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    O BRASIL NA A MIRA DE HITLER

    Roberto Sander

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    Contracapa

    "Os gritos de pânico, inicialmente abafados, logo passaram a ecoar por todos oslados. Não havia como pensar em outro motivo para aquela tragédia. As notícias de

    torpedeamentos de navios brasileiros por submarinos alemães há muito se tornaram rotinanos grandes jornais. Desde fevereiro, nada menos que 13 haviam sido afundados. E, denovo, o pior acontecera. O Baependi começava a adernar (...). Não restava outraalternativa senão pular do navio prestes a naufragar." Esta é uma história surpreendente edramática, que pouca gente conhece. Durante a Segunda Guerra Mundial, 34embarcações brasileiras foram torpedeadas, causando a morte de 1.081 pessoas, a maioriacivis inocentes. Nem nos campos de batalha morreram tantos brasileiros.

    O Brasil na Mira de Hitler resgata esse capítulo da nossa história recente.

    com uma pesquisa rigorosa e uma ágil narrativa jornalística, o livro é um relato

    essencial sobre os afundamentos de navios na costa do Brasil por submarinos nazistas, aação dos espiões de Hitler em solo brasileiro e a agitação nos bastidores da política dogoverno Vargas durante a guerra.

    Orelha:

    Os passageiros do navio Baependi, do Lloyd Brasileiro, dançam no salão ao somde uma orquestra, quando uma explosão sacode brutalmente a embarcação. Estamos em15 de agosto de 1942. Das 306 pessoas a bordo, apenas 36 sobreviveram. Os náufragos -assim como cadáveres e destroços - chegaram ao litoral nordestino, transformando a

     paisagem bucólica num cenário de horror.O afundamento do Baependi foi um dos episódios mais trágicos da campanha de

    torpedeamentos de navios brasileiros por submarinos nazistas durante a Segunda GuerraMundial. Foi também o ponto culminante de uma série de eventos que levariam o governoVargas a, finalmente, aderir às forças aliadas e declarar guerra à Alemanha de Hitler.

    Em O Brasil na Mira de Hitler, o jornalista Roberto Sander faz um relatoenvolvente das intensas negociações diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos;reproduz depoimentos dramáticos de náufragos; recria o desmantelamento da rede deespiões nazistas no Brasil; e expõe as intrigas, desavenças e hesitações do governo

    Vargas, num teatro de guerra que colocava o país em cena.Resultado de uma pesquisa minuciosa em arquivos públicos, fundações e

     bibliotecas, o livro dá vida ao momento histórico em que o Brasil ficou definitivamente namira de Adolf Hitler.

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      A história do afundamento de navios brasileiros pelos nazistas

    ISBN 978-85-_7302-868-3

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    Roberto Sander O BRASIL NA A MIRA DE HITLER

    A história do afundamento de navios brasileiros pelos nazistas

    Consultoria Técnica

    Vágner Camilo Alves, Professor do Departamento de Ciência Política eCoordenador da Área de Defesa do Núcleo' de Estudos Estratégicos da UniversidadeFederal Fluminense (UFF)

    Francisco Pereira Cascardo, Capitão-de-Mar-e-Guerra e Doutor em Ciências Navais da Marinha

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    OBJETIVA ***

    "No Brasil se acham reunidas todas as condições para uma revolução que permitiria transformar um Estado governado e habitado por mestiços numa possessão

    germânica." AdolfHitler

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    SumárioTerror na praia................................................................................................................................................................ 8 

    O teatro da diplomacia ................................................................................................................................................. 10 

    O rompimento .............................................................................................................................................................. 18 

    Carnaval sombrio ......................................................................................................................................................... 26 

    O adeus do Olinda e o mistério do Cabedelo ............................................................................................................... 33 

    Tempos violentos ......................................................................................................................................................... 38 

    O heroísmo do comandante Pequeno ........................................................................................................................... 42 

    Verão no Rio Negro ..................................................................................................................................................... 47 

    Os tentáculos do nazismo ............................................................................................................................................. 52 

    O espião apaixonado .................................................................................................................................................... 60 

    Caso Lati e a queda de Engels ...................................................................................................................................... 66 

    O desmonte da rede e a reação do Reich ...................................................................................................................... 73 

    Corsários atlânticos ...................................................................................................................................................... 78 

    A guerra anti-submarina ............................................................................................................................................... 82 

    Tiros de maio ............................................................................................................................................................... 88 

    O simbolismo do Comandante Lira ............................................................................................................................. 93 

    Fogo em terra e mar ..................................................................................................................................................... 98 

    Germanófilos perdem poder ....................................................................................................................................... 103 

    Pobre Lídice ............................................................................................................................................................... 109 

    O fim trágico do velho vapor ..................................................................................................................................... 115 

    A declaração de guerra ............................................................................................................................................... 130 

    Fuzilamento em alto-mar ........................................................................................................................................... 138 

    Tempo de estabelecer estratégias ............................................................................................................................... 144 

    Uma nova era desponta no horizonte ......................................................................................................................... 153 

    Bibliografia ................................................................................................................................................................ 162 

    Agradecimentos ......................................................................................................................................................... 165 

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    Terror na praiaPrimeiro chegaram malas, caixotes, fardos de algodão e lascas de madeira de algo

    que lembrava uma embarcação; mais tarde, cadáveres. A imagem de corpos de homens,mulheres e crianças boiando ou já estirados nas areias brancas da praia perto da vila deMosqueiro, alarmou os habitantes das redondezas.

    Levada pelos pescadores, a notícia não demorou a chegar ao cais do porto deAracaju. E mais gente era informada dos horrores que a correnteza trazia do alto-mar.

    O coronel Maynard Gomes, interventor sergipano, se apressou em saber se eraverdade o que se espalhava de boca em boca pela capital. Ordenou que patrulhas da polícia estadual se dirigissem ao local.

    Ao chegarem à orla, justamente nas proximidades de Mosqueiro, constataram quenão se tratava de boato. O quadro era terrificante. Mais de cinqüenta corpos, alguns comsinais de mordidas de peixes, se espalhavam entre destroços de navio. Incrédulos diantedaquele cenário dantesco, os homens da patrulha se perguntavam o que teria ocorrido, pois havia também corpos de soldados do Exército, inclusive oficiais.

    A praia, antes deserta, agora estava cheia de moradores dos povoados vizinhos. Nodecorrer do dia, as ondas trariam outras evidências da hecatombe, e uma noite de lágrimasvelaria os mortos. Apesar de viverem a rotina pacata do litoral nordestino nos anos 1940,todos ali, no fundo, suspeitavam do que poderia ter provocado tão grave acidente. Logo ador se transformaria em revolta.

    Os restos do Baependi, que primeiro aportaram na costa sergipana naquele 16 deagosto de 1942 (horas depois chegariam os do Araraquara e do Aníbal Benévoloj, eramresultado de meses de crescentes hostilidades, uma tragédia anunciada. Desde que sealiara aos Estados Unidos, rompen- 19 do relações diplomáticas com o Eixo - aliançaentre Alemanha, Itália e Japão na Segunda Guerra Mundial -, o Brasil, que tinha nochamado Saliente Nordestino um ponto estratégico vital no contexto do conflito, setornara, mesmo se declarando neutro, alvo dos torpedos de Hitler. Navios eram afundadosem série por submarinos alemães e italianos, enquanto uma complexa rede de espionagemnazista, há muito enraizada no país, tentava criar as condições para uma futura invasão.

     No louco sonho de domínio do mundo do Terceiro Reich, o Brasil ocupava umlugar de destaque. "Lá edificaremos uma nova Alemanha",1 chegou a sentenciar oFührer em um dos seus delírios.

    Para uma ala do governo Vargas, essa idéia, inicialmente, não era totalmenteabsurda. Foi preciso um acirrado embate político-ideológico para que prevalecesse asolidariedade continental, o apoio aos norte-americanos, que, recém-agredidos em PearlHarbor, exigiram uma postura clara dos seus vizinhos. Os bastidores da diplomacia passaram, então, a ser foco de todas as atenções, já que o Brasil, percebendo que não possuía meios de se defender sozinho, cobrou imediatamente colaboração do novo aliado.

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    O auxílio custou a chegar. Os brasileiros ficaram, assim, à mercê de ataques traiçoeirosdos submarinos do Eixo. A bordo de navios nacionais, mais de mil pessoas morreram.

    Para se dimensionar o impacto que esses acontecimentos tiveram é essencial ter emmente o significado da navegação para a população, nas décadas de 1930 e 1940.

     Na época, as rodovias padeciam de sérias limitações, as ferrovias não interligavamas diversas regiões do país e a incipiente aviação comercial era um luxo para poucos. Donorte ao sul do país, o povo andava de navio. Não havia outra forma de se realizar a tãoalmejada integração nacional do que era ainda considerado o "arquipélago brasileiro ".

    Depois de exatos 65 anos, persistem algumas contradições a respeito dostorpedeamentos. Muitos continuam a aventar a inconsistente hipótese de que foram os próprios norte-americanos, com o intuito de empurrar o Brasil 1 A afirmação consta nolivro Hitler ma dit (Hitler me disse), do ex-oficial prussiano Hermann Rauschning, umdos mais próximos colaboradores do ditador nazista.

    Em 1940, vários trechos da obra foram reproduzidos num relatório doDepartamento Federal de Segurança Pública. Acervo do Arquivo Público do Rio deJaneiro. Pasta 10. Caixa 0755. Setor Alemão.

     para o conflito, os responsáveis pelos afundamentos, como se já não estivéssemosrompidos com o Eixo e os Estados Unidos não precisassem das matériasprimas quenossos navios carregavam para o seu esforço de guerra. Outros dizem que osafundamentos aconteceram por causa da nossa declaração de guerra à Alemanha e à Itália,quando na realidade foram os ataques às embarcações que nos levaram a tomar taldecisão.

    Essas versões se dissolvem de vez quando trazemos a luz os mais variadosdocumentos, alguns em precário estado de conservação, e o vasto noticiário dos jornais daépoca, disponíveis apenas em arquivos públicos, fundações e bibliotecas. São as provasirrefutáveis e definitivas de que um dia o Brasil esteve sob a mira de Hitler.

    O ministro Oswaldo Aranha, principal estrela da Conferência dos Chanceleres,realizada no Rio de Janeiro, foi o maior articulador do rompimento das relaçõesdiplomáticas com o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) O subsecretário de Estadonorteamericano, Sumner Welles, trabalhou intensamente pelo entendimento político entreos governos Vargas e Roosevelt.

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    O teatro da diplomaciaAquele 15 de janeiro de 1942, uma quinta-feira ensolarada em que a temperatura

    ficara em torno dos 35 graus, tinha todos os ingredientes de um dia especial. Desde cedo,os arredores do majestoso Palácio Tiradentes, no centro da capital da República, jáapresentavam um movimento incomum, com agentes do FBI e da polícia carioca

    espalhados em pontos estratégicos inspecionando o local. No decorrer da tarde,caminhões e mais caminhões chegavam de fábricas e usinas trazendo centenas deoperários empunhando bandeiras nacionais e flâmulas com legendas que reafirmavam o pan-americanismo. Como todos os eventos patrocinados pela ditadura do Estado Novo, ain Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das RepúblicasAmericanas (a Conferência dos Chanceleres) precisava da presença das massas, dohomem do povo. E povo não faltava. com o comércio fechado e o trânsito interrompidoduas horas antes da abertura solene da conferência, marcada para as 17h30, a avenida RioBranco, da Cinelândia até as ruas São José, Sete de Setembro e Assembléia, era um marde gente.

    A efervescência daquele momento se completava com a presença de inúmeros jornalistas, das mais diversas procedências, circulando inquietos pelas dependências eimediações do Tiradentes. Havia um leve frisson no ar, e um intenso burburinho brotavaem cada esquina da cidade. O Rio de Janeiro se mobilizara como em poucas ocasiões parahomenagear as delegações dos 21 países continentais presentes. O interesse era tanto queaté alto-falantes foram instalados na entrada do palácio para que o público pudesse ouviros discursos. O ambiente festivo, contudo, não impediu que aflorassem boatos semeados pela Polícia Política. Falava-se a respeito de uma possível tentativa, por parte de "ele-mentos esquerdistas", de provocar agitações - como o quebra-quebra de estabelecimentos

    comerciais germânicos - para criar um clima que levasse o Brasil a entrar na guerra aolado dos Estados Unidos. Rumores insinuavam que "com a saída de forças do Brasil parao exterior, teriam os supostos agitadores maiores probabilidades de êxito nodesencadeamento da revolução comunista".1 Alheio a essas suspeitas, Oswaldo Aranhafoi o primeiro a chegar ao Palácio Tiradentes. Ministro das Relações Exteriores, homemde confiança do presidente Getúlio Vargas, ele vivia o ápice da sua carreira política.Desde os tempos da Revolução de 30, embora muitas vezes discordasse de Vargas,Aranha sempre se mostrara um fiel escudeiro.2 Dono de oratória sedutora, advogado brilhante, que estudara direito internacional na Universidade de Sorbonne, em Paris, foi omais importante articulador da conspiração que levara Vargas ao poder. No dia em que

    eclodiu o movimento golpista, chegou a liderar os ataques aos quartéis que sediavam, emPorto Alegre, o comando do Exército e da Região Militar. Era um homem de sólidaformação intelectual e um habilidoso negociador que não teve dúvida, porém, emempunhar um revólver e comandar as invasões que tiveram como saldo a morte de umcoronel. Foi também Aranha quem conduziu as conversações para que a junta militarentregasse o governo provisório a Getúlio Vargas.

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      1 Documento da Polícia Política do Distrito Federal de 5/1/1942. Rolo 19,fotograma 0920. CPDOC/FGV.

    2 Segundo Alzira Vargas, a filha mais próxima de Getúlio, em seu livro GetúlioVargas, meu Pai, os dois amigos brigaram e fizeram as pazes diversas vezes, "na verdade

    se completavam nos defeitos e qualidades". Na ocasião do golpe do Estado Novo, porexemplo, Aranha chegou a encaminhar por telegrama a Vargas o seu "indeclinável" pedido de exoneração das funções de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Mas pediu que fosse dispensado somente quando chegasse ao Rio, para diminuir o impacto dasua decisão nos Estados Unidos, onde, em Cleveland, acabara de fazer uma palestracondenando os Estados totalitários. O que o incomodava não era tanto o golpe, que julgava necessário, mas sim a constituição, que, segundo ele, "era redigida por umanormal (Francisco Campos, ministro da Justiça), sem princípios, sem normas".

    Era a "revogação do Brasil", pois estabelecia "um regime incompatível com astradições do país", diria ainda Aranha. No entanto, depois de muito refletir, percebendo

    que não teria tanta influência fora do governo, acabou aceitando o convite de Vargas paraser o ministro das Relações Exteriores. Como titular do Itamaraty, teria autoridade paramanter o Brasil distante das garras do Eixo e atenuar a influência de Francisco Campossobre o presidente.

    24 Jamais lhe faltara imaginação e muito menos capacidade de conspirar. No processo revolucionário, durante o levante no município de Princesa, no interior daParaíba, Aranha recorrera a um engenhoso artifício para que a ordem fosse restabelecida.Como o governo federal proibira o embarque de munição para um estado que fazia parteda aliança contrária aos seus interesses, ele teve a idéia de enviá-la em latas de compotas

    de ameixas secas e de pêssegos em calda. O plano contara "com a patriótica colaboraçãodos proprietários da fábrica Leal, Santos & Cia", que comercializava os produtos desde acapital gaúcha. com essa munição, recebida de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, JoãoPessoa - presidente da Paraíba e vice de Getúlio Vargas - impediu que o levante sealastrasse por todo o sertão.

    com esse mesmo espírito arguto, Oswaldo Aranha trabalhava incansavelmente paraque o Brasil estreitasse suas relações com os Estados Unidos. Seu empenho era tão grandeque a Gestapo chegou a planejar o seu assassinato às vésperas da Conferência dosChanceleres. com esse objetivo, enviou clandestinamente ao Brasil um agente chamadoFranz Walter Jordan. Considerado um homem bastante perigoso, Jordan chegou à costa

     brasileira num submarino, sendo posteriormente embarcado no navio mercante Leck, de bandeira alemã, que o levou até o porto do Rio de Janeiro. O interesse na eliminação dochanceler brasileiro era tal que Heinrich Himmler, o chefe da polícia secreta do Reich,orientou, pessoalmente, o agente sobre o plano, entregando-lhe em mãos o dinheiro daviagem. Esperava com isso criar um clima de terror de grandes proporções, que evitasse arealização da conferência que certamente iria contrariar os interesses da Alemanha naguerra. Em 10 de janeiro, Getúlio Vargas já reunira seus ministros e comunicara que o

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    Brasil iria alinhar-se aos Estados Unidos; quem não concordasse que pedisse demissão. A perfídia contra Aranha só foi abortada devido às diligências realizadas pela polícia brasileira, em conjunto com o FBI e o Serviço Secreto Inglês, nos dias que antecederam aconferência. Na operação, 36 agentes do Eixo foram identificados e presos, entre elesFranz Walter Jordan.3 Vim ao Brasil mandado pela Gestapo para assassinar o ministro

    Oswaldo Aranha." A confissão de Franz Walter Jordan, durante seu julgamento, espantouos ministros do Tribunal de Segurança Nacional. Jordan foi condenado a nove anos de prisão, pena cumprida no presídio da Ilha Grande, no Estado do Rio de Janeiro.

    25 Era a comprovação de que a fama de democrata de Aranha romperafronteiras. No ministério, era o principal contraponto aos generais Góes Monteiro, chefedo Estado-Maior do Exército, e Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra,4 que nãodisfarçavam a admiração pelo modelo autárquico e militarista adotado pelas naçõesnazi-fascistas.

    Góes Monteiro era, inclusive, assíduo freqüentador de recepções na embaixada

    alemã, chegando a ser condecorado por Karl Ritter, representante de Hitler no Brasil até ofim da década de 1930. Por essas e outras, ele foi acusado pelo seu equivalente americano,o general George Marshall, de fazer vista grossa diante das notórias atividades de espiõesnazistas que agiam livremente no Brasil. Dutra, por sua vez, havia atuado intensamente naviolenta repressão à chamada Intentona Comunista, que levou à prisão Luís CarlosPrestes.

    Apesar das afinidades - segundo Prestes, se gabavam de ser "os prussianos dasAméricas" -, os dois homens fortes do Exército tinham estilos bem distintos. EnquantoGóes Monteiro era espalhafatoso gostava de aparecer no Palácio Guanabara em trajes

    civis, geralmente um terno de linho branco amassado, gravata desamarrada echapéu-panamá -, Dutra era mais sóbrio - intelectualmente limitado, mas determinado notrato político.

     Naquele momento, o embate ideológico travado no núcleo do governo começava a pender irreversivelmente para o lado de Aranha. Embora toda a estrutura do governoVargas fosse calcada em princípios totalitários, e o presidente muitas vezes em seusdiscursos tivesse endossado tais teorias, apoiando investidas beligerantes da Alemanha echamando a atenção para a fraqueza das democracias liberais, os últimos acontecimentosfavoreciam a argumentação do chanceler.

    4 Dutra e Góes Monteiro foram próceres do golpe do Estado Novo (1937), dandosustentação para que Getúlio Vargas implementasse medidas antidemocráticas(fechamento do congresso, perseguições políticas, censura à imprensa, entre outras) queaproximaram a estrutura do regime brasileiro de doutrinas totalitárias semelhantes às quecaracterizavam tanto o governo fascista de Mussolini como o nazista de Hitler. Comoocorreram sucessivos expurgos entre os militares desde a Revolução Constitucionalista de1932, a unificação das Forças Armadas ainda era um fenômeno recente, o que tornava

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    conveniente ter um civil no poder. Do contrário, poderia acontecer uma fragmentação nosquartéis, o que não interessava nem a Dutra nem a Góes Monteiro.

    Recebido por Lourival Fontes, diretor-geral do Departamento de Imprensa ePropaganda - o DIP5 -, Oswaldo Aranha subiu as escadarias do Tiradentes sensibilizado

     pela ovação entusiasmada. Depois foi a vez de o subsecretário de Estado norte-americano,o elegante e longilíneo Sumner Welles, experimentar o calor dos aplausos da platéia que, pacificamente, se acotovelava atrás do cordão de isolamento. O aceno espontâneo e osorriso, que alargava levemente o rosto afilado, revelavam um dos traços mais marcantesda personalidade carismática de Welles: a simpatia. Doutor em leis pela Universidade deColumbia, tendo estudado também em Harvard, fora, em 1940, o emissário enviado pelo presidente Franklin Roosevelt aos países europeus em guerra. Conhecia bem os efeitos doconflito que se alastrava inexoravelmente - para os Estados Unidos, em particular, depoisdo ataque japonês à base de Pearl Harbor, ocorrido havia pouco mais de um mês. E aquelanão fora a primeira vez que Welles percebera que era bemvindo. Na sua chegada, no

    aeroporto Santos Dumont, a bordo do quadrimotor anfíbio Yankee Cliper, considerado naépoca o maior avião comercial do mundo, os cariocas também o cobriram de reverências.Era o reconhecimento por Welles, firmemente, "preconizar que os Estados Unidos baseassem suas relações com a América Latina na mais completa igualdade".6 A presençade Sumner Welles no Brasil dava bem a medida da importância da conferência. Os rumosda política de um continente inteiro em relação à Segunda Guerra Mundial estavam porser definidos e isso criava um ambiente de angustiante incerteza. Além da prisão de umagente que pretendia matar Oswaldo Aranha, uma nota da embaixada americana falava da possibilidade de outros atos de sabotagem e de um ataque ao Nordeste, que poderiaacontecer "dentro de um mês". A 7a Região Militar chegou a solicitar ao Alto-Comando

    do Exército os meios para fazer a devida proteção da área. Esse era o panorama do en- tssetalvez fosse o departamento mais importante na estrutura do Estado Novo. Além deexercer o controle sobre todos os veículos de comunicação, tinha a função de trabalhar naconstrução da imagem do presidente da República, associando-a às realizações do go-verno.

    6 r>-/.

    Diário Carioca - 15 de janeiro de 1942.

    26 27 contro que transformara o coração da capital da República, segundo oDiário Carioca, "no centro das atenções do mundo".

    Somente quando todos os ministros já se encontravam em seus assentos,exatamente às 17h25, o presidente Getúlio Vargas deixou o Palácio Guanabara para oimportante compromisso no Tiradentes. Acompanhado por membros da Casa Civil eMilitar, desfrutou de "manifestações de apreço" do povo ao percorrer em carro aberto arua Paissandu e todo o trecho da Praia do Flamengo até a altura da avenida Rio Branco. No percurso não foram gastos mais de vinte minutos. As 17h45, Vargas chegava ao

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     plenário do palácio, onde pôde testar outra vez sua popularidade. Assim que entrou norecinto, trajando um elegante terno branco, as tribunas e galerias lotadas pela eliteestado-novista vibraram com as palmas calorosas, que, segundo o Correio da Manhã, "se prolongaram por cinco minutos". À sua direita estava o interventor do Estado do Rio deJaneiro, Ernani do Amaral Peixoto, casado com a sua filha Alzira, e à esquerda os chefes

    do Estado-Maior do Exército e o Cardeal Dom Sebastião Leme. Ao receber a palavra deOswaldo Aranha, que abriu a Conferência dos Chanceleres, Vargas discursou:

    "É propósito dos brasileiros defender, palmo a palmo, o próprio território contraquaisquer incursões e não permitir que possam suas terras e águas servir de ponte de apoio para o assalto às nações irmãs. Não mediremos sacrifício para a defesa coletiva (...) Nenhuma medida deixará de ser tomada a fim de evitar que, porta adentro, inimigosostensivos ou dissimulados se abriguem e venham a causar dano, ou pôr em perigo asegurança das Américas."7 Depois de falar, Vargas agradeceu as manifestações de apoio,recolheu os óculos e afastou-se. Ao sucedê-lo na tribuna, Sumner Welles referendou-lhe

    as palavras.E foi mais longe:

    "Aprendemos pela experiência trágica (...) que todas as normas da decência e dodireito internacional sobre as quais repousavam as esperanças de um mundo pacífico (...)foram totalmente ignoradas por Hitler e por seus satélites desprezíveis. O meu governo julga que devemos desde já começar a executar planos vitais para a defesa humana do 7Correio da Manhã- 15 de janeiro de 1942.

    hemisfério (...) Mais vale a um povo combater gloriosamente para salvar a suaindependência; mais vale a morte na batalha para salvar a liberdade que agarrar-se aos

    farrapos do falso ideal de uma neutralidade ilusória."8 Era evidente que a posição doBrasil diante da Segunda Guerra Mundial mudaria drasticamente. As conseqüências dessadecisão logo seriam sentidas:

    "Estamos irreversivelmente colocando em prática o pan-americanismo",9 diriaOswaldo Aranha em transmissão radiofônica aos Estados Unidos.

    Como presidente da conferência, eleito por aclamação, Aranha já afirmara, noinício dos trabalhos, que "o pan-americanismo nunca foi um fim continental, mas um todo político; um meio de atingir finalidades mais amplas, porque universais".

    A partir dali, o Brasil não mais poderia praticar plenamente a neutralidade fixadaatravés dos Decretos n. 4.623 e 4.624, de 5 de setembro de 1939, assinados poucos diasdepois da eclosão do conflito. Desde então, o mundo vivia estremecido por uma forteturbulência em matéria de política internacional, e Vargas, como um bom jogador, seaproveitara disso para obter vantagens comerciais. Adotava, pragmaticamente, uma postura pendular, ora dando sinais de aproximação com a Alemanha nazista, ora com osEstados Unidos.

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    com o acirramento das hostilidades e a interrupção do comércio marítimo com aEuropa, causados pelo bloqueio naval inglês, esse malabarismo estava chegando ao fim.Vargas percebia que o melhor a fazer era bandear-se para o lado dos norte-americanos.Além de tudo, sentia-se pressionado. Em 10 de dezembro de 1941, três dias depois doataque surpresa a Pearl Harbor, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Cordell Hull,

    ao solicitar a convocação em caráter de urgência da Conrerencia dos Chanceleres,rechaçara a oferta do Chile de sediar o encontro e confirmara que o Brasil, como estava previsto desde a última reunião em Havana, teria tal privilégio.

    8 Correio da Manhã Idem.

    15 de janeiro de 1942.

    28 29 Aquela altura, as peças do tabuleiro de xadrez da política mundial semexiam freneticamente. A agressão japonesa aos Estados Unidos, engendrada peloalmirante Isoruku Yamamoto, gerou uma avalanche de declarações de solidariedade. Em

    8 de dezembro, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Haiti, São Domingos e Panamátambém entraram na guerra contra o Japão. O Peru ofereceu colaboração aos americanosno que fosse preciso - com sua costa toda voltada para o Pacífico era um paísestrategicamente importante. Já Bélgica, Colômbia, Egito e Grécia rompiam relaçõesdiplomáticas com os japoneses. Ainda no dia 8, Vargas convocou o ministério e anunciousolidariedade aos Estados Unidos. O governo venezuelano acompanhou a decisão brasileira. No dia seguinte, foi a vez da Costa Rica declarar guerra ao Japão. Dia 10, Cubafez o mesmo. No dia 11, Alemanha e Itália declararam guerra aos Estados Unidos.Solidário, o governo mexicano rompia também relações diplomáticas com a Alemanha eItália. Ainda procurando não se expor, o Brasil, no dia 17, declarava-se oficialmente

    neutro, tanto no que dizia respeito à guerra entre os países europeus como a que envolviao Japão.

    Era um panorama que fazia com que os americanos não tivessem dúvidas: apesardas diversas manifestações de solidariedade, para resistir a qualquer ameaça de agressão,estava na hora de promover uma unidade continental. Daí, a rapidez com que Cordell Hullarticulou a reunião no Rio de Janeiro.

     Não era preciso possuir a sagacidade de um Oswaldo Aranha para imaginar asrazões que levaram os Estados Unidos a proporem a capital brasileira como sede doencontro dos ministros. Pela extensão de suas terras, o Brasil se tornava estrategicamente

    vital para a defesa da América, num momento em que o marechal Henri Phillippe Pétain,Chefe de Estado da França não-ocupada, de influência nazista, havia autorizado autilização por parte dos alemães das instalações aéreas e portuárias de Dacar, no Senegal, ponto mais ocidental da África. A distância relativamente curta dali até o chamadoSaliente Nordestino, considerado a chave da defesa atlântica do continente - 1.600 milhasque poderiam ser percorridas em oito horas de vôo -, acentuava as preocupaçõesamericanas. A fixação de uma cabeça-de-ponte na região poderia, através de incursões

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     pelo Caribe e Panamá, encontrar nos Estados Unidos pontos de vulnerabilidade, já que o patrulhamento daquela área ainda não era o mais adequado.

    Por outro lado, a partir do território brasileiro, aviões aliados estariam a um passodos combates. Em 1943, o aeroporto de Natal se transformaria no mais movimentado do

    mundo com cerca de seiscentas operações de pouso e decolagem por dia, num fluxocontínuo de recursos e soldados para as bases aliadas na Europa e África. Essascondições, somadas às riquezas naturais de nosso solo, conferiam ao país um peso que ocredenciava a liderar as demais nações da América do Sul. Não havia hipótese de osEstados Unidos admitirem o Brasil dominado pela Alemanha nazista e se cogitava, caso adiplomacia falhasse, a invasão do Nordeste por um grande contingente do Exércitonorte-americano.

    Uma carta do embaixador americano Jefferson Caffery, datada de fevereiro de1942, solicitando ao presidente Vargas autorização para que técnicos americanos fossemenviados ao Nordeste, dava a dimensão do quanto os Estados Unidos consideravam

    importante a ocupação da região:"É desnecessário lembrar a Vossa Excelência da crescente importância da travessia

    rápida de um grande número de nossos aviões para as frentes de batalha na África e noOriente, onde são necessitados com mais urgência. De fato, a chegada rápida dessesaviões naqueles setores tem uma influência direta nas operações militares atuais, bemcomo no resultado final da guerra. Resultado este que afeta diretamente o país de VossaExcelência assim como os Estados Unidos. O presidente me pediu para expor o problemacom toda a franqueza e confia que Vossa Excelência não hesitará em prestar a cooperaçãosolicitada, uma vez que (...) torna-se, em todo o sentido, essencial para alcançarmos a

    vitória sobre o Eixo."10 A conjunção desses fatores finalmente obrigava o governo brasileiro a abandonar a postura ambígua dos últimos tempos. Uma postura que muitasvezes criava situações embaraçosas. No auge do avanço das torças nazistas, em meadosde 1940, Vargas confabulava secretamente com o embaixador alemão Curt Pruefer noPalácio Guanabara quando fói avisado por um oficial de gabinete que o ministro OswaldoAranha 31 acabara de chegar. Mesmo desconcertado diante da surpresa, o presidentenão titubeou em "convidar" Pruefer a se retirar pela porta dos fundos. Não queria que seucompanheiro de lutas, então já trabalhando por uma aproximação com os Estados Unidos,o flagrasse em um insondável encontro clandestino com um representante do Eixo.11Impelido a se alinhar aos norte-americanos, Vargas pelo menos via com bons olhos a

    figura de Franklin Roosevelt. Na posse do seu terceiro mandato (1941-45), o presidentedos Estados Unidos reafirmara sua política de boa vizinhança:12 "Eu me empenharei noestabelecimento de respeito aos nossos vizinhos (...) Bons vizinhos devem cumpriracordos e respeitar tratados."13 Além disso, Roosevelt sabia como poucos ser agradável.Chegou a enviar ao Rio de Janeiro um escultor especialmente para fazer um busto deVargas. E mais: em 1936, quando visitou o Brasil, encantou a todos ao relembrar, naabertura de seu discurso, durante um banquete oferecido pelo governo brasileiro, o quanto

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    lhe trouxe alegria ter sido apresentado, ainda menino, em Paris, a Dom Pedro II, umsímbolo da nossa nacionalidade. Na ocasião, Vargas não lhe poupou elogios:

    "O homem (...) é de uma simpatia irradiante, de um idealismo pacifista sincero, e o próprio defeito físico (resultante de uma poliomielite que contraiu aos 39 anos), que o

    torna um enfermo de corpo, aperfeiçoa-lhe as qualidades morais e aumenta o interesse porsua pessoa.

    É um orador claro, simples, cheio de imaginação (...) Mostrou-se muito 11 Oepisódio na época foi relatado à chancelaria da embaixada alemã e consta em documentoapreendido no fim da guerra. Hoje se encontra no National Archives and Record Center,em Washington.

    12 Desde 1933, por iniciativa do democrata Franklin Roosevelt, que acabara deassumir o governo, depois de uma sucessão de presidentes republicanos, os EstadosUnidos mudaram a sua forma de se relacionar com os países latino-americanos. Para

    resolver conflitos, em vez de canhões e fuzileiros, era utilizado o diálogo, a diplomacia.com isso, acabou por se incrementar um intercâmbio também cultural. Nessaépoca, Carmem Miranda fazia sucesso nos Estados Unidos e artistas americanos,freqüentemente, visitavam o Brasil. Era uma forma também de combater a influênciaeuropéia nos países da América Latina, principalmente num momento em que emergiamno Velho Continente governos totalitários com políticas expansionistas, como as queempreendiam a Alemanha e a Itália.

    13 O Imperialismo Sedutor - A Americanização do Brasil na Época da Segunda,Guerra Mundial. Antônio Pedro Tota. Companhia das Letras, 2001.

    32 interessado em ajudar o Brasil na solução dos problemas de sua defesaCoincidentemente Vargas perderia o filho mais novo, Getúlio Vargas Filho, vítimatambém de poliomielite. Ele tinha 26 anos e morreu quando o presidente brasileiro, em1943, tinha um encontro marcado com Franklin Roosevelt na base militar de Parnamirim,em Natal.

    14 Perfis Brasileiros. Getúlio Vargas. Boris Fausto. Companhia das Letras, 2006.

    33 Encontro do presidente Getúlio Vargas com o almirante Ingrams,comandante da esquadra naval americana, no nordeste brasileiro A manchete do jornal, de28 de janeiro de 1942 A Reunião histórica do Rio Negro Diário Carioca O BRASIl

    ROMPE com O Eixo!A ÚLTIMA REUNIÃO DOS CHANCELERES NO ITAMARatI a

    Reuniãohistórica Ruptura de Relações Acordo entre o Peru e o Equador Às 18:00 dehoje no palácio Tiradentes, a cessão de encerramento da Conferência.

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    O rompimentoEra uma noite de gala no Palácio Guanabara. A poderosa iluminação realçava a

     beleza clássica de sua arquitetura e revelava a grande extensão dos seus jardins, deixandoainda mais aparente a suntuosidade do palácio que, desde 1926, hospedava o presidenteda República. Tradição e história não lhe faltavam. A construção, adquirida pelo Governo

    Imperial no século XIX, fora moradia da Princesa Isabel, que lá assinaria a Lei Áurea,acabando com a escravidão. Já em 1930, do Guanabara, ao lado do Cardeal DomSebastião Leme, o presidente Washington Luís, saindo de carro por uma porta lateral paraevitar o confronto com a turba enfurecida, seguiu preso para o Forte Copacabana depoisde ser deposto.

    Mas aquele era o dia 19 de janeiro de 1942, e no luxuoso salão nobre do palácio,onde se via ao fundo uma panóplia com as bandeiras dos países sul-americanos, a primeira-dama Darcy Vargas, ao lado da filha Alzira e do genro Ernani do AmaralPeixoto, recebia os convidados, encaminhando-os ao jardim-de-inverno onde se

    encontrava Getúlio Vargas. Aos poucos, o ambiente foi se enchendo de figuras proeminentes. Eram diplomatas, ministros de Estado, magistrados, generais, almirantes, brigadeiros, literatos, banqueiros e jornalistas, a nata da sociedade brasileira, além dosrepresentantes dos países que participavam da Conferência dos Chanceleres:

    "A residência presidencial engalanou para acolher os ilustres delegados dos paísesdo continente numa reunião social que foi, incontestavelmente, um acontecimento deelegância e beleza", noticiou o Diário Carioca do dia 20 de janeiro.

    A recepção oferecida por Vargas foi um momento de descontração em meio aostrabalhos dos ministros. Canapés, regados pelo melhor vinho, quebravam um pouco as

    tensões provocadas pelas intensas conversações. Entre Darcy Vargas e Oswaldo Aranha,Sumner Welles posava para os fotógrafos exibindo indisfarçável satisfação com os rumosda Conferência. Já não havia dúvida de que atos de agressão ao continente, mesmo nãomilitares (sabotagem, espionagem e propaganda subversiva do Eixo), não seriam maistolerados. Depois de uma bem costurada articulação política, estariam em curso medidas policiais e judiciais que garantiriam a segurança de cada estado americano.

    Tudo se encaminhava para que se votasse a resolução que recomendava a rupturadas relações diplomáticas dos países americanos com o Eixo. Em reunião no Itamaraty, nodia 25 de janeiro, 19 chanceleres discursaram a favor dessa decisão:

    "Somos um continente pacífico, mas isso não quer dizer covardia. Enfrentar o perigo quando ele paira sobre nossas cabeças não é só defender-nos. Isto já representauma vitória", falou o representante mexicano Ezequiel Padilha.

    Já seu colega peruano, o embaixador Alfredo Solfy Muro, sentenciou:

    "Julgam os nossos homens de estado que as relações interamericanas constituemum fim essencial de todo governo. Fizemos sempre o esforço para tornar a solidariedadecontinental uma realidade." Finalmente, no encerramento da Conferência, no dia 28 de

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     janeiro, foi anunciada, oficialmente, a decisão histórica. A imensa maioria concordava emromper relações diplomáticas com o Eixo. Nem o fato de Argentina e Chile haveremassumido posição antagônica diminuiu o sentido de unidade continental. E mais: comosalientou O Jornal az 29 de janeiro, "os dois países comprometeram-se a não deixar que osembaixadores e cônsules do Eixo, ainda em seus territórios, aproveitem-se das suas

    imunidades para, de alguma forma, trabalhar contra os interesses das repúblicas queestavam rompendo ou estavam em guerra com as potências agressoras".

    Mesmo assim, sabia-se que essa concessão argentina era uma mera formalidade.Dificilmente haveria qualquer restrição à atuação dos representantes do Eixo naquele país. Os discursos do embaixador Enrique Ruiz-Guinazú, de apologia à neutralidade,apenas encobriam o desejo do país de não se indispor com a Alemanha nazista, o queficou evidenciado com o tempo e foi manifestado na conferência pelas sucessivastentativas de barrar a declaração de ruptura unânime e imediata.

    Apesar das divergências com Guinazú, Aranha, gentilmente, foi levá-lo ao

    aeroporto Santos Dumont na sua volta a Buenos Aires. Mas aO perceber que o hidroaviãomilitar da comitiva de Guinazú precisara Je três tentativas para decolar, não resistiu aocomentário sarcástico: "Deve ser o peso da consciência."1 O pior ainda viria. Finalmente,após levantar vôo, com ou sem a carga excedente imaginada por Aranha, o hidroaviãoacabou caindo nas imediações do aeroporto. Como noticiou o Diário Carioca, em 31 de janeiro de 1942, "logo notou-se que o aparelho não conseguia se estabilizar no ar, parecendo que o motor falhava. Subitamente, como um cometa, o possante pássarometálico, descrevendo uma elipse, caiu no mar a pouca distância da Escola Naval".

    Os cadetes, por perto fazendo exercícios nos escaleres, foram os primeiros a prestar

    socorro aos passageiros, transportando-os à terra. com ferimentos leves, Guinazú e seufilho foram atendidos na enfermaria da Escola Naval. Depois de liberados, voltaram parao Hotel Glória, onde esperaram que outro avião viesse da Argentina buscá-los.

    O "excesso de peso" foi considerado o motivo mais provável do acidente, segundoo próprio ministro da Aeronáutica, Salgado Filho.

    O mais importante para Oswaldo Aranha foi o saldo da Conferência ter sido plenamente satisfatório. Dali em diante, os países americanos formariam um bloco só,forte e unido para enfrentar a voluptuosidade do Eixo:

    "As repúblicas americanas reafirmam sua declaração de considerar ato de agressão

    de um estado extra-continente contra um deles como ato de agressão contra todos porconstituir uma ameaça imediata à liberdade e à independência da América",2 dizia um dostrechos da resolução.

    Era uma vitória pessoal de Oswaldo Aranha, que, usando todo seu poder de persuasão, lutara obstinadamente por esse objetivo contra a ala do governo que pregava omenor comprometimento possível do Brasil. Nos bastidores da Conferência, as pressões

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    também vieram dos embaixadores de Alemanha, Itália e Japão, que mandaram mensagens para o ministro recheadas de ameaças:

    Crônica de uma Guerra Secreta. Nazismo na América: A Conexão Argentina.Sérgio Corrêa da Costa. Record, 2004. Correio da Manhã - 28 de janeiro de 1942.

    36" 37 "A meu ver a ruptura das relações diplomáticas seria desde já nitidamenteinterpretada nas capitais do Eixo como manifestação da vontade das nações americanas dechegar imediatamente, ou dentro de curto prazo, a uma guerra de fato com os mesmos países. Comunico-lhe meu pensamento na esperança de que o amigo queira prevalecer-se(...) de sua excepcional autoridade no sentido de manter intactas as nossas relaçõesdiplomáticas",3 escreveu o embaixador italiano Ugo Sola.

    O chanceler japonês, Itaro Ishii, foi mais longe. Sabedor das tendênciasnazi-fascistas do general Dutra, enviou-lhe uma cópia da carta enviada a Aranha com oseguinte bilhete anexado:

    "Desejaria apelar a Vossa Excelência para que o senhor ministro compreenda osmeus leais sentimentos para com o Brasil e faça valer sua valiosíssima influência, sempreacatada no rumo da política nacional, no sentido de não ver alterado o atual estado decoisas entre a pátria de Vossa Excelência e o meu país."4 Curt Pruefer, o representantealemão, foi curto e grosso:

    "A ruptura das relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha significaria oestado de beligerância latente, acarretando conseqüências que eqüivaleriam à eclosão daguerra efetiva entre os dois países."5 Tudo isso era café pequeno para as mais quearraigadas convicções de Aranha. Sem se curvar, mantendo com firmeza sua posição,rechaçou a todos numa mesma carta, sepultando qualquer possibilidade de transigência:

    "Ainda que apreciando o apelo que Vossa Excelência me dirige, em minhaqualidade de presidente da Conferência, é meu dever lembrarlhe que o Brasil sempremanteve no conflito uma neutralidade tida como exemplar. A agressão do Japão a um paísdo continente americano, seguida de declaração de guerra da Alemanha e Itália, nosimpõe rumo diferente que o supremo interesse continental indicará."6 Coerente com o quedissera aos diplomatas do Eixo, sem transparecer qualquer incerteza, Aranha fez ainda umdiscurso, no encerramen- 3 Correspondência do embaixador italiano a Oswaldo Aranha.Rolo 7, fotograma 0007 a 0008. CPDOC/FGV.

    4 1942- Guerra no Continente. Hélio Silva. Civilização Brasileira, 1972.

    5 O Brasil vai à Guerra. Ricardo Seitenfus. Manole, 2003.

    6 1942- Guerra no Continente. Hélio Silva. Civilização Brasileira, 1972.

    to da conferência, carregado de eloqüência, como era o habitual do chanceler brasileiro, no qual reafirmava a importância do momento histórico vivido naqueles diasabafados de janeiro de 1942 e expungia qualquer espécie de relacionamento com esses países:

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    "Discutimos durante dez dias todas as nossas possibilidades e fizemos um balançosupremo das nossas energias e da vitalidade dos nossos povos. Discutimos porque pensamos e porque somos livres. Estamos dispostos a todo sacrifício para a nossa defesa ea defesa da América. Esta é a razão pela qual hoje, às seis da tarde, por ordem do senhor presidente da República, os embaixadores do Brasil em Berlim e Tóquio e o encarregado

    de negócios em Roma passaram notas aos governos junto aos quais estão acreditadoscomunicando que, em virtude das recomendações da in Reunião de Consulta dosMinistros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, o Brasil rompe relaçõesdiplomáticas e comerciais com Alemanha, Itália e Japão."7 Aranha complementou seudiscurso informando que já havia enviado aos diplomatas do Eixo uma nota comunicandoessa resolução, e ordenando que fossem entregues os passaportes para que pudessemretornar com segurança a seus respectivos países. Aos mais íntimos, nos bastidores daconferência, o ministro confidenciava que não fora Getúlio, nem ele, nem ninguém queforçara o Brasil a romper relações:

    "Foi a nossa posição geográfica, a nossa economia, a nossa história, a nossacultura, enfim, a necessidade de sobrevivência",8 garantiu.

    Por todo o país as conseqüências da decisão não tardaram. Em Salvador, foramfechados o Clube Alemão e a Casa Itália. Em Porto Alegre, o Arcebispo João Beckerdirigiu uma circular ao clero e aos fiéis fixando normas a serem seguidas. O religiosodeterminou que fosse suspensa a pregação em língua das nações com as quais o Brasilrompia relações diplomáticas, "quer nos templos, quer onde se realizavam os atosreligiosos". O Arcebispo Becker, como noticiaria o Correio da Manhã de 8 de fevereiro de1942, lembrava aos reverendos sacerdotes e aos católicos que os "erros doutrinários tantodo nazismo neo-pagão como do comunismo ateu foram condenados pelo sumo-pontíficie,Pio XI".

    38 1 O Jornal- 29 de janeiro de 1942.

    8 Oswaldo Aranha. Uma biografia. Hilton Stanley. Objetiva, 1994.

    39 Nos Estados Unidos a repercussão também foi grande. De Washington, oembaixador Carlos Martins enviou um telegrama ao presidente Vargas informando que os jornais norte-americanos "enalteceram a atitude do Brasil e a intervenção pessoal deVossa Excelência (...) para uma ação conjunta em face da guerra". O New York Times,segundo Martins, afirmava em manchete: "Brasil assume posição de liderança no

    rompimento com o Eixo."9 Ao chegar aos Estados Unidos, no dia 31 de janeiro, SumnerWelles também congratulou Vargas pelo sucesso da conferência:

    "Envio a Vossa Excelência meus profundos agradecimentos por todas asinumeráveis gentilezas. A Reunião de Consulta do Rio de Janeiro será sempre lembrada pelas suas importantes resoluções em favor dos interesses da América e para esse granderesultado a sábia conduta de estadista de Vossa Excelência muito concorreu." Vargasrespondeu no mesmo tom ameno, mas cobrando uma interferência de Welles nos assuntos

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    que o ministro da Fazenda Arthur Sousa Costa encaminharia brevemente na capitalnorte-americana:

    "Agradeço seu telegrama (...) grato pela oportunidade de salientar que fecundosresultados obtidos na Reunião de Consulta em favor da unidade americana muito se

    devem a sua ação brilhante e ponderada. Confio que sua interferência será decisiva emassuntos que conversamos (...) Para essa capital seguiu o ministro Sousa Costa.

    Para ele peço assistência do amigo e do Departamento de Estado."10 Essa troca deamabilidades, não era novidade, descontentava a ala governista que ainda acreditava navitória dos nazi-fascistas. Era até natural que o novo posicionamento do país trouxesse otemor de que se concretizassem os avisos nada subliminares de represálias. GóesMonteiro expressou sua preocupação ao ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, queendossou esse parecer em uma carta enviada ao presidente da República. O general, querecomendara o não rompimento com a 9 Telegrama de Carlos Martins a Getúlio Vargas.Rolo 7, fotograma 0011 a 0012.

    CPDOC/FGV.

    10 Troca de telegramas entre Sumner Welles e Getúlio Vargas, em 31 de janeiro de1942.

    Rolo 7, fotograma 0011 a 0012. CPDOC/FGV.

    Alemanha nazista, alertava Vargas de que o Brasil estava totalmente despreparado para enfrentar qualquer ataque:

    "Bem sei que Vossa Excelência não desconhece o estado de desaparelhamento emque se encontram tanto o Exército quanto a Marinha e a Aeronáutica. Motivos diversos

    têm impedido que Vossa Excelência leve a termo seu programa de governo na parte quese relaciona com a eficiência do Exército. É sobejamente conhecido o quanto nosempenhamos pela encomenda e, mais tarde, pelo recebimento de material de guerra que,em grande parte, ainda está depositado na Alemanha. Dois anos já se passaram desolicitações, entendimentos e promessas no sentido de obtermos o material bélico maisindispensável, sem que até o presente nada de concreto fosse conseguido",11 disse Dutraa Vargas.

    Por outro lado, os últimos acontecimentos provavam que ser neutro nãorepresentava nenhuma garantia. Fato comprovado pela agressiva escalada das tropas

    nazistas sobre áreas da Europa que se mantinham à margem do conflito. Cada vez mais, povos sem tradição bélica eram subjugados pelos militarmente poderosos do Eixo. Ainvestida submarina da Alemanha contra navios mercantes, visando cortar as linhasultramarinas inglesas, confirmava essa tendência. Indiscriminadamente, embarcaçõesneutras e aliadas eram afundadas.

    Em 1942, mesmo com a resistência do almirante Erich Raeder, comandante-chefeda Marinha de Guerra alemã, que priorizava a construção de unidades de superfície, e a

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    indiferença de Hitler a esta modalidade de guerra, a frota do almirante Karl Dõnitz, ncomandante da força submarina, já era composta por cerca de trezentos U-boats (cerca*1 Carta de Eurico Gaspar Dutra ao presidente Getúlio Vargas, escrita em 24 de janeiro de1942, no ápice das negociações da Conferência dos Chanceleres. Rolo 7, fotograma 0013a 0014. CPDOC/FGV.

    Remanescente da Primeira Guerra Mundial, Dõnitz ficou preso na Ilha de Maltadepois de ter seu submarino, o U-68, afundado por um destróier inglês. Libertado ao fimda guerra, continuou suas atividades na Marinha em terra. Em 1935, foi convidado paracomandar a nova arma submarina do Reich. A partir de então, trabalhou obstinadamente para que a fabricação de submarinos fosse prioridade da indústria bélica alemã. Durante o julgamento de Nuremberg, do qual escapou da forca, pegando uma pena de dez anos de prisão - sua defesa usou a afirmação do almirante norte-americano Chester Nimitz de quefizera no Pacífico o mesmo que Dõnitz fez no Atlântico -, revelou o quanto sua rotina detrabalho fez com que estivesse diariamente num submarino: "Não foi bom para o meu

    reumatismo ficar exposto à umidade, óleo e água o tempo todo." Documentaçãodisponível no site do Centro de Pesquisas e Documentação em História Contemporâneada Fundação Getúlio Vargas (www.cpdoc.fgv.br).

    41 de 1.100 foram postos em serviço ao longo do conflito), que em breveestariam em campanha também nas águas do Atlântico Sul.

     Na época, o Brasil estava longe de poder defender seu litoral e muito menos seuterritório continental. Conforme observava o general Dutra, o país não dispunha de maisde cem canhões e cinqüenta tanques, a maior parte sem munição. A frota da Marinhasofria da mesma indigência, como também a da Aeronáutica (FAB), que contava com

    irrisórios 27 aviões de combate. A nossa defesa se baseava muito mais num teóricoespírito antimilitarista da população do que no aparelhamento das Forças Armadas.

    Eram carências que revelavam as dificuldades de um país periférico, semcondições de envolver-se diretamente num conflito da magnitude de uma guerra mundial.

    Por isso, o governo brasileiro, durante a Conferência dos Chanceleres, consideravafundamental que fosse firmado um compromisso de ajuda militar dos Estados Unidos.

    Era crescente o receio de que houvesse um colapso dos exércitos aliados na Áfricado Norte, o que facilitaria a investida de forças nazi-fascistas sobre a América do Sul.Desde Fernando de Noronha até o Nordeste, chegando à Bacia Amazônica, essas áreas

     precisavam estar preventivamente protegidas.Um documento secreto do Comando do Exército do Nordeste, sediado no Recife,

    datado de 10 de setembro de 1941, definia e detalhava uma estratégia completa de defesadessa região. Diante da possibilidade de um ataque extracontinental bem-sucedido aFernando de Noronha, por exemplo, o plano previa o estabelecimento de manobrasdefensivas a partir de Natal, Recife, Cabedelo e Maceió. com tropas bem posicionadasnessas cidades, o Exército "ficaria em condições de, em curto prazo, repelir tentativas de a

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    invasão avançar em qualquer outra região". O documento faz menção também à atuaçãoda Força Aérea, que seria responsável por fotografar toda a área, além de dar cobertura àsforças terrestres através de "assaltos e bombardeios". Quanto à Marinha, o planorecomendava uma ação que cooperasse na proteção à navegação amiga e neutra eajudasse "forças terrestres e aéreas no ataque às tentativas inimigas de desembarque".

    Seria também sua fun- ção a busca de informações sobre movimentos hostis na zonacosteira, de Recife até Natal, passando por Olinda, Baía de Ponta Negra, N.S. da Ilha deItamaracá e Ponta da Pedra.13 Àquela altura, porém, sabia-se que o Brasil não estavasuficientemente equipado para levar a cabo um planejamento tão abrangente. Daí ainsistência em obter garantias de que os Estados Unidos aparelhariam as Forças Armadas.

     Nessa empreitada, o governo Vargas contava com a inestimável colaboração deSumner Welles. Sensível à necessidade de o Brasil se equipar militarmente, dirigiu ao presidente Roosevelt, em 19 de janeiro de 1942, no auge das negociações da Conferênciados Chanceleres, o seguinte telegrama:

    "Obviamente o Brasil não poderia ser tratado como alguma pequena nação daAmérica Central que se daria por satisfeita com a presença de tropas americanas em seuterritório. Ele tem o direito de ser considerado como nação amiga (...), além de aliado, ecomo tal faz jus a receber (...) suficientes aviões, tanques e artilharia costeira de maneira a possibilitar ao Exército Brasileiro defender, ao menos em parte, aquelas áreas do Nordeste brasileiro cuja defesa é tão vitalmente importante tanto para os Estados Unidos quanto para o Brasil."14 Convencido, o governo Roosevelt finalmente se comprometia a darsuporte ao reequipamento das nossas Forças Armadas, o que foi determinante para orompimento do Brasil com o Eixo. Um mês e meio depois de tomada essa decisão, em 3de março de 1942, foi assinado, em Washington, um acordo no valor de US$ 200 milhõesque garantia o fornecimento de armas e munições. Antes mesmo disso, segundodocumento do embaixador Carlos Martins datado de 27 de fevereiro, o governo jáaguardava o envio de 65 tanques leves, 31 carros militares, cinqüenta ambulâncias, trintamotocicletas e 475 caminhões diversos. Sobre providências para a ativação do programade aparelhamento do Ministério da Marinha, Carlos Martins garantia que, por intermédiodo Departamento de Estado, estava insistindo "junto às autoridades competentes a fim de14 O Brasil no Conflito Ideológico Global. Teixeira Soares. Civilização Brasileira, 1980.

    acelerar fornecimentos".15 com relação ao material da Aeronáutica, o embaixadorinformava que bombas e munição já se encontravam em Natal. A chegada de aviões caças

    e anfíbios estava prevista para junho.O Export-import bank americano também ofereceria crédito para que o Brasil

    explorasse minério de ferro. Sem contar com o sonho de industrialização de Vargas,simbolizado pela Siderúrgica de Volta Redonda, que finalmente sairia do papel. Esse projeto fazia parte de um conjunto de ações que visava criar condições para odesenvolvimento econômico do país. Além da implantação de uma indústria de base, particularmente a grande siderurgia, buscava-se "a nacionalização de jazidas minerais, de

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     bancos e companhias de seguros estrangeiras, a expansão da rede de transportes, oincremento da produção de carvão nacional e a elaboração de políticas para diversificar asexportações".16 O objetivo era reduzir o contraste dos dois brasis existentes, o que, naopinião de Vargas, era o grande entrave para a consolidação de uma unidade nacional,sem a qual jamais haveria um real crescimento.

    Em visita ao estado de Minas Gerais, Jefferson Caffery, embaixadornorte-americano no Brasil, discursava sobre as perspectivas de bons negócios:

    "Meu país é consumidor infalível de materiais abundantes nesse estado: mica,quartzo, manganês, ferro e diamantes industriais. Para os Estados Unidos essas riquezastêm suma importância, aumentada nesse momento de guerra. E todo esse potencial estásendo transformado em material de consumo, que crescerá em proporções enormes, parao que muito hão de contribuir os acordos recentes firmados entre os governos deWashington e do Rio de Janeiro."17 Os Acordos de Washington foram realmente de vitalimportância para o comércio exterior brasileiro. Calcula-se que aproximadamente 60%

    das exportações entre 1942 e 1943 se originaram de negócios ligados a eles. Mas antes deserem colocados em prática, a ira de Hitler se tornaria realidade. Uma realidade comconseqüências ainda inimagináveis. O apoio a uma nação que lutava contra a Alemanhacriava, inevitável- mente, um estado de beligerância não declarada, o que transformava ograsil num alvo em potencial no teatro da guerra. Seria uma ilusão imaginar que os paísesdo Eixo veriam naturalmente, sem sentirem-se afrontados, a ocupação do Nordeste pelaQuarta Esquadra do almirante norte-americano Jonas Ingram. O contragolpe era umaquestão de tempo.

    15 CPDOC/FGV. Rolo 7, fotograma 0014.

    16 Perfis Brasileiros. Getúlio Vargas, Boris Fausto. Companhia das Letras, 2006.17 Correio da Manhã- 3 de maio de 1942.

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    Carnaval sombrioOrson Welles em um programa de rádio ao lado de Oswaldo Aranha: a presença do

    cineasta americano no Brasil fez parte da política de boa vizinhança dos Estados UnidosKarl Donitz, o chefe da frota alemã de submarinos "Desculpem a demora", disse ohomem, simpaticamente, com um inconfundível sotaque de quem apenas começava a

    ganhar intimidade com o português.Era ninguém menos que Orson Welles, o aclamado diretor do filme Cidadão Kane,

    que acabara de chegar ao Rio de Janeiro depois de uma rápida passagem por Belém. Nãocompletara duas semanas que seu conterrâneo, o Welles subsecretário de Estado, haviadeixado o Rio, ao final da Conferência dos Chanceleres. Mas o assunto dessa vez não era política, embora a presença de Orson Welles tivesse a ver com a política de boavizinhança que os Estados Unidos implementavam há tempos, em todas as áreas,inclusive a cultural.

    Vestido com discreta elegância - terno cinza, camisa com preguinhas e sapato de

     pelica -, o cineasta de 25 anos sentou-se, sem qualquer afetação, numa das cadeirasestofadas da varanda do Copacabana Palace, defronte à avenida Atlântica. A vistadeslumbrante da já famosa praia ficou em segundo plano. Os jornalistas logo cercaramWelles, impressionados com sua fisionomia moça e sua amabilidade. Ele não era um galã,não tinha nada de parecido com um artista de cinema, pelo menos nos moldes dos queestavam nas telas naquele momento. Era simplesmente Orson Welles. "Que diferença dosErrol Flynns, dos Fyrone Powers e outros célebres galãs assoberbados", diria areportagem de O Jornal.

    - Mr. Welles, o que achou do Rio de Janeiro?

    - Cheguei apenas há uma hora...E antes que lhe perguntassem se gostava mais de panquecas ou caipirinhas,

    acrescentou:

    - Sinto-me um pouco carioca. Escapei de nascer aqui. Meus pais viveram no Brasil,mas partiram para os Estados Unidos um mês antes do meu nascimento. Daí a grandeestima que tenho por esse país.

    - Mr. Welles, qual o filme que veio produzir aqui?

    - Não sei e ficaria muito contente se me sugerisse um - respondeu o cineasta com

    um sorriso maroto e bonachão.Uma senhorita com o nariz em pé, talvez americana, provocou:

    - Por que filmar o carnaval no Rio se pode fazê-lo em outra parte?

    - Eu já assisti ao carnaval em Nova Orleans, em Nice, na Itália, mas o daqui, semdúvida, é melhor. Ontem à noite, em Belém, tive uma amostra. Vi espontaneidade,intensidade, uma alegria sadia. Nesses instantes nunca senti tanta felicidade.

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    Uma semana depois, usando a iluminação antiaérea emprestada pelo Exército brasileiro, pois o seu equipamento de luz não chegara dos Estados Unidos, Welles estavacom sua câmera, no centro do Rio, registrando a passagem dos blocos, as fantasias, a talespontaneidade que os foliões do norte do país lhe apresentaram. Em cima de um pequeno palanque, montado em meio à multidão, ele se agitava filmando sofregamente tudo o que

     podia:"O centro da cidade era uma vibração só, de colorido e música", noticiou O Jornal,

    mostrando uma foto de Welles no alto da armação dirigindo as filmagens. Impressionadocom o que via, Welles declarou: "Registrar essa festa é como captar a passagem de umfuracão." Welles tinha razão. Tudo aquilo estava muito mais para um fenômeno danatureza. E melhor: sonorizado por marchas que entrariam para a antologia da música popular brasileira, vivendo então um de seus momentos mais exuberantes.Particularmente, o carnaval de 1942 foi pródigo no lançamento de sucessos que pormuitas décadas embalariam a alegria de foliões em todos os cantos do país. Ah, que

    Saudades de Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago; Está Chegando a Hora, de RubensCampos e Henricão; Nega do Cabelo Duro, de Rubens Soares e David Nasser, gravado pelos Anjos do Inferno; e o clássico Sandálias de Prata, de Ary Barroso, na voz deFrancisco Alves, foram alguns exemplos da criatividade dos nossos compositores naqueleano.

    Mas aquele carnaval ficaria marcado não só pelas suas inesquecíveis marchas e pela festa que tanto sensibilizara Orson Welles. Justamente Já terra do cineasta, num prenuncio do que estava por vir, chegariam más notícias, o verdadeiro furacão quevarreria o país. Como se temia, começava a escalada de retaliações dos países do Eixo porcausa do rompimento de relações diplomáticas do Brasil. Apenas 18 dias após essadecisão, no início da madrugada de uma segunda-feira de carnaval, dia 16 de fevereiro, onavio Buarque do Lloyd Brasileiro era posto a pique, atingido por dois torpedos dosubmarino alemão U-432.

    "Afronta do Eixo à América depois do rompimento", gritou a manchete de OJornal.

    O Buarque, batizado assim em homenagem a um antigo presidente do LloydBrasileiro chamado Buarque de Macedo, deixara o Rio no dia 16 de janeiro,coincidentemente em pleno desenrolar da conferência que selaria seu destino. Era um dosmais novos vapores da frota do Lloyd, tendo sido adquirido dos Estados Unidos havia

    apenas dois anos, juntamente com 13 outras unidades, chegava a deslocar 5.152 toneladas brutas, desenvolvia até 13 milhas horárias e media exatos 122,3 por 16,53 metros de boca.Construído pela firma American International S.B. Corporation, do estado da Pensilvânia,em 1919, fora registrado na capitania do porto do Rio de Janeiro, em 1940, sob o número487. Imediatamente incorporado à linha Rio-Nova York, fazia escalas nos portos do Norte-Nordeste e em La Guaira, na Venezuela.

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    Além dos 74 tripulantes e cinco passageiros (tinha capacidade para 82 pessoas), oBuarque levava grande quantidade de café, algodão, cacau e mamona, uma plantamedicinal - era o comércio com os Estados Unidos que se intensificava depois dasconversações na Conferência dos Chanceleres. Particularmente, o nosso café era muito bem-vindo. Conforme reconhecia o Comando do Exército americano, era um dos maiores

    responsáveis pelo bom ânimo dos soldados no front. Em tempos de guerra, cada um deleschegava a consumir por ano algo em torno de 20 quilos do produto.

    Assim, "estavam prontos para lutar".2 1 Entrevista publicada em O Jornal em 10 defevereiro de 1942.

    2 O café era de tal modo apreciado pelos norte-americanos que o presidenteRoosevelt e o secretário de Estado Cordell Hull enviaram cartas de agradecimento aGetúlio Vargas quando em 1943, o governo brasileiro presenteou as tropas dos EstadosUnidos com 400 mil sacas de café: "Nossas forças de luta irão receber com alegria acontribuição do povo brasileiro, não somente por causa da amizade calorosa que ela

    expressa, mas também porque os soldados americanos são até mais consumidores de caféno front do que em casa", escreveu Roosevelt ao presidente Vargas, já Hull diria: "Estoufeliz em informá-lo de que os preparativos para envio do café estão em andamento, o quetrará uma considerável contribuição para as nossas forças armadas e o nosso esforçocomum." Cartas contidas no rolo 7, fotograma 0798 a 0799. CPDOC/FGV.

    Muito provavelmente, o comandante João Joaquim de Moura não conhecia essesdados, mas sabia que havia perigo no mar. Tanto que, dois dias depois de zarpar,atendendo ao regulamento vigente, ele não abrira mão de uma simulação de salvamento,da qual participaram tripulação e passageiros. Moura era um comandante zeloso, mas

     parecia também antever o que se sucederia.Após ter deixado o estado do Pará no primeiro dia de fevereiro, o Buarque navegou

    na direção norte. Atracou no dia 7 de fevereiro em La Guaira, onde mais 13 passageirosembarcaram, e logo seguiu viagem para Nova York. Precavido, como já demonstrara serna saída do Rio, o comandante decidiu alterar drasticamente a rota habitual, preferindosingrar em águas do litoral norte-americano (por volta de 20 milhas da costa da Virgínia),em vez de seguir na linha reta mantida pelo piloto automático.

    Era uma forma de diminuir os riscos de sofrer um ataque, o que àquela altura parecia improvável. Freqüentemente, eram avistados aviões navais norte-americanos

     patrulhando a região.Porém, por volta das 22h do dia 15, o comandante Moura percebeu, de súbito, a

    aproximação de um submarino, o U-432, comandado pelo Capitão-Tenente Heins-OttoSchultze.

    Mais cedo, por volta das 19h30, Moura já estranhara a presença de um aviãosobrevoando o navio e lançando sobre ele um feixe de luz - posteriormente soube-se que

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    os alemães poderiam possuir uma aeronave espiã baseada nos Estados Unidos que guiavaos submarinos em atividade na região.

    Os temores do comandante cresceram ao constatar coisa pior: o Buarque passava aser seguido. Mesmo assim, como o vapor trafegava com as luzes totalmente acesas, que

    deixavam à mostra nitidamente seu costado com a bandeira brasileira, imaginou-se queaquilo fosse apenas um exercício de intimidação. Ledo engano. Mesmo declarando-seneutro, o Brasil, ao romper com o Eixo, estimulara a reação de Hitler. Estava claro quecarregar mercadorias para um país em guerra com a Alemanha, como era o caso dosEstados Unidos, representava um grande perigo, pois cortar o suprimento dematérias-primas e alimentos a um país inimigo se tornara uma prática corriqueira. Nessecaso, ocorria a chamada operação Paukenschlag (Rufar dos Tambores), aprovada peloFührer e levada a cabo por Karl Dõnitz, que deslocava para a costa norte-americana e oMar do Caribe parte de suas forças submarinas.

    Além de obstruir o fornecimento de matérias-primas aos Estados Unidos, os

    alemães tinham também o objetivo de isolar ao máximo a União Soviética dos seusaliados, que ficaria impedida de receber, através das rotas marítimas, qualquer tipo deauxílio. Como praticamente não havia uma defesa organizada à ação dos submarinos naregião, navios eram afundados sem qualquer resistência, desde Nova York até o Golfo doMéxico.

    Mas para atacar o inimigo em pontos tão distantes das suas bases, pagava-se um preço alto. A longa permanência no interior de um submarino era extremamentedesgastante, um teste de resistência que poucos suportavam. Em um ambiente asfixiante einsalubre apenas o comandante e o imediato tinham cômodos individuais. Os suboficiais

    dividiam um outro cômodo e o restante da tripulação - 50 homens em média, que incluíammaquinistas, eletricistas, artilheiros e especialistas em escuta - se espremiam entre tubos,alavancas, torpedos, aparelhos medidores, tanques de lastro, responsáveis pela submersãoou emersão, geradores, alimentos e equipamentos em geral. Os beliches dobráveisficavam em meio a toda essa parafernália. O calor intenso fazia com que em algunscompartimentos os tripulantes trabalhassem sem camisa. As longas jornadas tornavamcomuns os casos de claustrofobia. Se por esse ou qualquer outro motivo houvesseabandono do posto ou desobediência ao comandante o caso era julgado pelo Conselho deGuerra, podendo o infrator, dependendo da gravidade da indisciplina, ser condenado àmorte.

    Além disso, o barulho interno era intenso. Era causado principalmente pelofuncionamento dos motores a diesel, que tornavam o ar quase irrespirável. A tensãoconstante se multiplicava pelos ruídos externos captados por um hidrofone. com a rápida propagação do som de- 51 baixo d'água, podia-se ouvir até uma ferramenta caindo no piso do convés de uma embarcação que se aproximasse. O pingue sonar, que indicava quea presença do submarino poderia estar sendo detectada por um navio-escolta, trazia aindamais apreensão e, nesses momentos, um silêncio mortificante tomava conta de todos, pois

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    a qualquer momento poderia ser lançada uma bomba de profundidade. Era a senha para seemergir o máximo possível, e aí a pressão do ar se tornava difícil de suportar. Muitos passavam mal.

    De um modo geral, o grosso da tripulação era formado por jovens marujos

    recém-saídos da adolescência. No fim de uma viagem, estavam transformados.Embrutecidos, exibiam inevitavelmente as marcas da guerra. A barba crescida, a facevincada, com sulcos profundos, e as olheiras proeminentes. Elas denunciavam a perda dainocência, causada tanto pelo inevitável desgaste psicológico quanto pelo ritmo detrabalho puxado.

    Mas a despeito de todas essas dificuldades, os comandados de Dõnitz tinham omoral elevadíssimo, particularmente quando seus inimigos não se mostravam preparados para enfrentar esse tipo de campanha. O Buarque teve certeza disso ao ser atingido, aos 45minutos de uma madrugada escura e de mar agitado, pelo primeiro torpedo do U-432. Asurpresa da explosão foi multiplicada pelo fato de os passageiros e a maior parte dos

    tripulantes estarem dormindo. Muitos foram arremessados dos seus leitos.Bruscamente acordados, eles saíram de suas cabines totalmente atordoados. Não

    tardou, porém, para concluírem que o navio só podia ter sido atacado por um submarino.

    A confusão era enorme, principalmente em razão do curto-circuito que logo afetoua energia elétrica. Mesmo fora do navio, diante da noite impenetrável, os passageirostinham dificuldade de enxergar. Movimentando-se desordenadamente, se chocavam unscontra os outros.

    "Era uma situação aterradora. Estávamos todos aturdidos, sem saber para onde nosdirigir. Sobretudo pela falta de visão, o pânico aumentava a cada instante", relatou oamericano Walter Shivers, um engenheiro da Pan-American Airways.

    com o iminente afundamento, o comandante Moura ordenou aos tripulantes quetomassem providências para que o navio fosse abandonado. Por sorte, o Buarque eramuito bem aparelhado no tocante ao material de salvamento - possuía quatro baleeiras,uma lancha e quatro amplas balsas. Mesmo assim, a operação exigia muito cuidado. Osrodamoinhos que se formavam puxavam os escaleres que já se encontravam na água emvolta ao Buarque. Muitos deles acabavam se chocando perigosamente contra o casco donavio que afundava. Quando finalmente conseguiram se afastar, a uma distância de cercade 90 metros, o submarino disparou outro torpedo, atingindo a parte central do navio. Era

    o golpe fatal.Sem apelação, tendo suas caldeiras explodidas, o vapor afundava de proa:

    "O roncar da água entrando pelo navio fazia-o gemer de uma maneira quasehumana. Foi esse o ruído mais doloroso e mais tétrico que ouvi em toda a minha vida.Senti o sangue gelar-me nas veias",3 confessou Shivers.

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    Como os escaleres do Buarque estavam convenientemente abastecidos com raçõesde emergência - biscoitos, água e leite -, os transtornos pela noite passada ao relento, àespera de resgate, teriam sido minimizados. Foram várias horas ao sabor das ondas;momentos em que existia também o receio de que fossem metralhados pelo submarinoinimigo, que, provavelmente, ainda estava nas imediações.

     Num dos escaleres, segundo um dos depoimentos, estava uma senhora com umacriança de 6 anos, cuja coragem impressionou a todos. Apesar do medo de um novoataque e do frio cortante, nem sequer chorava. Isso trouxe estímulo para que os náufragosaguardassem o surgimento das primeiras luzes do dia, quando seria mais fácil seremlocalizados.

    "Somente às sete da manhã um avião circulou sobre o bote salvavida em que nosachávamos. A tripulação do aparelho nos fez sinais e lançou bombas de fumaça paraindicar nossa posição ao navio que devia nos socorrer. Perdemos de vista dois outrosescaleres, que desapareceram na noite fria e escura. O navio de socorro rumou em

    ziguezague para a costa depois de nos resgatar, com receio de que ainda houvessesubmarinos nas proximidades",4 disse Maria Luiza Omana, uma jovem venezuelana, de19 anos, resgatada junto com sua mãe.

    3 Correio da Manhã - 19 de fevereiro de 1942.

    4 Correio da Manhã - 19 de fevereiro de 1942.

    52 53 O outro escaler teve de esperar pelo resgate por mais tempo: "Remamos evagamos até as nove da manhã, quando vimos dois aviões da Marinha norte-americana.Fizemos sinais e eles nos viram, retribuindo os nossos sinais. Vimos também um dosobservadores tirando fotografias do nosso escaler. Mas os navios enviados em nossosocorro só apareceram na parte da tarde, mas sempre tivemos aviões voando sobre nós.Felizmente o mar já não estava tão agitado e o tempo se firmara",5 contou John Dunn,também norte-americano e engenheiro da Panam.

     No fim, soube-se que houve uma vítima. Um homem de nacionalidade portuguesa,de 46 anos, chamado Manoel Rodrigues Gomes, sofrera um ataque cardíaco no momentodo torpedeamento. Num dos escaleres, membros da tripulação tentaram ao máximoreanimá-lo, inutilmente. Entretanto, a maior parte da tripulação e dos passageiros estava asalvo no porto norte-americano de Norfolk, resgatada pelo Cutter da Guarda-Costeiranorte-americana Calypso. Outros se encontravam no contratorpedeirojacob James,

    inclusive o comandante brasileiro João Joaquim de Moura, a quem foi recomendado quenão concedesse entrevista. Um último escaler se perdeu no mar por 57 horas. Foirecolhido, com seus ocupantes em estado precário por causa da temperatura abaixo dezero, pelo petroleiro Eagle, que acabaria por ser torpedeado um ano e quatro mesesdepois, em junho de 1943, em Cabo Frio, sendo levado para reparos ao porto do Rio deJaneiro com escolta da Corveta Cananéia.

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    Em Washington, onde se encontrava chefiando uma missão econômica, o ministroda Fazenda Sousa Costa recebeu, estarrecido, a notícia do afundamento do Buarque (os prejuízos foram calculados em cerca de US$ l milhão). Aproveitou para, nas reuniões emcurso, intensificar pressões para que se acelerasse o fornecimento de materiais bélicos aoBrasil, com base na lei de Arrendamento e Empréstimos.

    Aquela altura, havia razão de sobra para acreditar que o Eixo, sentindo-se ultrajado pela frente hemisférica criada no Rio, não mediria esforços para realizar outrasretaliações. Até porque quase um ano antes, em 22 de março de 1941, sem um motivoclaro, o mercante Taubaté, apesar de exibir nitidamente a bandeira brasileira pintada emambas as bordas, foi atacado com bombas e tiros de metralhadoras por um avião HaLuftwaffe no Mar Mediterrâneo, quando navegava do Chipre para a Alexandria, levando batatas, lã e vinho. A agressão não parou nem após o comandante Mario Fonseca Tinocoter ordenado que fosse içada no mastro principal a bandeira branca. Na ocasião, ocorreu a primeira vítima do país na Segunda Guerra: o conferente José Francisco Fraga. Outros 13

    tripulantes acabaram feridos. O Ministério das Relações Exteriores apresentou as devidasreclamações, mas não obteve qualquer resposta.

    O medo estava instalado e só aumentaria a partir de 1942. Já se comentava noscírculos militares alemães a hipótese de estender à costa brasileira operações semelhantesà que vitimara o Buarque. Isso eqüivalia a dizer que o Brasil, mesmo sem esboçarqualquer atitude hostil, vivia na prática um estado de guerra com Alemanha, Itália eJapão. Envolvera-se de tal forma no conflito que, inevitavelmente, em breve, teria de abrirmão oficialmente da sua insustentável neutralidade.

    Comentava-se também que a intimidação feita pelo U-432 faria parte de uma

    estratégia do Eixo de desviar forças navais de zonas nos Estados Unidos que poderiam seratacadas. Seja lá qual fosse o objetivo da estratégia, ela estava só começando. Logo, outronavio brasileiro estaria na mira de U-boats inimigos.

    5 Idem.

    Submarino italiano suspeito de ter torpedeado o Cabedelo O vapor Cabedelodesapareceu de modo misterioso no mar das Antilhas, em fevereiro de 1942, após deixar o porto da Filadélfia carregado de carvão.

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    O adeus do Olinda e o mistério do CabedeloO carnaval no Rio chegava a seu ponto alto com o tradicional baile de gala do

    Theatro Municipal. Lá estava a nata da sociedade do Distrito Federal em mais um eventorealizado pelo espírito filantrópico da primeira-dama Darcy Vargas, que, ao lado da filhaAlzira e "das melhores damas da cidade", conforme noticiaria o Diário Carioca, ocupava

    um dos mais concorridos camarotes naquela madrugada de 17 de fevereiro de 1942. Entreos jurados do tradicional concurso de fantasias estavam figuras como o cineasta OrsonWelles, o pintor Cândido Portinari, o escritor José Lins do Rego e o jornalista HerbertMoses. O Rio vivia um clima inebriante sem ter noção das notícias que logo chegariam domar. Enquanto se respirava apenas festa, o Buarque já estava no fundo do oceano e,algumas horas depois, seria a vez de outro navio brasileiro ter o mesmo destino.

    Construído em 1905, em Glasgow, com capacidade para carregar 4.074 toneladas,o Olinda era, desde 1934, de propriedade da Companhia Carbonífera Rio-Grandense. Jánavegava havia quase um mês deixara o porto do Recife em 20 de janeiro - transportando,

    entre outros produtos, 19 mil sacas de cacau, cinco mil caixas de castanhas e grandequantidade de café. Singrava as águas do Cabo de Hatteras, na costa da Carolina do Nortee, da mesma forma que o Buarque, seu destino era Nova York. Não havia passageiros.Eram apenas 46 tripulantes que ainda não tinham informações sobre o que se sucedera, pouco mais de 48 horas antes, não muito longe dali. Depois do Buarque, era o Olinda queiria sentir o poder dos torpedos de um submarino nazista.

    Era meio-dia de 18 de fevereiro. O céu nublado não afetava a visibilidade. Apesardo perigo daquela região, ninguém no Olinda esperava um ataque à luz do dia. Mas foiexatamente o que ocorreu. "Avistado por uma aeronave espiã, teve sua rota, velocidade e posição informadas ao U-432, do capitão Schultze",1 o mesmo que afundara o Buarque..O primeiro disparo, de uma distância inferior a duas milhas, atingiu a antena de rádio donavio. O tiro foi como uma advertência para que a tripulação abandonasse a embarcação.Seguindo as instruções do comandante Jacob Benemond, foi o que todos fizeram. Os doisescaleres existentes, embora tenham ficado abarrotados, foram suficientes paraacomodá-los.

    Ao se afastarem, mais dez projéteis atingiram o cargueiro em diversas partes.Dessa vez, depois do ataque, o submarino chegou perto de um dos escaleres. Suatripulação queria informações sobre a embarcação. Oficiais saíram para a torre decomando do submarino fazendo sinais para que o escaler se aproximasse. Um deles era

     poliglota.Além do alemão, falava inglês, espanhol e também, mesmo com alguma

    dificuldade, o português. Diante de uma tripulação em estado de choque pela constataçãode que o Olinda adernava, o oficial, com palavras firmes, mas não agressivas, orientado pelo comandante Schultze, perguntou quem era o comandante.

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    Como Benemond estava em outra baleeira, que se afastara um pouco, o alemãoordenou, num tom impositivo, que subisse ao submarino Francisco Lustosa, oradiotelegrafista do navio. Durante alguns minutos, quis saber detalhes da unidade brasileira: de que porto zarpara, sua carga e destino.

    "Trataram-me com toda a cortesia, fotografando-me, da mesma forma que fizeramcom nossos botes e com o Olinda, àquela altura praticamente adernado",2 disse Lustosadepois de resgatado.

    O mesmo procedimento aconteceu depois que o outro escaler se aproximou. Ooficial alemão chegou a dar as mãos, ajudando o comandante Benemond a alcançar a torredo U-432? A ele foi feito o mesmo interrogatório. Após devolvê-lo ao bote, notou-se queaviões da Mari- 1 História. Naval Brasileira. Quinto volume. Serviço de Documentaçãoda Marinha. Rio de Janeiro, 1985.

    2 O Jornal-21 de fevereiro de 1942.

    3 Além do Buarque e do Olinda, o U-432 afundou outros 18 navios aliados. Em 11de março de 1943, no Atlântico Norte, acabou destruído por cargas de profundidade ecanhões da corveta Aconit da França Livre. Vinte e seis tripulantes morreram e vintesobreviveram.

    nha dos Estados Unidos despontavam no horizonte. Foi a senha para que osubmarino submergisse e não fosse mais visto:

    "Era um pequeno submarino. Tinha um canhão de provavelmente 2 ou 3 polegadas.Também se viam três metralhadoras na torre de observação", contou o foguista do OlindaSinésio Catoliano.

    "Realmente era um submarino de pequeno porte, tipo de bolso. Não se compreendecomo poderia cruzar o Atlântico e regressar a seu país sem receber abastecimento decombustível. É indubitável que deve ter sido abastecido por um navio-mãe. Embora oBrasil não esteja em guerra com a Alemanha, sabia que podíamos ser atacados",completou o comandante Benemond, demonstrando não estar bem informado sobre oestremecimento das relações dos dois países.

    Depois de 18 horas de espera no mar, toda a tripulação do Olinda foi resgatada pelonavio norte-americano Dallas. Isso, porém, não diminuiu o impacto da notícia no Brasil.

     Na capital federal, o novo ataque era noticiado com destaque por O Jornal.

    "Afundado o Olinda por um submarino de bolso." E o subtítulo: "Após canhonaçoso navio submergiu em