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O BEM DE JOB

Américo Pereira

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Covilhã, 2011

FICHA TÉCNICA

Título: O Bem de JobAutor: Américo PereiraColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: José M. Silva RosaUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2011

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Américo Pereira

ConteúdoA importância de Job . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3As perguntas de Job . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6Etapas de demonstração do absoluto... . . . . . . . . . . . . 15O processo de acrisolamento de Job . . . . . . . . . . . . . 19Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

A importância de Job

Em Job e com Job, estão postas todas as grandes questões paradig-máticas de sempre relativas à humanidade quer enquanto definiçãoprópria individual e pessoal do que é a entidade humana quer en-quanto definição própria específica. E tal acontece porque em Jobse lida com um modelo ontológico, precisamente o modelo ontoló-gico de humanidade. Ora, tal modelo é tão radicalmente ontológicoque não diz respeito apenas à cultura e tempo em que se manifesta,referindo-se, outrossim, à mesma essência e substância humanas.É um texto trans-temporal, trans-histórico, trans-cultural, pois dizda transcendental, isto é, universal realidade humana, ontologica-mente, paradigmaticamente entendida.

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Não temos qualquer pejo em afirmar que este texto é não ape-nas o fundador de uma verdadeira globalização, precisamente aglobalização do sentido propriamente humano do ser humano, maso fundador da possibilidade de entendimento entre os seres huma-nos como realidades transcendentalmente humanas, isto é, univer-salmente ontologicamente semelhantes em sua mesma matriz, di-ferentes em seu pormenor, semelhança e diferença concomitante-mente fundadoras em acto do que cada ser humano é em sua mesmaradical pessoalidade.

Todos criaturas de um mesmo criador, todos reconhecíveis nabondade dessa criação, bondade não apenas possível, como é ocaso do casal genesíaco primeiro, mas concretamente real. A men-sagem do Livro é clara: ontologicamente o ser humano foi criadocomo um dom de bem, que é possibilidade de um bem maior, rea-lizável apenas através de seu mesmo acto e de nada mais. O textositua-se, assim, logo, ao nível mais alto e radical do absoluto dabondade criatural, como absoluto do dom de possibilidade de bemofertado pelo criador. Criador que, imediatamente, se retira, seafasta, de modo a que a criatura possa ser livre.

A distância política de Deus é necessária para que a liberdadehumana possa ser, podendo ser apenas na plenitude de uma acçãoautónoma. A presença de Deus mantém-se através do dom criatu-ral, como possibilidade de bem. Possibilidade que implica neces-sariamente, porque é possibilidade e não necessidade, a tambémtranscendental possibilidade de mal. É neste espaço lógico trans-cendental de possibilidade de bem e mal que Job vai agir e definiro destino da humanidade.

É, assim, óbvio, a partir da leitura do texto, que a liberdadeirredutível própria do ser humano só é possível através do campo deimpresença directa de Deus: plano transcendental de possibilidadede acção autónoma do ser humano. Mas esta autonomia de acçãonão é algo que esteja absolutamente afastada do acto criador deDeus: foi este acto que a instituiu; nela permanece como absoluto

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de esse dom criatural, que nada pode apagar ontologicamente, aque apenas a infidelidade do ser humano pode pôr obstáculo.

Ora, é exactamente esta fidelidade do ser humano ao absoluto– e absoluto de bem – de que depende e que é nele a presença dodom de Deus, e de Deus através do dom, que é laboratorialmentetrabalhado em Job, obra literária, na figura de Job, sujeito de umacrisolamento que é paradigma de todo o sofrimento e de toda apossível vitória do ser humano sobre tudo o que procura negar asua mesma especificidade e pessoalidade, propriamente humanas.

Este modelo é único e, como único, posto de uma vez por todas.É universal, pois diz respeito a todo o ser humano de sempre. Re-sume em si todas as questões, e são imbricadamente infinitas, queo ser humano pode pôr relativamente a si próprio em sua mesmagrandeza humana, em busca de sua definição activa como, relem-bramos, propriamente humano.

Job é a variável X humana, universal, que pode ser substituídapor qualquer concretização pessoal, indiferente a género, idade, sí-tio, tempo, etc. Job somos todos nós. Deste modo, as perguntasde Job são as nossas perguntas, aquelas de que somos capazes,aqui e agora, mas também todas aquelas de que todos os outrosseres humanos são capazes, foram capazes e serão capazes, comoquestionamento fundamental e radical acerca do que é ser-se umser humano, na plenitude possível da mesma humanidade quer emcada singular ser humano quer na universalidade de todos os sereshumanos, passados, presentes e possíveis futuros. Mas as dores e osofrimento de Job também são os nossos, na sua mais radical pos-sibilidade, e, assim, possível actualidade e, concretizados, actualrealidade.

Não haja, no entanto, qualquer ilusão, pois, não há possibili-dade alguma de encontrar respostas cabais para as perguntas deJob: as respostas, e é a maior lição de Job, são o próprio acto deJob. Se bem que Job, o livro, e Job, o personagem, sejam produtode uma inspiradíssima arte literária e, assim, realidades fictícias,

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isso a que se referem, a mesma grandeza ontológica do ser hu-mano, não o é. Se não há qualquer resposta possível artificiosa,isto é, puramente pensada, se ninguém pode fornecer um protocolode respostas certas às questões por Job suscitadas, já todos podem– e, de facto, têm de – dar resposta com sua mesma acção e paixãoao infinito questionar que é a mesma humana vida em seu acto, di-nâmica sempre em balanço dialéctico entre a salvação e a perdição.

Assim sendo, nada mais importante do que as perguntas deJob. Consideremos, pois, algumas dessas perguntas, sem ilusãode exaustividade, muito menos de sabedoria.

As perguntas de Job

Como vimos, as perguntas de Job são as perguntas fundamen-tais de toda a humanidade. Não de uma humanidade do tempo emque a obra Job foi escrita, não da humanidade hodierna, não deuma qualquer futura possível humanidade,1 mas do que é a huma-nidade de sempre. A obra Job e o personagem Job que nos apre-senta e cuja acção narra não se referem a um qualquer ser humanohistórico, situado, redutível a factores, sempre externos, contex-tuais, genéticos ou teleológicos. O Job que nos é narrado é umaforma paradigmática, que consubstancia em sua mesma realidadenoético-lógica tudo o que é essencial e possivelmente substancialna mesma humanidade. É, assim, modelo antropológico funda-mental. Mas não é um modelo antropológico qualquer, antes o mo-delo antropológico que se alicerça na exploração heurística mais

1 Relativamente ao absoluto que é a sua presença ontológica em acto, toda arestante humanidade mais não é do que uma possibilidade: analéptica, na formade uma possível, actual memória; proléptica, como pura possibilidade de ser.Nada mais.

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rigorosa possível do que é o fundamento essencial ontológico damesma realidade humana, já pessoal.

Pese embora o anacronismo histórico, este texto é o mais im-portante que há acerca da fundamentação ontológica do que é serpessoa (a realidade histórica concreta da humana inteligência nãose confunde com a grandeza própria das descobertas da erudiçãohistoriográfica). Job, como narrado em sua acção e paixão – pai-xão frequentemente sobrevalorizada relativamente à acção, numaescolha inexplicável em termos de estrita racionalidade e lógicapróprias da mesma narrativa –, define, precisamente através do pró-prio conteúdo da narrativa, isso que é o ser humano. Em Job, estáem causa a ontologia própria do ser humano.

É esta a primeira grande questão que aqui é posta – e respon-dida: o que é isso que é o ser humano? E isso não apenas relativa-mente, na sua relação com os outros seres humanos, mas sobretudocom Deus, mas, fundamental e fundacionalmente, em termos abso-lutos: que absoluto é este que ergue ontologicamente o ser humanocomo tal?

Veremos que este absoluto depende de uma relação, mas nelanão se esgota. E é porque este absoluto tem de ser mostrado, em ena relação, mas com ela não se confundindo ou a ela não se redu-zindo, que isso que há que provar – e é o mesmo Job – tem de serliberto de toda a proximidade, mais, tem de ser afastado de toda aproximidade. No limite, tem de ser retirado da relação de e comJob tudo o que não for essencial e substancial. Assim sendo, queficará, se é que ficará algo?

Se algo permanecer, isso que permanecer será isso que é o ab-soluto essencial e substancial de Job, isso que nada pode substituir,isso que constitui absolutamente, em e para Job, o absoluto onto-lógico da diferença entre ser e não ser. E esta diferença é algo deinfinitamente poderoso. Esta diferença é isso que, mais tarde, seráchamado de “pessoa”. Esta diferença é o bem de Job, ou, comoo próprio Deus quer manifestar no início da obra: Job como bem,

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bem ontologicamente entendido. E é neste entendimento ontoló-gico do bem como dom inicial de possibilidade que se pode ali-cerçar toda a possibilidade de intuição de qualquer outra forma debem, apenas passível de ser como tal entendida a partir deste pa-radigma íncito ao próprio ser de cada pessoa, como o absoluto dadiferença entre ser o que é – nisso absoluto, sendo isso o bem – e onada, absolutamente. Todo o sentido do bem nasce aqui e apenasaqui.

Pode perceber-se facilmente que o encontro com este bem, queé o próprio Job em sua mais radical dimensão ontológica própria,isso em que o próprio Deus não pode tocar sem anular isso que éJob, só pode acontecer se houver um processo de acrisolamento,em que Job se encontre negativamente com tudo o que não é, nele,essencial e substancial. E é este encontro que é visto tradicional-mente como o “mal” de Job. Mas, para Job, não há mal, há apenaspaixão e a paixão não é um mal, é um mero instrumento (e, comotal, boa).

O que há em Job, durante o período da sua provação, é so-frimento, um sofrimento propositadamente levado ao extremo dopossível e do humanamente suportável, pois trata-se de fundar umparadigma irrefutável, mas nada há de propriamente mal neste so-frimento.

O que acabou de ser dito não pode ser confundido com a afir-mação de que no Livro de Job, não há mal. Há e muito, mas nãopara Job, não com Job.

Há dois tipos de mal presentes nesta obra. O primeiro é o que éproduzido pela mulher de Job e pelos seus falsos amigos, um malessencialmente político, de relação interpessoal, com origem éticana interioridade de cada um destes personagens. É um mal que di-rectamente interessa Job e, indirectamente, pelo mal que faz a Jobe pela denegação da sua bondade, interessa Deus. No fim da obra,Deus lida com estes elementos humanos segundo o bem que pro-duziram ao longo da narrativa, dando-lhes a merecida recompensa.

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A mulher e os falsos amigos de Job usurpam o papel malé-fico dos fazedores de mal, pois, ao contrário de Satã, que se limitaa exercer laboratorialmente uma terrível, mas necessária, experi-mentação, a mulher e os falsos amigos atacam Job de uma formatotalmente infundada na realidade. São a definição laborante doque é o mal em sua valência propriamente moral, aliás, única quepode merecer sem equívoco a denominação de mal. Todo o malbebe aqui a sua fundação. Todo o mal é este atentado humano con-tra o melhor bem possível. É este mal que impede a “cidade deDeus”. É o mal da denegação do acto de amor. O mal que aniquilao outro pela recusa de querer e fazer o bem dele pelo bem dele.É o mal que nega, melhor, quer negar o absoluto do bem que é oacto de amor que põe em cada criatura todo o bem incoativo de quenecessita para poder ser em si e por si. O mal que nega a bondadecriadora de Deus.

O mal que é acto parasitário de um ser humano que usa do bemque recebeu como dom de possibilidade de bem próprio e comum,dom que usa não apenas como fundamento de acção perversa dereal actualização menor de bens maiores possíveis, mas como baseontológica para negar a bondade de tal mesmo dom. É o mal doradical suicídio do ser humano através da negação de sua mesmafundamental bondade. É o mal que o Satã espera de Job, a mulherlhe pede, lhe exige, e do qual os falsos amigos o acusam infunda-damente. O mal que nega o que há de mais profundamente bomno ser: o seu poder-ser absoluto, como absoluta oposição ao nada.Possibilidade dada por Deus. Este mal, assuma-se a prosopopeia –que é real em cada seu agente humano –, quer o nada, impossibili-dade de todo e qualquer bem. E aqui, neste querer o nada, radica asua gravidade.

O outro “mal” que surge nesta obra (“mal” que propositada-mente escrevemos entre aspas altas) refere-se ao destino dado aosbens exteriores de Job, necessariamente aniquilados na primeiraprovação, a fim de testar o nível mais superficial da fidelidade, dita

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e suposta fundamental, de Job a Deus. Destes bens, salientam-seobviamente os seus filhos. Esta aniquilação, necessária dentro daterrível economia da obra, não pode ser humanamente vista ou ditacomo um bem. E nós só temos esta possibilidade, precisamentehumana, de inteligir e de dizer.

Esta aniquilação instrumental não é um bem, não para estanossa finita inteligência. É algo antitético de um bem, claramente.Será, assim, um mal, como começámos por dizer?

Se quisermos que isso que é o mal moral, presente na acçãoda mulher e dos falsos amigos de Job, possa ter um significadopróprio, irredutível no que é, necessariamente não-equívoco, nãopoderemos chamar a tal “mal”. Bem sabemos que há quem fale de“mal físico” e de “mal metafísico”, mas basta olhar para a realidadepuramente física, isto é, sem inteligência ou vontade própria, paraque não faça qualquer sentido a afirmação de um mal físico. Jáquanto ao “mal metafísico”, a sua simples posição é imediatamentea queda num necessário e, aqui sim, real maniqueísmo, algo a quenos recusamos.

Para mais, e de um ponto de vista da mesma metafísica íncita naBíblia, em seu mesmo início genesíaco, não faz qualquer sentidoqualquer destes supostos males, a partir da reiterada contempla-ção de Deus aquando da criação, em acto absoluto, de cada entecriado como bom. Antes do ser humano e do seu acto de rupturacom esta bondade criadora, nada havia de mal. O mal era ape-nas a contra-possibilidade teórica do bem da acção possível doser humano, possível anti-prémio necessário para que a liberdadenão fosse irreal. Mas a grandeza do corte operado pelo ser humanocontra Deus e a sua criação – contra o próprio ser humano, queimediatamente nesse corte teve a sua justa recompensa terrena –não tem alcance ontológico para diminuir a obra de Deus: pensartal é simplesmente blasfemo, em termos puramente lógicos.2

2 Muito antes de ser um texto “religioso”, Job é um texto ontológico, relativoao “logos” próprio da realidade humana, em sua mais profunda dimensão pro-

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O que o pecado conseguiu foi macular o pecador, não Deus oua restante criação. O que Job é posto a provar é a exacta presençadesta mesma bondade como possibilidade – e, nele, realidade –fundadora de toda a criação, mesmo do ser humano, maculado, masnão anulado em sua bondade. O que se pede a Job é o baptismoontológico do ser humano como propriamente humano, isto é, coma grandeza humana possível que Deus nele pôs, actualizada, naforma da manutenção indefectível de uma fidelidade absoluta aoprincípio ontológico de bem nele presente e que, mais uma vez,Deus vê que é bom, bom em Job, e como tal manifesta ao todo dacriação.

É com esta visão de uma real, concretíssima bondade de suacriatura, Job, que Deus quer que seja manifesta, que a narrativa co-meça. Posta esta divina e apenas divina evidência, desencadeia-setodo um processo, impossível de parar antes de, por si só e semqualquer interferência, sobretudo divina, chegar a uma conclusãoprobatória da verdade factual da visão e proclamação de Deus.Deste ponto de vista, não é Job que está em causa, mas o próprioDeus, o seu “Logos” e a sua própria bondade lógica e ontológica.

Não é, assim, de espantar que esta obra seja a que mais se avizi-nha, e necessariamente, de uma posição radical e inexoravelmenteateia: se Job falhasse a aposta de Deus, tudo colapsaria num totalsem-sentido.3 O triunfo de Job é o triunfo subjectivo e objectivo

priamente ontológica, irredutível. Não se trata, também, de um texto de antro-pologia, antes de um texto de “cosmologia”, se se perceber que, com a definiçãoontológica de Job, se dá a necessária definição ontológica de tudo, por oposiçãoa nada. Sobre isto, então, pode-se construir, por exemplo, entre outras coisas,um pensamento religioso.

3 Esta aposta corrobora a famosa – e muito posterior cronologicamente, sebem que logicamente coordenada – aposta de Pascal. O que está de fundamen-tal em jogo é o mesmo, do ponto de vista e de interesse do ser humano. Naaposta de Pascal, Deus está ausente, sendo apenas um suposto objectivo pos-sível e provável – isto é, a provar, eventualmente – para um acto de vontade ede inteligência de um ser humano supremamente inteligente e voluntarioso. Aaposta de Deus em Job, aposta também no bem absoluto da humanidade – a sua

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da fé – o grande encontro da fé e da inteligência dessa mesma fé–, mas a sua derrota seria a vitória definitiva do ateísmo. Assim,daqui poderemos inferir duas questões fundamentais, a que Job res-ponde positivamente: “faz sentido haver o ser humano?” e “fazsentido haver Deus?”.

É claro que estas duas respostas afirmativas não são dadas di-rectamente de forma teórica e abstracta, mas apenas através do actoincarnado da acção fidelíssima de Job. A teoria, posterior e for-mulável pelos leitores de Job, decorre precisamente desta acção eocorre como sua consequência necessária, como se imporia comosua consequência necessária a vitória ateia nascida de uma acçãoinfiel. E o mundo teria de ser ateu.

É por causa desta estreita e necessária relação entre o acto deJob e a consequência teórica que não pode a narrativa deixar deser informada por uma tão grande – é absoluta – necessidade derigor, no que é a conformação da primeira experiência laboratorialcientífica registada na história da humanidade: nenhum pormenorda experimentação operada sobre Job pode falhar, não pode haverqualquer dúvida acerca da completude da provação e da comple-tude da resposta de Job.

A confiança não tem graus: é um absoluto. Job tem de pro-var que é fiel a Deus. Tal quer dizer, numa linguagem que é néscia,“totalmente” fiel. Apenas deste modo pode a questão crítica, possi-velmente dissolutiva da mesma ontologia humana, do Satã recebercabal resposta. Apenas esta cabal resposta permite o triunfo deJob, a derrota de Satã e o triunfo de Deus. Em cada acto de Job,em cada afirmação reafirmativa da sua fidelidade ao dom de bemque recebeu de Deus, Job salva o ser humano e salva Deus para o

salvação –, difere porque Deus nela é uma certeza. Difere também pelo factode ser o próprio Deus – que, na aposta pascaliana, é o provável que sustenta apossível salvação do ser humano –, a apostar. Esta aposta de Deus implica umaconfiança absoluta na bondade de Job, mas também a evidência divina da estu-pidez da restante humanidade. Mas, ironizemos, ainda não tinha nascido Pascalou o seu mestre, Cristo...

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ser humano. Deus não precisa de Job, mas o ser humano, crenteou não, precisa de Job, precisa de que este prove que é bom e queDeus é bom, porque é isso que corresponde transcendentemente àmarca transcendental absoluta do bem presente no mais fundo daontologia do ser humano.

Mais do que para o crente, para o ateu, este sentido de um bemabsoluto – para ele, de origem diversa da divina – presente no serhumano é o único motivo racional que lhe pode permitir algo comocontinuar a viver. Nenhum outro “logos” há ou pode haver que per-mita o absoluto mínimo de sentido que, único, pode manter a vidahumana como propriamente humana. É este mínimo que os tiranosprocuram sempre tirar àqueles de quem querem fazer escravos, porvezes conseguindo-o, como ficou patente no caso de certas pessoasaniquiladas, como propriamente pessoas, nos campos de concen-tração nazis, exactamente porque lhes foi feito perder esta intuiçãode um radical bem nelas presente.4 Então, para quê continuar a vi-ver? É talvez a grande questão de Job: para quê ser, se não há umabsoluto de bem?

Job, paradigma, é muito exigente. Mas Job é criação de Deus,não se esqueça. Assim sendo, bem sabemos que o que vamos afir-mar é terrível, mas: não há que ter pena de Job.

À questão “onde está Deus, quando Job sofre?”, não pode haveroutra resposta que não seja: “está onde deve estar, na distância ab-soluta que, única, permite o absoluto de liberdade, que permite queJob possa ser”. Este aparente abandono, sem sombra de qualquerdúvida doloroso, é a fonte de todo o sofrimento, pois transformaem sem-sentido, pelo menos aparente e temporário, a dor que ha-bita o ser do provado. Como é óbvio, se Deus estivesse presente, ador de Job nunca seria sofrimento, mas apenas mera dor, pois ha-veria sempre um fim de bem possível para o ser humano doloroso,fim que é o mesmo Deus presente, dado na presença de Deus.

4 Realidade patente, exemplarmente, na obra de Primo Levi, Se questo è umuomo, Torino, Einaudi, 1958.

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Mas, sem este afastamento, como testar Job? Sem o sofrimentoque o afastamento permite e provoca, como testar o limite da gran-deza ontológica do ser humano?

Tal não quer dizer que o sofrimento seja necessário, mas quea sua possibilidade é. A possibilidade do sofrimento é necessária.Se a alegria situa imediatamente o ser humano na glória de Deus– sendo, por tal, raríssima –, o sofrimento aliena, enquanto dura,o ser humano de Deus, da sua presença, vista do ponto de vistahumano. O sofrimento é esta alienação de Deus, seja qual for asua concretização.

Mas apenas fora da presença de Deus a fé faz sentido, pois, nasua presença, não há fé, mas contemplação, que, em acto, anulaimediatamente a fé: o saber e o sabor de Deus não se acreditam,manducam-se, vivem-se, são-se. Quanto mais aparentemente afas-tado de Deus estiver o ser humano, mais necessita do exercício dafé. O que se passa com Job, nisso modelo definitivo, é que está detal modo afastado de Deus – a mulher e os amigos disso se encar-regam, extremando a parte física e moral do acrisolamento de Job– que, perto do fim, já nada mais sobra de Job senão o mesmo actode fé. Acto que se torna em algo de patentemente absoluto no seiodeste deserto de sentido.

Se este acto fosse anulado, seria a aniquilação de Job, com asconsequências que já entrevimos. Mas só assim a provação de Jobfaz pleno sentido. O acto que se nos pede para com Job, para comeste paradigma noético e para com todos os Jobs concretos quehabitam o mundo, é que os amemos, que queiramos o seu bem,não que sintamos algo relativamente a eles, algo que é totalmenteinútil. Mas, perante Job, há que pensar que o Job modelo sou eucomo ser humano possível e que o acrisolamento pedido a Job mepode ser pedido a mim. O possível crente irredutível sou eu, maso possível ateu irredutível também sou eu. Job sou eu. E o quese me pede é que eu seja digno de Job, pois só assim sou digno de

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ser, absolutamente, pois só assim sou digno da grandeza ontológicaque Deus em mim pôs.

Etapas de demonstraçãodo absoluto da bondade do ser humano

O Deus de absoluta bondade em acto criou uma possibilidadede bondade, isso a que chamamos “o mundo”, como algo de bomenquanto possibilidade de bem. O acto próprio do mundo, emsua mesma realidade total inicial consiste numa infinita possibi-lidade de bem: tal é o dado ontológico absolutamente positivo.Esta possibilidade destina-se a permitir que a actualidade criadapossa desenvolver-se autonomamente, partindo do mesmo abso-luto de bem que nela há como possibilidade.

Sem que Deus interfira directamente em tal desenvolvimento, oque arruinaria a sua possibilidade autonómica, o mundo modificou-se, nem sempre segundo o melhor de suas possibilidades. Ontolo-gicamente, esta distância de grandeza ontológica entre o melhorpossível permitido pela possibilidade da criação e o realizado é oque se chama “mal”, em sentido ontológico, por oposição a bem,como o que há de absoluta positividade de ser em cada ente, qual-quer seja.

Assim, o mundo que se nos depara quando começa a narra-ção do drama de Job é um mundo misto entre o absoluto bem desua possibilidade e o bem e mal de sua concretização pós-criação.Deus sabe isso, o Satã sabe isso, provavelmente todos sabem isso.Mas Deus sabe algo que aparentemente mais ninguém sabe: que háum ser humano, um homem,5 que não faz parte do misto de bem e

5 Note-se que, condições culturais à parte, nada de essencial ou de substan-cial impede que seja um ser humano mulher. Tal é muito significativo, dado quea obra não é histórica, mas ontologicamente paradigmática.

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mal, um homem que é bom, tão bom quanto permitia o melhor desua possibilidade. Este homem não conhece o mal porque nuncao praticou, isto é, está isento de mal, em seus actos, nunca ficouaquém de seu bem possível em cada um deles, em todos eles. Re-alizou na perfeição todo o bem possível que nele Deus pôs comosua mesma possibilidade. Assim e só assim, é perfeito. E Deussabe que o é.

Não interessa que este Job seja mundanamente irreal, segundoa nossa dimensão própria de mundo, pois não é a mundaneidadehistórica que aqui está em causa – seja a de Job seja outra qualquer–, mas o modelo ontológico da humanidade em sua realidade me-tafísica de possibilidade, de possibilidade de bem e correspondentepossibilidade de mal. A importância fundamental da obra Job re-side precisamente aqui, no facto de não ser uma obra histórica,mas precisamente trans-histórica, metafisicamente paradigmáticano que à entidade própria do ser humano diz respeito, não comocoisa realizada, mas como coisa de possibilidade de realização ede realização com características de inalienável autonomia.

Deste modo, e em concreto, na sequência da possibilidade deacção própria que Deus nele pôs, Job foi absolutamente fiel – omesmo é dizer, simplesmente, fiel – à vocação de si por Deus. Afidelidade de Job não se inicia aquando da provação, ela é perma-nente, já vem desde sempre, é nela que Deus se baseia para podermanifestar a bondade de seu servo. Job, durante a fase de provação,apenas se limita a ser o que sempre foi, em contexto diferente, emque o bem feito já não é traduzido numa recompensa com esse bemalinhada. Não concomitantemente. Durante o acrisolamento, nadaparece poder recompensar o bem de Job, a sua fidelidade antiga epresente. Nada do que Job faz é feito na expectativa de uma qual-quer recompensa, pois, no seu horizonte de inteligência já nada háque possa ser visto como bem de retribuição de e para seus actos.

Mas é esta a condição que Satã percebeu ser necessária, parapoder derrotar Job, e Deus percebeu como necessária, para poder

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provar a bondade de Job. O bem de Job tem de ser absoluto, e,neste sentido, tem de estar desligado de tudo, menos do motor defé de e em Job. O bem de Job há-de valer tanto quanto a sua mesmaconfiança em Deus e na sua aliança ontológica presente no acto decriação de Job por Deus. Mais nada vale, mais nada pode valer.

Assim sendo, não há sequer uma questão de justiça. Repeti-mos: não há uma questão de justiça no drama de Job. O sentidode justiça está totalmente ausente deste drama. E está porque temde estar. É sob o regime da justiça que o Satã põe a experimenta-ção ontológica feita a Job. O Satã é muito inteligente e sabe que,sob este regime, Job está, à partida, perdido. Mas, e é o funda-mento do possível ateísmo, necessário, aliás, se esta fosse a teseprevalecente – isto é, a tese do Satã –, o próprio Deus também estáperdido, como Deus do bem, se a tese do acusador vingar. E tudoé posto nas mãos, humaníssimas mãos, de Job.

Mas é aqui que está presente o erro do Satã (se quisermos acei-tar que procede convencido da bondade de sua tese, o que não écerto), pois, este tem de saber que Job é criatura de Deus, isto é,que nele está presente o princípio de bem que Deus lhe imprimiuquando o criou. E deve saber mais, que Deus sabe mesmo que Jobé bom, ou que, na única alternativa logicamente possível, mas ape-nas para um descrente na absoluta bondade de Deus, Deus está amentir. Ora, se Deus não mente, e o Satã tem obrigação de o saber,e se Deus diz que a sua criatura é boa, então, a sua criatura é boa, e,estando o destino do homem e de Deus nas suas apenas humanas,mas humanamente boas mãos, está bem entregue.

Tal não quer dizer que haja uma qualquer necessidade de Jobser bom e, portanto, de vencer a provação, o que faria de Job umamarioneta nas mãos de Deus e o bem por ele feito apenas umamediação mecânica do bem operado por Deus através de sua ma-rioneta. Tal quer dizer que, e é o que está em causa neste texto, doponto de vista humano e da relação da humanidade com Deus, Jobpossui em si, aliás, coincide no mais fundo, ontologicamente, de si,

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com a possibilidade de fazer o bem, logo, de manter a sua fideli-dade a Deus. Esta possibilidade é todo o seu bem, como se percebequando já nada mais tem, quando o mesmo Deus se lhe revela, naprimeira teofania, como algo indigno da relação que aos dois man-tém em união de fidelidade, isto é, quando Deus se manifesta a Jobcomo infiel na e da sua relação, momento mais doloroso e cru detoda a provação e momento do maior abandono possível, em queo ser humano é erradicado da sua ligação com Deus, através dapalavra do próprio Deus.

É o momento supremo, em que Deus joga tudo, em que a infi-delidade de Job, neste momento aparentemente tão fácil de operar,aniquilaria todo o sentido e toda a possibilidade de sentido parasempre. Mas Job não vacila. Mesmo perante uma teofania que pa-rece ser a negação de todo o bem em que sempre apostou, mantém-se fiel à relação, não a uma relação qualquer com um Deus qual-quer, mas à relação com o Deus de bondade, que no mais fundo deseu ser ainda mantinha presença: quando o próprio Deus pareciaesquecido da aliança com o ser humano, é Job que mantém vivo olaço unitivo fundamental, laço de amor. Job nunca deixou de serfiel ao que amava e o que amava era a presença da marca absolutado absoluto bem em si.

Há, assim, um ser humano que cumpriu o desiderato divinode sumo bem realizado para um sumo bem possível, no sentidode humanamente realizável. Esse ser é Job. A criação não é umrelativo falhanço universal, e, portanto, um falhanço universal, elaé bem sucedida, pois foi possível encontrar um ser que se cumpriuno melhor possível de si próprio, assim, cumprindo a vontade debem de Deus.6 Tal é decisivo.

Tal marca um ponto de inflexão possivelmente terrível: se a cri-

6 Pense-se no que seria um mundo em que nenhum ser humano tivesse atin-gido tal bem. Mas tal parece ser o mundo em que a humanidade tem vivido. Masquem pode dizer que não houve, nunca houve, um só qualquer Job real, soldadodesconhecido da perfeição do bem? É claro que teologicamente tal possibili-dade de nunca ter havido ser humano algum bom foi anulada pela incarnação de

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ação não é um mero capricho infantil de um deus menor e tonto,mas a oportunidade de ser para uma nova forma de entidade, todaa criada, para que possa aceder a uma perfeição que, se bem quefinita, é, em sua mesma finitude, tão perfeita, se concretizar o me-lhor possível de si própria, quanto o é a divina em sua infinitude,então, que realidade é essa em que nenhum ser humano foi tãobom, enquanto ser humano, como uma qualquer pedra é boa en-quanto pedra? A liberdade diminui, em vez de engrandecer? Ainteligência degrada, em vez de elevar?

Job responde que não. Tal quer dizer que toda a humanidadepode responder que não, mostrando o relevo próprio de sua possí-vel bondade, em sua mesma perfectibilidade e perfeição actual.

Se nada houver neste criado que cumpra tal possibilidade, farásentido que algo desta nova forma continue a ser? Não será melhoraniquilar esta possibilidade incumprida? É a questão de Sodoma eGomorra, que teve a resposta conhecida. Em Job e com Job, joga-se, assim, a possibilidade de ser, em absoluto, da humanidade.

Pergunta-se, de novo, se não houver um único ser humano quese cumpra como o melhor possível de si próprio, isto é, que sejabom, tão bom como Deus lho permitiu ser, valerá a pena continuara haver humanidade? É esta uma questão que emerge, fundamen-tal, da leitura de Job.

A humanidade é uma fatalidade ou é um acto de livre possibi-lidade, realizada em bem? Estas questões são válidas para o tempode quem escreveu Job e são válidas para o nosso tempo. E as suasconsequências também.

O processo de acrisolamento de Job

Não basta que Deus saiba que Job é bom, tal tem de ser de

Cristo. Mas pensar que nenhum ser humano, apenas humano, nunca se aproxi-mou sequer da perfeição de Job é desconcertante...

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conhecimento universal, para que possa ter algum efeito pedagó-gico e soteriológico. Assim, há que o patentear: se o exemplo deJob deve servir para motivar a emulação da acção do ser humanono sentido do bem, e de um bem absoluto próprio do ser humanocomo criado por Deus, marca indelével de Deus nele, aproxima-ção vivida do absoluto absolutamente absoluto do criador, há quetornar manifesta a sua bondade e precisamente como bondade ra-dicada no mesmo acto criador divino, isto é, na presença de umacto incoativo que assinala absolutamente a vocação ontológica,ética e política do mesmo ser humano.

Tal vai ser o papel da dialéctica empírica e pragmática montadacom o Satã. Deus faz o Satã olhar para Job e ver que ele é bom. OSatã não desmente Deus, mas, fazendo o seu papel, papel crítico,isto é, de provocador de crise, no sentido de uma absoluta distinção,lembra o facto de a bondade aparente de Job poder dever-se aofacto de tudo lhe correr de feição. Deus sabe que a real razão não éesta, mas, de facto, para quem está por fora, tal hipótese é óbvia etem de ser posta e aceite. Se há que mostrar que Job é mesmo bom enão apenas parece ser bom, há que eliminar esta possibilidade, peloque Job tem de ser afastado de todo o bem circunstancial externo,para que não possa parecer que há uma relação de causa entre osbens de que usufrui e a sua bondade, sendo esta efeito daquela enão o contrário.

O Satã recebe ordem para alienar todos os bens exteriores deJob, mas para não tocar no próprio Job. Tal é consumado com umaprecisão laboratorial total, perdendo Job tudo o que não diz respeitoimediato e directo à sua mesma pessoa. Conhecemos a resposta deJob a este seu novo e imerecido estado, que, pela sua grandeza ebeleza, aqui transcrevemos: “Saí nu do ventre da minha mãe e nuvoltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito sejao nome do Senhor!”.7 Job não cede à dor e ao sofrimento, não cede

7 Job, 1, 21. Versão portuguesa da Nova Bíblia dos Capuchinhos, Lis-boa/Fátima, Difusora Bíblica, 1998, p. 797.

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perante a injustiça que sofre, permanecendo fiel a Deus. No finalda primeira provação, Deus parece ter razão contra o Satã.

A dialéctica heurística entre Deus e o Satã prossegue, cha-mando Deus a atenção do seu servo acusador para o facto de Jobter agido bem, mantendo-se bom. Também agora, o Satã não des-mente Deus, mas lembra que o dano externo não é, nunca é o danofundamental, pelo que há que tocar no próprio Job, em seu ser,em dimensões de seu ser, ameaçando o seu ser, para que se possaavaliar da sua fidelidade e consequente bondade.

Deus, que sabe que assim é, ordena ao Satã que proceda emconformidade, mas sem pôr em causa o ser de Job no que temde absoluto, em termos de vida, pois nisso só o próprio Job devepoder tocar. Nem ele, Deus, o vai fazer, pois o que está em causaé a adesão profunda de Job ao seu ser, como dado por Deus ecomo possibilidade de bem e, para que a fidelidade de Job possaser testada até ao fim, nada, senão Job, pode tocar nesse absoluto.Este é a pedra de toque. Mas pedra a que só o próprio tem acesso.

Deus faz com que a grandeza do ser humano limite quer a gran-deza satânica quer a grandeza do próprio Deus, na relação com ocriado: há um absoluto da criatura que o próprio criador tem derespeitar, a fim de respeitar o mesmo acto de criação e de se respei-tar a si próprio como criador. Que distância para o sentido de umaomnipotência decalcada da perversão tirânica humana projectadaem Deus... Que grandeza de inteligência aqui se manifesta!

Job, transformado numa pústula viva, sofrendo de uma dor ini-maginável por parte de quem não a sofre – e, a de Job, ninguémmais a sofre, ninguém mais a pode sofrer, pelo que é, no que é,verdadeiramente incompreensível –, mesmo maldizendo tal sofri-mento, nunca nega o bem que em si sabe presente como dom deDeus: “Se acolhemos a felicidade como dom de Deus”... (2, 10).8

Até aqui, tempo e modo da relação com Deus e apenas comDeus, Job mantém a sua fidelidade. Parece que Job tinha triunfado

8 Ibidem, p. 849.

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da provação a que fora sujeito. Mas, apesar de o Satã já não tornara intervir, ainda há muito em Job por explorar em termos de suaresistência. Note-se que, apesar de toda a dor e sofrimento emque Job está mergulhado, Job ainda não está só: ainda sabe dapresença de Deus em si, ainda tem como possível o apoio políticode terceiros, nomeadamente da sua mulher e de seus amigos. Nãopoderá este apoio servir de consolo ou de mitigação para a dor e osofrimento de Job?

Como é óbvio, pode. Mas não vai ser isso que se vai passar: oacrisolamento de Job vai prosseguir e aprofundar-se, alargando-seda sua esfera puramente ética para a sua esfera política. A sua rela-ção com os outros seres humanos, que poderiam fazer a diferençapositivamente no que diz respeito a uma possível caminhada deencontro a um possível sentido positivo, vai também ser posta emcausa. Aqueles que supostamente o amariam e que, por via dessemesmo amor, poderiam suscitar o surgimento de um qualquer ho-rizonte de humana esperança ou, pelo menos, de humano conforto,que estaria de acordo com a presença do bem de Deus no ser hu-mano, vão mostrar-se os verdadeiros satãs da narração: enquantoo Satã oficial da história se limitou a executar na perfeição os ges-tos técnicos necessários para que a experiência de acrisolamentodecorresse segundo a suas necessárias regras, os supostos amigos,com quem se conjuga a própria mulher, vão muito para além doque seria o papel de um observador atento e possível consolador,sugerindo que Job se renegue ou renegue a Deus.

Talvez por mera falta de inteligência, são estes os verdadeirosdilaceradores potenciais da realidade própria de Job, não o Satãoficial. Esta característica fundamental, que aqui não aprofundare-mos, alerta para a condição de ser o ser humano o responsável pelomal, mal que não se deve a uma qualquer acusação satânica, masao agir denegador do bem por parte ser humano, denegação que,essa sim, pode e deve ser denunciada.

Como primeiro Satã humano, a mulher de Job tem um papel

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curto, mas de uma possível eficácia total, pois, o que propõe, seaceite, anulará imediatamente quer o próprio Job quer toda a ini-ciativa divina. O que propõe é, aliás, de tal modo grave para Jobe para todo o ser humano, porque Job é paradigma de humani-dade e de humanidade em crise, que ultrapassa em dano possível ainiciativa da mulher Eva da narrativa edénica. Eva conseguiu aju-dar a produzir uma humanidade ontologicamente diminuída, massalvável; a mulher de Job propõe a pura e simples aniquilação dahumanidade. É esta mulher a grande tentadora, não Eva. É esta aémula da serpente do Éden, mas sem sequer propor um vão sonhode grandeza, antes apontando logo para o nada absoluto do ser hu-mano. É o paradigma da absoluta falta de amor. O seu triunfo seriaa morte definitiva da humanidade.

A mulher de Job não propõe uma ilusória emulação com Deus,mas a denegação de Deus e a morte do ser humano. A sua respostaao espectáculo do sofrimento de Job tem três momentos: desistirda sua integridade, bondade; renegar Deus; morrer. Ora, este bre-víssimo, mas poderosíssimo programa, corresponde ao modelo doenvilecimento humano, conducente à morte do ser humano, nãoem seu sentido físico ou biológico, mas em seu sentido espiritual,isto é, propriamente humano.

Se o Satã oficial apenas se limitou a criar as condições paraque Job agisse ou mantendo a fidelidade a Deus ou não mantendoa fidelidade a Deus, nada mais fazendo, e sendo, assim, um meroagente lógico-metodológico, pois, sem a sua acção logística, o acri-solamento não teria as condições técnicas para ocorrer, a mulherdesempenha um papel muito mais profundo. O Satã oficial nuncatoca no que constitui a interioridade propriamente ética de Job,como Deus lhe ordenara. Se não o pode matar, pela razão ób-via, também não o pode forçar a agir de um ou outro modo, o quecorresponderia quer metodologicamente quer substancialmente amatar Job, eliminando isso que em Job faz propriamente dele algoque possa ser submetido a uma tal prova.

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A mulher tem precisamente a função de sondar acutilantementea parte propriamente ética de Job, pondo imediatamente em causao que é a entidade de Job como isso que pode decidir manter-se fielou não se manter fiel. A mulher procura jogar com a possível am-biguidade que existe entre a parte propriamente passional de Jobe a sua parte espiritual, activa. Se a dor e o sofrimento oprimemJob, ao ponto de este quase se confundir com uma coisa apenassofredora, então por que razão não deixar triunfar essa outra pai-xão, esta de origem puramente interior, que se consubstancia nodesejo de simplesmente deixar de sofrer? Que pode haver de maishumano do que este desejo de se furtar a uma tal ordália, ainda porcima aparentemente imerecida? Que interessa a parte espiritual, setudo o resto é uma chaga viva? A possibilidade do espírito justificaum tão grande sofrimento?

Chegados aqui, podemos perceber o quão profundo é este transeem que Job está: a investida radical da mulher expõe-lhe a e expõe-no à radicalidade da situação onto-antropológica em que se situa.A escolha de Job tem de ser feita entre a afirmação do ser humanocomo espírito ou “como” nada. O ser humano ou é espírito ou énada. Mais: a escolha pelo espírito pode implicar um horizonte devida em que nada mais haja senão sofrimento. Valerá a pena?

Valerá a pena lutar pelo espírito? Talvez seja esta a grandepergunta não óbvia subjacente a todo o processo da crise de Job.

Assim, se Job persistir em sua integridade, sabe que pode tercomo horizonte de vida apenas este contínuo sofrimento. Note-seque, embora este Job seja um Job de literatura, o que literariamentese narra é uma hipótese teórica acerca de uma possibilidade, isto é,acerca de algo que pode assumir uma forma real concreta de tipohistórico. Temos mesmo de pensar que este Job pode ser um qual-quer ser humano que vive uma situação assim paradigmatizada,mas real, tão real como cada um de nós e nossa situação, diferente,mas tão possível, à partida, quanto a aqui narrada, de Job.

Assim, o que se narra é uma realíssima possibilidade, pelo que

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a situação de Job, neste momento, é mesmo a de um homem que seencontra perante o único verdadeiro dilema da humanidade: optopor viver íntegro e posso ter como vida apenas este sofrimento ouopto por deixar esta integridade e, consequentemente, morro emnada? Todos os outros verdadeiros dilemas são variantes mais oumenos próximas deste.

Se opto por viver íntegro, então, faço-o sabendo que esta opçãopode ter de ser feita num horizonte de possível continuidade infinitado sofrimento. Assim, sei, à partida, que não há qualquer forma decomércio possível entre mim e Deus: eu persisto no bem, Deusignora esta minha persistência. Estarei completamente só e apa-rentemente abandonado em minha opção pelo bem e em meu so-frimento. Deus pode nunca responder, positiva ou negativamente,e eu nunca saberei o que vale para Deus a minha persistência nafidelidade e no bem. A situação é verdadeiramente terrível e ver-dadeiramente trágica.

Se estivéssemos num registo psicologista, poder-se-ia dizer queJob está meramente a transformar numa obsessão uma hipótese re-motamente viável de salvação. Mas não é disto que se trata, masdo serviço a uma intuição, que corresponde ao que Job sabe comoo mais profundo de si mesmo, isso em que amarra toda a sua vida eser: a presença do acto criador de Deus nele. No fundo, a intuiçãode que há um ponto tangente e coincidente entre Deus e ele pró-prio. É a este ponto que Job permanece fiel. De certa perspectiva,Job permanece fiel a si próprio, no que de melhor em si intui. É poresta razão que, se Deus não fosse, também ele, fiel a Job, a obraterminaria com um triunfo necessário do ateísmo e de um huma-nismo ateu, num horizonte de excelência de uma humanidade semDeus e sem Deus possível, pois haveria um Job superior a todos ospossíveis deuses, por ele antecipadamente derrotados através destaexperiência. Mas não é isso que acontece, na extraordinária econo-mia narrativa deste texto.

A não aceitação da defecção da primeira tarefa, isto é, o perma-

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necer fiel à sua integridade, faz com que os dois outros momentos,necessariamente a este primeiro ligados e dele dependentes, sejammomentos de reafirmação da eleição de Job: não maldiz Deus, nãoquer a morte. E não morre.

A experiência pode continuar.Estamos no ponto em que Job ultrapassou a prova que punha

em causa a sua adesão mais íntima ao bem de seu ser. Pareceria,assim, que a prova poderia ser dada como finalizada. Mas tal nãoacontece. A dimensão puramente ética, interior, de Job, ainda quepoliticamente testada, não basta. E não basta porque o que está emcausa, lembremos, não é a bondade de Job, que Deus sabe que éreal, mas a notícia universal dessa mesma bondade e a reacção queessa mesma notícia implica: o que Deus quer é que se perceba, istoé, que tudo o mais perceba – ambiente político – que Job é bom.Ora, para tal, é necessário expor Job politicamente.

A intervenção da mulher é já um primeiro passo nesse sen-tido. E um passo falhado, pois, politicamente, a mulher não en-tende Job, assumindo-o como não-bom, daí derivando o conselhoque lhe dá, impossível de ser dado se soubesse que ele era bom. Éum primeiro e fundamental momento de cepticismo humano rela-tivamente à bondade de Job.

Mas a mulher está demasiadamente próxima, pelo que não teráa distância necessária para julgar objectivamente. Como reagirãooutros observadores privilegiados, próximos, mas não tão próxi-mos? Não terão eles o necessário distanciamento? Eles conhecem,de há muito, Job. Sabem a sua história. Devem, assim, poder tersobre ele uma visão correcta.

Mas tal não acontece. Sem que se possa explorar minuciosa-mente aqui o trabalho crítico dos supostos amigos de Job, podemossucintamente notar que Elifaz de Teman, Bildad de Chua, Sofar deNaamá e o jovem Eliú não se vão dignar olhar para o Job que pe-rante eles está, informados acerca do Job que conheceram, masse limitam a acusar este ser de algo, indefinido, de uma qualquer

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mácula necessária, que desconhecem. Não hesitam em condenaralguém cuja totalidade de vida desconhecem, mas cuja vida queconhecem foi uma vida virtuosa.

Estes satãs, ao contrário do Satã oficial, não se limitam a olharpara o sujeito-objecto em causa, procurando criticá-lo, a partir doque sabem, mas inventam mal, com a finalidade de ajustar artificial-mente a situação do sofredor a uma suposta justiça divina infalívele que, portanto, não poderia deixar sofrer alguém que o não mere-cesse. E é nesta invenção de um mal de outro modo inexistente esua atribuição a um sujeito que está quase todo o mal moral pre-sente nesta narrativa. O restante está presente no acto da mulher.

Repare-se que Deus fez o ser humano para que pudesse ser bomcomo Job. Deus põe Job à prova para que não haja qualquer dúvidapossível acerca da bondade de Job. O que estes outros seres huma-nos fazem é mostrar qual é o extremo de possibilidade contrário damesma criação.

Deste modo, este texto, e é uma outra grande pergunta não ex-pressa de Job, responde à questão de quais são os limites de bon-dade do ser humano. Estes são definidos, e de uma vez por todas,por esta mesma narrativa, entre o limite máximo posto pela acção(com muita paixão) de Job e o limite mínimo posto pela acção damulher e dos falsos amigos.

Mas onde o texto nos parece ser mais claro em termos de con-sequências é no que diz respeito à questão da origem do mal: elanão é divina, nem sequer é extra-humana, mas totalmente humanae a partir de uma possibilidade metafísica de bem. Foi a esta possi-bilidade de bem que Job soube ser fiel. Então, Job prova, por meiodesta fidelidade, que a possibilidade do bem não é vã, pois há umser humano que é bom.

Mas a marca da bondade divina em Job corresponde mesmo aum absoluto, o absoluto criatural, o absoluto de bem contraditóriodo nada de Job. Por esta marca, Job está em ligação com Deus.Diria Platão que Job participa de Deus por meio deste dom. O que

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Job possui e guarda é algo de absolutamente precioso. Será queJob sabe isso?

Até agora, apesar do excruciante sofrimento em que esteve mer-gulhado, Job apenas se confrontou com entidades finitas, isto é,nunca, até agora, se confrontou directamente com Deus. Mas é elepróprio que invoca Deus, mais, que dele exige resposta (fim capí-tulo 31). Esta aparente temeridade, blasfema, dir-se-á, tem toda arazão de ser.

É que Job, para que a experiência a que está a ser submetidotenha cabal desenvolvimento, tem mesmo de se confrontar comisso a que diz e a que se tem revelado ser fiel. Job e Deus têm dese confrontar directamente, só assim pode o ser humano medir obem da sua relação com Deus. Não há outro modo. Job, em nomedo bem de Deus em si e da sua fidelidade a esse bem, isto é, Jobem nome do próprio Deus – pelo menos assim lhe parecendo –,dado pela presença de Deus, na herança ontológica que lhe deixou,convoca Deus a uma espécie de agonia final.

O momento é vertiginoso. Repare-se que, se Job tem algo aperder, parece que já não tem muito a perder – o que não é exacto,mas, visto de fora assim parece –, Deus tem a perder a aposta quefez e esta diz respeito à bondade da criação, logo, à sua mesmabondade enquanto criador. Deus tem a perder o seu merecimentoa ser Deus: se perder, o Satã ter-se-á revelado mais sábio do queDeus. As consequências são de tal modo óbvias que não merecemexplanação.

Assim sendo, no livro do sentido do mundo, este momento nãoé apenas mais um grande momento literário, cheio de emoção, maso topos em que se joga o absoluto do sentido de isso que é o pró-prio ser em seu fundamento primeiro e último, na relação com ainteligência humana. E nada mais há para nós seres humanos.

Então, do que se seguir, sairá a resposta à pergunta: vale apena haver ser? Esta, sim, é a maior pergunta que se pode retirarindirectamente desta obra.

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Do resultado desta confrontação entre o homem invocador e oDeus invocado sairá o veredicto acerca da bondade de tudo e dodireito de tudo a ser.

Este confronto, complexo, irá assumir duas fases: uma pri-meira, agónica e polémica, isto é, de recontro entre o que parecemser dois inimigos; uma segunda, de encontro amoroso entre doisamantes, desiguais, mas que põem todo o seu adequado ser no bemde uma relação que é mútuo dom de fidelidade ao bem dos dois.

Assim, no primeiro momento, e perante a exigência de Job deuma resposta de Deus ao seu ilógico sofrimento, Deus manifesta-se, mas não como um Deus benevolente, antes como um imperialDeus cioso de seu bem próprio e aparentemente de mais nada. SeJob esperava a concretização, nesta teofania, de algo próximo doDeus de bem e de compaixão em que acreditava e ao qual se tinhamantido fiel, apesar de tudo, maior não poderia ser a sua desilusão.O Deus que se lhe manifesta é tudo menos isso. Em vez de, pelomenos, o consolar, ainda lhe pede ulteriores satisfações. Que maispode Job dar a Deus que Deus não lhe tenha já pedido?

Não está já esgotado o cálice de Job?Não.Ainda está por provar se Job se mostra fiel não apenas a uma

memória de Deus em si, mera representação do criador, mas aopróprio criador, olhos nos olhos, como ele próprio reclamou e como,aliás, não poderia deixar de ser, de modo a que esta narrativa pu-desse ter um sentido pleno e definitivo.

É, finalmente, agora, o momento em que Job está só. Se rapi-damente tinha ficado politicamente isolado, no que diz respeito àrelação humana, sempre se mantivera a relação com Deus. Agora éo próprio Deus que se encarrega de mostrar que também ele aban-dona Job (aparentemente, sabemos nós, mas Job não sabe, Job temde confiar, o que é muito diferente).

Absolutamente só, apenas armado com a sua fé num Deus debondade, Job tem de escolher: mantém ou não mantém a fidelidade

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a Deus, mesmo revelando-se este algo de muito diferente do queesperava?

Repare-se que, neste momento, aparentemente, na narrativa,apenas Job sabe o que é o bem. Se aquilo que se lhe revelou agoramesmo é Deus, então, nem o próprio Deus sabe o que é o bem, nãosegundo a promessa feita a Job.

Job poderia declarar-se enganado e desautorizar Deus. Se o ti-vesse feito, seria o triunfo total e definitivo do ateísmo e o horizonteda humanidade começaria e terminaria necessariamente em si pró-pria. Nenhuma outra possibilidade de sentido poderia haver e tudoseria simplesmente imanente sem possibilidade de uma qualquerreferência a uma transcendência: a sua inferioridade manifestadaanulá-la-ia. É apenas isto que aqui está em causa...

Mas Job escolhe manter-se fiel à marca de bem que tem emsi impressa. Em si, há a presença memorial de algo de absoluta-mente bom. Em si, está a marca de isso que acredita ser Deus. Eisto é todo o bem que lhe resta, já indiscernível do que ele é. As-sim sendo, em nome deste bem, Job não vacila e permanece fiel.Retracta-se, pede perdão.

Se aquele Deus que se lhe manifestou é o mesmo que nele im-primiu a memória do bem, então, este Deus é infiel à memória quedoou. Mas a infidelidade de Deus não implica a infidelidade deJob. Mesmo sentindo-se abandonado por um Deus que, em vez deo salvar, o esmaga, Job permanece fiel a quem aparentemente nãolhe permanece fiel.

Não é possível levar a fidelidade mais longe, porque, simples-mente, não é possível, em termos absolutos, ir mais longe. Comeste acto, Job provou a sua bondade, por via da sua fidelidade aobem em si posto, ganhando a aposta de Deus, a Deus e por Deus.A capacidade autonómica do ser humano neste texto não pode sermais elevada.

Está tudo consumado: todos os poderes se viraram contra Jobe este a todos resistiu e ultrapassou. É o momento de Deus se lhe

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revelar como o Deus de bondade que o criou, em que esperava eao qual se manteve fiel. Job é exaltado. Os falsos amigos admoes-tados. Agora, não apenas Deus sabe que há um homem bom, mastodos sabem que há um homem bom.

Isso que era uma pura possibilidade criatural, a bondade, passaa ser um dado concreto, real, histórico – dentro da narrativa. Jobpassa de um exemplar único a um exemplo paradigmático. A hu-manidade deixa de poder invocar a dificuldade do bem para des-culpar a sua não-bondade: já houve um ser humano que foi bom,inquestionavelmente.

Conclusão

Embora se trate de uma narrativa que laicamente temos de con-siderar como mítica, o livro Job encerra em si uma lição que nãopode ser mais real: a da essência e substância humanas como actode fidelidade a um bem próprio, especificamente próprio, pessoal-mente próprio, que distingue o ser humano do demais das entida-des. Este acto de fidelidade confunde-se com o próprio ser humanoem causa: no fim do processo de acrisolamento, já nada mais há deJob do que este acto de fidelidade. Tudo o mais desaparecera, sófaltando desaparecer este acto final. Se desaparecesse, seria a ani-quilação de Job.

Ora, este acto já não é distinto do próprio Job: disso se encar-rega a própria experiência, propositadamente elaborada para que,no fim, precisamente nada mais restasse. Nós somos este acto defidelidade a uma vocação de bem com que nascemos. Esta é a liçãomuito clara desta obra. Ou somos isso ou não somos coisa alguma.Aqui, não há bestas humanas: há Job, que é o ser humano, e háentes não-humanos. É terrível esta constatação, mas é inescapável.Com Job, Deus provou o único ser humano e fez dele modelo.

A consequência é muito clara: ou somos como Job ou não so-

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mos verdadeiramente humanos. Estamos muito longe de uma pers-pectiva naturalista do que seja a humanidade. Esta é o acto de fi-delidade ao bem que Deus nela pôs. Esta é espírito. Não se nega ocorpo: ele é doloroso testemunho de si próprio, mas, a certa altura,deixa de fazer sequer sentido. Não é nele que a aposta se joga.Mas, ganha a aposta, o corpo retoma o seu esplendor.

Assim, o que Deus pretende é a afirmação do ser humano, porsi próprio, como acto de fidelidade a Deus. Quer um ser humanoperfeito, actualmente perfeito, não apenas potencialmente.

Assim, a todas as perguntas de Job e a todas as demais pergun-tas, responde Deus com a resposta de Job, que é uma resposta deamor a Deus por amor ao bem que Deus criara quando criara Job.A resposta final de Deus, não é um mero julgamento, uma merapalavra, mas um acto, a recriação de Job, em todo o esplendor quemerecera. A resposta às questões, todas, deste texto, é um actode amor. Mas este acto é a única resposta digna de qualquer serhumano e digna de Deus.

Este texto é um texto sobre o bem.Mas não responde nem pode responder à questão que se impõe

acerca do destino dos que foram sacrificados para que Job pudessemanifestar a sua bondade. É aqui que se exige uma fé semelhanteà de Job, pois não há qualquer resposta humanamente satisfatóriapossível e o problema de Deus, aqui, mantém-se.

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