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P & B 79 uto, s.m.: “1. Sentimento de pesar ou dor pela morte de alguém; 2. os sinais exteri- o res de tal sentimento, em especial o traje, preto quase sem- pre, que usa-se quando está de luto. As definições são do Dicionário Aurélio e retratam o significado desta palavra em nosso contexto social. E por que o preto como sím- bolo do fim da vida? Em nossa cultura, o preto é usado para representar o luto, o sentimento de pesar pelo faleci- mento de alguém. Mas nem todas as culturas usam as cores da mesma forma. Ao contrário, em muitas sociedades é possível observar um sistema de core s bastante diferente do nosso. Alguns grupos orientais, por exemplo, utilizam o branco, e não o preto, para expressar o luto. Segundo o antropólogo e professor da PUC-Rio, José Carlos Rodrigues, a convenção da uti- lização do preto como demons- tração de luto é particular a sociedades ocidentais, pois se trata de uma construção social: “em nossa cultura, convencio- nou-se o uso do preto para indicar o luto porque a cor é asso- ciada a sentimentos ruins no mundo ocidental. Mas isto não é universal. Uma vez que a cultura adota determinada cor, ela entra num sistema de cores cheio de correlações”, afirma ele. Apesar de, atualmente, o uso do preto para representar o luto não ser tão essencial, ainda exis- tem simbolismos que estão rela- cionados à morte e ao período pós-morte. A marcação do estado de luto por meio do vestuário, no entanto, nem sempre foi ne- cessária. Na Idade Média, época em que as pessoas viviam em comunidades, ninguém precisa- va vestir-se de forma especial em caso de morte de um ente próxi- mo, já que todos tinham conhec- imento do ocorrido. Com o pas- sar do tempo, a população O uso do preto em cemitérios é cada dia mais raro O anúncio da dor DANIELA FIGUEIREDO, FERNANDA BOSCHI E GABRIEL PONDE Alex Ferro/Pedra Viva

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uto, s.m.: “1. Sentimento depesar ou dor pela morte dealguém; 2. os sinais exteri-o res de tal sentimento, em

especial o traje, preto quase sem-p re, que usa-se quando está deluto. As definições são do D i c i o n á r i oA u r é l i o e retratam o significadodesta palavra em nosso contextosocial. E por que o preto como sím-bolo do fim da vida?

Em nossa cultura, o preto éusado para representar o luto, osentimento de pesar pelo faleci-mento de alguém. Mas nemtodas as culturas usam as coresda mesma forma. Ao contrário,em muitas sociedades é possívelo b s e rvar um sistema de core sbastante diferente do nosso.Alguns grupos orientais, porexemplo, utilizam o branco, enão o preto, para expressar oluto. Segundo o antropólogo eprofessor da PUC-Rio, José CarlosRodrigues, a convenção da uti-lização do preto como demons-tração de luto é particular asociedades ocidentais, pois setrata de uma construção social:“em nossa cultura, convencio-nou-se o uso do preto paraindicar o luto porque a cor é asso-ciada a sentimentos ruins nomundo ocidental. Mas isto não éuniversal. Uma vez que a culturaadota determinada cor, ela entranum sistema de cores cheio decorrelações”, afirma ele.

Apesar de, atualmente, o usodo preto para representar o luto

não ser tão essencial, ainda exis-tem simbolismos que estão rela-cionados à morte e ao períodopós-morte. A marcação do estadode luto por meio do vestuário, noentanto, nem sempre foi ne-cessária. Na Idade Média, época

em que as pessoas viviam emcomunidades, ninguém precisa-va vestir-se de forma especial emcaso de morte de um ente próxi-mo, já que todos tinham conhec-imento do ocorrido. Com o pas-sar do tempo, a população

O uso do preto em cemitérios é cada dia mais raro

O anúncio da dorDANIELA FIGUEIREDO, FERNANDA BOSCHI E GABRIEL PONDE

Alex Ferro/Pedra Viva

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mundial foi aumentando, as pes-soas passaram a ser desconheci-das umas das outras e o indivi-dualismo foi se estabelecendo. “Apartir do momento em que vaitriunfando a mentalidade capi-talista, que vê na morte umaperda, o luto vai aparecendo. Osenterros passaram as ser cerimô-nias fúnebres, os familiares ti-nham que ficar por um bomtempo marcando para todomundo essa posição de luto,como forma de forçar a lem-brança do morto”, observa JoséCarlos.

Lidar com o lutoA perda de alguém querido é,

quase sempre, sinônimo de dor,angústia e até mesmo desespero.Lidar com a ausência, com acerteza de que a pessoa não irávoltar mais, pode ser um proces-so demorado e doloroso. A admi-nistradora de empresa BeatrizMoreira, de 54 anos, perdeu o

filho de 19 anos em um acidentede carro no ano passado e diz queinicialmente foi muito difícilencarar a realidade. “Osp r i m e i ros momentos foram demuita dor e angústia. Tive umasensação de que não tinha maisperspectiva de futuro. A vidaperdeu o encanto”. Mas apesarda tristeza, Beatriz conseguiuencontrar formas de amenizar osofrimento e continuar vivendo.Ela conta que foi se apegandomais à religiosidade e que teve aajuda de amigos e de grupos nainternet de mães que perderamos filhos. Além disso, escreveuum livro sobre seu filho e sobretudo que ela sentiu no ano que seseguiu à morte dele.

Segundo a psicanalista MariaC ô rtes Gondim, é import a n t epassar pelo período de luto. “Éi m p o rtante chorar exaustiva-mente, sendo o intenso apego àslembranças necessário para quese possa reconhecer, registrar e

representar internamente o fatoo c o rrido. Num luto normal, aperda é desta forma reconhecidae elaborada. É como uma feridaque vai se cicatrizando, aos pou-cos a pessoa vai voltando a seligar na vida, investindo emnovas experiências e relações”,a f i rma. Ela chama também aatenção para os perigos da pes-soa que tenta fugir do luto. “Se ap e rda for negada, o luto nãopode acontecer”.

Nestes casos, a pessoa pareceencarar o fato com resignação,podendo se mostrar até anima-da. Porém, com o passar dotempo, ela passa a apresentardesânimo e falta de vitalidade ede perspectivas, sintomas quedenunciam que o luto pela perdanão foi realizado como deveria”,acrescenta. A psicanalista diz queos principais sinais de alguémque está de luto são: desânimoprofundamente penoso, cessaçãode interesse no mundo externo,

Julho/Dezembro 200680

As viúvasUma figura importante no processo de luto, e que acabou se transform a d o

em personagem caricatural, é a viúva. Não é raro encontrar filmes quemostram a viúva sempre de negro, como uma eterna sofredora. Para oa n t ropólogo, é importante atentar para o contraste e a relação entre viúvase noivas. “De um lado, a noiva vestida de branco, simbolizando a entrada navida sexual. De outro, a viúva de preto, saindo de sua vida sexual”, observ a .

A difícil perda do marido pode significar para muitas mulheres o fim davida, a condenação à amargura e ao sofrimento. Mas para outras, a situ-ação pode se transformar na re d e s c o b e rta de si mesma. Foi o caso da dona

de casa Maria do Carmo Alves Pereira, de 81 anos. Viúva há três anos, após um casamento que durou 60anos, ela relata que, passada a fase difícil, começou a ter coragem de sair de novo. “Tive que aprender afazer outros programas, que até então eu não fazia. Hoje, faço muitos programas com minhas amigas. Éa forma que encontrei para lidar com a ausência do meu marido”, afirma ela.

A dona de casa diz que sua vida havia sido toda dedicada ao casamento, e isso tornou a perda aindamais sentida. Ela ressalta também que não usou preto após a morte do marido. Mas dona Maria doCarmo lembra que gerações anteriores à dela ainda tinham o costume de marcar o luto através do traje.“Lembro bem que, quando meu avô faleceu, minha mãe ficou de luto fechado, toda de preto, por seismeses. Depois disso o luto foi um pouco aliviado e ela passou a usar preto com branco ou xadrez. Para afilha e a neta, tinha que ser o luto aliviado, podia botar uma saia preta com uma blusa branca, semprecom essas duas cores”, conta ela.

Quino

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que parece pobre e vazio, perdada capacidade de amar e se inte-ressar por outro indivíduo, einibição de toda e qualquer ativi-dade. Mas se esses sinais perdu-rarem por muito tempo, a pessoadeve procurar uma ajuda profis-sional, pois indica que o luto jásaiu da normalidade.

O luto e suas complexidadesforam estudados pelo fundadorda Psicanálise, Sigmund Fre u d .No artigo intitulado “Luto emelancolia”, o austríaco diz qued o r, pesar e desinteresse sãoe x p ressões características dosenlutados. E destaca também asd i f e renças entre as pessoas querealizam o trabalho do luto e asque produzem melancolia. Eleconsidera que há uma disposiçãopatológica nos sujeitos que desen-volvem melancolia, pois no casoda melancolia o indivíduo sabeque houve uma perda, mas nãosabe o que exatamente se perd e ucom a morte desse alguém. Noluto, o mundo fica pobre, triste evazio, porque não há mais aexistência do objeto de amor.

Diferenças culturaisExiste, normalmente, uma for-

te tendência do ser humano deachar que sua cultura é a certa. Éo chamado “etnocentrismo”,conceito criado para fazer refe-rência ao pensamento de que

nossa própria cultura é melhordo que as demais. No entanto, oque existe, de fato, é a diferença.Diferença de hábitos, de compor-tamentos, de idéias e de visões.Com o luto acontece a mesmacoisa, as diversas sociedades eculturas encaram a morte de for-mas variadas, não existe umpadrão de luto.

Em seu livro Tabu da morte, JoséCarlos relata o modo com quealgumas culturas lidam com amorte. Para o povo Zuñi, porexemplo, o importante é que apessoa enlutada esqueça omorto. Eles se reúnem para ali-mentar o cadáver pela última veze se despedir. Então, o levampara fora da aldeia e enterramtudo o que era seu. Voltam paracasa correndo, sem olhar paratrás, trancam a porta e gravamcom uma faca uma cruz paraevitar que ele entre. O chefe falaàs pessoas, sugerindo que es-queçam o morto para sempre. Ocônjuge que sobrevive deve iso-lar-se durante quatro dias e nãodeve falar com ninguém duranteesse período.

E n t re os Guajiro, quando umapessoa morre, os outros estãop roibidos de pronunciar seunome. Na Nova Guiné, modifi-cam-se os nomes de objetos que sep a reçam com o nome do morto. Ena Sibéria, os sobreviventes tro-

cam seus próprios nomes quandoalguém próximo falece.

Mas, para José Carlos, apesardas diferenças existentes entre associedades, o tratamento dado àmorte é, no fundo, o mesmo. “Oponto de raiz é o mesmo emtodas as culturas. Em todas elasse inventam mitos que vão ocu-par o lugar da morte. Esses mitossão variações das sociedades, quegiram em torno de alguns temasbásicos: renascimento, conti-nuidade da vida, reencarnação,viagem, etc. Esses temas básicosremetem a um único tema: amorte não existe, só existe vida”,conclui ele.

Outras utilizações do pretoNão é apenas com a morte que

o uso do preto está relacionadona cultura ocidental. A cor negrapode significar ainda um gesto deprotesto e luta. Um exemplo dissofoi o processo de impeachment doex-presidente Fernando Collor deMello em 1992. Nesse momento,a cor preta representou a insatis-fação que se generalizava nopaís. Collor pediu ao povo quesaísse de verde-amarelo, manifes-tando apoio político ao seu go-verno. Entretanto, ao contráriode suas expectativas, milhares depessoas saíram de preto nas ruasem sinal de indignação com osescândalos do presidente.

P & B81

Branco como a morteNem sempre o preto é a cor que re p resenta o luto. Algumas culturas,

por exemplo, associam o branco à morte. Em certas regiões do Oriente,onde a morte é encarada como desprendimento e paz interior, o luto ére p resentado pela cor branca, que está associada à paz, à calma. Nocaso de alguns países orientais, como a China, é o branco que re p re s e n-ta o momento do luto.

Funeral na China