o ascensorista - dramaturgia catarinense · quando às vezes a febre é tão forte que a pessoa nem...

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O A SCENSORISTA Afonso Nilson

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O ASCENSORISTA Afonso Nilson

Primeira encenação no XIII Festival Internacional de Teatro Universitário de Teatro de Blumenau, pelo grupo Entretantos (Brusque/SC), com direção de Luciano Mafra, Julho 1999.

O Ascensorista

Personagens: O ascensorista, o velho, a moça, o

adolescente, o executivo, a velha, o professor, o aluno, o

médico, a enfermeira, a velhinha.

Num elevador, o ascensorista num banquinho aperta

botões enquanto as pessoas sobem e descem ao toque

de uma sineta, que soa quando o elevador chega aos

andares solicitados. Na primeira parada sobem cinco

pessoas: o velho, a moça, o adolescente, o executivo, a

velha.

Ascensorista: Sobe.

Velha: (mecanicamente) Cinco

Adolescente: Três, cara.

A moça: O quatro, por favor.

(o ascensorista aperta os botões dos andares. Quando

chega ao terceiro andar soa uma sineta, desce o

adolescente, no quarto descem o velho e a moça e

entram o professor e o aluno).

Professor: Nove. (para o aluno) Porque como eu ia

dizendo, essas profissões em que não se precisa pensar

para trabalhar só tendem a degenerar os homens...

Ascensorista: Cinco. (descem a velha e o executivo, e

entra o médico).

Médico: Quatro.

Professor: ...E seria muito melhor que todos fossem

substituídos por máquinas.

Aluno: Mas existem profissões simples que precisam

do raciocínio.

Professor: Ora faça-me o favor. Até um macaco é capaz

de passar um dia amassando a bunda num banquinho a

apertar os botões dos andares.

Ascensorista: Nove. (descem o professor e o aluno e

entra a enfermeira).

Enfermeira: Cinco.

Médico: E então? Como está o paciente do 969.

Enfermeira: Está melhor, mas passou um aperto.

Médico: É, esses vírus que se pegam em lugares

fechados são terríveis.

Enfermeira: Sim, quem poderia imaginar que num

simples ambiente fechado, como um elevador, pode se

pegar um vírus fatal e morrer banhado em suor e urina,

quando às vezes a febre é tão forte que a pessoa nem

consegue ter controle de suas necessidades

fisiológicas?

Ascensorista: Cinco. (a enfermeira sai dando um sinal

com a mão em despedida do médico)

Médico: (malandro para o ascensorista) Se bem

conheço essa daí, quem passou por um aperto foi ela,

na mão daquele velho safado que é o paciente do 969.

Ascensorista: Quatro. (sai o médico e entra de novo o

executivo)

Executivo: Térreo. (se demora um pouco em silêncio e

quando está quase chegando ao andar solicitado, peida

estrondosamente).

Ascensorista: Térreo senhor. (entra uma velhinha que

cheirando o elevador olha com nojo para o

ascensorista)

Velhinha: Cinco.

(o elevador pára e entra a moça. A velhinha vai saindo).

Ascensorista: Não, senhora. Este é o andar quatro, a

senhora desce um andar acima.

Velhinha: (volta-se em silêncio)

Moça: Nove.

Ascensorista: Cinco. (desce a velhinha. O elevador

fecha e sobem sozinhos ele e a moça. Pela primeira vez

ele se desvia do trabalho e olha a moça) Nove

senhorita.

Moça: Obrigada.

(desce sozinho até o terceiro andar onde entra o

adolescente)

Adolescente: Dez, velho. (tira um chiclete do bolso)

Qué a metade?

Ascensorista: Não, obrigado.

(O elevador pára no quatro e entra o médico).

Médico: Cinco.

Ascensorista: Cinco. (desce o médico)

(O elevador sobe até o nono, onde entra a moça).

Moça: Térreo, por favor. (O elevador segue até o dez)

Ascensorista: Dez. (desce o adolescente. O elevador

fecha. É como se o tempo estendesse) Você é linda.

Moça: Eu sei.

(Com a resposta ambos permanecem em silêncio até

que soa a sineta no quatro e entra o velho)

Velho: Cinco, meu jovem. Você me deixou no andar

errado. O congresso da terceira idade é no cinco.

Ascensorista: Desculpe senhor, não acontecerá

novamente. (pausa) Térreo. (sai a moça e entra o

executivo, que olha pro traseiro dela quando esta sai).

Executivo: Dez.

Velho: (apontando pro ascensorista e falando com o

executivo) Esse moço me deixou no andar errado, você

sabia meu jovem?

Executivo: Está cada vez mais difícil conseguir bons

ascensoristas hoje em dia.

Ascensorista: Cinco. (sai o velho)

Executivo: (espera um tanto e pouco antes de chegar

ao andar, solta um peido com estrondo).

Ascensorista: Dez. (sai o executivo, entra o adolescente

que entrando faz uma careta de fedor, ao que o

executivo, saindo com a mão no nariz, aponta pro

ascensorista).

Adolescente: Térreo, seu porcão. (espera um pouco)

Espera! Me deixa no nove que cê cagô no mundo.

Ascensorista: Nove. (sai o adolescente e entram o

professor e o aluno)

Professor: Térreo. (olha pro ascensorista e diz:) Se você

tem vontade de ir ao banheiro, meu filho, pode ir que

qualquer um sabe apertar os botões dos andares, não

precisa você se defecar só para cumprir o horário. Que

coisa?

Aluno: Isso é um comportamento típico das classes

inferiores. Não ter controle nem sobre suas funções

fisiológicas.

Professor: É uma questão cultural. Veja bem, como

você quer que alguém que passa o tempo todo sentado

apertando os botões dos andares possa ter o mínimo

de boa educação e respeito?

(O elevador pára no cinco, entram a velha, velhinha e o

velho. O professor e o aluno fazem menção para sair,

mas o ascensorista os impede)

Ascensorista: (para o professor e o aluno) Não, este é o

quinto andar. O térreo é depois.

Velha: (para o velho) Viu? Eu disse pra você que o

congresso era no outro prédio.

Velho: É, mas a gente não teria perdido tanto tempo se

esse ascensorista tivesse me deixado no andar certo

desde o primeiro momento.

Ascensorista: Térreo. (descem todos e entra a moça).

Moça: Cinco.

Ascensorista: Da outra vez que nos vimos, eu disse que

você era linda. Mas não achei que fosse também tão

convencida.

Moça: Não sou convencida. Apenas sei de minhas

qualidades e possibilidades. Diferente de você, que

vestido nesse uniformezinho ridículo, nesse trabalho de

gente retardada, acha que tem alguma chance comigo.

Ascensorista: Cinco. (sai a moça e entram o médico e a

enfermeira)

Médico: Pro nove, e depressa. (para enfermeira) Você

não havia tratado do paciente do 969? Como é que

agora ele tá tendo um ataque? Você é uma

incompetente!

Enfermeira: Como é que eu iria prever que ele teria um

ataque? O médico é você! Você é que devia saber!

Médico: Ei nem imagino o que você deve ter feito com

o velhinho pra ele estar nesse estado agora.

Ascensorista: Nove. (saem apressados a enfermeira e o

médico. O elevador sobe até o dez, onde entra o

executivo).

Executivo: Quatro. (espera até quase chegar ao seu

andar e solta um peido que mais parece um solo de

corneta)

Ascensorista: Quatro. (sai o executivo)

(Impassível, o ascensorista se deixa levar pelo elevador

até o andar nove, onde entram o médico e a

enfermeira).

Médico: Cinco. Eu sabia que não ia adiantar nada. Ele já

estava morto no começo do ataque.

Enfermeira: Às vezes a morte é muito atraente, você

não acha?

Médico: Confesso que me excito às vezes com o cheiro

dos cadáveres.

Enfermeira: Você não está sentido um cheiro de podre

nesse elevador?

(Os dois se olham e beijam vorazmente)

Ascensorista: Cinco. (saem o médico e a enfermeira

descabelados e entra a moça.).

Moça: Nove.

Ascensorista: (em silêncio até chegar o nono andar)

Nove. (sai a moça e entra o adolescente).

Estudante: Térreo (faz uma bola de chiclete e pouco

antes de chegar ao andar desejado gruda o chiclete na

parede do elevador)

(o elevador chega ao térreo e vai ao quarto andar,

entra o executivo).

Executivo: Dez

(O elevador sobe até o nove, entra a moça).

Moça: Oito

Ascensorista: (após o elevador chegar ao décimo e

tocar a sineta.) Dez.

(ninguém sai. O elevador chega ao oitavo).

Ascensorista: Oito.

(Desce a moça, o executivo atrás. Fecha-se a porta

do elevador e um silêncio mortal se abate durante

algum tempo sobre o ascensorista, até que numa

avalanche repentina de toques de sineta e pessoas

entrando e saindo aos grupos e sós do elevador,

gritando seus andares, conversando, se penteando,

se beijando (o executivo e a moça), numa pressa e

impaciência sem limite, tão repentinamente quanto

entraram, somem. Continua apenas o ruído

incessante da sineta, que cessa num silêncio súbito.

Estático, o ascensorista fixa o nada. A luz se apaga

num toque de sineta.).

Afonso Nilson Barbosa de Souza nasceu em Joinville, Santa Catarina, em 1977. Trabalhou como redator para publicidade, fotógrafo, músico de orquestra, produtor e gestor cultural. Como dramaturgo tem mais de dez peças encenadas. Mestre em teatro pela Udesc, atualmente trabalha na logística de circuitos e turnês de espetáculos em Santa Catarina.

Contato com o autor: [email protected]

Direitos Reservados Registro Biblioteca Nacional – 248.739/442/399

Texto de 1999 Data do registro - 2002