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O AUDIOVISUAL AUTORAL COMO FERRAMENTA DE ATUALIZAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES DOS INDÍGENAS NO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO: índios de MS se apropriam das novas tecnologias para desfazer um imaginário historicamente eivado de estereótipos e preconceitos MIGUEL ANGELO CORRÊA* Esta comunicação apresenta resultados de pesquisa sobre a apropriação de ferramentas oferecidas pelas novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) por indígenas das diversas etnias de Mato Grosso do Sul, e como eles as têm utilizado para tentar reverter suas representações no imaginário contemporâneo que lhes é historicamente desfavorável. Neste sentido, conforme Gambini (2002), Garfield (2000) e Gerbi (1996), ao longo dos séculos os diversos povos indígenas do continente foram submetidos a várias situações adversas por conta de relações de poder subjacentes aos discursos estereotipados e contaminados pelo imaginário eurocêntrico. Cada um a sua maneira, observa que, grosso modo, desde o período pré-colombiano a gênese do imaginário sobre a natureza e os habitantes do novo mundo os apontava, equivocadamente, como selvagens ou inumanos e que mesmo quando, posteriormente, interesses políticos e econômicos governamentais geraram estratégias geopolíticas que tentaram reconfigurar este imaginário, o fizeram de forma autoritária, desacertada e prejudicial à maioria dos povos indígenas então remanescentes. Esta situação, conforme denunciam inúmeros videastas, educadores e pesquisadores indígenas de Mato Grosso do Sul, parece estar presente até os dias atuais. Vários destes videastas, professores e coletivos de audiovisual indígenas, entretanto, refletem a respeito deste imaginário prejudicado e buscam alterá-lo e atualizá-lo por meio da realização, veiculação e divulgação de filmes e outros trabalhos audiovisuais para as sociedades envolventes e internamente em suas comunidades. Procuram, também, disseminar seus conhecimentos e técnicas, com o objetivo de sua replicação e da formação de novos grupos. Palavras-chave: Audiovisual indígena; Cinema indígena; Mato Grosso do Sul; Imaginário; Audiovisual autoral.

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Page 1: O AUDIOVISUAL AUTORAL COMO FERRAMENTA DE …...conforme desenvolvido por Carl Jung e, na segunda, aplica os conceitos em uma interpretação crítica das missivas e das posturas política,

O AUDIOVISUAL AUTORAL COMO FERRAMENTA DE ATUALIZAÇÃO DAS

REPRESENTAÇÕES DOS INDÍGENAS NO IMAGINÁRIO CONTEMPORÂNEO:

índios de MS se apropriam das novas tecnologias para desfazer um imaginário

historicamente eivado de estereótipos e preconceitos

MIGUEL ANGELO CORRÊA*

Esta comunicação apresenta resultados de pesquisa sobre a apropriação de ferramentas

oferecidas pelas novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) por indígenas das

diversas etnias de Mato Grosso do Sul, e como eles as têm utilizado para tentar reverter suas

representações no imaginário contemporâneo que lhes é historicamente desfavorável. Neste

sentido, conforme Gambini (2002), Garfield (2000) e Gerbi (1996), ao longo dos séculos os

diversos povos indígenas do continente foram submetidos a várias situações adversas por

conta de relações de poder subjacentes aos discursos estereotipados e contaminados pelo

imaginário eurocêntrico. Cada um a sua maneira, observa que, grosso modo, desde o período

pré-colombiano a gênese do imaginário sobre a natureza e os habitantes do novo mundo os

apontava, equivocadamente, como selvagens ou inumanos e que mesmo quando,

posteriormente, interesses políticos e econômicos governamentais geraram estratégias

geopolíticas que tentaram reconfigurar este imaginário, o fizeram de forma autoritária,

desacertada e prejudicial à maioria dos povos indígenas então remanescentes. Esta situação,

conforme denunciam inúmeros videastas, educadores e pesquisadores indígenas de Mato

Grosso do Sul, parece estar presente até os dias atuais. Vários destes videastas, professores e

coletivos de audiovisual indígenas, entretanto, refletem a respeito deste imaginário

prejudicado e buscam alterá-lo e atualizá-lo por meio da realização, veiculação e divulgação

de filmes e outros trabalhos audiovisuais para as sociedades envolventes e internamente em

suas comunidades. Procuram, também, disseminar seus conhecimentos e técnicas, com o

objetivo de sua replicação e da formação de novos grupos.

Palavras-chave: Audiovisual indígena; Cinema indígena; Mato Grosso do Sul; Imaginário;

Audiovisual autoral.

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* Mestre em Comunicação (UFMS); Especialista em Cultura e História dos Povos Indígenas (EAD-UFMS);

Graduado em Jornalismo e em Administração de Empresas (UFMS); Técnico em Eletrônica (ETEL); Aluno

especial do Doutorado em Historia Indígena (UFGD).

Inúmeros pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm observado com

frequência que boa parte dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul encontram-se numa

situação bastante precária, resistindo há séculos a diversos processos de espoliação de suas

terras e de seus direitos1. A maioria destes povos encontra-se na faixa de fronteira de MS e

têm problemas em sua representação social na mídia de massa nacional e na local que, via de

regra, os discriminam e divulgam inverdades a seu respeito2 sendo que os mesmos figuram,

amiúde, no imaginário3 contemporâneo em representações que lhes são bastante

desfavoráveis.

Esta comunicação oferece apontamentos de uma revisão bibliográfica que mostram como

foi construído, ao longo dos séculos, o imaginário desfavorável aos povos ameríndios,

baseados, principalmente, nas obras do cientista social e psicólogo Roberto Gambini, do

historiador e economista Antonello Gerbi e do historiador Seth Garfield. Cada um a sua

maneira, observa, grosso modo, que desde o período pré-colombiano a gênese do imaginário

eurocêntrico sobre a natureza e os habitantes do novo mundo os apontava equivocadamente,

como selvagens ou inumanos (GAMBINI, 2002; GERBI, 1996) e que, mesmo quando,

posteriormente, interesses políticos e econômicos governamentais locais geraram estratégias

geopolíticas que tentaram reconfigurar este imaginário, o fizeram de forma autoritária,

desacertada e prejudicial à maioria dos povos nativos então remanescentes (GARFIELD,

2000). Oferece, também, observações e reflexões sobre as declarações de alguns índios de

Mato Grosso do Sul sobre o tema, baseadas nos dados obtidos em trabalho de campo que

mapeou boa parte das recentes produções audiovisuais autorais realizadas pelos indígenas de

MS (CORRÊA, 2015).

Muitos índios de MS, em especial das etnias Kaiowá, Terena e Guarani, observam que o

quadro atual não é recente, com o que corroboram Gambini (2002), Garfield (2000) e Gerbi

(1996), e ponderam que, desde o contato, ao longo dos séculos, os diversos povos indígenas

do continente foram submetidos a incontáveis situações adversas, e de várias formas foram

1 Cf.: Brand (1993; 1997); Chamorro (2008; 2015); Ferreira (2007); Martins (2003); Pereira (1999; 2004;

2009; 2013). 2 Cf.: Foscaches (2010); Maldonado (2014).

3 Para o conceito de imaginário ver: Bartolomé Ruiz (2004) e Maffesoli (2001).

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estereotipados por conta de relações de poder subjacentes aos discursos contaminados pelo

imaginário eurocêntrico as quais se viram submetidos. Depoimentos obtidos em trabalho de

campo realizado pelo autor (CORRÊA, 2015), no qual foram entrevistados indígenas de

várias etnias de Mato Grosso do Sul envolvidos com as chamadas novas tecnologias de

informação e comunicação (TICs) e com uma produção audiovisual4 autoral consolidada,

indicam que os mesmos, além de possuírem conhecimento e posturas críticas em relação a

este imaginário de longa data prejudicado, atuam, de diversas maneiras, buscando alterá-lo

e/ou reconfigurá-lo em seu favor. Vários deles são videastas, professores, músicos,

dançarinos, políticos, fotógrafos, dentre outras atividades. Costumam refletir a respeito deste

imaginário “deteriorado”, trabalham individualmente ou em coletivos por meio da realização,

veiculação e divulgação de filmes e outras mídias audiovisuais para as sociedades envolventes

e internamente em suas comunidades. Procuram, também, disseminar seus conhecimentos e

técnicas com o objetivo de sua replicação e da formação de novos grupos, de maneira algo

diversa da forma convencional como isso é feito nas sociedades não indígenas.

Algumas das reflexões e o trabalho de campo derivaram, principalmente, das seguintes

obras do autor: a dissertação de mestrado em comunicação “Audiovisual autoral dos povos

indígenas de MS: mapeamento e análise” (CORRÊA, 2015), e o livro “O índio e o cinema em

Mato Grosso do Sul” (CORRÊA, 2017). Baseou-se, para a realização das pesquisas e do

trabalho de campo destas obras, na metodologia desenvolvida por Gil (1995) e foi feita uma

pesquisa exploratória, através de entrevistas estruturadas com os realizadores indígenas de

obras de vídeo/cinematográficas de ficção e documentário, para iniciar a elaboração de um

mapeamento da produção cinematográfica autoral no estado de MS no século XXI. O

questionário base das entrevistas está disponível em Corrêa (2015, apêndice B). É importante

observar que se tratou de um mapeamento preliminar, não definitivo, e repleto de lacunas,

longe de esgotar todas as obras existentes, tanto em função da dinâmica cada vez mais

acelerada que as mídias e tecnologias oferecem nos dias atuais proporcionando o constante

aparecimento de novos filmes, bem como pelas limitações de prazo e condições disponíveis

para realização do mesmo. Os depoimentos recolhidos fazem parte de uma realidade

complexa e violenta, porém, paradoxalmente, delicada e frágil, em função da situação

4 Neste trabalho uso a definição de Jacques Aumont: “Audiovisual [...] designa as obras que mobilizam, a um

só tempo, imagens e sons, seus meios de produção, e as indústrias ou artesanatos que as produzem. O

cinema é, por natureza, ‘audiovisual’; ele procede de ‘indústrias do audiovisual’[...]” (AUMONT, 2006).

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histórica das diversas etnias indígenas na região Centro-Oeste e das disputas judiciais e

conflitos armados envolvidos. Preferiu-se, por isso, garantir o anonimato das fontes e a não

identificação de entidades, organizações e similares quando solicitado ou nas situações onde

estas informações pudessem prejudicar os indígenas.

O cientista social e analista junguiano Roberto Gambini especula em “O espelho índio”

sobre a negação da cultura nativa ameríndia presente na gênese da cultura e da sociedade

brasileira, a partir de uma leitura crítica e uma análise psicológica das cartas dos primeiros

jesuítas enviados ao Brasil para catequizar os índios no século XVI. Com base na premissa de

que os jesuítas chegaram ao continente americano com uma ideia preconcebida do que eram

os ameríndios, projetando - no sentido junguiano5 - em cima deles sua sombra, Gambini

(1988) faz, na primeira parte da obra, uma explanação detalhada do conceito de projeção

conforme desenvolvido por Carl Jung e, na segunda, aplica os conceitos em uma interpretação

crítica das missivas e das posturas política, social, econômica, espiritual e pedagógica dos

clérigos. Ele descreve como viviam os indígenas e como era a sociedade brasileira na visão

dos jesuítas durante os séculos em que a Cia. de Jesus foi um dos principais atores na

formulação do que viria a se tornar o imaginário acerca dos habitantes do novo mundo:

tentaremos destilar das cartas uma imagem, desta vez a de ‘homem primitivo’ visto

pelos olhos do ‘civilizador’. Creio que essa imagem, que analisaremos em seus

elementos constitutivos, continua viva e ativa no inconsciente coletivo de nosso

tempo, quando praticamente todas as culturas nativas do planeta são ameaçadas de

extinção. E por isso que é importante examinar essa imagem e perguntar qual o seu

significado para nós (GAMBINI, 1988, p. 121).

Gambini descreve como os portugueses impuseram a catequização e sistematicamente

negaram os símbolos indígenas para “quebrar o espelho” que refletia o lado sádico, cruel,

luxurioso e sedento de poder inerente ao cristão europeu convencional:

Na figura dos pajés encontramos corporificada a projeção específica da sombra dos

jesuítas, que neles viam estampado tudo aquilo que não conseguiam ver em si

mesmos. A luta pela eliminação dos pajés era assim uma manobra tática que

correspondia, no plano interior, ao fato psicológico de que os missionários

pretendiam suprimir sua dimensão inconsciente sombria. Já nos primeiros contatos

os jesuítas retratavam os pajés como mentirosos e enganadores, recusando-se a

admitir neles a existência de um mínimo grau de integridade ou de que cumprissem

uma função social específica, a de guias religiosos encarregados da intermediação

entre este mundo e o outro - pois de fato os pajés estavam para os índios mais ou

menos como os jesuítas para os portugueses (GAMBINI, 1988, p. 166).

5 Grosso modo, mecanismo de defesa psicológico pelo qual julgamos ver no outro nossos atributos pessoais,

nossos próprios sentimentos e motivações e/ou aquilo que reprimimos em nós.

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Em algumas cartas, conforme Gambini (1988), surgem evidências dos equívocos e

estereótipos que a partir de então aparentemente se perpetuariam na imagem dos ameríndios:

A acusação de que os índios brasileiros eram comedores de carne humana era

obviamente o argumento supremo em favor da conversão - ou na verdade de

qualquer ato praticado contra eles. Impossível conceber-se crime mais atroz, frente

ao qual mesmo o mais torpe dos colonizadores sentir-se-ia cheio de virtudes.

Colombo foi o primeiro a falar dos canibais antilhanos, apesar de nunca ter

pessoalmente visto o que relatava. Nas cartas jesuíticas há inúmeras referências a

antropofagia, mas nenhum testemunho pessoal: e como se tratasse de um fenômeno

patente e acima de qualquer controvérsia, sem a menor necessidade de verificação

empírica ou compreensão. Os jesuítas falam de canibalismo como se os índios não

fizessem outra coisa e se nutrissem de carne humana, estabelecendo como meta acabar imediatamente com tal prática (GAMBINI, 1988, p. 149).

Após uma densa investigação sobre as cartas, Gambini relata o reconhecimento, pelos

clérigos, de seu próprio fracasso: “Com os anos os jesuítas se convenceram que converter os

nativos não era tão fácil […] a questão evoluiu e o trabalho escravo lhes pareceu a melhor solução

[…], Anchieta declara que o problema da conversão resume-se à escolha entre Evangelho ou

escravidão” (Gambini, 1988, p. 204). E lembra, finalmente, que a experiência serviu como

uma semente maligna, pois “150 anos depois os jesuítas já tinham acumulado saber suficiente

para produzir tratados doutrinários para ensinar aos senhores como tratar os escravos

africanos (sic) conforme a religião e puni-los segundo a conveniência” (Gambini, 1988, p.

205).

A presença do continente americano no imaginário europeu também foi estudada pelo

historiador italiano Antonello Gerbi, que traçou um enorme e bem humorado painel a respeito

da polêmica que esteve em voga entre os europeus durante muito tempo após as grandes

navegações ‘revelarem’ o continente americano. Conforme o autor, principalmente a partir de

meados do século XVIII, por muitos europeus era atribuído à América o estado de

imaturidade e degradação em relação à Europa e na visão de vários filósofos, poetas, clérigos,

cientistas e outros letrados, havia uma flagrante e generalizada ideia da inferioridade do

continente americano, defendida por muitos ao longo do tempo de forma a criar um

imaginário desfavorável dos ameríndios e da natureza do chamado Novo Continente (GERBI,

1996). Um dos citados por Gerbi (1996) foi o naturalista Conde Georges-Louis Leclerc

Buffon, que tentava dar alguma cientificidade à suas análises sobre a América e afirmava que

lá não existiam animais de grande porte, que a natureza era hostil, pantanosa, fria e úmida, os

animais domésticos eram degenerados, que répteis e insetos eram exageradamente grandes e

numerosos e que os ameríndios eram poucos, débeis e impotentes:

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Os cavalos, os asnos, os carneiros, as cabras, os porcos, os cães, etc., […] tornaram-

se menores. […] Existe, portanto, na combinação dos elementos e demais causas

físicas, qualquer coisa oposta ao engrandecimento da natureza viva neste novo

mundo: há obstáculos ao desenvolvimento e talvez à formação dos grandes germes;

os mesmos que sob a doce influência de um outro clima, receberam sua plena forma

e sua completa extensão, se restringem se amesquinham sob este céu avaro e sob

esta terra desolada, onde o homem, em pequeno número, era esparso errante; onde,

longe de usar este território como um mestre a seu domínio, ele não possuía

qualquer império; onde, não tendo jamais submetido nem os animais nem os

elementos, não tendo domado os mares nem direcionado os rios, nem trabalhado na

terra, ele era, em si, somente um animal de primeira classe e existia para a natureza

apenas como um ser sem consequência, uma espécie de autômato impotente, incapaz

de reformá-la ou auxiliá-la: ela o tinha tratado menos como mãe que como madrasta,

recusando-lhe o sentimento do amor e o vivo desejo de multiplicar-se; pois, ainda

que o selvagem do Novo Mundo possua aproximadamente a mesma estatura do

homem do nosso mundo, isso não é suficiente para que ela constitua uma exceção ao

fato geral do apequenamento da natureza viva em todo este continente. O selvagem

é débil e pequeno nos órgãos da reprodução; não tem pelos nem barba, nem qualquer

ardor por sua fêmea: embora mais ligeiro que o europeu, pois possui o hábito de

correr, é muito menos forte de corpo; é igualmente bem menos sensível e, no

entanto, mais crédulo e covarde; não demonstra qualquer vivacidade, qualquer

atividade d’alma; quanto à do corpo, é menos um exercício, um movimento

voluntário, que uma necessidade de ação imposta pela necessidade; prive-o da fome

e da sede e terá destruído simultaneamente o principio ativo de todos os seus

movimentos; ele permanecerá num estúpido repouso sobre suas pernas ou deitado

durante dias inteiros (BUFFON apud GERBI, 1996, p. 20-21).

Outro europeu lembrado por Gerbi é o filósofo prussiano abade Corneille De Pauw, para

quem a espécie humana encontrava-se ainda mais debilitada e degenerada no ‘Novo

Continente’, os homens não eram animais imaturos ou crianças crescidas, mas sim seres

degenerados:

[Eles] odeiam as leis da sociedade e os obstáculos da educação, vivem cada um por

si, sem se ajudarem reciprocamente, em um estado de indolência, de inércia, de

completo aviltamento. O selvagem não sabe que é preciso sacrificar uma parte de

sua liberdade para cultivar seu gênio: sem cultura ele não é nada […] É sem dúvida

um grande e terrível espetáculo ver a metade deste globo a tal ponto desgraçada pela

natureza que tudo é ou degenerado ou monstruoso” (DE PAUW apud GERBI, 1996,

p. 56-60).

O painel traçado por Gerbi é bastante amplo e apresenta com detalhes outros autores

como Abade Raynal, Friedrich Hegel, William Robertson, Francis Bacon, ou Voltaire, que

atestariam a debilidade da natureza americana, e até que garantiriam a existência de gigantes

na Patagônia. Mas, de outro lado, também apresenta pensadores que defenderiam a

benignidade dos ameríndios, a exuberância e fartura da natureza, que recusariam a imputação

de fraqueza, covardia, preguiça e inferioridade dos indígenas americanos, ou que estariam em

posições intermediárias e mesclariam ideias, como Benjamin Franklin, Immanuel Kant,

Goethe, Giacomo Leopardi, Alexander Humboldt, padre Francisco Javier Clavigero, jesuíta

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Juan Ignacio Molina, Thomas Jefferson, Thomas Paine, que se posicionariam ao longo da

outra extremidade da polêmica. Gerbi alerta, porém, que o quadro não era rígido, mas sim

preenchido por nuances e que a presença do continente americano no imaginário europeu, de

forma curiosa, por meio de um viés eurocêntrico e ideológico, parecia simultaneamente

projetar e refletir os desejos e/ou os horrores que seduziam e/ou assustavam os próprios

europeus.

Já o historiador Seth Garfield estuda as relações entre os indígenas brasileiros e as

políticas nacionalistas do Estado Novo em meados do século XX, principalmente no governo

de Getúlio Vargas durante a chamada “Marcha para Oeste6”. Garfield (2000) observa que

alterações nas situações social, econômica e política do país proporcionaram uma mudança

radical na abordagem dada pelo governo e por intelectuais aos indígenas e discorre como se

deram estas alterações, como elas afetaram os ameríndios e qual postura eles manifestaram

em resposta a esta nova situação. Estratégias governamentais buscaram aproveitar os índios

para atuar como mão de obra gratuita na produção de infraestrutura para o povoamento do

interior do país e para garantir os limites territoriais ocidentais; enquanto pensadores,

políticos, artistas e burocratas tratavam de dar nova roupagem para a representação dos

indígenas no imaginário brasileiro, passando a resgatar o índio genérico e heroico dos

românticos do século XIX, porém com uma nova “camada de verniz moderno”.

A ditadura de Vargas centralizou o poder, reprimiu a oposição, impôs severa censura à

imprensa e com o suporte do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do Serviço de

Proteção ao Índio (SPI) e de intelectuais de diversas áreas passou a disseminar uma ideologia

favorável aos ameríndios, exaltando seu vigor físico, seu caráter patriótico, suas qualidades

lúdicas, colocando-os como verdadeiros representantes da nacionalidade brasileira. Vargas

cria o dia do índio e incentiva a colonização do interior do país, criando pequenas reservas

territoriais, para onde deveriam ser levados os indígenas após serem pacificados, e onde

supostamente teriam assistência governamental para “aprenderem” a trabalhar e sobreviver na

sociedade nacional. Garfield (2000) coloca que desta forma seria possível liberar os sertões do

continente para incentivar o povoamento pelo excedente populacional que habitava os litorais,

6 Projeto do governo Getúlio Vargas durante o Estado Novo, que visava povoar e desenvolver o norte e o

centro-oeste do país, incentivando a migração interna, facilitando a cessão e documentação de terras para

colonos e grileiros e confinando indígenas em pequenas reservas.

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com o discurso de que nas reservas estaria garantida a não extinção dos indígenas e sua

integração à nação após sua pacificação, e que

Ao difamar o europeu e consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais brasileiros

da Era Vargas inverteram ou subverteram a concepção eurocêntrica da história da

cultura e do destino nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade

havia sido redefinida por membros da elite e da intelligentsia: ela não atravessou

mais o Atlântico, mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e de seus

primeiros habitantes (GARFIELD, 2000, p. 20).

Haveria certa “tradição” brasileira nesta exaltação dos nativos. Por motivos e

circunstâncias diferentes diversos artistas e intelectuais esporadicamente já a praticavam

desde o século anterior: José de Alencar, Gonçalves Dias, Oswald de Andrade, Mário de

Andrade, Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Gilberto Freyre, dentre

outros. Porém, agora a situação era diversa. Enquanto

o nativismo do século XIX teve como meta a separação de Portugal e a literatura

romântica serviu para camuflar a instituição da escravidão africana, sob o regime

Vargas a retórica indigenista transmitiu […] um discurso indigenista que ecoava

todas as questões proeminentes na política mundial da época: racismo, xenofobia e

chauvinismo. Numa época de crise econômica mundial e nacionalismo exacerbado,

os brasileiros foram criticados por admirarem ideologias estrangeiras. O marxismo e

o liberalismo, afirmavam os funcionários do Estado Novo, eram inapropriados às

realidades nacionais. O mesmo valia para as teorias europeias de superioridade

racial, as quais eram criticadas por provocar ultraje – para não mencionar

desconforto, uma vez que muitas famílias influentes careciam de ascendência

puramente branca. Como Angyone Costa ironizava, apesar das deferências e

pretensões da elite, todos os brasileiros eram considerados pelos europeus como

“povo situado pouco acima dos negroides, abaixo dos amarelos e infinitamente

distanciados dos brancos”. Costa, portanto, convocava a nação para valorizar suas

raízes indígenas (Garfield, 2000, p. 20).

A estratégia de Vargas, entretanto, fracassou:

De fato, o abraço simbólico do índio pelo Estado Novo acabou por sufocá-lo.

Esmagados pela retórica do governo, os índios teriam de lutar para expressar seus

próprios pontos de vista em relação a sua terra, comunidade, cultura e história [...]

Mas, ao mesmo tempo, a tutela e outras políticas paternalistas endossadas pelo

regime Vargas possibilitavam o abuso e a repressão pelo Estado. O sistema de tutela

permitiria o descuido sistemático dos interesses indígenas; políticas foram

implementadas pelo Estado sem consulta aos grupos indígenas, considerados

incompetentes para cuidar de seus próprios assuntos. […] Os esforços para

disciplinar a força de trabalho e eliminar o nomadismo – disfarçados em temas de

redenção - exemplificavam este tratamento autoritário; nesse sentido o Estado

procurou redesenhar as fronteiras do território indígena com a Marcha para o Oeste.

Embora aproximadamente duzentos grupos diferentes vivessem no Brasil com

diversas culturas, línguas e relações com a sociedade brasileira, o Estado reduziu-os

todos a “índios”, uma construção cultural que incorporou objetivos e ideias dos

brancos. Rica em seu valor simbólico, a invenção estadonovista do índio contradizia

as realidades atuais e passadas dos índios. Além do mais, os objetivos quixotescos e

as instituições governamentais seriam sistematicamente lesados pela corrupção

burocrática, pela oposição da elite e pela resistência indígena. Não obstante, os

índios, junto com o governo e seus críticos, teriam de lidar com as imagens e

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políticas ambíguas popularizadas na era Vargas durante muito tempo […] Alguns

índios rejeitaram totalmente a política governamental. Outros colaboraram com os

esforços do Estado para “civilizar” a fronteira, aliando-se aos funcionários do SPI,

que lhes ofereciam a promessa de uma vida melhor. Contudo, outros abraçaram a

retórica indigenista do Estado Novo, apesar de criticarem a atuação do Estado e de

proporem alternativas (Garfield, 2000, p. 24-25).

Desta forma, observamos que o legado da era Vargas no que se refere à representação do

indígena no imaginário nacional foi bastante confuso, antagônico e, de certa forma,

catastrófico, pois a estratégia utilizada durante o Estado Novo provocou uma espécie de

esquizofrenia na forma como os brasileiros encaravam os indígenas e de outro lado

“ludibriou” duplamente os nativos, pois lhes ofereceu algo que não poderia cumprir, usou a

mão de obra dos que se renderam às promessas governamentais e ainda surrupiou os

territórios de ambos, os que resistiram e os que cederam aos apelos do governo.

Vários videastas, professores e coletivos de audiovisual indígenas refletem a respeito

destas representações ameríndias prejudicadas no imaginário contemporâneo desenvolvidas

ao longo dos séculos desde o contato, e buscam alterá-lo e atualizá-lo por meio da realização,

veiculação e divulgação de filmes e outros trabalhos audiovisuais para as sociedades

envolventes e internamente em suas comunidades. Procuram, também, disseminar seus

conhecimentos e técnicas, com o objetivo de sua replicação e da formação de novos grupos. O

professor e videasta Kaiowá Eliel Benites enfatiza que

Muitos são os efeitos do discurso colonial moderno na perspectiva indígena dos

Kaiowá e Guarani. O modelo de ser não indígena da sociedade ocidentalizada torna-

se o modelo único e desejável, a partir do imaginário representado pelo discurso

colonial. Constrói-se, deste modo, no interior dos Kaiowá e Guarani, a necessidade

de ter outra postura, outras lógicas de pensamento, outras formas de organização

social […] Por outro lado, as gerações mais tradicionais da sociedade kaiowá e

guarani, a partir dos contextos específicos de formação de sua subjetividade,

possibilitam maior grau de resistência ao imaginário colonial do que as gerações

mais recentes. Tal situação possibilita um porto seguro para a geração atual, tendo

em vista produzirem negociações com o mundo externo. A resistência kaiowá e

guarani ao modelo homogeneizador e suas várias formas de representação,

assumidas diante do colonizador ou no mundo externo, refere-se a formas

estratégicas para corresponder ou não ao desejo do outro. […] Os Kaiowá e Guarani,

nesta relação colonial, são inventados ou reinventados no contexto das experiências

e histórias marcadas pela colonialidade. A colonialidade subalterniza, invade o

imaginário do outro, ocidentaliza-o. Assim, as subjetividades indígenas kaiowá e

guarani foram produzidas no embate entre os seus saberes, considerados legítimos

em sua cultura, e as ações colonizadoras que, no intuito de civilizar, promoveram a

imposição de valores, de conhecimentos, de espiritualidade/ancestralidade,

concepções de mundo e do bem viver, opostos ao jeito de ser e de viver dos povos

indígenas (BENITES, 2014).

Eliel é membro fundador da Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (ASCURI,

2018), um dos principais coletivos audiovisuais indígenas de Mato Grosso do Sul, com vasta

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produção desde 2012. Coordenou o curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFGD e

tem uma história de vida que se confunde com a da educação indígena de MS. Participou

ativamente do Movimento dos Professores Guarani/Kaiowá, ajudou a construir a proposta

pedagógica do Curso Normal em nível médio - Ára Verá, foi um dos formandos da primeira

turma em 2003 e da Licenciatura Indígena - Teko Arandu, pela UFGD, em 2011, área

específica de Ciências da Natureza, e em 2014 concluiu mestrado em educação na UCDB. É

membro do Movimento e Comissão dos Professores Indígenas Guarani Kaiowá do Mato

Grosso do Sul, desde julho de 2013 atua como professor efetivo no Curso da Licenciatura

Intercultural Teko Arandu da UFGD e, talvez, tenha sido o primeiro indígena da etnia Kaiowá

a ser aprovado em concurso para professor em uma Universidade Federal.

As preocupações e reflexões colocadas por Eliel Benites têm reflexo na produção da

ASCURI (2018), pois nela aparece uma atenção na utilização dos recursos existentes para o

desenvolvimento de uma visão crítica e reflexiva da relação com eles e à forma como os

indígenas se apropriam dos mesmos. Existe a preocupação de ensinar o uso das chamadas

novas tecnologias, porém sem torná-las um objetivo em si, e em não dar prioridade para a

criação de obras para consumo externo (embora também não haja exclusão desse tipo de

atuação). Haveria a ideia de que, grosso modo, ao usar a tecnologia e o audiovisual para

registrar a cultura Kaiowá e Guarani para o “consumo interno” da escola e da comunidade,

aconteceria simultaneamente, de forma espontânea, um fortalecimento dessa cultura, porém

ao mesmo tempo uma ressignificação da mesma, que de alguma forma estaria sendo,

paradoxalmente, atualizada e resgatada (CORRÊA, 2017). Um dos exemplos citados por Eliel

em entrevista clareia a postura e atuação do coletivo:

O que é a natureza para o Kaiowá Guarani? Os elementos da natureza estão sendo

um problema para o Kaiowá hoje, o impacto ambiental etc. Então, o que fazer? Só

mostrar o problema? Tem a solução, mostrar também a solução do problema, esta é a

ideia. [...] É muito interessante: nas entrevistas com a câmera eles aprendem muito,

ou seja, as novas tecnologias, a câmera acaba potencializando a aprendizagem

indígena. Por exemplo, uma coisa que ficou distante, [a relação entre] o jovem e o

mais velho: quando você produz o material, eles se aproximam, ou seja, a câmera é

um elemento que vai retomando [a relação], é uma ponte. A nova tecnologia, e o que

vem com ela, cheio de máquinas modernas etc. e tal, nada contra ela, mas o

conteúdo em volta é tradicional, é muito interessante isso! Na edição [dos vídeos] o

sujeito fica vendo, vendo, revendo aquilo... os cantos, na reza do Jerosy, por

exemplo, muitos cantos são repetidos até o amanhecer. Então, nas novas tecnologias,

na ilha de edição também acontece isso, e ele acaba gravando [na memória] os

cantos. A mídia, se você trabalhar ela de uma forma consciente, ela tem muita força,

para ajudar, mas se você trabalhar ela de uma forma inconsequente, ela traz muita

coisa ruim! (Entrevista ao autor, 2015)

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Outro membro da ASCURI (2018) é o Terena Gilmar Galache, que não só manifesta

incômodo com a representação dos indígenas no imaginário contemporâneo, mas que tem um

trabalho teórico e artístico que procura refletir sobre o problema e estabelecer estratégias de

ação além de produzir conteúdo para buscar superar a situação:

No caso do meu Povo, Terena, a língua vem desaparecendo ao longo do tempo, em

muitas aldeias, é considerada somente a língua dos avós, não sendo mais ouvida em

muitos lugares, com isso a sonoridade e os significados do vemóu (nossa língua)

está cada vez mais distante, mesmo com esforços por parte dos professores

indígenas. E a prática de produções audiovisuais, como filmes e músicas, pode ser

um exercício para nosso idioma, treinando os ouvidos que nunca ouviram a língua

antes, e fazendo uma ponte com os tempos antigos, pois é isso que a língua é, muitos

que já morreram e viveram tempos longínquos falavam essa mesma língua, que

seguia um estrutura complexa de significados. A língua em um filme demarca um

território, que ultrapassa os limites das terras tradicionais físicas e espirituais […]

Porém, após anos de colonização, e da replicação das práticas colonizadoras, nos

fragmentou muito, em nosso próprio território, os saberes tradicionais estão

esparramados como pedaços, e o papel do audiovisual pode ser o de costura desses

fragmentos, podendo exercitar a memória de quem já havia esquecido e trazer de

volta discussões importantes, como nossas práticas religiosas tradicionais, muitas

vezes demonizadas pelas correntes cristãs, ou de começar a discussão em um

momento mais contemporâneo do que já não se pratica mais (GALACHE, 2017).

Em workshop apresentado na Bolívia em 2008, pelo o cineasta e professor Quéchua Iván

Molina7, Gilmar conheceu Eliel Benites, que se tornaria seu parceiro em diversas produções e

com o qual (dentre outros indígenas) coordena as ações da associação. Assim como Eliel,

Gilmar tem uma visão bastante crítica em relação ao cinema em geral, e nas formas como o

audiovisual é usado na educação, principalmente pelo potencial que ele carrega e que em

geral não é plenamente realizado:

A gente conheceu o Iván Molina, que já tinha 20 anos de cinema naquela época, que

trabalhou com o [vários profissionais e acadêmicos e tem um currículo respeitável],

então tem um cinema político bem forte. A gente se conheceu lá, em 2008, então ele

começou a falar: é possível, vocês têm uma linguagem, vocês tem como passar e

construir, e pouco a pouco, a gente começou...[...]. A ideia começou a ficar clara, era

um cinema como uma ferramenta de luta pelos direitos, então, umas das ideias, uma

das filosofias do grupo, era que o cinema é uma ferramenta que vai contribuir para a

gente fortalecer a nossa cultura, para refletir sobre a nossa realidade, e mostrar para

a sociedade que a gente é importante, mostrar para a sociedade que nós temos

nossos valores, essa é uma das ideias que orienta [o trabalho]. Mas a gente busca

muito a coisa da horizontalidade, não é? [...] a gente tenta fazer o máximo para o

outro aprender; quanto mais o outro aprender, menos você vai fazer; então, mais

gente vai te ajudar a multiplicar e menos preocupação com uma pessoa só fazendo

[...] A gente também busca não fazer pressão sobre o grupo: ‘você vai ser o da

7 Iván Molina Velasquez, da etnia Quéchua, formou-se na Escuela Internacional de Cine y TV San Antonio de

Los Baños (EICTV) em Cuba, onde foi aluno do escritor Gabriel Garcia Marques, tem mais de 20 anos de

experiência em cinema e audiovisual e atualmente é Director Académico da ECA em La Paz. Disponível em:

<http://www.cinemascine.net/entrevistas/entrevista/Este-trabajo-requera-un-compromiso-social-y-

acadmico>; e em: <http://www.pmcg.ms.gov.br/cgnoticias/noticiaCompleta?id_not=6403>. Acesso em: 05

jun. 2015.

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câmera, você vai ser o editor!’. A pessoa vai se envolvendo naturalmente, que é a

maneira tradicional de educação também, porque, o rezador não diz: ‘você vai ser o

futuro rezador!’. Você vai mostrando quem ele é, o cara vai mostrando a sua

potencialidade, e vai potencializando o que ele tem de bom, o perfil do cara, então

cada um tem o seu perfil, não é? Sai naturalmente, você vai só apoiando aquilo, é a

metodologia. Nossa metodologia também é que tem de respeitar a cultura, respeitar

o sistema, o momento, registrar esse processo sem interferir. Então, por exemplo, o

Kiki [um dos operadores de câmera da ASCURI] que faz mais a filmagem do Jerosy,

ele já espera o momento certo de chegar, ele tem o momento certo de onde que vai

filmar, então, o indígena já sabe sua cultura, não é? Ninguém outro sabe, pode

estudar, pode ser doutor, mas, por exemplo, tem objeto que você não pode filmar,

também, tem que pedir autorização, chegar lá pedir pro liderança ou rezador, se pode

filmar ou não pode. Aí, tem um que não sabe das coisas, chega a TV filmando tudo,

faz tudo, chega lá tirando foto, eu já vi várias cenas constrangedoras da Globo. O

Kiki já sabe tudo, o roteiro na cabeça, qual o momento mais importante desse

evento, então ele vai no momento certo, sem interferir. Se um gringo chega lá, ele

atrapalha tudo. E ai a equipe de televisão chega lá vai filmando lá, filmando aqui, tá

sabendo que tá acontecendo Jerosy, mas o que vai acontecer exatamente, qual o

momento, qual o lugar, qual o ponto de vista é muito mais importante, ou seja, o

olhar indígena, não é? (Entrevista ao autor, 2015).

Dessa forma, embora não evite a exposição e divulgação de suas produções nos circuitos

de festivais de cinema, nos simpósios e congressos do universo acadêmico, ou no recheio de

currículos para eventos similares do “circuito de projetos e editais”, este não é o objetivo

principal. O foco seria a valorização e a (re)construção das culturas tradicionais usando as

ferramentas midiáticas como ponte para levar os velhos até os jovens, que passam a enxergá-

los com outros olhos, e levar os jovens até os velhos, sugerindo que estes os olhem com

outras lentes, e os ouçam com novos ouvidos, transformar a cultura oral em visual e vice-

versa, transformar os microfones em ouvidos, sem perder a essência de uma cultura, nem as

facilidades tecnológicas da outra. Dessa forma se disseminaria a semente de uma práxis que

deveria interferir e alterar a exposição dos indígenas nas mídias e como consequência

melhorar a representação dos mesmos no imaginário contemporâneo.

O professor e coreógrafo Kaiowá Ismael Morel é outro indígena de MS envolvido com o

audiovisual e que manifesta preocupações com a desprestigiada representação de seus pares

no imaginário nacional desde séculos atrás, e atua buscando superar o problema. É um dos

mentores do coletivo Jovens Indígenas Guarani-Kaiowá em Ação (JIGA, 2015), organização

da sociedade civil de interesse público sediada em Amambai, MS. Conforme Ismael, o grupo

é bastante ligado a danças e esportes, edita um jornal impresso, organiza campeonatos

esportivos e têm filmes postados na rede social Facebook, além de vários depoimentos curtos,

que ele não considera como filmes. Ismael, graduado em educação física e, atualmente,

vereador no município de Amambai, MS, recebeu em 2006 o prêmio “Professor nota 10” por

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ter promovido a revitalização da dança, e foi um dos debatedores da edição de Campo Grande

do Vídeo Índio Brasil 2014, que aconteceu em maio de 2015 no Armazém Cultural Helena

Meireles em Campo Grande, MS. Ismael relata que desde sua infância enfrenta uma situação

crônica de opressão, censura e enfrentamento com igrejas, crenças e seitas alheias às de sua

origem tradicional, e a utilização que faz do audiovisual para tentar reverter o quadro é

bastante relevante:

[...] cinco, seis anos. Aí com 14, 15 anos eu me revoltei com aquele sistema que

tentava amansar a gente de qualquer jeito. Aí eu percebi que todas aquelas coisas

que eles estavam pregando não tinha nada a ver comigo. Aí comecei a montar um

grupo, ‘a partir de hoje eu vou, não lutar contra, mas combater eles, mostrar que tem

outro caminho!’ [...] Foi nesse ponto que entrou o audiovisual! Eu comecei a

perceber, nós temos vários vídeos com depoimentos dos mais velhos, porque até

então meu interesse era só brincadeiras e jogos tradicionais, perguntava aos mais

velhos quais eram as brincadeiras que eles faziam, aí comecei a perguntar sobre a

pessoa, muitas destas pessoas já faleceram, aí, semana passada nós estávamos

passando estes vídeos na aldeia e falei, como uma brincadeira, vou selecionar esses

vídeos e passar todos. Aí as pessoas começaram a se emocionar, porque as pessoas

falam de uma coisa triste, e o que é mais triste ainda é que essa pessoa também já

faleceu, então eu comecei a perceber que o audiovisual tem esse poder de revitalizar

e formar opiniões, a coisa está imposta, mas não precisa, necessariamente ser assim!

[…] (Entrevista ao autor, 2015).

Outro núcleo de criação de audiovisual indígena com grande repercussão fora dos

territórios indígenas e afastado do chamado circuito de festivais de cinema e dos congressos e

simpósios acadêmicos, tornando-se relativamente conhecido nacionalmente - e até fora do

país - é o articulado pelo grupo BRÔ MC’s, a TV GUATEKA e a Central Única das Favelas –

núcleo de Dourados, MS, (CUFA-MS8). O grupo BRÔ MC’s é pioneiro no Brasil –

possivelmente no mundo - em Rap9 Indígena, com letras que mesclam o português e o

guarani, e absorvem a cultura Hip-Hop10 da forma mais aproximada encontrada no

8 A Central Única das Favelas (CUFA) é uma organização criada em 1999 por jovens de várias favelas do Rio

de Janeiro, com o conhecido rapper MV Bill entre os fundadores. Tem no Hip Hop sua principal forma de

expressão, como ferramenta de integração, inclusão social e produção cultural, atuando no Rio de Janeiro e

outros 25 estados e DF. Dentre as atividades desenvolvidas estão cursos e oficinas de DJ, break, grafite,

escolinha de basquete de rua, skate, informática, gastronomia, audiovisual e realização de diversas ações nos

campos da educação, esporte, cultura e cidadania, com mão de obra própria, principalmente de moradores de

favelas. Disponível em: < http://www.cufa.org.br/sobre-cufa.php# >. Acesso em: 01 jun. 2015. 9 Acrônimo de Rhythm and poetry (ritmo e poesia), nomenclatura que define um dos estilos musicais

provenientes das ruas (VIEIRA, 2014, p. 8). 10 Cultura ou movimento composto por quatro elementos culturais distintos que dialogam entre si: o MC

(Mestre de Cerimônia), o Graffite (arte plástica urbana feita em muros, paredes, prédios, etc.), o Break

Dance ou Breaking (dança que mescla movimentos com complexidade e diversidade) e o DJ (Disc Jockey

ou Deejay - o “maestro” do rap), que produz instrumentais a partir do sampler (equipamento que permite

executar amostras de trechos de músicas ou sons em loops (repetições), e manipular ou criar novas melodias,

padrões rítmicos ou efeitos; usado originariamente nos estúdios, passou a ser usado como instrumento

musical em vários gêneros musicais como o pop, rap, rock’n roll e outros) (VIEIRA, 2014, p. 14).

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mapeamento11, ao que Canclini (1997) nomeou de hibridismo cultural, ou nos moldes da new

mestiza de Anzaldúa (1987), muito embora, afirmem eles, considerar seu trabalho: “uma

produção indígena, nossa, pois aborda temas que são importantes pra gente, não apenas lutas,

mas também nossa vida cotidiana, e o que a gente gosta de fazer. É com o nosso olhar”

[Entrevista ao autor, 2015; grifo do autor].

Composto por Bruno Veron, Clemerson Batista, Kelvin Peixoto e Charles Peixoto,

Kaiowás das aldeias Jaguapiru e Bororó, da Reserva de Dourados, MS, eles cantam e dançam

o cotidiano das aldeias e a relação que têm com a sociedade não indígena. Sem formação no

audiovisual ou na música, o contato prévio que tiveram com o cinema foi por meio da

participação de alguns deles apenas como observadores durante a gravação do filme “Terra

Vermelha” no município e, posteriormente, um videoclipe embrionário, gravado durante o

Ava Marandu12. Atualmente o grupo já tem um trabalho consolidado na música. As criações

audiovisuais, entretanto, ainda são incipientes, mas a TV GUATEKA (projeto que tem no

nome as sílabas iniciais das três etnias que compõem a Reserva de Dourados – GUArani,

TErena e KAiowá) aos poucos aglutina os jovens que se interessam pelo audiovisual:

“gostamos muito de aprender coisas novas e o audiovisual chegou para atender as

necessidades da comunidade, assim como também a nossa, pois o grupo acaba gravando

alguns vídeos também” (Entrevista ao autor, 2015).

Hígor Marcelo Lobo Vieira (2014), não indígena, produtor do grupo, informa que o

projeto da TV Guateka ainda é embrionário, que o processo é lento e gradual, e procurou, em

sua dissertação de mestrado sobre o movimento Hip Hop em Dourados, MS, “identificar as

territorialidades construídas pelos MC’s Guarani e Kaiowá com [...] a desconstrução do

próprio rap numa perspectiva da indústria musical, sendo mais uma vez constituído como

instrumento ‘bélico’ para as causas indígenas” (VIEIRA, 2014, p. 16). O imaginário

prejudicado a que estão sujeitos fica evidente na discriminação, racismo e preconceito que

11 Vide Corrêa, 2017, p.211.

12 Projeto realizado em Mato Grosso do Sul pelo Pontão de Cultura Guaicuru e parceiros, denominado “Avá

Marandu – Os Guarani convidam” no período de janeiro a junho de 2010. Foi uma “proposta de realização

de uma ação cultural ampla voltada para os Guarani e os não índios” e resultou, dentre outras atividades, na

produção de dez curta metragens por diversos indígenas, em sua maioria Kaiowá e Guarani (AVA

MARANDU ”Os guarani convidam”: Cultura e direitos humanos dos povos Guarani. Pontão de Cultura

Guaicurú. Catálogo. Campo Grande, MS, 2010). Disponível em:

<www.pontaodeculturaguaicuru.org.br/avamarandu>. Acesso em: 09 fev. 2015.

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sofrem de boa parte da sociedade douradense13, ou mesmo quando viajam para shows em

outros países14, eles encontraram alguma resistência dentro da reserva, pois, na maioria das

vezes, os mais velhos têm certa dificuldade em lidar com tecnologias vindas de fora: “por

mais que tenhamos cada vez mais a presença de celulares, máquinas fotográficas e filmadoras

nas mãos dos indígenas. Mas quando eles (liderança) perceberam que usamos o rap como

instrumento de luta ficou mais fácil” (entrevista ao autor, 2015). Já com a sociedade

douradense não indígena a relação é bem mais complexa: de um lado existem pessoas que são

sensíveis à causa indígena, que são os universitários, pesquisadores,

e pessoas com um olhar mais sensível, que abraçaram de bate pronto. Tem a galera

do hip hop, que curtia rap, da quebrada, que passou a conhecer os caras pelo rap e

começam a respeitar os caras através dessa construção, dessa história, e tem a galera

que sempre teve preconceito e que dificilmente vai mudar, e que acaba não

aceitando ou tecendo críticas a respeito do trabalho dos caras. Então é bem

diversificado, tem gente que aceita, curte, pira, e tem gente que vai falar mal sempre

independente do que seja, porque é indígena, porque é indígena cantando rap, etc

(Entrevista ao autor, 2015).

Não obstante, o grupo segue na contramão das grandes produções, tentando influenciar na

representação dos indígenas no imaginário contemporâneo divulgando seu trabalho em

diversas capitais como Campo Grande, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, e dividindo palco

com artistas de porte como Milton Nascimento, Nação Zumbi e os rappers Xis de São Paulo e

GOG, de Brasília, além de alcançar programas de TV de grande circulação 15 como o “TV

13 Higor Lobo Vieira (2014, p. 138) descreve, por exemplo, caso recente de racismo na rede social Facebook

que gerou grande polêmica, praticado por jovens douradenses a respeito do sucesso da apresentação do

grupo de rap BRÔ MC’s (composto por jovens Kaiowá da Reserva de Dourados) no programa “TV Xuxa”,

veiculado pela emissora de televisão Rede Globo em 2012. Durante a exibição do programa a adolescente de

classe média L. D. publicou frases racistas e preconceituosas a respeito dos músicos Kaiowá estarem

difamando a imagem da cidade na TV e foram acompanhados, inicialmente por “likes” e outros “posts” de

apoio, igualmente preconceituosos e racistas e, posteriormente, por protestos defendendo o grupo. Em

entrevista ao autor (2015), Higor Lobo informa que a consequência foi um debate que repercutiu o suficiente

para a adolescente sofrer ação no Ministério Público. 14 Conforme Higor Lobo, quando fora do palco, os músicos “tornam-se apenas a representação do indígena”.

Tornam-se alvo de chacota numa fila de aeroporto em São Paulo; ou, a passeio no Paraguai, após um show,

são considerados suspeitos e seguidos de perto por seguranças de um supermercado em Assunção: “situação

desconfortável quando notamos que a cada seção éramos vigiados por seguranças diferentes. Mas que logo

virou entretenimento, quando a brincadeira então era, ‘onde está o índio?’. Cansamos os seguranças, nos

espalhando pelas seções, e no final ríamos daquilo tudo” (VIEIRA, 2014, p. 61, 70). 15 Clipe oficial Eju Orendive. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=olbhgyfdmqg>; Eju

orendive ao vivo “Altas horas”. disponível em: <http://globotv.globo.com/rede-globo/altas-horas/v/bro-mcs-

mostram-como-e-o-seu-rap-indigena/2130409/>; Eju orendive ao vivo “Xuxa”. disponível em:

<http://globotv.globo.com/rede-globo/tv-xuxa/v/bro-mcs-apresentam-sua-mistura-musical-na-tv-

xuxa/1904081/> ; entrevista e rap de improviso no “Festival de inverno de Diamantina, MG”. disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=jxvjja8jalc>; ao vivo no yankee “Fase terminal e BRÔ MC’s”:

<https://www.youtube.com/watch?v=uviv0fqjrgo>; Terra vermelha ao vivo no “TV Câmara” disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=qhofxb6wyl4>; acesso em 01 jul. 2015.

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Xuxa” e “Altas Horas”, da emissora Rede Globo de Televisão, e a “Câmara Ligada”, da

emissora TV Câmara, mantendo sempre sua característica e sua ideologia, fato que

dificilmente poderia acontecer caso entrasse para o casting de multinacionais da música e

entretenimento (VIEIRA apud CORRÊA, 2017, p. 109-114).

Isto posto, podemos concluir que as iniciativas de alguns dos videastas indígenas, como

se viu em diversos depoimentos, com a utilização didática do audiovisual internamente nas

comunidades, eventualmente sem a preocupação ou o objetivo de atingir grandes plateias,

conquistar prêmios ou obter retorno financeiro, são distintos do que observa comumente no

mercado. As preocupações e a prioridade dada por alguns grupos e filmakers em utilizar de

forma orgânica o audiovisual, como ferramenta para a luta por direitos, para denunciar

violências e injustiças, para se defender de pistoleiros ou do próprio Estado, e alguns

incipientes resultados práticos conseguidos, revelam um empoderamento proporcionado pela

apropriação destas novas tecnologias pelos povos indígenas de MS. Desta forma, podemos

ainda inferir que vários dos indígenas de Mato Grosso do Sul envolvidos com as novas

tecnologias de comunicação e informação e com o audiovisual em geral não somente

desenvolvem importantes percepções e reflexões a respeito de sua representação prejudicada

desde longa data no imaginário contemporâneo. Eles também se mobilizam de forma algo

inusitada, de modo a realizarem ousadas e inovadoras obras e criações, a partir de posturas e

de práxis que poderão vir a provocar mudanças favoráveis nesse imaginário. Talvez, então,

conforme observado em Corrêa (2015, p. 209) as futuras gerações possam vir a ser melhores

informadas pelas escolas e pela mídia e, eventualmente, o senso comum e a opinião pública

passem a dar sinais de uma melhor compreensão e valorização, passando a tratar de forma

mais justa os povos ameríndios que sobreviveram, durante tantos séculos, à nossa

insensibilidade, estupidez e violência.

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