas como o espinheiro preto, as unhas-de-gato, a mãe-ingraça, outras ainda,

árvores frondosas como a imburana, a baraúna, o canela-de-vei, o Pau-d’arco, o sete casca, a

madeira-nova, a aroeira, o juazeiro, o umbuzeiro, as palmeiras e muitas outras, lugares

apropriados para o gado pastar, como as veredas.

A Vereda recruza, reparte o plaino, de esguelha, da cabeceira-do-mato da Mata-

Pequena para a casa-de-fazenda, e é alegrante verde, mas em curtas curvas, como no

sucinto caminhar qualquer cobra faz. E tudo. O resto, céu e campo. Tão grandes,

como quando vi, quando no fim: que ouvi só, no estardalhal, gritos e os relinchos: a

muita poeira, de fugida, e os cavalos azulados... (ROSA, 1979, p. 414.)

No Sertão de Guimarães, imensas extensões de terras nas quais os bois, muitas vezes

de mansos ficavam bravos, quase selvagens, soltos sem donos, nas matas, caatingas, gerais,

planaltos, serras, e boqueirões. Lugares onde bois, cavalos, vaqueiros, jagunços, boiadeiros,

se tornam barbatões, mandingueiros, encantados. Uma complexa imensidão.

Arte que espiei arriba, levei os olhos. Aquelas estrelas sem cair. As Três-Marias, o

Carretão, o Cruzeiro, o rabo-de-tatú, o Carreiro-de-São-Tiago. Aquilo me criou

desejos. Eu tinha de ficar acordado firme. Depois, daí, vi o escuro tapar de nuvens.

Eu ia esperar, fazendo uma coisa ou outra, até o definitivo do amanhecer, para o sol

de todos. Ao menos achei de tirar, do tom da noite, esse de fim, canto de cantiga:

Remanso de rio largo. Deus ou o demo no sertão... (ROSA, 1979, p. 424).

Sabe-se que o boi chegou ao Brasil ainda no Período Colonial, durante o governo de

Tomé de Souza (1549-1552), através das capitanias da Bahia, de Pernambuco e de São

Vicente. Do recôncavo da Bahia nas terras da família Garcia de Ávila, conhecidos como da

casa da Torre, adentrou os Sertões: do norte da Bahia a Sergipe, ao vale do rio São Francisco

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e daí aos vários Estados do Nordeste até alcançar o Piauí e o Maranhão, terras dos “pastos

bons” (JÚNIOR, 1992, p.192-193).

Na transição para o século XVIII, haveria nos sertões da Bahia mais de 500

criatórios. Somente na borda direita do São Francisco encontravam-se 106 fazendas

de gado estabelecidas por Antônio Guedes de Brito e arrendatários de suas terras. Na

margem esquerda haveria muito mais, dos descendentes de Garcia d’Ávila e seus

rendeiros. Em toda a Bahia os rebanhos superavam a meio milhão de reses e em

Pernambuco, que nessa época incorporava o oeste da Bahia e os atuais estados de

Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, a mais de 800 mil cabeças de gado

(NEVES, no prelo).

A criação do boi exerceu grande importância no povoamento de toda essa área, através

da implantação de fazendas, na realização das feiras de venda do gado “como a de Capoame,

entre os atuais municípios de Camaçari e Dias d’Ávila, nos séculos XVII e XVIII, e a de

Santana dos Olhos d’Água, hoje Feira de Santana, no XIX e no XX” (NEVES, no prelo). Na

construção de povoados que com o passar dos anos constituíram-se em cidades e, também na

abertura de caminhos que as interligavam ao recôncavo e à capital da colônia:

[...] entre 1612 a 1891, quando os colonizadores [...] abriram a estrada das boiadas,

ligando a capital da colônia ao alto sertão do São Francisco até o Piauí surgiu a

Fazenda Serrinha na Capitania da Bahia, como local de criação de gado e rancho

para descanso de homens e animais. Depois tornou-se centro comercial e

agropecuário, recebendo foros de cidade por ato assinado pelo governador José

Gonçalves da Silva, em 30 de junho de 1891 (FRANCO, 1996, p. 11).

Continuando a jornada o boi alcançou ainda pelas margens do São Francisco, parte do

que é hoje o Oeste da Bahia e o Norte de Minas Gerais, de onde em meados do século XVIII,

chega ao Sertão da Ressaca, fazendo surgir em torno do Arraial da Conquista grandes

fazendas de gado que se constituíram em principal atividade econômica, meio de vida dos que

habitavam o lugar, tornando-se o boi importante ícone da cultura local.

Estudos de corografia registram atos a partir dos quais, na primeira metade do século

XVIII, teve início a ocupação do Sertão da Ressaca e as origens da colonização da região, na

qual Vitória da Conquista encontra-se inserida, afinal,

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Para a conquista da região vizinha, Pedro Leolino Mariz, Superintendente das

Minas, formou uma bandeira, entregando a direção a André da Rocha Pinto, em 25

de junho de 1727, ao qual conferiu um ‘Regimento’ de caráter extremamente militar.

O objetivo da bandeira era explícito naquele regimento: conquistar o sertão entre os

rios de Contas, Pardo e São Mateus, encontrar metais preciosos, estabelecer

fazendas de gado, matar índios que se opusessem à conquista, estabelecer aldeias e

destruir quilombos que fossem encontrados (MEDEIROS; FONSECA, 1996, p. 90).

Não se sabe ao certo, qual foi a primeira fazenda de gado estabelecida no Médio São

Francisco, mas, segundo Neves “parece ter sido a Brejo Grande, latifúndio de Antônio

Gonçalves Figueira, na última década do século XVII”. Dai Figueira mudou-se para a região

dos vales do rio Pardo e Verde Grande, onde possuía as fazendas Itaquí, Olho d’Água e

Montes Claros, essas foram vendidas a Pedro Leolino Mariz que, por sua vez, as vendeu a

Matias João da Costa. Tudo indica que delas tenham chegado à Região de Vitória da

Conquista as primeiras cabeças de gado, pois, Matias João da Costa, tido por sogro de João

Gonçalves de Costa, possuiu também fazendas nessa área.

Natural do norte de Portugal, Matias João da Costa morreu com avançada idade em

Brejo das Carnaíbas, fazenda da qual pagava rendas a Joana da Silva Guedes de

Brito. [...]. Na fazenda Ressaca, borda do rio Gavião, criava 300 cabeças de gado, na

fazenda Conquista 300 reses e 42 éguas. Possuía ainda a fazenda Olho d’Água e os

sítios: Barra, Nossa Senhora da Vitória, Catolés, Espírito Santo, Santo Antônio e um

“na outra banda do rio Pardo”, “infestado de gentio”. Em todos criava muito gado

(NEVES, no prelo).

Além de Matias João da Costa, tem-se notícia de diversos outros fazendeiros e

pequenos proprietários de terra que, ocupavam as margens do rio Gavião, plantando algodão,

cultivando lavoura de subsistência e criando gado:

Em Candeal no rio Gavião, Francisco José Ribeiro, [...], pagava renda da terra onde

vivia, em 1789, numa casa coberta de palha, plantava roças e criava 17 eqüinos e 72

cabeças de gado. [...], Crispim da Rocha Pinto possuía, em 1792, casa, roça de

mandioca e de algodão, produto do qual armazenava duas cargas (12 arrobas)2, 30

eqüinos e gado3, [...]. Criadores do rio Gavião comercializavam muito gado.

Modesto Vaz da Costa, por exemplo, vendeu ao capitão Estevão Inácio da Costa

com suas posses de terras em Gavião e Santa Cruz da Canabrava, 100 reses, em

1799 (NEVES, no prelo).

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O naturalista Maximiliano Príncipe de Wied Neuwied, em sua obra Viagem ao Brasil,

descreve paginas magistrais sobre suas andanças, da Vila dos Ilhéus aos confins da Capitania

de Minas Gerais e, das fronteiras de Minas ao Arraial da Conquista, nas quais narra sobre

tudo que vê e sente: os climas, as doenças, as serras, os vales, os rios, os planaltos, as matas,

os Campos Gerais as Caatingas as tribos indígenas, os povoados, o Porto aduaneiro de Minas,

os tropeiros, os caminhos, as fazendas, a criação do gado no sertão, os cavalos os bois e os

vaqueiros. Dentre eles fala do vale de Barra da Vareda, cortado pelo rio Pardo no ponto em

que se encontra com o afluente ribeiro da Vareda que dá nome ao lugar.

O Sr. capitão Ferreira Campos, nascido na Europa, mandou abater as florestas do

local e fazer plantações em que cultiva mandioca, milho, algodão, arroz, café e todos

os demais produtos do país. [...]. A riqueza de um lavrador brasileiro consiste em

seus escravos, e as quantias que retira do produto de suas colheitas são logo

empregadas na compra de mais escravos. Êsses são tratados geralmente com doçura

e, em Barra-da-Vareda são muito bem alimentados. Na hora do maior calor do dia,

levam-lhes nas roças em que trabalham, grandes vasilhas do melhor leite, e dão-lhes

em abundância excelentes “melancias”, muito refrescantes. Nestas regiões, os

proprietários que possuem cento e vinte escravos, ou mais, moram comumente em

casas de barro, e, como as pessoas pobres, vivem de farinha, feijão preto e carne

sêca. Raramente pensam em melhorar o seu modo de vida, que os bens de fortuna

não tornam mais alegres (WIED NEUWIED, 1940, p. 375).

Figura 14 Figura 25

Além da agricultura movida a braço escravo, o proprietário da Fazenda Vareda,

segundo Maximiliano, criava considerável quantidade de bois e cavalos, cuidados por

“rapazotes pretos” que no final da tarde os levavam para um grande curral, quando então,

ordenham as vacas e diz mais:

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Já aqui pude também travar conhecimento com [...] os “vaqueiros” [...], vestidos de

couro de veado da cabeça aos pés. [...]. A sua vestimenta consta de sete peças. [...]; o

“chapéu”, pequeno e arredondado com as abas estreitas, que se alarga e se alonga

para trás para formar uma pala que abriga o pescoço; o “gibão” ou jaqueta, aberto na

frente, por baixo do qual está o “guarda-peito”, [...]; as “perneiras” ou calções, por

debaixo das quais estão as botas munidas de esporas. [...]. O “vaqueiro”, montado

num bom cavalo sobre uma cela acolchoada, leva na mão uma longa vara cuja

extremidade é guarnecida por uma ponta de ferro rombuda, [...]; às vêzes leva

também um “laço” para pegar os animais mais bravios. [...]. Cada fazenda de gado

tem um número suficiente de vaqueiros, entre os quais vêem-se negros, mulatos,

brancos e algumas vezes índios. São geralmente bons caçadores, exercitados em

perseguir e combater, com grandes cães educados para isso, as onças, ou os grandes

felinos [...]. O proprietário da fazenda envia, [...] os seus vaqueiros aos diferentes

pontos de seus domínios onde [...] vivem separados do mundo, levando uma

verdadeira existência de solitários (WIED NEUWIED, 1940, p. 376).

Ao adentrar os Sertões pode-se dizer que o boi levou o negro pendurado no rabo e o

índio na ponta do chifre, seguidos pelo branco como dono da fazenda, montado a cavalo.

Vetor de relações entre raças e culturas.

As nações indígenas que ocupavam o território compreendido entre os rios de Contas

e Pardo naquele período eram os Aimorés, os Pataxós e os Mongoiós. Para ilustrar esta

afirmação, recorremos à classificação elaborada pelo pesquisador Ruy Medeiros, que se

baseia nas informações do lingüista Aryon Dall’lgna Rodrigues para os indígenas que

habitavam o Planalto da Conquista:

INDÍGENAS DO PLANALTO DA CONQUISTA

Tronco Macro – Jê

FAMÍLIA LÍNGUA DIALETO

Kamakã Kamakã Mongoyó

Aymoré Aymoré -

Maxacali Pataxó -

Fonte: Torres (1996:94)

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Figura 36 Figura 47

Também os viajantes Spix, Martius e como vimos o príncipe Maximiliano Wied-

Neuwied, visitaram a região no início do século XIX, registraram informações importantes

sobre os indígenas. Informa Maximiliano, que visitou a Imperial Vila da Vitória em 1817,

quando os Mongoiós se encontravam em situação de organização sócio-econômica distinta

dos Pataxós, estes vivendo de caça e coleta, dificilmente se fixando em algum lugar. Segundo

ele, eram os Mongoiós, entre os aborígenes, “os mais desconfiados e discretos”. Descreveu

muito dos seus hábitos e costumes após visita feita a uma de suas aldeias no lugar

denominado Jibóia.

Tendo avistado, na minha viagem através da floresta virgem, ‘Camacans’

completamente selvagens, tinha eu desejo de visitar a aldeia desses situada a um dia

de viagem do Arraial, nas grandes matas da Serra do Mundo Novo e que é

conhecida pelo nome de Jibóia. [...]. As choças dos índios são feitas de madeira e

barro e cobertas de cascas de árvores. Seus moradores são, alguns, mais ou menos

vestidos, outros ainda completamente nus; cultivam milho, banana, um pouco de

algodão e muita batata; contentes com os produtos que lhes dá a natureza, vão,

todavia, até hoje, buscar fora a farinha de que necessitam (WIED NEUWIED, 1940

p 411-412).

Figura 58 Figura 69

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Fez ainda referência a uma tribo de descendentes dos Camacãns, provavelmente já

miscigenados com negros, declarando que:

Tinha nas margens do Rio Grande de Belmonte o resto de uma tribo de índios que a

si mesmos dão o nome de Camacãns; os portugueses denominam-nos ‘Menian’.

Segundo aprendi, esses ‘Menians’ constituem realmente um ramo dos Camacãns,

porém degenerados; não são mais da raça indígena pura, tendo a maioria deles o

cabelo encarapinhado dos negros e também a cor escura, e com exceção de dois

velhos, não sabem mais a sua língua (VIANA, 1982, v.1, p. 26).

Os negros trazidos como escravos para a região eram oriundos de diversos lugares da

África e pertencentes a distintas etnias: Angolas, Minas, Benguelas, Hauçás, Nagôs, Congos,

Rebolos e outros de origem étnica não identificada, conforme mostram os dados apurados por

Neves em uma tabela da qual extraímos as informações (NEVES, 1994, p. 85-86) de que

existiam 64 africanos, 396 brasileiros e 63 sem identificação. No que diz respeito aos

AFRICANOS, apuramos que o maior contingente de escravos era de bantos (30),

contribuindo com o percentual de 46,88% do total e que dentre estes, predominavam os

angolanos (24), com 80% dos bantos e, 37,88% dos africanos. Os sudaneses (11),

representando apenas 17,19% do total.

No item, BRASILEIROS foram relacionados: os crioulos com 54,94%; os cabras com

27,34%; os mulatos com 10,13% e os pardos com 7,34%. Segundo a professora Josildeth

Gomes Consorte, que há muitos anos vem desenvolvendo pesquisa na cidade de Rio de

Contas, localizada na Chapada Diamantina, região vizinha a Vitória da Conquista, os mestiços

foram classificados num primeiro momento de acordo com os cruzamentos de que resultaram

segundo ela,

do cruzamento de africano com africano, resultou o crioulo; do cruzamento de

branco com africano, surgiu o mulato. De branco com índio, o caboclo ou

mameluco: Do cruzamento de índio com africano, resultou o cafuzo ou caboré; do

cruzamento de mulato com crioulo ou com africano, resultou o cabra. A

denominação mulato desapareceu dos registros oficiais no século XIX, dando lugar

ao termo genérico ‘pardo’; até hoje em vigor10.

Os SEM IDENTIFICAÇÃO foram divididos entre: não declarados, com 79,37% e

pretos, com 20,63%.

Frente ao exposto, necessário se faz apontar as marcas principais das culturas destes

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povos, para tanto, recorremos a abordagens ainda que genéricas sobre a sua vida na África,

entendendo que não obstante estas considerações são necessárias para compreender a natureza

das relações estabelecidas entre estes e os outros povos na construção de uma nova cultura.

Para uma visão de conjunto das áreas ocupadas pelos povos e culturas na África, vejamos o

que diz Gilberto Freyre, através das pesquisas de Melville J. Herskovits:

Por esse critério, deparamo-nos com as seguintes áreas principais: [...]; c) a área de

gado da África Oriental (Banto), caracterizada pela agricultura, com a indústria

pastoril superimposta; tanto que a posse de gado numeroso e não de terras extensas é

que dá ao indivíduo prestígio social; trabalhos em ferro e madeira; poligamia;

fetichismo; d) área do Congo (também de língua banto, ainda que na fronteira

ocidental se fale ibo, fanti, etc.) [...], traços que Herskovits acrescenta outros: a

economia agrícola, além da caça e da pesca; a domesticação da cabra, do porco, da

galinha e do cachorro; [...], etc.; a posse da terra em comum; fetichismo, [...]; e)

Horn Oriental – [...]; atividade pastoril; utilização de numerosos animais – vaca,

cabra, carneiro, camelo; organização social influenciada pelo islamismo; [...]; g)

Sudão Oriental – [...]: região de grandes monarcas ou reinos - Daomei, Benim,

Axamti, Haúça, Bornu, Ioruba; sociedades secretas de largos e eficientes domínios

sobre a vida política; agricultura, criação de gado e comércio; [...] trabalhos

artísticos de pedra, ferro, terracota e tecelagem; fetichismo e maometismo; [...]

(FREYRE, 1997, p.309-310).

Passemos, agora, a considerações quanto à religião e às crenças, ou melhor, quanto à

filosofia e religião africanas, desses povos dos quais tratamos:

As religiões africanas se apresentam neste quadro como uma ordenação de forças.

No topo desta hierarquia está à figura do criador ou Deus supremo o mais das vezes

inacessível, não lhe sendo inclusive prestada nenhuma forma de culto; abaixo dele

nesta hierarquia, uma série de forças, que são os intermediários ou intercessores

junto aos homens, tarefa que lhes foi delegada por este Ser supremo que por assim

dizer depois de dado o impulso inicial se desinteressou da obra (CONCONE, 1987,

p. 38).

Quanto aos europeus, apesar da presença de franceses, italianos e espanhóis que

chegaram à região a partir do final do século XVIII, predominaram numericamente os

portugueses, colonizadores, responsáveis pela administração da terra e que trouxeram padres

católicos os quais cuidaram do aldeamento missionário de índios. Como se pode notar:

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Representou papel de destaque nestas conquistas, entre outros bandeirantes, o mestre

de campo João da Silva Guimarães. Em 1734 ele enviou ao rei de Portugal um

relatório, dando-lhe conta de suas atividades como explorador, e solicitando-lhe

permissão para continuar a empresa. Penetrou, em seguida, após ordens expressas do

rei, na região do Rio Pardo e Rio de Contas. Em 1752 chegou à região de Vitória da

Conquista, conhecida por Sertão de Ressaca. Por essa época, já o acompanhava o

seu genro, João Gonçalves da Costa, nomeado em 1744 para o posto de Capitão do

Terço de Henrique Dias, pelo vice-rei do Brasil, André de Melo e Castro, conde de

Galvéias (TANAJURA, 1992, p.45-46).

Sobre João Gonçalves da Costa, consta que era português nascido na cidade de

Chaves, provavelmente nos anos vinte do século XVIII. Era preto forro, tendo ocupado o

posto de capitão-mor do terço de Henrique Dias, com patente concedida em 5 de março de

1744 (SOUZA, 1998, p.53).

Ele havia participado da expedição que partindo de Minas Novas, no norte de Minas

Gerais, penetrou na Bahia, adquirindo grande experiência como explorador das matas baianas.

No final do século XVIII, foi incumbido pelo desembargador e ouvidor de Ilhéus, Francisco

Nunes da Costa, de estabelecer uma nova povoação indígena, visando aldear os índios

Pataxós que fustigavam as vilas do sul da capitania, impediam a conclusão de estradas e, aos

lavradores, de cultivarem as suas roças, como atesta este trecho de uma carta do ouvidor: “até

o rio de Una abaixo do rio das Contas que sendo principiado a cultivar-se no tempo antigo, se

retiraram todos os portugueses, por conta das invasões, assaltos e destroços que lhe fazia o

dito gentio pataxó” 11.

Dois meses após, o capitão-mor destina ao desembargador um relatório dando-lhe

conta das suas atividades. Relata como chegou a descobrir cinco aldeias dos Mongoiós que,

na sua avaliação, somavam juntas mais de duas mil almas e que, apesar dos poucos soldados,

na sua expedição, não se intimidou diante das ameaças do chefe da aldeia conhecido por

“Capivara”, respondendo através do interprete, que não precisava de muita gente para brigar

com eles 12.

Temeroso de ser traído, João Gonçalves da Costa seguiu viagem prometendo voltar à

aldeia assim que conseguisse facões e outros objetos para lhes presentear, levando consigo

duas índias e um menino, os quais lhe serviram de guia. E adiante, o sagaz capitão explica:

Devo dizer a V.M. que em algumas destas aldeias se acham metidos alguns escravos

que fugiram lá debaixo e um mulato ladino que me dizem, é capitão de uma das

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aldeias [...] e esta foi uma das razões porque me não resolvi a fazer a paz, receoso de

que os ditos escravos me fizesse alguma traição, vendo-me com tão pouca gente 13.

A frase “escravos que fugiram lá debaixo”, provavelmente se refere a negros fugidos

do litoral da Capitania de Ilhéus e se abrigando em quilombos como o mocambo que existiu

Na própria barra do Rio de Contas a noticia de um mocambo em 1736, quaro anos

após a fundação da vila. De 1806, mesmo ano do Oitizeiro, há informações de que

nos caminhos da comarca de Ilhéus não eram seguros para viajantes solitários

devido à negros fugidos salteadores (REIS, 1996, p.340).

Após a conclusão dessa tarefa, João Gonçalves da Costa voltou para as suas atividades

de grande proprietário de terras e grande criador de gados nas imediações do Arraial da

Conquista. Esse sertanista constituiu-se personalidade importante no povoamento e

colonização do Sertão da Ressaca. Implantou juntamente com a sua família as grandes

fazendas da região e, principalmente, pelos caminhos abertos sob sua orientação que

possibilitaram a interligação do Arraial da Conquista à região litorânea de Ilhéus, à Chapada

Diamantina, à região do São Francisco, às áreas de mineração do Norte de Minas Gerais e ao

Recôncavo da Bahia. É o que registra uma correspondência enviada pelo Intendente Geral do

Ouro, João Ferreira Bittencourt e Sá, ao governo da Bahia, datada de 178214.

A Coroa Portuguesa, juntamente com as Ordens Religiosas estabeleceram no Brasil

vários aldeamentos, que eram por eles administrados (PARAISO, 1984, p.129). No Sertão da

Ressaca, a “concessão da sesmaria à família de João Gonçalves da Costa em 1803 e a

construção da estrada entre Minas Gerais e a Vila de Belmonte pelo rio Jequitinhonha”,

segundo Maria Hilda Paraíso, teve o efeito de uma “declaração de guerra aos Botocudos”,

iniciando-se a adoção de uma política sistemática de ocupação da terra, aldeamento e

catequese dos índios que habitavam a região sob o comando de Antônio Dias de Miranda, um

dos filhos de João Gonçalves da Costa, nos quais, geralmente, aldeavam negos e índios e

eram administrados, por padres (PARAISO, p. 263).

Esse relato sobre a formação histórica da região evidencia alguns elementos de cultura

que supomos tenham influenciado na definição do quadro das religiões afro-brasileiras

praticadas hoje por habitantes da Cidade. Foi através do processo de trocas simbólicas das

diversas tradições religiosas dos grupos: católicos, indígenas, africanos e seus descendentes

que, supomos foram inventadas tradições afro-brasileiras que, até o início dos anos 1970,

eram denominadas batuque, catiço, gira de caboclo e candomblé, a partir de quando passaram

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a ser chamadas umbanda, podendo ser classificadas como “candomblé de caboclos”, e que

guardam algumas diferenças de uma casa para outra, identificadas principalmente nos rituais

de festa pública.

Dos dias de grandes festas anuais, um é dedicado ao caboclo boiadeiro, em alguns

casos um sábado do mês de aniversário do pai-de-santo ou da mãe-de-santo, em outros, um

sábado do mês de agosto, mês da romaria a Bom Jesus da Lapa. Em Vitória da Conquista esse

arquétipo recebe um destaque especial, sendo incorporado por todos os pais e mães-de-santo

dos diversos terreiros, praticamente com a mesma importância dos orixás que compõem os

seus guias. Quando o boiadeiro incorpora, parece exercer a função de administrador de uma

fazenda, um líder patriarcal. Sério, circunspecto. Bebe, fuma, aconselha, orienta, estabelece

castigo, determina o que deve ser feito com ares de quem entende do riscado.

Os pais e mães-de-santo têm obrigação de freqüentar a romaria de Bom Jesus da Lapa,

cujo dia de festa é seis de agosto. Bom Jesus da Lapa é o santo católico com o qual o

boiadeiro é sincretizado. Conta uma lenda, que há muitos anos caiu, no buraco da gruta da

Lapa do Bom Jesus, um boi, um vaqueiro e seu cavalo e que, quando os boiadeiros da região

do São Francisco conduziam suas boiadas e se aproximavam da gruta, os bois empacavam e

ficavam por algum tempo girando em círculo e berrando, tendo os vaqueiros que aguardar a

sua disposição para seguir em frente, contam ainda que, nas paredes da gruta encontram-se

desenhados, pela própria natureza, os trajes de boiadeiro: Jaleco, chapéu, laço, jibão e

perneiras, feitos de couro.

Destaca-se que a cidade de Bom Jesus da Lapa, localizada à margem direita do Rio

São Francisco, se encontra cavada em rocha calcária, a gruta do “Bom Jesus”, transformada

em santuário da Igreja Católica, lugar de romaria das mais expressivas do Nordeste brasileiro

para a qual se deslocam pessoas de muitas regiões do Brasil. foi desde antes da Velha

Republica ponto de encontro de políticos e dos Coronéis do Sertão baiano e, antes disso, uma

grande fazenda de criação de gado.

Outro procurador da Casa da Ponte, Plácido de Souza Fagundes, proprietário de

Barra dos Araçás, Curralinho do Olho d’Água, Boa Vista e Lagoa Clara em

Macaúbas, adquiriu a fazenda Itaberaba, onde hoje se encontra a cidade de Bom

Jesus da Lapa, na qual criava, em 1862, 680 reses e 63 eqüinos (NEVES, no prelo).

Assim como João Guimarães Rosa literalizou o Alto São Francisco, o Médio recebeu

tratamento literário de Osório Alves de Castro, natural de Santa Maria da Vitória, cidade

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localizada à margem esquerda do rio Corrente, afluente do São Francisco, autor de Porto

Calendário, Maria Fecha a Porta Praú Boi Não Te Pegar e Baiano Tietê que, com talento e

criatividade, usando a linguagem e o humor habitual aos moradores das barrancas do Velho

Chico compôs personagens tirados da vivência da população que habita o lugar: barqueiros,

carpinteiros, lenhadores, remadores, jagunços, coronéis, padres, vaqueiros, feiticeiras,

prostitutas e outros, entranhados nos seus modos de vida, sob a proteção do “Nosso Senhor

Bom Jesus da Lapa”.

No romance Porto Calendário romanceia a cultura dos habitantes do vale do Velho

Chico, os negros escravos, e quilombos, as fazendas os coronéis e seu jagunços e vaqueiros,

vida encantada descreve um diálogo entre São Francisco fazendo se passar por um beato e

Bom Jesus da Lapa disfarçado em vaqueiro, embarcados na canoa de um coronel:

A macha da barca acelerou-se e quando encostaram em uma coroa para o jantar, o

vaqueiro aproximou-se do beato e perguntou-lhe: - Por que, irmão, tu que és tão

compassivo para com as aves, os peixes e até as feras, não tem piedade dos nossos

irmãos,os remeiros, homens como nós, chicoteados e humilhados para satisfazer o

capricho de um poderoso? – Quem és tu que falas com tanta arrogância? Diz? O

vaqueiro nada lhe disse, e foi para a chumaceira pegar o remo e remar. [...]. – Por

que és dócil para os senhores e se mostra interessado com animais, irmão Francisco,

e se esquece dos fracos e desgraçados?[...]. – Por que me olhas assim, vaqueiro?

Quem és tu? Deixas teu posto para me enfrentar com tua ousadia? O vaqueiro tirou

pausadamente as mãos do bolso do gibão e mostrou-as. Estavam sangrando, abertas

pelos cravos da cruz. Era São Bom Jesus da Lapa. A tempestade tomou toda a noite

e a embarcação jogou-se sem parar sobre a tormenta até que o dia chegou e tudo

estava salvo. Estavam diante do Santuário. Era o milagre! Procuraram os dois e

notaram que tinham desaparecido, mas toda a romaria ficou sabendo do caso: eram

São Francisco e São Bom Jesus da Lapa andando disfarçados pelo mundo

(CASTRO, p.111 – 112).

Vimos que Bom Jesus da Lapa ates de passar à condição de Cidade e a de importante

Santuário, onde ocorre grande romaria, foi uma fazenda de criação de gado e, enquanto santo

da Igreja Católica povoando o imaginário dos habitantes da região andou pelo mundo

disfarçado de vaqueiro. Assim supomos que o significado atribuído ao arquétipo do caboclo

boiadeiro, nos terreiros de Umbanda de tradição local, em Vitória da Conquista, tem a ver

com toda essa trajetória cultural descrita e, decorre da importância que a atividade da

agropecuária, especialmente a criação do boi, exerceu e exerce na vida da sua população.

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O terreiro de Umbanda que escolhemos, para estudo mais aprofundado, parece ilustrar

bem o que afirmamos. Denomina-se “Centro de Umbanda Ogum Megê”, fundado em julho de

1979 por José Carlos Mendes Correia, “Pai Cely”, nascido em Vitória da Conquista a seis de

agosto de 1951, solteiro, com curso ginasial completo.

Figura 715 Figura 816

A iniciação de “Pai Cely” deu-se entre os treze e quatorze anos. Com vinte anos,

recebeu o decá e aos vinte e um começou a trabalhar. Abriu o próprio centro aos vinte e oito

anos de idade o qual funciona no mesmo endereço há mais de vinte anos. Seu ritual de

iniciação constou de ebó, limpeza-de-corpo, jogo de búzios, recolhimento ao roncó por sete

dias, bori, oferenda anual aos orixás por um período de sete anos e desenvolvimento na gira

do candomblé.

As entidades donas da sua cabeça são: Ogum Megê e Oxum, que vem de frente e

Iansã que vem no juntó.

O calendário litúrgico compõe-se de um calendário semanal e de um calendário anual,

nos quais são realizadas as obrigações para as entidades, encerrando-se com uma festa

pública.

No calendário semanal, cada dia é consagrado a uma ou mais entidades. Destacamos

aqui apenas o que se refere ao caboclo boiadeiro:

Quinta-feira - Oxossi, sincretizado com São Jorge; os caboclos e o Boiadeiro.

O calendário anual apresenta várias datas de festa. Das festas mais importantes

destacamos a de 06 de agosto, já mencionada, dedicada ao Caboclo Boiadeiro.

Quando um destes dias acontece no meio da semana, a festa realiza-se no sábado.

Faremos a seguir, descrição de uma “festa a Iansã ou Santa Bárbara”.

A abertura: Com os filhos-de-santo presentes ao Centro, o pai-de-santo agradeceu a

presença de Mãe Madalena, líder do terreiro “Velha Africana”, visitante ilustre que veio

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prestigiar a festa e convidou a todos para orar e evocar a proteção de Deus recitaram: 1º a

prece de Cáritas; 2º o Pai-Nosso; 3º a Ave-Maria; 4º a Oração de Santa Bárbara.

Concluídas as orações, a Mãe Pequena chocalhou o ojá e os demais bateram palmas.

Com um vaso com brasa e incenso, lembrando um Turíbio. Um Ogan da Casa defumou o

altar, os atabaques, a porta, em seguida todo o salão e os filhos-de-santo, assim como os

visitantes. Durante a defumação e ao som ritmado dos atabaques, entoavam a zuela:

Dá licença meu pai Oxossi,

dá licença pra defumar,

eu defumo, eu defumo

essa aldeia real.

A palavra “Zuela” utilizada pelos terreiros de tradição local, significa música-de-

santo. Em seguida, cantaram para Catendê:

Ô Catendê, ô Catendê, ô Catendê, ô traz de Angola.

Ô Catendê, ô Catendê, ô Catendê, ô traz de Angola.

Cântico que revela a influência banto neste ritual, quando expressa claramente as

palavras “Angola” e “Catendê”. Continuando cantam pra Oxalá:

Acende a luz dessa casa Jesus está com nós,

acende a luz meu Deus pra clariá,

Terreiro santo meu Deus pai Oxalá,

Senhor Bom Jesus da Lapa,

Senhor Bom Jesus de Deus,

acende a luz dessa casa,

Ilumine a todos nós.

Continuando, cantam para Iansã e, revelam a sua ligação com Xangô, divindades de

povos iorubanos:

Iansã tem um leque de pena,

pra abanar dia de calor,

Iansã mora na pedreira,

Eu quero ver meu Pai Xangô.

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Após mais quatro zuelas para Santa Bárbara, encerra-se a fase de abertura e inicia a

evocação das forças da mata, cantando para o caboclo Sultão das Matas:

Ô bate o tambor bem alto,

que das matas se escuta,

sou eu Sultão caboco

das matas brutas.

Em seguida, cantam para o caboclo Juremeira, saudando a entidade e a sua terra,

usando a palavra “saravá”17, através da qual se revela mais uma faceta umbandista, de

umbanda cruzada com angola deste ritual:

Vermelho é a cor do sangue do meu pai,

verde é a cor das matas,

saravá, saravá seu Juremeira,

oi sarava a terra onde ele mora.

Após quatro cânticos ressaltando as qualidades do caboclo, sua origem e função,

entoam outro de chamada, que é o prenúncio da chegada de seu Boiadeiro:

Aldeia grande, aldeia real,

aldeia grande, aldeia real,

aldeia grande xê truê, xê truá.

No decorrer das 9 (nove) repetições dessa zuela, o Boiadeiro se anuncia aboiando o

gado. Com a chegada de Boiadeiro seu Juremeira anuncia a sua retirada, parecendo desocupar

o lugar para aquele que impera no terreiro, retirando-se para a sua aldeia, o lugar de origem

dos caboclos:

Mamãe ta me chamando ô menino eu já vou,

eu já vou menino para minha aldeia.

Com a retirada de seu Juremeira, Boiadeiro anuncia sua presença:

Há muito tempo que eu não venho no ganzuá ê,

vem cá meus filhos eu vou,

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seu Boiadeiro na aldeia chegou.

Todos batem palmas, repicam os atabaques, ajoelham com o joelho direito no chão, as

mãos no peito e a cabeça levemente inclinada para baixo, posição de reizeiro em porta de

igreja e rezam: o Pai Nosso, a Ave Maria e a Santa Maria. Ao final, seu Boiadeiro fala forte

“assim seja”.

Figura 918

Neste momento, a mãe-pequena e os cambones diligenciam os trajes especiais de

Boiadeiro: dobram as pernas da calça branca do pai-de-santo até o meio da canela; tiram-lhe a

camisa; colocam o colar de contas verdes, que é a cor de Oxossi, vermelhas, cor de Iansã,

brancas cor de Oxalá e amarelas, cor de Oxum. Amarram um pano vermelho cruzado da

direita para a esquerda no sentido do pescoço para a cintura, outro verde na direção oposta, da

esquerda para direita, e um amarelo por cima dos demais, circundando o tronco sendo

amarrado às costas, colocam o chapéu de couro, acendem um cigarro e seu Boiadeiro está

pronto para as funções; Soam os atabaques e recomeçam as zuelas:

Seu Boiadeiro gosta de minas,

peguei meu gado botei nas campinas pra descansar,

peguei meu gado botei na campina pra Iemanjá.

Em seguida, estabelecem a relação de identidade entre o Boiadeiro e o Messias:

Seu Boiadeiro nasceu em Roma,

em Roma nasceu Messias,

o nome que deram a ele,

é porque viu que ele merecia.

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À medida que vão repetindo as zuelas, escuta-se o aboio de seu Boiadeiro, aboiando o

gado. E, no desenvolver das funções, estabelece-se a identidade entre o Boiadeiro e os índios,

como a seguir:

Chama Boiadeiro na pisada,

chama Boiadeiro na pisada ô cacique,

chama Boiadeiro na pisada, ô cacique,

chama Boiadeiro na pisada ô cacique.

A palavra “pisada”, que aparece nesse cântico, é comumente utilizada na região para

designar a marcha ou o esquipar dos cavalos, que é também, o ritmo da dança de seu

Boiadeiro levando-nos a supor que, com ele, pretendem expressar simbolicamente as relações

sócio-culturais que integram os três elementos: o boiadeiro que é o fazendeiro, dono da

boiada, o índio como vaqueiro e o cavalo como instrumento de trabalho.

Continuando, seu Boiadeiro declara sua identidade, função e origem:

Sou eu Boiadeiro eu vendo a boiada,

a boiada é mineira que vem da chapada.

Seu Boiadeiro segue incorporado, dando passes nos filhos-de-santo, bebendo cerveja,

aconselhando, chamando a atenção do filho que não tem procedido bem, castigando outro que

andou errado, enfim cumprindo as funções de administrador da boiada, enquanto os atabaques

continuam dando o tom. Mais uma zuela diz da origem brasileira dos caboclos e de suas

facetas nacionalistas:

Caboclo, selvagem, tu és a nação do Brasil,

tu és a nação brasileira caboclo,

das cores da nossa bandeira.

Tu és a nação do Brasil, tu és a nação brasileira,

tu és a nação do Brasil, ó caboclo,

das cores da nossa bandeira.

A Zuela seguinte firma a identidade brasileira de Boiadeiro:

Brasil, Brasil, Brasil, eu sou brasileiro,

Brasil, Brasil, Brasil, seu Boiadeiro, ele é brasileiro,

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brasileiro o que é que eu sou, eu sou brasileiro,

brasileiro imperador, eu sou brasileiro.

Cantam mais três vezes, ressaltando a identidade cabocla e a seguir uma que fala dos

cuidados que se deve ter com o ferrão do Boiadeiro:

É de taquari, oia meu gado, oia o meu ferrão auê,

oia meu gado, oia o meu ferrão auê.

Depois que Boiadeiro cumpre as suas funções, juntamente com as forças da mata, é a

vez das forças das águas manifestarem-se e as zuelas são dirigidas para Iansã, Iemanjá e

Oxum, respectivamente, entidades da água do mar e das águas dos rios. Encerra-se a festa,

com a presença de Seu Martim ou Martim Pescador, tipo boêmio de beira de cás de porto.

Nos vinte e um dias que antecedem à Sexta-feira da Paixão, todas as imagens, os

demais símbolos dos orixás e os atabaques são cobertos com panos brancos. Os filhos-de-

santo passam este período rezando e, no sábado de aleluia, as funções do Centro são

reiniciadas com uma festa dedicada aos orixás e demais entidades.

O povo-de-santo associa a cada encantado e orixá ferramentas, cores, animais, plantas,

bebidas e comidas, vejamos as associadas ao caboclo Boiadeiro.

A comida: carne de boi; a bebida: cerveja.

As “árvores sagradas” do Terreiro são: a aroeira branca e a madeira nova, esta última

identificada como “as folhas de Boiadeiro”, utilizadas para espalhar no piso do salão de

festas, para enfeitar o altar e nos rituais de benzeção. São plantas nativas da região e se

encontram nos matos e pastagens, lugares distantes do Centro.

As Cores de Boiadeiro são vermelho, verde, amarelo e branco. A ferramenta o laço de

couro. O Animal - o boi.

Exige-se dos filhos-de-santo o cumprimento das suas obrigações em relação ao

Centro, determinando-se que, nas segundas e sextas-feiras, é proibido comer carne vermelha,

ingerir bebidas alcoólicas e praticar sexo. Quando essas regras são quebradas, os filhos sofrem

as conseqüências. Não se proíbe que os filhos-de-santo assistam uma missa ou um culto de

qualquer religião.

A observação de vários rituais, principalmente de festas públicas, da estrutura,

organização e funcionamento do “Centro de Umbanda Ogum Mêge” comparada com estudos

feitos sobre Umbanda em outros centros, realizados por pesquisadores como Lísias Negrão

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(1996), Patrícia Birman (1985), Maria Helena Vilas Boas Concone (2001), e Ronaldo Senna

(1998), dentre outros, leva-nos a conclusão de que existem pontos em comum e muitos pontos

distintos entre as casas por eles estudadas e a casa de Pai Cely. Vejamos, por exemplo, o que

dizem sobre o Caboclo Boiadeiro.

Patrícia Birman, que estudou a umbanda carioca, apresenta um esquema geral e

hierarquizado do Panteão dos umbandistas, definido por divindades africanas às quais se

associam espíritos de diversas linhas de caboclos, pretos velhos, crianças etc.(BIRMAN,

1985, p. 32). Nota-se que na relação apresentada pela autora, não aparece citada a presença do

Caboclo Boiadeiro como componente do panteão.

Lísias Negrão apresenta um panteão, no qual aparecem os seguintes Guias: Caboclos,

Pretos Velhos, Baianos, Exus, Pombas Giras, Crianças, Boiadeiros, Oguns, Zés Pilintras,

Ciganos e Médicos (NEGRÃO. 1996, p. 237-239). Aqui o Caboclo Boiadeiro é apresentando

como qualquer das outras entidades, sem destaque especial.

Maria Helena Vilas Boas Concone, ao falar de qualidades e gestuais de baianos e

boiadeiros, assim se expressou:

Pensando primeiro nas qualidades e depois nos gestos, podemos montar as

oposições seguintes: Quanto às Qualidades: [...] boiadeiros Sisudez; Trabalho;

Braveza; Seriedade, Homens. Quanto ao gestual [...] boiadeiros. Postura ereta, tensa,

não falam, emite chamados de boiadeiros: É boi! Movimentos mais rígidos,

semelhantes aos dos caboclos; fazem movimentos com um laço imaginário. Usa um

chapéu de couro (independentemente do sexo do cavalo, a entidade é sempre

masculina). Fisionomia tensa, carregada, “boca para baixo” como caboclo. Não

fuma. Só dançam os pontos cantados, fazendo movimentos com o laço imaginário e

emitindo chamados. Não usam bebidas (i) (CONCONE. 2001, p. 289-290).

Francelino de Shapanan, assim se referiu aos “Boiadeiros: Para a mina, os boiadeiros

formam uma linhagem de caboclos, com maior presença nas casas de candomblé angola, onde

se identificam como brasileiros e dizem ser originários da Hungria, talvez uma Hungria

perdida na memória dos tempos. Assemelham-se a alguns encantados de mina da família de

Codó, também conhecida como família de Seu Légua Boji Buá ou família de Mata do Codó, e

misturam-se com os vaqueiros. Estes três grupos – boiadeiros, vaqueiros e codoenses –

estariam muito próximos entre si. A maioria dos terreiros de umbanda moderna já tem

boiadeiros, mas transformados. Têm poucas cantigas próprias e já usam botas em vez de ficar

descalços, como na angola. Aliás, a família do Codó não tolera ficar calçada. Boiadeiro é o

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caboclo chefe dos vaqueiros, é o fazendeiro. Usa roupa de couro, fuma cigarro de palha ou

charuto. É um aliado de índios e caboclos.

A umbanda também confunde os mestres da jurema (entendidas do catimbó),

chamando-os de boiadeiros e até mesmo de exus. E aí surge a figura conhecidíssima e

polêmica de Seu Zé Pilintra, que tem uma biografia real, verídica, é um grande mestre de

jurema pernambucana e aqui em São Paulo transformou-se algumas vezes em baiano e outras

em exu.

Vemos então a grande mistura do que seria o baiano e o caboclo, o caboclo e o

marinheiro, o caboclo e o cigano, o caboclo e o exu, o caboclo e o boiadeiro. ( SHAPANAN,

2001, p.324-325).

Ronaldo Senna ao estudar o Jarê na cidade de Lençóis descreve uma festa pública

dessa tradição e no que diz respeito ao Caboclo Boiadeiro diz: “Sai a linhagem dos Velhos e

entra a de Boiadeiro que aparece quase com o clarear do dia”. Boiadeiro ou Vaqueiro, como é

chamado, é, na realidade, o “espírito encantado” de todo guia de boiada que ao morrer se

transforma em guia espiritual dos mortais. Por isso, existem vários boiadeiros. Boiadeiro

manifesta-se ao ritmo dos cânticos seguintes:

Primeiro Canto (Boiadeiro)

Meu vaqueirinho do norte

Eu vim boiar

Eu vim boiar meu gado

Eu vim boiar

Segundo Canto

O dia já amanheceu

Está na hora

Está na hora do gado chegar

Está na hora

Iansã mais uma vez mostra a sua força e importância ao marcar presença em qualquer

linhagem, como esta do Boiadeiro, no cântico que veremos em seguida, onde este encantado

transmuda-se em guerreiro por amor, respeito e defesa de Oiá.

Terceiro Canto

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Há de selar meu cavalo

Oiá de Deus e minha lança

Quarto Canto

Vamos arrudiar vaqueiro

O vosso santo cruzeiro

Vamos arrudiar vaqueiro

O vosso santo cruzeiro

Quinto Canto

Meu boiadeiro, meu catendeiro

Não deixe o gado passar

Sou filho de Mamãe da Lua

Sou neto de Oxalá

Sexto Canto

Vocês me chamaram boiadeiro

Não sou boiadeiro não

Eu sou tocador de gado

Boiadeiro é meu patrão

Fechando a ordem de linhagem, surgem os cânticos-despedidas dos caboclos

Boiadeiros. São os últimos que se manifestam no ritual de jarê (como é comum, aliás, entre os

candomblés de caboclo que cultuam este encantado), [...] ”(SENNA, 1998, p.154-155).

Ao observarmos o quanto foi apresentado pelos pesquisadores citados, percebe-se a

importância de estudos das tradições locais, cada vez mais acurados para entender a teia de

relações e as especificidades que marcam a cultura brasileira.

Francelino de Shapanan, que trata de caboclos e encantados passando por diversas

tradições religiosas, principalmente da Casa da Mina, da família do Codó, da jurema, do

candomblé de caboclo e de angola, fala das características do boiadeiro que, a nosso ver, mais

se aproximam das características do boiadeiro que se manifesta nos terreiros de tradição local

em Vitória da Conquista. Talvez isso se deva ao fato, dentre outros, de o boi que saiu do

recôncavo da Bahia e passou pelos demais estados do Nordeste ter alcançado o Maranhão,

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passado pelo norte de Minas e chegado ao Planalto da Conquista, trazendo no seu entorno os

elementos dessas tradições que foram re-significados.

Ronaldo Senna, ao estudar o Jarê, na Cidade de Lençóis nas Lavras Diamantinas, cuja

economia predominante foi a garimpagem de diamantes e carbonatos e, a agropecuária

insignificante, mas que se vincula à lugares vizinhos que plantam e criam gado, elementos

importantes na dieta dos garimpeiros, informa que o caboclo boiadeiro manifesta-se nos

terreiros de Jarê, não como dono da boiada, mas como vaqueiro, tipo social que algumas

vezes, temporariamente, também garimpa, principalmente os que moram mais próximo das

terás diamantíferas, na caatinga, onde plantam e criam gado que durante os períodos de secas

anuais, mês de julho a outubro, são levados a pastar nas terras úmidas e frescas das Lavas

Diamantinas.

Já em Vitória da Conquista, no Sertão da Ressaca, onde a pecuária foi desde a sua

origem a atividade econômica mais importante, onde as diversas etnias de indígenas,

africanos e europeus viveram nessas tradições, percebe-se que o arquétipo do caboclo

boiadeiro se apresenta de forma ampla, envolvendo as várias dimensões dessa atividade, da

cultura do boi, com toda força, com prestigio, parecendo ter sido ali inventado, se tal não

aconteceu, percebe-se que se apresenta com fortes marcas das tradições religiosas afro-

indígenas praticadas no local.

2 Uma arroba no Alto Sertão da Bahia correspondia a 16 quilogramas. 3 APEB, 03.1216.1685.07, inventário de Crispim da Rocha Pinto, São Bento, 22 set. 1792. 4 WIED NEUWIED. A caça da Onça (gravado por C. Rahl), 1940, p.21 5 WIED NEUWIED. Boi perseguido pelos vaqueiros (gravado por F. Meyer, Berlin), 1940, p.401. 6 WIED NEUWIED. Família de Botocudos em viagem (gravado por Seyffer e Kruger, Stuttgardt), 1940, p. 294. 7. WIED NEUWIED. Patachós do Rio Pardo (gravado por Rist Munich), 1940, p. 208. 8WIED NEUWIED. Festa dansante dos Camacãns (gravado por J. Lips, Zurich), 1940, p. 368. 9 WIED NEUWIED. Grupo de Camacãns na mata (panorama de Seyffer de Stuttgardt e figuras de Bitthauser de Wurzburg), 1940, p. 352. 10 Notas de aula de Antropologia ministrada pela Profa. Dra. Josildete Gomes Consorte, no Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. 11 Cópia da Carta do Desembargador e Ouvidor de Ilhéus Francisco Nunes da Costa para o governo interino da Bahia. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Brasil - Avulsos. (Cairu, 23 de fevereiro de 1782), p.

163. 12 Cópia da Carta do Desembargador e Ouvidor de Ilhéus aos Governadores. Arquivo Nacional da Torre do

Tombo. Brasil - Avulsos. (seis de agosto de 1783), p. 160/161. 13 Cópia da Carta do Desembargador e Ouvidor de Ilhéus aos Governadores. Arquivo Nacional da Torre do

Tombo. Brasil - Avulsos. (6 de agosto de 1783), p. 161. 14 Correspondência recebida pelo Governo da Bahia, Intendência do Ouro (1782). ASPEB. Seção de Arquivo

Colonial e Provincial. Março nº. 201/234. 15Pai Cely, jogo de búzios (fotografado por Itamar pereira de Aguiar, 1996). 16 Altar do terreiro “Ogum Megê” Pai Cely (fotografado por Itamar Pereira de Aguiar, 1996). 17 SARAVÁ (kwa) (LS) – v. Ver savalu. SAVALU (kwa) (LS) – v. prestar homenagem, saudar as divindades. Var. savará, savalu. CF. axé, sarava, tibuco. Fon savalu. In CASTRO, Yeda Pessoa de. FLARES AFRICANOS NA BAHIA: Um Vocábulo Afro-Brasileiro. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2001. p. 336. 18 Caboclo Boiadeiro terreiro “Ogum Megê” Pai Cely (fotografado por Itamar Pereira de Aguiar, 1996).

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