o ator e o foliÃo no jogo das mÁscaras da...

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I UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES ROGERIO LOPES DA SILVA PAULINO O ATOR E O FOLIÃO NO JOGO DAS MÁSCARAS DA FOLIA DE REIS Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Doutor em Artes. Área de concentração: Artes Cênicas. Orientadora: Prof (a). Dr (a) Verôrica Fabrini Machado de Almeida CAMPINAS 2010

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I

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

ROGERIO LOPES DA SILVA PAULINO

O ATOR E O FOLIÃO

NO JOGO DAS MÁSCARAS DA FOLIA DE REIS

Tese apresentada ao Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas, para

obtenção do Título de Doutor em Artes.

Área de concentração: Artes Cênicas.

Orientadora: Prof (a). Dr (a) Verôrica Fabrini

Machado de Almeida

CAMPINAS

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

Título em inglês: “The actor and the performer “folião” on the mask games of

the “Folia de Reis”.

Palavras-chave em inglês (Keywords): Mask ; Folia de Reis ; Popular

culture.

Área de Concentração: Artes Cênicas.

Titulação: Doutor em Artes.

Banca examinadora:

Profª. Drª. Verônica Fabrini Machado de Almeida.

Profª. Drª. Maria de Lourdes Rabetti.

Profª. Drª. Mariana de Lima Muniz.

Profª. Drª. Grácia Maria Navarro

Prof. Dr. Ricardo Carlos Gomes.

Data da Defesa: 06-01-2011

Programa de Pós-Graduação: Artes.

Paulino, Rogerio Lopes da Silva.

P284a O ator e o folião no jogo das máscaras da Folia de Reis. /

Rogerio Lopes da Silva Paulino. – Campinas, SP: [s.n.], 2011.

Orientador: Profª. Drª. Verônica Fabrini Machado de

Almeida.

Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Artes.

1. Máscaras. 2. Folia de Reis. 3. Cultura popular. I. Almeida,

Verônica Fabrini Machado de. II. Universidade Estadual de

Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

(em/ia)

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Dedico esta tese aos Santos Reis e a meu avô José Lopes Paulino,

que se encantou muito antes que eu pudesse ouvir o toque de sua

viola.

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Agradecimentos

Viva os Santos Reis e a Estrela da Guia! Viva!

Viva meu pai, Sebastião Lopes Paulino, e minha mãe, Maria Edite da Silva Paulino, que

carinhosamente me orientam nestas jornadas da vida. Viva meus irmãos Vagner e Renata,

pelo carinho e presença importante em minha vida.

Viva mestre Bejo, Dona Marilda, Leandro e toda sua família! Viva Landinho e todos os

foliões da Folia de Reis de Matozinhos (MG).

Viva Dona Maria Estela e toda sua família! Viva Seu Jovil, Dona Jorgina e todos os foliões

das Folias de Reis de Fidalgo (MG).

Duas famílias, duas Folias, que generosamente me acolheram em seus lares e me

orientaram no caminho da estrela guia.

Viva Seu Dulcino Gasparelo e a sua Folia. Viva o saudoso Palhaço Gigante e todos os

palhaços e foliões que conheci durante os Encontros de Folia de Reis de Muqui (ES).

Viva a professora Verônica Fabrini, pelo seu olhar sensível para a pesquisa, e o saudoso

professor Rubens Brito que, em momentos diferentes, me orientaram no caminhar deste

doutorado. Viva!

Viva o professor Paulo Raposo do ISCTE, que generosamente supervisionou meu estágio

de doutoramento em Lisboa.

Viva a professora Léa Perez (UFMG) que, atentamente, guiou meus primeiros passos na

pesquisa acadêmica.

Viva o professor e diretor Fernando Linares (UFMG) que, sabiamente, me guiou no

caminho da máscara teatral.

Viva Ana Caldas, Renata Lima, Carolina Laranjeiras, Ricardo Ikler, Elisa Belém, Flávia

Pires e Eberth Guimarães. Queridos amigos que gentilmente contribuíram com esta tese,

lendo e debatendo muitos dos seus capítulos.

Viva Alan Sílvio, pelas precisas observações e incontáveis provocações sobre a pesquisa e

por ter me apresentado a trilha do Dhama.

Viva Alice Vilela, que, por diversas vezes, apontou-me preciosos caminhos, entre eles o de

Portugal.

Viva todos os amigos da equipe do espetáculo Sereno da Madrugada – A folia dos

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mascarados, que toparam se aventurar comigo madrugadas a dentro batendo folia: Eberth

Guimarães, Simone Sales de Alcântara, Teresa do Carmo, Sérgio Pererê, Marcelo Xavier,

Wesley Moura, Luiz Alberto, José Carlos Lucas e Galha Seca.

Viva todos os inúmeros alunos que participaram das oficinas e disciplinas que ministrei

durante a pesquisa.

Viva os professores Eusébio Lobo, Grácia Navarro, Cassiano Sydow e Mariana Muniz por

seus atentos comentários durante a qualificação.

Viva toda equipe do Evoé Teatro Escola de Lisboa, pelo convite para ministrar os cursos de

verão e pela convivência sempre tão agradável.

Viva os grupos de teatro Trapizomba e Próximo do Real da cidade de Rio Pardo de Minas,

Pirraça em Praça da cidade de Fruta de Leite e Máscaras da cidade de Guaranésia, pelas

parcerias nas oficinas.

Viva o grupo Barracão Teatro (Tiche Vianna e Ésio Magalhães) e a toda equipe do projeto

A dramaturgia da máscara por terem me aceitado como ator pesquisador e pela rica troca

de experiências, Aldiane Dalla Costa, Melissa Lopes, Alice Possane, Gabriel Bodstein e

Darko Magalhães.

Viva Renata Meira do Dpto. de Artes Cênicas da Universidade Federal de Uberlândia, pelo

convite para ministrar oficina.

Viva o Teatro Universitário da UFMG, local em que me formei e que sempre se manteve

de portas abertas para receber atividades desta pesquisa em diversos momentos do

processo.

Viva a CAPES pela bolsa sanduíche e a FAPESP pela bolsa de Doutorado Direto, sem as

quais teria sido impossível ter me dedicado tanto a esta pesquisa.

Viva a Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, que forneceu os recursos

para a primeira etapa da pesquisa.

Viva Anne-Claire, Hugo Brito, Rita Silva, Cinira Macedo e Diogo Alexandre, pessoas de

além mar, muito especiais.

Viva meus queridos amigos: Anne Binder, Lídia Quadros, Flávio Silvano, Vinicius Torres,

Elisa Rossin, pela presença constante.

VIVA!

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A máscara é o incentivo do poeta.

Ancelmo dos Santos (Palhaço Saré)

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RESUMO

Esta tese constitui-se num estudo sobre as máscaras tradicionais da cultura popular

brasileira e a sua apropriação para o trabalho técnico e criativo do ator com enfoque no

universo dos mascarados presentes nas Folias de Reis de Fidalgo e Matozinhos, em Minas

Gerais. A motivação inicial da pesquisa que deu origem a esta tese partiu da constatação de

que apesar de haver uma grande quantidade de máscaras em diversas manifestações da

cultura popular brasileira, como as Folias de Reis, elas dificilmente são utilizadas de forma

sistemática na cena teatral. A intenção foi verificar como os “modos do atuar as máscaras”

e os “modos do pensar o mascaramento” nas manifestações da cultura popular brasileira

poderiam contribuir para o campo de pesquisa sobre atuação com a máscara teatral. Para

isso, proponho um diálogo entre os saberes tradicionais de manifestações como as Folias de

Reis e os saberes formais do campo das artes cênicas e da antropologia, para pensar

questões relacionadas à tradição e criação, arte e devoção, agência e simbolização, no

intuito de que sejam estabelecidos pontos de aproximação e distanciamento entre estes dois

universos. Acompanha a tese um DVD com dois documentários sobre os principais grupos

estudados, além de imagens de Folias de Reis brasileiras e de manifestações mascaradas

portuguesas e espanholas.

Palavras-Chave: Máscara, Folia de Reis, agência, manifestação tradicional.

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ABSTRACT

The actor and the performer “folião” on the mask games of the “Folia de Reis”

Rogerio Lopes da Silva Paulino

Tutor: Dr. Verôrica Fabrini Machado de Almeida

This Thesis presents a study about traditional masks of the popular Brazilian

culture and its´ appropriation to the technical and creative work of the actor. The research

was focused on the universe of the masked performers of the Folias de Reis in Fidalgo and

Matozinhos, Minas Gerais. The research first impulse that resulted in this Thesis began

with the verification that even if there are a great amount of masks in diverse Brazilian

popular culture performances such as Folias de Reis, they are rarely systematically used on

theatre performances. The purpose was to verify how the “ways to perform masks” and the

“ways of thinking masking” in the Brazilian popular culture performances could contribute

to the field of research on acting theatre mask. In order to do this, I present a dialogue

between the Folias de Reis‟ traditional knowledge and the formal knowledge of the

performing arts and anthropology fields of studies. By presenting such a dialogue, my

intentions are to reflect about questions related to tradition and creation, art and devotion,

agency and symbolization, having the purpose to establish points of approximation and

distance between those universes. It is attached to this Thesis a DVD with two

documentaries about the mainly studied groups, images of Brazilian Folias de Reis and

Portuguese and Spanish performance masks.

Key-words:

Mask, Folia de Reis, agency, traditional performances

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SUMÁRIO

PRÓLOGO

No sereno da madrugada 01

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre as máscaras populares e as Folia de Reis 14

Três jornadas em sete capítulos 18

PRIMEIRA JORNADA – O ESTRANHAMENTO

O encontro de um ator com os foliões mascarados

CAPÍTULO 1 – O transitar... 22

1.1 - Pela infância dos mascarados 22

1.2 - Do terreiro de casa ao palco 28

1.3 - Do teatro à Folia de Reis 33

CAPITULO 2 – Tradição e inovação 44

2.1 - Do couro ao látex 44

2.2 – Romantismos 57

2.3 - Aprender a aprender o conhecimento tradicional 61

CAPÍTULO 3 – Arte, brincadeira e devoção 67

3.1 - A (des) mistificação da máscara 67

3.2 - Por que os foliões não falam em arte? 77

3.3 - A diabolização da máscara no ocidente 81

SEGUNDA JORNADA – A IMERSÃO

A graça das máscaras da Folia de Reis para um folião 87

CAPÍTULO 4 – Excertos de um processo ritual 88

4.1 - A promessa e a cena verdadeira 89

4.2 - A Viração 92

4.3 - Bater Folia 96

4.4 - Foliões, vassalos e donos da casa 98

4.5 - O Protocolo 100

4.6 - O banquete 102

4.7 - Capinar o terreiro: o realismo grotesco 103

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CAPÍTULO 5 – As máscaras e o mascaramento

5.1 - A Caracterização dos Santos Reis 110

5.1.1 - As fardas 110

5.1.2 - As máscaras de Fidalgo 111

5.1.3 - As máscaras de Matozinhos 120

5.2 - Algumas noções de mascaramento 122

5.2.1 - Dançar as máscaras - A agência das máscaras sobre o corpo dos foliões 122

5.2.2 - O mascarado - Uma entidade cambiante 126

5.2.3 - Fardar – (In) vestir-se de uma perspectiva 132

5.3 - Palhaços e bastiões: Arbitrariedade das máscaras 135

TERCEIRA JORNADA – A CONFLUÊNCIA

A graça das máscaras da Folia de Reis para um ator 145

CAPÍTULO 6 - Atores “não foliões” no jogo das máscaras da Folia de Reis 146

6.1 - Primeiras aproximações 146

6.1.1 - Estratégias de abordagem 146

6.1.2 - A feiúra das máscaras 149

6.1.3 - O ator que veste a máscara ou é a máscara que veste o ator? 152

6.1.4 - As “técnicas do corpo” a serviço da máscara 158

6.2 - Reelaboração técnica do conhecimento tradicional dos foliões 163

6.2.1 - O pau de palhaço (bastão) e a construção de uma corporeidade 163

6.2.2 - Os estímulos sonoros e a sustentação de um fluxo 171

6.2.3 - As rimas e o duelo de versos 177

6.2.4 - Dançar conforme o figurino 179

CAPÍTULO 7 - O arremate 185

7.1 - O encantamento das máscaras 185

7.2 - Da anunciação à despedida 197

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 201

ANEXOS 213

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PRÓLOGO

No sereno da madrugada

Foi no sereno da madrugada que boa parte da pesquisa que deu origem a esta

Tese foi realizada. No sereno de várias madrugadas na Companhia de Santos Reis, como

também são chamadas as Folias de Reis.

Na companhia dos vários foliões que, generosamente, me acolheram e

aceitaram que eu os acompanhasse em suas jornadas, noite adentro, de casa em casa,

fazendo a representação daqueles Três Reis Magos do Oriente.

Essa aproximação do universo tradicional das Folias de Reis se deu em função

de um desejo de experimentar, enquanto ator, as máscaras das Folias de Reis num

espetáculo teatral de rua, que começou a ser ensaiado em janeiro de 2003 e estreou no ano

seguinte, em Belo Horizonte, com o nome de Sereno da madrugada – A Folia dos

mascarados.

Foi, portanto, nestes serenos, em companhia de outros atores, músicos, diretores

e foliões, que se deu minha iniciação ao conhecimento tradicional sobre as máscaras da

Folia de Reis. Um conhecimento que, por ser eminentemente prático, exigiu-nos, enquanto

equipe de criação, que buscássemos uma compreensão corporal da natureza das máscaras.

À medida que vivenciávamos a Folia de Reis em nossos corpos, durante o trabalho de

campo, nossa sensibilidade para perceber aquele universo ia aumentando. Assim como

também durante os ensaios, em que buscávamos construir um repertório de ações para cada

máscara observada, que posteriormente seria utilizada no espetáculo.

Este por sua vez, não é o resultado desta pesquisa, mas sim, o ponto de partida

para as questões que deram origem a esta Tese, que pretende, agora, fazer o leitor adentrar

no universo das máscaras da Folia de Reis.

Foi o Sereno da Madrugada que fez com que eu alterasse a forma como me

relacionava com o conhecimento tradicional dos foliões. Se antes me interessava pelo que

as máscaras da Folia tinham de parecido com as máscaras teatrais, passei a me interessar

pelo que elas tinham de diferente. Não pela diferença em si, mas por aquilo que elas tinham

de peculiar e que me parecia trazer contribuições relevantes para ampliar as perspectivas

sobre o fazer e o pensar a máscara no teatro.

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INTRODUÇÃO

Esta Tese constitui-se de um estudo sobre o jogo das máscaras das Folias de

Reis de Fidalgo e Matozinhos, em Minas Gerais. Embora o caráter descritivo predomine,

em função de um esforço para caracterizar as máscaras e a ação dos mascarados, há uma

preocupação teórica com a identificação das noções de mascaramento presentes nesta

manifestação tradicional da cultura popular brasileira. O principal objetivo é verificar como

os conhecimentos tradicionais dos foliões podem dialogar com outras abordagens da

máscara no teatro ocidental.

Desde os primórdios da colonização, o tema da visitação dos Reis Magos, que

fundamenta as Folias de Reis, se encontra presente em nossas celebrações litúrgicas. Além

de ter servido de inspiração para a primeira encenação teatral de que se tem notícia no

Brasil, realizada pelo Jesuíta José de Anchieta em 1561 (Cf. SILVA, 2006), serviu também

de inspiração para diversas outras manifestações populares no Brasil e na América Latina.

As Pastorinhas, que ocorrem em todo país, e o Cavalo Marinho, presente em Alagoas e

Pernambuco, são dois bons exemplos (Cf. ANDRADE, 1982, ACSELRAD, 2002,

OLIVEIRA E, 2006 e OLIVEIRA M 2006). No maranhão, existe ainda uma manifestação

popular bastante parecida com as Folias, mas que recebe o nome de Caretas (Cf.

CORREIA, 1977) e em alguns estados do nordeste podemos encontrar os chamados

Reisados de Caretas (Cf. OSWALD, 2007). Para o restante da América Latina, poderia

citar o caso da Colômbia, onde ocorre a Escenificación de los Reyes Magos (Cf.

CÓRDIVA, 1982) e da Argentina, onde ocorre a fiesta de San Baltasar (Cf. CIRIO, 2003).

Nas Folias de Reis são realizadas jornadas de horas e, às vezes, de dias a fio,

em que um grupo de foliões vai de casa em casa à procura da manjedoura, lugar onde

nascera o Menino Jesus. Os Santos Reis chegam mascarados e, ao invés de ouro, incenso e

mirra, oferecem rezas, cantos e danças aos moradores. Estes, por sua vez, se relacionam

com os mascarados enquanto entidades sagradas e, simultaneamente, são capazes de

estabelecer diálogos com o folião que está sob a máscara sem que isso constitua um

problema para o bom andamento do processo ritual. Estes e outros fenômenos de natureza

similar indicam a presença de algumas noções sobre o mascaramento nas Folias de Reis

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que se diferenciam daquelas encontradas, em geral, no teatro ocidental. No decorrer da

Tese, veremos como as máscaras da Folia de Reis não são apenas diferentes plasticamente

das máscaras teatrais, como também são diferentes na maneira de serem utilizadas e,

principalmente, de serem pensadas pelos foliões.

A fim de evitar que manifestações, como as Folias de Reis, sejam submetidas a

um modelo reducionista do teatro ocidental, como nos alerta Pavis (1999), procurei

estabelecer um diálogo o mais horizontal possível entre o universo das máscaras da Folia de

Reis e o universo das máscaras no teatro ocidental. Por isso, as noções sobre o

mascaramento, tanto teóricas, como práticas, foram valorizadas assim como elas aparecem

no contexto das Folias de Reis, prioritariamente a partir das idéias expressas no discurso

dos foliões. Eles costumam utilizar expressões diferentes daquelas empregadas no teatro

para descrever elementos que podemos chamar de cênicos. É o caso de expressões como

fardar, maneira como os foliões se referem ao ato de usar o conjunto formado pela máscara

e a farda, que, no teatro, corresponderia ao figurino; ou da expressão careta, que, algumas

vezes, aparece no lugar da palavra máscara. Por outro lado, veremos que nem sempre,

expressões muito comuns no meio teatral, como representação e imitação, são

compreendidas da mesma forma pelos foliões. Constatações que vão auxiliar bastante na

caracterização da natureza do seu ofício, enquanto mascarados.

Para obter êxito na compreensão dessas e de outras noções e práticas, que serão

abordadas no decorrer da Tese, foi fundamental a realização do trabalho de campo iniciado

em 2003, em função da montagem do espetáculo Sereno da Madrugada – A Folia dos

mascarados1, e que continuou após meu ingresso no Programa de Pós-Graduação em Artes

da UNICAMP, em 20052. Desde então, acompanho os grupos de Folia de Reis de Fidalgo e

Matozinhos, sobretudo nos meses de dezembro e janeiro, quando ocorrem as suas

principais atividades rituais3.

1 Nesse espetáculo trabalhei em conjunto com os atores Eberth Guimarães e Simone Sales de Alcântara. A

direção ficou a cargo de Fernando Linares, o diretor musical foi o músico Sérgio Pererê, o figurinista foi

Marcelo Xavier e os músicos Wesley Moura, Luiz Alberto, José Carlos Lucas e Galha Seca executavam a

trilha ao vivo. Este espetáculo foi uma realização do grupo Oficina de Peripécias Teatrais, do qual era diretor. 2 Em 2005, ingressei no Mestrado em Artes na UNICAMP, que não foi concluído, porque fui transferido para

o Doutorado Direto no exame de qualificação, em dezembro de 2006. 3 Fidalgo é um dos primeiros povoados de Minas Gerais. Suas origens remontam à bandeira de Fernão Dias,

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Figura 1 – Mapa da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Fonte: DER-MG.

Neste período participei também de alguns encontros de Folias nas cidades

mineiras de Belo Horizonte e Contagem, nos quais tive contato com aproximadamente

em 1694. É um dos principais distritos de Pedro Leopoldo, cidade localizada a 40 km ao norte de Belo

Horizonte, com aproximadamente 59.054 habitantes. Na divisa de Fidalgo, situa-se a cidade de Matozinhos,

que possui aproximadamente 34.789 habitantes. Estas cidades se encontram na direita alta do mapa acima.

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quarenta grupos. E na cidade de Muqui, no Espírito Santo, onde estive, por duas vezes, num

encontro com mais de oitenta grupos de Folias capixabas, cariocas e paulistas. Participei,

ainda, por diversas vezes, de atividades das Folias das cidades mineiras de Santa Luzia,

Matozinhos, Pedro Leopoldo e Lagoa Santa, acompanhando jornadas de até trinta e seis

horas de duração ininterruptas.

É importante destacar que a experiência proporcionada pelo trabalho de campo

foi fundamental para que pudessem ser acessadas dimensões mais profundas do

conhecimento contido nas Folias de Reis, que não se encontram aparentes. Principalmente

porque, nestas manifestações, o ato de não falar sobre os procedimentos técnicos, por

exemplo, é visto quase como uma etiqueta, dando a falsa idéia de que os conhecimentos

tradicionais seriam fruto de um legado natural repassado quase de forma espontânea (Cf.

Rabetti, 2000).

***

A análise das informações e impressões coletadas e a compreensão das

experiências vivenciadas durante a pesquisa foram realizadas com auxílio de referências

bibliográficas de autores, não só do teatro, mas também da antropologia. Recorri a

antropólogos com abordagens teóricas que dialogam com o campo das artes, sobretudo em

relação aos objetos e às formas espetaculares produzidos fora de contexto eminentemente

artístico.

Uma das importantes referências foi o antropólogo e biólogo Gregory Bateson

(1976) que, em alguns de seus trabalhos, mostra-se interessado em saber que elementos

constitutivos de uma obra de arte poderiam ser percebidos independente de barreiras

culturais. Para identificá-los, este autor procura averiguar quais as informações psíquicas

importantes estão presentes num objeto de arte, que prescindem do que eventualmente estes

objetos representam. Ele se pergunta sobre o que estaria implícito no estilo, nos materiais,

na composição, no ritmo e em todos os demais elementos. Segundo ele, os leões de bronze

da “Trafalgar Square”, uma famosa Praça de Londres, mesmo que fossem águias ou

bulldogs, continuariam portando a mesma mensagem sobre o império e as premissas

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culturais da Inglaterra no século XIX. Porém que diferença haveria em sua mensagem se

eles fossem feito de madeira e não de bronze?

Para Bateson (1976, p.157) o que interessa é que:

O código mediante ao qual os objetos ou pessoas (ou seres

sobrenaturais) percebidos se transformam em madeira ou pintura

constituem uma fonte de informação sobre o artista e sua cultura. (...)

Minha pergunta, pois, versa, não sobre o significado da mensagem

codificada, senão sobre o significado do código elegido4.

Como o interesse central dessa Tese está em verificar como o conhecimento

tradicional dos foliões pode dialogar com o conhecimento teatral dos atores, no que diz

respeito à atuação com a máscara, as considerações de Bateson (1976) sobre o que a arte

pode comunicar em diferentes contextos culturais, foram bastante esclarecedoras.

Especialmente aquelas dedicadas à noção de graça, por oferecerem uma instigante

possibilidade de diálogo com a forma como essa mesma noção aparece nas Folias de Reis.

Ao dizer que uma ação dos mascarados teve ou não graça, um folião pode estar

se referindo tanto à capacidade do mascarado de ser engraçado como de despertar interesse

nas pessoas presentes. Ou seja, é uma das formas recorrentes dos foliões qualificarem a

performance dos mascarados. Para Bateson (1976, p. 155): “A arte é uma parte da busca da

graça levada a cabo pelo homem: algumas vezes, seu êxtase e seu êxito parcial; algumas

vezes, seu furor e sua agonia no fracasso. (...) Não há dúvida, de que cada cultura possui

suas espécies características de graça”.5

De acordo com Bateson, quando a arte é capaz de expressar algo como a graça,

essa expressão seria percebida independente de barreiras culturais. Seria como na natureza,

argumenta Bateson (1976: 156), “(…) a graça física dos gatos é profundamente diferente

da graça física dos cavalos, e no entanto, um homem que não tem a graça física de nenhum

4 Original em espanhol: “El código mediante el cual los objetos o personas (o seres sobrenaturales) percibidos

se transforman em madera o pintura constituye uma fuente de información sobre el artista y su cultura. (...) Mi

pregunta, pues, versa, no sobre el significado del mensaje codificado, sino sobre el significado Del código

elegido” (Bateson, 1976, p.157). 5 Original em espanhol: “El arte es una parte de la búsqueda de la gracia que lleva a cabo el hombre: algunas

veces, su éxtasis y su éxito parcial; algunas veces, su furor y su agonía en el fracasso. (…) A no dudar, cada

cultura tiene sus especies características de gracia” (Bateson, 1976, p. 155).

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deles dois, pode avaliar a de ambos”6. Mas segundo ele, para que essa graça se manifeste é

preciso que os elementos constituintes da obra perfaçam uma totalidade integrada dos

múltiplos níveis mentais, que teria como extremos, o consciente e o inconsciente.

Já na Folia de Reis de Matozinhos, Landinho, assim descreve o seu ofício de

folião,

Tem Folia que dança demais, mas se perguntar os nomes dos Reis

vai responder Zé, João e Joaquim. (..) tem muita gente que tem medo

da nossa Folia, eles sabem que nós somos bem preparados. (…)

Folia é igual a futebol profissional, se colocar um que não tá

treinado não fica bom. Não completa o terno. Aí não tem graça (...).

Tem que ter cabelo no coração, se não tiver a gente põe cabelo no

coração dele.

Sem querer esgotar os diversos sentidos que a expressão ter cabelo no coração

pode sugerir, se considerarmos que o cabelo nasce na cabeça, região do raciocínio, esta

expressão talvez esteja indicando a necessidade de que o folião pense mais com o coração.

Esta proposição se aproxima de modo curioso da afirmação feita por Bateson (1976, p.

156), de que “para alcançar a graça, as razões do coração tem que ser integradas com as

razões da razão”.

Em toda obra de Bateson, de acordo com Otávio Velho (2001, p.137), é

possível perceber como ele acredita que “as propriedades não são das coisas em si, nem

estão nelas; são apenas diferenças, e só existem em relação”. De fato, podemos perceber

uma recorrente abordagem relacional na obra de Bateson (1993), que acredita, por

exemplo, que uma mão não é um conjunto de dedos, mas o conjunto das quatro relações

que se estabelecem entre eles. Foi essa perspectiva relacional com que Bateson desenvolve

seu argumento que me levou a abordar as máscaras da Folia de Reis, não como objeto, mas

com um conjunto de, no mínimo, duas relações: a que se estabelece entre a máscara e quem

a utiliza e deste, com quem a vê sendo utilizada.

Há uma série de outros autores que procuram pensar a máscara para além do

objeto. Emigh (1996, p.7), ao estudar uma série de máscaras asiáticas, acredita que “ (…)

6 Original em espanhol: “(…) la gracia física de los gatos es profundamente diferente de la gracia física de los

caballos, y sin embargo un hombre que no tiene la gracia física de ninguno de ellos dos puede evaluar la de

ambos” (Bateson, 1991, p.156).

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em muitas regiões do mundo não ocidental, a tendência é olhar a máscara como um

instrumento de revelação, que dá forma ao inefável e proporciona um nexo entre o

indivíduo e as forças determinadas socialmente que modelam o senso individual das

potencialidades humanas”7. Barcelos Neto (2006, p. 190), ao estudar as máscaras dos índios

Wauja no Alto Xingu, observou que “é bastante complicado dizer que as máscaras são

objetos, talvez de um ponto de vista museológico e mercadológico elas o sejam. Estrutura

anatômica e instrumental, as máscaras são também um problema da alma”.

Este último autor em especial, se apóia numa perspectiva teórica, que aparece,

sobretudo, em alguns estudos de antropologia da arte, dos quais Gell (1998) é uma das

referências importantes e que também influenciou bastante nas reflexões desta Tese. Esse

autor se recusa a discutir a arte em termos de símbolos e de significados.

No lugar da comunicação simbólica eu coloco toda a ênfase no

agenciamento, na intenção, na causação, no resultado e nas

transformações. Vejo a arte como um sistema de ação, que se

preocupa em mudar o mundo, ao invés de tratá-la como um esforço

de codificar simbolicamente as proposições sobre ele (GELL, 1998,

p.6) 8.

Gell (1998) propõe que uma antropologia da arte deve se dedicar ao estudo das

relações sociais na vizinhança dos objetos que seriam mediadores de agenciamento social,

ou seja, ele considera que os objetos podem ser tratados como pessoas. Gell (1998) está

declaradamente inspirado na “economia da dádiva” proposta por Mauss (2003), segundo o

qual, os artefatos são parte destacada das pessoas no processo de transação cerimoniais. No

entanto, seu avanço está em propor que, os objetos de arte podem ser considerados como

pessoas, independente de estarem situados em processos de transação ou não, ou em

economias do dom ou da mercadoria.

Os objetos de arte seriam capazes, não só de exercer agência social, como

poderiam ter sua perspectiva agentiva alterada de acordo com o contexto em que estão

7 Original em inglês: “(…) in many areas of the non-Western world, the tendency is to regard the mask as an

instrument of revelation, giving form to the ineffable and providing a nexus between the individual and those

communally defined forces that shape one‟s sense of human possibilities” (Emigh, 1996, p. 7). 8 Original em inglês: In place of symbolic communication, I place all the emphasis on agency, intention,

causation, result, and transformations. I view art as a system of action, intended to change the world rather

than encode symbolic propositions about it (Gell, 1998, p. 6).

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inseridos. Segundo ele, os tipos de agência atribuída a um objeto de arte são inerentemente

e irredutivelmente sociais. Um objeto de arte nunca emerge como agente, exceto em um

contexto social mais específico. Ou seja, um talismã só tem poder dentro do seu contexto

de origem, assim como um quadro de um pintor adquire valor apenas dentro de

determinado contexto artístico.

Com isso, Gell pretende avaliar a produção daquilo que poderia ser considerado

arte, mas que não fora produzido em um contexto estritamente artístico, da mesma maneira

que ele avalia os objetos de arte da sociedade ocidental. Esse autor evita, assim, utilizar o

conceito de estética, pois segundo ele, o desejo de ver a arte de outras culturas

esteticamente nos diz mais sobre nossa própria ideologia e sua veneração quase religiosa de

objetos de arte como talismã estético, do que aquilo que diz sobre outras culturas.

Por último, é importante frisar que, se Gell se recusa a buscar o significado do

objeto em um sentido simbólico, denotativo, explícito é porque ele estaria mais interessado

na significação (significance) do objeto, no seu valor, já que é impossível sustentar a

eliminação de todo e qualquer sentido do mesmo, como observa Lagrou (2003) 9.

No campo das Artes Cênicas e, mais especificamente, no campo de estudos

sobre a máscara, as reflexões de Gell vão influenciar fortemente Wiles (2007). Este autor,

ao estudar as máscaras da tragédia grega, afirma que as “as máscaras clássicas foram

concebidas não como artefatos, mas como agentes de transformação” (WILES, 2007, p.

41)10

. Sendo que sua obra, Mask and Performance in Greek Tragedy from Ancient Festival

to Modern Experiementation, é um referencial importante para as reflexões apresentadas

nesta Tese, uma vez que, além de também ter uma abordagem relacional do trabalho de

9 Barcelos Neto (2006, p. 172) nos oferece um ótimo exemplo para compreender essa proposição de Gell, a

partir de exemplo sobre os Wauja: “a escolha dos motivos gráficos para as pinturas é mais ou menos livre (...)

uma panela-sapo pode ser pintada com motivos do morcego. Esta é uma das razões que torna um equívoco

procurar “o significado” de cada motivo per se e relacioná-lo a um suporte específico (…). O entendimento

do significado do grafismo wauja assenta-se menos nele próprio do que na agência de seus criadores”. Sobre

as máscaras, Barcelos Neto (2006, 198) afirma que: “a identidade de uma máscara não passa pelo aprendizado

de uma „linguagem de códigos visuais‟, uma vez que o grafismo Wauja não funciona ao modo de uma

gramática. (…) a pintura das personagens rituais vale-se antes das capacidades performáticas dos xamãs do

que de pressupostos canônicos de produção e recepção. Portanto, são as interpretações/traduções xamânicas

que contróem as „imagens mutantes‟ que são as pinturas das máscaras. 10 Original em inglês: “The classical masks were conceived not as artefacts but as agents of transformation”

(Wiles, 2007, p. 41).

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máscara, esse autor constrói uma extensa reflexão sobre o mascaramento do teatro grego ao

contemporâneo.

É a partir da perspectiva relacional apresentada por estes autores que coloco a

questão central dessa Tese: uma vez identificada a graça que os foliões encontram nas

máscaras da Folia, seria essa graça a mesma que se manifestaria, no sentido atribuído por

Bateson (1976), no momento que estas máscaras forem utilizadas em outro contexto, como

o do teatro, por exemplo? Se um objeto pode mudar sua agência, de acordo com o contexto

que se encontra inserido, que tipo de agência as máscaras da Folia de Reis podem exercer

em um “não folião”, como por exemplo, um ator?

Foi no intuito de responder a estas questões que realizei uma série de

experimentos práticos com as máscaras das Folias de Reis. Ministrei um total de nove

oficinas e duas disciplinas em cursos de graduação em Artes Cênicas para alunos que, em

sua maioria, não tiveram qualquer tipo de contato prévio com o contexto das máscaras da

Folia.

Estas atividades foram realizadas entre 2007 e 2010. Nelas, procurei trabalhar

com diferentes perfis: atores profissionais e amadores, estudantes de teatro, atores de

origem urbana e de origem rural, com e sem familiaridade com máscaras ou com elementos

da cultura popular. A intenção era verificar a forma como estes atores se apropriariam

destas máscaras e a agência que as mesmas exerceriam sobre o corpo deles, ou seja,

investigar o que se produziria desse encontro.

O meu interesse era saber até que ponto o uso dessas máscaras, mesmo tão

diferentes das máscaras teatrais, seria capaz de potencializar dimensões relacionais que

iriam além de proporcionar um mero disfarce. As máscaras da Folia de Reis deveriam ser

percebidas não como um objeto manipulado, mas como um agente engajado num conjunto

de transações, que incluem ações eficazes na tentativa de tornar visível, de fazer presente,

as dimensões da brincadeira e a construção de um sentido de sacralidade ou de

encantamento, seja na Folia ou no teatro.

Não me interessava, portanto, repassar para os atores os significados que os

foliões atribuíam às máscaras em contexto ritual. Tampouco, apresentar-lhes estruturas de

movimento e ações utilizadas pelos foliões. Esta foi a forma como trabalhamos na

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montagem do espetáculo Sereno da Madrugada que, para obter sucesso, exigiu-nos a

realização de intenso trabalho de campo e, como resultado final, acabou nos mantendo

muito próximos do universo das Folias de Reis, quase num espetáculo documental.

O avanço das oficinas, em relação a esse processo de montagem, foi o de

proporcionar circunstâncias em que os atores fossem estimulados a encontrar algum sentido

ou motivação para construírem situações de jogo com as máscaras da Folia no contexto da

cena teatral. O meu papel foi o de oferecer indicações de alguns dos princípios centrais do

mascaramento percebidos durante o trabalho de campo, que poderiam auxiliar os atores a

melhor explorar a potencialidade destas máscaras em cena.

Estou ciente de que este tipo de perspectiva poderia não ser muito bem vista por

pesquisadores como Balogun (1977) que, por exemplo, critica os cubistas por terem

perdido o que havia de fundamental nas máscaras africanas, justamente porque eles não

levaram em conta os seus significados rituais ao se apropriarem das mesmas. Ou como

Ferreira (2007, p.16) que afirma que:

A incorporação de elementos da arte popular presente nas obras de

muitos artistas de mercado contemporâneos (privilegiando a

materialidade do “popular” e deixam de lado seu sentido mais

profundo), não pode ser entendida como um diálogo produtivo com

o popular, mas como um aproveitamento de suas formas finais e um

esvaziamento de seus significados que são, quase sempre, reduzidos

a uma visualidade agradável, porém estéril em termos de

questionamento da arte.

Acontece que, no momento de trabalhar com os atores, me pareceu mais

interessante abordar a forma como eles se relacionariam concretamente com cada uma das

máscaras, assim como elas se apresentavam fora de seu contexto original. Isso porque, ao

contrário de Ferreira (2007), acredito que há registrado, na “materialidade” de cada

máscara, muito do seu sentido profundo e que, mesmo elas sendo utilizadas fora de seu

contexto, elas guardam muito do universo onde foram criadas originalmente. Tomo cada

uma das máscaras como uma espécie de testemunho material de um conjunto de

conhecimentos dos foliões que se encontram ali registrados, mesmo que não de maneira

explícita. Ou seja, a forma como recorro à “materialidade” das máscaras não se confunde,

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como no argumento de Ferreira (2007), com uma busca por uma “visualidade agradável”,

principalmente porque a máscara não é um objeto que se presta apenas à contemplação.

O próprio Balogun parece contraditório ao criticar os Cubistas, já que ele

mesmo admite a existência de um sentido oculto em cada escultura que, no contexto

africano tradicional, é mais valorizado que seu aspecto aparente. De que forma, os cubistas

poderiam ter acesso a esse sentido se ele por definição é oculto. E, mais que isso, o que

impede que esse sentido oculto tenha sido captado de forma inconsciente pelos cubistas e

que de alguma forma apareça expresso em suas criações? Afinal, há muito mais numa

máscara para além dos seus significados rituais e do que podemos constatar ao vê-las.

Dimensões que só se revelam em todo o seu potencial expressivo, muitas vezes, de forma

arbitrária, apenas no momento em que entra em contato com o corpo de um performer, a

exemplos de um ator ou um folião.

Reafirmo, contudo, que foi de fundamental importância identificar os princípios

que regem o mascaramento nas Folias, seja durante o trabalho de campo, seja quando

estava utilizando as máscaras em cena na construção do espetáculo Sereno da Madrugada.

Pois só assim pude aplicá-los na hora de ministrar as oficinas. Apostei no fato de que isso

poderia trazer resultados teatrais mais potentes do que se eu ficasse centrado no significado

que as máscaras possuem para os foliões, sobretudo porque dificilmente poderia repassá-los

para os atores com a devida profundidade, pois demandaria um tempo razoável, que

poderia ser dedicado à criação.

No campo dos estudos teatrais do ocidente, também há criadores que

problematizam a centralidade do significado no processo criativo. Lecoq (2007, p. 93) ao

relatar que por vezes trabalhava com máscaras de diferentes culturas em suas aulas, como

as máscaras de Bali, afirma que:

Nós as utilizamos de maneira diferente, como ocorre com algumas

máscaras africanas que usamos às vezes, sem buscar a dimensão

simbólica original. (...) a dimensão simbólica do teatro é importante,

porém chega depois do nosso trabalho: não podemos realizar gestos

simbólicos codificados sem alimentá-los do que constitui a vida11

.

11

Original em espanhol: “Nosotros las utilizamos de manera diferente, al igual que ocurre con algunas

máscaras africanas que usamos as veces, sin buscar la dimensión simbólica original. (…)la dimensión

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Em outra ocasião ele vai dizer que:

Para conhecer o valor de uma máscara não basta analisar os seus

símbolos através de um discurso de significados, é preciso conhecer

o seu comportamento por meio da sucessão de movimentos que ela

sugere. Uma máscara que seja somente simbólica, não é uma

máscara da representação, não é mais que uma máscara imóvel de

uma ideia fixa (LECOQ, 2005, p. 123)12

.

Para que as questões abordadas nesta pesquisa não ficassem restritas aos pontos

de vista do teatro ocidental e pudessem favorecer uma melhor compreensão dos elementos

fundamentais das máscaras tradicionais brasileiras, dei especial atenção a alguns estudos da

máscara e do mascaramento que foram elaborados em outros contextos. Além dos autores

já citados, destacaria os estudos de Barroso (2007) sobre os Caretas e os Bois do nordeste

brasileiro e de Strother (1998) e Ukaegbu (2007) para as máscaras no contexto africano,

respectivamente República Democrática do Congo e Nigéria. Todos possuem em comum o

fato de priorizarem uma abordarem detalhada da performance das máscaras, estando menos

focados nos aspectos plásticos.

Ademais, nem sempre é fácil encontrar obras que abordem especificamente a

máscara no teatro ocidental, sobretudo em termos de atuação. Por isso procurei também

seguir os rastros de alguns importantes criadores do teatro que trabalharam com a máscara,

como Lecoq (2007, 2001), Mnouchkine (2001), Brook (1970, 1994, 2000) e Jonhstone

(1990), procurando pistas em algumas de suas obras. Sendo que muitas destas foram

encontradas na coletânea sobre máscaras realizada por Aslan (1989), Le Masque Du Rite

Au Theatre e no livro de Wiles (2007).

Além de todo o referencial teórico, não posso deixar de citar o fato de que a

forma como cheguei a esta proposta de pesquisa é devedora também de influências que

recebi de alguns pesquisadores de máscaras, notadamente do diretor e mascareiro Fernando

simbólica del teatro es importante, pero llega después de nuestro trabajo: no se pueden realizar gestos

simbólicos codificados sin alimentar-los de lo que constituye la vida. (Lecoq, 2007, p. 93). 12

Original em italiano: “Per conoscere Il valore di uma maschera non basta analizzare i suoi simboli tramite

um discorso de significato, ma occorre conoscerne il comportamento per mezzo del susseguirsi dei movimenti

chéssa suggerisce. Uma maschera che sai solo simbólica non è uma maschera da rappresentazione, non è che

la maschera immobile di unídea fissa” (Lecoq, 2005 , p. 123).

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Linares e do grupo Barracão Teatro13

. Linares foi o responsável pela minha iniciação no

universo da máscara teatral, no início da década de 90, do qual fui aluno no Teatro

Universitário da UFMG e com o qual realizei dois espetáculos e diversas oficinas. Já nos

dois anos de trabalho com o Barracão Teatro, tive oportunidade de participar do projeto A

dramaturgia da máscara e depois atuar em um de seus espetáculos de máscara.

Os estudos sobre as máscaras populares e as Folias de Reis

Dentro do campo das Artes Cênicas no Brasil, as máscaras populares além de

serem um objeto de estudos recente, nem sempre são o tema central das pesquisas em que

aparecem. É o que se pode observar na Dissertação de Lewinsohn (2009), por exemplo, em

que ela aborda o tema das máscaras no Cavalo Marinho, uma manifestação popular da zona

da mata pernambucana, mas como parte de suas reflexões sobre a atuação para o teatro de

rua. O mesmo acontece com a Dissertação de Oliveira M (2006) em que a máscara aparece

como um dentre os diversos recursos, presentes no Cavalo Marinho, ao qual esta autora

recorre para trabalhar com atores. Já no livro de Castro (2005), O elogio da bobagem:

palhaços no Brasil e no mundo, a autora faz apenas uma breve referência aos palhaços das

Folias de Reis.

Sem ter a pretensão de esgotar toda a bibliografia sobre o tema, dos trabalhos

nas Artes Cênicas, no contexto das formas tradicionais da cultura popular, em que a

máscara ou os mascarados constituem o principal enfoque, poderia citar a pesquisa de

Oliveira E (2006). Em sua Tese, este autor realiza uma extensa e cuidadosa caracterização

dos personagens mascarados do Cavalo Marinho, construindo uma espécie de tipologia dos

mesmos, além de fazer uma análise da sua estrutura dramatúrgica. Ainda nas Artes Cênicas

temos a Dissertação de Santos (2008) que realiza um estudo sobre alguns palhaços da

cultura popular, incluindo os da Folia de Reis, mas dando destaque para os palhaços do

Pastoril Profano.

13

Fernando Linares é professor de interpretação do Teatro Universitário da UFMG. É ator, diretor, mascareiro

e estudioso da máscara teatral, sendo um dos fundadores do Grupo Galpão de Belo Horizonte, tendo dirigido

alguns de seus espetáculos. O grupo Barracão Teatro possui sede em Campinas (SP) e é coordenado por Tiche

Vianna e Ésio Magalhães, tendo como importantes linhas de pesquisa, a investigação da máscara teatral e do

palhaço.

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O estudo que, contudo, além de ter a máscara como principal protagonista, nos

apresenta uma série de reflexões importantes sobre o mascaramento na cultura popular,

apesar de ter sido realizado num programa de Doutorado em Sociologia da Universidade

Federal do Ceará é de autoria do dramaturgo e diretor teatral cearense Oswald Barroso

(2007). Em sua Tese, Barroso (2007) recorre a um extenso banco de dados elaborado a

partir de suas pesquisas sobre os Reisados de Caretas de algumas cidades do Ceará,

dialogando com os saberes de diversos mestres sobre sua performance com as máscaras

deste brinquedo, denominação que muitas manifestações tradicionais da cultura popular

brasileira recebem, principalmente no nordeste14

.

Em relação aos estudos sobre as Folias de Reis, encontrei poucos realizados no

campo das Artes Cênicas. Dentre os que tive contato, encontram-se um pequeno artigo de

Telles e Freitas (2004) sobre os palhaços do triângulo mineiro, o trabalho de Santos (2008)

citado há pouco e a Tese de Monteiro (2005) também sobre os palhaços da Folia de Reis.

Esta autora defende a hipótese de que a performance dessa máscara está diretamente

relacionada às linhagens dos mascarados que representam os espíritos dos ancestrais nos

ritos festivos de países africanos como a Nigéria ou o Congo, realizando esta discussão,

sobretudo a partir da análise dos elementos relacionados à dança15

.

A maior parte dos estudos sobre a Folia de Reis, no entanto, foi realizada por

folcloristas ou por antropólogos, dos quais destacaria os recentes estudos de Bitter (2008) e

Chaves (2003 e 2009), por apresentarem aspectos que me parecem ter algum interesse

também para o campo das Artes Cênicas. Bitter (2008), por exemplo, dedica boa parte de

sua Tese, sobre a circulação de objetos rituais, para compreender o estatuto da máscara do

palhaço das Folias de Reis. Chaves (2003), em sua Dissertação de mestrado, apresenta

importantes contribuições para a compreensão desse mascarado, ao descrever e analisar

elementos da sua performance na Folia de mestre Tachico no Rio de Janeiro. Já em sua

Tese de Doutorado, apesar de não se dedicar ao mascaramento, Chaves (2009) parte do

14

No campo da antropologia, também sem querer esgotar a bibliografia existente, poderia citar a Dissertação

de Lopes (2006) sobre os Zambiapungas na Bahia e a de Acselrad (2002) sobre o Cavalo Marinho. Estes

trabalhos apesar de nem sempre estarem centrados nos mascarados, ajudam a dar uma ideia da diversidade de

máscaras presentes nas manifestações populares brasileiras. 15

Há ainda as pesquisas desenvolvidas por Brantes (2007) sobre os Reisados do Mulungu na Bahia, mas que

segundo a própria autora se diferenciam das Folias de Reis por não possuirem os personagens mascarados.

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universo de algumas Folias para discutir alguns conceitos caros às Artes Cênicas, como

representação e mimese. No decorrer da Tese dialogarei com alguns desses trabalhos, mas

sempre procurando enfocar o ponto de vista dos mascarados, ou seja, mais do que as Folias

de Reis em si, são as máscaras e o mascaramento o principal objeto dessa pesquisa.

Dentre os grupos com os quais tive contato, escolhi me concentrar nas Folias

de Matozinhos e de Fidalgo, em Minas Gerais, porque elas possuem um conjunto de

mascarados pouquíssimo citado em toda a bibliografia consultada em qualquer uma das

áreas de estudo, que são os Três Reis Magos. Por isso, acredito que essa deve ser uma

importante contribuição desse trabalho em termos etnográficos.

Em Matozinhos, eles são chamados de Veio, Nego e Rapazinho; já em Fidalgo,

de Guarda-mor, Bastião e Benezinho. Eles se apresentam, respectivamente, como um rei

velho, um rei negro e um rei menino, em ambas as Folias. Ao contrário dos palhaços que

aparecem citados ou foram temas de estudos em boa parte das pesquisas sobre esta

manifestação, praticamente não encontrei registros em bibliografia especializada sobre essa

espécie de máscara que parece típica das Folias da região metropolitana da capital mineira,

onde estão localizados Fidalgo e Matozinhos.

Os poucos estudos, em que elas aparecem brevemente citadas, foram

realizados justamente nesta mesma região, como o trabalho de Gomes e Pereira (1996)

sobre as Folias de Jequitibá e de Bueno (2004) sobre as Folias dos Arturos em Contagem,

que são respectivamente estudos sobre religião e literatura brasileira. Fora isso, encontrei

apenas uma nota de pé de página de um trabalho de Brandão (1977, p. 34), em que ele

registra a presença destes mascarados na cidade de Mossâmedes em Goiás.

Num estudo sobre Folia de Reis que Araújo (1964) realizou na cidade de

Cunha, em São Paulo, na década de sessenta, ele registrou também a presença das máscaras

de Pai João e da Catirina, figuras muito comuns em outras manifestações tradicionais da

cultura popular brasileira. No entanto, não encontrei em nenhum outro texto referência a

estes personagens na Folia, bem como, não os observei em nenhuma Folia de Reis

pesquisada.

Das espécies de mascarados que identifiquei durante a pesquisa com as Folias

de Reis, existem ainda os bastiões, que assim como os Reis Magos, costumam ser

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17

confundidos com os palhaços. Na verdade, enquanto alguns pesquisadores registram apenas

a existência destes últimos, outros consideram que as diferenças entre as máscaras

resumem-se a uma mera questão de denominação. Mas foi devido às frequentes

advertências dos foliões, tanto de Fidalgo como de Matozinhos, de que eles consideravam

uma falta de respeito chamar de palhaços, os mascarados de suas Folias, é que pude

começar a perceber que as diferenças entre eles vão muito além do nome que cada máscara

recebe, como pretendo desenvolver no decorrer desta Tese.

O fato das máscaras serem o foco central faz com que esta pesquisa se

diferencie das demais abordagens dos elementos estéticos das Folias de Reis encontradas na

literatura sobre o tema que, normalmente, costumam priorizar o estudo da sua paisagem

sonora, ou seja, ladainhas, versos e cantos entoados pelos foliões. Há algumas exceções,

como os trabalhos mais recentes de Bitter (2006) e Monteiro (2002, 2003), já citados aqui.

Por último, é importante registrar que foi influenciado por Lévi-Strauss que

resolvi não me concentrar apenas nas máscaras dos Reis Magos e me dedicar a pesquisar

não só outras máscaras das Folias de Reis, como também de outras manifestações

tradicionais similares, já que como observa este autor:

Seria ilusório imaginar -como tantos etnólogos e historiadores da arte

fazem até hoje- que uma máscara e, de forma mais geral, uma

escultura ou um quadro possam ser interpretados cada um por si só,

pelo que representam ou pelo uso estético ou ritual a que se destinam.

Vimos que, pelo contrário, uma máscara não existe em si; a máscara

pressupõe, sempre presentes a seu lado, outras máscaras, reais ou

possíveis, que poderiam ter sido escolhidas para a substituírem

(LÉVI-STRAUSS, 1979, p.124).

Desse modo, resolvi estabelecer um diálogo mais estreito com máscaras de outras tradições

populares brasileiras como as do Bumba-meu-boi, das Cavalhadas, do Cavalo Marinho e

dos Reisados de Caretas16

, que poderiam alargar a minha compreensão sobre as máscaras

da Folia de Reis.

A aproximação com estas máscaras se deu tanto por consultas bibliográficas e

registros audiovisuais como por trabalho de campo realizado nas cidades de São Luiz do

16

Sobre Cavalhadas, ver Alves (2004); sobre Cavalo Marinho, ver Lewinsohn (2009), Oliveira E (2006),

Oliveira M (2006) e Acselrad (2002); sobre Reisados de Caretas, ver Barroso (2007) e sobre Bumba-meu-boi

ver Manhães (2002) e Lody (1995).

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18

Maranhão, Pirenópolis em Goiás e São Luis do Paraitinga em São Paulo. Nestas cidades,

pude presenciar, respectivamente, as performances das máscaras do Cazumba do Bumba-

meu-boi e do Cucurucucu e dos Palhaços das Cavalhadas, das quais trouxe alguns

exemplares para serem experimentados nas oficinas em conjunto com as máscaras da Folia

Reis. Outra estratégia que adotei, no mesmo sentido, foi viajar a Portugal para realizar

pesquisa de campo em Trás-os-montes. Região que faz divisa com Espanha e onde, ainda,

há rituais com máscaras populares que, historicamente, poderiam ser consideradas como

espécies de ancestrais das máscaras da Folia de Reis17

.

É importante deixar claro que as referências às máscaras que não pertencem à

Folia de Reis serão feitas somente quando necessário, já que não se trata de fazer um estudo

comparativo. Ao recorrer a estes outros contextos tinha como objetivo encontrar pistas na

performance destes mascarados que me ajudassem a apreender o sentido principal do

mascaramento nas Folias de Reis.

Aprendi muito com cada folião ou brincante destas manifestações, mas gostaria

de destacar alguns mestres que foram especialmente determinantes nas reflexões que

apresento no decorrer da Tese, são eles: mestre Bejo (Folia de Reis de Matozinhos - MG),

Seu Jovil e Dona Maria Estela (Folia de Reis de Fidalgo - MG), Dulcino Gasparelo (Folia

de Reis de Muqui – ES), Palhaço Gigante - José Fernandes dos Santos (Folia de Reis do

Morro da Mangueira-RJ), mestre Abel Teixeira (Cazumba do Boi da Floresta de Sr.

Apolônio – MA). Também foram influentes as idéias de seu Adão Barbeiro (Folia de Reis

de São Francisco – MG) e mestre Biu Alexandre (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro – PE),

as quais tive acesso através de outros meios, como Teses e filmes, já que não tive

oportunidade de conhecer estes mestres pessoalmente.

Três jornadas em sete percursos

A Folia de Reis é uma manifestação tradicional da cultura popular brasileira

fundamentada na ideia de reviver um percurso: aquele realizado pelos Três Reis Magos.

17

Pesquisa viabilizada com recursos da bolsa de Doutorado Sanduíche da CAPES-PDEE, sob supervisão do

professor Paulo Raposo que gentilmente me recebeu no Centro de Estudos de Antropologia do ISCTE em

Lisboa. Sobre dados históricos sobre a Folia de Reis ver: Brandão (1977, 1979, 1982), Tinhorão (2000) e

Meyer (1991).

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Seguindo o rastro da Estrela da Guia, eles saíram de seus reinos numa longa jornada em

busca de uma boa nova, com a esperança de encontrar o Menino Messias que acabara de

nascer. Reza a tradição que esse percurso deve ser feito por um folião por, pelo menos sete

anos, senão sua vida pode começar a andar para trás.

Esta Tese, por sua vez, também é sobre um percurso, ou melhor, sobre os

percursos de um ator e diretor de teatro, que por oito anos seguidos realizou uma série de

jornadas na tentativa de compreender as máscaras que são utilizadas pelos foliões de

Fidalgo e Matozinhos em Minas Gerais. Máscaras que permitem que os Santos Reis se

façam presentes nos meses de dezembro e janeiro de cada ano visitando as residências das

comunidades locais. As questões que orientam a elaboração dessa Tese são aquelas que

surgiram durante esses percursos e serão apresentadas aqui de maneira a possibilitar a

reconstrução num texto, que se pretende inteligível, de uma experiência sensível e, por

vezes, intuitiva com as máscaras da Folia de Reis.

Estes percursos foram agrupados em três jornadas. A primeira delas

denominada de “Estranhamento: O encontro de um ator com os foliões mascarados”. Como

sugere o título, se refere ao meu encontro enquanto pesquisador com o universo das

máscaras populares. Nesta primeira jornada, me proponho a discutir uma série de questões

que surgiram no momento de estudar as máscaras das Folias de Reis no limite entre o

universo ritual em que elas estão originalmente inseridas e o universo teatral no qual eu me

propus a experimentá-las. Procuro, dessa forma, contrapor os pontos de vistas de

pesquisador e pesquisados com o auxílio de referências bibliográficas pertinentes ao tema.

Assim, o primeiro capítulo se inicia com uma atenção voltada à significativa

participação de crianças nestas manifestações e o importante papel que elas desempenham

no processo de continuidade e renovação do conhecimento tradicional. Sigo discutindo os

deslocamentos constantes que realizei entre o terreiro das casas, espaço privilegiado das

Folias de Reis, e o palco, espaço por excelência do teatro. Momento em que problematizo

como o meu contato com o universo das manifestações populares, desde a infância, e a

minha formação como ator e diretor afetavam o modo como eu me relacionava com as

máscaras da Folia de Reis. No segundo capítulo, continuo tentando pensar e definir o meu

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lugar enquanto pesquisador, mas enfocando algumas implicações éticas e políticas de

realizar uma apropriação criativa de uma manifestação tradicional.

No terceiro capítulo, abordo a dimensão do sagrado presente nas máscaras.

Começo discutindo os aspectos relacionados ao fato das máscaras da Folia de Reis estarem

em função de uma devoção religiosa, tecendo algumas ponderações sobre, como neste

contexto, se dá a relação entre arte, brincadeira e devoção. Depois, discorro sobre como

algumas dimensões de sacralidade da máscara podem ser encontradas também no teatro,

sobretudo no pensamento de alguns dos criadores teatrais do início século do XX. Termino

por discutir como o processo mais amplo de diabolização da máscara no ocidente, com o

advento do Cristianismo, afeta a maneira como este objeto é percebido atualmente.

Na segunda jornada da Tese, denominada “A Imersão: A graça das máscaras da

Folia de Reis para um folião”, dedico-me ao estudo do contexto das Folias de Reis de

Fidalgo e Matozinhos para auxiliar o leitor a compreender qual a graça das máscaras para

os foliões. No decorrer desta segunda jornada, veremos que o que leva uma máscara ter

graça para um folião pode variar bastante de uma Folia para outra, mesmo que elas

pertençam a cidades vizinhas como Fidalgo e Matozinhos.

Desse modo, no quarto capítulo iremos conhecer um pouco de cada um desses

grupos e de suas práticas rituais. Pretendo demonstrar, ainda, como os elementos do

realismo grotesco, descritos como centrais no sistema das imagens da festa na cultura

popular, apresentados por Bakhtin (1999), estão presentes nas Folias de Reis estudadas.

Veremos, também, como os princípios da festa permitem que as comunidades

mantenedoras destas tradições reinventem a si mesmas, sem medo de rir de si ou mesmo

dos seus deuses.

O quinto capítulo começa com uma caracterização pormenorizada das máscaras

dos Santos Reis de Fidalgo e Matozinhos. Devo recorrer tanto aos aspectos plásticos,

quanto aos mitos de origem de cada máscara. Isso irá contribuir para que, na segunda parte

deste capítulo, sejam identificados os princípios de atuação dos foliões a partir dos

elementos presentes no universo em que as máscaras estão inseridas e compreender a forma

como os foliões concebem e avaliam o mascaramento.

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Na terceira e última jornada da Tese, “A Confluência: A graça das máscaras da

Folia de Reis para um ator”, concentro-me nos aspectos relacionados à forma como o

conhecimento tradicional dos foliões entrou em diálogo com o trabalho prático dos atores

utilizando as máscaras da Folia de Reis. No sexto capítulo, abordarei os processos e os

resultados alcançados nas oficinas de máscaras tradicionais brasileiras com os atores, os

quais foram levados, a não só trabalharem com as máscaras, mas a pensarem o próprio

mascaramento no teatro em diálogo com as Folias de Reis. Já no último capítulo, procuro

fazer um arremate das questões trabalhadas durante a tese, priorizando aspectos

relacionados à recepção de uma performance mascarada, procurando caracterizar o

encantamento provocado pelas máscaras nos processos de interação com o público, seja no

teatro ou na Folia de Reis.

Para finalizar esta introdução, alguns esclarecimentos preliminares. As

fotografias são de minha autoria com excessão daquelas em que o autor estará devidamente

identificado. Integra a Tese um DVD dividido em duas partes: “Os foliões” e “Os atores”.

Na primeira parte, dedicada aos foliões, há um documentário sobre a Folia de Fidalgo e

outro sobre a Folia de Matozinhos. Há também alguns vídeos de curta duração com trechos

de performances e entrevistas com palhaços do Espírito Santo e de algumas manifestações

com máscaras de Portugal e Espanha. Na segunda parte, dedicada aos atores, há trechos das

oficinas e disciplinas que ministrei com máscaras tradicionais brasileiras. No decorrer da

Tese, convencionei utilizar as falas e as categorias nativas em itálico e as categorias

analíticas entre aspas. Os termos e conceitos nativos serão explicados sempre que

aparecerem pela primeira vez, seja em nota ou mesmo no corpo do texto.

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PRIMEIRA JORNADA – O ESTRANHAMENTO

O encontro de um ator com os foliões mascarados

CAPÍTULO 1 – O transitar...

1.1 - Pela infância dos mascarados

Já fui Melchior, Gaspar e Baltazar pela tradição. Da idade de seis

anos que eu comecei com o Bené, comecei com seis anos. Ai com os

treze anos, eu dancei de Bastião. Ai... Dancei de Guarda-Mor...

Comecei a cantar a quarta voz... Tô indo. Não parei mais.

(Seu Jovil – mestre de Folia de Reis em Fidalgo)

Eu dancei de Benedito... Eu dancei (lembrando)... Oito anos. Até a

idade de quatorze anos eu dancei. Eu com a idade de quatorze anos eu

comecei a dançar o Bastião. Eu tirei a farda de Benedito num ano, no

outro eu já dancei de Bastião.

(Seu João Nestor – mestre de Folia de Reis em Fidalgo)

Palhaço (Folia de Reis) – Espírito Santo - Brasil

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Cucurucucu (Cavalhadas da Festa do Divino) – Goiás – Brasil

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Caretos de Podence – Trás-os-montes – Portugal

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Careto (La Vijanera de Silió) – Cantábria – Espanha

A presença de crianças mascaradas dividindo a cena com os adultos, tanto nas

Folias de Reis, como em diversas outras manifestações tradicionais, sempre me chamou a

atenção. Não só pelo aspecto poético e belo daquelas pequenas figuras mascaradas, mas por

elas serem um sinal de que estas manifestações fazem parte da vida de seus integrantes

desde muito cedo, como comprovam os relatos de Seu Jovil e Seu João Nestor,

apresentados no início desse capítulo.

Nas Folias de Fidalgo (MG), por exemplo, os foliões começam quando criança

dançando a máscara do Benezinho, que dos três Reis é considerado o mais novo. Ele pode

ser chamado também de Rapazinho ou Jiló, denominações observadas respectivamente nas

Folias de Matozinhos e Lagoa Santa, também em Minas Gerais. Seria uma espécie de

máscara iniciática, para usar uma linguagem mais próxima do ritual. É através dela que os

pequenos foliões se iniciam na arte de dançar as máscaras da Folia de Reis, aprendendo os

passos, os versos, as músicas e o jeito certo de conversar com os donos da casa.

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Os ensinamentos são repassados para as crianças durante as jornadas dos

foliões pelas casas. O que diverte e, muitas vezes, até emociona, é presenciar aquelas

crianças dando os primeiros passos de dança, às vezes meio desengonçados, com uma

evidente dificuldade de portar as máscaras no rosto, já que elas ficam normalmente

maiores, por não serem feitas sob medida. Uma mesma máscara poderá ser utilizada por

crianças de idade entre seis aos doze anos ou até um pouco mais velhos. Trata-se de uma

espécie de pedagogia, que pode ser observada também em outros contextos de máscaras

tradicionais, como comprovam os estudos de Nicholls (2006, p. 141) sobre o mascaramento

entre as crianças de Igede na Nigéria. Segundo esse autor, “os estudos de aprendizagem na

África tradicional aparentam ser em grande medida auto direcionados e a experiência direta

e o aprender fazendo ocorrem mais frequentemente do que o ensino formal”18

.

Nesse “aprender fazendo”, o Benezinho dos dois grupos de Folia de Reis de

Fidalgo é orientado literalmente ao pé do ouvido pelos foliões durante a sua performance,

no meio da roda. Há um grande interesse de todos em ver como o jovenzinho vai se sair.

Seus possíveis “erros” não são censurados, pois seu comportamento encontra-se

perfeitamente justificado através do próprio mito de origem dessa máscara, já que os foliões

o consideram um rei menino. O Benezinho, assim como toda criança, ou melhor, assim

como as crianças que dançam esta máscara, está em processo de aprendizagem. A

condição do Benezinho, enquanto rei menino e menos experiente, se confunde com a

condição do folião aprendiz, fazendo com que as ações de cada criança ao tentar aprender a

dançar aquela máscara tornem-se as ações do próprio Benezinho. Sendo esse, um dos

fenômenos-chave para compreender o mascaramento nas Folias de Reis e que será

discutido com mais cuidado no quinto capítulo.

Aos poucos, cada pequeno folião vai aprimorando sua performance e

descobrindo o seu jeito de dançar aquela máscara. Pude notar, no entanto, que o objetivo

principal não é se especializar na performance da máscara do Benezinho, mas sim se

preparar para assumir a máscara do Bastião. É somente após demonstrar habilidades com o

Benezinho que um pequeno folião poderá ser considerado apto para dançar a máscara do

18

Original em inglês: “studies of learning in tradicional Africa show it to be largely self-directed, and direct

experience and learning-by-doing occurs more often than teaching” (Nicholls, 2006, p. 141).

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Bastião. Isso acontece normalmente quando o folião chega aos quatorze, quinze anos de

idade. Sendo que a última etapa do seu processo de iniciação nas máscaras se dará, alguns

anos mais tarde, ao assumir o Guarda-Mor, que é a máscara do rei velho. Isso só virá a

acontecer lá pelos dezoito, vinte anos, quando o folião já tiver dançado bastante o Bastião.

Através dessa gradação de níveis para o aprendizado, indo das máscaras mais simples, para

as mais complexas, a criança vai sendo socializada em sua arte dentro da sociedade. Sendo

este um dos termos utilizados pelos foliões para fazer referência ao conjunto de integrantes

das Folias em Fidalgo.

Na Folia de Matozinhos, apesar das crianças estarem sempre presentes, é menos

comum vê-las fardadas, ou seja, utilizando a máscara e a roupa de um dos Reis Magos.

Ainda assim, a máscara do Rapazinho, que corresponderia ao Benezinho de Fidalgo,

continua cumprindo o mesmo papel de iniciação. O fato de ser uma máscara com menos

obrigações rituais que as outras duas e de ter uma participação menor, permite que os

iniciantes, sejam eles crianças ou não, estejam mais livres e à vontade para experimentar.

Isso facilita que novos integrantes da Folia se aventurem no mascaramento, pois sabem que

não é tão grave cometer algum deslize, já que esse é um comportamento aceito para esta

máscara. No meu caso, a única vez que aceitei o recorrente convite dos foliões para fardar,

o fiz dançando a máscara do Rapazinho.

Em Matozinhos, se os foliões perceberem que algum dos iniciantes na máscara

do Rapazinho está adquirindo mais segurança, eles poderão aumentar o grau de exigência,

fazendo com que ele fique mais tempo dançando sozinho diante do dono da casa, por

exemplo. Esse tipo de procedimento, além de testar sua resistência física, ainda permite que

o folião se aprimore no seu ofício. O Rapazinho/folião se mantém em estado de alerta, pois

sabe que, apesar da tolerância em relação a esta máscara, todos os seus companheiros estão

prontos para rir ao primeiro deslize cometido.

É nessa brincadeira que os pequenos foliões vão crescendo e mesmo depois de

adultos continuam a brincar, já que eles costumam chamar o seu ofício de brinquedo e a

sua função de brincante, denominações recorrentes em diversas manifestações tradicionais

brasileiras. O envolvimento de cada folião com o seu fazer se assemelha, guardadas as

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devidas proporções, com a forma como uma criança se envolve numa brincadeira. De

acordo com Lewinsohn (2009, p. 28):

O brincar permite a criança um estado de inteireza, permite um

espaço livre onde são colocadas todas as suas subjetividades de

maneira lúdica. (...) a criança, ao brincar, não se concentra por

obrigação. Ela se concentra porque está natural e inteiramente

envolvida com a brincadeira. Ou seja, seu mundo interno está em

diálogo profundo com seu mundo externo. O ato de brincar provoca

uma entrega, um deixar ser.

Ou seja, entre os foliões, parece que, mesmo depois de adultos, é a perspectiva da criança

que prevalece.

Talvez por isso, os mestres considerem que colocar as crianças em contato com

as manifestações desde cedo é umas das principais estratégias para perpetuar os elementos

destas tradições. Pois assim, o pequeno folião é inserido de forma lúdica e acostuma a se

relacionar com o seu fazer de forma descontraída e aos poucos vai assimilando o

conhecimento tradicional. A diferença é que quando adulto, o folião torna-se consciente de

sua responsabilidade e do seu compromisso perante seus companheiros de jornada e os

Santos Reis.

Esta Tese por sua vez, parece ser uma prova de que a estratégia dos mestres de

valorizarem a participação das crianças funciona bastante, já que esta pesquisa surgiu

também das impressões que tive, ainda criança, quando pude participar pela primeira vez

de uma Folia de Reis. Se considerarmos que o registro e o estudo destas manifestações

contribuem para uma valorização e sensibilização da sociedade e do poder público para a

necessidade de políticas públicas que dêem suporte para a manutenção das mesmas,

acredito também estar contribuindo de alguma forma para a continuidade de uma tradição

que conheci ainda quando criança.

1.2 - Do terreiro de casa ao palco

O meu contato com as manifestações da cultura popular se iniciou em Gouveia

(MG), cidade dos meus pais. Quando eu tinha meus seis, sete anos de idade, fui acordado

de madrugada por um grupo de Folia de Reis, que repentinamente começou a tocar na

janela do quarto em que eu dormia. Depois de correr assustado para o quarto do meu tio,

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que já estava na cozinha ajudando minha tia passar um café para receber os foliões, que

esperavam no terreiro da casa, passei toda aquela madrugada até o dia raiar acompanhando

a Folia. Foram diversas visitas realizadas nas esparsas residências que existiam no bairro

rural de Pedro Pereira que, por sinal, tem o nome do meu tataravô materno, mas essa é

outra história.

Não posso deixar de confessar que me emociono ao pensar como as Folias que

vi - ainda sob a perspectiva da criança da cidade grande que visita seus tios na roça - são

aquelas para as quais direciono o olhar sob a perspectiva de um ator pesquisador, que

guardou, mesmo depois de muito tempo, a sensação daquele primeiro encontro. Uma

sensação que, depois de guardada por vários anos, se fez presente quando, na madrugada de

sábado do dia 05 de janeiro de 2002, em Belo Horizonte, ao chegar a casa, por volta das

duas horas da manhã, avisto um grupo de pessoas com chapéus brancos que andavam

tranquilamente debaixo de uma garoa que insistia num chove não molha. Ao olhar com

mais cuidado, qual não foi minha surpresa ao perceber que estava diante de uma Folia de

Reis. Juntei-me ao grupo e, sob aquela fina garoa, os acompanhei numa jornada pelas casas

da vizinhança, assim como fazia, quando criança.

Dessa vez, algumas inusitadas figuras mascaradas que não existiam nas Folias

de minha infância, se apresentaram de forma estranha e, ao mesmo tempo, encantadora

diante dos meus olhos. Homens que com suas máscaras dançavam intensa e alegremente,

divertindo os presentes. Naquele momento, o encantamento era muito similar ao que tive

quando criança vendo as Folias na roça. Já o estranhamento era próprio de um menino que,

ao crescer, se tornara um ator profissional que trabalhava com máscaras e que, portanto,

tinha uma série de expectativas e convicções sobre o mascaramento que não

necessariamente apareciam contempladas na forma como os foliões se mascaravam, como

pretendo abordar a seguir. Mesmo achando aquelas máscaras tão diferentes e estranhas, elas

me encantaram o suficiente para que eu começasse, naquele momento, a pensar como seria

a sua utilização no teatro e, a partir daí, iniciei a pesquisa que deu origem a esta Tese.

Outro aspecto a ser notado é que a presença daqueles foliões, potencializada

pela maneira festiva de realizar suas preces ao Santos Reis, seja através do canto ou da

dança dos mascarados, fazia com que eu alterasse a minha perspectiva sobre aquele espaço.

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Por instantes, o Jaqueline, bairro onde vivi na periferia de Belo Horizonte desde criança, se

apresentava como se fosse a roça dos meus tios. Como afirma Meyer (2001), certos

costumes, crenças e festas organizadas a partir de relações de vizinhança e reciprocidade,

como as Folias de Reis, parecem auxiliar as populações rurais que migraram para os

grandes centros a manterem seus laços de sociabilidade e o senso de identidade. No meu

caso, por exemplo, basta apenas que uma moda de viola comece a ser entoada,

acompanhada pelo coro de vozes com sua inconfundível requinta19

, para que algumas

lágrimas me escorram dos olhos.

Nestas minhas andanças, conheci também vários foliões que, se nem sempre

falavam muito, traziam no olhar e em alguns gestos, o testemunho de uma vida devotada às

Folias de Reis. Como seu Jair, um dos únicos integrantes ainda vivo de um antigo grupo já

extinto da cidade de Santa Luzia (MG), que estava se dedicando a ajudar na fundação de

uma nova Folia. Mesmo com os movimentos limitados por uma cirurgia de rins, não

deixava de ensinar a seus filhos e netos, sobretudo as crianças, tudo que sua memória

permitisse resgatar, se emocionando com suas próprias lembranças. Aos poucos, fui

percebendo como a Folia de Reis tem um grande poder de tocar as pessoas, de mobilizar

afetivamente quem participa diretamente do grupo ou quem apenas acompanha.

Todos estes acontecimentos descritos acima, além de serem muito valiosos na

minha trajetória enquanto pesquisador, foram importantes para ajudar a esclarecer que a

minha motivação para a realização dessa pesquisa não partiu de um desejo de realizar

apenas um exercício formal de apropriação de um conhecimento tradicional para o trabalho

do ator. Na verdade, tem muito mais a ver com o fato de que o contato com a Folia de Reis

me permitiu pensar e realizar um fazer teatral que estivesse mais próximo de minhas

origens. Não enquanto gênese, uma espécie de ponto zero anterior ao qual nada existia, mas

sim de reconhecer as heranças, o legado simbólico que me foi transmitido pelos meus

antigos, pelos meus ancestrais.

Ao abordar o tema da origem nas manifestações tradicionais da cultura popular

brasileira, Carvalho (2004, p.16) argumenta que:

19

Requinta é uma nota muito aguda entoada para finalizar o canto de algumas estrofes da música.

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A origem refere-se simples e prosaicamente à emergência histórica

de uma constelação cultural que teve procedência de exposição e

como tal merece ser respeitada, nas pessoas de seus transmissores,

porque deles recebemos, herdamos ou extraímos (de modo pacífico

ou violento) o legado simbólico sempre fragmentário que chamamos

de patrimônio cultural.

Se esta pesquisa me levou a reconhecer e valorizar em mim a presença de um

determinado legado simbólico, por outro lado, a própria escrita desta Tese é uma estratégia

que encontrei para registrar, valorizar e disseminar esse legado. Possuo um histórico que

me coloca numa espécie de “entre lugar”20

: se por um lado realizo esta pesquisa em âmbito

erudito dentro de uma universidade, por outro, tenho uma vivência concreta no universo

das tradições da cultura popular brasileira desde muito novo.

Santos (2004) acredita que a busca pela ancestralidade nos levaria a uma

percepção de si, de nossa história pessoal e ao reconhecimento dos universos sócio-

culturais em que estamos inseridos, até alcançarmos nossas raízes. Para mim, o conceito de

ancestralidade tomou uma dimensão muito maior quando descobri, após mais de um ano

realizando o trabalho de campo, que meu avô paterno havia sido mestre de Folia de Reis.

Após seu falecimento, sua Folia nunca mais cantou e sua viola foi encostada. Só soube

disso durante a realização da pesquisa, quando minha avó, após saber do meu interesse

pelas Folias de Reis, me contou em voz baixa, quase em segredo. Meu pai, apesar de ter me

acompanhado em várias ocasiões no trabalho de campo, nunca fez qualquer alusão a esse

fato, por motivos que dificilmente saberei quais são. O que não é de estranhar, pois ele

quase não fala de meu avô, o qual não tive oportunidade de conhecer, pois falecera quando

meu pai era ainda adolescente.

Esta descoberta foi para mim como um momento de epifania, ou seja, um

instante privilegiado de revelação que acontece quando um evento ou um incidente ilumina

a percepção de vida de alguém, assim como a Estrela da Guia iluminou o caminho dos

Reis Magos. Para minha surpresa, quase cinquenta anos depois da morte do meu avô, estou

eu aqui, realizando não só uma pesquisa teórica, mas vivenciando no meu corpo as Folias

20

De acordo com Souza (2007), o termo entre-lugar foi constituído teoricamente no trabalho de Silviano

Santiago, no seu livro Uma literatura nos trópicos, e é utilizado amplamente no campo discursivo dos

Estudos Culturais, como operador de leitura ou resposta estratégica ao pensamento colonizador.

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de Reis. Fato que reforça minha sensação de falar a partir de um “entre lugar”, pois se por

um lado, realizo o estudo das máscaras enquanto ator, herdei do meu avô a atribuição de

neto de folião.

Na maior parte desta pesquisa, encontrei-me integrante dos processos que

estava investigando, seja intencionalmente quando quero atuar as máscaras, ou

involuntariamente quando me descubro neto de folião. Quero crer, portanto, que as

reflexões e os relatos aqui apresentados, por mais que tenham a pretensão de se aproximar

da justeza dos fatos vivenciados e observados, não deixam de ser mais uma instância de

criação, no sentido de que, mesmo quando procuro dar voz aos foliões, estou fazendo isso a

partir de uma perspectiva produzida pelo meu olhar. Por isso, o mais importante para mim é

que esses relatos e reflexões possam honrar cada um dos foliões detentores dos

conhecimentos com os quais estou dialogando.

Antes mesmo de me aprofundar na descrição e na análise das máscaras da Folia

de Reis e as possíveis formas de apropriação das mesmas para o teatro, resolvi abordar as

várias máscaras, no sentido de perspectivas, que assumi no decorrer desta pesquisa.

Máscaras que a cada momento me permitiram ver e ser visto de diferentes maneiras, num

jogo de perspectiva em que os pontos de vista se alternavam de acordo com a maneira em

que me posicionava em cada um dos diferentes contextos e circunstâncias de trabalho.

Operação que exigiu um mergulho, não só dentro de mim mesmo, como na minha própria

história pessoal. Fui obrigado a lidar com medos e uma série de pré-conceitos, que até

então eu jamais imaginava possuir, mas que inegavelmente influenciaram bastante na forma

como lidei com esse transitar entre o terreiro de casa e o palco, ou seja, entre o espaço

privilegiado pelos foliões e o espaço por excelência do ator.

De certa forma, minha trajetória como ator denuncia que as implicações que

este transitar suscita sempre estiveram no meu horizonte. Assim como os pequenos foliões,

a minha relação com o teatro começou quando ainda era menino. Aos nove anos de idade

atuei pela primeira vez numa peça encenada pela bibliotecária da Escola Municipal

Paschoal Comanducci, que ficava no bairro onde morava na periferia de Belo Horizonte.

Desde então, não parei mais de fazer teatro. Também não foi à-toa que optei por trabalhar

por mais de dez anos com temas ligados às manifestações tradicionais da cultura popular

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brasileira nos espetáculos realizados por meu grupo de teatro, o Peripécias Teatrais, que no

início se chamava Parlendas Cia Teatral. Na maior parte das vezes, os trabalhos

desenvolvidos por esse grupo priorizavam o teatro de rua, espaço de interseção entre o

terreiro e o palco. Do mesmo modo que, quando opto por concluir a minha graduação em

Ciências Sociais (ênfase em Antropologia) com uma Monografia sobre os ritos funerários

de Gouveia, fui diretamente ao encontro dos meus ancestrais, dos antigos.

Foi durante o processo de pesquisa e, especialmente da escrita desta Tese, que

fui levado a me confrontar e problematizar, de fato, as implicações do meu transitar por

entre estas duas dimensões tão familiares para mim. De um lado, o terreiro de casa, ou seja,

o espaço mais ligado às minhas raízes, à minha infância e ao que há de mais ancestral em

mim e, de outro, o espaço do palco, lugar em que consigo melhor me expressar e me

constituir enquanto artista. Ao apresentar algumas destas questões, tenho plena consciência

de que não serei capaz de esgotá-las e até mesmo posso me enganar sobre o que digo sobre

mim mesmo. Mas “abro a guarda” e me exponho, na expectativa de que a forma como lidei

com algumas das questões as quais me deparei, possam auxiliar outros pesquisadores desse

campo, sobretudo aqueles que, como eu, têm conseguido romper as várias estruturas de

exclusão social presente no sistema de ensino brasileiro.

Por fim, gostaria de fazer minhas as falas de um dos personagens do livro: A

Varanda do Frangipani, de Mia Couto (2007, p. 48), escritor que elabora, de forma poética,

diversas questões sobre pertencimento e ancestralidade:

Eu sou como o salmão. Vivo no mar mas estou sempre de regresso

ao lugar da minha origem, vencendo a corrente, saltando cascata.

Retorno ao rio onde nasci para deixar o meu sêmen e depois

morrer. Todavia, eu sou peixe que perdeu a memória. À medida que

subo o rio vou inventando uma outra nascente para mim. É então

que morro com saudade do mar. Como se o mar fosse o ventre, o

único ventre que me ainda faz nascer.

1.3 - Do teatro à Folia de Reis

Retornar ao terreiro de casa para estudar as máscaras da Folia de Reis com o

olhar de um ator, bastante influenciado pela antropologia, não foi tão simples como eu

imaginava. Mesmo que eu tivesse um histórico de investigação nesse campo, como relatei

acima, a grande diferença desta pesquisa com as máscaras da Folia é que deixei de dialogar

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com as manifestações tradicionais da cultura popular apenas como uma fonte de temas

inspiradores para criação de espetáculos. O enfoque passou a ser o de dialogar com o

conhecimento tradicional contido nestas manifestações. O interessante é que os foliões não

tiveram dificuldades de me receber entre eles, o problema maior era como eu ouvia os seus

relatos ou como eu percebia suas ações.

Uma das minhas principais dificuldades, por exemplo, foi a de conseguir olhar

as máscaras da Folia de Reis como máscaras da Folia de Reis. Eu explico. No início da

pesquisa, o meu interesse por aquelas máscaras estava justamente nos elementos que me

permitiam aproximá-las das máscaras da commedia dell‟arte com as quais estava

acostumado a trabalhar. Mesmo que, de fato, quase não existissem semelhanças entre elas.

É curioso constatar como meu olhar estava direcionado para as similaridades, por mais

simplórias que pudessem parecer. No início da pesquisa, por exemplo, me lembro que ao

ver pela primeira vez a grande verruga vermelha na máscara do Bastião da Folia de

Fidalgo, imediatamente a correlacionei com o galo frequentemente presente nas máscaras

do Arlequim. Assim como associei o grande nariz do Guarda-Mor com o nariz do

Pantaleão.

Reis Magos (Folia de Reis de Fidalgo) - Minas Gerais.

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Logo comecei a me questionar, até que ponto este tipo de postura não vinha de

uma necessidade de fazer referência a algo que vem do exterior, do estrangeiro, para validar

um conhecimento que é local, próximo, brasileiro. Mais do que utilizar a commedia

dell‟arte como uma “referência”, o que eu acabava fazendo era uma espécie de

“reverência”, à medida que sempre tentava dar “um jeitinho” de traduzir as máscaras

brasileiras em máscaras italianas, mesmo que elas pertencessem a contextos históricos e

culturais muito distintos21

.

À medida que fui me aprofundando no universo das Folias através do trabalho

de campo, percebi que as correlações que estava fazendo, além de serem praticamente

impossíveis de serem comprovadas, não traziam contribuições verdadeiras para a percepção

do mascaramento na Folia. Confesso que nesses momentos me via um pouco como os

antropólogos da escola difusionista que, no início do século XX, imaginavam que sempre

havia um local de origem único das invenções humanas e que se espalhavam a partir

daquele ponto para o restante da terra. Uma concepção evolucionista há muito tempo

superada.

Não é de todo estranho que eu tenha feito este tipo de correlação, já que no

teatro ocidental, a importância histórica atribuída à commedia dell‟arte faz com que,

dificilmente, ela não seja utilizada como referência para pensar o mascaramento,

principalmente em contextos como os das manifestações tradicionais. Assim o fizeram

autores como Oliveira E (2006), Meyer (1991, 2001) e Bitter (2008). Lewinsohn (2009,

p.33) relata que ao assistir pela primeira vez o Cavalo Marinho pensou: “Meu deus!!! Isso

aqui é uma commedia dell‟arte brasileira!!!”. Reação que não se diferenciava muito da

minha, ao ver uma Folia de Reis no início da pesquisa.

Mesmo que em alguns casos as correlações feitas por estes autores sejam

pertinentes, em outros, podemos observar, recorrendo a Taviani (1989), que são análises

anacrônicas, pois partem de uma ideia de commedia dell‟arte construída a partir dos

paradigmas do teatro moderno, que se distanciam em muito do que provavelmente ela teria

sido de fato. Segundo esse autor, falta perspectiva histórica. Para ele, os elementos da

commedia dell‟arte devem ser compreendidos no próprio espaço histórico e não

21

Sobre a categoria “jeitinho brasileiro”, ver DaMATTA (1997).

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desvinculados e abstraídos arbitrariamente dele. Taviani (1989) observa, por exemplo, que

a utilização do termo improvisação acaba por considerar as obras teatrais de todos os tipos

como herdeiras da commedia dell‟arte. É o que podemos observar quando Katz (1989, p.

77) faz a seguinte afirmação:

Como muitos espetáculos populares têm cenas de brigas e

confusões, alguns estudiosos relacionam esta presença a uma

ligação com as velhas farsas populares, tipo commedia dell‟arte. Os

diálogos, que misturam improvisação e tradicionalismo, também se

assemelham à técnica da velha comédia popular italiana.

Se considerarmos que brigas e confusões seriam o que podemos chamar de conflito, quesito

essencial para a composição dramatúrgica de uma cena, em boa parte dos estilos teatrais,

até que ponto seria plausível utilizar este aspecto como uma característica que

particularizaria a commedia dell‟arte?

O uso do referencial da commedia dell‟arte para compreender máscaras

presentes em diferentes contextos tradicionais, não se restringe ao Brasil. Segundo Taviani

(1989), isso é um fenômeno que pode ser observado tanto na Europa, como na América

Latina ou na América do Norte. Em relação ao contexto Africano, temos o exemplo de

Strother (1998), que também constatou como as máscaras presentes entre os povos do

Pende Central22

estudadas por ela, frequentemente eram analisadas pelo viés da commedia

dell‟arte, normalmente encaradas como village types. No entanto, ela argumenta que essa

analogia é profundamente enganosa porque implicaria que a representação mimética seria

central no projeto de mascaramento entre os Pende. O que, de acordo com ela, não é

verdade.

Os mascarados representam pouco das profissões reais (ferreiros ou

comerciantes). Ao invés disso, a dança de muitas máscaras antigas

são abstrações de movimentos de trabalho. Estas máscaras não

representam tipos, como o do „caçador de pássaros‟, mas constrói

uma dança altamente estilizada (STROTHER, 1998, p. XVII).23

22

Os povos do Pende Central são do antigo Zaire, atual República Democrática do Congo. 23

Original em inglês: “The masquerades represent few of the true profissions (blackmiths or traders).

Instead, the dance of many older face masks are abstracted from work moviments. This masks does not

represent type, „the bird hunter‟, but builds a highly stylized dance (STROTHER, 1998, p. XVII)”.

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Estas considerações de Strother (1998) influenciaram bastante a maneira como passei a

perceber as máscaras da Folia de Reis, bem como no processo de classificação das

máscaras, como abordarei no quinto capítulo.

Ao recorrer, ainda, a outros estudos africanos sobre máscaras, verifiquei que há

inúmeros exemplos de manifestações tradicionais nesse continente, como as estudadas por

Ukaegbu (2007) e Arnoldi (2004), que teriam uma natureza mais próxima das Folias de

Reis e, portanto, poderiam ser mais eficazes em fornecer referências para a compreensão

das mesmas do que a commedia dell‟arte. No entanto, poucas vezes isso foi feito. Um dos

raros exemplos que encontrei nesse sentido foi o trabalho de Monteiro (2005), que realizou

um estudo sobre a performance dos palhaços da Folia de Reis. Esta autora argumenta que

estes mascarados guardariam mais semelhanças com os elementos presentes em expressões

culturais provenientes do Congo-Angola, dos Yorubás da Nigéria, e dos Ejaghams da

República dos Camarões.

Se, no Brasil, nem as máscaras brasileiras foram devidamente estudadas pelo

campo das Artes Cênicas, as máscaras e o teatro africano como um todo foram menos

ainda. Dificilmente encontrei livros em português sobre o tema nas prateleiras de

bibliotecas e de livrarias brasileiras. Assim, para além de sua importância histórica, se a

commedia dell‟arte é o que primeiro nos vem à cabeça quando pensamos em máscaras,

talvez seja porque essa é a referência mais próxima de mascaramento que nos resta na

memória. Curiosamente uma memória de algo que, como argumenta Taviani (1989), nunca

existiu da forma como “mitologicamente” foi concebida pelo teatro moderno.

Ainda em busca de subsídios para compreender o mascaramento nas Folias de

Reis, imaginei que seria mais plausível encontrar parentescos destas com as máscaras

Ibéricas, devido às evidências históricas encontradas por pesquisadores como Brandão

(1977, 1979, 1982), Tinhorão (2000) e Meyer (1991), referentes à colonização portuguesa

no Brasil. Os estudos sobre Folia de Reis são unânimes em localizá-las como uma tradição

herdada de nossos patrícios, mas durante a realização do trabalho de campo em Trás-os-

montes, em Portugal, no ano de 2009, pude constatar que, em termos sonoros, corporais ou

cênicos, quase não há semelhanças entre os mascarados portugueses e seus supostos

descendentes brasileiros.

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Além de fazerem parte de manifestações populares que ocorrem

aproximadamente no mesmo período, entre os meses de dezembro e fevereiro, apenas

alguns poucos elementos da performance dos mascarados e dos figurinos são semelhantes.

Mesmo as máscaras referem-se a personagens muito distintos. Nem mesmo a devoção aos

Santos Reis, fundamental para as Folias de Reis brasileiras, apareceu como algo em

destaque nas manifestações portuguesas pesquisadas. Se houve em algum momento

elementos comuns, eles foram se transformando com o passar dos anos e, atualmente, se

apresentam como muito distintos24

.

Os dados históricos fornecidos pelos autores citados a pouco, não deixam

dúvida de que foi no rastro da memória dos colonizadores que tradições como os chamados

“ritos de peditório” aportaram no Brasil e deram origem as Folias de Reis. Entretanto, não

podemos deixar de considerar que ao aportarem aqui, as ações, as palavras e os objetos

trazidos pelos conquistadores das Terras de Santa Cruz, assim como as máscaras, passaram

por um novo processo de significação em função do contato com os povos indígenas e

africanos. Esse processo fez com que, atualmente, as Folias de Reis tenham muito pouco a

ver com as manifestações populares portuguesas das quais elas supostamente se originaram.

Ainda que possamos identificar alguns elementos comuns entre algumas

máscaras, não podemos esquecer que elas serão vivenciadas de forma muito diferente em

cada contexto, já que como bem observa Twycross & Carpenter (2002), mesmo as tradições

de máscaras sendo razoavelmente duráveis, as máscaras e suas funções mudam quando

mudam também as sociedades. Assim, após ponderar sobre estas possíveis linhas de

investigação, comecei a me questionar até que ponto o estabelecimento de relações com

máscaras de contextos tão distintos poderia ser realmente eficiente para elucidar o

mascaramento na Folia de Reis.

Se observarmos com cuidado, veremos que muitos dos elementos dos palhaços

da Folia, que Monteiro (2005) descreve como típicos da performance africana, aparecem

também, de certo modo, na performance das máscaras ibéricas. Desde elementos mais

gerais como a animalidade, a imagem multiforme, sem falar na inconstância e

24

No DVD que acompanha a Tese há alguns trechos da performance de máscaras Ibéricas que registrei

durante trabalho de campo realizado no ano de 2009 em Portugal.

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imprevisibilidade do seu comportamento, até elementos mais específicos, como o uso de

bastões e guizos ou sinetes. Estes são dependurados nas roupas com o objetivo de fazer

barulhos durante o deslocamento do mascarado e aqueles servem tanto para atacar as

pessoas ou outros mascarados, como para se defender de intromissões inoportunas.

Estas semelhanças se verificam porque, na verdade, estes elementos são

característicos de uma série de seres mascarados de natureza diabólica presentes em

culturas de todo o mundo. Uma crença comum entre os foliões é que os palhaços da Folia

de Reis, como os estudados por Monteiro (2005), seriam da parte do diabo. O mesmo

parece ocorrer com os Caretos de Podence de Portugal, os Perchtenlauf da Alemanha ou os

Mammuttones da Itália25, todas são figuras ainda presentes em manifestações populares do

velho continente, que parecem ser descendentes diretas de uma série de criaturas peludas

com máscaras horripilantes típicas dos diabos da Idade Média. Neste período histórico, o

diabo era uma das máscaras mais comuns, como atestam estudos de Courtney (1980),

Konigson (1988), Minois (2003) e Twycross & Carpenter (2002). Segundo alguns destes

autores, o próprio Arlequim também teria esse mesmo parentesco.

Emigh (1996), ao escrever sobre a máscara do demônio em contexto asiático,

argumenta que este seria um tipo de máscara comum em diversas culturas, com a diferença

de que nem sempre estão presentes as atribuições negativas que o Cristianismo lhes

atribuiu. Dentre as características destas máscaras descritas por ele, há algumas que eu

considerava como bem típicas dos palhaços da Folia de Reis, como a presença da língua

para fora da boca ou os olhos arregalados, mas que, no entanto, seriam elementos

arquetípicos comuns em diversas máscaras que remetem a esse mesmo universo diabólico,

como argumenta Emigh (1996). O mesmo pode ser dito sobre a grande verruga do Bastião

que, a princípio, relacionei com o caroço ou marca presente na máscara do Arlequim, mas

que é uma característica presente também em diversas máscaras orientais, como mostra Fo

(1999).

Por último, eu ainda citaria os estudos de Schechner (1993) sobre os

Chapayekam, mascarados presentes no ritual dos “Waehma” dos Yaqui, um grupo indígena

25

Sobre mammuttones (Cf. FO, 1999, p.33), sobre perchtenlauf (Cf. COURTNEY, 1980, p. 177), sobre

caretos (Cf. RAPOSO, 2006) e (PEREIRA, 1973)

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do deserto do Arizona, que tem semelhanças impressionantes com os palhaços da Folia em

termos de sua performance ritual. Todos estes exemplos só me fazem reforçar a necessidade

de ver as máscaras da Folia de Reis como máscaras da Folia de Reis e que as comparações

que possam ser feitas, estejam em função de ajudar a esclarecer a natureza das máscaras e

menos em função de encontrar uma origem.

Outro aspecto que dificultou que eu conseguisse olhar as máscaras da Folia de

Reis como Folia de Reis é que, durante a minha formação acadêmica enquanto ator, não

tive nenhum contato com as inúmeras máscaras das manifestações tradicionais da cultura

popular que existem pelo Brasil afora. A exceção do espetáculo Figural de Antônio

Nóbrega, que assisti quando ainda cursava a escola técnica de teatro da UFMG e que

utilizava máscaras tradicionais brasileiras.

Lembro-me bem do comentário do professor que ministrava a disciplina de

interpretação com máscara naquela época, observando que Nóbrega utilizava as máscaras

não da maneira como tecnicamente se devia utilizar no teatro. Bom, mas não era teatro o

que Nóbrega fazia? E que maneira técnica seria essa? De todo modo, eu conseguia perceber

que havia sim alguma diferença entre a maneira que utilizávamos as máscaras, neste caso,

da commedia dell‟arte, em sala de aula, e a forma como Nóbrega o fazia. Existiam

diferenças básicas, como o fato de Nóbrega realizar ações praticamente dançadas.

Procedimento que fica muito claro quando ouço hoje os foliões dizerem que dançam as

máscaras, aspecto que abordarei no quinto capítulo. Mas para procurar elementos que

pudessem esclarecer a natureza do comentário do meu professor, que naquela época não me

preocupei em problematizar, resolvi investigar de onde surgiram as idéias de mascaramento

pelas quais eu havia sido “educado” ou “treinado” na escola de teatro. Verifiquei, por

exemplo, que apesar da máscara ser considerada como uma importante ferramenta para

formação do ator e de estar se tornando cada vez mais presente na cena brasileira, a sua

utilização, seja como recurso pedagógico ou estético, é algo relativamente novo26

.

De acordo com Costa (2006, p. 73), no Brasil, “o trabalho com a máscara em

escolas de teatro só insere-se em uma perspectiva estética e pedagógica a partir da década

26

Há que se rassalvar apenas, que as máscaras foram um recurso utilizado pelos Jesuítas em suas encenações

teatrais desde sua chegada no Brasil, como abordarei no terceiro capítulo.

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de oitenta”. Ou seja, se o próprio retorno da máscara pode ser considerado como uma

ocorrência relativamente recente na história do teatro ocidental, datando do início do século

XX, a inserção do uso da máscara no processo de formação do ator brasileiro é mais

recente ainda. Santos (2006) deixa claro como até bem recentemente a máscara não era

vista com todo o entusiasmo e prestígio que adquiriu hoje no meio teatral brasileiro. Este

autor relata que, em 1985, poucos alunos da Escola de Artes Dramáticas da USP aceitaram

a proposta de montar um espetáculo com as máscaras da commedia dell‟arte. “A maioria

dos alunos encaravam a commedia dell‟arte como algo velho, um teatro antigo. A

linguagem, por não ser conhecida, não era encarada como algo renovador para o trabalho

do ator” (SANTOS, 2006, p.83). Contudo, a montagem a qual ele faz referência se

concretizou a partir do canovaccio “Arrancadentes” e acabou se tornando um marco do

trabalho de máscaras no teatro brasileiro.

De acordo com Costa (2006) e Santos (2006), o diretor desta montagem, o

italiano Francesco Zigrino, juntamente com as professoras Maria Helena Lopes (UFGRS) e

Elizabeth Lopes (UNICAMP) podem ser considerados como os pioneiros do trabalho de

máscaras no Brasil, tendo sido bastante influenciados pelas tradições francesas e italianas,

notadamente pelo método desenvolvido por Jacques Lecoq. No entanto, parece haver certo

descompasso em como a máscara estava sendo abordada aqui no Brasil e a evolução dessa

metodologia na França. Isso porque, enquanto Zigrino concebeu sua montagem, em meados

da década de 80, fazendo questão de se manter o máximo possível fiel à commedia

Dell‟arte (Cf. Santos, 2006), na França, já em meados da década de 70, Lecoq (2007) havia

realizado significativas mudanças na sua abordagem da máscara teatral. Muitas das quais

estavam relacionadas à commedia dell‟arte, que sempre esteve presente em sua escola

desde a sua fundação em 1956. Segundo ele:

Desgraçadamente, com o tempo, a aparição de clichês, de maneira

de atuar chamada „a la italiana‟, começou a se difundir. Os atores

jovens fizeram cursinhos de commedia Dell‟arte por todas as partes

e o jogo interpretativo se empobreceu. O próprio termo começava a

me chatear. Senti-me, pois, chamado a dar a volta no fenômeno

para descobrir o fundo, quer dizer, a comédia humana. (…) A

commedia Dell‟arte, um tanto estancada em suas formas, se

revoluciona, liberando então essa „comédia humana‟ da qual havia

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nascido, mas que pouco a pouco havia se esquecido (LECOQ, 2007,

p.162 e p.30) 27

.

A importância de salientar este aspecto está no fato de que, mesmo com estas

considerações de Lecoq (2007), realizadas a mais de trinta anos e com outros estudos como

os de Taviani, que em 1983 mostravam como a commedia Dell‟arte é uma espécie de

tradição inventada pelo teatro moderno, ainda há uma série de mal entendidos em relação a

commedia dell‟arte. O que influencia bastante a forma como os estudos de máscaras são

realizados no Brasil, exatamente como aconteceu comigo. No entanto, gostaria de chamar a

atenção não só para a forma como é pensada a comedia dell‟arte, mas também para o fato

de que a consolidação do trabalho de máscara no Brasil, via influência da escola de Lecoq,

parece ter feito com que se criasse uma certa ideia de que há uma única forma de se utilizar

a máscara no teatro, limitando um pouco a exploração de outras abordagens.

Só comecei a me questionar sobre as maneiras de abordar a máscara no teatro a

partir do contato com as máscaras da Folia de Reis, na ocasião da montagem do espetáculo

Sereno da Madrugada. Mas foi a participação numa oficina de máscaras balinesas,

ministrada pela atriz Fabianna Mello28

, em janeiro de 2007, em Campinas (SP), que me

permitiu rever mais ainda os meus conceitos sobre a atuação com máscaras e foi

fundamental para que eu pudesse redirecionar os rumos da pesquisa que realizava com as

máscaras da Folia de Reis.

Durante a oficina, pude perceber que muitos princípios que aplicávamos na

atuação de máscaras da commedia dell‟arte não serviam para as máscaras balinesas. Esta

constatação nem sempre era aceita com muita facilidade pelos alunos da oficina, já que

tínhamos um tipo de treinamento corporal que nos colocava num registro muito diferente

do que aquelas máscaras exigiam. Os movimentos amplos que estávamos acostumados a

fazer, por exemplo, deram lugar a uma movimentação quase minimalista. A ideia de

27

Original em espanhol: Desgraciadamente, al cabo del tiempo, la aparición de clichés, de una manera de

actuar llamada „a la italiana‟, comenzó a extenderze. Los actores jóvenes hicieron cursillos de comedia del

arte por todas partes y el juego interpretativo se empobreció. El término mismo empezaba ya a molestarme.

Me sentí, pues, llevado a darle la vuelta al fenómeno para descubrir el fondo, es decir, la comedia humana.”

(Ibid. p,162) “la comedia del arte, un tanto estancada en sus formas, da un vuelco y se revoluciona, liberando

entonces esa „comedia humana‟ de la que había nacido pero que, poco a poco, había olvidado (Ibid. p.30). 28

Fabianna Mello trabalhou por muitos anos no grupo de teatro de Ariane Mnouchkine e, no Brasil, tem

trabalhado com o grupo Amok Teatro do Rio de Janeiro, que também se dedica à pesquisa da máscara teatral.

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direcionar o olhar da máscara pela ponta do nariz, evitando que o ator mova apenas os

olhos e não a máscara, fora completamente eliminada, pois logo notamos que aquelas

máscaras adquiriam grande expressividade, mesmo paradas e apenas com os olhos do ator

se movendo no seu interior. Até a forma de jogar com estas máscaras era diferente. Ao

invés de trabalhar a estrutura clássica da triangulação,29

trabalhávamos muitas vezes apenas

com as máscaras direcionadas para a platéia, sem que uma olhasse o que a outra estava

fazendo.

Esta experiência deixou claro que alguns procedimentos que até então conhecia

do trabalho de máscaras funcionavam dentro de um determinado sistema de atuação com

um determinado tipo de máscaras, notadamente aquelas elaboradas a partir das influências

da escola de Jacques Lecoq, mas que de maneira alguma era a única maneira de se animar

uma máscara. Não estou dizendo, contudo, que não haja elementos que possam ser comuns

entre uma tradição e outra. Lecoq (2007), por exemplo, acredita que é necessário uma boa

articulação corporal para que as máscaras de qualquer tradição tomem vida. Acredito que

esta articulação, no entanto, pode ocorrer de diferentes maneiras, ou seja, assim como

poderíamos dizer que há diferentes formas de manipular um boneco dentro do teatro de

formas animadas, há diferentes formas de articular o corpo no teatro com máscara. Neste

caso, o que se mantém semelhante é o princípio da articulação.

Ainda há uma última experiência a ser citada que foi a do grupo de estudos

sobre máscara, formado por mim e os atores Vinicius Torres Machado, Melissa Lopes, Ana

Caldas e Elisa Rossin. Na época, alunos da pós-graduação em teatro da USP e da

UNICAMP. Aproximadamente por seis meses, discutimos uma série de possibilidades de

experimentação com a máscara teatral. Durante esse processo, estudamos a obra de artistas

como o grupo alemão Familie Flöz, que possuem propostas bastante originais de

abordagem do mascaramento. Todas estas experiências me encorajaram a ver as máscaras

da Folia de Reis por elas mesmas, tentando encontrar suas especificidades e, a partir daí,

verificar as contribuições desta tradição para o trabalho do ator.

29

Triangulação é a denominação recebida pela relação triangular que se estabelece entre o ator mascarado, a

platéia e um objeto ou outro ator mascarado em cena.

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CAPÍTULO 2 – Tradição e inovação

2.1 - Do Couro ao Látex

Para prosseguir na minha investigação, no entanto, era preciso verificar,

como sugere Brook (2000, p. 74), “se a forma tradicional ainda está viva, ou se a tradição é

uma mão morta que estrangula a experiência vital”. Segundo ele, esta deve ser uma das

preocupações centrais de um pesquisador que pretende se basear numa tradição para fazer

uma recriação teatral. Quando iniciei o trabalho de campo esta era uma preocupação

constante, que foi logo se diluindo à medida que a pesquisa avançava, pois a cada dia

descobria novos indícios de vitalidade das Folias de Reis. Não imaginava, por exemplo, que

poderia haver tantos grupos de Folia de Reis em minha cidade natal, Belo Horizonte, alguns

deles em bairros bem próximos da minha casa. Somente no primeiro dia de pesquisa

conheci doze grupos nos dois encontros de Folia que participei nesta cidade.

Os encontros de Folia, que também podem ser denominados de festivais, são

organizados por órgãos públicos com o auxílio de foliões, que, em alguns casos, reúnem-se

em associações de Folias. Eles podem ser realizados durante todo o ano, mas são mais

comuns nos meses de janeiro e fevereiro. São eventos que se caracterizam pela reunião de

um determinado número de Folias de Reis, que se apresentam individualmente num palco

montado numa praça ou numa quadra de escola pública. Cada grupo sobe ao palco para

cantar suas músicas e, em algumas vezes, abre-se espaço para que os mascarados realizem

sua performance. Apesar de não serem as melhores instâncias de pesquisa, pois os grupos

não apresentam a sua performance ritual como estão acostumados, os encontros de Folia de

Reis foram importantes para que eu pudesse ter contato com o maior número de grupos

possíveis e estabelecer aqueles com os quais eu viria a aprofundar meu trabalho.

Foi através do trabalho de campo, portanto, que passei a visualizar uma rede de

relações entre estes grupos que se estende durante todo o ano e por boa parte do território

nacional, sobretudo nas regiões sudeste e centro-sul, mas que se apresenta de forma velada

para os que não estão dentro, ou mesmo nas imediações desta rede. Verifiquei, por

exemplo, que em Minas Gerais, apesar do período central de atividade das Folias ir do

Natal ao dia de Reis, ou seja, do dia 24 de dezembro ao dia 6 de janeiro, muitas Folias

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fazem seu arremate, ou encerramento, no dia 20 de janeiro, quando se comemora São

Sebastião. Já no Espírito Santo, conheci Folias que chegam a fazer seu arremate no mês de

setembro, como a Folia de seu Dulcino Gasparelo, da cidade de Muqui (ES). Parece mesmo

que, dentre todas as manifestações, a Folia de Reis é “a viagem ritual mais difundida no

Brasil e a mais rica de ritos e crenças próprias”, como afirmou Brandão (1985, p. 133).

À medida que a pesquisa avançava, descortinava-se à minha frente uma rede

infinita de Folias dos mais variados tipos. Folias mais e menos afinadas. Folias

tradicionalistas e outras mais inovadoras, que misturavam ritmos musicais, diferentes

instrumentos e até elementos de outros folguedos. Folias com ou sem máscaras e Folias

com reis, palhaços ou bastiões. Como sugere Vianna (2005, p. 7):

Tudo circula entre as festas, na rede das festas: pedaços de melodias;

versos; instrumentos musicais; (...) Danças de bumba-meu-boi

migram para o reisado; melodias dos reisados são absorvidas pelas

congadas (...) e assim por diante, num processo que não tem fim, e

que nenhum “preservacionista”, por mais bem intencionado que seja,

vai conseguir ordenar ou (totalmente) estancar.

Como em outras manifestações tradicionais, ao serem perguntados de onde vem

o seu ofício, os foliões normalmente responderão: a gente faz como os antigos faziam. Essa

afirmação, no entanto, de modo algum quer dizer que as Folias não se renovem. Os foliões

não deixam de descrever as modificações que realizam, em sua performance, em busca de

impressionar as pessoas presentes e superar seus parceiros. Valendo-se, seja de novos

materiais para confeccionar máscaras e figurinos ou de novos ritmos musicais, os foliões

realizam sofisticadas operações de atualização de sua performance, sempre mediadas pelo

olhar dos mestres. Estes têm um papel fundamental, tanto na recuperação da memória,

como na ressignificação dos anseios e das inovações propostas pelas gerações de novos

integrantes, de forma a manter viva a tradição. Vianna (2005, p.7) nos apresenta uma forma

bastante sugestiva para compreender esse processo:

Cada mestre de brincadeira, ou cada brincante, não atua como o

espectador passivo de uma tradição secular sobre a qual não tem

nenhum controle e só pode “preservar”. Seu papel é mais de um DJ,

ou qualquer outro produtor musical cibernético, que faz suas próprias

colagens a partir de determinado conjunto de elementos: o gigantesco

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e multiforme banco de dados da biodiversidade brincante brasileira.

Cada mestre recombina os "retalhos" de várias outras brincadeiras.

Freqüentemente, ao olharmos estas manifestações tradicionais, temos uma

expectativa de que um espírito de conservação prevaleça em relação às idéias de inovação.

O que não deixa de ser coerente com a própria noção de tradição. O problema aparece, a

meu ver, quando essa postura nos impede de perceber que estas manifestações – por mais

tradicionais que sejam – também se renovam. Por isso, elas não podem ser tratadas como

peças de museu, até porque certas tradições podem ser invenções muito mais recentes do

que imaginamos, como demonstrou Hobsbawm (2008) em sua obra A tradição inventada.

Mesmo Peter Brook, que, muitas vezes, recorreu a manifestações espetaculares tradicionais

para realizar suas criações, deixa escapar certo conservadorismo na sua definição de

tradição, que segundo ele seria:

Uma forma imutável, mais ou menos obsoleta reproduzida por

automatismo. Existem raras exceções, como no caso em que a

qualidade da antiga forma é tão extraordinária que ainda hoje

preserva sua vitalidade, como certas pessoas muito velhas que

permanecem incrivelmente vivas e comoventes. No entanto, toda

forma é mortal. Não há forma, inclusive a nossa, que não esteja

sujeita à lei fundamental do universo: a lei do desaparecimento

(BROOK, 2000, p. 42).

Em se tratando, contudo, do universo festivo das manifestações populares

brasileiras, o fato das misturas e das hibridações serem processos constantes, faz com que

uma espécie de “lei da transformação” torne-se muito mais evidente que “uma lei do

desaparecimento”. Assim, diante de tamanha “invencionice” dos brincantes e foliões

responsáveis por estas manifestações, parece fazer mais sentido falarmos em termos de

“tradição da invenção”, como sugere Vianna (2005).

Durante o trabalho de campo tive contato com diversos grupos e pude constatar

que a tendência das Folias de Reis em relação às máscaras, de maneira geral, é serem mais

abertas à mudança, ao novo. Bem diferente das tradições de máscara orientais como o Nô

japonês, que, de acordo com Brook (1994), possui máscaras tão elaboradas que o artista

que as reproduz, geração após geração, não pode se dar ao luxo de se afastar um milímetro

para a direita ou para a esquerda, sob pena de que ela não mais se torne um boa máscara.

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Isso não significa que as máscaras do Nô sejam imutáveis, mas sim, que as alterações nesta

forma tradicional acontecem numa velocidade tão lenta que são imperceptíveis.

O que acontece com as máscaras da maioria da Folia de Reis é que o processo

de mudança torna-se facilmente visível, pois ocorre num ritmo mais acelerado, próprio da

dinâmica das mais diversas manifestações da cultura popular brasileira. Em Pirenópolis

(GO), por exemplo, as máscaras do Cucurucucu das Cavalhadas do Divino são feitas para

durarem os três dias da festa. Por serem confeccionadas em papel machê, amolecem

facilmente em contato com o suor, assim como, os adornos floridos dos chifres também se

desfazem rapidamente, por serem feitos em papel crepom ou seda. Reparem que, neste

caso, a própria fragilidade das máscaras é propícia ao surgimento de inovações, já que, a

cada ano, novas máscaras precisam ser confeccionadas. O que, às vezes, torna difícil a

própria identificação do que seria mais tradicional, como no exemplo a seguir: a máscara da

próxima foto, com toda sua exuberância plástica, é a que mais aparece nos materiais de

divulgação das Cavalhadas de Pirenópolis, como o que há de mais tradicional em se

tratando dos Cucurucucus.

Cucurucucu – (Cavalhadas de Pirenópolis-GO)

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O mascarado desta outra foto, no entanto, parece não estar muito de acordo com isso, ao

mostrar com sua inusitada performance como era o mascarado de antigamente, assim

como aparece escrito na placa afixada em seu cavalo. Como antigo morador da cidade, este

mascarado reivindica o posto de melhor representante da tradição, apresentando-se com

uma máscara feita de papelão quase sem pintura e com seu animal coberto com palhas e

capim seco. Tudo à moda antiga, como me relatou este mascarado.

Cucurucucu – (Cavalhadas de Pirenópolis-GO)

Num encontro de Folia de Reis da cidade de Contagem (MG), em janeiro de

2003, presenciei um fato que me pareceu exemplar para abordar mais de perto como se dá

esse processo de inovação dentro das manifestações tradicionais. Naquela ocasião, vi

alguns palhaços que estavam utilizando máscaras fabricadas em látex, ao invés de

utilizarem as máscaras artesanais confeccionadas com couro de cabrito ou com couro de

mão pelada, como é também conhecido o guaxinim. Eram máscaras típicas de monstros

muito utilizadas no carnaval, mas que têm sido introduzidas em outras manifestações como

pude observar nas Cavalhadas em Pirenópolis (GO) e São Luis do Paraitinga (SP) e em

diversos grupos de Folia de Reis.

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Sob o meu ponto de vista, enquanto pesquisador, aquela era uma ocorrência

lamentável, pois indicava que a tradição de máscaras da Folia estaria se perdendo. Mas foi

seu Dulcino Gasparelo, mestre de uma Folia da cidade de Muqui (ES), quem me

possibilitou compreender, a partir da perspectiva dos foliões, a presença de máscaras de

látex que ocasionalmente pode ser encontradas nas Folias. Segundo ele, apesar das

máscaras de látex serem utilizadas porque alguns foliões acham chique o fato de poderem

utilizar uma máscara comprada pronta, o principal motivo da sua utilização seria a escassez

de matéria prima para a fabricação de máscaras artesanais.

Palhaço de Folia de Reis com máscara de látex.

O couro de mão pelada, não pode mais ser utilizado, pois o IBAMA proibiu a

caça desse animal. Já o couro de cabrito, material mais usado para substituir o anterior,

também tem se tornado escasso com a redução de pastos para criar estes animais. Diante

deste quadro, lamentar parece uma atitude inútil. Se há algum interesse em que este

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conhecimento tradicional seja preservado, devem ser realizadas ações que possam ser

eficazes, como as propostas pela prefeitura de Muqui (ES). Numa das ocasiões em que

estive visitando a cidade, no ano de 2003, a Secretaria Municipal Cultura buscava viabilizar

o fornecimento do couro para os grupos locais e promovia oficinas de máscaras com

Dulcino Gasparelo, que passava os seus saberes para a comunidade em geral e para os

integrantes das Folias da região.

As considerações de Seu Gasparelo me fizeram rever minha aversão à máscara

de látex, uma vez que se a compararmos com uma máscara feita em couro, veremos que

elas se assemelham numa série de quesitos, como em relação à presença de uma certa

animalidade ou monstruosidade, que aparecem no exemplo a seguir:

Palhaço do Encontro de Folia de Reis de Muqui-2003

Na verdade, eu nem cheguei a me atentar para este aspecto, porque de antemão, como ator,

não poderia achar uma máscara de carnaval comprada pronta interessante cenicamente. Ou

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seja, minha resistência inicial tinha muito mais haver com o fato de que aquela máscara não

correspondia à minha concepção do que seria uma máscara nobre, assim como aprendi no

teatro. O que me faz lembrar as considerações de Bateson (1976), sobre os “Leões de

Trafalgar”, aos quais fiz referência na introdução desta Tese e de como o significado do

código elegido pode dizer mais que o significado da mensagem codificada.

Não há como ignorar, portanto, que as Folias e outras manifestações similares

estão sempre interagindo com as mudanças culturais, sociais, econômicas e até ambientais

que acontecem a sua volta, sempre se renovando. Não é a toa que mesmo os foliões que

continuam optando por máscaras artesanais estão utilizando a espuma em substituição ao

couro. De acordo com a observação de Dulcino Gasparelo, poderíamos concluir que o fato

de muitos dos grupos de Folia de Reis serem atualmente de origem urbana e não rural,

dificultaria a aquisição de materiais de origem animal. O que tem permitido a inauguração

de uma nova tradição de máscaras de palhaços de Folias de Reis, como estas

confeccionadas por Batista na cidade de Miracema (RJ):

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Nestes casos, não é necessariamente o material com o qual as máscaras são

confeccionadas que determinará a sua vitalidade dentro das Folias de Reis. A inovação nas

tradições populares não ocorre de forma gratuita, segundo Barroso (2000, p. 92), ela “se dá

por meio de procedimentos e de uma gramática peculiar. Ou seja, ele (o folião) cria e inova

a partir de combinações diferentes de um acervo de elementos e recursos artísticos dados

pela tradição”. A máscara de látex é um elemento novo, mas que será utilizado segundo

procedimentos já estabelecidos. Os elementos dados pela tradição, a que se refere Barroso

(2000), nem sempre se encontram à vista e, para percebê-los, é preciso conhecer certos

códigos e sinais que somente aqueles que foram devidamente iniciados em cada uma destas

manifestações tradicionais são capazes de compreender.

Assim, à medida que adquiria mais intimidade com o universo das Folias de

Reis de Fidalgo e Matozinhos, começava a ter acesso a informações mais detalhadas, como

por exemplo: em relação à confecção das máscaras. Elas normalmente são feitas a partir de

uma mistura de cola, papel e tecido, sendo que no caso de Fidalgo, as máscaras são

pintadas por fora com tinta a óleo e revestidas internamente com uma camada de parafina

bem grossa. Apesar de seu aspecto interno ficar bastante rústico, os foliões consideram esse

método como muito eficiente para evitar que as máscaras amoleçam com o suor. Em

Matozinhos, elas são impermeabilizadas com tinta a óleo por fora e por dentro, o que

permite que as máscaras sejam lavadas entre uma jornada e outra. Algo que só descobri por

acaso, quando ao acordar pela manhã na casa de mestre Bejo, me deparei com Leandro, seu

filho, literalmente lavando as máscaras num tanque. Ação que nunca imaginei possível para

uma máscara, mas que parece bastante plausível, já que elas são utilizadas por diversos

foliões numa mesma jornada.

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Máscara da Folia de Matozinhos secando após serem lavadas.

Em Fidalgo, recentemente, os foliões até chegaram a encomendar um conjunto

de máscaras a um senhor de uma cidade vizinha, que eles ouviram dizer que estava fazendo

máscaras. Mas eles nem chegaram a utilizá-las, pois as consideraram de ruim qualidade,

mal acabadas e não seguiam os traços com os quais estavam acostumados. Foi devido a este

episódio que pude perceber que a confecção das máscaras era menos aleatória do que

poderia parecer. Certos elementos como a abertura dos olhos e o tipo de cabelo usado para

a barba deviam seguir um padrão preestabelecido. Por isso, na ausência de mascareiros, a

alternativa encontrada pelos foliões foi a de fazer constantes reformas em suas máscaras.

No entanto, as fardas, que são confeccionadas por costureiras locais são trocadas quase que

anualmente, sendo possível perceber diversas alterações no seu feitio.

Os princípios que ditam como devem ser cada uma das máscaras e servem de

referência até para possíveis inovações são compreendidos pelos foliões como sendo os

fundamentos. Expressão que aparece em diversas manifestações populares e que segundo

Rodrigues (1997, p. 64) seriam “os preceitos, ou seja, tudo aquilo que produz o

conhecimento da origem e dos motivos da existência e permanência de cada manifestação”.

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Desse modo, poderíamos pensar os fundamentos como uma categoria utilizada pelos foliões

para fazer referência ao que conhecemos como conhecimento tradicional30

.

Como resultado de longas experiências coletivas, os fundamentos são

garantidos não necessariamente no auge do processo ritual, mas também nos momentos que

o antecedem, ou seja, durante a sua preparação e nos momentos que o sucedem. Antes do

início de cada jornada de uma Folia, por exemplo, os seus integrantes se reúnem,

normalmente, na casa do mestre, para preparar comida, arrumar as fardas e afinar os

instrumentos; ocasião em que parentes e amigos se envolvem num mesmo fluxo de

atividades, em que os fundamentos são repassados através de ações simples do trabalho

cotidiano. Não só nestes momentos, mas durante todo o ano, lembranças de outras jornadas

são sempre retomadas. Lembranças que se encontram registradas também no corpo, pois

como argumenta Connerton (1993, p.102), esses grupos “confiam a automatismos corporais

os valores e as categorias que mais anseiam conservar. Eles sabem como o passado pode

ser mantido em mente através de uma memória habitual sedimentada no corpo”.

De acordo com Rodrigues (1997), a perda progressiva destes fundamentos se dá

pela ausência destas preparações e a conseqüente fragmentação da festividade. Nesse

sentido, por mais que haja escassez de material para confeccionar as máscaras, o uso

daquelas fabricadas em látex, pode, no limite, indicar que o grupo que fez esta opção já não

está cuidando tanto destes preparativos. Ao optar por algo pré-fabricado que não traz

consigo nenhuma memória referente ao seu processo de confecção, ao contrário do que

ocorre com as máscaras artesanais, este grupo pode estar contribuindo para a perda dos seus

fundamentos, pelo menos aqueles diretamente relacionados às máscaras. Notem que estou

fazendo uma especulação teórica, pois na prática, só o tempo poderá dizer o que irá

acontecer, pois um novo arranjo pode surgir em função da manutenção dos fundamentos

dessa manifestação, que em última instancia, podem ser revistos ou refeitos em diálogo

com cada novo contexto.

30

O que torna um conhecimento “tradicional”, de acordo com Wolff (2003, apud BELAS, 2004), “(…) é a

maneira como ele está associado a um determinado local ou comunidade e o fato de constituir-se no resultado

de uma longa experiência coletiva. Nesse sentido, ele seria „criado, preservado, compartilhado e protegido

dentro do círculo tradicional‟, ou seja, passado de geração para geração”.

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Em outros grupos de Folias como o de seu Bejo em Matozinhos, já nos meses

de outubro e novembro, os foliões se encontram para tocar modas de viola, estudar sobre a

vida de Cristo e dos Santos Reis. Segundo seu Bejo, mestre da Folia de Matozinhos:

A gente fala uma coisa que a gente pode provar. Existe muita lenda,

tanta e tantas sobre Folia de Reis (...). Tudo que eu falar vocês

podem me perguntar que eu vou saber dizer o livro que está. Pois se

você fala alguma coisa para o dono da casa, lenda, ele vai

perguntar: onde vocês acharam? Eles vão ficar apertados e vão

dizer: eu vi falar. Aí fica complicado. O povo pode inventar muita

coisa, sou capaz de cantar a noite toda inventando.

A maioria dos mestres de Folia mantém seus livros guardados a sete chaves e

afirmam que eles não são fáceis de encontrar. Se, por um lado, isso demonstra uma

necessidade evidente da manutenção de uma dimensão misteriosa, tão importante para estas

manifestações religiosas, por outro, o recurso de atrelar os fundamentos da manifestação à

escrita, parece sugerir uma busca por uma legitimidade do discurso, como se apenas o que

estivesse escrito fosse digno de crédito.

O curioso é que muitos destes livros são romances de ficção ou enciclopédias, e

a outra parte são livros apócrifos, evangelhos que não foram aceitos na bíblia. A esse

respeito Nooter (1993), ao realizar estudos sobre arte africana, apresenta uma argumentação

bastante esclarecedora, ao dizer que “a substância dos segredos é menos importante que a

delimitação social resultante de sua aquisição, propriedade e controle sobre sua

revelação31

”. Ou seja, a existência de segredos cria “insiders” e “outsiders”. (NOOTER,

1993, p. 20 apud YOSHIDA, 2006, p. 235).

Apesar de muitos mestres possuírem cadernos onde fazem notas de versos,

músicas e procedimentos rituais, o conhecimento tradicional e, por conseguinte, os seus

fundamentos são repassados através da oralidade e da corporalidade. Até porque, muitos

desses mestres são analfabetos ou semiletrados. Os fundamentos podem ser entendidos

também como o que dá sentido a qualquer manifestação tradicional. Segundo Barroso

(1999, p. 184) “quando em algum momento e lugar, um desses folguedos tem desarticulada

31

Original em inglês: “The substance of secrets is less important than the social delineation resulting from

their acquisition, ownership and controlled revelation”, (NOOTER, 1993, p. 20 apud YOSHIDA, 2006, p.

235).

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a chave de suas significações, isto é, quando o seu sentido escapa à memória dos brincantes

e, particularmente, do mestre, ele entra em processo de extinção”. Por outro lado, por que

não podemos pensar que no instante em que se manifestam, cada uma dessas formas

performáticas não podem adquirir novos sentidos, que surjam do diálogo com a realidade

presente na qual se encontram os performers? Não parece ser o folguedo em si que entra em

extinção, mas talvez aquela maneira específica de concebê-lo e performá-lo, que de fato,

pode não mais fazer sentido da maneira como era pensada “antigamente”. Nem sempre é

fácil em perceber esse fenômeno porque os foliões e brincantes são verdadeiros mestres em

nos fazer ver como antigas, inovações que tiveram pouquíssimo tempo de criadas, como

muito bem argumenta Vianna (2005).

De todo modo, acredito que uma brincadeira não se extingue. Mesmo em casos

extremos em que se constate que tal brincadeira não esteja mais acontecendo, ou seja, não

tenha quem queira brincá-la, nada impede que em algum momento ela reapareça. Às vezes,

vestígios muito incipientes bastam para que aconteça o processo de reinvenção de uma

brincadeira, que há muito tempo não era brincada. Foi assim com os Zambiapungas da

Bahia e com os Caretos de Podence, em Portugal. Estes são dois exemplos de

manifestações mascaradas que, depois de quase desaparecerem, foram literalmente

recriadas a partir de retalhos de lembranças de antigos moradores de suas respectivas

comunidades e se tornaram símbolos identitários das mesmas, para além de sustentarem

todo um empreendimento turístico (Cf. LOPES, 2006 e RAPOSO, 2006).

Como afirmei no início desse capítulo, há uma grande variedade de grupos de

Folias de Reis, sendo que alguns destes são também frutos desse processo de recriação. A

Folia de Milho Verde (MG), por exemplo, ressurgiu por iniciativa de alguns artistas que,

freqüentemente, faziam turismo no local. Já a Folia do bairro Santa Rita, em Santa Luzia

(MG), teve sua recriação iniciada em função de uma carta que um dos atuais membros

recebeu de um amigo. Esta carta contava como eram as “Folias de antigamente” e,

curiosamente, foi escrita como uma tarefa do “Telecurso Segundo Grau”. Os foliões, no

entanto, não demonstram dificuldade em lidar com a diversidade de Folias existentes. Isto

fica evidente neste depoimento de seu Adão Barbeiro, que foi um dos grandes foliões da

cidade de São Francisco (MG):

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É como meu mestre dizia: tudo abaixo de Deus é o respeito. Só

depende respeito. Uma coisa eu vou dizer ao senhor: ninguém

estaréis errado. Não. Não tem que acanhar: todo mundo está na

estrada. Quando nós chegar lá, no fim da viagem, todo mundo

estará certo. Inclusive essa diferença das Folias foi Jesus quem fez.

Porque o senhor manobra o seu terno com um esquema, eu

manobro o meu com outro esquema. E está tudo certo. Eu nunca

encontrei uma Folia pra ser tudo igual à outra32

.

Apesar de haver disputas internas entre os grupos com relação à originalidade e a

superioridade de um Folia em relação à outra, falas como as de seu Adão sugerem que há

uma espécie de etiqueta, de um código de conduta entre os foliões, que os impede de falar

mal de um outro grupo ou de desqualificar a Folia de quem quer que seja. A maneira como

os foliões aceitam a diferença dentro das Folias confirma a afirmação de Rodrigues (1997,

p. 27), segundo a qual, “cada manifestação apresenta especificidades, em cada região ela é

peculiar e cada grupo é único na sua expressão”.

2.2 - Romantismos

Se para seu Adão e para os demais foliões a diversidade de grupos de Folia de

Reis é algo perfeitamente aceitável, para mim, que nem sou membro daquela manifestação,

não era algo tão tranquilo. O que mostra como era difícil, enquanto pesquisador, abrir mão

de alguns dos meus conceitos ou pré-conceitos para interagir de fato com a perspectiva dos

foliões. Talvez porque eu estivesse influenciado por certos pensadores que, desde o final do

século XIX, quando surgiram os primeiros estudos sobre a cultura popular no Brasil, se

mostraram preocupados com a autenticidade das manifestações tradicionais brasileiras,

como Sílvio Romero e Celso Magalhães.

Este tipo de preocupação, que marcou toda uma geração de pesquisadores da

cultura popular, constituiria o que Carvalho (2000, p. 31) denominou como o “mito da

degenerescência da cultura”, que nada mais é do que uma nova versão do mito bíblico da

queda: “o que era puro, original, se vende, se entrega devido à ambição desmesurada do

32

Este depoimento foi retirado de (MESQUITA, 2002, p. 28).

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artista e a sedução implacável do mercado. São inúmeros os pensadores críticos da cultura

que utilizam esse esquema, conscientemente ou não33

”.

Andrade (1982), por exemplo, achava que as manifestações populares

brasileiras, denominadas por ele como “danças dramáticas”, estariam supostamente em vias

de extinção, entre outros fatores, devido a uma série de misturas e de influências de

elementos externos. Em suas reflexões é possível perceber uma espécie de incômodo em

compreender e aceitar as formas fluídas com as quais o seu objeto de pesquisa se

apresentava, pois estas características o impossibilitavam de alcançar definições

totalizadoras dos fenômenos por ele estudados (cf. CAVALCANTI, 2004). Aspecto que

aparece expresso quando ele afirma que o núcleo básico das danças dramáticas estaria

“recheado de temas opostos a ele; romances e outras quaisquer peças tradicionais mesmo

de uso anual se grudam nele; textos e mesmo outros núcleos de outras danças se ajuntam a

ele. Às vezes, mesmo estas oposições não têm ligação nenhuma com o núcleo

(ANDRADE, 1982, p. 53-54)”.

Na obra de Mário de Andrade é possível perceber como o “mito da

degenerescência da cultura” que surgiu e tomou força com o romantismo, deixou muitas

marcas no modernismo. Mesmo que em alguns trechos o próprio Mário de Andrade se

apresente bastante crítico em relação à noção de autenticidade da cultura:

Um dos conselhos europeus que tenho escutado bem é que a gente se

quiser fazer música nacional tem que campear elementos entre os

aborígines, pois que só mesmo estes é que são legitimamente

brasileiros. Isso é uma puerilidade que inclui ignorância dos

problemas sociológicos, étnicos, psicológicos e estéticos. Uma arte

nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de

elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo

(ANDRADE, 1962, p. 15-16).

Os estudos sobre a cultura popular avançaram bastante e deixaram de abordar

questões que eram muito caras aos contemporâneos de Mário de Andrade, como as

relacionadas ao fortalecimento do Estado-Nação ou com a constituição de uma arte

nacional. No entanto, é preciso estar atento ao fato de que há uma concepção romântica do

33

Ver também Gonçalves (1997), sobre a retórica da perda; e Travassos (1997), sobre o paradoxo do

primitivismo, conceitos que dialogam com o apresentado por Carvalho (2000).

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popular ainda muito presente em nossa sociedade, para que evitemos cair na mesma

armadilha que caíram os modernistas, sintetizada da seguinte forma por Cavalcanti (2004,

p. 60): “se é verdade que as qualidades perdidas e procuradas pelo „eu-artista-civilizado‟ se

encontram no „outro-povo-primitivo‟, esse encontro tão almejado, ao se realizar, produz,

sobretudo, um terrível aguçamento do sentido da perda”. Tenho frisado muito este aspecto,

pois apesar de ser um tipo de formulação que deveria estar, a princípio, superada, ela

aparece frequentemente na boca de diversos pesquisadores que se dedicam a estudar a arte

em contexto “não artístico”. Como aconteceu comigo durante esta pesquisa, em que, por

vezes, me peguei com um olhar romântico, como na minha aversão às máscaras de látex.

Além da preocupação com a “perda da autenticidade”, esta minha aversão

imediata à máscara de látex, parece também estar diretamente relacionada com o fato de

que tendemos a conferir às manifestações tradicionais uma essencialidade e fixidez que não

lhes são próprias, como sempre observava Léa Perez34

nas suas aulas de Antropologia da

Festa na UFMG, por ocasião da minha Graduação em Ciências Sociais. Nesse mesmo

sentido, Strother (1998) observa que a tendência a pensar as manifestações artísticas

tradicionais como rígidas é exatamente contrária àquela que adotamos quando estamos

estudando arte em contexto artístico, já que sempre é levada em conta a sua evolução na

linha do tempo. Segundo esta autora, tendemos a estudar as manifestações tradicionais

priorizando uma abordagem sincrônica ao invés de diacrônica, como se estas manifestações

não mudassem com o tempo.

Strother (1998) aborda os processos criativos das máscaras em Pende, desde a

confecção à performance, além de realizar um estudo minucioso da evolução das máscaras

no tempo e as diferenças entre as diversas tribos, incluindo todos os paradoxos ou

contradições observadas. Ao fazer isso, ela pretende evitar a tendência de boa parte dos

estudos africanos em mostrar uma positiva e coesa visão da vida africana, em contraposição

aos muitos estereótipos negativos da vida no ocidente. A frequente idealização das

tradições africanas presente nos estudos africanos é o que provocaria, segundo Ottenberg

(2006), uma recorrente despolitização desses estudos. Tal argumentação parece se aplicar

34

Léa Freitas Perez é professora de antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do

Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis.

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aos estudos da cultura popular e vai ao encontro da afirmação de Cavalcanti (2004, p. 70),

que mesmo os estudiosos contemporâneos seriam “seduzidos pela ilusão do arcaísmo, pela

idéia do bom tempo de outrora quando as produções populares não apresentavam

descontinuidades, eram coerentes e facilmente acessíveis à interpretação"35

.

Encantados ou não por um certo “arcaísmo”, do qual nos fala Carvalho (2000) é

cada vez mais comum vermos atores, músicos e toda sorte de profissionais de áreas afins se

dedicando a estudar e “refazer” o conhecimento contido nas expressões culturais

tradicionais, dentro e fora das universidades, com os mais diferentes enfoques36

. O termo

“refazer” está sendo utilizado aqui para explicitar que estas não são abordagens de cunho

teórico, mas sim de cunho prático. Durante a noite na UNICAMP, onde realizei os estudos

de doutorado, era possível ouvir os tambores dos mais diversos sotaques ressoando pelo

campus, tocados por alunos que eram orientados por pessoas ligadas de alguma forma a

alguma manifestação tradicional37

.

No meu caso, desde o início da pesquisa sempre deixei claro, para os foliões,

que meu objetivo era fazer uma recriação teatral, aplicando os conhecimentos adquiridos

num espetáculo de teatro, que não pretendia ser outra coisa a não ser teatro. O que não

impediu alguns foliões de me dizerem que: quem sabe o teatro que você está fazendo não

será a Folia de Reis do futuro?

Por fim, falta abordar como se deu o processo de aprendizagem do

conhecimento tradicional das Folias de Reis e mais do que isso, como foi o processo de

“aprender a aprender” à maneira dos foliões.

35

A busca deste “bom tempo de outrora”, é uma das características mais marcantes do romantismo e que

ajudou a dar origem à própria noção de folclore. Para uma abordagem de questões relacionadas ao folclore e à

cultura popular, situando a questão a partir do contexto brasileiro, ver Ortiz (1994) ou Brandão (1982); a

partir do contexto latino americano, ver Cancline (2003) e numa perspectiva mais geral, Hall (2003). A

Dissertação de Oliveira M (2006) também apresenta uma ótima revisão desses conceitos situando-os

historicamente. 36

Abordei a relação entre pesquisadores e pesquisados no universo das manifestações populares em (Paulino,

2008a) 37

Durante os anos de 2005 e 2006 tive contato com grupos de estudantes que se dedicavam à performance do

cavalo marinho, do maracatu, do tambor de criola, do jongo e do samba de raiz dentro do campus da

UNICAMP ou em espaços culturais de Barão Geraldo, Campinas (SP).

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2.3 - Aprender a aprender o conhecimento tradicional

Mesmo que em boa parte das pesquisas sobre cultura popular o conhecimento

tradicional tenha deixado de ser tema para ser valorizado pelo seu conteúdo, ele acaba

passando por uma série de reelaborações a partir da perspectiva dos pesquisadores, que

como eu, encontram-se filiados, sobretudo, a uma forma de aprender muito diferente

daquela presente nos contextos tradicionais. E esse fato, por si só, parece alterar bastante a

forma como estes conhecimentos são apreendidos.

A Folia de Reis, por ser uma manifestação espetacular, constitui-se de

elementos de natureza similar aos encontrados no teatro, os procedimentos adotados por

atores e foliões para lidarem com estes elementos, em cada um desses contextos, é que

parece variar38

. A começar pela forma como o conhecimento é valorizado e repassado.

Quando estava em campo, por exemplo, ficava observando as máscaras serem

dançadas normalmente no meio de uma roda formada pelos foliões e demais pessoas

presentes. Eu costumava ficar na parte de fora, tentando copiar algumas ações, de

preferência sem que ninguém percebesse. Até porque, ao perceberem o meu interesse nas

máscaras, os foliões frequentemente diziam que eu deveria ir para o meio da roda

experimentá-las. Em resposta, eu dizia, cordialmente, que eu não era tão bom quanto eles e

tinha muito a aprender ainda. Até que um dia, conversando com Leandro, filho de mestre

Bejo da Folia de Matozinhos, ele me alertou: você nunca vai estar pronto ou vai saber se

sabe, enquanto não botar aquela máscara na cara e ir pro meio da roda dar umas

mancadas e a gente rir um pouco de você.

No episódio acima, fica evidente como tínhamos diferentes formas de lidar com

a aprendizagem dos saberes tradicionais e, consequentemente, com a sua utilização cênica:

enquanto eu tinha a necessidade de aprender o passo justo antes de tentar qualquer tipo de

participação mais ativa, para Leandro, eu só poderia alcançar tal justeza de movimentação

invertendo a ordem do processo e me permitindo participar mais diretamente do jogo.

Este episódio me fez recordar das observações proferidas pelo professor Mário

Chagas39

numa palestra da Reunião da Associação Brasileira de Antropologia em 2008,

38

Sobre elementos e procedimentos na análise de processos artísticos, ver análise matricial em Brito (2002). 39

Doutor em Ciências Sociais /UERJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social /

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segundo o qual, em matéria de conhecimentos envolvendo patrimônio imaterial há uma

diferença entre a forma de valorizar o que é transmitido por quem transmite e por quem

recebeu a transmissão. E se alguém quer transmitir é necessário que alguém queira receber,

mas nem tudo que é transmitido é aceito, algumas coisas podem ser negadas pelo receptor,

ou seja, os processos de aprendizado podem envolver dimensões muito sutis. Como neste

caso, que enquanto eu me concentrava apenas no conteúdo a ser aprendido, Leandro

chamava a atenção para a maneira como eu deveria aprender. Recorrendo às idéias de

Bateson (1976), poderíamos dizer que, na fala de Leandro, o que está em jogo é um

“aprender a aprender”, processo denominado por esse autor de “deuteroaprendizado”.

Bateson (1976) atribui o sucesso dos empreendimentos de ensinar e de

aprender ao contexto social e ao modo pelo qual a mensagem é transmitida, mais do que

aos conteúdos da instrução. De acordo com Bauman (2008, p. 159):

Os conteúdos – a matéria –sujeito do que Bateson chama de “proto-

aprendizado” (aprendizado primário ou “aprendizado de primeiro

grau”) – podem ser vistos a olho nu, monitorados e gravados, até

mesmo desenhados e planejados; mas o deuteroaprendizado é um

processo subterrâneo, quase nunca notado conscientemente e menos

ainda monitorado por seus participantes, sendo relatado apenas de

maneira vaga no extenso tópico da educação. É no curso do

deuteroaprendizado, raras vezes no controle consciente dos

educadores indicados ou autoproclamados, que os objetos da ação

educacional adquirem habilidades muito mais importantes para a vida

futura do que até mesmo os mais cuidadosamente pedaços e peças de

conhecimentos pré-selecionados que se combinam nos currículos

escritos ou não-pensados.

De fato, aquela observação de Leandro, como outras que aconteciam, muitas

vezes, em momentos de descontração, foram as que mais me marcaram e fizeram com que

eu repensasse a maneira de abordar as máscaras no teatro, dimensão que ficará mais

explícita ainda quando abordar as oficinas no sexto capítulo.

Barba (1995) também aborda a relação do “aprender a aprender”, contudo, sua

argumentação ainda está muito centrada em questões relacionadas ao conteúdo, no sentido

de “protoaprendizado”, principalmente ao dar grande destaque à importância da técnica.

UNIRIO.

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Mesmo assim, ele não deixa de ressaltar a relevância do contexto no processo

aprendizagem. Segundo esse autor:

Cada aprendiz, cada ator que começa a trabalhar, é caracterizado pela

aquisição de um ethos. Ethos como comportamento cênico, isto é,

técnica física e mental, e ethtos como um trabalho ético, isto é, uma

mentalidade modelada pelo environment, ambiente humano onde o

aprendiz se desenvolve (BARBA, 1995, p. 246).

A advertência de Leandro também foi bastante esclarecedora de como se

processa o saber tradicional no contexto das Folias de Reis e me permitiu entender melhor

porque se costuma dizer que nestas manifestações não há ensaios. De fato, não registrei

nenhum relato de ensaios ou treinos das máscaras antes do período em que as Folias estão

fazendo o seu giro40

. Os foliões falam apenas de encontros em que eles se reúnem para

estudar as escrituras, referindo-se à bíblia e aos livros apócrifos. Se não há relatos de

qualquer tipo de ensaio, é porque os foliões não fazem distinção entre o momento da

preparação e da execução de sua performance, bem como me alertou Leandro.

Ao realizarem os mesmos passos de dança com as máscaras diversas vezes

durante toda a duração do giro, que pode ser de dias, os saberes corporais dos foliões se

renovam e se atualizam a cada nova performance. Uma vez que há sempre revezamento de

funções, eles estão sempre fazendo e assistindo a performance uns dos outros, o que

favorece o aperfeiçoamento de suas habilidades expressivas.

Durante o giro das Folias pelas casas, é comum observarmos foliões mais novos

tentando imitar os mais velhos. Processo que se inicia quando os foliões ainda são crianças,

como abordei no primeiro capítulo. Algo similar é observado por Valverde (1998) no

Tchiloli, forma de teatro popular de São Tomé e Príncipe. Segundo ele, este costume de uns

imitarem a performance dos outros deixa claro que manifestações como o Tchiloli tem uma

recepção que “se faz pelo e com o corpo, reativando uma memória corporal de algumas

agilidades e movimentos aprendidos há mais ou menos tempo” (VALVERDE, 1998, p.

229).

40

O giro constitui-se numa outra forma dos foliões denominarem sua jornada pelas casas.

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Também me parece ser nesse mesmo sentido, que Lagrou (2002) salienta como

alguns comentários irônicos dos índios Kaxinawa, sobre o fato dos brancos considerarem

possível que o conhecimento seja registrado num papel, a fizeram entender que, na visão

dos Kaxinawa, a preocupação dos brancos com o armazenamento de conhecimento em

objetos fora dos seus corpos fez com que seus corpos parassem de conhecer. Constatação

que Lagrou (2002, p. 53) exemplifica com o seguinte episódio:

Para aprender „de verdade‟…, disse-me Augusto (um informante

Kaxinawa) em uma das últimas tardes em que trabalhamos juntos, e,

em vez de prosseguir sua frase, me pegou no braço e começou a

cantar, dançando.

Estes autores, tanto quanto o informante Kaxinawa, estão reclamando uma abordagem do

corpo não com instrumento, mas como sujeito do conhecimento.

Foi também a observação de Leandro, que fez com que eu aceitasse assumir a

farda do Rapazinho em visitas a algumas casas, mesmo sem que eu estivesse preparado

para conversar com o dono da casa. Já que apesar de saber alguns passos da catira, não

tinha conhecimento para falar as profecias. O fato deles me convidarem para fardar de

Rapazinho poderia dar uma ideia de que eles não tem uma preocupação com a qualidade

das performances a serem apresentadas. Mas novamente, tudo tem a ver com os critérios de

atribuição de valores, pois se olharmos com cuidado, as circunstâncias em que fui aceito na

farda do Rapazinho, perceberemos que eles não o fizeram de maneira gratuita e impensada.

Primeiro, a máscara que me foi cedida, como afirmei no início da Tese, é a

máscara que tem menos compromissos e que justamente é utilizada pelas crianças ou

pessoas iniciantes na Folia de Reis. Segundo, quando assumi a máscara já era mais de três

horas da manhã e não havia no nosso roteiro, nenhuma casa de algum conhecedor de Folia

para ser visitada. Então, não havia possibilidade dos donos da casa perceberem qualquer

erro que eu pudesse cometer. E eu não corria o risco de ser sabatinado sobre as profecias. É

nestas residências em que não há donos da casa conhecedores de Folia, que eles

aproveitam para incentivar novos membros a participarem.

Outro aspecto a ser considerado, é que esse contato, cada vez mais frequente,

entre mestres das manifestações tradicionais e pesquisadores de origens diversas, sobretudo

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com formação acadêmica, como é o meu caso, tem levado alguns mestres a mudarem certas

relações com os seus saberes tradicionais. É o que aconteceu com mestre Salustiano, um

famoso brincante de Cavalo Marinho de Pernambuco que faleceu em 2009. Se antes ele

estava acostumado a passar seus conhecimentos somente para os membros da sua

comunidade, no aqui agora da realização de suas comemorações, nos últimos anos, passou

a oferecer oficinas de Cavalo Marinho em sua casa, sobretudo para integrantes da classe

média, nos meses de setembro a novembro, ou seja, fora do período festivo, como me

relatou Leonardo Leal Esteves41

. Outro exemplo seria Seu Abel. Um exímio mascareiro

maranhense que tive o prazer de conhecer pessoalmente e com quem muito aprendi sobre

as máscaras dos Cazumbas dos Bois de Baixada. Ele esteve no Festival Internacional de

Teatro de Belo Horizonte, em 2006, ministrando oficinas de confecção de máscaras.

Numa das etapas finais desta pesquisa, cheguei a propor para Seu Bejo que

ministrássemos oficinas com as máscaras da Folia de Reis em conjunto, para que ele ou

outro integrante do seu grupo pudesse ensinar a catira, dança que se caracteriza como

elemento central no mascaramento nestas Folias. Mas quando começávamos a pensar como

seria esta oficina, Seu Bejo frequentemente alertava para necessidade dos alunos tomarem

conhecimentos das escrituras e reconhecerem a devoção nos Santos Reis, que eram

elementos tão fundamentais quanto a catira. Assim, por mais que eu quisesse envolvê-los

no processo de pesquisa, de fato tínhamos formas diferentes de nos relacionarmos com o

processo de ensino-aprendizagem. Nas palavras de seu Bejo ficava evidente que o seu

ofício tinha um compromisso com os Santos Reis que não permitia que apenas um dos

aspectos do seu conhecimento fosse isolado, como eu havia proposto inicialmente.

É curioso notar que, de maneira geral, os foliões costumavam argumentar

positivamente em relação à minha proposta de utilizar suas máscaras para o teatro,

justamente porque ao levar o nome dos Santos Reis para um número cada vez maior de

pessoas, eu estaria contribuindo de alguma forma para manter acesa a sua devoção. Certa

vez, um folião de Fidalgo ao perceber meu grande interesse pelas máscaras e ao saber que

pretendia experimentá-las no teatro, solicitou-me: não mostre apenas a beleza de nossas

41 Estas informações me foram repassadas durante o Congresso Brasileiro de Antropologia em 2006, por um

mestrando da UFPE, Leonardo Leal Esteves, que estuda a dinâmica de produção e relações sociais no

contexto da cultura popular.

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máscaras e de nossas músicas, mostre também a nossa fé. Uma preocupação que parece ter

a mesma natureza daquela demonstrada por Seu Bejo, quando o convido para ministrar

oficinas comigo. Ambos estão destacando a importância da devoção nas Folias de Reis.

Dimensão que pretendo abordar no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3 – Arte, brincadeira e devoção

Durante todo o trabalho de campo, palavras como fé e devoção sempre

estiveram presentes no discurso dos foliões, contrastando com a ausência praticamente total

de palavras como arte e teatro. Para mim esse contraste se evidenciava, ainda mais, devido

à minha formação enquanto pesquisador das Artes Cênicas ter se dado dentro de um

contexto em que as dimensões da fé, no seu sentido mágico e religioso, ficavam relegadas a

um segundo plano, quando não eram totalmente desconsideradas. Por isso, para tratar das

possíveis interfaces entre arte e religiosidade, que apareceram durante a pesquisa, a

estratégia adotada aqui foi a de procurar desnaturalizar tanto o fato de que os foliões não

falam de arte e de que suas ações teriam motivações apenas religiosas, como o fato de, no

teatro, as dimensões da religiosidade, sobretudo aquelas relacionadas ao trabalho com a

máscara, sejam muito pouco abordadas.

Neste capítulo, espero relativizar a separação entre teatro e Folia de Reis com

relação aos aspectos ligados a arte e a devoção, para deixar claro que estou lidando com um

universo religioso por excelência. Não só por trabalhar com um ritual como a Folia de Reis,

mas por abordar o universo das máscaras que, de acordo com Aslan (1989), acaba por

remeter a uma noção de sagrado, mesmo no teatro contemporâneo.

3.1 - A (des) mistificação da máscara

Não só a máscara teatral, mas o próprio teatro, não são frutos de uma espécie de

degeneração das qualidades religiosas dos ritos populares, como se costuma acreditar.

Segundo Wiles (2007), a máscara no teatro grego não surgiu como produto da evolução de

um ritual primitivo, mas sim em função de servir à tragédia. Para desenvolver seu

argumento, ele recorre basicamente a dois exemplos. Primeiro ele faz referência a

Schechner que, num ensaio de 1966, desconstrói a noção de que o teatro grego seria

descendente de um ritual primitivo, argumentando que o teatro, o ritual, as brincadeiras, os

jogos, os esportes, a dança e a música são atividades paralelas de performance que não

devem ser localizadas como tendo um desenvolvimento linear. A seguir, Wiles (2007)

recorre a um estudo de Robert Layton que mostra como entre os esquimós a inovação

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criativa e o prazer estético são elementos centrais nas práticas rituais para controlar os

espíritos e, portanto, não são atributos apenas de manifestações artísticas.

É dessa maneira que Wiles (2007) encontra argumentos para defender a Tese de

que o teatro grego pode sim ter funcionado como uma oferenda a Dionísio em que havia

uma convergência entre ritual religioso e preocupações estéticas. Para ele, o problema é que

pensar o teatro como resultado de um processo de degeneração de formas rituais, implica

em dizer que o teatro teria surgido no momento em que os ritos teriam perdido suas

dimensões religiosas, o que, consequentemente, implicaria numa espécie de dessacralização

da máscara no teatro.

Wiles (2007) está preocupado em demonstrar como a máscara no teatro grego

não estava apenas em função de fins estéticos. Segundo ele, “o esforço para „desmistificar‟

a tragédia Grega deriva de um sistema de valores secular e liberal, que se recusa a se

envolver com a religião como um controlador da conduta humana” (WILES, 2007, p. 12)42

.

Ele argumenta que a percepção da sacralidade da máscara foi paulatinamente sendo

desconsiderada, por influência de um raciocínio positivista, que ao se caracterizar pelo

cientificismo, desconsiderava, por exemplo, a existência da metafísica. Fundamentando seu

discurso numa análise detalhada e original dos vasos gregos, ele afirma que a ideia de olhar

as máscaras apenas como artefato teatral é uma flagrante contradição com as mensagens

apresentadas pelos vasos43

.

Wiles (2007) prossegue sua argumentação mostrando como as dimensões do

sagrado permaneceram mesmo em criadores do teatro do século XX, que se utilizaram da

máscara e do mascaramento em suas criações teatrais. Para ele, Copeau, por exemplo, tinha

uma concepção bastante religiosa da máscara:

Copeau estava comprometido com o aspecto coral e coletivo do

teatro, e com o ideal de comunhão entre o ator e o personagem, o ator

42

Original em inglês: “The drive to „demystify‟ greek tragedy stems from a liberal, secular value-system that

declines to engage with religion as a driver of human conduct (WILES, 2007, p. 12)”.

43 O argumento central de Wiles (2007, p. 5) é: “I shall not view representations of masks as more or less

imperfect renderings of a „real‟ artefact, but will concentrate on the function of the vase as a whole, asking

why painters chose to portray masking”. Para esse autor tais imagens ali registradas não comunicam um

estado fixo ou um momento no tempo, mas um processo de transição que é reforçado pelo formato do próprio

vaso, que não pode ser observado por um único ângulo.

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e o espectador. (...) Ele buscou um teatro que fosse, ao mesmo tempo,

religioso e popular (WILES, 2007, p. 104)44

.

Certos procedimentos criados por Copeau, como o de incentivar cada ator a

confeccionar sua própria máscara e a proposição de uma forma ritualizada de colocar a

máscara no rosto, estão diretamente correlacionados com sua visão holística sobre este

trabalho (Cf. Wiles, 2007, p. 109).

Outro criador citado por Wiles (2007) é Jean-Louis Barrault que, em 1950, viaja

ao Brasil para buscar inspiração para a criação das máscaras a serem utilizadas em sua

Oréstia, acreditando que as máscaras brasileiras teriam elementos que manteriam vivo o

sentido ritual do teatro que ele procurava restituir. Wiles (2007) também faz referência a

Johnstone (1990), diretor teatral que, no seu trabalho com máscaras, aborda mais

diretamente algumas noções ligadas ao campo religioso, como a possessão e o transe.

De todos os criadores que ajudaram a trazer a máscara de volta para o teatro do

século XX, talvez Lecoq seja o mais cético e tenha a abordagem mais secularizada da

máscara e do trabalho com o ator, como aparece no seguinte trecho: “eu ouvi dizer que na

Austrália o ator tem um „guru‟ e que nos Estados Unidos o ator é acompanhado por um

psicanalista. Na Itália, o ator entra em cena e atua (LECOQ, 2007, p. 108)45

”. Mesmo

Lecoq, contudo, não escapa de utilizar expressões que remetem ao universo do mistério e

da magia, como no seguinte trecho:

Somente aqueles que vestem uma máscara podem conhecer a emoção

que esta contém dentro de si e quão profundamente nos toca. É como

possuir um segredo muito difícil de revelar (LECOQ, 2005, p. 121)46

.

Não quero com essa argumentação propor uma mistificação do trabalho de

máscara, mas apenas ressaltar que a visão da máscara a qual tive acesso durante minha

formação enquanto ator, foi forjada sob a influência de um “espírito de época”, neste caso,

44

Original em Inglês: “Copeau was committed to the choral and collective aspect of theatre, and to the ideal

of communion between actor and character, actor and spectator. (…) He sought a theatre that was both

religious and popular”(WILES, 2007, p. 104). 45

Original em Espanhol: “He oído decir que en Austrália el actor tiene um „guru‟, que em los Estados Unidos

va acompañado por um psicoanalista. Em Itália, el actor entre en escena y actúa”(LECOQ, 2007, p. 108). 46

Original em italiano: “Solo coloro che hanno indossato una maschera possono conoscere l‟emozione che

essa racchiude e quanto profondamente essa ci tocchi. È come posseder un segreto molto difficile da svelare

(Lecoq, 2005, p. 121).

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do positivismo, que estava muito em voga quando Lecoq estava produzindo. Ou seja, trata-

se de um tipo de preocupação que cada dia mais vem sendo relativizada por autores como

Olsen (2004), para o qual as dimensões religiosas e artísticas podem estar interligadas, sem

que isso configure um prejuízo para o trabalho do ator, já que, segundo esse autor:

Embora práticas espirituais possam aumentar certos aspectos

artísticos pessoais, elas não podem substituir o trabalho duro e a

verdadeira aptidão. Nenhuma pessoa deve cometer o engano de

empreender uma pesquisa espiritual para satisfazer a sua ambição

artística. O progresso espiritual não faz, automaticamente, um bom

ator (OLSEN, 2004, p. 54).

Se a espiritualidade por si só não garante um bom ator, tampouco, é capaz de

garantir um bom folião. Pois além de ter fé, é necessário estudar muito, conhecer as

escrituras, saber tocar instrumentos, cantar, dançar as máscaras e conversar com o dono da

casa, como os foliões não cansam de afirmar. Ou seja, é necessário o domínio de uma série

de habilidades artísticas que, como vimos no primeiro capítulo, começa a ser desenvolvida

desde criança.

Outro aspecto a ser considerado é que a relação dos foliões de Fidalgo e

Matozinhos com suas máscaras não é tão cheia de prescrições mágico-religiosas como

poderia parecer. Durante o giro das Folias pelas casas, quando não estão sendo utilizadas,

as máscaras ficam nas mãos dos foliões que estavam fardados ou são deixadas em algum

cômodo da casa. Isso permite que as crianças e demais pessoas presentes, mesmo não sendo

integrantes da Folia, tenham contato com as máscaras e até experimentem colocá-las, sem

maiores preocupações. Apesar de serem máscaras de seres sagrados, aos quais são

atribuídos milagres e em função dos quais a Folia existe, as máscaras enquanto objeto em

si, não serão passíveis de maiores interditos ou tabus, pelo menos nestes grupos estudados.

Esta forma de lidar com as máscaras foi notada por outros autores em diferentes

contextos rituais. Goldman (1963, p. 222), ao estudar os índios Cubeos, afirma que “a

santidade é a santidade do ser representado e não da máscara em si”47

. KRAUSE (1960)

relata que os índios Balairi costumavam usar suas máscaras como assento ou as deixavam

47

Original em inglês: “Sanctity is the sanctity of the being represented and not of the mask itself” (1963, p.

222).

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jogadas num canto, aos pedaços, após os rituais. Wiles (2007) também observa que entre os

Yorubás, a máscara nem sempre será um objeto sagrado, algumas vezes, a sacralidade é um

produto da cerimônia; não havendo uma realidade secreta escondida na máscara. Barcelos

Neto (2006, p. 217) relata que, entre os Wauja, após o ritual, qualquer indivíduo pode vestir

a máscara que quiser e se divertir brincando com as mesmas. Ao relatar o dia seguinte ao de

um importante ritual, ele afirma que “as máscaras pareciam fartas de brincar. Tamanho foi o

seu uso após a grande dança na manhã do dia 28 de julho que algumas perderam os olhos,

outras os dentes.”

Não é que nestes grupos citados inexista qualquer valorização dos objetos. Mas

sim, que o status que por ventura estes objetos possam adquirir estará em função de um

determinado contexto ou situação. Lagrou (2003, p.105) observa que “os Kaxinawá não

estocam suas produções artísticas, como outros povos ameríndios, estão convíctos de que

objetos rituais perdem seu sentido e a sua beleza, a sua „vida‟, depois de terem sido

usados”. De acordo com Strother (1998), são as artes ocidentais, que ao terem o

colecionismo como referência, acabam por fetichizar os objetos. Os povos do Pende

Central, estudados por ela, como historicamente não mantêm coleções, estão livres da

preocupação excessiva com a preservação de seus artefatos e, ao mesmo tempo, estão mais

livres para criar diversos outros, já que não estão sob o que a autora considera uma ditadura

da cópia.

Esse é um bom argumento para explicar inclusive a grande variação de

máscaras e dos respectivos figurinos que encontramos, seja entre diferentes grupos de

Folias de Reis ou em diferentes épocas de uma mesma Folia de Reis. Característica que

podemos observar também em outras manifestações mascaradas no Brasil. Haja vista as

máscaras das cavalhadas de Pirenópolis, que como observei no capítulo anterior, são feitas

para durarem apenas o período de uma festa.

Confesso que em algumas das muitas oficinas de máscaras que realizei durante

o meu processo de formação como ator, havia tantas prescrições quanto ao simples ato de

manusear uma máscara, que era quase como se fossem interditos, no sentido que esta

palavra tem no campo religioso. Não se pode falar abaixo da máscara, não se pode deixar

uma máscara virada para o chão, não se pode retirar uma máscara de frente para o público e

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muitos outros imperativos similares a esses, que nem sempre eram devidamente

justificados. Também na bibliografia consagrada ao tema, podemos encontrar exemplos

como o de Charles Dullin, segundo o qual “nada é mais irritante do que ver um estudante

agarrar um máscara e usá-la como um palhaço o faria com uma máscara de carnaval. Seria

um ato de sacrilégio, pois a máscara tem uma personagem sagrada (DULLIN, 1946, p. 117

apud LOPES, 1990, p. 33). Entretanto, nas Folias de Fidalgo e Matozinhos, mesmo as

máscaras sendo de três figuras consideradas sagradas e para os quais os foliões são devotos,

não há nenhuma relação de sacralidade direta com a máscara enquanto objeto, ou seja, não

se verifica entre os foliões uma fetichização da máscara. Mas como compreender a relação

dos devotos com esse objeto no contexto religioso das Folias de Reis?

Aos olhos da teoria proposta por Gell (1998), poderíamos dizer que, sustentada

no corpo dos foliões, a máscara seria mais do que uma figuração da divindade, trata-se do

seu corpo na “forma artefactual”. Desse modo, a máscara permitiria que os foliões

estabelecessem uma relação de “idolatria”, mas não no sentido pejorativo que esta palavra

adquiriu com o Cristianismo. Gell (1998) recorda que, originalmente, a “idolatria” permite

uma interação física real tomar lugar entre pessoas e divindades, indo muito além do ato de

contemplação. Essa “interação física real” só é possível em situações em que os objetos

permitem o que esse autor chama de “presentificação”.

Nas Folias de Reis de Fidalgo, a bandeira que é levada à frente dos foliões é

considerada a Estrela da Guia. Uma vez que a bandeira guia os foliões, assim como a

estrela guiou os Reis Magos, ela “presentifica” a ação da estrela mais do que a representa.

Do mesmo modo, poderíamos dizer que mais do que representar os Reis Magos, as

máscaras permitem aos foliões “presentificarem” a ação mítica de procurar onde o menino

Deus teria nascido, bem como, sua eficácia em encontrá-lo, já que em cada casa haverá um

presépio com uma manjedoura, onde repousa o pequeno Messias.

É assim que, em Fidalgo e em Matozinhos, os próprios Reis Magos chamam os

moradores nas portas de suas casas procurando a Lapinha onde o menino Jesus teria

nascido e são recebidos com o entusiasmo de quem espera receber uma visita desejada;

cumprem a sua função de abençoar a casa por meio da bandeira e são alimentados com

fartura de comida e bebida. Assim, a máscara constitui-se numa entidade na qual relações

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sociais são formadas em seu entorno, ou seja, a máscara exerceria agência social. O que, de

acordo com Gell (1998), permitiria que objetos rituais, como esses, sejam tratados como

pessoas.

Tal intimidade com o sagrado poderia parecer perigosa. Contudo, em cada

momento do ritual da Folia de Reis, há gradações de intensidade do sagrado que não são

conferidas exatamente pela presença dos Reis Magos. Na verdade, a bandeira é um dos

elementos mais sacralizados da Folia. O tipo de relação que os foliões estabelecem com os

mascarados, não os leva a beijá-los ou de pedir-lhes a bênção. Durante o ritual, as bênçãos

e as reverências são direcionadas, em sua maior parte, para a bandeira. É ela, por exemplo,

que é levada pelo dono da casa para benzer os cômodos da sua residência48

.

Parece mesmo que os Reis Magos, a partir do momento em que estão

presentificados através das máscaras, passam a ser tratados como “pessoas”, assim como

sugere Gell (1998). Perspectiva que parece típica do universo em que estão inseridas as

Folias de Reis, já que como observa Brandão (1981, p.158), em muitas das manifestações

populares, os Santos, investidos em imagens, são tratados literalmente como gente:

Entre os símbolos e a ideologia da religião popular não há deuses,

mas um Menino Jesus nascido em Belém, visitado pelos Santos Reis,

amigo pessoal de São Gonçalo e morto em uma cruz que, por havê-lo

suportado, tornou-se também santa.

A relação de intimidade entre devotos e divindade chega a tal ponto que os

mascarados podem se tornar alvos de diversos tipos de chacotas e brincadeiras49

. Afinal

como dizem os foliões:

Folia é diversão, devoção e religião.

Folia é uma brincadeira bonita, mas isso ai é mistério. A gente

estudou e sabe o que é isso ai (apontando para as máscaras). Isso é

uma brincadeira muito bonita, é uma brincadeira séria. Mas não

brinca não, porque ele (os Santos Reis) põe e te levanta da cama.

48

Para uma abordagem mais aprofundada da bandeira nas Folias de Reis, ver Bitter (2008) e Chaves (2009). 49

Em alguns grupos de Folia de Reis como os estudados por Bitter (2008) e Chaves (2003), em que existe a

presença dos palhaços, a máscara recebe uma série de atenção especial devido a sua filiação com diabo.

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Nestas falas de dois foliões de Matozinhos fica clara a correlação entre diversão

e devoção, bem como, traduzem de maneira exemplar o que afirmei no primeiro capítulo

sobre o fato dos foliões nunca perderem de vista a dimensão da brincadeira, por mais que

tenham enorme consideração por seus Santos de devoção. Isso não quer dizer, no entanto,

que em contextos tradicionais, nunca encontraremos distinções entres estas dimensões.

Arnoldi (2006) relata, por exemplo, que os povos Bamana do Mali, fazem clara distinção

entre o Ndomò que é um ritual de máscaras de caráter religioso e o Sogo Bo, que seriam

apenas jogos mascarados, característicos destas comunidades.

Na Folia de Reis também pude perceber que, por vezes, os foliões até chegam a

esboçar tentativas de distinguir os momentos devocionais daqueles voltados para a

diversão. Como, por exemplo, quando eles frisam que é só depois de cumprido o protocolo,

ou seja, a parte séria da ritual, que eles poderiam ir para a diversão, concretizada, sobretudo

na dança das máscaras. Mas essa delimitação não é muito clara, pois mesmo na parte

considerada séria, ocorrem diversas brincadeiras, como veremos no próximo capítulo.

Trata-se de uma característica fundamental do universo religioso a que estão

ligadas as Folias de Reis, assim como outras manifestações tradicionais da cultura popular

brasileira que possuem máscaras, como os Bois, os Reisados e as Cavalhadas. É um tipo de

religiosidade peculiar, pois se caracteriza por formas bastante concretas de relação dos

devotos com os seus Santos de devoção, sendo denominada de catolicismo popular (Cf.

ZALUAR, 1983 e BRANDÃO, 1981).

É um universo em que o corpo dos devotos se impõe através de práticas

performáticas que incluem danças, cantos, lutas e uma infinidade de recursos criativos que

chegam até mesmo a sugerir certa promiscuidade, sobretudo na relação dos devotos com as

imagens dos Santos e demais símbolos rituais utilizados em suas celebrações. Não é difícil

ver neste contexto os devotos beijando, abraçando ou esfregando, no próprio corpo,

bandeiras, fitas ou imagens de Santos consideradas sagradas. Basta ver a forma como as

moças casadoiras se relacionam com a imagem de Santo Antônio, não faltando relatos de

castigos a que o santo é submetido, mergulhado em copos d'água ou ficando amarrado de

cabeça pra baixo até que cumpra os pedidos de suas fiéis.

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O riso é outro elemento bastante presente neste tipo de manifestação e também

surge muitas vezes de uma apropriação cômica e grotesca do corpo. Brincadeiras de cunho

físico e verbal alternam-se com os momentos mais sérios dos rituais e freqüentemente são

feitas referências às dimensões que remetem a concretude do corpo, como beber, comer,

eliminar excreções, fazer sexo e etc.

Nas manifestações populares em que a máscara está presente, ela aparece como

o principal representante dessa dimensão grotesca, pois através do mascaramento, um sem

número de seres animalescos e humanos, divinos e diabólicos, que assustam e que fazem

rir, toma corpo e dividem o espaço ritual com os devotos, foliões ou brincantes. Uma

caracterização pormenorizada dessa dimensão grotesca será realizada no próximo capítulo.

Por hora, é importante observar que, à primeira vista, algumas das brincadeiras que surgem

nesse contexto poderiam até parecer um desrespeito com as divindades louvadas, mas ao

analisá-las com mais cuidado, é possível perceber que são ações próprias de uma

religiosidade que se manifesta em uma situação de jogo. Num universo pleno de ludicidade

e caracteristicamente grotesco, no qual o riso não é encarado apenas como algo negativo,

mas como regenerador (Cf. BAKHTIN, 1999).

Acredito que este comportamento não tem a ver com um senso de liberdade que

supostamente poderia ser atribuído ao fato do rosto estar coberto. Mas sim, estaria mais

próximo da ideia de “relações jocosas”, apresentadas por Radcliffe-Blown (1973) e Mauss

(1979), a partir de seus estudos com diversas tribos da África e Melanésia. Segundo estes

autores, as “relações jocosas” são caracterizadas por troças, brincadeiras verbais ou

corporais, algumas de caráter obsceno que são socialmente aceitas, não podendo ser motivo

de desavença entre os envolvidos. Realizadas entre duas pessoas ou mais, podem ser

simétricas, quando os dois caçoam-se mutuamente, ou assimétricas, quando apenas um tem

o direito de troçar com o outro.

Estou ciente que as “relações jocosas” as quais me refiro entre os foliões e os

Santos Reis não são tão formalizadas como aquelas presentes entre os povos estudados por

esses autores, mas me parecem bastante apropriadas para esse caso. As “relações jocosas”

surgem, muitas vezes, em situações tensas, em que se exige o respeito de muitas normas e

regras. “A necessidade de distensão; uma negligência que permite o descanso depois de um

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comportamento demasiado compassado. Estabelece-se um ritmo que faz com que se

sucedam, sem perigo, estados de alma contrários (MAUSS, 1981, p. 464)”.

Sendo assim, não é nada espantoso que uma situação em que os Santos Reis

visitam as casas das pessoas seja propícia ao surgimento dessas “relações jocosas”, já que é

comum as pessoas ficarem embaraçadas sem saber como devem se comportar diante de tão

nobre visita. Parece que nessas Folias de Reis, um contrato é estabelecido entre as pessoas e

os Santos Reis, tornando lícito brincar e troçar dos mesmos sem que isso seja considerado

um insulto, pois ao contrário, é uma forma de quebrar o gelo e assim estabelecer diálogos e

alianças. Por isto, mais do que uma forma de extravasar, a presença das máscaras implica

em relações que sugerem maneiras de se comportar que combinam amistosidade e

antagonismo.

As brincadeiras observadas em manifestações como as Folias de Reis podem

ser das mais inocentes, até as mais pornográficas. Isso pode ser observado ao assistimos a

uma agremiação de pessoas que tem por objetivo louvar os Santos Reis do Oriente, se

permitir fazer trocadilhos com o nome dos Santos de sua devoção denominando-os de

Santos Reis do cu cinzento, como faz o Mateus, um dos personagens mascarados mais

tradicionais do Cavalo Marinho. Nestes casos, “em vez de deveres específicos a serem

cumpridos, há desrespeito privilegiados, liberdade ou mesmo licitudes, e a única obrigação

é não se sentir ofendido ante o desrespeito, desde que ele se mantenha dentro de certos

limites definidos pelo costume, e não ultrapasse os limites” (RADCLIFFE-BLOWN, 1973,

p. 130). Ao contrário das etiquetas e das relações respeitosas que proporcionam o

surgimento de relações distanciadas, as “relações jocosas”, apesar de provocativas, são

formas de estabelecer relações de intimidade e de proximidade entre as partes envolvidas.

É esse senso de intimidade demonstrado pelos foliões, seja em relação às

divindades, seja em relação às máscaras enquanto objeto em si, que me chamaram a

atenção. Isto influenciou bastante a maneira como passei abordar as máscaras nas oficinas

que ministrei para atores. O contato com esta maneira de proceder dos foliões me permitiu

uma abordagem menos mitificada do trabalho de máscara, mantendo-o mais próximo da

ideia de brincadeira, sem que isso constituísse um prejuízo para o processo criativo ou

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quebrasse o encanto que o uso da máscara pode proporcionar, tema que pretendo abordar

no sexto capítulo.

3.2 - Por que os foliões não falam em arte?

A princípio, esta pergunta poderia parecer um pouco descabida, por que é

sabido que as Folia de Reis e outras manifestações da mesma natureza não costumam ser

classificadas como arte ou, pelo menos, não estão enquadradas em contexto artístico. De

fato, quando me proponho a pensar as máscaras da Folia de Reis não posso deixar de

considerar, como bem observou Mario de Andrade (1962), que manifestações como estas

não são exclusivamente artísticas, pois são feitas visando um fim específico, muitas vezes

religioso. A questão é que o fato de serem feitas com um fim religioso não pode ser motivo

para que sejam consideradas de menor valor artístico, como vimos com alguns dos

argumentos apresentados por Wiles (2007).

O próprio Mário de Andrade reconhecia a existência de uma arte nacional feita

na inconsciência do povo, mas achava que “o artista deveria dar pros elementos já

existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é:

imediatamente desinteressada” (ANDRADE, 1962, p. 16). Pode parecer estranho que eu

esteja novamente recorrendo a uma citação de Mário de Andrade, que faz parte de um

contexto histórico muito distinto desse em que estou trabalhando, entretanto, quase

cinquenta anos se passaram depois que ele fez esta afirmação e, por vezes, as manifestações

populares são tomadas como de menor valor artístico, a partir de argumentos muito

parecidos. Como aconteceu numa das disciplinas que cursei na UNICAMP, em que um dos

alunos do Doutorado em Artes afirmou que as manifestações da cultura popular eram

cultura e não arte.

Este tipo de concepção parece persistir porque, normalmente, costuma-se

ignorar o fato das manifestações religiosas populares, tal como a Folia de Reis, serem

vivenciadas de forma festiva, em que arte, religião e vida social se misturam. Segundo

Durkheim (1996, p. 416) “a arte não é simplesmente um ornamento exterior com que o

culto dissimularia o que pode ter de demasiado rude: por si mesmo, o culto tem algo de

estético”. A todo o momento, nas Folias de Reis, é possível perceber como os diversos

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canais de expressão dos foliões estão em função de uma celebração lúdica e criativa da

vida. Ao mesmo tempo em que se mantêm conscientes da sua dimensão sagrada, apontando

para uma necessidade de compartilhamento e o desenvolvimento de um senso de

pertencimento, como explicitarei melhor no próximo capítulo, quando abordarei

especificamente as dimensões rituais da Folia de Reis.

Mas antes, recorrerei a algumas reflexões de importantes antropólogos, que

apesar de serem de escolas antropológicas muito distintas trazem importantes contribuições

para compreender a produção de arte em contexto não artístico, principalmente relacionado

a religiosidade. Para Lévi-Strauss é inconcebível a distinção entre arte e cultura popular.

Segundo ele “temos a tendência a acreditar que a arte popular elabora-se no inconsciente

coletivo mais profundo, e que as formas sob as quais se manifesta remontam a um passado

muito longínquo. É verdade em alguns casos, mas nem sempre” (CHARBONNIER,1989,

p. 95). Ele relata que mesmo nas sociedades chamadas primitivas há certa individualização

da produção artística, com casos em que alguns membros da comunidade são reconhecidos

por longas distâncias, devido a alguma habilidade artística. É possível, inclusive,

diferenciar entre estilos de artistas diferentes. Foi o que pude perceber durante o trabalho de

campo, ocasião em que conheci foliões que se revelaram excelentes performers, sendo

reconhecidos não só pelos seus pares na Folia de Reis, mas pelo restante da comunidade,

tornando-se inclusive temas de teses e artigos.

Ainda de acordo com Lévi-Strauss, o que as sociedades tradicionais não teriam,

ou teriam apenas excepcionalmente, é a relação que está na base de nossa concepção

moderna de atividade artística, a relação entre o criador, de um lado, e o espectador do

outro.

Essa dualidade só existe de maneira excepcional nas sociedades

primitivas, talvez porque nelas a função da arte não seja a mesma.

Cada objeto, mesmo o mais utilitário, é uma espécie de condensado

de símbolos, acessíveis não somente ao autor, mas a todos os

usuários (CHARBONNIER, 1989, p. 94).

Já para Geertz (2001), o problema é que os povos de culturas tradicionais não

falam de arte da forma como a maioria dos estudiosos gostaria que eles falassem, ou seja,

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em termos de suas propriedades formais, de seu conteúdo simbólico, de seus valores

afetivos e de seus elementos estilísticos.

Não há dúvida, porém, de que os povos falam sobre a arte, como

falam sobre qualquer outra coisa fora do comum, ou sugestiva, ou

emocionante que surja em suas vidas – dizem como deve ser usada,

quem é o dono, quando é tocado, quem toca, ou quem faz, que papel

desempenha nessa ou naquela atividade (...) e assim por diante. Na

maioria das vezes, porém, essas informações não são consideradas

um discurso sobre arte, mas sim sobre outra coisa – vida cotidiana,

mitos, comércio ou coisas semelhantes. (GEERTZ, 2001, p.146)

Assim, um folião não fala em “termos artísticos” certamente porque não foi

apresentado a esta terminologia, no entanto, diversos aspectos inerentes à prática da Folia

de Reis demonstram que eles possuem preocupações estéticas equivalentes. A eficácia de

um ritual, por exemplo, depende em grande medida da eficácia estética dos signos

sagrados, por isso os devotos têm o maior cuidado com a confecção dos objetos ou com a

afinação da música. São cuidados que, às vezes, podem parecer simplórios aos olhos de

quem se encontra de fora da manifestação e não possui as chaves para compreender cada

um desses procedimentos com a sua devida profundidade. Segundo Gomes & Almeida

(2002, p.70):

Embora seja devoto antes de tudo - porque representa a experiência

da fé-, o indivíduo só o será plenamente se cumprir as funções

rituais mediante um bom desempenho dramático. Ou seja, a prática

religiosa adquire maior amplitude se o devoto representa a

experiência da fé com a vestimenta, o canto e a dança adequados.

Ora, se há tanto apreço e cuidado na elaboração de cada gesto e objeto ritual, não é difícil

imaginar que os devotos tenham critérios para avaliar a qualidade daquilo que está sendo

produzido, mesmo que utilizem termos diferentes dos que estamos acostumados.

Nas Folias de Reis, a arte, a religiosidade, a vida social e o meio ambiente se

imbricam de uma maneira tal, que dificilmente encontramos algo similar nas formas de

teatro as quais estamos acostumados a assistir, fazer ou ensinar nas escolas. Afinal, que ator

ficaria uma noite inteira e uma madrugada adentro em cena? Como fazem os integrantes da

Folia de seu Bejo, dançando máscaras que não adormecem por horas a fio, já que uma

jornada pode ter duração superior a trinta e seis horas, como algumas que acompanhei. Os

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foliões denominam esse processo de viração, aspecto que abordarei com mais cuidado no

próximo capítulo.

Durante a função, um folião ou outro pode até ser flagrado dormindo pelos

cantos das casas, bancos de praças ou mesmo no meio fio; mas as máscaras sempre estarão

lá, vivas. Fazendo tremer o chão e quebrando o piso das casas, como costumam afirmar os

foliões. De maneira geral, a responsabilidade pela motivação dos foliões costuma ser

atribuída à sua fé nos Santos Reis, no entanto, a resposta mais comum que eles me deram

quando pergunto se estão cansados é: cansa, mas dá prazer. Ou seja, aparece aqui uma

dimensão que normalmente é pouco valorizada na experiência da fé, o prazer. Por isso,

justificar o esforço dos foliões para cumprir cada jornada apenas através da devoção está,

no mínimo, incompleto. Se associarmos ainda a afirmação de outro folião de que a Folia é

alegria de levar alegria à casa das pessoas, podemos pensar na devoção como uma mola

propulsora que faz iniciar um espetáculo que é mantido pelo prazer que provoca em seus

participantes, sejam eles jovens, adultos ou velhos. Estes, com o pretexto de anunciar a boa

nova do nascimento do Messias, saciam sua necessidade de expressão.

Para Durkheim (1996, p. 414), tanto as representações rituais como as

representações dramáticas, propriamente ditas,

(...) perseguem um objetivo similar: estranhas a todo fim utilitário,

fazem homens esquecerem o mundo real, transportando-o a um

outro em que sua imaginação está mais à vontade. Elas distraem.

Têm inclusive o aspecto exterior de uma recreação: os assistentes

riem e se divertem abertamente.

Já para Gomes & Almeida (2002, p. 88), o olhar de um artista-devoto é um

olhar do desejo, condição indispensável para defini-lo como sujeito que acredita e cria a

partir da devoção. O artista-devoto projeta a possibilidade de conhecimento do sagrado em

objetos e ações. Desse modo, interessa saber as maneiras como os devotos dos Santos Reis

constroem os suportes objetivos – gestos, objetos e mais especificamente as máscaras - que

vão ajudar a tornar visíveis, o sentido do sagrado. Centrando a atenção mais na agência

exercida por cada um destes elementos no contexto ritual, do que em seu significado, já que

como observa Durkheim (1996, p. 416):

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Alguns gestos escapam, em parte, sem objetivo; manifestam-se pelo

simples prazer de se manifestar, comprazem-se em espécies de

brincadeiras (...). Assim, corre o risco de cometer enganos quem, para

explicar os ritos, acredita dever atribuir a cada gesto um objetivo

preciso e uma razão de ser determinada.

Boa parte desse conjunto de práticas religiosas, presentes no universo da Folia

de Reis e que caracterizam o chamado catolicismo popular, muitas vezes vai ser vista pelos

órgãos oficiais da Igreja Católica como uma espécie de manifestação profana, mesmo que

cada um dos devotos praticantes não tenha a menor dúvida sobre a natureza religiosa de sua

devoção. A relação da Igreja Católica com elementos como o corpo, o riso e a máscara é

conflituosa desde os primórdios do cristianismo e, por isso, foram feitas várias tentativas

para depreciá-los dentro da escatologia cristã. Uma das melhores formas de fazê-lo parece

ter sido atribuir-lhes filiação diabólica, ou seja, torná-los agentes do mal e, portanto,

indesejáveis e perigosos.

A abordagem desse processo é importante, pois ele deixou reflexos marcantes

na forma como, ainda hoje, estes elementos são percebidos na cultura ocidental, sobretudo

no caso das máscaras. O que mostra, também, como a nossa percepção da máscara está

fortemente influenciada por aspectos ligados ao universo da religiosidade cristã. Desse

modo, recorrerei a alguns dados históricos que poderão auxiliar no processo de

compreensão do estatuto atual das máscaras no ocidente.

3.3 - A diabolização da máscara no ocidente

Muito antes do advento do cristianismo há registros de festas realizadas no

hemisfério norte em que também era comum a presença de máscaras. Eram cultos pagãos

relacionados à fertilidade e à veneração ao sol que aconteciam entre os meses de dezembro

e fevereiro, assim como hoje acontece com muitas manifestações tradicionais da cultura

popular brasileira. Segundo Pereira (1973), durante milênios na Europa, os homens se

mascararam representando demônios e antepassados para garantir as relações entre os vivos

e o mundo sobrenatural nas passagens de uma estação à outra, ou de um ano ao outro, que

constituíam momentos de crise e de risco da vida social e cultural. Com o surgimento do

Cristianismo, costumes como estes se tornaram indesejáveis. No entanto, os líderes da nova

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religião logo perceberam que não poderiam simplesmente eliminar do imaginário dos

novos cristãos todos os elementos daquela que passava a ser considerada uma cultura pagã.

Por isso, eles se apropriaram de muitos desses elementos para conquistar novos adeptos,

ressignificando-os.

Uma das estratégias utilizadas foi a de fazer coincidir algumas datas

comemorativas cristãs com o calendário pagão, como as “festas de epifania”, que foram

instituídas para comemorar os Reis Magos no mesmo período em que eram celebrados

certos ritos de fertilidade. Os próprios Reis Magos, apesar de terem um nome que remete

diretamente ao universo pagão da magia, foram integrados à escatologia cristã como

arautos e testemunhas do surgimento de uma nova era. Outra estratégia foi a de absorver

alguns elementos pagãos em suas celebrações, como as máscaras, que logo migraram para

dentro da igreja para auxiliarem nas dramatizações de passagens bíblicas.

No decorrer da Idade Média e do Renascimento, tanto as máscaras como outros

recursos cênicos, como danças e cantos, oriundos da chamada cultura pagã, transitaram por

diversos rituais e espaços da igreja, estando ora integrados aos ritos litúrgicos, ora

renegados para o adro dos templos católicos, de acordo com o que era mais conveniente

para os clérigos. Apesar de ser difícil abordar o uso da máscara na Idade Média devido à

raridade de documentos propriamente teatrais, é possível afirmar, como também o faz

Pereira (1973) e Konigson (1988), que as máscaras foram fartamente utilizadas nos

mistérios, com destaque para o diabo50

.

Por mais que as máscaras fossem utilizadas dentro das igrejas, elas não

deixaram de ser julgadas como particularmente odiosas. A explicação para isso, de acordo

com Minois (2003, p. 137), é que para a igreja “usar uma máscara, disfarçar-se, é mentir, é

mudar de identidade para esconder suas más ações – sugestão demoníaca, obra de Satã. (...)

Mascarar-se não é também imitar o criador, renegar o corpo que ele nos deu para atribuir-se

outro?” Pereira (1973) reforça essa concepção, ao afirmar que foi o Cristianismo que

conferiu às máscaras um valor puramente negativo no ocidente, transformando-as na

maioria dos casos, num artifício diabólico. Para desenvolver seu argumento ele recorre a

Bedouin (1961), segundo o qual:

50

Para uma abordagem da máscara do diabo em relação ao palhaço da Folia de Reis ver (Paulino, 2008 b).

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O Cristianismo inverteu os dados do problema da máscara. Até

então, a máscara havia sido o instrumento mais ou menos perfeito,

graças ao qual o homem havia tentando elevar-se acima da sua

condição terrestre, de vir a tornar-se semelhante aos deuses. No

momento em que o novo dogma prevalece e se admitiu que a

identificação se devia efectuar no outro sentido, do divino ao

humano, é claro que a máscara perdeu, pelo menos no ocidente, a

sua principal razão de ser (BEDOUIN 1961 p. 124 apud PEREIRA,

1973, p. 15).

Nessa mesma linha de raciocínio, Napier (1986, p.4) argumenta que a passagem

do politeísmo para o monoteísmo cristão é uma diferença metafísica fundamental para o

estudo da máscara no ocidente, pois ele é sem dúvida não apenas uma preferência religiosa,

mas um modo distinto de pensamento e de organização universal. Assim como Napier,

Wiles (2007) também relata a existência de uma série de fundamentos judaico-cristãos que

se encontram expressos nos mitos de Adão e Moisés que deporiam contra a ideia de

máscara e do mascaramento, como por exemplo, a condenação da idolatria, ou seja, a

adoração de objetos. Para defender seu argumento, Wiles (2007) sugere que se olharmos

para contextos politeístas, como o Japão, a Índia e a África, perceberemos como a máscara

é muito mais bem aceita, assim como o era na Grécia antiga, também politeísta.

As máscaras possuem ainda o agravante de remeterem a duas dimensões pouco

apreciadas pela igreja, como o riso e a concretude do corpo. Segundo Minois (2003, p.

176):

A intelectualização progressiva da fé eliminará, pouco a pouco, a

expressão corporal, em virtude da dicotomia corpo-espírito, que

tende a fazer do corpo instrumento do diabo. (...) A dança em si

está reduzida a uma depravação satânica, sem consideração de

natureza ou de intenção.

Esse processo se intensifica após o século XIII, e no século XVI a dança

desaparece das igrejas. De acordo com Minois (2003) também foram adotadas diversas

estratégias para diabolizar o riso, associando-o à imperfeição e à corrupção através do riso

da serpente no episódio do pecado original ou quando foram formuladas concepções que se

tornaram muito comum durante toda a Idade Média, como a ideia de que Jesus nunca riu. O

Cristianismo tentou eliminar de todas as formas as conotações que o riso assumia na

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Antigüidade Clássica, período em que muitas vezes o riso era encarado como uma das

possibilidades de entrar em contato com o divino. Para Minois, (2003, p, 137 e 140):

A luta se acirra, sobretudo contra o riso coletivo organizado sob a

forma de festa. Ainda mais que a festa está intimamente ligada à

mitologia e às crenças pagãs. (...) culpado, indecente, luxúria,

debochado, licença, são termos cada vez mais recorrentes sobre o

assunto.

Mesmo assim, o cristianismo não foi capaz de impedir que a fusão do cômico

com o sério marcasse toda a religião popular da Idade Média. E só depois da Renascença, já

no século XVII, logo depois da grande Reforma, que os Jesuítas impuseram uma drástica

censura e acabaram com o cômico, o diabólico, o bêbado e todo tipo de figura que fosse

crítico e provocativo.

O importante a se ressaltar deste breve apanhado histórico, é que os ritos e

espetáculos que compunham o sistema de imagens da cultura cômica popular tinham “uma

diferença de princípio em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da

igreja ou do Estado Feudal. Ofereciam uma visão de mundo, do homem e das relações

humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial (BAKHTIN, 1999, p.5)”. E,

talvez por isso, o processo de diabolização paulatina a que foram sendo submetidos o riso,

o corpo e a máscara com o advento do Cristianismo, por mais que tenha obtido êxito nas

instâncias oficiais da igreja, não conseguiu impedir que estes mesmos elementos acabassem

presentes em muitas de nossas manifestações populares. Até porque as manifestações

populares estão mais ligadas ao catolicismo popular, que também é algo extra-oficial para a

igreja.

Apesar de haver uma tentativa de reproduzir no Brasil as mesmas restrições

eclesiásticas européias, a religiosidade que se formou aqui se mostrou muito mais

externalizada e dramática. Recursos cênicos, como as máscaras, foram fartamente

utilizados, principalmente nas encenações dos “autos” promovidas pelos Jesuítas, que

retratavam episódios da bíblia com o objetivo de catequizarem novos fieis51. Segundo

Brandão (1985), havia desde os tempos áureos do catolicismo europeu uma preferência

51

Processo bastante discutido por outros autores como Tinhorão (2000), Meyer (1991, 2001). De acordo com

Silva (2006), “Na festa de Natal” foi um “auto” encenado pelo padre José de Anchieta entre os anos de 1561 e

1562, em São Paulo do Piratininga.

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pelo episódio da visitação dos Reis à manjedoura, “Há indícios de que no Brasil o culto

popular à figura dos „Três Reis do Oriente‟ é quase tão antigo quanto o dos padroeiros dos

primeiros conquistadores” (BRANDÃO, 1985, p. 142-143).

O curioso que a visitação dos Reis Magos é um episódio pouquíssimo

explorado na bíblia, boa parte do que os foliões utilizam está baseado nos livros apócrifos

ou na imensa quantidade de mitos e lendas criados e mantidos pela cultura popular52. Tal

abertura parece ter sido bastante propícia para que a criatividade popular operasse. A partir

de fontes não oficiais e do uso de meios de louvor considerados pouco ortodoxos pela

Igreja Católica, surgiram as diversas manifestações do catolicismo popular que

encontramos atualmente pelo Brasil afora, recheadas de danças, de músicas e de objetos

próprios de ritos mágico-religiosos, como as máscaras das Folias de Reis. De acordo com

Magnani (1984, p.74), tudo se passou como num processo de bricolagem, “foram diversos

fragmentos de estruturas de diferentes épocas e origens, que elaboraram um novo arranjo

onde são visíveis, no entanto, as marcas das antigas matrizes, e de algumas de suas

regras”53.

Olhar para as máscaras das manifestações populares brasileiras como fruto

desse “novo arranjo”, de que nos fala Magnani(1984), parece-me ser absolutamente

fundamental para compreendermos como as diversas dimensões da arte, da religiosidade e

do corpo se encontram intrinsecamente articuladas. Nas Folias de Reis, a cada novo lundu,

dobrado, chula ou maxixe dançado por um folião, é um renascimento que se anuncia de um

corpo que rompe todas as limitações físicas com o auxílio das máscaras e reluz como a

Estrela da Guia diante dos donos da casa em louvor aos Santos Reis, para a diversão de

todos os presentes.

52

Os Reis Magos são citados apenas uma única vez na Bíblia: “E, tendo nascido Jesus em Belém da Judéia,

no tempo do rei Herodes, eis que uns Magos vieram do oriente a Jerusalém” (Matheus 2,1). Nos onze

versículos posteriores a este, pouco mais nos é informado sobre estas lendárias figuras. 53

Essa concepção não implica, entretanto, que possamos conceber o catolicismo popular como sendo

simplesmente um emaranhado de crendices e atos de fé. Carlos Rodrigues Brandão nos alerta que, “toda essa

aparente bricolagem de crendices, de fórmulas de oração [...] e, finalmente, de regras de conduta social e de

desempenho ritual coletivo, constitui um sistema lógico de proposições a respeito das relações entre os

homens e a divindade, através dos seus mediadores sobrenaturais (anjos, almas, santos), ou humanos (padres e

sacerdotes populares) (Brandão, 1981, p. 241)”.

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86

***

Nesta primeira jornada, procurei apresentar algumas das principais dimensões

pelas quais tive que transitar durante esta pesquisa, porque foram esses trânsitos e

deslocamentos, tantos espaciais como temporais, que me fizeram perceber que - antes de

querer aprender sobre as Folias de Reis, era necessário que eu compreendesse melhor o

meu próprio fazer teatral. Compreender que, assim como acontece com os foliões, os

fatores que me levaram a ser um mascarado, ou um ator e diretor que trabalha com

máscaras, remontam à minha infância e mesmo aos tempos ancestrais.

O encontro com os foliões me fez repensar tanto noções como tradição, como

as relações entre arte e devoção, seja no teatro ou nas manifestações populares. Isso foi

fundamental para que eu pudesse estabelecer pontos de aproximação e distanciamento entre

estes dois universos. Desse modo, na jornada que se segue, poderei me aprofundar no

estudo mais detalhado de cada uma das máscaras e do contexto em que elas aparecem.

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SEGUNDA JORNADA - A IMERSÃO

A graça das máscaras da Folia de Reis para um folião

Folia de Matozinhos em visita a uma casa (Foto: Simone Sales)

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CAPÍTULO 4 – Excertos de um processo ritual

Do vão da porta de uma sala, quase sempre cheia de gente, ou pelo basculante

de uma de suas pequenas janelas, é que podemos tentar avistar as máscaras da Folia de

Reis. A cada nova visita um novo ângulo sobre o ritual e, consequentemente, sobre os

mascarados, é imposto pela arquitetura das casas. Com sorte, se estivermos na ponta dos

pés, conseguiremos ver as máscaras que nos conduzem para o universo imaginário dos três

Reis, que ali se fazem presente. Do contrário, se estivermos agachados, veremos apenas os

sapatos dos próprios foliões, que desgastados, nos lembram da labuta do dia-a-dia

enfrentada por aquelas pessoas que, mesmo assim, conseguem arranjar tempo para festejar

os Santos de sua devoção. Similar ao efeito de uma câmera, que permite fazer diferentes

recortes da realidade observada, as máscaras da Folia de Reis também aparecem

enquadradas por batentes de portas e janelas.

Reis Magos da Folia de Matozinhos

É também de maneira recortada que pretendo abordar o processo ritual das

Folias de Reis, destacando apenas algumas de suas dimensões fundamentais, sobretudo

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aquelas relacionadas ao mascaramento. Mais do que explicar o ritual, espero sugerir pistas

de como ele pode ser experienciado, já que a dimensão da experiência é fundamental no

trabalho do ator. Ciente de que boa parte da espetacularidade das máscaras e da Folia de

Reis, como um todo, são intraduzíveis no papel, sugiro que a leitura desse capítulo seja

complementada pelos dois breves documentários de minha autoria, que acompanham a

Tese.

O documentário Noite e dia de Reis é sobre a Folia de Fidalgo; possui quarenta

minutos de duração e foi montado sem qualquer narração. A intenção é dar uma ideia do

que seria uma viração, ou seja, mostrar como os foliões transcorrem um período de vinte

quatro horas batendo Folia. Já A saga dos três Reis Santos é sobre a Folia de Matozinhos.

Possui duração de vinte minutos e apresenta as principais etapas de uma jornada dos

foliões, identificadas como se fossem cenas que compõem o espetáculo das Folias de Reis.

Por meio destes documentários, o leitor poderá ter uma noção melhor de como é a

performance das máscaras no seu contexto original, bem como, ter acesso a uma série de

trechos de entrevistas com os foliões, a partir dos quais me baseei para a escrita da Tese.

Acredito que estes documentários poderão suprir algumas das lacunas deixadas pelo texto.

4.1 – A promessa e a cena verdadeira

Os dois grupos de foliões existentes em Fidalgo são chamados de Folia de Reis

de Nossa Senhora da Conceição e Folia de Reis de São Sebastião. Por sua vez, na bandeira

destes grupos, não é a imagem de Santos Reis que aparece retratada, mas sim a de Nossa

Senhora e de São Sebastião. A riqueza festiva presente em Fidalgo e a maneira despojada

como se configura o catolicismo popular, discutida no capítulo anterior, somado ao fato de

boa parte da população ser negra e de serem mantidos diversos rituais como o Congado54

,

favorecem uma série de hibridações entre os vários Santos celebrados.

Estas hibridizações podem ser notadas desde a própria gênese dos grupos,

como nos relata o presidente da Folia de Reis de São Sebastião, Seu João Nestor:

54

O Congado constitui uma das mais importantes expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira

presentes em Minas Gerais (Cf, Lucas, 2002).

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Esta Folia foi fundada por uma promessa, a promessa foi a seguinte:

na época, havia uma epidemia aqui dentro de Fidalgo, que criança

recém nascida e de até quatorze, quinze anos tava levando de eito,

mas levando de eito mesmo! Ai as mãe de família foi vendo aquele

drama, vivendo aquele drama. Enterrava um filho daqui a pouco

chegava e tinha outro morto. Aí elas fizero uma promessa para São

Sebastião. Se São Sebastião combatesse aquela epidemia, pusesse

uma trégua por cima daquilo ali, que eles ia funda uma Folia de

menino. E não existia Folia nessa época não. Aí, a partir da hora

que elas fizero esta promessa, não morreu mais nenhuma criança.

O curioso é que a promessa foi feita para São Sebastião, mas foi paga com uma

festa que celebra os Santos Reis. Talvez seja por isso que as Folias de Fidalgo fazem a

entrega da bandeira, ou seja, encerram suas atividades no dia vinte de fevereiro, dia de São

Sebastião, ao invés do dia seis de janeiro - dia de Reis.

De todo modo, a promessa descrita acima parece ter obtido êxito. Tanto que

aquelas crianças cresceram, tiveram filhos e os seus descendentes são os que mantêm vivas

as Folias de Reis de Fidalgo, como também aponta Seu Nestor:

Nós temos mais ou menos esta faixa aí, 220, 225 anos de sociedade.

Não, não vou dizer que eu e ele (referindo-se a um companheiro de

Folia que estava do seu lado) mais nossos bisavôs, tataravôs... Nossa

missão veio daí.

Não foi possível precisar a idade exata desse grupo, pois esta informação varia

muito de um depoimento para outro. Já a Folia de Reis de Nossa Senhora da Conceição,

que tem como presidente Dona Maria Estela, possui aproximadamente uns vinte anos e

surgiu como uma espécie de dissidência da Folia de Reis de São Sebastião. Estes dois

grupos, no entanto, convivem em harmonia e possuem, inclusive, muitos integrantes

comuns.

Na cidade vizinha, temos a Folia de Santos Reis de Matozinhos. Questionado

sobre sua origem, mestre Bejo me contou que ao se mudar para Matozinhos, cidade onde

passou a residir após seu casamento, sentia muitas saudades das Folias de Baú, distrito rural

da cidade de Jequitibá, local onde nasceu. Por isso ele fundou sua própria Folia em 1978,

que, atualmente, é mantida basicamente por sua família e amigos próximos, incluindo a

presença constante de sua esposa, Dona Marilda. Esta, por sua vez, acrescentou a esse

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relato de mestre Bejo que a Folia de Matozinhos foi criada por agradecimento a uma graça

alcançada para o seu filho mais velho.

Foi de um membro dessa Folia que também ouvi uma das explicações mais

peculiares para a existência das Folias de Reis enquanto manifestação. Segundo Landinho,

a primeira geração do presépio foi o nascimento tal qual aconteceu, ou seja, a cena

verdadeira, em suas palavras. A segunda geração seria o presépio vivo que São Francisco

de Assis costumava fazer e a terceira geração seriam eles próprios enquanto foliões, que

agem a semelhança dos Reis. De certo modo, ao utilizar a palavra geração em sua fala,

esse folião sugere uma linha de descendência entre os foliões e os próprios Reis Magos.

Após esse breve apanhado histórico, podemos perceber que as Folias possuem

pelo menos duas maneiras para explicar sua origem:

- Uma de caráter mítico, ligada à narrativa do episódio em que os três Reis

Santos viajaram de terras distantes até Jerusalém para visitar o Messias que acabara de

nascer;

- Outra narrativa de caráter mais histórico ou, pelo menos, lendário. Atribuindo

a fundação dos grupos ao pagamento de alguma promessa por uma graça alcançada55

.

É a partir da sobreposição de elementos retirados dessas duas espécies

narrativas que os foliões de cada grupo vão estruturar das mais diferentes formas o seu

processo ritual. O que parece contribuir para criar a diversidade de Folias de Reis existentes

em boa parte do território nacional.

Assim, apesar das Folias de Reis de Fidalgo e Matozinhos apresentarem uma

estrutura ritual muito semelhante, como veremos a seguir, as escolhas estéticas de cada um

desses grupos podem variar bastante em relação à musicalidade, à plasticidade e à

corporalidade. Essa variação só vai ser menor, ou praticamente, nem vai existir, em relação

aos dois grupos de Fidalgo, que são muito semelhantes e, por isso, serão abordados aqui

indistintamente.

55 Segundo Roger Caillois (1988, p.101): “Os mitos distinguem-se precisamente das outras narrativas

lendárias devido ao fato de se situarem nesse tempo volvido, em que o mundo não tinha tomado a sua

aparência presente”.

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4.2 – A viração

Fidalgo possui um calendário festivo bastante rico, como podemos observar na

fala de Agnaldo, um dos foliões:

Nós cantamos em honra de Nossa Senhora da Conceição, Santos

Reis, São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário, Divino Espírito

Santo. Começamos no 24 de dezembro e vamos até 24 de dezembro.

Sabe o único período que a gente não canta? É na quaresma.

O fato da data de início e fim do período festivo ser a mesma e de sua duração ser de doze

meses, além de sugerir uma percepção circular do tempo, nos dá uma noção de como esta

comunidade passa o ano todo em festa. Segundo Caillois (1988), poderíamos dizer que seus

moradores vivem “na recordação de uma festa e na expectativa de outra, pois a festa figura

para eles, para a sua memória e para o seu desejo, o tempo das emoções intensas e da

metamorfose do seu ser” (CAILLOIS, 1988, p. 97). Não é à-toa, portanto, que as máscaras

se encontrem presentes nesse contexto, já que elas seriam uma das formas de manifestação

mais contundentes dessa metamorfose.

Um dos aspectos mais importantes de ser observado é que a Folia de Reis é

um ritual de longa duração e que, portanto, deve ser vivenciado em toda a sua extensão.

Para se ter uma ideia, outrora, os foliões saiam de casa na noite de 24 de dezembro para

realizar sua jornada e só retornavam novamente aos seus lares no dia 6 de janeiro do outro

ano, para fazer a entrega da bandeira. Atualmente, boa parte dos foliões é assalariada e

quase não trabalha mais no campo, espaço onde originalmente surgiram as Folias. Por isso,

não podem se ausentar do trabalho por tanto tempo. O que faz com que os foliões priorizem

a noite e os finais de semana para realizar suas jornadas.

Durante o trabalho de campo, pisei em muito barro, tomei muita chuva e

descobri com estes devotos de Santos Reis que folião não molha. Segundo eles, como a

Folia é própria de um período chuvoso do ano, o fato de estar chovendo não pode ser

motivo para que não haja o giro. No caso de uma tempestade, nos abrigávamos em alguma

casa, mas se fosse uma chuva tranqüila, seguíamos normalmente a nossa jornada em

companhia dos Santos Reis, usando apenas alguns guarda-chuvas, principalmente para

proteger os instrumentos musicais. É importante observar que, apesar dos integrantes da

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Folia afirmarem que: folião não molha, eles andam sempre com fardas reservas

transportadas em sacos de tecido de algodão branco.

Folião carregando Farda em Fidalgo.

Das muitas ocasiões que acompanhei a Folia de mestre Bejo, poderia citar a

jornada realizada em janeiro de 2003, na zona rural da cidade de Sete Lagoas. Naquele dia,

nossa jornada iniciou-se por volta das vinte e duas horas, na casa da janta56

, e foi terminar

apenas no final da tarde do outro dia, depois de termos percorrido diversas casas. Apesar de

ser algo perfeitamente comum para os foliões, preciso confessar que, para mim, nem

sempre era fácil acordar pela manhã e pensar que à tarde eu iria acompanhar as Folias e,

possivelmente, ficaria sem dormir praticamente dois dias diretos. É uma questão física, que

se evidencia principalmente quando vai chegando o final do mês de janeiro em que o corpo

56

A casa que oferece o jantar para os foliões é denominada de casa da janta, assim como aquela que oferece

o almoço e lugares para os foliões descansarem, depois de passarem uma noite inteira acordados, é

denominada de casa do pouso.

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começa a ficar cansado depois de tantas jornadas realizadas. Apesar dos foliões estarem

acostumados a realizar estas jornadas, isso não significa que eles também não tenham

dificuldades para cumpri-las pela noite adentro.

Houve uma ocasião em que fui surpreendido com uma solicitação de um folião

de Fidalgo, que traduz de forma esclarecedora como se dá a viração, ou seja, o ato de

passar a noite acordado batendo Folia:

Você vai ficar com a gente? Se pudesse passar a madrugada era

bom para você dar uma força para gente. De madrugada o negócio

fica fraco. Fica faltando um “h”, um bate papo, entendeu? E de

repente se a turma ficar toda junta até a hora... Entendeu? Dá uma

força, porque dá aquele “h”, quando o sujeito ta lá baquiado, com

se diz, na poupa da madrugada. Lá, chega um camarada e troca

uma ideia. (...) Quando chega de manhã anima tudo de novo, aí a

Folia cresce mais ainda. Aqui deve dar umas vinte e cinco pessoas

ou mais, sabe como é o negócio aqui? Um reveza com o outro,

sempre que um ta cantando, o outro cansa, o outro vai lá e vai

repondo, é igual no teatro né? Se bem que no teatro não cansa

tanto né? Aqui agora a gente corta a noite toda57

.

Numa outra ocasião em que me encontrava muito cansado, por estar imerso

num desses processos de viração, depois de horas acompanhando a Folia de Matozinhos,

perguntei a seu Bejo como os mascarados conseguiam se manter por tanto tempo em ação,

às vezes, mais de seis horas sem tirar a farda. Ele me respondeu, traçando um paralelo com

sua experiência no trabalho de anos como motorista. Segundo ele, do mesmo modo que

durante uma longa viagem, o motorista do carro se sente menos cansado que o carona, por

se manter atento na direção, também o mascarado se cansa menos do que os foliões não

fardados. Isso acontece porque o uso da farda exige que folião que esteja sempre em

movimento, com o corpo quente, não deixando brecha para que o cansaço se instale. Como

acontecia comigo, que estava apenas acompanhando o grupo.

Mesmo durante a viração, cansados ou não, os foliões se mantêm totalmente

alertas à qualidade da performance dos músicos e dos mascarados. Sendo muito comum

ouvi-los comentar com seus parceiros sobre possíveis imperfeições na performance de seus

57

Na prática, pude verificar como nem sempre há pessoas disponíveis para fazer esse revezamento, sobretudo

no caso dos mascarados, o que acaba sobrecarregando alguns foliões.

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companheiros. Ocasião em que logo é solicitada a substituição daquele membro que está se

descuidando.

Apesar de girar a qualquer hora do dia ou da noite, a madrugada é o momento

por excelência das Folias. Para os foliões é o mais difícil e custoso, mas ao mesmo tempo o

mais bonito e saudoso. Parece paradoxal, mas é na madrugada, em meio a todo o sacrifício

para se manter a jornada, que surgem os momentos mais lindos e poéticos. Quando os

corpos de todos os foliões, que estão visivelmente desgastados, conseguem forças de algum

lugar para se reanimar e seguir viagem, até o romper da aurora. Foi numa dessas ocasiões

que seu Bejo me alertou, agora que está bom de filmar. De manhãzinha que a Folia fica

melhor. Quanto mais cansada, melhor ela canta. Tanto é verdade que este é um dos

momentos que mais vi os foliões lançando mão de seus celulares e ipods para registrar a

Folia.

Em função disso, acredito que para compreender a arte das Folias de Reis é

necessário, no mínimo, acompanhá-las em toda a sua extensão espetacular, ou seja, do raiar

de um dia ao romper da aurora do outro. O estado de cansaço do corpo dos foliões e do

pesquisador é fundamental para proporcionar mudanças de perspectivas sobre a

performance que se desenvolve à nossa frente. Só assim, é possível compreender, por

exemplo, como se dá o ápice da viração.

Parte deste texto foi escrita no caderno de campo, poucos minutos antes do sol

começar a talhar o céu, em meio à sensação emocionante que toma todos os presentes ao

percebermos que, rompendo mais aquela jornada na Folia de Reis, rompemos também mais

uma jornada de nossas vidas. Momento em que sou interrompido por um folião para

aprender mais uma lição, jogar um bocado de sal com açúcar na boca pela manhã, faz bem

pra aguentar a jornada do dia que está chegando.

Ao fazer comentários tão subjetivos como esses, espero dar ao leitor uma ideia

de como a Folia de Reis possui uma atmosfera extremamente envolvente, mas que não se

constitui num fenômeno destacado da vida daquelas pessoas, pelo contrário, a sua força e o

seu encantamento parecem brotar dessa simbiose entre: „o tempo passado e o mundo

distante dos Reis Magos‟ e „tempo presente e o mundo mais íntimo dos foliões‟. Operação

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que se dá em suas próprias residências, que se constituem num dos espaços privilegiados de

expressão desse ritual.

4.3 – Bater Folia

Imaginem uma pequena sala de uma cidade do interior de Minas Gerais com

alguns bibelôs de gesso e cristal sobre uma pequena mesa de canto, com paredes um pouco

encardidas e adornadas com imagens de Santos e um relógio estampado com o retrato dos

cantores sertanejos Zezé de Camargo e Luciano. Um pequeno sofá velho e algumas

cadeiras que completam o cenário deixam pouco espaço livre para as dezenas de pessoas

que procuram se acomodar naqueles mínimos vinte metros quadrados a espera dos

mascarados que, repentinamente, adentram a sala numa dança vibrante. Acompanhados

pelo som dos tambores e demais instrumentos como rabecas e violas que fazem também

vibrar nossos corpos, a presença dos mascarados pode provocar desde o sorriso de uns até

as lágrimas nos olhos de outros, em meio aos louvores proferidos pelos devotos que

conclamam: E viva os Santos Reis! É assim, que todos os anos em casa de dona Maria

Estela, em Fidalgo (MG), a Folia de Reis, da qual ela é presidente, inicia a sua jornada.

É sempre da casa do mestre ou do presidente do grupo que os foliões saem

para bater Folia ou para bater caixa, fazendo referência ao ato de tocar um tambor

artesanal feito de madeira e couro de boi denominado de caixa de Folia. Ao nominar sua

ação como bater Folia, ou bater caixa, os foliões assinalam a centralidade que a música

possui nesta manifestação. Ao mesmo tempo essa expressão seria um dos termos

correspondentes ao que chamamos no teatro de “apresentação”, como podemos verificar

nas seguintes falas dos foliões: em que casa a gente vai bater Folia hoje? Tem muita casa

pra bater ainda. Amanhã nos vamos bater caixa lá no Baú.

Ao chegarem numa casa, é através da música que os foliões avisam que estão

na porta. É também através da música que, de longe, temos notícias de que casa a Folia se

encontra, seja para se juntar a ela, ou para ir se preparando para recebê-la em nossa

residência. A sonoridade das Folias de Reis estabelece um contraste bem claro em relação

aos espaços por onde passam os foliões. Nas ruas, todos andam em silêncio ou conversando

baixo, ao contrário das casas, espaços em que se darão as cantorias.

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Apesar dos foliões percorrerem longas distâncias, deslocando de uma casa a

outra, trata-se de um ritual que tem seu ápice dentro de ambientes muito pequenos,

majoritariamente no interior das casas, o que vai alterar toda a relação com a musicalidade.

Esta, para além de ser percebida auditivamente, será sentida por todo o corpo. Cada acorde

de viola ou batida de caixa de Folia reverbera de maneira intensa em cada um dos

presentes, bem como, o canto dos foliões, que é caracteristicamente agudo e muito

projetado.

As Folias nem sempre tem um roteiro de casas pré-definido. Em Fidalgo, por

exemplo, os foliões costumam visitar todas as casas que estiverem em seu caminho,

batendo inclusive nas portas de moradores evangélicos, que eles sabem, de antemão, que

dificilmente abririam as portas, por uma questão de divergência religiosa. Nas residências

em que são recebidos, ao adentrarem no espaço cotidiano do dono da casa, as Folias de

Reis transformam o ambiente. Com o auxílio das máscaras, do canto e dos instrumentos

musicais, os foliões criam outra atmosfera, produzindo momentos belos e emocionantes,

como o que presenciei numa casa da zona rural de Baú, distrito de Jequitibá,

acompanhando a Folia de mestre Bejo.

Era madrugada, quando, depois de andarmos muito tempo pelo campo,

minimamente iluminados pela lua nova que brilhava no céu, chegamos a uma pequena

residência. Quando os donos da casa abriram as portas, avistei a própria Estrela da Guia.

Feita de papel e coberta com purpurina, ela brilhava solitária, dependurada num barbante

que ia da porta até um presépio que estava montado no outro lado daquele pequeno

cômodo. Os Reis, um de cada vez, entravam na casa dizendo versos de saudação a estrela e

conduziam a mesma até o presépio, fazendo-a deslizar sobre o barbante. Só depois de todos

os Reis terem entrado é que o restante da Folia se posicionava no interior da casa, na

medida do possível, já que estávamos num grupo de umas trinta pessoas e a sala não

comportava mais que quinze. Quando então começou uma cantoria que romperia o silêncio

daquela madrugada escura.

Nesse processo, não só a musicalidade, mas as máscaras aparecem como uma

ferramenta poderosa no processo de mudança da perspectiva que passamos a ter sobre o

espaço doméstico das residências, que ao contrário das casas de espetáculos, não possuem

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toda uma infra-estrutura que um palco pode oferecer. A máscara será fundamental para

romper com a atmosfera cotidiana a que estes espaços estão submetidos, seja uma sala, uma

copa ou mesmo uma varanda. Como bem observa Bakhtin, “mesmo na vida

contemporânea, a máscara cria uma atmosfera especial, como se pertencesse a outro

mundo. Ela não poderá jamais tornar-se um objeto entre outros” (BAKHTIN, 1999, p. 35).

O interior das casas, no entanto, não é o único espaço de atuação das Folias. Os

foliões podem bater Folia para os Santos nas igrejas, as almas nos cruzeiros, como para os

mortos nos cemitérios, principalmente em tumbas de companheiros falecidos. Eles

costumam dizer que se a gente caminha em vida, caminha na morte também. É a fé nos

Santos Reis tornando-se força propulsora de um movimento de trocas entre deuses, vivos e

mortos. Aspecto que aponta para a necessidade de compreender melhor as formas de

participação na Folia.

4.4 - Foliões, vassalos e donos da casa

Estes grupos de Folia de Reis são formados basicamente por homens, cujo

número de integrantes é difícil de precisar. Normalmente participam em torno de quinze a

trinta foliões, sendo que há um núcleo constante de aproximadamente dez pessoas. Há a

presença de crianças de colo e até de pessoas de oitenta anos, que participam ativamente.

A presença das mulheres é bastante delimitada. Em Matozinhos, elas apenas

acompanham as Folias sem desempenhar qualquer função mais específica na performance

ritual. Em nenhuma ocasião ouvi os foliões se referirem a uma mulher como folião, mesmo

que ela esteja acompanhando a Folia. Em Fidalgo, presenciei uma moça tocando

cavaquinho durante uma das jornadas, somente uma única vez. O mais comum é que as

mulheres se responsabilizem pelos preparativos, como cuidar das fardas e preparar os

alimentos servidos antes ou depois de algumas jornadas.

Nestas Folias, o uso da farda dos Reis Magos por mulheres é um interdito.

Segundo Dona Jorgina trata-se de procedência maligna. Renato, folião de Fidalgo, relatou

da seguinte maneira um episódio em que eles resolveram abrir uma exceção:

Teve uma vez que a gente pôs três mulher pra dançar. Foi até bonito.

O pessoal gostou, sabe? Mas a tradição... Os Reis não tinha mulher

né? Então acaba que a gente não pode. (...) Mas se for olhar bem,

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depois que ta fardado não tem nada a ver. Ali ta representando, né?

É uma representação. Mas a tradição... Fica meio sem graça. (...) As

três dançou um dia, mais aí o mestre falou: eu não vou tocar pra

mulher dançar não. Porque não ta na tradição. Ai ficou sem jeito de

tocar pra frente.

Nestas Folias encontrei três tipos de possibilidade de participação:

- Os foliões: são aqueles que integram o núcleo do grupo, a chamada sociedade;

- Os vassalos: são todas as demais pessoas que acompanham o grupo em suas

jornadas;

- Os donos da casa: são aqueles que recebem as Folias em sua residência.

Ou seja, na concepção dos foliões, não existe uma platéia, ou um público que

apenas assiste, todos são incluídos como participantes da Folia.

Ao abordar performances rituais, Schechner (1985) chega a formular uma

distinção entre “públicos integrais”, que seriam aqueles intimamente ligados ao performer

ou que pertencem a uma mesma rede de relacionamentos sociais, e “públicos acidentais”.

Entretanto, no contexto dessas Folias de Reis, eu proporia a substituição por “participantes

integrais” e “participantes acidentais”. Primeiro que, por definição dos foliões, todos os

presentes são enquadrados em alguma categoria de participação e, segundo, que os donos

da casa, mesmo não sendo do núcleo da Folia, estão longe de desempenhar um papel de

público. O dono da casa é uma peça fundamental na Folia de Reis. Tudo que será realizado

durante uma visita, depende da aprovação ou da solicitação dele, que se relaciona

diretamente com os mascarados ou com o mestre da Folia. Os foliões demonstram dar

especial atenção às residências em que o dono da casa é um membro de Folia de Reis, ou

mesmo, um bom conhecedor das escrituras e profecias.

Nas Folias de Fidalgo e Matozinhos, os foliões costumam dizer que o dono da

casa, a cada momento do ritual, está representando uma figura diferente, dependendo de

com quem ele está falando e do que está se passando. Entretanto, só consegue perceber essa

mudança de estatuto quem é de dentro da Folia de Reis. Segundo eles, somente quem

conhece todas as profecias é que será capaz de saber se portar bem para receber a Folia,

justamente porque sabe o que cada momento representa. Para um observador externo ao

grupo é impossível perceber o que o dono da casa está representando a cada instante,

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porque não há alteração visual perceptível ou mesmo algo que seja dito, que nos permita

saber, a menos que sejamos profundos conhecedores das escrituras, como eles dizem.

Numas das jornadas da Folia de Seu Bejo, num bairro urbano de Matozinhos,

reparei que os mascarados não estavam contando as histórias e causos que eles

costumavam contar nas visitas às casas da zona rural. Ao questionar Seu Bejo o porquê

dessa ausência, ele me disse que era simplesmente porque os donos da casa não pediam.

Segundo ele, as pessoas da roça teriam mais conhecimento sobre Folia de Reis e, por isso,

sabiam receber melhor. Ou seja, poderíamos dizer que a Folia de Reis teria um processo

ritual aberto e participativo, já que apesar de haver um núcleo de procedimentos invariável,

que se encontra sobre o controle dos foliões, há uma série de outras práticas rituais de

caráter variável, que dependem do conhecimento das demais pessoas presentes, como no

exemplo acima.

Outros fatores podem influenciar, como: o grau de afinidade que cada Folia

possui com o dono da casa, o número de prendas oferecidas, o espaço disponível e o

horário em que a visita está sendo realizada. Isso faz com que o roteiro de ações rituais a

ser performado em cada casa possa variar bastante.

4.5 - Protocolo

Esse núcleo de práticas invariáveis, que caracteriza a visita de um grupo de

Folia de Reis a uma casa é denominado pelos foliões de protocolo. Nas Folias de Fidalgo e

Matozinhos são os Reis Magos que vão à frente juntamente com a bandeira, e tem a

responsabilidade de conduzir o ritual. Ao chegarem à porta de uma casa, todos os foliões

cantam a chamada abrição de porta:

Oh, boa noite meu senhores. Oh, lá de fora quem será?

Oh, é meu Santo Rei da Glória. Oh, que veio lhe visitar.

O Santo Rei veio de longe. Oh, está cansado de andar.

Oh, procurando sua casa. Oh, para ele descansar.

O Santo Rei chegou aqui. Oh, na lapinha preparada.

Oh visitar o dono da casa, abençoar sua morada.

Oh meu senhor dono da casa. Oh, escutai a nossa voz.

Oh leve a mão na fechadura. Oh, pra abrir a porta pra nós.

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Esta é apenas uma das possibilidades dentre uma grande variedade de músicas,

cantos e rezas do repertório dos foliões. Enquanto o dono da casa não abre a porta, por

exemplo, eles podem cantar diversos versos de abrição diferentes. Entre um e outro, eles

podem também fazer algumas pausas, dizendo para o dono da casa se apressar:

Oh! Nhô, nhô... É Divera... Tá chovendo. Oh! Patrão... Abre a

porta, que o cachorro tá mordendo o pé do Guarda-mor, patrão.

Estes comentários nem sempre traduzem a verdade e, em algumas vezes, não

passam de brincadeiras. A porta nunca abre imediatamente. Seja porque os donos da casa

estão dormindo e precisam se preparar para receber a Folia, seja para criar nos foliões uma

expectativa sobre a possibilidade deles não serem recebidos.

Folia de Matozinhos chegando para bater Folia numa casa em Sete Lagoas. (foto: Simone

Sales)

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Quando, em fim, os donos da casa resolvem abrir as portas, os Reis se

apresentam e ainda brincam um pouco:

Nós estamos fazendo a representação daqueles três Reis Magos do

Oriente: Melchior, Gaspar e Baltazar (...). E nós arrancou lá

daquele Matozinhos para trazer as boas novas de Santos Reis, a

senhora vai aceitar, não vai? (...) Oh! Sinhá, alguém tá soprando pra

mim que vai ter um „chap-chap‟ para nós ai? (A dona da casa nega.)

Oh! Sinhá, mas eu sei que a senhora faz comida rápido, nós espera.

(ela diz que não tem lenha.)

Oh! Sinhá, se a senhora quiser queimar um muncado de sapato

desses meninos, eu arrumo pra acender o fogo.

Ao receberem a permissão para entrar, os Reis entregam aos donos da casa a

bandeira e realizam a saudação da Estrela da Guia e do presépio, que normalmente fica

montado na sala. Enquanto isso, o dono da casa leva a bandeira para abençoar todos os

cômodos do imóvel. A bandeira permanecerá nas mãos do dono da casa até o final da

visita.

4.6 - O banquete

Depois de cumprido o protocolo, normalmente ocorre uma pausa para a

alimentação, que também não acontece em todas as casas. Esta é a única ocasião em que os

Santos Reis saem de cena. Em alguns casos pode ser servido um café com queijo e em

outros um verdadeiro banquete, com galinha refogada, carne de panela, arroz, macarrão,

feijão, farofa e diversos doces para sobremesa, normalmente de frutas e de leite. Tudo com

muita fartura e preparado com o maior cuidado, para que as pessoas se sirvam a vontade,

sem fazer cerimônias, como eles costumam dizer.

Quanto às bebidas, apesar dos foliões costumarem dizer que tomam só um

golinho prá espertá os oio, cheguei a acompanhar uma jornada, de uma noite inteira em

Fidalgo, em que a única dádiva oferecida em troca da visita dos Santos Reis, além da

hospitalidade e de algumas prendas, era a cachaça. Apesar de alguns foliões ficarem

realmente bastante embriagados, a bebedeira nas Folias de Reis contribui para a construção

de um clima de descontração e ajuda a espantar o frio da madrugada. Entretanto, a cachaça

não deixa de guardar a ambigüidade de ser oferecida como um presente (Cf. MAUSS,

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2003). Consumida em excesso, poderá tornar-se um veneno, ou seja, algo perigoso,

provocando algumas das brigas que ocorrem principalmente no meio da madrugada,

quando estão todos muito cansados e alguns bastante bêbados.

Terminado o banquete os foliões realizam o canto e a reza para agradecer a

mesa. Logo em seguida um dos Reis Magos retoma a brincadeira, como aconteceu em uma

das casas que a Folia de Matozinhos visitava:

Estou representando aquele Deus Gaspar que vem perante a sinhá

perguntar se a senhora aceita o pagamento (em retribuição à

comida) em nome de Deus? Se a senhora não aceitar, eu vou por o

Nêgo mais o Rapazinho para lavar uns pratos. (ouve-se alguns risos)

Deus dê a sinhá e a família muitos anos de vida e saúde, felicidade.

E, ano que vem, se Deus quiser, quando esse Véio voltar, dessa vez

ele comeu na bacia, ano que vem ele vai comer no caminhão.

Esta intervenção, assim como outras, que venho relatando neste tópico,

confirma o argumento apresentado no terceiro capítulo, segundo o qual a recreação é um

elemento inerente às manifestações religiosas.

4.7 - Capinar o terreiro: o realismo grotesco

A partir daí, as energias são recarregadas espiritualmente pela reza e

fisicamente pela comida e pela cachaça, que também provoca alterações mentais,

potencializando o clima de brincadeira. Uma roda é constituída dentro de casa ou na

varanda, dependendo da quantidade de espaço disponível. Em algumas ocasiões, cabe tanta

gente em lugares tão pequenos, que parece ser a necessidade pelo “religar”, pelo estar

junto, o que dilata o espaço.

Em meio a esse amontoado de pessoas, os Santos Reis anunciam sua partida e o

dono da casa os impede de ir, alegando que eles devem trabalhar. Nesse momento,

intensifica-se uma atmosfera de liberdade e licença, permitindo o estabelecimento de um

jogo lúdico entre todos os presentes. Quando o dono da casa solicita que os Santos Reis

trabalhem, na verdade, estão solicitando que eles dancem para a diversão de todos, como

neste exemplo retirado da Folia de Fidalgo:

Dono da Casa: Oh, Guarda-mor! Capina o terreiro dessa casa pra

mim!

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Guarda-mor: Oh, Nhô, Nhô! Eu não posso, pois eu tô veio e cansado.

Deixa os outros dois que são mais novos trabalharem no meu lugar

Patrão.

Para executarem sua função, maneira como os foliões costumam se referir às

suas atividades, os Reis Magos vão pedir prendas ou dinheiro ao dono da casa que, aos

poucos, vai liberando os donativos, fazendo com que a diversão dure mais tempo. Somente

o dono da casa pode liberá-los da função, por isso, quando os Santos Reis ficam cansados,

eles começam a perguntar: Satisfeito patrão? Mesmo assim, ao final, o dono da casa vai

insistir para que os mascarados finalizem o serviço.

Dono da casa: Uai! Ocês não capinaram direito, ficaram alguns

tocos no chão.

Guarda-mor: Ta bom, Patrão! Eu posso até fazer, mas só se for bem

devagarinho...

A diversão vai durar até quando tiver prendas a serem doadas pelos presentes, ou os

mascarados não agüentarem de cansaço.

Neste clima envolvente de permissividade e de intensa mobilização corporal

provocado pelo fervor religioso e potencializado pela embriaguez, tornam-se evidentes os

elementos centrais das imagens da festa na cultura cômica popular, descritos por Bakhtin

(1999), ou seja, o destronamento, o disfarce e a flagelação. Assim, proponho, a seguir, uma

análise desse momento em que o clima de brincadeira predomina tomando como referência

a perspectiva bakhtiniana sobre a festa.

As considerações desse autor nos auxiliam bastante a compreender como o

imaginário em torno das Folias de Reis se manifesta, não só no plano das representações,

mas concretamente no corpo dos foliões. Caracterizando o que Bakhtin (1999) denominou

de realismo grotesco, no qual o “princípio material e corporal aparece sob a forma

universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão ligados

indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível” (BAKHTIN, 1999, p.17).

De acordo com esse autor, o sistema das imagens da festa popular formou-se

efetivamente e existiu durante milênios.

No curso desse longo processo (…) esse sistema cresceu, enriqueceu-

se com um sentido novo, filtrando as esperanças e idéias populares

novas, e modificou-se no crisol da experiência popular. A língua das

imagens, ganhando novos matizes, refinou-se. É graças a ela que as

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imagens da festa popular puderam tornar-se uma arma poderosa na

apreensão artística da realidade e puderam servir de base a um

realismo verdadeiramente amplo e profundo. Elas ajudam a captar a

realidade não de uma maneira naturalística, instantânea, oca,

desprovida de sentido e fragmentária, mas no seu processo de devir

com o sentido e a orientação que ele adquire. Daí o universalismo

extremamente profundo e o otimismo lúcido do sistema das imagens

da festa. (…) Nenhuma sobrevivência morta ou que perdeu o sentido,

tudo está carregado de um valor atual, racional e único (BAKHTIN,

1999, p.184).

Desse modo, é importante deixar claro que não me interessa recorrer à obra de

Bakhtin (1999) para identificar nas Folias de Reis sobrevivências de uma Idade Média ou

Renascença perdidas, tendência observada por Valverde (1998) em alguns estudos de

cultura popular. Recorro a este autor, por ele ter elencado alguns dos princípios universais

sobre o qual se estruturam as imagens da festa na cultura popular e por me permitir

explicitar melhor como se dá a relação de intimidade entre os foliões e os Santos Reis, que

venho fazendo referência desde o início da Tese.

Os Santos Reis, apesar de terem uma gênese sagrada, se mantêm como

protagonistas, mesmo nessa parte mais explicitamente dedicada à brincadeira, mas parecem

se metamorfosear em “reis bufões”. Eles deixam de conduzir as rezas, como faziam na

primeira parte da visita, e se colocam em função de divertir os donos da casa, também

considerados seus senhores e patrões. Nesse momento, se estabelece um jogo em que os

Santos Reis são, momentaneamente, “destronados”. Como os bufões, eles se transformam

nos Reis de um mundo às avessas. Ao invés de rezas, eles passarão a dizer versos

engraçados, a fazer brincadeiras com os donos da casa e galanteios para as moças

presentes. É quando eles, de fato, passam a dançar as máscaras. Mas como observa

Renato, folião de Fidalgo:

A dança não faz parte da Folia. A dança veio depois. Os três Reis

cantam no presépio e para o dono da casa. A dança não faz parte

porque os Magos do oriente não dançavam. Então é por isso que a

gente fecha a bandeira nessa hora. Os Magos procuravam o menino

Jesus. (…) Tem gente que fala que os Magos foram fugindo do rei

Herodes, eles voltaram dançando na sinagoga pra disfarçar, pra não

serem pego. Mas não sei se é a verdade porque não tá nos livros,

porque nas escrituras tá escrito assim que eles voltaram por outro

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caminho. Mas ai surgiu a história que eles voltaram disfarçados

dançando.

Como entender que a dança não faz parte, se ela é o principal elemento dessa

última etapa da visita, quando todos se concentram para ver as máscaras dançarem? Ao

fazer essa afirmação, esse folião parece deixar claro que este é um momento com

características tão peculiares que acaba sendo pensado como algo à parte. Para, além disso,

a fala de Renato explicita como o disfarce encontra-se na própria gênese do mito dos três

Reis Magos. Segundo alguns foliões, os Reis Magos usam máscaras porque a Virgem Maria

retribuiu os presentes que eles trouxeram oferecendo-lhes um pedaço do coero que envolvia

o Menino Deus para que eles pudessem cobrir o rosto e evitar que os soldados de Herodes

os reconhecessem. Ela fez dois furos para os olhos e um para o nariz, dando origem às

máscaras. Completando os disfarces, eles deixaram de utilizar os nomes pelos quais eram

tradicionalmente conhecidos, ou seja, Gaspar, Melchior e Baltazar e passaram a adotar

diferentes apelidos em cada lugar onde estiveram. Isso explica o fato deles serem

denominados das mais diversas formas pelos foliões. Na cidade de Matozinhos (MG), eles

são apelidados de Rapazinho, Nêgo e Veio. Já em Fidalgo (MG), o folião Agnaldo relata

que:

A gente não sabe se é verdade ou não, mas os nomes Benedito,

Bastião e Guarda-mor foram utilizados depois que eles visitaram

Jesus Cristo, porque eles tinham que voltar por outro caminho, pois

se voltassem pelo mesmo caminho eles seriam mortos.

É importante observar que, apesar de Bakhtin (1999) acreditar que a máscara

seria a expressão máxima do disfarce, pude verificar nas Folias de Reis que este elemento

adquire uma importância maior no plano do mito, pois na prática, aquilo que leva um folião

a se mascarar não é, necessariamente, o disfarçar-se, no sentido de esconder sua identidade

por completo. Este é um aspecto que abordarei com mais cuidado nos próximos capítulos.

Bakhtin (1999), no entanto percebe outras qualidades da máscara enquanto um dos

elementos centrais das imagens da festa na cultura popular:

A máscara é o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da

cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das

reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e

do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo

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mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das

metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da

ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio do jogo

da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da

imagem, características das formas mais antigas dos ritos e

espetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável.

(...) É na máscara que se revela com clareza a essência profunda do

grotesco (Bakhtin, 1999, p. 35).

As máscaras de Fidalgo são aquelas em que as características grotescas estão

mais explícitas. Além de serem um pouco maiores que o rosto humano, elas apresentam

diversas arestas e protuberâncias nos seus orifícios, “lugares onde se ultrapassam as

fronteiras entre os corpos e entre o corpo e o mundo, onde se efetuam as trocas e as

orientações recíprocas” (BAKHTIN, 1999, p. 277). A máscara do Bastião possui lábios

enormes e uma enorme verruga vermelha na face. A máscara do guarda-mor possui bigodes

e barbichas muito cumpridos e com um grande nariz apontado para cima. As proporções

corporais dos foliões são alteradas pelas fardas compostas por um mosaico de peças

sobrepostas, como saiotes, capas e babados que não nos permitem distinguir as terminações

do tronco. Características que serão detalhadas, a seguir.

A flagelação é o terceiro elemento descrito por Bakhtin (1999) e aparece na fala

dos foliões em alguns comentários como: existe uma sacanagem de colocar dinheiro para o

Bastião dançar até morrer. Trabalha Nêgo! Deixa de ser preguiçoso Guarda-Mor! A

dimensão da flagelação como todas as outras dimensões da festa, tem, de acordo com

Bakhtin (1999, p.176), caráter ambivalente, pois “no sistema das imagens da festa popular,

a negação pura e abstrata não existe. (...) as grosserias podem se transformar em elogios, a

flagelação é alegre, ela começa e termina em meio a risadas”. Como, de fato, acontece nas

Folias, em que os Reis morrem de tanto dançar e cantar para divertir o público. Eles

utilizam para isso os estímulos fornecidos pelo acompanhamento vocal e instrumental

realizado pelos outros foliões, que fazem com que todos entrem numa mesma sintonia,

criando uma unidade sustentada por uma forte e alegre musicalidade.

O flagelo não se manifesta apenas de forma metafórica nos versos ou nas

brincadeiras, há um desgaste concreto do corpo dos foliões, que se sacrificam por horas

sem parar ou por vários dias ininterruptos, muitas vezes doentes, machucados ou cansados

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de longas jornada de trabalho. Como o caso de Agnaldo, um folião que, numa viração,

dançou durante toda a noite, com um corte na sola do pé de uns quatro centímetros.

Os foliões oferecem seus corpos em sacrifício colocando-os à disposição da

Folia de Reis por, pelo menos, sete anos, como manda a tradição. Para Caillois (1988,

p.95), “o sacrifício, como efeito, parece uma espécie de conteúdo privilegiado da festa. Ele

é como que o movimento interior que a resume ou lhe dá sentido”.

Em toda motivação dos foliões há algo de ambivalente, que consiste numa

operação de se mortificar durante a jornada, em nome dos Santos Reis, para renascer no

final com saúde para si e para todos de sua família. “A destruição e o destronamento estão

associados ao renascimento e à renovação, a morte do antigo está ligada ao nascimento do

novo; todas as imagens são concentradas sobre a unidade contraditória do mundo que

agoniza e renasce (BAKHTIN, 1999, p.189)”. Esta ideia é tão forte nas Folias de Reis de

Fidalgo que ela se manifesta até na forma como eles imaginam os Reis Magos. O Guarda-

mor é um rei mais velho e cansado, o Bastião é o rei jovem que aguenta trabalhar muito, e o

Benezinho é um menino que está aprendendo a trabalhar. Este comportamento corrobora

com a ideia de que “todas as imagens da festa fixam o momento do devir e do crescimento,

da metamorfose inacabada, da morte-renovação” (BAKHTIN, 1999, p.223).

A Folia de Reis é um ritual festivo que atualiza de diversas formas o mito

dos três Reis Magos, dos quais pouco se sabe. Diferente de outros Santos da Igreja

Católica, os Santos Reis não tiveram toda uma vida de virtudes, nem sofreram uma série de

agruras exemplares, para serem lembradas. O que os transformou em Santos Reis foi terem

se paramentado da melhor forma possível e juntado o que de melhor havia em seus reinos

para, depois de uma longa viajem, presentearem, prestarem honras ao nascimento do

Messias, ou seja, festejarem uma nova vida. No máximo, os foliões fazem referência ao

sofrimento dos Reis para se livrarem da perseguição de Herodes.

Nada mais aceitável que estes alegres Santos festeiros sejam imersos na Folia,

através de risos e brincadeiras, que passam a ser muito mais uma tentativa de buscar uma

aproximação, uma maior intimidade com a divindade, do que uma ação para denegri-las,

como argumentei no segundo capítulo. Sobretudo, porque os Santos Reis estão ali

presentificados em carne, osso e máscara.

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O processo ritual destas Folias opera por diversos momentos num patamar

grotesco, também no sentido atribuído a este conceito por Kayser (1986), segundo o qual o

grotesco é o mundo alheado, tornado estranho. É exatamente uma sensação de

estranhamento que surge do contraste estabelecido quando percebemos um ambiente

fortemente marcado pela cotidianidade de seu uso, ser invadido por uma forte sonoridade e

por figuras de outra ordem que não exatamente a humana. Não só por serem deuses, mas

por suas máscaras apresentarem traços muito pouco realistas. Dimensão que é reforçada

também pelo fato dos foliões dançarem as máscaras. Fora a oscilação constante entre os

momentos sérios e debochados, que não segue uma lógica precisa, é possível identificar

apenas os momentos em que cada uma destas dimensões predomina. Como tentei fazer

neste capítulo.

Se a máscara é um elemento fundamental para dar materialidade às figuras

mitológicas dos Santos Reis, resta-nos agora saber como os foliões utilizam estas máscaras.

Assim, saindo de um plano mais geral das máscaras em situação ritual, parto para um

enquadramento um pouco mais fechado. Abordando detalhadamente como os foliões

concebem cada uma dessas máscaras em sua dimensão plástica e performativa, incluindo a

identificação de algumas noções sobre o mascaramento que aparecem em seu discurso.

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CAPÍTULO 5 – As máscaras e o mascaramento

5.1 - A Caracterização dos Santos Reis

5.1.1 – As fardas

Antes mesmo de abordar as máscaras é importante frisar que a farda

desempenha um papel muito importante. Ora aparecendo como o conjunto formado pela

máscara e seu respectivo traje, ora apenas fazendo referência a este último. As fardas são

feitas por costureiras locais ou mesmo pelas esposas dos foliões. Elas são confeccionadas

em tecidos de algodão misturados com cetim e fitas coloridas. Apesar de serem sempre

bem cuidadas, elas podem aparecer um pouco desbotadas pelo uso constante e a exposição

ao sol, à chuva e ao sereno. Esses trajes são responsáveis por boa parte do destaque que as

máscaras alcançam em cena, uma vez que a sobreposição de elementos, como babados,

capas e saias, muda a forma como o corpo é originalmente percebido no cotidiano. As

fardas são complementadas, ainda, por adereços, como bastões e lenços, que são

determinantes na maneira dos foliões dançarem as máscaras. Parece se aplicar, nesses

casos, o que Balogun (1980, p. 55) observou em algumas regiões da África em que:

A máscara é ornamentada com motivos decorativos que podem ir

desde o toque mais simples e subtil a um extremo barroquismo (…)

pode mesmo dizer-se que é nesses acrescentos ornamentais que o

escultor africano mais procura seduzir o olhar do espectador.

As Folias de Fidalgo e Matozinhos possuem, cada uma, um único conjunto de

três máscaras, que é utilizado por todos os foliões. Cheguei a acompanhar jornadas de mais

de trinta e seis horas de duração em que as mesmas máscaras eram utilizadas durante todo o

tempo. Apenas as fardas eram trocadas durante este período, quando estavam muito

molhadas de suor ou de chuva. Fora das datas festivas, as máscaras ficam sob a

responsabilidade do presidente da Folia, e os foliões costumam dizer que elas pertencem à

sociedade.

A forma como os Três Reis Magos aparecem retratados através das máscaras

pode variar muito de uma Folia para outra. No entanto, os mascarados de Fidalgo e de

Matozinhos são bons exemplares de duas das maneiras mais comuns dos Santos Reis

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aparecerem caracterizados nas Folias da região metropolitana de Belo Horizonte. Mesmo

que nem sempre sejam idênticas, as máscaras das Folias de Reis dessa região tendem a

apresentar um destes dois padrões que serão detalhados abaixo.

5.1.2 - As máscaras de Fidalgo

O Guarda-mor

Foto: Simone Sales

O Guarda-mor utiliza um paletó preto, com renda branca aplicada nas barras,

uma bermuda branca e um meião de jogador de futebol preto, esticado até a canela. Sobre o

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paletó é colocada uma faixa cruzando o peito. O capacete do Guarda-mor possui uma cruz

bordada e se assemelha a um antigo chapéu de marinheiro, estilo “Napoleão Bonaparte”.

Aliás, todo o seu figurino é meio “napoleônico”. Na última parte da visita a uma residência,

quando o dono da casa solicita que este mascarado trabalhe, ele o fará se apresentando

primeiro como um velho manhoso que anda lentamente. Brincalhão e embromador, ele

finge mancar de uma perna, justificando que não estaria em condições de trabalhar,

transferindo tal empreitada para os outros dois Reis, que seriam mais novos e espertos.

Nesta parte da visita, ele freqüentemente realiza movimentos circulares com as mãos,

enquanto conversa com os donos da casa e demais presentes, constituindo um gesto

característico que parece sintetizar fisicamente toda a sua atitude de embromador. Como o

rei mais velho, ele assume o papel de organizar e liderar o grupo, mas sem querer fazer

nenhum esforço. Quando os donos da casa insistem muito para que ele trabalhe, sua

resposta costuma ser, Eu posso até fazer... Mas só se for bem devagarinho.

Sua fala tende a ser arrastada, assim como sua movimentação ao conversar, mas

quando começa a dançar, assume outra postura e sua dança nada tem de lenta. A graça

dessa máscara para os foliões está justamente no contraste entre estas duas posturas do

Guarda-Mor. Seria uma espécie de “contra-máscara” que, como sugere o nome, é uma

característica secundária em potencial de uma determinada máscara, que se opõem à sua

característica dominante. Exatamente como nesse caso, em que um velho cansado

repentinamente se mostra forte e cheio de vida. No entanto, só observei a relação de

máscara e contra-máscara no caso deste mascarado. Até porque, trata-se de uma relação

pouco provável em máscaras que, a exceção do Guarda-mor e, em alguma medida, do

Bastião, não se definem prioritariamente por traços comportamentais específicos, como

medroso ou corajoso, forte ou fraco, como veremos no decorrer desse capítulo. A

caracterização da ação desses mascarados é bastante fluída e se revela minimamente apenas

na forma de dançar, principalmente em Fidalgo.

O Guarda-mor dança, na maioria do tempo, como se estivesse cumprimentando

ou fazendo reverência aos presentes, sendo muito comum vê-lo ajoelhado. Seus braços

estão sempre estendidos numa atitude de oferenda ou apontando para o céu. O fato desta

máscara possuir pálpebras muito fechadas, obriga ao folião que usa esta farda a se manter

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sempre olhando por cima das pessoas, fazendo com que a sua coluna se curve para trás, o

que acaba conferindo a este mascarado um tom altivo, já que a sua característica

fundamental é possuir um longo nariz empinado. Ele brinca muito com a sua barba e

bigodes enquanto dança, passando a mão em seus fios, que são bastante cumpridos. Todas

estas ações, somadas à forma dele usar o seu paletó, abrindo e fechando suas abas,

contribuem bastante para dar uma impressão de galanteador. Característica que também

aparece expressa em alguns dos versos que o Guarda-mor canta, enquanto dança:

Menina vamo jogar o jogo da doradinha, (bis)

Se eu perder você me ganha, se eu ganhar você é minha. (bis)

Menina quem te contou, que esta noite serenô (bis)

Eu deitado no seu colo, sereno não me molhô(bis)

Estes versos constituem-se, assim, numa rica fonte de informação sobre os

mascarados, como podemos constatar neste outro exemplo:

Eu saí de casa cedo, deixei minha mulher em casa.

Quando eu cheguei de tarde, a porta tava trancada.

Galinha tá no poleiro, o porco tava roncando.

A danada da mulher tava na rua passeando.

Quando ela voltou pra casa eu falei na orelha dela:

Cabocla minha velha deixa de muita baderna!

E eu agora vou embora, pois mulher não me governa.

Mas ninguém tem pena, ninguém tem dó

Do coitadinho do Guarda-mor,

Na beira do rio de sol a sol,

Puxando seu fumo e cheirando seu pó.

É importante perceber que, apesar de rei, o Guarda-mor aparece, neste verso,

como uma espécie de pescador, casado e com sua casa cheia de bichos. Descrição que, não

só o diferencia da forma que os Reis Magos são mitologicamente caracterizados, como o

aproxima muito mais da realidade cotidiana dos foliões. Este tipo de operação, em que a

vida dos mascarados é concebida como semelhante a dos foliões é comum tanto em Fidalgo

como em Matozinhos, como pretendo discutir mais detalhadamente no logo a seguir.

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O Bastião

Foto: Simone Sales

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O Bastião utiliza uma espécie de vestido todo vermelho, com mangas

compridas e detalhes em renda branca ou fitas douradas. Usa também uma calçola

vermelha que vai até abaixo do joelho e um meião da mesma cor. Seu capacete é

arredondado e cuidadosamente decorado com pequenas tiras de papel ou plástico coloridas.

Ele é um dos mascarados que mais provoca risos nas pessoas presentes. O que não acontece

por acaso. A boca e os olhos desta máscara, pintados respectivamente de vermelho e

branco, possuem grande destaque. É como se o restante da face fosse atenuado pelo preto,

que por contraste de cores acaba por destacar os órgãos de expressão, ou seja, os orifícios

com os quais o corpo se abre para o mundo; tornando-os importantes elementos

provocadores do riso, como ressalta Bakhtin (1999).

O Bastião é o mascarado com mais vitalidade, que dança mais rápido, por mais

tempo e com o qual as pessoas mais vibram e riem. Contudo, eu só fui compreender melhor

a forma como este mascarado é encarado pela população local, no dia em que estava na

casa de dona Maria Estela, a presidente da Folia de Reis de Nossa Senhora da Conceição, e

ela resolveu me mostrar o quarto onde as máscaras eram guardadas. Ela abriu um guarda-

roupa de onde retirou as fardas dos reis, mas logo me chamou a atenção o fato de que o

Guarda-Mor e o Benezinho tinham, no máximo, mais três fardas guardadas, enquanto havia

um saco inteiro com mais de uma dezena de fardas para o Bastião.

Ao perguntar o motivo dele ter mais roupas do que os outros, ela me respondeu

dizendo: a gente fica assim... Querendo pôr ele bonito, porque ele é muito feio. Tem a cara

muito feia. Na conversa que se seguiu, entre os motivos dele ser feio, apareceu o fato dele

ser negro. Um elemento presente na máscara do Bastião que, para os foliões, reforça essa

noção de que ele é o mais feio, é uma grande verruga vermelha que ele tem na face, que

não aparece nas outras duas máscaras e realmente chama bastante a atenção. O comentário

de Dona Maria Estela, no entanto, contrasta com o seguinte verso entoado em algumas

ocasiões pelo próprio Bastião:

Você diz que preto é feio, preto é de boa cor (bis)

Bastião ganhou cachaça e levou para um padre benzer.

O senhor falou com ele, a batina do padre tem dendê.

Samba nego, samba. Branco não vem cá. Se vier é pau de levar.

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Em se tratando deste mascarado, há em tudo um duplo sentido correlacionado

com sua condição de ser negro que, por sua vez, está inserido dentro de uma manifestação

mantida basicamente por uma comunidade de negros. Por vezes, o Bastião é visto como o

mais feio, mas é o que se apresenta melhor e mais belamente paramentado. É aquele que

todos querem ver dançando e o que melhor sabe dançar. De fato, é o rei que mais dança, ou

nas palavras dos foliões: ele é o que mais trabalha, pois é pra isso que preto serve. Fazendo

uma clara referência à condição histórica do negro no Brasil como trabalhador escravo. Por

outro lado, todos riem muito quando o negro, em resposta às ordens de trabalho, faz versos

maliciosos e se esmera dançando mais que os outros dois reis, explicitando toda a sua

realeza na execução de sua dança de maneira forte, intensa e exuberante.

Esse mascarado, que na história dos três Reis Magos não teria motivo de

destaque em relação aos outros, ganha outra dimensão devido ao contexto em que está

inserido. Em alguns relatos, ele aparece mesmo como o rei que primeiro chegou à

manjedoura. Segundo os foliões, ele foi enganado pelos outros dois reis enquanto viajavam

a caminho de Belém. Numa certa manhã, após uma noite de descanso, Baltazar e Gaspar

partiram deixando Melchior (o Bastião de Fidalgo) dormindo, para se livrarem da sua

companhia. Mas como os outros dois reis erraram o caminho, teria sido então, Melquior, o

primeiro a chegar. O curioso é que em alguns versos cantados pelo Bastião, é ele quem

aparece como o enganador:

Vamo dar a meia volta sinhozinho que mandô

Vamo dar a meia volta bastião enganador

Engabela nhonhô... (bis)

Aí está a graça desse mascarado para os moradores de Fidalgo, sua condição de

negro que o tornaria supostamente inferiorizado, por questões históricas do racismo no

Brasil, é suplantada pela sua condição de rei e por sua esperteza. Assim, verificamos, mais

uma vez, que no plano performativo das máscaras da Folia de Reis ocorre uma

sobreposição do plano mítico em que se dá a narrativa da vida dos Reis Magos e os eventos

históricos vivenciados pelos foliões. Sendo que estes planos não têm significados

estanques, eles vão sendo revistos no decorrer do processo histórico (Cf. SAHLINS, 1997).

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A movimentação do Bastião é bastante ágil e sempre começa com um tremor

que se inicia nos pés, vai subindo pelas outras partes do corpo, até atingir a cabeça,

acompanhando o som dos tambores que vão simultaneamente aumentando de intensidade,

até que o Bastião explode dançando. Ele realiza muitos movimentos de ombros e utiliza um

bastão de uns quarenta centímetros de comprimento enquanto dança. Algumas vezes, ele

mantém este bastão parado na posição horizontal em frente ao corpo, como um ponto fixo,

em relação ao qual ele se movimenta. Quando está cansado, utiliza o recurso de parar e

pedir mais esmolas para continuar dançando, mas sempre usando poucas palavras. O

Bastião costuma dançar segurando prendas que, por ventura, tenha recebido dos presentes,

como um frango ou ovos, substituindo o bastão. Caso a prenda seja uma garrafa de bebida,

ele a coloca no chão e dança fazendo evoluções com as penas abertas sobre ela. Trata-se de

uma espécie de dança da garrafa que, apesar de ter se popularizado através do grupo

musical “É o tchan”, é uma dança da cultura popular tradicional, própria dos sambas de

roda (Cf. BIÃO, 1998).

O Bastião possui um lado brincalhão, mas que nem sempre se manifesta em

ações concretas enquanto dança ou conversa com o dono da casa. Esta característica

aparece expressa de maneira mais evidente nos versos que ele canta, assim como acontece

com o Guarda-mor. Muito do que sabemos dos mesmos está expresso em seus versos,

como nestes do Bastião:

Quando eu for na sua casa, oh se tiver café me dê. (bis)

Quando você for na minha, se tiver vou esconder. (bis)

Bastião é pretim, mais é um pretim dengoso(bis)

Vim te cumprimentar como vai minha patroa? (bis)

Dança o maxixe dança, o maxixe é coisa boa.

Pra mim dançar o maxixe tem que ser com as criola.

Nêgo véio ta pinando, vai pra roça trabaiá.

Com chuva eu não vou na roça, com sol eu também não vou.

Ai, ai, ai com sol também não vou.

Encima daquela serra tem um ninho de carcará. (bis)

Quando olho pra sua cara da vontade de beijar. (bis)

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Minha mãe não quer que eu vou na casa do meu amor. (bis)

Eu vou perguntar a minha mãe, oh se ela nunca namorou.

Tudo quanto Deus nos deu cabe numa mão fechada.

O pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é nada.

Quem quiser falar de mim, oh fale no meio da rua. (bis)

Eu como na minha casa, cada um come na sua. (bis)

O Benezinho

Foto: Simone Sales

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A farda do Benezinho é muito parecida com a do Bastião, mudando apenas a

cor de vermelho para rosa. Sua movimentação se caracteriza por buscar imitar os passos do

rei negro. Observando sua performance enquanto dança, poderia dizer que ele se apresenta

como um rei tímido e desengonçado, que costuma estar com o corpo curvado para frente

segurando timidamente um lencinho. Apesar desta máscara ter os olhos bem abertos, ele

poucas vezes encara as pessoas de frente, desviando rapidamente o olhar. Sua apresentação

é a mais curta de todas e provoca sempre muitos risos, pois ele se atrapalha com o capacete,

que fica caindo da sua cabeça. Um movimento característico do Benezinho é colocar as

mãos no rosto para segurar a máscara e sacudir a cabeça em direção ao chão, com o tronco

todo abaixado. Ocasião em que os foliões comentam: êta menino danado!!! Ah... Moleque

nervoso! Todas essas características, no entanto, não são determinadas pela tradição. Na

verdade, elas derivam do fato de ser uma máscara dançada por crianças, como abordei no

primeiro capítulo.

Não identifiquei versos específicos para o Benezinho, já que mesmo o Bastião e

o Guarda-mor possuem muitos versos em comum. Notem que todos os três mascarados

dançam manuseando um objeto: o Guarda-mor utiliza o paletó, o Bastião o seu bastão, e o

Benezinho o seu lenço. Todos os três utilizam um lenço amarrado no pescoço e calçam

tênis ou sapatos que são, normalmente, seus calçados pessoais.

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5.1.3 - As máscaras de Matozinhos

Se olharmos com cuidado para as máscaras, veremos que não há muita

diferença na estrutura da face de cada um desses três reis entre si. O que os diferencia, além

da cor de cada máscara, são as mudanças na barba, na costeleta e no bigode. O rei mais

velho utiliza barba branca, o rei menino utiliza cavanhaque. O capacete, que vem afixado à

máscara, lembra aquele utilizado por papas e cardeais, com a diferença que estes são

pintados com variados motivos: árvores, corações, retângulos e etc. Estes reis da Folia de

Matozinhos utilizam o mesmo modelo de farda, composto por calça e uma bata grande

coberta com uma capa, variando apenas a cor. Todos normalmente utilizam botas tipo zebu.

Cada um segura um bastão que possui um chocalho de pratinhas afixado na ponta, utilizado

para dançar a catira, uma espécie de sapateado característico da performance desses

mascarados.

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Ao contrário dos reis de Fidalgo que são bem mais calados e concentram sua

expressão oral no canto. Os três reis de Matozinhos brincam uns com os outros o tempo

todo e se destacam por possuírem toda uma técnica de contadores de histórias, utilizando

recursos como a inclusão das pessoas presentes como integrantes de suas narrativas e a

referência a acontecimentos recentes do cotidiano da comunidade. Mesmo os fatos mais

corriqueiros ganham uma roupagem fantasiosa em suas histórias. Eles costumam também

fingir que perderam o fio da meada e solicitam ajuda para lembrar em que ponto estavam

da narrativa. O foco central dessas estratégias parece ser o de incentivar a participação de

todos os presentes.

Os próprios Santos Reis são os protagonistas dessas histórias, podendo aparecer

caracterizados de diversas formas e participando dos mais diversos episódios. O Rapazinho,

por ser o mais novo, aparece sempre mais afobado; em contraste com o Veio, que é o mais

lento e esquecido. Mas estas características, assim como nos reis de Fidalgo, quase não se

manifestam fisicamente nos mascarados, elas só aparecem em suas histórias.

Concretamente, o que se vê nesta Folia de Reis é que os mascarados adquirem as

características físicas e os traços de comportamento do folião que se encontra com a

máscara.

Esta maneira dos foliões de Matozinhos se relacionarem com o mascaramento

é a que predomina na maioria dos grupos pesquisados na região metropolitana de Belo

Horizonte. Fidalgo foi a única localidade, dentre as que estive, onde é possível perceber a

permanência de algumas poucas ações que particularizam cada mascarado, por mais que

haja razoável variação na forma de cada folião dançar uma mesma máscara. Assim mesmo,

é importante reforçar que os poucos elementos que poderiam particularizar cada uma das

máscaras só aparecem no momento da dança, inexistindo nas etapas anteriores da visita a

uma residência.

Como vimos no capítulo anterior, os mascarados chegam à porta das casas

dizendo versos como: Ah sinhá! Abre a porta para ver a representação dos três Reis Magos

do Oriente! A caravana de São Francisco de Assis... Oh, sinhá! Tá chovendo aqui fora!

Abre a porta que eu tô com fome. Assim como em Fidalgo, é por meio desses versos que

podemos perceber como os foliões concebem a vida desses mascarados como muito

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semelhante as suas em diversos aspectos. Para compreender melhor como se dá a relação

dos foliões com estes mascarados e, mais especificamente, do folião e a máscara, ou seja, o

mascaramento, precisaremos explorar melhor algumas noções utilizadas nestas Folias de

Reis, como a de mascarado, fardar e dançar as máscaras.

5.2 - Algumas noções de mascaramento nas Folias de Reis

5.2.1 Dançar as máscaras – A agência das máscaras sobre o corpo dos foliões

Ao comparar os vários momentos da Folia de Reis, em que as máscaras estão

presentes, fica evidente que elas se tornam muito mais expressivas enquanto dançam do

que em qualquer outro instante, seja quando estão adorando o presépio, em estado de

oração, ou quando estão apenas dialogando com o dono da casa. Percepção que parece

compartilhada pelos foliões, já que além do momento de rezar para os mortos, em que as

pessoas se mantêm concentradas e em silêncio, outro momento em que é possível perceber

uma atenção concentrada dos presentes é justamente quando os reis estão dançando.

Trata-se de uma dança que se estabelece de “forma conversacional” (Cf.

FRIGÉRIO, 1992 apud CIRIO, 2007), como num diálogo entre mascarados, músicos e

demais presentes. Isso acontece de maneira tal que nem sempre será o mascarado que vai

dançar conforme a música: muitas vezes, os instrumentos seguirão o ritmo ditado pela

dança executada pelo mascarado. Este procedimento, que também foi observado por

Strother (1998) nas cerimônias de máscaras da República Democrática do Congo, é

considerado como um princípio importante da etnomusicologia africana, por autores como

Stoller & Stoller (1992).

Em outros contextos rituais africanos também podemos notar como observa

Arnaldi (2004, p. 35), para o caso do Mali, que:

A relação que se estabelece entre a dança e as máscaras cria a identidade

da personagem perante a assistência. Alguns artistas consideram mesmo

que a dança de máscaras é mais determinante para o sucesso ou insucesso

de uma actuação do que a escultura em si.

Argumentações similares podem ser encontradas em autores com Ukaegbu (2007) e

Strother (1998). Ambos, ao relatarem o processo de confecção de uma máscara,

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respectivamente entre povos da Nigéria e da República Democrática do Congo, mostram

que a máscara só é confeccionada depois que a sua dança e a sua música foram pré-

estabelecidas. Nas Folias de Reis, a centralidade da relação entre dança e máscara aparece

em frases como: eu comecei a dançar o Bastião com idade de cinco anos ou eu dancei de

guarda-mor. Nestes exemplos, o próprio ato de usar a máscara se confunde com o de

dançá-la.

No contexto pesquisado, ao mesmo tempo em que a máscara é animada

durante a dança pelos movimentos corporais, estes são intensificados pela presença da

máscara e da farda que age como um acento tônico no gestual de cada folião mascarado,

ampliando sua movimentação. Além disso, a máscara age como uma espécie de facilitadora

da dança, uma vez que é notório observar que, nas Folias de Fidalgo e Matozinhos apenas

os mascarados dançam, ao contrário de outras Folias em que, na ausência de mascarados,

todos os integrantes costumam dançar em conjunto.

Um folião de Matozinhos, se gabando de sua dança, que é uma espécie de

sapateado, afirmou que seria preciso dez homens juntos para produzir o mesmo efeito

sonoro que ele conseguia com suas velozes batidas de pés. Ou seja, a máscara e o ato de

mascarar-se estão diretamente relacionados à dança nestes grupos. Aspecto fundamentado

no próprio mito de origem da Folia, já que segundo os foliões, os Reis Magos depois da

visita ao menino Jesus, saíram mascarados para não serem reconhecidos pelos soldados de

Herodes e dançaram e cantaram pelas casas, comemorando o nascimento do Messias, como

abordei anteriormente.

Nas Folias de Reis, a capacidade da máscara de despertar potencialidades

corporais pouco usuais, fica evidente, sobretudo, nas altas horas da madrugada, durante a

viração, quando já faz muitas horas que o grupo está andando pelas casas e os foliões estão

bastante cansados. Não foram poucas vezes em que presenciei a seguinte cena: enquanto

uma máscara está dançando num cômodo da casa, conduzindo o ritual, os outros dois

foliões estão num sofá de outro quarto, ou mesmo sentados na calçada, dormindo com a

máscara ao lado do corpo; ao final da performance da máscara que estava em cena, um dos

integrantes acorda aquele folião que dormia para que ele coloque imediatamente a máscara

no rosto e vá exercer suas funções, cantando e dançando. O que impressiona é a intensidade

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e a força com que ele realiza a sua performance, tornando difícil de acreditar que era a

mesma pessoa que há minutos atrás dormia no sofá da sala. Questionado sobre isso, um

folião me relatou que,

Eu posso estar morto de cansado, que eu boto a máscara na cara e

me vem um negócio, que não consigo ficar parado. E é aquela

coisa… o dono da casa está ali… eu não posso fazer mal feito, eu

tenho um compromisso com ele e com Santos Reis.

Nessa fala, depreende-se que há uma ética a ser respeitada que o impede de

fazer mal feito. No entanto, chama mais a atenção, a inversão que ele acaba por fazer ao

afirmar que estava quase morto e o fato de colocar a máscara na cara dá um negócio.

Reparem que, ao invés da máscara ser animada pelo folião, é este que passa a ser animado

pela máscara.

Não se trata, no entanto, de mistificar a ação da máscara, prefiro compreender

o exemplo acima a partir da perspectiva proposta por Gell (1998), como sendo um típico

caso de atribuição de agência a um objeto. Neste caso, isso acontece, provavelmente,

porque os foliões acostumam-se a correlacionar o ato de se mascarar com o de dançar desde

muito cedo, fazendo com que a máscara torne-se um auxílio para a recuperação da memória

de um conhecimento corporal que começou a ser apreendido desde criança e encontra-se

registrado no corpo dos foliões, como argumentei no primeiro capítulo. Este conhecimento,

por sua vez, ao se manifestar através da dança, é potencializado pela máscara. Desse modo,

a máscara funcionaria como uma espécie de dispositivo facilitador da recuperação desse

conhecimento corporal.

Por outro lado, há que se considerar que, o uso da máscara não garante que os

estados de intensidade performativa que sugeri acima sejam sempre gerados, e na verdade

nem sempre serão. Há diversos casos de performances precárias, em que a máscara se torna

pouco expressiva, sendo o mal desempenho de alguns foliões alvo de reclamação por parte

de seus parceiros. Os saberes corporais não se manifestam da mesma forma em todos,

talvez por serem partilhados pelos foliões de formas desiguais. Tanto que apesar deles

fazerem questão de frisar que cada um dos integrantes da Folia está apto a exercer qualquer

uma das funções, desde tocar instrumentos a usar a farda, isso nem sempre se verifica.

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Haverá uma tendência a deixar que o folião que demonstrar mais habilidades

em determinada função a exerça com mais frequência. Não impedindo que, na ausência de

um melhor qualificado, outro possa assumir. É possível perceber, neste caso, que há uma

preocupação dos foliões com a qualidade da performance a ser executada com as máscaras.

Guardadas as devidas proporções, seria como Viveiros de Castro (1996, p. 133) afirma para

os povos indígenas brasileiros:

Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob uma

aparência animal que ativar os poderes de um corpo outro. As roupas

animais que os xamãs utilizam para se deslocar pelo cosmos não são

fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de

mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras de Carnaval. O que se

pretende ao vestir um escafandro é poder funcionar como um peixe,

respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha.

O mascaramento nas Folias de Reis, portanto, está mais próximo dessa noção

de “ativar poderes” dos corpos dos foliões, assim como também parece ocorrer em outras

manifestações populares brasileiras com presença de mascarados. Acselrad (2002), ao

estudar o Cavalo Marinho, afirma que a figura não está na máscara e sim no figureiro, ou

seja, aquele que utiliza a máscara. Já de acordo com Barroso (2007, p. 446), que estuda as

máscaras dos Reisados:

O brincante, com a ajuda do mestre, desencanta a figura ou o entremeio

que nele vive oculto ou encanta-se na figura que incorpora. Liberta-se das

aparências cotidianas, para viver o mundo maravilhoso do Reisado, este

duplo do mundo vulgar, e encantar as platéias, transportando-as à sua

mesma dimensão.

Desse modo, a máscara, em muitas manifestações tradicionais, como as Folias

de Reis, ao invés de ser vista apenas como algo para esconder e disfarçar a identidade dos

foliões, torna-se um canal de manifestações de energias potenciais e habilidades registradas

através da memória corporal dos mesmos. Ou seja, a máscara não tem um fim em si

mesma, ela é um agente, ou diria: uma espécie de lente criativa capaz de fazer com que o

folião veja e seja visto por diferentes perspectivas.

Resta agora precisar um pouco melhor como os foliões concebem os

mecanismos pelos quais a máscara atua nesse processo dentro das Folias de Reis estudadas.

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5.2.2 - O mascarado - Uma entidade cambiante

A essa altura da Tese, não sei se o leitor terá reparado, mas em nenhum

momento a palavra personagem foi utilizada no texto. Isso porque, nos contextos dessas

Folias de Reis, esse conceito não existe. O mais próximo disso que os foliões costumam

utilizar é a expressão mascarado. Mesmo assim, essa expressão está longe de corresponder

a uma composição de personagem nos moldes em estamos acostumados no teatro de

máscara.

Como vimos, não é possível definir nem uma lógica clara de ação, nem a

presença de traços de caráter muito significativos nos mascarados da Folia de Reis.

Acrescentaria, ainda, que a ação de cada mascarado, dançando ou conversando com o dono

da casa, não pressupõe uma relação de imitação, ou semelhança dos referenciais aos quais

estas figuras se reportam, ou seja, um rei menino, um rei negro ou um rei velho. A exceção

do Benezinho que é dançado normalmente por uma criança. Por outro lado, as dimensões e

o formato da máscara e da farda, por si só, alteram a percepção que temos do corpo dos

foliões, assim como a emissão da voz, produzindo efeitos, muitas vezes, involuntários, que

os afastam de sua constituição cotidiana. A máscara do Guarda-mor, por exemplo, ao

possuir as pálpebras do olho praticamente cerradas, exige do folião que ele mantenha a

cabeça inclinada para trás, para que possa ver. Desse modo, parece não ser à-toa que esta

máscara tenha um grande nariz empinado, que entra em perfeita harmonia com este tipo de

postura corporal.

Em relação à emissão vocal, como as máscaras cobrem todo o rosto do folião e

possuem apenas um pequeno orifício como boca, nem sempre é muito fácil ouvir o que elas

dizem ou cantam. No entanto, a ausência de uma perfeita emissão da voz, que poderia ser

vista, a princípio, apenas como uma limitação, na verdade, exerce um importante papel de

alterar o registro vocal do folião, produzindo uma emissão sonora distinta da voz original.

Esses exemplos evidenciam como o mascaramento nas Folias de Reis implicaria mais numa

construção de uma noção de presença física, a qual a máscara auxilia muito a alcançar, do

que um processo de identificação psicológica pela aparência, frequentemente presente

teatro ocidental. Trata-se de um tipo de caracterização que, neste sentido, estaria mais

próxima do teatro oriental (Cf. ZARRILLI, 1990, p. 131).

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Zeami, por exemplo, acreditava que era muito difícil para um ator do Nô, atuar

sem máscara, pois ele teria dificuldade em controlar suas expressões faciais (RUBIERA &

HIGASHITANI, 1999, p. 109). Este problema desaparece com o uso da máscara, não só

porque ela elimina o rosto do performer, mas também como lembra José Gil (1997, p. 172),

“a representação da face, na iconografia oriental, africana ou ameríndia não tem a

identidade de um rosto”, fazendo referência ao fato de que o rosto enquanto processo de

subjetivação é uma invenção do ocidente. De fato, uma característica presente em diversos

gêneros de máscaras africanas é a simetria, que remete a uma neutralidade da face. Já no

caso do Nô, por exemplo, temos as máscaras consideradas simbólicas, porque são neutras

de expressão, ou aquelas em que aparece uma única expressão facial registrada de forma

exagerada (Cf. RUBIERA& HIGASHITANI, 1999). Assim como, podemos encontrar uma

série de traços estilizados nas máscaras dos Reis Magos.

Desse modo, faz sentido que as máscaras sejam um elemento fundamental em

boa parte das formas de representação não ocidentais, que não trabalham com noções de

identificação psicológica. Tanto quanto, parece plausível a observação de Erhard Stiefel58

,

de que as máscaras no oriente e em diversas outras culturas sempre estiveram muito mais

próximas da dança, ao contrário do que acontece com as máscaras no teatro ocidental.

Assim como não existe a palavra personagem no universo destas Folias de Reis,

noções como a de caráter59

, muito utilizadas para pensar o mascaramento no teatro, também

não se aplicam àquelas máscaras, sobretudo quando observamos que os foliões se referem

ao ato de performar uma máscara como o de dançá-la. Poderíamos, então, tentar definir um

mascarado através de sua dança, como são definidos alguns personagens em formas

teatrais orientais e africanas, que como vimos, guardam estreita relação com o dançar. Mas

talvez, esta também não seja a melhor opção.

Mesmo no caso do Guarda-mor e o do Bastião, que apresentam alguns

elementos recorrentes na forma de serem dançados, é muito comum ver elementos que, a

princípio, pareciam característicos da dança de um deles aparecerem na do outro. Sem

contar que, quando não estão dançando, sua forma de andar, de falar e de se comportar, em

58

Erhard Stiefel trabalha como mascareiro no Théâtre du Soleil e fez essa observação em uma conferência no

ECUM (Encontro Mundial de Artes Cênicas) em Belo Horizonte, 1998. 59

Sobre o tema do caráter abordado no universo da máscara teatral: (Cf. MACHADO, 2009).

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nada se distancia daquela utilizada pelos foliões. Ou seja, poderíamos dizer que nas Folias

de Reis, a noção de mascarado não nos remete para uma entidade fixa e constante, mas

sim, a uma entidade cambiante, que tem sua expressão mais peculiar no fato de que,

simultaneamente, alguém pode interagir com o folião mascarado como um Rei Mago e, em

seguida, tratá-lo como um simples folião.

Para compreender a noção de mascarado de forma mais ampla, foi fundamental

ter contato com as reflexões de Guénoun (2004) sobre o fato de que a “Poética” de

Aristóteles não continha uma teoria sobre o ator porque, segundo ele, naquela época não

fazia sentido a distinção entre ator e personagem como a conhecemos hoje. Segundo esse

autor, na Grécia antiga:

Os agentes são tanto aqueles que representam quanto aqueles que são

representados, segundo o valor moderno destes termos: qualquer

dissociação atributiva é incerta do ponto de vista da unidade

intrínseca, homogênea e primordial da ação (GUÉNOUN, 2004,

p.24)60

.

Foi só a partir daí, que me dei conta que, a noção de mascarado na Folia de

Reis, apesar de se aproximar da ideia de personagem, não poderia ser usada como sinônimo

deste, sendo mais adequado pensá-lo como agente. Para um folião, a graça da máscara

parece estar no fato dela permitir que ele se coloque no lugar do Rei Mago fazendo com

que a ação descrita pelo mito, que inspira as Folias de Reis, se presentifique.

Inicialmente, para mim, enquanto ator, era muito difícil vislumbrar sequer a

possibilidade de uma operação como esta realizada pelos foliões. Tentava compreendê-la,

mas sempre parecia que faltava uma das peças do quebra-cabeça, que me foi fornecida

justamente pelos estudos de Guénoun (2004). Mas logo depois, fui descobrir, através da

literatura consultada, que este tipo de relação não é tão incomum como pode parecer.

60

Essa argumentação de Guénoun (2004) parece dialogar com o argumento de Wiles (2007) sobre o fato de

que, até por volta do século V a.C, os Gregos tinham somente a palavra prosopon, tanto para máscara como

para face. O que, para esse autor, é perfeitamente aceitável para um mundo em que “o que eu sou” coincidia

com “o que eu pareço ser”. Segundo ele, só mais tarde os gregos vão cunhar a palavra prosopeion “to

separate false faces from real ones, but no such distinction was made in the age of Sophocles, when donning a

face was no negative act of concealment but a positive act of becoming (Wiles, 2007, p.1).” Ou seja, se

originalmente no mundo grego a máscara tinha um sentido de transformação, aos poucos ela começa a ser

vista mais como um objeto de disfarce, como é conhecida ainda hoje no mundo ocidental.

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No Brasil, Barroso (2007, p. 447) nos informa que essa fronteira entre

personagem e ator é tão tênue que o brincante passa a ser reconhecido na rua pelo nome do

personagem que interpreta na brincadeira.

No Boi Pintadinho, Reisado de Caretas da cidade cearense de

Camocim, brinca de Catirina, um velho catador de siri, pai de doze

filhos, por nome de batismo João Batista do Nascimento. Sua

identificação com o personagem, uma velha grávida, sorridente e

grotesca, é tanta, para o povo da cidade, que ninguém mais o chama

pelo nome de batismo.

Esse autor, contudo, ressalta que na maioria dos casos, o público e os brincantes discernem

entre o mundo da brincadeira e o mundo cotidiano. “O ator brincante não é um ilusionista,

ele não faz de conta que a brincadeira é parte da vida ordinária, ele não vive seus

personagens como gente que faz parte da vida vulgar (BARROSO, 2007, p. 448)”.

Strother (1998, p. 27), nos relata, a partir do contexto africano, um exemplo

inverso do anterior, ao dizer que entre os povos do Pende Central, há certas máscaras que

acabam adquirindo o nome do performer que se destaca em sua execução. Já Ukaegbu

(2007),61

além de notar a co-existência frequente de performer e de personagem nas

máscaras do teatro Igbo na Nigéria, afirma que esta é uma característica muito frequente

em muitas tradições de performance africana. Para ele, o mascaramento Igbo seria anti-

ilusório. Para os performers e os demais participantes não há confusão entre o papel real

dos performers enquanto atores com os personagens que representam.

Tanto Barroso (2007) como Ukaegubu (2007) falam em anti-ilusionismo.

Sendo que este último aproxima as qualidades das performances mascaradas estudas por

ele, aos princípios do teatro épico de Brecht. Fato que Barroso (2007, p. 448) tende a

problematizar, pois segundo ele:

O brincante não é um ator épico, no sentido brechtiniano. Ele não

narra, ele não mostra seu personagem, ela não se distancia nem

causa estranhamento. Ele não se faz mostrar em cena como ator.

Ele não se dirige ao público como ator. Ele, ao contrário, se funde

61

É importante notar que tanto Strother (1998), como Ukaegbu (2007) têm preocupações similares ao estudar

as formas espetaculares tradicionais africanas. A primeira quer deixar claro como as máscaras entre os povos

do Pende Central estão sempre sendo inventadas e recriadas no decorrer da história desse povo. O Segundo,

procura defender uma flexibilidade estética nas performances tradicionais mascaradas da Nigéria. Ou seja,

uma forma tradicional não implica em algo estanque.

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com seu personagem, dá espaço a ele no seu corpo. Ele vive uma

outra vida, a vida da figura nele desencantada. Ele vive, não

representa, não apresenta. Ele presentifica um outro mundo, uma

segunda vida, um duplo da realidade, uma realidade mais real,

porque mais profunda e essencial.

De fato, também na Folia de Reis pude observar que: primeiro, é um “não-

mascarado” que tenta interagir com o folião que está sob a máscara, sendo que este, por sua

vez, se vale da identidade de Rei Mago, conferida pela máscara, para reagir. Segundo, esta

ação não acontece em função de desconstruir momentaneamente o código ficcional para

dizer que se trata de uma encenação, até porque, na verdade, seria quase o contrário. O

cotidiano, que estando muito presente o tempo todo, é que precisaria ser quebrado. Outro

aspecto importante é que esta é uma iniciativa perfeitamente prevista na maneira como os

foliões se relacionam com a máscara dentro das Folias de Reis, não gerando qualquer

sensação de estranhamento ou de quebra na representação para os foliões. Ao contrário do

que acontecia comigo, que reagia com bastante estranhamento, toda vez que percebia tal

fenômeno.

É possível perceber uma série de pontos de contato entre a perspectiva que

apresento e aquela apresentada por Barroso (2007) para os Reisados de Caretas. Contudo,

no caso das Folias de Reis, há uma presença marcante do elemento da narração, quando os

mascarados narram as profecias sobre os Reis Magos, e não me parece haver uma fusão de

folião com Rei Mago. É curioso, até que o próprio Barroso (2007) fale em fusão, uma vez

que ele argumenta, como mostrei acima, que os brincantes têm consciência dessa separação

entre vida cotidiana e Reisado.

Antes de apresentar minha posição final sobre esta relação entre folião e

mascarado, gostaria de recorrer a dois outros exemplos que me parecem elucidadores. O

primeiro deles vem do contexto do teatro europeu. De acordo com Taviane (1989), muitos

pesquisadores modernos, acreditaram que o ator da commedia Dell‟arte, uma vez que

adotou um papel, o representaria por toda a vida. Essa ideia surgiu, segundo ele, da

imaginação anacrônica de que a máscara se identificaria com um único ator, refletindo-lhe

a personalidade, bem como, o ator se identificaria com a máscara que estivesse

representando. Esta interpretação seria uma das invenções da ideologia teatral moderna: a

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identificação psicológica do ator com o personagem. Segundo ele, a osmose entre

individualidade cênica e individualidade social só aconteceu com o bufão e não com o ator.

Para Taviane (1989), a relação entre a pessoa do ator e sua personagem teatral

não chega a ser uma relação de distância nem de transparência ou de identificação, mas, é

uma relação que permite ao ator fazer jorrar energia na medida em que sua pessoa e a

personagem são contíguas, como se fossem as faces interna e externa de um mesmo corpo.

Para ele, os atores da commedia dell‟arte transferiam, na ficção cênica, alguns elementos de

sua vida particular, não com finalidade de revelar sua pessoa ao público, mas, pelo

contrário, para modelá-la sobre a ficção teatral. Ou seja, para Taviane (1989), a

interpretação que distingue as duas faces do ator, ao se referir à „identificação‟ ou à

„distância‟ é simplista. O que há é uma contiguidade entre a face cênica e a face do ator.

A esta argumentação de Taviane (1989) que me parece bastante plausível para

pensar as Folias de Reis, acrescentaria a argumentação de Drewal (1992, apud WILES,

2007) ao avaliar o mesmo problema em relação à dança dos Egungun entre os Yorubá, na

África. Segundo ela, os espectadores também falam com a pessoa dentro da máscara,

comentando seu desempenho. Outras vezes, eles operam como se fosse realmente um espírito.

Essa autora conclui que:

Os espectadores olham através dos vários multiplos níveis de realidade e

se movem a vontade entre eles. Não houve furo na ilusão; não houve

furo na realidade. Houve somente uma reorientação dos pressupostos de

trabalho. Isso só é possível porque o espetáculo reside conceitualmente

na junção de dois planos de existência entre esse mundo e o outro

mundo (DREWAL, 1992, p. 96 apud WILES, 2007, p. 187-8)62.

Notem que esta autora fala de junção de planos de existência, esse e outro mundo,

e não do personagem e do performer, como faz Barroso (2007). A esse respeito, a perspectiva

de Drewal sobre a percepção dos múltiplos níveis de realidade e a de Taviane sobre a

contiguidade se aproximam melhor da forma como esta relação se dá nas Folias de Reis, que

para mim, poderia ser traduzida como uma questão de variação de perspectiva de como se vê e

62

Original em inglês: “The spectator looked through multiple levels of reality and moved back and forth

between them at will. There was no puncture in illusion; there was no punctures in reality. There was only a

reorientation of working assumptions. This is possible because the „spectacle dwells conceptually at the

juncture o two planes of existence- the world and the other world” (DREWAL, 1992, p. 96 apud Wiles, 2007,

p. 187-8).

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é visto pela máscara a cada momento. Alternância que parece ser favorecida pela ausência de

distinção entre o agente da cena e o agente da representação, que ficará mais clara ao

abordarmos o conceito de fardar.

5.2.3 - Fardar – (In) vestir-se de uma perspectiva

O fardar é um ato que implica em usar a farda e a máscara. Logo de início

podemos notar que, para os foliões, o mascaramento deve se dar em todo o corpo. Este

talvez seja um dos mais relevantes conceitos presentes no universo semântico das Folias de

Reis de Fidalgo e Matozinhos, pois nos ajuda a compreender a própria ideia do mascarar-

se. Se prestarmos atenção no mito de origem destas máscaras, que apresentei no capítulo

anterior, não são os foliões que estão disfarçados e sim os próprios Reis Magos, já que os

foliões afirmam que os Reis receberam as máscaras para se disfarçarem e não serem

reconhecidos por Herodes.

Por outro lado, quando o folião vai iniciar uma visitação numa casa, é

imperativo que ele esteja com a máscara, pois é ela que, na perspectiva dos moradores,

identifica-o como rei. Aqui temos uma operação curiosa, o mesmo objeto que serve para

revelar aos olhos dos donos da casa, em tempo presente, que aqueles são os Reis Magos, já

que as máscaras teriam traços semelhantes ao dos reis; é o objeto que oculta, no tempo

mítico, a identidade dos mesmos para os foliões. Operação que será retomada no último

capítulo, quando retornarei à discussão sobre a sacralidade da máscara.

Ao chegar numa casa, os mascarados começam por dizer: estamos fazendo

aquela representação dos três Reis Magos do oriente, Gaspar, Baltazar e Melchior, ou

tamo fazendo uma imitação ou uma semelhança daqueles três reis. Eles passam a narrar os

feitos dos reis e todas as profecias que retratam a anunciação e o nascimento do menino

Jesus, segundo eles, de acordo com as escrituras. Nesta etapa, eles não falam em primeira

pessoa. Eles sempre vão dizer: no tempo daqueles Reis Magos, aqueles Reis Magos viram a

estrela. É como se fosse algo distante deles, que não está ali presente. Como eles fazem

questão de marcar, eles estão fazendo apenas uma representação, ou seja, não são os Reis

Magos. Contudo, além de estarem com a máscara no rosto, os foliões, uma vez que estão na

porta do dono da casa, estão se colocando no lugar dos Reis Magos, realizando a mesma

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ação de procurar o menino Jesus; ou seja, o mascarado/folião vive ao mesmo tempo em que

narra o mito.

À medida que a visitação na casa vai seguindo, parece que eles vão sendo cada

vez mais investidos pela perspectiva das figuras que dizem representar. Por exemplo,

depois das narrações das profecias, eles passam a conversar com os donos da casa dizendo

que, enquanto Reis Magos, antes de chegar até ali, eles já viveram muitas coisas juntos nas

suas andanças pelo mundo. E então começam a contar histórias que supostamente

aconteceram com os três Reis Magos, mas que se baseiam em situações reais vividas pelos

foliões no seu dia- a - dia, que são atribuídas aos reis.

Numa destas ocasiões, eles disseram que estavam molhados, porque tiveram de

atravessar o rio a nado para chegar até ali. O que era parcialmente verdade, pois o ônibus

que os transportava para aquela localidade, que ficava na zona rural, havia atolado e todos

vieram molhando, inclusive tendo que atravessar o rio a pé. Histórias pessoais de cada

folião, somadas às histórias vividas em conjunto na Folia, convertem-se numa suposta

história de vida dos reis, pensada como espelho da vida dos foliões. Assim os Reis Magos

também se casaram, tiveram filhos, namoraram, se embebedaram, jogaram sinuca e

paqueraram garotas. Neste momento eles tendem a falar em primeira pessoa, mas passam a

tratar uns aos outros pelos apelidos que os mascarados recebem nas Folias, e não pelos

nomes oficiais dos Reis, concluindo assim o processo de reinvenção da biografia dos Reis

Magos.

Muitas brincadeiras direcionadas para os Reis Magos, na verdade, pretendem

zombar do folião que se encontra sob a máscara, que, por sua vez, ao se sentir atingido,

reage como mascarado, pois se encontra investido na perspectiva dos Reis. Todos sabem

quem está fardado e se utilizam dessa informação pare estabelecerem o jogo que sustenta a

performance ritual naquele momento. O fato da personalidade do folião ficar tão evidente

ao usar as máscaras, parece estranho para quem trabalha com máscaras no teatro, pois

parece distanciá-lo de seu personagem. No entanto, pelo contrário, a operação adotada

pelos foliões, os leva cada vez mais a assumirem o ponto de vista das figuras representadas.

Uma vez que o folião encontra-se mascarado, sua própria história pessoal passa a ser

atribuída ao rei que ele diz representar, como veremos no episódio a seguir.

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Numa noite de encerramento da Folia de Matozinhos, Leandro, filho do mestre

Bejo, relata um momento difícil que viveu com sua família e como seu pai o tinha ajudado

bastante. No entanto, como seu pai, mestre Bejo, estava fardado de Veio, ou seja, um dos

Reis Magos, ele afirmava: esse Veio aqui gente! Me ajudou demais, a gente já viveu muita

coisa juntos, ou seja, o pai efetivamente havia se transformado em Veio, uma vez que sua

história passou a ser atribuída à figura representada. Naquele momento, o folião estava

completamente investido pela perspectiva da máscara, tendo sua própria história pessoal

recontada a partir daí, ou seja, o pai de Leandro não era mestre Bejo, mas sim o Veio. Por

sua vez, o filho passou a ser visto e tratado pelo pai como senhor, já que estava no papel de

dono da casa. Situação esta que, no cotidiano, seria impensável. Desse modo, acredito que

o mascaramento para os foliões implica num tornar-se outro a partir de uma mudança de

perspectiva promovida pela máscara. Neste caso, mais do que “um ser instalado dentro de

outro”, como argumentou Jean Duvignaud (1983, p. 182), ao refletir sobre o mascaramento

e o êxtase, nas Folias de Reis temos um ser na perspectiva de outro.

Talvez, por isso, Seu Jovil de Fidalgo afirme que os foliões utilizam as

máscaras porque não tem graça nenhuma aparecer diante do dono da casa com a cara

limpa; ou como Seu Ancelmo, o palhaço Saré, de Cachoeiro do Itapemirim, que diz que a

máscara é o incentivo do poeta, porque se todos forem falar de cara limpa, não fala. Não

tem graça. Então por isso se cobre. Se diz que uma mesa forrada é sinal de elogio.

Observações como estas vão aparecer em contextos mascarados de outras tradições

populares brasileiras, como no relato de mestre Biu Alexandre, do Cavalo Marinho Estrela

de Ouro, citado por Oliveira E (2006, p.577)

Porque é o seguinte: ali é a apresentação do passado. A gente não

pode mostrar a cara da gente, porque nós não somos aquele povo.

Então, a gente tem a máscara para imitar. Não é que seja, é só

imitação(…) porque pra gente mostrar assim de cara lisa… As

vezes, a gente com a máscara, todo mundo sabe que é a gente, mas

a gente, com a máscara, já está apresentando outra coisa.

Esta fala de mestre Biu Alexandre confirma minha argumentação, anunciada no capítulo

anterior, de que o disfarce da identidade do folião por si só, não é a motivação central do

mascaramento nestas manifestações, já que, como nas Folias de Reis, ele diz que todos

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sabem quem está ali63

. Em última instância, entre estes grupos, a noção de fardar da Folia

de Reis e de botar figura do Cavalo Marinho parecem evidenciar que, para os brincantes e

foliões, o ato de se colocar no lugar de outrem implica, quase que necessariamente, no ato

de se mascarar, já que todas as figuras desses folguedos são mascaradas e eles,

frequentemente, dizem que não tem graça aparecer sem a máscara64

.

Nas Folias de Reis, as situações em que as máscaras aparecem são sempre

as mesmas, não há um desenvolvimento de novos conflitos ou enredos. Não há a criação de

um eixo espaço-temporal ficcional em que as máscaras atuam. Foliões, mascarados e

demais pessoas presentes compartilham do mesmo universo. Eles estão, de fato, na sala da

casa da Dona Maria que, por sua vez, é vista pelos mascarados como manjedoura, por ter o

presépio. Mas assim como, todos estão vendo que a sala da casa da Dona Maria não é a

manjedoura, eles também sabem que os foliões mascarados não são reis. Contudo, isso não

impede que as máscaras, ao permitirem aos foliões presentificarem as ações dos Reis

Magos, permitam também que os demais presentes possam ter contato direto com as

divindades e que estas possam produzir efeitos, como curas e milagres diversos, que se

manifestam no mundo concreto dos foliões. A prova disso é que, a cada ano, eles se

colocam novamente em companhia dos Santos Reis para continuarem a receber suas

graças.

Depois de ter devidamente caracterizado os Santos Reis, finalizarei este

capítulo tecendo algumas relações destes com outros mascarados encontrados nas Folias.

Abordagem que se justifica pelo fato de que, estas outras máscaras também foram

utilizadas, tanto no espetáculo Sereno da Madrugada, como nas oficinas com o atores.

5.3 - Palhaços e bastiões: a arbitrariedade das máscaras

Por mais que eu quisesse fazer uma caracterização de cada uma das máscaras

das Folias de Reis, é inegável que elas se apresentaram hibridadas e com poucos elementos

63 Barcelos Neto (2006, p. 217) relata também que em algumas importantes cerimônias dos índios Wauja, o

objetivo ritual da máscara não é esconder a identidade de quem a veste. 64

As reflexões de Ana Caldas Lewinsohn (2009) sobre o Cavalo Marinho foi especialmente importantes para

estas conclusões. No Cavalo Marinho, entre aproximadamente, 70 figuras, há uma única que aparece sem

máscara, que é o Cabloco de Yorubá.

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que me permitissem classificá-las linearmente, como “tipos” (Cf. PAVIS, 2001). Essa

dificuldade de apreensão dessas máscaras em modelos mais generalistas, como o que

implica a noção de “tipo”, se mostrou ainda mais evidente quando tentei comparar as

máscaras dos Santos Reis com outras máscaras encontradas nos demais grupos de Folias de

Reis brasileiros, como os palhaços e os bastiões.

Como alternativa de análise, resolvi adotar a perspectiva proposta por Strother

(1998), a qual fiz referência no primeiro capítulo. Esta autora ao estudar as máscaras dos

povos do Pende Central, propõe classificá-las por “gêneros” (genre) no sentido que este

termo possui no campo da literatura e dos estudos da linguagem, em substituição à ideia de

“tipos”. Segundo Strother (1998), a noção de “tipo” vem da biologia e opera pelo princípio

da supressão das diferenças em função da construção de uma norma para classificar

indivíduos de uma espécie, além de ser uma noção de natureza sincrônica. Já o gênero,

como pensado na literatura, por ser uma noção diacrônica, pressupõe possibilidades de

mudanças e a existência de variantes dentro de uma mesma classificação.

A substituição proposta por esta autora foi determinante na forma como passei a

perceber as máscaras da Folia de Reis. Ao pensá-las como gêneros, pude me colocar mais

aberto para compreender sua diversidade e suas possibilidades criativas, bem como

reconhecer que estas máscaras evoluem com o tempo, o que me permitiu escapar da fixidez

sugerida pela noção de “tipo”. Isso possibilitou uma melhor compreensão da existência de

máscaras tão diversas dentre os grupos de Folias de Reis, como por exemplo, os palhaços.

Dentre os mascarados encontrados nas Folias de Reis, o palhaço é o mais

rebelde e irreverente deles. É sem dúvida a máscara mais comum entre as Folias. Além dos

grupos dos quatro estados do sudeste com os quais tive contato, na literatura consultada, os

palhaços são citados em pelo menos mais três estados brasileiros, Goiás (Cf. BRANDÃO,

1977), Bahia (Cf. MONTEIRO, 2002) e Matogrosso (Cf. GRANDO, 2002). Vi

pouquíssimas vezes uma máscara de palhaço igual à outra. Elas podem ser confeccionadas

a partir dos mais diversos materiais: papelão, couro de animais, espuma, lata e etc, como

nestas fotografias retiradas no encontro de Folia de Reis de Muqui (ES), no qual estive

presente nos anos de 2003 e 2008:

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Como a maneira desses mascarados serem caracterizados pode variar bastante,

logo percebi que não seria muito eficiente diferenciar os mascarados encontrados nas

diversas Folias de Reis apenas pela sua aparência. Por isso, passei a estudar a mitologia

relacionada a cada mascarado, já que de acordo com Lévi-Strauss (1979, p.16) “a cada tipo

de máscaras se ligam mitos que têm por fim explicar a sua origem lendária ou sobrenatural

e fundamentar o seu papel no ritual, na economia e na sociedade”. O que me ajudou a

compreender melhor a sua função dentro das Folias de Reis, bem como os aspectos que

motivam o seu comportamento e, até mesmo, definem algumas das suas características

físicas.

Para os foliões, os palhaços representam os soldados do rei Herodes que, ao

chegarem à manjedoura, se arrependeram de ter seguido os Reis Magos para matar o

Menino Jesus e se converteram ao Cristianismo. Para se redimir dos seus pecados, eles se

disfarçaram com as máscaras ofertadas pela Virgem Maria e saíram distraindo as pessoas

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com palhaçadas. Assim, eles permitiram que os Santos Reis e a Sagrada Família pudessem

fugir e que eles próprios pudessem escapar da ira de Herodes, por não terem cumprido a

missão de matar o primogênito. Foi dessa forma que surgiu esse mascarado, que escapando

de uma única caracterização, se metamorfoseia das mais diferentes maneiras nos diversos

grupos de Folias com os quais tive contato.

O fato dos palhaços terem sido soldados de Herodes acaba por lhes atribuir uma

filiação com o diabo e isso vai se refletir diretamente em sua ação ritual65

. No caso dos

palhaços que observei na cidade de Muqui (ES), por exemplo, quando a Folia está

chegando para cantar no terreiro de alguma casa ou em algum encontro de Folia de Reis,

eles se misturam aos demais foliões emitindo uivos ou sons animalescos, que contrastam

com o som harmonioso do canto ou das rezas. Enquanto os demais foliões entram na casa

para rezar, normalmente os palhaços são proibidos de entrar. Fora algumas exceções, na

maior parte das vezes, eles permanecem do lado de fora emitindo uivos e gritos esparsos,

normalmente brincando com as crianças. Ao terminar a reza, todos saem da casa para ver a

parte principal da performance dos palhaços, comumente denominada de chula.

É possível perceber a influência de uma série de matrizes corporais em sua

performance. Monteiro (2005) destaca a influência de elementos do lundu, do batuque, do

samba, do funk e do break, seja nas estruturas rítmicas ou coreográficas. Para esta autora,

“cada palhaço, pelo fato de ter a autonomia de compor sua própria seqüência, mistura,

combina, adapta, propõe e cria variações para os seus próprios passos” (MONTEIRO,

2005, p. 125). Neste trecho, Monteiro (2005) observou, também para o caso dos palhaços,

aquilo que venho chamando a atenção nos Reis Magos, ou seja, o quanto cada folião

imprime elementos muito pessoais em sua maneira de dançar cada máscara. Este aspecto,

somado à grande variedade de máscaras existente, é o que me deixa convencido de que,

para estudar de forma comparativa e esboçar uma classificação das máscaras nas Folias de

Reis, não há como procurar um sentido do mascaramento apenas associando a forma

plástica, sem levar em conta os mitos de origem e a ação concreta, ou seja, sua agência

dentro do ritual.

65

Abordei mais detalhadamente a relação do diabo com o palhaço em Paulino (2008 b).

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Apesar de diferentes entre si, as máscaras dos palhaços, por exemplo, possuem

uma série de características comuns que remetem a certa animalidade, como os dentes

pontiagudos e apontados para fora da boca, abundância de pêlos e a presença de chifres.

Elementos que, a princípio, seriam suficientes para diferenciá-las das máscaras dos Santos

Reis de Fidalgo e Matozinhos, que tendem a ser mais humanizadas. No entanto, esse

critério não se aplica isoladamente, pois encontrei um grupo de Folia de Reis da cidade de

Jequitibá, também na região metropolitana de Belo Horizonte, em que as máscaras

utilizadas pelos Reis Magos eram muito semelhantes a uma máscara de palhaço em termos

plásticos66

.

Nestes casos, só seria possível distingui-las pela sua ação ritual. A máscara dos

palhaços, por exemplo, serve para presentificar o mal e ao mesmo tempo mantê-lo sobre

controle e, por isso, eles pulam, riem, fazem tamanha algazarra e se aquietam quando as

Folias estão cantando. Já a máscara dos Reis Magos, ao presentificar a santidade no

ambiente doméstico dos foliões, permite que se vislumbre o quanto há de humanidade nos

deuses, que podem comer, beber, brincar e até fazer piadas. Enquanto os palhaços têm a rua

como seu espaço privilegiado de performance, os Reis Magos tendem a se manter no

interior das residências.

Foi seguindo essa linha de raciocínio, que identifiquei em algumas cidades do

sul de Minas, como Guaxupé e São Sebastião do Paraíso, a ocorrência do que me parece ser

um terceiro tipo de mascarado das Folias de Reis: os bastiões. Eles são mais comumente

definidos pelos foliões como os guardiões da bandeira e nada tem a ver com o mascarado

de mesmo nome presente em Fidalgo.

66

Certos autores relatam que os palhaços podem ser confundidos com os próprios Reis Magos em algumas

Folias, como Bitter (2008), Cassiano (1998), Reily (2002) e Porto (1982).

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Bastião de Folia de Reis de Guaxupé (MG).

As máscaras que pude observar em Guaxupé eram praticamente do tamanho do

rosto humano, com capacetes e roupas parecidos com os dos Santos Reis, mas ao mesmo

tempo, elas possuíam dentes pontudos e feições animalescas como a dos palhaços.

Enquanto para alguns foliões dessa cidade, estes guardiões da bandeira seriam os próprios

Reis Magos, para outros, eles se aproximariam mais dos palhaços. Mas como entender, por

exemplo, que eles representam os Reis Magos, se não podem entrar nas casas? Estes

elementos paradoxais me fizeram crer que eu estava diante de uma espécie de híbrido ainda

mais ambíguo do que os palhaços.

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Se na bibliografia sobre as Folias, os Reis Magos são pouquíssimos citados,

estes são menos ainda. A maior parte dos estudos os considera como se fossem palhaços.

Encontrei apenas dois únicos autores que fazem referências aos mesmos, procurando

diferenciá-los dos palhaços. O primeiro foi Brandão, que num texto de 1979, cita a

presença desses mascarados numa Folia de Poços de Caldas, também no sul de Minas

Gerais, de acordo com ele:

Em Caldas os ferozes palhaços são substituídos por ingênuos

bastiões. (...) Apenas se nega ao ingênuo bastião, o que ele pede

para si próprio ou para os foliões. Em Folias com um verdadeiro

palhaço, nega-se e se explica que não há qualquer interesse em

fazer trocas com um emissário do mal (BRANDÃO, 1979, p. 48).

O outro autor foi Chaves (2009, p. 6) que, numa nota de pé de página de sua

Tese, observa como “aos mascarados se atribuem significados distintos de acordo com as

regiões. No sul de Minas e em Goiás, por exemplo, o bastião é uma espécie de mediador, já

que através de suas falas, em geral cômicas, se pedem e se agradecem as esmolas

oferecidas à Folia pelos moradores.” O hibridismo presente nestes bastiões torna esta

máscara um bom exemplo de que, “tal como os mitos, as máscaras não podem ser

interpretadas em si e por si, como objetos isolados (...). As máscaras, com os mitos que

fundamentam a sua origem e os ritos em que figuram, só são compreensíveis através das

relações que as ligam umas às outras”, como sugere Lévi-Strauss (1979, p. 15 e 80).

Se compararmos os mitos de origem das máscaras dos reis e dos palhaços

veremos que, na verdade, eles constituem duas soluções diferentes para um mesmo

problema. Segundo os foliões, Maria estava muito agradecida pelos presentes que os Reis

Magos trouxeram e queria de algum modo retribuir-lhes. A forma que ela encontrou foi

justamente garantir que eles fugissem em segurança com o auxílio das máscaras. Mas

enquanto uma parte das Folias resolveu mascarar os próprios Reis, a outra optou por

mascarar os soldados, transformando-os em palhaços, num jogo de inversão próprio das

manifestações da cultura popular, que faz uma espécie de chacota com a autoridade

exercida por Herodes. Observem também, que as próprias máscaras são pensadas como

uma graça, no sentido de ser um presente de origem divina.

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Desse modo, se levarmos em conta que, mesmo os mitos de origem das

máscaras dos Santos Reis e dos palhaços possuem elementos muito parecidos, como o fato

de que, em ambos os casos, foi Maria quem pediu José para que confeccionasse as

máscaras, não é difícil de se conceber a existência de uma figura tão híbrida como os

bastiões. Tais elementos, ao serem transmitidos de geração para geração de foliões, acabam

se confundindo, num processo de mistura imprevisível e arbitrário, que provavelmente

gerou todas estas máscaras.

***

Uma vez que nesta segunda jornada, procedi à identificação da graça que os

foliões encontram nas máscaras da Folia de Reis, darei início à próxima jornada, que tem

como objetivo verificar qual a graça que os atores poderiam encontrar nestas máscaras na

cena teatral. Assim, faço minha argumentação migrar da imersão em que se encontrava no

universo das Folias para retornar ao teatro, não mais numa atitude de estranhamento, como

apresentei na primeira jornada, mas sim, em busca de uma confluência.

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TERCEIRA JORNADA – A CONFLUÊNCIA

A graça das máscaras da Folia de Reis para um ator

Não Morre! Pintura de Marta Soares (Foto: Kárita)

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CAPÍTULO 6- Atores “não foliões” no jogo das máscaras da Folia de Reis

Eu tirei a máscara, mas a sensação dela ainda estava no meu corpo.

(Aluno de Artes Cênicas da UNICAMP)

6.1 – Primeiras aproximações

6.1.1 - Estratégias de abordagem

Levando em consideração que alguém que comece a acompanhar uma Folia de

Reis, mesmo que seja enquanto um pesquisador, acaba por ser generosamente absorvido

pelo grupo como um folião. Considero que os atores “não foliões” seriam aqueles que não

tiveram contato anterior com as Folias de Reis. Este foi o público alvo das oficinas e

disciplinas de graduação que ministrei com as máscaras da Folia de Reis na última etapa

desta pesquisa67

.

O objetivo dessa etapa foi verificar que tipo de agência as máscaras da Folia de

Reis poderiam exercer nesse ator “não folião”, que diferente dos atores do espetáculo

Sereno da Madrugada, não tiveram experiência de campo. Para isso, procurei trabalhar

com atores de diversos perfis para dialogar com distintas qualidades de percepção em

relação às máscaras. Havia, entre eles, desde diferenças sócio-culturais bem marcantes,

como também diferenças entre os graus de familiaridade com o trabalho de máscara e com

a cultura popular, como pode ser observado no quadro logo a seguir. Diferenças que,

durante as oficinas, se manifestavam não só no plano das idéias, mas na maneira de cada

ator performar as máscaras.

Ao verificar a agência das máscaras sobre esses atores, pretendo identificar o

potencial das máscaras da Folia de Reis para o trabalho de atuação, seja em termos

técnicos, como criativos. Apesar da experiência do espetáculo Sereno da Madrugada ter

apontado algumas direções possíveis para abordar estas máscaras no teatro, havia ainda

algumas lacunas que só puderam ser abordadas nas oficinas: como elas se comportariam

descoladas do contexto de significação em que foram originalmente criadas? Elas teriam

alguma graça para os atores? Como fazer os atores dialogarem com o conhecimento

tradicional contido nesta tradição de máscaras?

67

A uma única exceção que foi a oficina de Guaxupé (MG), em que alguns atores eram também foliões.

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Na busca de respostas para estas questões, outra estratégia adotada foi a de

permitir a presença de músicos e artistas plásticos nas turmas, já que mesmo nas disciplinas

ministradas na graduação de Artes Cênicas da UNICAMP, fora propositalmente permitido

que alunos de outras áreas das artes se matriculassem. A ideia era que estes alunos

pudessem trazer contribuições a partir de dois outros pontos de vistas fundamentais no

trabalho com as máscaras tradicionais brasileiras, ou seja, a plasticidade e a musicalidade.

A propósito, a pintura que abre esse capítulo é de autoria de uma aluna do curso de Artes

Plásticas da Universidade Federal de Uberlândia, a partir de suas impressões enquanto

participante da oficina ministrada nesta universidade.

No desenvolvimento desse capítulo vou recorrer a alguns depoimentos dos

participantes das oficinas, que foram colhidos através de gravações das conversas que

tínhamos no decorrer das atividades e de um questionário que repassava, por email, ao final

do processo de trabalho68

. Os depoimentos aqui citados, se não correspondem às opiniões

de todos os alunos de um determinado grupo de trabalho, expressam, pelo menos, a opinião

de boa parte deles ou geraram debates que levantaram questões esclarecedoras sobre o

trabalho desenvolvido. Estes depoimentos, somados a algumas das minhas notas sobre o

desempenho dos alunos, constituem a base sobre a qual se estrutura esse capítulo. Mais do

que apresentar um roteiro de exercício ou atividades desenvolvidas nas oficinas, espero

problematizar questões que surgiram a partir das experimentações práticas que possam

suscitar reflexões sobre o uso desse gênero de máscaras no trabalho do ator.

Por último, preciso ressaltar que, durante as oficinas, acabei utilizando

máscaras de Cazumba do Bumba-Meu-Boi do Maranhão e do Cucurucucu das Cavalhadas

de Pirenópolis, em Goiás, juntamente com as máscaras das Folias de Reis. Foram máscaras

que adquiri realizando trabalho de campo nestas manifestações e que me pareceram

interessantes para serem utilizadas nas oficinas, já que, apesar de pertencerem a contextos

distintos, operam por princípios muito similares aos das Folias de Reis. Recorri a elas para

ajudar a esclarecer ou ampliar as possibilidades de diálogo dos atores com as máscaras

tradicionais da cultura popular brasileira.

68

O questionário se encontra no anexo 1.

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QUADRO DE OFICINAS E DISCIPLINAS COM MÁSCARA POPULARES

Atividade Data Cidade Formação Experiência

com máscara

Vivência

cultura

popular

Carga

Horári

a

Oficina Jan.

2006

Guaxupé

(MG)

Atores de grupos

amadores de

Guaxupé, Guaranésia

e Sebastião do

Paraíso.

Nenhuma Intensa 25 h/a

Seminário

prático

Mai.

2006

Campinas

(SP)

Mestrandos e

doutorandos

UNICAMP.

Pouca Variada 3 h/a

Disciplina

Danças

Brasileiras

1º sem.

2007

Campinas

(SP)

Alunos graduação

em Artes Cênicas

UNICAMP.

Pouca Pouca 60 h/a

Oficina Jan.

2008

Belo

Horizonte

(MG)

Atores e alunos do

Teatro Universitário

e da graduação em

Teatro da UFMG e

do curso técnico da

Fund. Clovis

Salgado.

Razoável, pois

alguns

participavam

de grupos de

pesquisa de

máscara.

Bastante 25 h/a

Oficina Out.

2008

Uberlândia

(MG)

Alunos do curso de

graduação em

Teatro, Artes

Plásticas e Música da

UFU.

Razoável, pois

alguns

atuaram em

espetáculos de

máscara.

Bastante 20 h/a

Disciplina

Máscaras

Tradicionais

Brasileiras

Segund

o

semestr

e de

2008

Campinas

(SP)

Alunos de grad.

Artes Cênicas,

Música e Artes

visuais da

UNICAMP.

Básica Variada 30 h/a

Oficina Dez.

2008

Fruta de

Leite (MG)

Atores do grupo

Pirraça em Praça

Nenhuma Bastante 35 h/a

Oficina Dez.

2008

Rio Pardo

(MG)

Atores do grupo

Próximo do Real

Nenhuma Bastante 35 h/a

Duas

Oficina

Abr.

e

Out.

2009

Lisboa (PT) Alunos da Escola de

Formação de Atores

Evoé.

Razoável Nenhuma 12 h/a

e

12 h/a

Oficina Set.

2009

Lisboa (PT) Atores do grupo de

teatro Evoé

Avançada variada 20 h/a

Oficina Jan.

2010

Campinas

(SP)

Alunos graduação

em Artes Cênicas

UNICAMP.

Razoável Razoável 25 h/a

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6.1.2 - A feiúra das máscaras

Algumas das máscaras usadas nas oficinas foram adquiridas direto dos

mascareiros, durante o trabalho de campo, outras foram aquelas confeccionadas por

Fernando Linares para o espetáculo Sereno da Madrugada, inspiradas nas máscaras

observadas nas Folias pesquisadas. No início de cada processo de trabalho, ao serem

colocados diante das máscaras, os atores se deparavam com formas moldadas em materiais

e dimensões muito diferentes das máscaras com as quais boa parte deles estava acostumada.

Eram formas um pouco desconfortáveis e que nem sempre tinham um aspecto encantador

na “parte de dentro”, por serem feitas de forma artesanal e rústica. Na verdade, imaginava

que esse aspecto poderia ter sido um obstáculo muito maior do que realmente foi. Poucos

alunos relataram incomodados com a rusticidade da maioria das máscaras. Mantendo-se

atentos muito mais no que chamamos da “parte de fora” das mesmas.

Sobre essa “parte de fora”, o que mais se dizia, não sem razão, era que as

máscaras traziam muita informação e eram talvez um pouco poluídas esteticamente.

Característica que pode ser facilmente observada nas máscaras dos palhaços apresentadas

no quinto capítulo, por exemplo. Esse tipo de observação, no entanto, era feita pelos alunos

que tinham mais familiaridade com a máscara teatral, ou seja, partia de um juízo estético

prévio de como deveria ser uma máscara. Juízo que, provavelmente, se formou

influenciado por estudiosos como Fo (1999), segundo o qual a máscara no teatro comporta-

se como um “instrumento de síntese”. O que, de fato, as máscaras das Folias de Reis, como

as dos palhaços, estão longe de alcançar. São máscaras que não devem ser pensadas

independentemente das suas respectivas fardas, e que operam pelo princípio do exagero, da

livre combinação de traços, cores, formas e materiais, levando o corpo do folião a se

reestruturar como num mosaico, formado aleatoriamente, a partir de uma série de

referências distintas.

Estas mesmas máscaras, no entanto, despertavam de forma diferente a atenção

dos atores oriundos de grupo de teatro de cidades do interior que não tinham experiência

com máscaras teatrais. Para estes atores, a primeira impressão era de que aquelas máscaras

eram muito feias. O que não era um comentário pejorativo, já que, para eles, se elas não

fossem feias, não teriam graça. Ao incentivá-los a discorrer mais sobre essa dimensão da

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feiúra das máscaras, eles acabavam remetendo justamente ao fato de que elas eram

estruturadas aparentemente sem lógica, pois eram tortas, disformes e com acabamento não

padronizado.

Este destaque dado para uma certa imperfeição das máscaras, aparece também

no contexto do Bumba-meu-boi do Maranhão. Segundo Seu Abel, mascareiro de Cazumba,

que é uma máscara típica desta manifestação: A careta do cazumba a gente faz é no olho

mesmo. E a boca tem que ficar meio errada, se ficar muito certinho, não é cazumba.

(MANHÃES, 2002, p. 3). É importante notar que a substituição que seu Abel faz da

palavra máscara por careta, aparece na Folia de Reis e, frequentemente, em outras

manifestações tradicionais da cultura popular brasileira e parece estar de acordo com essa

ideia de que as máscaras seriam feias. Nas manifestações populares da Península Ibérica, a

máscara também é denominada de careta. Em função disso, Pereira (1973), já na década de

70, mostrava que “o assustar” é uma das principais ações dos caretos portugueses, assim

como também acontece em algumas manifestações populares brasileiras. Nas Folias de

Reis, abundam os relatos de crianças e mesmo adultos que se assustam com as máscaras

nas altas horas da noite.

A julgar pela reação de alguns alunos nas oficinas, parece mesmo que os

brincantes e foliões têm razão quanto ao fato de que as máscaras deveriam assustar, pois

um relato que apareceu com certa frequência entre os alunos oriundos dos grandes centros

urbanos era a de que estas máscaras provocavam medo, apenas de olhar pra elas. Mas que

fique claro que, entre os alunos das cidades do interior havia uma relação de rir da feiúra

das máscaras e não de ter medo delas ainda parada sobre a mesa. Já entre os alunos dos

grandes centros urbanos, que supostamente pertencem a um universo muito menos

encantando e habitado por aspectos mágicos do que aqueles oriundos das zonas rurais, por

vezes, relatavam essa relação de medo. Não que eu esteja querendo opor as reações de

medo e riso, já que elas são inerentes às dimensões grotescas a que estas máscaras

remetem, estou apenas chamando a atenção de como o imaginário inerente ao contexto de

origem dos atores, altera a forma como as máscaras são percebidas. Foram estes

comentários que me fizeram perceber o quanto certos preconceitos e expectativas que os

atores tinham com relação às máscaras influenciavam na maneira deles se relacionarem

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com elas. Por isso, passei a ficar mais atento ao tipo de imaginário que estas máscaras

despertavam nos alunos.

Outro bom exemplo disso ocorreu com os alunos das oficinas de Belo

Horizonte, que apesar de oriundos de um centro urbano, tinham mais familiaridade com o

universo da cultura popular e, portanto, estavam fortemente influenciados por suas diversas

vivências anteriores nesse campo. Neste caso, uma das impressões mais recorrentes desses

alunos foi de dizerem que as máscaras sugeriam alegria, que eram máscaras alegres:

É engraçado que aqui dentro na roda dançando da essa sensação

de que as máscaras querem sair pra fora, pra rua e brincar lá fora

da caixa preta né?

Neste caso, é difícil saber se, ao fazerem afirmações como esta, os atores estariam

identificando um elemento característico da natureza destas máscaras, ou estariam apenas

projetando sobre elas impressões anteriores sobre suas experiências neste universo da

cultura popular.

A resposta talvez esteja nos comentários realizados pelos atores portugueses

que não tinham qualquer familiaridade com o universo destas mascaras. Curiosamente,

muitos se referiram às máscaras como sendo de brinquedo, o que não é de todo absurdo, já

que no Brasil, boa parte das manifestações que possuem máscaras é chamada dessa forma.

Estes atores também admitiram que, como não tinham referência de nada parecido em seu

imaginário, eles acabaram encontrando nos brinquedos ou nos desenhos animados o

equivalente mais próximo para compreender o que estavam vendo. A percepção desses

atores portugueses talvez aponte para que essa dimensão alegre e festiva seja mesmo

intrínseca dessas máscaras e que elementos plásticos que compõem as máscaras não

estejam arranjados de forma tão aleatória como parece.

Ainda sobre os aspectos plásticos, não podemos deixar de considerar que, se

por um lado, o excesso de informação de algumas máscaras da Folia de Reis, como a dos

palhaços, contrasta com a limpeza nos traços das máscaras teatrais, por outro lado, elas

mantêm em comum a exigência para que sejam “feias”. Pois, como afirma Donato Sartori,

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herdeiro de uma das mais importantes tradições de máscaras teatrais ocidentais: “máscara

bela é máscara morta”69

.

6.1.3 - O ator que veste a máscara ou é a máscara que veste o ator?

Nas oficinas, após um primeiro momento de observação das máscaras, a

indicação era para que cada um escolhesse uma delas e individualmente entrasse em cena

para brincar como bem quisessem, sem que eu desse qualquer outra orientação, a não ser a

sugestão de que eles conseguissem dar vida a elas através dessa brincadeira. Eu apenas

explicava que, antes de mais nada, queria ver como cada um dos atores se relacionaria com

as máscaras apenas brincando. Foi interessante perceber que alguns atores, após este

primeiro contato com as máscaras, tendiam a fazer relatos do tipo:

- Foi muito louco, senti um negócio quando estava fazendo.

-Eu tava com muito medo dessas mascaras sabe? É engraçado que

quando eu peguei essas máscaras do palhaço, elas dão um estado

de euforia muito grande, é um negocio estranho, essas máscaras

dos palhaços causam uma euforia muito grande, uma sensação de

sei lá, uma vontade de explodir.

Nesses relatos, evidencia-se uma espécie de atribuição de agência à máscara:

como se o objeto fizesse algo com o ator e não o contrário. Questão que me parece inerente

ao universo da máscara, seja no contexto ritual ou no teatro. Quem em uma oficina de

máscara não ouviu a brincadeira de que não é o ator que escolhe a máscara, mas a máscara

que escolhe o ator? Wiles (2007), por exemplo, aponta como Charles Dullin, um dos

diretores modernistas franceses do início do século XX, se mostrava contraditório a esse

respeito. Enquanto, em 1922, ele afirmava que “a vida da máscara não decorre de si

mesma, mas da forma como os atores trabalham o corpo”, mais tarde ele vai dizer que “a

máscara tem sua vida própria e que nem sempre é a que o escultor queria dar. Há algo que,

muitas vezes, escapa ao mascareiro (WILES, 2007, p.93)”70

.

69

Afirmação proferida no seminário “A máscara teatral no mundo”, ministrado no Rio de Janeiro em 2008. 70

Original em inglês: “This life of the mask stems not from itself but from the way it makes actors work the

body”. “A mask has a life of its own, not always that wich the sculptor wanted to give it. There is often

something tha escape the maker” (Wiles, 2007, p.93).

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Saindo do teatro para o contexto ritual, podemos nos reportar novamente às

Folias de Reis. Não sei se o leitor reparou, mas não é a primeira vez que expressões como

senti um negócio, aparecem nesta Tese. No quinto capítulo e no documentário sobre

Fidalgo, que está no DVD, há registros de foliões usando expressões similares. O

ferramental teórico fornecido por Gell (1998), no entanto, nos permite analisar esta questão

sem fazer uma abordagem mistificadora das máscaras. Ao invés disso, ele nos incentiva a

não desprezar o fato de que mesmo sendo um objeto, elas podem exercer agência sobre

atores e foliões. Afinal, é inegável que a máscara afeta e produz efeitos no corpo do ator

que se refletem visivelmente na sua performance em cena. Resta-nos saber como

caracterizar esse processo.

Primeiramente, temos que levar em conta que a relação entre o ator e a máscara

é de natureza paradoxal e foi muito bem sintetizada numa questão colocada por um dos

atores das oficinas: É o ator que veste a máscara ou é a mascara que veste o ator?

Questionamento que me faz retornar a outro aspecto já discutido aqui, também no quinto

capítulo: a agentividade de uma máscara se revela, sobretudo, no fato dela possibilitar que

aquele que a utiliza sobre o rosto, seja (in) vestido de uma perspectiva. O que me faz

acreditar que as duas possibilidades contidas na pergunta acima ocorram simultaneamente

e, por isso, caracterize uma relação paradoxal do tipo (e/e) e não contraditória, do tipo

(ou/ou). Existe, entretanto, uma condição para que esta relação se configure de fato: se é

verdade que é o ator quem veste a máscara quando ele a coloca sobre o rosto, somente será

verdade que a máscara também veste o ator, se a forma dele se relacionar com o mundo ao

redor for precedida de uma percepção anterior de sua relação com a máscara, que em outras

palavras pode ser traduzida nesse dá um negócio.

Esse tipo de sensação surge de uma aguda tomada de conciência de si em

relação à concretude do corpo e aos seus fluxos de energia, detonada pelo contato com a

materialidade da máscara, ou seja, seus traços, cores, texturas e cheiros. O que vai alterar o

próprio exercício das funções vitais e perceptivas do corpo, como a respiração, a visão, o

senso de direção e de equilíbrio e, dependendo da máscara, até a audição. Processo que me

parece bem traduzido pelas palavras desse ator de uma das oficinas de Lisboa:

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Quando nós vemos a máscara e quando a pessoa se funde com ela

é quando as coisas são mais simples, e se calhar às vezes nós

tentamos fazer um esforço para entrar nela, mas às vezes basta só

fazer estar com ela, só o teu respirar, só a sua maneira de estar.

O caso da máscara dos palhaços é bastante exemplar para pensar esta questão,

pois, por vezes, os atores relatavam a forma como elas suscitavam certa animalidade ao

utilizá-las. O que não é de se estranhar, visto que elas são bastante animalescas. Poderíamos

acrescentar a isso, percepções de níveis mais sutis, como Barroso (2007), que observa o

quanto o fato das máscaras dos Reisados do nordeste serem feitas de couro e materiais

orgânicos ajuda ao brincante se aproximar dessa dimensão mais animal. Desse modo,

poderíamos dizer das máscaras o que alguns músicos costumam dizer sobre o couro dos

tambores, que ao serem aquecidos voltam a encantar como quando eram animais, assim

como o couro das máscaras quando colocado sobre o rosto dos atores ou foliões. Talvez o

pedaço de couro utilizado, seja num tambor ou numa máscara, guarde uma espécie de

graça do animal de onde foi retirado, no sentido que Bateson (1993) atribuiu a este termo.

A forma como as qualidades dos materiais utilizados para confeccionar uma

máscara podem alterar a forma de percebê-la me pareceu muito bem traduzida no

comentário de uma aluna da graduação em Artes Visuais da Unicamp. Ao final de uma das

aulas, ela se disse interessada em pesquisar que tipo de material poderia ser utilizado para

confeccionar máscaras como aquelas, mas que dialogassem mais com um contexto urbano,

como o de São Paulo, por exemplo. Como seriam máscaras para o asfalto? Ela se

perguntava. Seus questionamentos vinham do fato dela considerar que as máscaras, por

serem de materiais muito orgânicos como o couro, acabavam remetendo para um universo

não-urbano e gerando qualidades de energia que talvez não fossem as mais potentes para

dialogar com a urbe.

É comum que a palavra energia apareça associada aos relatos em que os atores

conferem agência às máscaras:

Cada uma dessas máscaras parece ter uma energia. Eu e muitas

pessoas treinávamos a entrada, o cumprimento e a despedida e

quando colocávamos a mascara, pelo menos, na maioria das

pessoas saia outra coisa completamente diferente, elas faziam algo

diferente.

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Só que é foda, porque você bota a máscara e você é contaminado,

não dá pra manter a mesma energia e pronto.

Cotidianamente não tomamos consciência dos fluxos de energia aos quais

estamos submetidos no dia-a-dia, até porque, nossa mente cria recursos para que tenhamos

uma percepção de que estes fluxos ocorram de maneira estável no cotidiano, justamente

para que não possamos percebê-los conscientemente. Segundo Bateson (1993), é uma

estratégia de sobrevivência do homem. A mente humana não poderia dar-se ao luxo de

deixar no plano da consciência elementos que podem ser processados no inconsciente. A

máscara, contudo, em função das diversas alterações fisiológicas e perceptivas provocadas

pelo seu uso, faz com esses fluxos de energia se alterem, ou mesmo, faz com que nossa

percepção sobre eles seja alterada e, por conseguinte, passem a ser notados mais facilmente,

gerando essa sensação de dar um negócio.

Esta expressão, que nada mais é do que fruto de uma tentativa dos atores de

expressarem uma experiência difícil de ser traduzida em palavras, poderia ser pensada

também, nos termos propostos por Burnier (2001, p. 20), como um sinal de que o ator teria

entrado em contato com o “real potencial de energia do seu corpo-em-vida”. Algo que,

segundo ele, para ser alcançado, demanda do ator uma integridade no seu fazer, permitindo

o livre fluxo de vida entre o corpo e sua pessoa, ao trabalhar com o corpo e mente dilatados.

Permitam-me retornar ao contexto da Folia de Reis para lembrar que, quando o folião se

refere ao fato de que vestir a farda dá um negócio, ele o faz em consequência de uma

tomada de consciência do seu papel enquanto folião. Já que ele vai afirmar ter tanto prazer

em dançar diante do dono da casa, que não conseguiria nunca fazer nada mal feito, mesmo

estando muito cansado.

O desafio para o ator é, não só perceber e se conscientizar desses fluxos de

energias, mas saber utilizá-los para produzir intensidades distintas de presença para a cena.

Na verdade, mais do que perceber temos que deixá-los nos afetar. O que não é algo que

aconteça gratuitamente. É preciso haver um aprendizado para lidar com esse universo

sensível da máscara. Isto se aplica mesmo para os contextos religiosos. Prandi (2005,

p.128), por exemplo, ao estudar os ritos de possessão afro-brasileiros, relata que as

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entidades cultuadas manifestam-se em transe no corpo de devotos devidamente preparados

para isso. Para esse autor, “os rituais de iniciação dos filhos e filhas-de-santo nada mais são

do que uma preparação para que o Orixá que há em cada um possa aflorar e se manifestar

no transe, quando se mostra a todos durante as celebrações” (PRANDI, 2005, p. 33).

No contexto teatral, ao ministrar as oficinas e as disciplinas com as máscaras

tradicionais brasileiras, percebi que este processo de aprender a lidar com o universo

sensível da máscara se divide em quatro etapas:

- Primeira: O ator diante da máscara – momento que exige uma educação do

olhar para ver, na máscara, possíveis pontes com as quais o ator poderá dialogar;

- Segunda: O ator por trás da máscara – momento de aceitar com humildade

e honestidade se colocar em segundo plano em relação à máscara e aprender a lidar com as

sensações que o contato físico com este objeto nos provoca. Aprendendo a educar os

sentidos para perceber que, aquilo que inicialmente pode parecer com uma limitação, como

ter a visão e a respiração alteradas, na verdade, se transforma em possibilidades a serem

utilizadas a seu favor. Nessa etapa o ator precisa superar a negação involuntária da máscara,

que se traduz em comentários como: está difícil porque não consigo ver! Essa máscara não

me deixa respirar. Ao fazer isso ele começará a aceitar não só a máscara, assim como ela se

apresenta, mas também o seu próprio corpo, que vai se tornando o corpo da máscara. Isso é

o que vai permitir que ele se deixe afetar de forma mais global, levando em conta as

impressões que teve na etapa de observação.

- Terceira: O ator que se funde com a máscara – uma vez atravessada a etapa

anterior, o ator deixa de se impor sobre a máscara e começa a se perceber nela de forma

mais global, não só através da máscara real que está sobre seu rosto, mas também através

da máscara imaginária que se constrói em sua imaginação a partir das impressões iniciais

que teve ao observá-la. A partir daí, o ator começa a perceber como se comporta seu corpo

e mente e começa a identificar quais os fluxos de energia esse contato produziu. O que faz

com que, aos poucos, a distinção máscara-ator desapareça e passemos a ver uma coisa só,

ou seja, não vemos mais a máscara, mas o efeito que ela provoca.

Este é um dos momentos mais delicados do processo, pois é difícil conseguir

simultaneamente perceber os fluxos de energia presentes no corpo e se manter conscientes

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deles enquanto age, ou seja, enquanto se relaciona com os demais elementos ao redor. Seria

similar a experiência da vertigem do trapezista descrita por Caillois (1988, p. 161):

Os saltos são efetuados num estado muito próximo da hipnose. A

condição necessária é assegurada por músculos flexíveis e fortes e

por um autodomínio imperturbável. Mas é óbvio que o acrobata

deve calcular o impulso, o tempo, a distância e a trajetória do

trapézio. Só que ele vive no terror de pensar em tudo isso no

momento decisivo. A atenção tem quase sempre consequências

fatais, porque entorpece em vez de ajudar, num momento em que a

menor das hesitações é funesta. A consciência é assassina, porque

perturba a infalibilidade hipnótica e compromete o funcionamento

de um mecanismo cuja extrema precisão não tolera nem dúvidas

nem arrependimentos. (…) o acrobata só tem êxito se estiver

suficientemente seguro de si para ousar entregar-se à vertigem em

vez de tentar resistir-lhe.

Essa imagem do trapezista é bastante esclarecedora, pois, de fato, também na

máscara, há um momento em que precisamos pular na imensidão do picadeiro. Mas para

isso, precisaremos dar conta de lidar com esse estado de vertigem que a máscara nos

proporciona, ao alterar a forma como lidamos com nossos sentidos, exigindo que, para isso,

o ator desenvolva uma espécie de consciência ampliada para se perceber e agir na máscara.

Algo que, assim como no caso do trapezista, só será alcançado por meio de uma

experiência prática de exercícios constantes.

- Quarta: O ator tornado máscara (mascarado) que se relaciona (brinca)

com a platéia. O mascarado surge quando a etapa de fusão se completa, é a partir daí que

ele passará a explorar situações que poderão levá-lo a construir cenas. Neste caso, como

observei no capítulo anterior, a fusão de que falo, ocorre entre corpo e máscara e não entre

personagem e ator.

Apesar de ter apresentado essas etapas de forma separada, elas não acontecem

necessariamente de forma linear, sendo que algumas delas se sobrepõem. Cada nova

máscara experimentada exige que o ator passe pelo mesmo processo. A diferença que com

o tempo, vamos passando por estas etapas de forma mais rápida. Mas para obter êxito nesse

processo é necessário que o ator aprenda a articular seu corpo em função da máscara, ou de

cada tipo de máscara que estiver utilizando a partir de um trabalho técnico.

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Cabe considerar, no entanto, que mesmo tendo me aprofundado no universo

das máscaras da Folia de Reis, a maneira como percebo o trabalho com a máscara teatral,

está inevitavelmente influenciada pela metodologia de trabalho “Lecoquiana”, já que esta

foi a base de formação dos profissionais com os quais fui iniciado no universo da máscara

teatral. Por outro lado, a influência do conhecimento tradicional dos foliões aparece

expressa no meu trabalho, por exemplo, quando no início desse capítulo relatei que uma das

primeiras atividades das oficinas e disciplinas que ministrei era propor que os alunos

brincassem com as máscaras. Acentuar essa dimensão da brincadeira foi o que me permitiu

reforçar a dimensão do “aprender fazendo”, que entre outras consequências, leva o ator a

ter que lidar com seus medos e limitações diante do público, aprendendo a utilizar o próprio

fracasso como elemento constituinte da sua performance, assim como me propôs Leandro:

você nunca vai estar pronto ou vai saber se sabe, enquanto não botar aquela máscara na

cara e ir pro meio da roda dar umas mancadas e a gente rir um pouco de você. Citação

que já havia utilizado no segundo capítulo, mas que considero importante o suficiente para

ser retomada mais uma vez.

Cabe lembrar também que, por mais que consiga identificar as peculiaridades

na forma dos foliões conceituarem e performarem suas máscaras, nem sempre é fácil deixar

que esse conhecimento tradicional impreguine a minha forma de pensar e atuar as máscaras

no teatro. Foi somente, aos poucos, no decorrer dos experimentos práticos, durante as

disciplinas e as oficinas, que o meu olhar foi mudando de foco, me permitindo alcançar

uma síntese mais equilibrada das influências anteriores da minha formação como ator e o

contato com o conhecimento tradicional dos foliões. Uma síntese que nem sempre era fácil

de ser processada como pretendo continuar demonstrando a seguir.

6.1.4 – As “técnicas do corpo” a serviço da máscara

Diante desse quadro, a minha primeira tarefa foi descobrir como repassar para

os atores os princípios e procedimentos de atuação dos foliões com as máscaras, que

poderiam auxiliá-los a dialogarem criativamente com elas. Não estava preocupado em

repassar para os atores os elementos gestuais ou coreográficos das Folias de Reis, ou seja,

as codificações adotadas pelos foliões. Mesmo quando estiveram presentes, estes códigos

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serviram apenas de apoio e não como guia principal do processo. Minha intenção era fazer

com que os atores os reinventassem, ou melhor, que os atores inventassem, cada um a sua

maneira, as possíveis formas de estar com estas máscaras. Até porque, neste sentido, estou

de acordo com Lecoq (2007, p. 108) que se demonstra bastante crítico ao aprendizado

precoce,

de gestos formais pertencentes a estilos ou a códigos tomados de

teatros muito elaborados, como os do oriente, por exemplo, ou os

da dança clássica. Estes gestos formais, muitas vezes nascidos de

uma prática insuficiente, gravam no corpo do ator sequências de

movimentos físicos que depois são muito difíceis de justificar,

especialmente para os jovens. A maioria das vezes só conservam a

forma estética de tais gestos71

.

Nesse sentido, como observei no final do tópico anterior, as oficinas tendiam a

começar sempre de forma despojada para possibilitar que os alunos explorassem ao

máximo suas primeiras impressões sobre as máscaras. Mas enquanto eu evitava dar muitas

explicações ou orientações de como proceder, não foram poucas vezes em que ouvi os

alunos professarem uma série de regras de como se deveria ou não utilizar uma máscara,

como no seguinte exemplo:

Pra mim a dificuldade foi mais com a máscara mesmo, porque ela é

muito grande e ai eu fazia algumas coisas que batia e ai quando

pegava em mim me incomodava muito, porque tem aquele negócio

(Faz um tom de voz grave, como uma advertência): não toque na

mascara! (Em seguida, pergunto se eu impus tal proibição) Não. É

coisa que já vem. Ai batia e eu perdia a concentração.

Vez por outra, essa preocupação em não tocar nas máscaras aparecia nas

oficinas. Eu mesmo, antes de trabalhar com as máscaras das Folias de Reis, nunca tinha me

questionado sobre a convenção teatral de que o toque na máscara quebraria o código

ficcional que vinha sendo construído com o espectador. Não há ilusão, contudo, que seja

71

Original em espanhol: “de gestos formales pertenecientes a estilos o a códigos tomados de teatros muy

elaborados, como los de Oriente por ejemplo, o los da la danza clásica. Estos gestos formales, a menudo

nacidos de una práctica insuficiente, graban en el cuerpo del actor secuencias de movimeientos físicos que

después son muy difíciles de justificar, especialmente para los actores jóvenes. La mayoría de las veces sólo

conservan de tales gestos la forma estética (Lecoq, 2007, p. 108)”.

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quebrada quando se tem uma máscara grande como a de um palhaço no rosto, quando

devidamente sustentada pelo performer. Durante o trabalho de campo, o curioso foi

perceber que alguns mascarados tinham ações características que implicavam exatamente

no folião ter que pegar nas máscaras. Como acontece com o Guarda-Mor, em que um dos

seus gestos mais interessantes ocorre justamente quando o folião brinca de alisar os fios de

sua longa barba branca.

Estes exemplos comprovam que não faz sentido aplicar nas Folias de Reis a

veemente advertência de Fo (1999, p. 47) de que “a máscara impõe uma condição especial:

não se deve tocá-la. Já vestida sobre o rosto, assim que é tocada, desaparece. (…) A mão

sobre a máscara é um ato deletério, insuportável”. Mas foi o frequente incômodo dos alunos

das oficinas, em relação a este aspecto, que me fez perceber como algumas dessas

convenções do trabalho de máscara são disseminadas de tal modo que, mesmo eu não

fazendo nenhum tipo de proibição sobre como a máscara deveria ser utilizada, os próprios

alunos se negavam a realizar certas ações.

Para flexibilizar esse comportamento, precisei tornar estes alunos conscientes

de que há diversas “técnicas do corpo” que podem ser utilizadas para o trabalho de

máscara. Entendendo “técnica do corpo” no sentido atribuído por Mauss (2003-c, p. 401),

de que “seriam as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma

tradicional, sabem servir-se de seu corpo.” Com este conceito, Mauss nos ajuda a

compreender que as diversas formas pela quais nos apropriamos de nosso corpo são

circunstanciadas por aspectos sócio-culturais e vão se alterando com o tempo. Como no

exemplo da natação, que segundo ele, na sua época, ainda era praticada com o nadador a

engolir e cuspir. Procedimento técnico que hoje nos parece bastante bizarro.

Em se tratando de técnicas que tendem a ser codificadas como as da máscara

teatral, precisamos estar atentos, como sugere Mauss (2003-c, p. 404), que:

Esses „hábitos‟ variam não simplesmente com os indivíduos e suas

imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as

conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a

obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê

apenas a alma e suas faculdades de repetição.

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Assim, a cada vez que um dos alunos fazia referência a uma das “técnicas do corpo” que

eles haviam aprendido como essenciais ao trabalho da máscara, eu chamava a atenção para

que pensassem o porquê destas técnicas terem sido concebidas da forma como lhes foram

repassadas. Ou seja, primeiro, precisei desconstruir algumas noções do trabalho de máscara

as quais os alunos estavam “habituados”, fazendo-os, por exemplo, passá-las por um

processo de historicização e consequente desnaturalização de alguns conceitos e

procedimentos. Procurava sempre ponderar sobre quais eram os valores que os criadores

teatrais do início do século XX estavam comprometidos que influenciaram na estruturação

técnica do trabalho com a máscara teatral. Alguns dos quais discuti no decorrer da Tese,

sobretudo a partir de Wiles (2007) e Aslan (1989) 72

.

A forma como as “técnicas do corpo” que os alunos haviam aprendido

influenciava o trabalho com as máscaras que estava propondo, ficou ainda mais evidente

quando fui ministrar as oficinas para os grupos de teatro do norte de Minas. Sendo que a

experiência com o grupo “Pirraça em praça” da cidade de Fruta de Leite, revelou-se

especialmente paradigmática neste sentido.

No ano de 2008, quando ministrei a oficina, este grupo completava seus dez

anos de atividade. Seus espetáculos são apresentados em ruas, praças ou centros

comunitários da região. Como a maioria dos grupos do interior de Minas Gerais, seus

integrantes acabam por ter uma grande rotatividade em sua participação e uma diversidade

de faixa etária bastante razoável. Os treze integrantes, que realizaram a oficina, tinham

idades que variavam entre dez e quarenta anos e eram, em sua maioria, trabalhadores rurais.

Apesar de não terem muitos conhecimentos técnicos, seja sobre máscaras ou mesmo da arte

teatral, havia uma vontade muito grande de fazer, somada a um total desprendimento e

disponibilidade para brincar com as máscaras.

No início dos trabalhos, estabelecemos que iríamos tentar descobrir juntos o

que poderíamos fazer com aquelas máscaras. Dessa forma, a primeira indicação que lhes

dei, após a realização de um aquecimento corporal, foi que cada um escolhesse uma

máscara e tentasse dar vida para ela, da forma que bem entendessem. Qual não foi minha

72

Uma boa referência em português para abordar estas questões é a dissertação de Vinicius Machado (2009)

sobre a máscara no teatro moderno.

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surpresa em constatar que logo nesta primeira tentativa muitos dos atores conseguiram

resultados bastante satisfatórios. Como para eles, aquelas máscaras serviam no máximo

para assustar as pessoas, não havia uma idealização do efeito que elas deveriam produzir

em seus corpos ou na platéia. Usar uma máscara era apenas uma questão de, literalmente,

realizar uma brincadeira.

Logo depois da metade do grupo ter feito suas tentativas solicitei que a outra

metade comentasse o que viu. Procurando identificar se alguma daquelas máscaras tinha, de

fato, vivido. Aos poucos os atores foram apontando aqueles instantes em que a máscara

tomou vida e o porquê do êxito ou não de cada tentativa. Em sua maioria, eles apontavam

aspectos pertinentes e ficava evidente que eles conseguiam distinguir até onde cada ator

tinha conseguido dar vida a aquela forma inanimada.

Nesse primeiro dia de trabalho, a cada nova bateria de tentativas os atores iam

conseguindo inferir os princípios fundamentais de atuação com a máscara, cabendo a mim a

tarefa de apenas pontuar. É curioso que apesar de não ter colocado qualquer restrição sobre

o uso de voz, nenhum dos atores recorreu à fala nessas primeiras aproximações. Outro

aspecto que me chamou a atenção foi que mesmo sem ter colocado música para os

primeiros exercícios ou ter feito qualquer explanação prévia sobre a natureza das máscaras,

os atores tenderam a performá-las a partir de ações dançadas. Fugindo, assim, de uma

tendência que seria esperada para este perfil de atores, que seria a de recorrer a gestos

óbvios e explicativos. Talvez isso tenha acontecido, porque estas máscaras predisponham

os atores a trabalharem num registro não-realista, sobretudo no caso dos palhaços.

A experiência com o grupo “Pirraça em Praça”, me chamou a atenção para uma

dimensão que eu já havia observado em outras oficinas, mas que nesta se mostrou bastante

evidente: aprende-se muito sobre a arte de se mascarar usando a própria máscara. Nas

outras oficinas e disciplinas ministradas eu também obtive resultados bastante satisfatórios,

a diferença que como eram alunos que já tinham experiência anterior com a máscara teatral,

nem sempre conseguia precisar o quanto o trabalho que eu estava propondo com as

máscaras da Folia de Reis estava produzindo efeitos. Foi a partir dessa experiência com o

grupo “Pirraça em Praça” que reestruturei as atividades das oficinas para permitir que os

alunos tivessem o máximo de contato possível com as máscaras, procurando sempre

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valorizar o “aprender fazendo”. Procurava fazê-los potencializar o uso das máscaras,

evitando sempre falar em termos de “isso pode” ou “isso não pode”.

Todo meu esforço era para que os alunos compreendessem quais os princípios

eram fundamentais para que as máscaras ganhassem vida, levando-os a perceber quando o

“corpo do ator estava a serviço a máscara”73

. A partir daí, levava-os a perceber nas

recorrências de alguns elementos, quais seriam as “técnicas do corpo” que seriam mais

eficientes no trabalho, ou seja, juntamente com os alunos, procurava mais ver, ouvir e sentir

o que as máscaras tinham a nos revelar e menos dizer o que as máscaras deveriam ou não

fazer.

6.2 - Re-elaboração técnica do conhecimento tradicional dos foliões

6.2.1 - O pau de palhaço (bastão) e a construção de uma “corporeidade”74

.

Elemento frequentemente encontrado em manifestações mascaradas, o pau de

palhaço está presente de diversas maneiras nas Folias de Reis. Em Matozinhos, os Reis

Magos o utilizam exatamente com esse mesmo nome. Tendo como principal função

auxiliá-los em sua movimentação, servindo também como instrumento musical, já que

possui umas pratinhas pregadas nas suas extremidades, como na foto abaixo.

73

Esta expressão é frequentemente utilizada nas oficinas de máscara pelo diretor e mascareiro Fernando

Linares (ver nota: 13). 74

De acordo com Burnier (2001, p. 55): “A corporeidade é a maneira como as energias potenciais se

corporificam, é a tranformação dessas energias em músculo, ou seja, em variações diversas de tensão. Essa

transformação de energias potenciais em músculo é o que origina a ação física. Por, corporeidade, entendo a

maneira como o corpo age e faz, como ele intervém no espaço e no tempo, o seu dinamoritimo. A

corporeidade (…) é a forma do corpo habitada pela pessoa”.

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Naqueles utilizados pelos próprios palhaços, não existem elementos sonoros.

Alguns são esculpidos e pintados com figuras diabólicas, serpentes e dragões. Outrora,

contam os palhaços, que este fora um instrumento muito utilizado em lutas corporais que

ocorriam entre os mascarados de diferentes grupos de Folia, que ao se encontrarem

disputavam a posse da bandeira. Hoje são muito úteis para ajudar os mascarados a se

defenderem de intervenções inconvenientes, como as de alguns bêbados de plantão. Este

instrumento também auxilia os mascarados a realizar acrobacias que enriquecem a sua

movimentação, pois permite que eles façam uma série de deslocamentos do eixo corporal,

se colocando em posições que seriam impossíveis sem o auxílio do pau de palhaço. Isso

pode ser observado também no link do DVD que acompanha a Tese, dedicado ao Festival

de Folia de Muqui.

No trabalho de apreensão do jogo destas máscaras para a montagem do

Espetáculo Sereno da Madrugada, o pau de palhaço acabou se constituindo numa espécie

de guia para o estudo da movimentação desses mascarados, pois havia toda uma gramática

de ações corporais que pareciam estruturadas a partir dele. Na pesquisa para o espetáculo,

estávamos atentos não só às ações em movimentos, mas também nos momentos de

imobilidade dos mascarados. Eles apresentavam duas qualidades básicas do que chamamos

de “paradas”. Uma “parada” em intensidade, em que o mascarado permanecia com o seu

corpo imóvel, mas totalmente em alerta, por alguns segundos, e imediatamente explodia

com saltos e movimentos muito intensos, que tinham como principal objetivo assustar a

platéia, principalmente porque eram ações muito repentinas e imprevisíveis.

Outro tipo do que identificamos como “paradas” eram aquelas realizadas em

estado de relaxamento, de repouso, mas uma espécie de repouso presente. Como os foliões

tinham que ficar muito tempo utilizando as máscaras, em alguns casos, era possível

perceber estratégias de descanso em que eles estavam com o corpo em repouso, mas

apoiado no pau de palhaço, de forma a não deixar que a máscara perdesse muito de sua

expressividade. Apesar de estar bastante ligado a uma série de simbologias, sobretudo no

caso dos palhaços das Folias de Reis, o principal interesse no pau de palhaço está na forma

como os foliões se relacionam corporalmente com ele, já que foi a partir daí que estruturei a

preparação corporal dos atores nas oficinas.

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Palhaços do Encontro de Folia de Reis de Muqui (ES)

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Palhaços do espetáculo Sereno da Madrugada. (Foto: Guto Muniz)

Para utilizar estes paus de palhaço com os atores passei a denominá-lo de

bastão. Substituição que ocorreu, organicamente, durante o processo de trabalho. E só

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depois me dei conta dela. Adquiri alguns bastões com aproximadamente 1.80 de altura e

com a espessura de um cabo de vassoura, mas que eram confeccionados numa madeira

flexível o suficiente, para permitir que os atores pudessem utilizá-lo como apoio sem ter

medo que ele pudesse se quebrar. Como as oficinas ocorriam em salas de superfícies lisas,

tive que afixar numa das pontas destes bastões uma espécie de ponteira de borracha para

que os alunos pudessem apoiá-los no chão sem que eles escorregassem.

O bastão foi trabalhado menos como um objeto com o qual os alunos tinham

que estabelecer uma relação de ação e reação, e mais como um equipamento que devia se

fundir ao corpo do ator. Seria como uma perna-de-pau que deve estar ligada ao corpo do

ator, alterando suas dimensões e possibilidades. O bastão, apesar de estar livre na mão dos

atores, deveria funcionar como um prolongamento das extremidades do corpo, ampliando

suas possibilidades e amplitudes de movimentos. A ideia básica era explorar possibilidades

de desequilíbrio corporal a partir do uso do bastão, que deveria servir sempre como um

apoio. Ou seja, procurei trabalhar com os atores os princípios que observei na performance

dos palhaços com este bastão, para que cada ator encontrasse a sua própria

movimentação75

.

A partir do apoio no bastão eram trabalhadas as seguintes estruturas de

movimento:

1) Manipulação livre para reconhecimento do objeto;

2) Equilíbrio precário: pesquisar diferentes formas de apoiar o

corpo sobre o bastão, preferencialmente sempre com uma das

pernas fora do chão. Com isso conseguia que os atores

pesquisassem movimentos que os retirassem de uma verticalidade,

difícil de ser quebrada. A através do desequilíbrio eles

experimentavam tonos corporais diversos, que depois seriam

fundamentais para a sustentação das máscaras. Os alunos também

deveriam perceber os ângulos formados pelas linhas do seu corpo

em relação ao bastão.

3) Orbital: o bastão deveria ser mantido na vertical como um

eixo fixo, em relação ao qual os atores se movimentariam, se

aproximando e distanciando, pesquisando planos e possibilidades

de deslocamento.

4) Ações sublimes e grotescas: os atores deveriam distinguir

quando estavam trabalhando com qualidades de movimentos

75

Ver o link Pau de palhaço no DVD que acompanha a Tese.

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abertos, com linhas e ângulos retos, que chamei de sublimes; e

quando estavam trabalhando com movimentos fechados, disformes

e com o corpo dependurado no bastão, que chamei de grotesco76

.

5) Paradas: trabalhar os dois tipos de paradas dos palhaços

identificadas acima, ou seja, em intensidade e de descanso na ação.

6) Saltos: pesquisar diversas formas de saltar usando o bastão.

7) Acrobacias diversas.

Estes níveis eram trabalhados primeiro individualmente, como num sequência, e depois

eram trabalhados de forma intercalada. Algumas vezes, eram sugeridas estruturas rítmicas

para que os atores acompanhassem.

O que interessava não era o uso do bastão em si, mas como ele podia contribuir

para que as máscaras tomassem vida, ou seja, através do bastão o ator deveria conseguir

alcançar diferentes qualidades de tônus corporal e uma movimentação orgânica. Se usado

de maneira eficiente, o bastão não deveria chamar a atenção do público ao ser utilizado por

um mascarado. Ao fazer esta observação numa das oficinas em que os alunos haviam

assistido ao Sereno da Madrugada, alguns deles fizeram referência ao fato de que não se

lembravam das máscaras utilizarem bastões nesse espetáculo. Seria similar a afirmação de

Lecoq (2007) de que o salto mortal dado por um pantaleão não pode ser percebido

enquanto tal, mas sim como o reflexo da sua fúria.

O bastão só cumpria seu objetivo quando era assimilado pelo corpo dos alunos,

do contrário, poderia resultar numa muleta, num acessório sem utilidade. Mas, na maioria

das vezes, os alunos obtinham êxito e os retornos foram bastante satisfatórios, como

aparece nos relatos:

Gostei muito do trabalho com o bastão. Não o vi tanto como

limitador, mas um ponto seguro. Às vezes, eu me perdia e tal e eu ia

assim… Então péra lá, o bastão, o desequilíbrio. Ai ali, eu já

voltava no lugar e começava a construir de novo. (…) é como um

ponto seguro, um ponto de início de construção.

Fica uma memória no nosso corpo que deixa muito mais fácil você

encontrar um eixo que não seja verticalizado após esse trabalho

com o bastão, fica muito mais fácil, porque fica muito mais coisa

do trabalho anterior.

76

Esse é um bom exemplo em que se pode notar a influência do trabalho de Lecoq em minhas proposições, já

que os conceitos de sublime e grotesco foram fartamente utilizados por esse criador (Cf. LECOQ, 2007).

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No início da exploração desses bastões, cheguei a pedir aos atores que

construíssem sequências de ações a partir dos diversos apoios e desequilíbrios explorados,

para que eles pudessem trabalhar elementos como precisão e limpeza de movimentos, tão

necessários para o trabalho com as máscaras. Verifiquei, no entanto, que havia uma certa

dificuldade em aplicar essas sequências quando estavam usando as máscaras, porque os

alunos não haviam tido tempo suficiente para gravar toda a movimentação, para brincar

com ela de forma segura.

Aos poucos, fui abandonando esta proposta e nas últimas oficinas, mais do que

fazer os atores decorarem as ações que haviam criado com os bastões, o importante era que

eles o utilizassem como estímulo para alcançar movimentações mais ousadas e menos

verticalizadas, mesmo que nem sempre os bastões fossem utilizados no momento de

performar as máscaras. O que aconteceu frequentemente. A exceção de quando se tratava

das máscaras dos palhaços, que por terem grandes dimensões e um registro mais

animalesco ou fantástico, acabavam sendo bastante favorecidas pela movimentação

proporcionada pelo bastão e, por isso, eram poucas vezes utilizadas sem ele.

Como estas máscaras dos palhaços são muito maiores que o rosto humano, o

trabalho realizado com o bastão foi fundamental para ajudar a construir uma

“corporeidade”, capaz de dar sustentação àquelas máscaras. Uma “corporeidade” que era

potencializada, seja em termos quantitativos por meio do tamanho que o corpo conseguia

alcançar, seja em termos qualitativos com a qualidade de tonos e, consequentemente,

energia para sustentar as máscaras.

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Oficina na cidade de Lisboa (PT) – 2009.

Oficina na cidade de Guaxupé (MG) – 2006.

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Concluo este tópico com um relato de uma aluna que traduz bem, os objetivos

de usar o bastão nas oficinas:

O bastão também enriqueceu porque obrigava-me a dar valor à

tridimensionalidade e também, ao haver um foco exterior. Tirava a

tensão que havia entre mim e a máscara ( a luta entre o que

funciona ou não com ela ) fazendo-me preocupar-me com algo

exterior, focando-me em aplicar as noções que tínhamos

trabalhado com ele nos exercícios anteriores, ainda sem máscara.

Neste relato, quando a atriz fala de tirar a tensão entre ela e a máscara, ela está

fazendo referência justamente à forma como o bastão a ajudou a sair da primeira etapa de

aproximação das máscaras que, como disse, é o de lidar com ela enquanto objeto e deixá-la

se fundir no corpo do ator.

6.2.2 - Os estímulos sonoros e a sustentação de um fluxo

Se o bastão proporcionava um treinamento físico de base fundamental para a

sustentação das máscaras, o trabalho com elementos sonoros, seja com sons ou com o uso

de música propriamente dita, foi fundamental para ajudar a dinamizar os estados corporais

alcançados com o trabalho com o bastão.

Um aspecto evidente, em todos os gêneros de máscaras observados durante o

trabalho de campo, é que elas aparecem sempre ligadas a algum elemento sonoro. Isso

acontece, não só nas Folias de Reis, mas em todas as manifestações populares com as quais

tive contato através do trabalho de campo. Nas cavalhadas em Pirenópolis (GO), os

mascarados chamados Cucurucucus utilizam guizos dependurados nos cavalos. O

Cazumba, mascarado do Bumba-Meu-Boi do Maranhão carrega nas mãos uma espécie

sineta que ele balança durante sua performance. Sem falar no acompanhamento musical

realizados pelos performers que não estão mascarados. No Cavalo Marinho, por exemplo,

cada figura é identificada por uma determinada toada musical. Já em diversas

manifestações mascaradas da Espanha, os performers utilizam instrumentos sonoros

extremamente pesados, como estes sinos que aparecem nas fotos abaixo. Na verdade, eles

não só produzem sons, mas devido ao seu peso, acabam por influenciar e, muitas vezes,

determinar a movimentação dos mascarados.

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Careto (La Vijanera de Silió) – Cantábria – Espanha

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Os Caretos de Podence da região transmontana de Portugal, realizam sua

performance a partir de sinos um pouco menores dependurados nos quadris. Estes são

agitados por movimentos de torção dessa mesma região do corpo, fazendo-os ir de encontro

às moças e senhoras que estiverem por perto, numa atitude de conotação claramente

libidinosa. Todos estes exemplos me fizeram pensar em maneiras de favorecer a relação das

máscaras com estímulos sonoros durante a realização das oficinas.

Caretos de Podence – Trás-os-montes – Portugal

De maneira geral, boa parte das vezes que um dos alunos entrava em cena havia

um acompanhamento, seja individual ou em grupo, de outros atores produzindo estímulos

sonoros. A interação se dava como nas manifestações tradicionais, ora o mascarado era

acompanhado pelos atores com estímulos sonoros, ora os atores propunham estímulos para

que o mascarado interagisse. Estes estímulos sonoros poderiam ser, desde sons diversos, até

pequenas estruturas rítmicas ou melódicas. Tudo produzido pelos atores a partir de sua

interação com o mascarado, sem que houvesse qualquer combinação prévia. Isso exigia dos

atores que faziam esse acompanhamento um sentido de escuta e uma atenção muito

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aguçada em relação ao mascarado e aos outros atores que, juntos, propunham os estímulos

sonoros.

Desenvolvi, no entanto, alguns exercícios especificamente relacionados a esta

dimensão sonora. Um deles surgiu a partir da foto de um ritual dos povos Pende, na África,

em que um performer da tribo tocava para outro performer mascarado, numa atitude de

cumplicidade tão forte que salta aos olhos quando observamos esta imagem.

Ritual de Máscaras dos povos Pende, África. Fonte: Strother, 1998, p. 29.

Passo, a seguir, a descrever o exercício que denominei de “tocar e dançar a

máscara”:

Um ator escolhe uma máscara e outro ator um instrumento musical

para tocar para esta máscara. A máscara é colocada no chão e a

dupla a observa. A seguir, o ator com o instrumento começa a

produzir estímulos sonoros que podem ou não configurar uma

melodia, ou mesmo várias, desde que esteja dialogando com traços

da máscara que está observando. O outro ator deve apenas

continuar a observar a máscara e tentar se relacionar com os

estímulos sonoros propostos pelo outro ator, internamente.

Algumas vezes, apago a luz para que os dois atores possam

verificar mentalmente qual imagem construíram da máscara. É o

que chamo de “máscara imaginada”. Em seguida, novamente de luz

acesa, eles devem compará-la com a “máscara concreta” que está à

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sua frente. Esta fase é importante, pois a performance que eles

executarão a seguir, me parece ser exatamente algo intermediário

entre a “máscara concreta” que nós, enquanto público, continuamos

vendo, somada às impressões que o ator teve sobre ela, ou seja,

aquela que se fixou no seu imaginário.

Quando dou um sinal, o ator coloca a máscara no rosto e o outro

continua o seu trabalho sonoro com o instrumento. A partir desse

momento, os dois atores devem estar em sintonia, sendo que a base

preparada pelo ator com o instrumento pode variar de acordo com

estímulo fornecido pela máscara em cena, ou melhor, pelo

mascarado que se encontra em cena.

A ideia que os dois estejam completamente hibridizados. Para isso,

normalmente, eu explicava todo o procedimento antes, para que

mesmo durante a observação da máscara eu não precisasse intervir

com orientações. Pretendia criar um fluxo contínuo. Por isso,

mesmo quando o ator estava em cena com a máscara, experimentei

ficar ausente com falas, deixando-o um tempo maior em cena para

ver como as coisas se transformavam.

Os comentários posteriores dos atores eram muito significativos, sobretudo

daqueles que estavam tocando os instrumentos. Eles diziam que era como se também

estivessem utilizando a máscara. Nesse exercício, a proposta era tocar para a máscara, ou

seja, se colocar a disposição dela, para que ela despertasse no corpo do outro ator. É

diferente de apenas fazer efeitos sonoros de sonoplastia, o som produzido pelo instrumento

deve ajudar o ator a alcançar esse fluxo de ações, evitando que ele se coloque pensando

demasiadamente no que realizará e se deixe conduzir por um desencadear de ações. Ouvir

os estímulos sonoros ajuda o ator a entrar em contato com a máscara e com o seu fluxo, de

maneira íntima e profunda, já que a musicalidade que foi proposta, também foi inspirada

nas impressões capitadas pelo outro ator sobre aquela máscara.

Para mim, a relação que se estabelecia entre o ator que se relacionava com a

máscara através do seu corpo, ou seja, dando-lhe estímulos corporais, e o ator que se

relacionava com a máscara através dos sons dos instrumentos, dando-lhe estímulos sonoros

era bastante peculiar. Ambos, a partir do momento em que estavam em cena, passavam a

estar em função da máscara. É curioso perceber como o ator que estava tocando os

instrumentos permanecia absorto no jogo do outro ator mascarado. Isso era perceptível em

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pequenos impulsos que reverberavam no rosto e no corpo dos atores quando estavam

tocando, como se fizessem espelhos dos atores com as máscaras.

Essa relação com a música foi notada da seguinte maneira pelos alunos:

Tudo bem que nas Folias de Reis tem a coisa da fé, que é muito

forte, mas eu não acho que é só a fé. Tem um artifício que eles

usam que aqui eu senti que é muito importante, que é a música. Eu

senti uma conexão muito grande com a música e as máscaras,

sabe? Que pode auxiliar muito no processo de êxito com as

máscaras.

Era cansativo, mas tinha hora que eu só via, só tava vendo o que

tava acontecendo. Assim eu sabia: to fazendo isso, isso e isso, mas

não era uma coisa: vou fazer isso. Estou fazendo isso e to vendo o

que to fazendo. Tem hora que eu tava fazendo e esquecia onde eu

tava, sei que eu tava ali, mais aí vinha a música. Tava indo, assim,

acontecendo, sem muito pensar.

Nesses exercícios, buscava justamente alcançar este tipo de estado em que o ator, ao

mesmo tempo em que estava profundamente mergulhado na máscara, era capaz de se

perceber agindo.

Esse intenso diálogo com os elementos sonoros e o fato das máscaras serem

pouco realistas favoreceram que elas estivessem mais predispostas a dançar, assim como

nas Folias de Reis. No entanto, sempre me mantinha atento a observação feita pelo ator

Enrico Bonavera, do Piccolo Teatro de Milano, de que através da dança é fácil fazer belos

movimentos com as máscaras, mas fazê-las viver é difícil. Numa conversa que tive com ele

sobre o assunto, durante uma oficina, ele argumentou que as máscaras do Nô vivem na

dança, mas dentro de uma codificação, que não se aproxima em nada do realismo, já as

máscaras da Commedia Dell‟ Art teriam um realismo estilizado que não implica em dança.

No meio dessas duas possibilidades estariam as máscaras do Topeng Balinês que, segundo

ele, dançam, mas logo estabelecem conexão com a realidade, pois realizam ações concretas.

E é justamente nesse sentido que orientava a ação dos atores ao usar as máscaras nas

oficinas.

Os atores eram incentivados a produzir o que poderia chamar de ações

dançadas, ou seja, apesar de serem ações que não se estruturavam a partir de uma lógica

realista, havia uma preocupação de que o ator estivesse sempre em busca de uma

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intencionalidade construída em relação, seja com o espaço, com o outro mascarado ou com

a platéia. O mascarado deveria estar atento para provocar um desencadeamento de suas

ações de modo que uma fosse se transformando na outra, até que ele conseguisse perceber a

partir de que lógica esse desencadear se constituía. Essa percepção se dava com o auxílio

do olhar de quem estava de fora, sobretudo através das reações da platéia e de quem estava

conduzindo a oficina.

6.2.3 - As rimas e o duelo de versos

Outra dimensão em que o trabalho técnico com as máscaras dialogava com os

elementos sonoros era no trabalho com as rimas, presentes tanto na performance dos reis

como nos palhaços e bastiões. Um aspecto bastante curioso da técnica utilizada pelos

foliões é que, muitas vezes, não se conseguia ouvir o que eles diziam. Com o tempo,

percebi que, em alguns casos, isso ocorria em função da máscara que não favorecia a

emissão da voz, em outros, era totalmente intencional, sobretudo em relação ao final dos

versos. Os palhaços frequentemente embolavam a dicção, falavam mais rápido que o

normal, ou simplesmente deixavam inacabadas certas frases, apenas insinuando seu

possível significado com um gesto corporal, que facilmente levava as demais pessoas

presentes às gargalhadas. Mesmo quando não era possível compreender todo o verso

cantado ou falado, isso não era considerado um problema para os foliões porque, muitas

vezes, as demais pessoas presentes tinham esses versos decorados, já que alguns são

repetidos todos os anos da mesma fora. A esse respeito Duvignald (1983, p. 76) argumenta,

ainda, que em muitos rituais, não se entende o que as máscaras falam, porque importa mais

como a energia construída pela sonoridade favorece o que ele chama de “comunicação com

o invisível”, e não a comunicação direta a qual estamos acostumados.

Já a forma como se configuram as rimas e os duelos de versos foi um dos

elementos da performance dos foliões com as máscaras da Folia de Reis, que só fui

compreender, de fato, quando pude experimentá-lo na prática, no espetáculo sereno da

madrugada. Durante o processo de montagem, lembro-me que logo após o nosso primeiro

mês de ensaios práticos, fomos levados por sugestão do diretor do espetáculo a fazer

improvisações com o público. Dentre os vários elementos que experimentávamos nesses

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ensaios, um dos que mais nos desafiava era realizar a disputa ou duelo de versos rimados,

jogo típico dos palhaços, chamado de chula.

Além da intensa presença física que precisávamos para sustentar aquelas

máscaras, era necessário dispor de uma presença de raciocínio muito intensa, não só para

agir, mas para dizer versos rimados. Apesar de sabermos que os versos não são todos

inventados de improviso, pois na verdade, os foliões possuem um conjunto de versos

decorados em que eles mudam apenas uma palavra ou outra em função das circunstâncias

em que estiverem se apresentando, era preciso ter rapidez de raciocínio para escolher as

palavras corretas para não quebrar a rima. Algo que demanda uma prática razoável. Além

disso, por mais que decorássemos versos enormes, assim como fazem também os foliões, o

diretor, cada vez mais, nos pedia para fazer versos de puro improviso, na presença do

público.

Esta estrutura de duelo de versos rimados e improvisados acabou se tornando

uma das cenas do espetáculo. E como eu tinha certa dificuldade para fazer boas rimas, o

ator Eberth Guimarães, que duelava comigo, por vezes, se valia disso para construir seus

versos, brincando com meus tropeços. Procedimento que apesar de agradar muito à platéia,

me deixava um pouco desconcertado, já que expunha ainda mais uma limitação minha

enquanto ator. Naqueles momentos, me sentia exatamente como um folião que estava

começando a utilizar uma máscara e só me restava a alternativa de, a cada dia, entrar mais

atento em cena, ou seja, tinha que “aprender fazendo”.

Foi a partir dessa experiência que resolvi propor o seguinte exercício nas

oficinas, que era realizado normalmente no início de cada dia de trabalho, o “jogar versos”:

Numa roda, ensinava os atores a cantar uma ou duas músicas

oriundas do norte de Minas, que são conhecidas como música de

jogar versos. Há um refrão básico e, nos seus intervalos, os atores

deveriam jogar versos, seguindo a melodia proposta.

Inicialmente, de maneira livre, e até usando outros versos que, por

ventura, eles tenham decorado. Posteriormente era imperativo que

começassem a jogar versos que dialogassem com o contexto real

em que estivessem inseridos. O que acabava naturalmente num

duelo, já que os atores começavam a fazer versos uns sobre os

outros, e que, por conseguinte, deveriam ser respondidos.

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Utilizava esse exercício para que os atores treinassem se colocar numa

situação de jogo, em que lhes era exigido trabalhar a oralidade, evitando uma

racionalização excessiva e, ao mesmo tempo, obrigava-os a estarem ali presentes e atentos

ao que estava acontecendo ao seu redor. Características que, independente das rimas serem

ou não utilizadas no jogo com as máscaras, eram fundamentais para o trabalho do ator,

sobretudo porque as oficinas frequentemente finalizavam com exercícios realizados nas

ruas. Alguns relatos dos alunos revelam como este trabalho era percebido:

Eu ficava tentando pensar no verso, o que eu vou falar. Ai você

falou pra eu ir. Eu não estava pensando no verso e eu tive que me

virar. E aí eu vi que sem pensar muito da pra você fazer, o verso

vai surgindo, ele vai aflorando.

Quanto mais a gente faz, mais vem, é engraçado isso, é que

estimula a criar né?

6.2.4 - Dançar conforme o figurino

Devido à própria definição de farda dos foliões, apresentada no capítulo

anterior, os trajes, no trabalho com estas máscaras, não devem ser encarados apenas como

mais um recurso, mas sim como um complemento essencial do próprio mascaramento. As

fardas desempenham um papel fundamental para a performance das máscaras da Folia de

Reis, bem como em outras manifestações populares. Principalmente porque, como a

performance dos foliões ocorre em roda, as máscaras têm que necessariamente atuar em

360 graus. Neste caso, as fardas que incluem também os adereços de cabeça das máscaras,

chamados de capacetes, ajudam muito a permitir que o folião mascarado enriqueça sua

movimentação.

As fardas e os capacetes são feitos, normalmente, de maneira bastante

rebuscada e ajudam a dar uma impressão de aumentar o corpo dos foliões, assim como de

valorizar a sua performance. Quando o Bastião de Fidalgo, por exemplo, sacode os ombros

dançando, mesmo quem estiver de costas verá um corpo bastante expressivo já que os

diversos babados de sua roupa se agitam, energicamente, com a sua forte movimentação

corporal.

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A farda de um palhaço, muitas vezes, determinará o seu tipo de

movimentação77

. Algo que ficou evidente quando ainda estava ensaiando o espetáculo

Sereno da Madrugada. Cada ator ficou encarregado de construir o seu próprio palhaço,

mas diante da não existência de padrões de movimentação muito precisos que defina essa

figura, optamos por classificá-los de acordo com o tipo de farda utilizada. Essa escolha se

mostrou bastante eficiente na seleção das ações que cada um utilizaria para seu palhaço.

Devido a estas características, a farda era um elemento que entrava na parte final das

oficinas, mas não era menos importante. Nos últimos dias, depois dos alunos estarem

familiarizados com trabalho com o bastão e com as máscaras, trazia algumas fardas que

mandei confeccionar para as oficinas e pedia para que continuassem a pesquisa de ações

para as máscaras, a partir das possibilidades e limitações de movimentação que cada farda

imprimia.

Como as oficinas terminavam, normalmente com uma aula aberta realizada na

rua, as fardas contribuíam muito para a construção do jogo com o público. A seguir,

exemplos de alguns dos principais tipos de fardas dos palhaços, registrados no Encontro de

Folia de Muqui:

77

Sobre características das fardas dos palhaços, ver: Monteiro (2005), Chaves (2003), Bitter (2008).

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183

***

Gostaria de finalizar este capítulo lembrando que, antes de ministrar estas

oficinas, vivenciei cada uma das máscaras, seja no espetáculo Sereno da Madrugada, seja

durante o trabalho de campo com as Folias de Reis. Este enfoque na importância do

pesquisador “experimentar em si mesmo” o universo pesquisado e de valorizar as

impressões e sensações dessa experiência na forma de apresentar os resultados da pesquisa,

por mais pessoal que possa parecer, talvez seja o que melhor caracteriza este trabalho como

fruto de uma pesquisa em Artes Cênicas realizada no Instituto de Artes da UNICAMP.

No momento de escrever a Tese, optei por me concentrar na experiência das

oficinas, porque o fato de estar “de fora” me ajudou a ter um mínimo de distanciamento

para a reflexão. O “mínimo”, neste caso, não é apenas uma força de expressão, porque se

no DVD que acompanha a Tese, há poucas imagens das oficinas, em relação ao grande

número de horas aulas ministradas, é justamente porque o próprio processo de conduzir

uma oficina de máscara é bastante absorvente. A qualidade de atenção que este tipo de

atuação, ou melhor, que esta brincadeira exige, quase não nos deixa brechas para que

possamos apenas observar, sem ter uma participação ativa. O que tornava difícil conseguir

me desconectar e me colocar “de fora”, para filmar um processo que envolve tal grau de

absorção.

Para concluir, selecionei dois relatos de alunos, que me parecem ser bons

exemplos de um dos principais objetivos que pretendia alcançar quando elaborei estas

oficinas e, até mesmo, empreendi toda esta pesquisa com as máscaras da Folia de Reis.

Parece diferente da commedia dell‟arte que você fica estudando que

o pantaleão é assim, o arlequim é assim. Neste caso aqui necessita

de uma pesquisa com a máscara, para você ir descobrindo isso, que

é muito interno e que demora muito tempo.

Eu já tinha um trabalho anterior com máscaras, neutras e de

commedia dell'arte (...). Trabalho com máscara clownesca e já fiz

uma oficina de máscaras balinesas. (…) Mas nessa oficina de

máscaras brasileiras pude quebrar certos códigos que para mim se

tornaram regras, o que fechava muito o trabalho. Experimentar

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outras máscaras, outras formas de se trabalhar com elas, isso abre

nosso campo de visão, nossas referências. Não só dentro das

máscaras, mas da cultura popular de modo geral.

Num típico exercício de alteridade, estava interessado em fazer com que os atores

trabalhassem com as máscaras da Folia de Reis, não porque eu as achasse melhores do que

outras máscaras teatrais, mas por acreditar que esta experiência nos levaria a pensar sobre o

sentido do próprio mascaramento no teatro.

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CAPÍTULO 7 - O arremate

É chegado, então, o momento do arremate, que nas Folias de Reis consiste

num último conjunto de ritos que tem como objetivo encerrar o ciclo festivo de um

determinado ano. Se até aqui tenho procurado elucidar qual a graça das máscaras para

atores e foliões, no arremate desta Tese, pretendo proceder a retomada de algumas questões

discutidas, priorizando aspectos relacionados à recepção de uma performance mascarada. O

enfoque estará na caracterização do encantamento provocado pelas máscaras nos processos

de interação com o público, no caso do teatro, ou dos donos da casa e demais participantes

“não mascarados”, no caso da Folia.

7.1 - O encantamento das máscaras

Uma possibilidade para explicar o encanto ou o sucesso despertado pelas

máscaras em cena, de acordo com Wiles (2007), seria o fato de que as pessoas não as

notam – somente seu efeito. Apesar desse enunciado parecer estranho, é um fenômeno

facilmente verificado por quem presencia uma performance mascarada, como podemos

observar no seguinte relato de uma das alunas do curso de Graduação em Artes Cênicas da

UNICAMP, que participou de uma das disciplinas que ministrei sobre máscaras populares:

Na última aula, teve uma hora que eu olhei pra Natália, muito

engraçado, que não parecia que era ela. Eu olhava o corpo dela, a

roupa dela, ela tava o dia inteiro fazendo aulas com a roupa dela,

eu sei que é ela. Nossa... É ela? E é engraçado que a Natália tem

muitas coisas características dela. Um jeito de andar que é bem

marcado. E, de repente, ela sumiu. A Natália ali naquela máscara.

Nesse momento, eu fiquei assim, deu uma estranheza sabe? Eu

fiquei assim, não com medo, mas meio assim: ai meu Deus!

Porque parece que meio foge do controle né? Você não vê mais a

atriz ali, ou a pessoa que tá fazendo, usando a máscara. Parece

que a máscara se torna um ser. Nesse momento que dá uma coisa.

Este é um bom exemplo de um tipo de relato que apareceu com certa frequência no

discurso dos alunos das oficinas e, também, entre o público que assistia ao espetáculo

Sereno da Madrugada.

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A explicação de Wiles (2007), apesar de pertinente, não nos oferece, contudo,

muitas pistas de como o tipo de fenômeno, descrito acima, se processa. Normalmente,

costumamos atribuir o mérito apenas ao ator, que foi capaz de manejar adequadamente os

princípios técnicos de atuação com as máscaras, muitos dos quais foram discutidos no

capítulo anterior. Mas de nada adiantaria o desempenho técnico do ator se ele não

conseguir estabelecer com o público um acordo para que as convenções com as quais ele

estiver trabalhando sejam aceitas dentro daquela situação de jogo, ou brincadeira, como

preferem utilizar os foliões. Acontece que o impacto provocado pela máscara é de natureza

tão peculiar e intensa que arriscaria dizer que se trata de “uma forma mais complexa de

brincadeira”, como diria Bateson (2002), ao estudar a natureza dos processos de

comunicação.

Para esse autor, existem algumas situações de interação entre dois indivíduos

em que o jogo é construído não sobre a premissa “isto é brincadeira”, mas, sobretudo, em

torno da pergunta “será isto brincadeira?” Trata-se de um paradoxo que está duplamente

presente nos sinais trocados dentro de alguns contextos de brincadeira, que é explicado da

seguinte maneira por Bateson (2002, p. 92):

Não só uma mordida de brincadeira não denota o que seria

denotado pela mordida a sério, por ela representada, como também

a própria mordida é uma ficção. (...) Isso leva a uma grande

variedade de complicações e inversões nos campos da brincadeira,

da fantasia e da arte. Ilusionistas e pintores da chamada escola

trompe l‟oeil78

se esforçam para adquirir uma virtuosidade cuja

única recompensa é alcançada depois que o espectador descobre

que foi enganado e é forçado a rir ou maravilhar-se perante a

habilidade do enganador.

Se observarmos o relato daquela aluna à luz das teorias de Bateson (2002) sobre a

brincadeira e a fantasia, veremos que a pergunta: “É ela?”, remete à mesma ideia expressa

na questão “será isto brincadeira?”, que Bateson (2002) atribui como próprias das “formas

mais complexas de brincadeira”.

78

Trompe l‟oeil é um técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre

objetos ou formas que não existem realmente. A expressão teve origem no barroco, mas a técnica em si era

conhecida desde os gregos ou romanos.

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Acredito que, por outro lado, o espectador só é levado a formular este tipo de

pergunta devido a sua capacidade de recuperar em sua percepção, o que este mesmo autor

chamou de, um “sentido de totalidade”, ou seja, é aquilo que o levará a perceber o

performer e a máscara não como elementos distintos, mas sim com uma entidade resultante

da fusão dos dois. É a forte sensação de estar diante da presença de outro ser que faz com

que aquela aluna chegue a duvidar se quem está à sua frente ainda é sua colega de trabalho.

Por mais que ela saiba, conscientemente, que não há como não ser ou, pelo menos, ela

desconhece mecanismos que possam dar-lhe outra resposta, naquele contexto de sala de

aula. O que seria diferente se estivesse num contexto religioso, principalmente aqueles

ligados aos ritos de possessão, em que diríamos que a pessoa está incorporada pelo santo.

Poderíamos dizer que esse “sentido de totalidade” resulta da capacidade da

máscara de promover uma conciliação entre a perspectiva aceita pela parte direita da mente,

para a qual não há diferença entre “representar” e “ser”, e a parte esquerda, que sendo

regida pela lógica, não poderia aceitar essa indistinção. Para explicar esse fenômeno,

Bateson (1993) recorre a um exemplo retirado da Missa Católica, segundo ele: para o lado

direito do cérebro (aquele que sonha), o pão e o vinho manuseados pelo sacerdote católico

são o corpo e o sangue de Cristo, ou seja, um sacramento. Já para o lado esquerdo do

cérebro dos fieis, o pão e o vinho apenas representam o corpo e o sangue de Cristo, são

metáforas79

. Para ele, o sagrado instaura-se a partir da percepção integrada das duas partes

do cérebro, ou seja: “A acepção mais rica da palabra „sagrado‟ é aquela que diz que o que

conta é a combinação das duas ideias, que as coloca juntas, (…) o pão é o corpo e

representa o corpo” (BATESON, 1993, p. 339)80

.

Segundo este autor, como a mente, por natureza, percebe a realidade de forma

repartida, o homem precisou criar os espaços e momentos sagrados justamente para que

possa exercitar esta percepção integrada da mente. É daí que Bateson (1993) deriva sua

79

Rementendo para o campo artístico, no metadiálogo, “¿Por qué un cisne?”, Bateson (1993) argumenta que

uma bailarina ao conseguir alcançar a equivalência da graça do cisne com sua dança, faz com que sua

representação deixe de ser apenas metafórica para converter-se também em sacramento, ou seja, ela torna-se o

cisne (Bateson, 1991, p. 62). 80

Original em inglês: “La acepcción más rica de la palavra “sagrado” es la que dice que lo que cuenta es la

combinación de las dos ideas, que las coloca juntas, (…) El pan es el cuerpo y representa el cuerpo (Bateson

1993, p. 339).

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peculiar concepção de sagrado, que está ligada ao desenvolvimento desta capacidade de

perceber o todo. Se estivermos de acordo com Bateson (1993) que o mundo ocidental tem

cada vez mais maltratado o sagrado justamente por valorizar demasiadamente apenas uma

das partes do cérebro, notadamente a esquerda, não é de se estranhar que a máscara tenha

perdido muito do seu prestígio no ocidente, já que nos incita a uma “integração da mente”,

a qual não estamos acostumados. Esta é uma hipótese que proponho como complementar a

aquela sugerida por autores como Wiles (2007), Napier (1986) e Pereira (1973), que

consideram que o advento da escatologia Cristã teria sido determinante para influenciar

negativamente o status da máscara no ocidente, como apresentei no terceiro capítulo.

Podemos concluir, portanto, que para além dos possíveis sistemas de

significados em que uma máscara pode se encontrar inserida, ela acaba por remeter a uma

dimensão sagrada a partir do momento em que opera, simultaneamente, nestas duas

direções: colocada sobre o rosto do performer, ela é o objeto que permite que ele pareça

representar “outro ser”. Por outro lado, para que esse “outro ser” tenha credulidade,

precisamos deixar de perceber a máscara enquanto objeto sobre o rosto do performer, o que

faz com que tenhamos a sensação de transformação, já que o performer tornou-se outrem.

Acredito que é por não estarmos acostumados com este tipo de operação mental, que surge

a sensação de estranheza que boa parte das pessoas relata ao estar diante de um mascarado.

É por isso, também, que nas Folias de Reis, a máscara continua exercendo seu

poder de encantamento naqueles que a observam em situação de jogo, mesmo que

possamos reconhecer, a todo o momento, uma série de características pessoais de um folião

na maneira como ele performa uma determinada máscara. Isso acontece, como vimos no

quinto capítulo, porque uma vez que o folião está utilizando uma máscara, suas ações, por

convenção, passam a pertencer ao ente que a máscara representa. A diferença em relação ao

teatro, é que, para os atores, um dos quesitos fundamentais para uma máscara funcionar em

cena é que haja a eliminação dos traços identitários do performer que a está utilizando.

Esta diferença bastante significativa entre as expectativas de um ator ou de um

folião em relação a como se espera que um performer mascarado se porte diante de quem o

observa, me faz pensar que não parece ocasional que as máscaras sejam chamadas de

caretas em boa parte das manifestações populares, como apontei no capítulo anterior. Claro

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que, primeiramente, isto está relacionado com o fato delas serem consideradas feias e,

“popularmente, o grande recurso cômico, provocador da hilaridade”, já lembrava Cascudo

(1958). Mas o que seriam as caretas senão uma máscara facial, em que o executante não

desaparece completamente? Mas sem deixar de ser quem ele é, consegue se metamorfosear

momentaneamente, deformando o seu rosto. Assim, o que poderia parecer apenas um

detalhe de nomenclatura, aponta para um aspecto fundamental, qual seja: nas manifestações

populares, a frequente substituição do termo máscara por careta chama a atenção para o

fato de que a máscara, nestes contextos, é muito mais do que um mero disfarce.

O leitor que, por ventura, estiver mais familiarizado com algumas destas

manifestações poderá contestar esta linha de argumentação, dizendo que muitos brincantes

e mesmo alguns foliões vêem o ato de mascarar-se como uma brincadeira que se caracteriza

pelo disfarce. Outros poderiam recordar que o disfarce também seria o motivo pelo qual a

máscara é, por excelência, utilizada no carnaval. Não ignoro, contudo, que a dimensão do

disfarce esteja presente na máscara, como argumentei através de Bakhtin (1999) no quarto

capítulo. O que tenho procurado destacar é que este não é o motivo central do

mascaramento, em muitas manifestações populares como a Folia de Reis. Além dos

argumentos que apresentei, sobretudo no quinto capítulo, este aspecto pode ficar mais claro

se nos atentarmos para o fato de que há uma pequena diferença entre o que entendemos

como disfarce e a forma como esta brincadeira se dá, de fato, na prática, com o uso da

máscara. Para tal, recorrerei justamente a um exemplo retirado de um contexto em que a

máscara tornou-se emblematicamente conhecida: o carnaval de Veneza.

Para Damisch (1995), mesmo no carnaval de Veneza, a máscara não seria um

disfarce, quando muito um incógnito porque raramente as pessoas mudam de roupa e todos

se reconhecem. Ele relata um episódio em que, apesar do “Núncio papal estar mascarado,

um homem ajoelhou-se diante dele e pediu-lhe a benção” (DAMISCH, 1995, p. 306). A

partir desse episódio, Damisch explica que, enquanto o disfarce é feito para enganar, “o

incógnito” não impõe uma substituição de identidade, mas pretende no máximo anulá-la e,

mesmo assim, nem sempre esse intento será conseguido. Isto o leva a concluir que o grau

zero da máscara seria “o incógnito” e não o disfarce, ou seja, “entre as noções de máscara e

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de identidade, a relação não é apenas de exclusão, nem tão-pouco de anulamento, mas de

complementaridade ou mesmo de cumplicidade” (DAMISCH, 1995, p. 304).

Apesar deste tipo de relação de cumplicidade ser observada de forma similar

também no teatro, como discuti no quinto capítulo através das considerações de Taviane

(1989) sobre a commedia dell‟arte, é na Folia de Reis que esta relação pode ser mais

facilmente observada. Para os foliões, importa mais a manifestação da alteridade, seja

divina, no caso dos Reis Magos, ou diabólica, no caso dos palhaços, do que a substituição

da identidade cotidiana do folião que utiliza a máscara pela de uma personagem. Ou seja,

complementando a argumentação sobre a noção de mascarado realizada no quinto capítulo,

diria que o mascarado na Folia de Reis se aproxima mais de um agente de presentificação

da alteridade, do que de um personagem. Desse modo, se o foco dos foliões está na

alteridade, quanto mais as máscaras forem “diferentes” e “estranhas”, ou seja, se

distanciarem de traços ou elementos que sugiram um rosto, tanto melhor. A presença da

máscara por si só produz um efeito de presença do “outro”, mesmo que o folião continue

agindo como cotidianamente o faz. Isso me parece explicar o fato de boa parte das

máscaras populares serem máscaras, aparentemente, muito simples do ponto de vista da

confecção, às vezes, se restringindo apenas a um pano que recobre o rosto. Nestes casos,

fica evidente como o restante da indumentária que cobre, ou melhor, que mascara o restante

do corpo é fundamental para que se efetive o efeito de presença dessa alteridade, como nos

exemplos abaixo:

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Caretos de Podence – Trás-os-montes - Portugal

Mascarados das Cavalhadas de Pirenópolis (GO)

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Madamas ou Matrafonas – Podence - Trás-os-montes - Portugal

Madamas ou Matrafonas – Podence - Trás-os-montes - Portugal

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Reparem que a primeira foto dessa sequência, mostra uma máscara em que é

possível perceber nitidamente as marcas de um rótulo que não nos deixa ter dúvidas sobre a

origem do material utilizado em sua confecção. A própria máscara, neste caso, trás

informações que nos remetem a um universo que nada tem a ver com o universo simbólico

do ser que se pretende presentificar, pois aqueles escritos não querem dizer nada além do

que dizem de fato: são rótulos de uma marca de óleo diesel. Este tipo de ocorrência parece

evidenciar como, nestes contextos, é o mascaramento mais do que a máscara em si o que

importa. Tanto que, em muitos casos, as indumentárias têm muito mais destaque do que a

máscara em si, como nestas máscaras dos Caretos de Podence que, por serem pequenas,

acabam quase que por serem engolidas pela farda. O mesmo acontece com os mascarados

das Cavalhadas de Pirenópolis, que aparecem retratados na foto seguinte, em que só é

possível perceber a sugestão dos olhos, boca e nariz, na máscara negra.

O caso mais extremo, no entanto, me parece ser as Madamas ou Matrafonas,

também figuras mascaradas do carnaval de Podence, em Portugal, retratadas nas duas

últimas fotos da sequência anterior. Elas seriam uma manifestação contundente do que mais

importa é o mascaramento, em função da sua capacidade de produzir o efeito de presença

de uma alteridade. Estes seres sem rosto e sem nome que são denominados genericamente

de Madamas, nada mais são que uma manifestação de um outrem. Ao olharmos para o seu

rosto em busca de uma identidade, como estamos acostumados a fazer, não obteremos

nenhuma informação, a não ser que elas são seres sem rosto, supostamente femininos.

Nestes casos, não há mais uma cabeça nua e um corpo revestido, mais uma entidade, uma

figura, um mascarado como dizem os foliões.

Enquanto no teatro ocidental estamos acostumados a valorizar um processo de

construção identitária de um personagem em que o rosto ainda é muito levado em conta,

nestas manifestações populares tradicionais o foco está mais na presentificação de uma

alteridade. Por isso, não é de se estranhar que as máscaras tradicionais da cultura popular

brasileira não tenham despertado maior interesse nos estudiosos do campo das Artes

Cênicas, a julgar pela quantidade ínfima de estudos existentes, se comparados à enorme

variedade de manifestações mascaradas que estão espalhadas por todo o país e que,

certamente, permitem uma série de abordagens para a cena.

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Mesmo que, como argumentei no decorrer deste texto, ainda me encontre

bastante influenciado por ideias e práticas como as de Lecoq (2007), que estão enraizadas

em minha formação como ator e diretor, espero ter conseguido fazer algumas proposições

relevantes para a elaboração de uma abordagem para a máscara no teatro, a partir de um

referencial brasileiro. Uma abordagem que encontra sua melhor tradução na ideia de

atribuir graça às máscaras, assim como os foliões o fazem no universo das Folias de Reis,

por ser um termo que remete tanto às dimensões do fazer rir e do causar interesse, como o

de evocar o sagrado.

Não se trata, no entanto, de mistificar a máscara, já que, mesmo entre os

foliões, e em diversos outros contextos estudados, ela comporta-se mais como um veículo,

a partir da qual deuses e diabos podem se manifestar, do que um objeto para ser apenas

venerado. Cientes disso, talvez possamos aliviar a importância que acostumamos atribuir a

uma abordagem muito tecnicista e secularizada da máscara enquanto fazer artístico, que

como nos mostrou Wiles (2007), foi ideologicamente construída em função de ideias

positivistas e cientificista, como as que aparecem expressa, de certa forma, nesta fala de

Lecoq (2005, p. 123):

O jogo da máscara não é uma ciência exata, mas sim uma arte

exata. Um discurso profundo sobre este argumento não pode ser

outra coisa além de poético (lá onde as palavras disparatam). A

parte não dita é a maior, como em todas as artes. Sem usar o termo

“mágico”, que daria um tom misterioso ao sujeito, diria antes de

tudo, que se trata de um deslocamento da geometria a serviço das

emoções 81

.

Ainda assim, não sei se Lecoq consegue escapar totalmente à presença do

mistério em sua fala, ao admitir que “a parte não dita é a maior”. Na literatura consultada,

não raro encontrei autores que se apresentam tomados pelos encantos desse peculiar

“objeto”: Artaud (1999), diante das máscaras Balinesas, Barroso (2007) que intitulou sua

Tese sobre máscaras dos Reisados do nordeste de Teatro como encantamento e Icle (2006),

81

Original em italiano: “Il gioco della maschera non è uma scienza esatta bensí un‟arte esatta. Un discorso

profondo su questo argomento non può essere che poético (là dove le parole sragionano). La parte non detta è

la maggiore, come in tutte Le arti. Senza adoperare il termine “magico” che dorebbe un tono misterioso al

soggetto, direi piuttosto che si tratta di uno spostamento della geometria al servizio dell‟ emozione”.

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que propõe um estudo do ator como xamã a partir do clown, que é considerada a menor

máscara do mundo. E Caillois (1988), que faz interessantes correlações entre a máscara, a

vertigem e o transe, chega mesmo a fazer a seguinte consideração:

Este acessório enigmático e sem uma finalidade útil é mais comum

que a alavanca, o arco, o arpão ou o arado. Populações inteiras

ignoraram os utensílios mais humildes e mais preciosos, mas

conheciam a máscara. (…) Não há utensílio, invenção, fé, costume

ou instituição que mais una a humanidade do que o uso da máscara

(GLOTZ, 1975 apud DAMISCH, 1995, p. 317).

Por mais que Caillois não nos apresente dados suficientemente convincentes

para provar que a máscara seria uma espécie de indício da unidade do gênero humano, sua

afirmação nos faz refletir sobre a importância cultural que esse artefato possui. Por outro

lado, a desmesura de sua afirmação serve como uma advertência tanto para nosso espírito

generalizador, como para que fiquemos atentos ao poder de encantamento que a máscara

exerce sobre nós. Se pensarmos que é um artefato capaz de encantar dessa maneira, até

mesmo um “teórico de gabinete” como Caillois, quem dirá pesquisadores que se aventuram

a investigá-la em termos práticos, como acontece no campo das Artes Cênicas. Lopes

(1990, p.9), por exemplo, é autora de um dos relatos mais radicais que encontrei nesse

sentido. Observem como ela descreve uma de suas primeiras experiências com a máscara

teatral em Paris:

À revelia de meu mestre Kawahara, levei sua máscara de Pantaleão

para o meu apartamento. (...) Passei a noite inteira pesquisando

suas nuances de interpretação e, quando quis parar, não consegui

tirar a máscara do rosto. Saí do apartamento, andei pelas margens

do rio Sena, tentando abordar as poucas pessoas que ainda

andavam pela rua naquela madrugada de inverno.

Aqui, cabe lembrar que o tipo de situação de perda de controle descrita pela

pesquisadora, não é desejada nem mesmo em contextos religiosos em que o transe e a

possessão estão envolvidos. Como nos lembra Prandi (2005), estes fenômenos se

manifestam sob uma série de prescrições que são aprendidas e compartilhadas pelos

membros de um determinado grupo religioso, que estabelecem modos, tempos e espaço

para estas manifestações.

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O encantamento de que falo, em relação às máscaras, não é do nível do

ocultismo ou do incontrolável, mas de um efeito capaz de simplesmente nos envolver num

jogo, numa brincadeira. De nos encantar com o faz-de-conta, que no caso da Folia de Reis,

tem uma peculiaridade difícil de ser encontrada num mundo em que os chamados Reality

Shows têm feito tanto sucesso. Ao invés de espiamos, distanciadamente, uma suposta vida

real por meio de câmeras de TV, cada Folia, ao adentrar as casas, leva a fantasia, o onírico,

o mundo dos sonhos e do outro, tão bem representado pelas máscaras, para invadir e torna-

se parte daquele cotidiano. Dimensão que procuramos manter quando realizamos a

montagem do espetáculo Sereno da Madrugada e que nos fez passar por situações

inusitadas como a que relatarei a seguir, a título de conclusão.

Numa das apresentações do referido espetáculo na cidade de Guaxupé, em

2006, havíamos combinado com a dona de uma casa, uma senhora com mais de 60 anos,

para nos ceder a sua janela, para que pudéssemos fazer uma das cenas. Mas ao chegarmos

com o público em frente a sua casa, ela parece ter acreditado que, de fato, estava diante de

uma Folia. Então ela fez com que a atriz que deveria apenas se posicionar na sacada de sua

janela para fazer uma cena, levasse a bandeira que portávamos no espetáculo, para que

visitasse todos os cômodos da casa, como é típico de se fazer nas Folias. Só depois disso

que conseguimos seguir com o espetáculo e realizar as cenas que estavam previstas para

outras casas. O mais impressionante para nós, no entanto, foi quando depois de terminado o

espetáculo, ao passarmos em frente a essa mesma casa, essa senhora veio chorando nos

dizer que estava muito feliz com nossa visita, pois ela achava que morreria sem que os

Santos Reis visitassem sua casa de novo, e que nós havíamos realizado o seu sonho. Nesse

momento, ficção e realidade se fundiram de uma maneira tal, que nós não conseguíamos

dar conta, a não ser nos emocionando também com aquela senhora, que nos deixou a todos

com lágrimas nos olhos.

Este exemplo demonstra que não é apenas a intencionalidade de quem utiliza

um objeto que vai fazer com que ele seja ressignificado, mas sim o contexto que está ao seu

redor. Ou seja, as máscaras em contextos similares aos da Folia de Reis, mesmo fora de

situação ritual declarada, já que estavam num espetáculo, continuavam agenciando relações

sociais no seu entorno do mesmo modo como acontece na Folia de Reis. Este exemplo

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talvez seja um indício de que não era tão improvável uma especulação muito freqüente dos

foliões fazerem durante a pesquisa: quem sabe vocês não serão as Folias do futuro? Por

mais que eu me mostrasse interessado apenas na parte teatral das Folias, sobretudo pelas

máscaras, os foliões sempre foram favoráveis à minha pesquisa, justamente porque

acreditavam que eu, de uma forma ou de outra, contribuiria para divulgar sua devoção em

nome dos Santos Reis. O que de fato, inevitavelmente, vai acontecer com quem tiver algum

contato com esta tese.

7.2 - Da anunciação à despedida

Podia ser meia noite, quando os galos bentos cântaro

Arriaro seus camelos, os três Reis Magos viajaro

Guiados por uma estrela, viajaram noite e dia

A procura do menino filho da virgem Maria

Tinha uma estrela que brilhava mais do que as outras porém

Caminharo, caminharo, para o lado de Belém

Os três reis que viajaro porque o tempo era chegado,

Jesus Cristo era nascido na manjedora do gado.

Versos de anunciação,

Aldemar Gasparelo,

Folião da cidade de Muqui/ES.

Foi no rastro da estrela que guiou os Reis Magos e que serve de referência para

os foliões realizarem sua jornada, que realizei o processo de pesquisa que deu origem a esta

Tese. Assim como os Reis Magos e os foliões, também tive que percorrer longas distâncias:

seja entre Campinas, onde está situada a UNICAMP, e Belo Horizonte, onde ministrei aulas

de interpretação até o início de 2006, na UFMG; seja para visitar os diversos grupos de

Folias de Reis e de outras manifestações mascaradas em cidades de Minas Gerais, Goiás,

Espírito Santo, São Paulo, Maranhão e Portugal, país em que realizei o estágio de

doutoramento; seja para apresentar o espetáculo Sereno da Madrugada ou para ministrar as

oficinas com as máscaras da Folia de Reis; seja para os diversos congressos no Brasil, na

Argentina e em Portugal, em que pude apresentar e debater elementos desta pesquisa. Seja,

também, no sentido teatral de viajar de um corpo a outro, por intermédio das máscaras.

O mais importante destes percursos, no entanto, se deu entre “o terreiro e o

palco”, ou seja, entre o trabalho de campo e as experimentações criativas realizadas no

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espetáculo Sereno da Madrugada e nas oficinas. A compreensão que adquiri das máscaras

da Folia de Reis é fruto de um ir e vir entre estes dois espaços. Ou seja, o processo de

pesquisa se deu numa via de mão dupla. De um lado, a maneira de proceder nos ensaios,

oficinas e apresentações e o conhecimento prévio sobre máscaras teatrais influenciavam a

forma como as máscaras da Folia de Reis eram percebidas em campo; do outro, os modos

de fazer dos foliões e todos os seus conhecimentos tradicionais me obrigavam a rever e a

questionar a minha perspectiva sobre a atuação com as máscaras teatrais.

Esse processo me levou a concluir que uma investigação em torno do fenômeno

do mascaramento implica em pelo menos três abordagens fundamentais e que me parecem

indissociáveis: o estudo da máscara enquanto tradição, enquanto objeto e enquanto jogo ou

brinquedo. Talvez, apesar disso não ter sido, suficientemente, evidenciado no decorrer do

texto, foi a partir de um jogo de inter- relação entre estas três dimensões que estruturei todo

o discurso sobre o mascaramento presente nesta Tese.

Se os foliões recorrem às profecias registradas nos livros para auxiliá-los a

reconhecer os sinais deixados pela estrela, também recorri a uma série de livros, neste caso,

predominantemente de teatro e antropologia, com a preocupação de seguir uma observação

de mestre Bejo que é também muito cara ao discurso acadêmico: Tudo que eu falar vocês

podem me perguntar que eu vou saber dizer o livro que está. O desafio foi tentar

contemplar de forma harmônica as informações destes dois campos do conhecimento,

mantendo como predominante a perspectiva teatral, mas sem ofuscar o conhecimento

tradicional dos foliões e as evidências das atividades práticas do trabalho criativo. A idéia

foi buscar uma estrutura que favorecesse a escrita de um texto que estivesse na interseção

destas duas áreas, evitando, assim, que a tese ficasse fracionada em duas: uma parte sobre o

trabalho de campo que apontaria para um ponto de vista mais antropológico e outra sobre o

trabalho criativo no teatro. Por mais que não tenha conseguido eliminar por completo essa

separação, procurei aliviá-la ao máximo possível.

Outro aspecto importante a ser recuperado é que à medida que fui tomando

consciência de que me encontrava numa espécie de “entre lugar” nas mais diversas

instâncias da pesquisa, seja enquanto ator e diretor, neto de folião, graduado em

antropologia ou devoto de Santos Reis, fui desistindo de forjar uma máscara única e

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coerente para me posicionar enquanto pesquisador. Resolvi, então, assumir como

inevitáveis as possíveis contradições que possam surgir da condição liminar em que me

encontrava, explicitando-a para o leitor. Ou seja, ao invés de tentar sintetizar ou cunhar

uma máscara que me permitisse ter uma única perspectiva no decorrer da pesquisa, resolvi

trabalhar explicitamente com a sobreposição de perspectivas, mesmo que muito remotas,

como aquelas da minha infância, apresentadas no primeiro capítulo.

Este estudo partiu de um olhar focado nas máscaras dos Santos Reis de Fidalgo

e Matozinhos, em Minas Gerais, para, aos poucos, ser ampliado para o universo de outras

máscaras da Folia de Reis, como os palhaços, até atingir outras máscaras brasileiras e

portuguesas, sem deixar de dialogar com a máscara teatral de origem europeia. Espero com

este percurso, ter contribuído para dar a conhecer uma parte de um rico e vasto conjunto de

saberes tradicionais sobre as máscaras presentes em boa parte do território brasileiro, mas

que ainda me parece pouco explorado no campo das Artes Cênicas.

Após oito anos desenvolvendo esta pesquisa percebo que muito mais do que me

tornar um especialista na forma de performar as máscaras das folias de reis como um

sistema fechado em si, este mergulho no universo das máscaras tradicionais brasileiras me

fez repensar, tanto a máscara e o mascaramento no teatro, como o próprio ofício do ator.

Oito anos se passaram, entre o meu reencontro com as folias de reis até o momento de

concluir a escrita desta tese. Espero que possa me considerar liberado de minhas obrigações

com os Santos Reis, já que cumpri como todo bom folião, pelo menos os sete anos de folia;

sete anos saindo em companhia dos Santos Reis.

Como os mascarados costumam fazer sua despedida em verso, assim também o

farei. Para tal recorrerei a um verso que ouvi do Palhaço Ventania no Encontro de Folia de

Reis de Muqui (ES), em 2003, o qual direciono ao leitor desta Tese, mas principalmente

para todos os mestres, foliões, alunos das oficinas e os parceiros de trabalho com os quais

tive o prazer de compartilhar muitas jornadas de pesquisa:

Primeiro peço favor, depois peço licença

Se faltar alguma coisa, desculpe da minha presença

Não é toda coisa que a gente fala

Que sai do jeito que a gente pensa.

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E viva Santos Reis!

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REFERÊNCIAS82

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Going around of the Sapokuyana masks, índios Waurá, realização Harold Schultz, 3‟ 1964.

Plaiting a Kokrit mask (índios Kraho, Mato Grosso), realização Harold Schultz, 1962.

Goli – dança com máscaras Baulé (Costa do Marfim), realização Daner e Hans

Himmlheber, 8‟, 1969.

Page 224: O ATOR E O FOLIÃO NO JOGO DAS MÁSCARAS DA ...repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/284442/1/...VIII RESUMO Esta tese constitui-se num estudo sobre as máscaras tradicionais da

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Mask dances aruanã, realização Harold Schultz, 20‟, 1962.

Wauja a Dança das Grandes Máscaras Amazônicas. Direção Aristóteles Barcelos Neto,

produção Laboratório de Imagem e Som emAntropologia da USP, 22‟, 2006.

Anexo

Questionário aplicado, por e-mail, no final das oficinas.

1) O curso contribuiu de alguma forma para o aprimoramento do seu trabalho de ator?

2) O uso do bastão auxiliou de forma positiva ou trouxe algum tipo de limitação/prejuizo

no trabalho corporal para a máscara?

3) Ao final da oficina ficou claro quais eram os meus objetivos ao propor o curso? tais

objetivos lhes parecem pertinentes?

4) Houve alguma atividade ou orientação proposta que você não compreendeu, achou

desnecessária ou sem sentido?

5) O curso atingiu a sua expectativa quando se inscreveu para fazê-lo ou foi diferente do

que você imaginava?

6) O trabalho te despertou o interesse de conhecer um pouco mais sobre as máscaras

populares?

7) Quando você lembra deste curso, o que ficou de mais importante?

8) Você sentiu falta de ter contato com os videos mostrando o material da pesquisa de

campo?

9) Há alguma coisa de qualquer outra ordem que você gostaria de dizer?

10) Houve algo que você estranhasse com relação ao uso das máscaras populares em

relação às que você conhecia? Cite se possível que tipo de máscara você trabalhou.