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Cinema de Poesia - Atravessamentos e gestos observados na obra de Júlio Bressane Clarissa Nanchery Universidade de São Paulo (USP-Brasil) [email protected] Resumen: Trazendo uma breve análise de dois filmes que marcam dois momentos da obra do cineasta brasileiro Júlio Bressane, O Anjo Nasceu (1969) e Filme de Amor (2003), retomaremos alguns conceitos pensados por Pier Pasolini (1982) e retrabalhados por Ismail Xavier (2006) e Adalberto Muller (2006) sobre Cinema de Poesia. Não falamos em adaptação, pois entendemos que geralmente há uma sobreposição de uma linguagem em detrimento a outra, falamos de um movimento dialético entre a arte de fazer poesia e fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer. Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido defendida antes. Luís Buñuel em 1958, alega que é preciso deixar as imagens fluírem com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize da poesia para criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem cronológica, os espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem a expressão concreta de sua liberdade”. 1 Dentre as primeiras impressões, citamos o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência narrativa. Não pretendemos sistematizar as características desse cinema, mas destacar alguns elementos que evidenciam o gesto poético no fazer cinematográfico, percebendo-o em formas distintas de recriar a linguagem cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do cinema. Palabras clave: Cinema de poesia - Julio Bressane - O anjo nasceu - Filme de amor 1 MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71. 1

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Cinema de Poesia - Atravessamentos e gestos observados na obra de Júlio Bressane

Clarissa Nanchery

Universidade de São Paulo (USP-Brasil)

[email protected]

Resumen:

Trazendo uma breve análise de dois filmes que marcam dois momentos da obra

do cineasta brasileiro Júlio Bressane, O Anjo Nasceu (1969) e Filme de Amor (2003),

retomaremos alguns conceitos pensados por Pier Pasolini (1982) e retrabalhados por

Ismail Xavier (2006) e Adalberto Muller (2006) sobre Cinema de Poesia. Não falamos

em adaptação, pois entendemos que geralmente há uma sobreposição de uma linguagem

em detrimento a outra, falamos de um movimento dialético entre a arte de fazer poesia e

fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer.

Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência

proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido

defendida antes. Luís Buñuel em 1958, alega que é preciso deixar as imagens fluírem

com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize da poesia para

criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem cronológica, os

espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem a expressão

concreta de sua liberdade”.1

Dentre as primeiras impressões, citamos o aspecto descontínuo e fragmentado no

texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos

que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são

colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a

insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos

chamar de incoerência narrativa. Não pretendemos sistematizar as características desse

cinema, mas destacar alguns elementos que evidenciam o gesto poético no fazer

cinematográfico, percebendo-o em formas distintas de recriar a linguagem

cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do

cinema.

Palabras clave: Cinema de poesia - Julio Bressane - O anjo nasceu - Filme de amor

1 MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71.

1

Cinema de Poesia - Atravessamentos e gestos observados na obra de Júlio Bressane

MATÉRIA DE POESIA Manoel de Barros

Todas as coisas cujos valores podem serdisputados no cuspe à distânciaservem para poesia

O homem que possui um pentee uma árvoreserve para poesia

Terreno de 10 x 20, sujo de mato - os quenele gorjeiam: detritos semoventes, latasservem para poesia

Um chevrolé gosmentocoleção de besouros abstêmiosO bule de Braque sem bocasão bons para poesia

As coisas que não levam a nadatêm grande importânciaCada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimotem seu lugarna poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:caco de vidro, garampos,retratos de formatura,servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, comopor exemplo pedras que cheiramágua, homensque atravessam períodos de árvore,se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhumae que você não pode vender no mercadocomo, por exemplo, o coração verdedos pássaros,serve para poesia

As coisas que os líquenes comem- sapatos, adjetivos -têm muita importância para os pulmões

da poesia

Tudo aquilo que a nossacivilização rejeita, pisa e mija em cima,serve para poesia

Os loucos de água e estandarteservem demaisO traste é ótimoO pobre-diabo é colosso

Tudo que expliqueo alicate cremosoe o lodo das estrelasserve demais da conta

Pessoas desimportantesdão pra poesiaqualquer pessoa ou escada

Tudo que expliquea lagartixa da esteirae a laminação de sabiásé muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;a palavra repositório eu conheço bem:tem muitas repercussõescomo um algibe entupido de silênciosabe a destroços

As coisas jogadas foratêm grande importância- como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesiasaber qual o período médioque um homem jogado forapode permanecer na terra sem nasceremem sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens da poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chegaao poema, e as andorinhas de junho.

Começamos este trabalho com uma poesia do poeta brasileiro Manoel de Barros

não para ilustrá-lo, justificá-lo ou favorecê-lo de alguma forma. O que fala o autor tem

bastante relevância para a temática aqui abordada. Interessa-nos a imersão no ar poético,

o caráter evasivo, imprescindível para se pensar poesia, mas importa notar também que

a sua matéria pode vir de coisas desimportantes e sem préstimo e que, por isso, a poesia

2

nos faz questionar valores, experimentar outras sensações. Sendo assim, a relação

cinema e poesia parece-nos evidente.

Trazendo um pequeno recorte do cinema de Júlio Bressane, retomaremos alguns

conceitos pensados por Pier Pasolini e retrabalhados na contemporaneidade. Não

falamos em diálogo entre literatura e cinema - que busca trocas interessantes entre a arte

de escrever e a arte criar a partir de imagens (e sons) em movimento - nem tampouco

em adaptação, pois geralmente há uma sobreposição de uma linguagem em detrimento a

outra. Entendendo que a poesia ultrapassa a literatura, na medida em que o ato poético

existe independente da sua forma escrita, falamos de um movimento dialético entre a

arte de fazer poesia e fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer.

Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência

proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido

defendida antes. Luís Buñuel, por exemplo, em 1958, alega que é preciso deixar as

imagens fluírem com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize

da poesia para criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem

cronológica, os espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem

a expressão concreta de sua liberdade”.2

Dentre as primeiras impressões do que vem a ser cinema de poesia, podemos

citar o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os

procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária

do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da

subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na

obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência, uma vez que o

parâmetro não é a coerência em si. Obviamente não temos a intenção de sistematizar as

características desse cinema, mas destacamos alguns elementos que evidenciam como a

poética é reconhecida e “aplicada” para além de sua implicância na linguagem, trata-se

na verdade de um gesto e, portanto, pode estar presente na comunicação oral, escrita,

cinematográfica, musical, etc.

Contribuições de Pier Pasolini e superações contemporâneas

Em suas reflexões sobre cinema de poesia, Pasolini faz uma crítica a respeito de

autores que, dado o seu amor pacífico e naturalista pelas coisas do mundo, procuram

reproduzir nos seus filmes uma linearidade familiar, “que terá o mais possível uma

duração idêntica à da realidade; outros realizadores são, pelo contrário, favoráveis a

uma montagem que torne essa linearidade o mais possível sintética (pertenço a este 2 MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71.

3

último grupo)”. 3 Uma discussão polêmica travada pelo cineasta e ensaísta diz respeito à

distinção feita entre cinema de prosa e o cinema de poesia. Segundo ele, o primeiro

equivale efetivamente a uma corrente dominante que imprimiu, desde o surgimento do

cinema industrial, convenções narrativas herdadas da língua da comunicação através da

prosa. Já o cinema de poesia está “profundamente alicerçado sobre o exercício do estilo

como inspiração, na maior parte dos casos, sinceramente poética”, “um cinema onde o

verdadeiro protagonista é o estilo.” 4

Para Pasolini, a transmutação da técnica do “discurso indireto livre” (da

literatura) numa “subjetiva indireta livre” é a operação fundamental de passagem à

linguagem de poesia no cinema. Tomando como parâmetro três cineastas

contemporâneos seus – Godard, Bertolucci e Antonioni – Pasolini expõe o quanto já

não se sustentavam os elementos de uma narrativa clássica (a narrativa indireta objetiva,

sob o ponto de vista da câmera, e a narrativa direta subjetiva, do ponto de vista do

personagem) transmutando-se tais elementos numa subjetiva indireta livre em que os

dois tipos de imagens dialogam, de modo a não discernimos o que é visto pela câmera e

o que é visto pelo personagem. Por isso, o cinema de poesia emergente para Pasolini

apresenta um conjunto de filmes duplamente caracterizados: 1) o filme visto é uma

subjetiva indireta livre “por vezes irregular e aproximativa”, cujo realizador aproveita-

se de um “estado de alma psiquicamente dominante do filme”, operando uma

permanente mimese “que lhe permite uma grande liberdade estilística, anômala e

provocativa”; 2) sob esse filme, corre um outro que o realizador “teria feito mesmo sem

o pretexto da mimese visual do seu protagonista”, filme cuja consistência é “inteira e

livremente expressivo-expressionista”.5

Ismail Xavier retoma um conceito interessante, advindo da filosofia, que é a

nomenclatura que define a ciência das causas finais: a teleologia, em que tudo tem uma

lógica conclusiva que deve ser alcançada através de passos encadeados. Acreditamos que a

recusa da narrativa, do naturalismo e da linearidade por Pasolini passam muito mais

pela recusa à teleologia do que à prosa em si, uma vez que muito dos seus próprios

filmes advém de grandes narrativas e a sua opção cinematográfica continua sendo por

contar as histórias (Evangelho Segundo São Mateus, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma,

Medeia, As mil e uma noites etc.), ainda que seu estilo seja um grande protagonista nos

filmes.

Adalberto Muller desmistifica ainda mais a questão e nos provoca a ideia de que,

se uma das marcas fundamentais no cinema de poesia é o protagonismo do estilo, é

3 PASOLINI, P. P. Empirismo hereje. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. p. 188-9.4 I.d. 1515 PASOLINI, 1982. p. 149

4

preciso dizer que tal cinema não deve estar necessariamente associado a obras de arte

herméticas, sobretudo em relação ao que destacou Pasolini acerca de procedimentos do

cinema de poesia: “contraluzes com reflexos na câmera, movimentos manuais de

câmera, travellings exasperantes, montagens falseadas, raccords irritantes”. Muller

reflete sobre o fato de que estes recursos já não são tão especiais ao cinema de arte e de poesia.

Ocorre que muitos dos procedimentos técnicos do “cinema de poesia” voltaram à

tona no cinema contemporâneo, e não apenas em filmes experimentais, ou de

vanguarda. Pode-se encontrar esses procedimentos em filmes produzidos para o

grande público, e até mesmo em programas televisivos ou em filmes publicitários, o

que contribui para tornar ainda mais difícil uma separação muito rígida entre o

cinema dito “de arte” e o cinema dito “industrial”. Fala-se hoje de produtos híbridos,

nos quais as fronteiras entre o poético e o massivo tende a diminuir sensivelmente,

pelo menos do ponto de vista dos procedimentos (das estratégias).6

Houve muitos períodos, entretanto, que algumas escolhas do autor pareciam

fazer parte de um gesto contestatório, que fugisse de forma bastante evidente das formas

padronizadas. Gestos de negação um tanto quanto agressiva que se davam através de

uma composição poética radical.

Os gestos poéticos em Júlio Bressane

De acordo com Ismail Xavier, o período de 1969-70 foi o “momento heróico” da

recusa da teleologia e, nos filmes de Bressane, foi notável (e motivo de polêmica) o

gesto de suspensão abrupta do fluxo das ações, um cinema que fazia ataques

coordenados às instituições7. O cinema de poesia em Julio Bressane surge de rupturas: à

convencionalidade narrativa, ao Cinema Novo, “descartando o pacto com o público “e o

cinema de conscientização”. E ele vai além da separação proposta por Pasolini quando

este afirma que a entrada do cinema na fase de industrialização e a introdução do som

fizeram dele uma ‘língua de prosa narrativa “8, entendendo que a poesia estava na

origem, no cinema mudo.

Se nas imagens a intencionalidade poética surge através de fluxos descontínuos

da imagem e do texto, podemos imaginar que o pensamento musical deve ser

representado com a mesma descontinuidade. No filme O Anjo Nasceu (1969) temos até 6 MULLER, A.“O cinema segundo Pasolini ou a língua escrita da realidade” Publicado em: Devires (UFMG), Belo Horizonte, n. 3, 2006.7 XAVIER, Ismail. Revista Alceu. v. 6. n. 12. 2006. “Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética”. p. 5. Disponível em: <http://www.publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n12_Xavier.pdf> Acesso em: 13 de julho de 2011

8 PASOLINI, 1982, p. 190.

5

uma narrativa identificável: dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de

violência. Santamaria, místico, acredita que assim está se aproximando de um anjo que

lhe limpará a alma. Urtiga, um marginal ingênuo, segue os passos do amigo. Embora a

história não seja considerada plausível temos a impressão de que ela terá um desenlace,

mas as intervenções sonoras nos fazem atentar que se trata de uma experiência radical e

que, portanto, não devemos esperar o seu desenrolar coerente. Essa falta de coerência

narrativa e musical desconcertante e desestabilizadora sem dúvidas marcou o estilo

bressaniano.

Desde as grandes óperas e apresentações teatrais, bem antes do cinema pensar

em existir, a música sempre assumiu o forte papel de influenciar, potencializar ou

alterar carga dramática da narrativa. Sabemos que o timbre, o ritmo, a altura, a melodia,

o contraponto, a harmonia de uma música mexem com nossas sensações e com nosso

imaginário, portanto a escolha de uma música para uma cena nunca será aleatória. As

críticas em torno da escolha de uma trilha musical geralmente destacam o caráter

impositivo das músicas utilizadas, como se o diretor dissesse “agora é a hora de você se

emocionar”, “agora é hora de você sentir medo”, “sentir pena”, “sentir que é livre” etc.,

como se houvesse um contrato pré-estabelecido.

De fato a música tende o controlar as emoções, colocando todos os espectadores

numa mesma redoma sonoro-sensitiva. E ao mesmo tempo a música nos protege. Se

pensarmos nas projeções dos primeiros filmes acompanhadas por um piano ou

orquestração, notamos que a música tende a suavizar, a aliviar o impacto das imagens

que pairam como fantasmas num ambiente etéreo, numa tela branca. É como se

fizéssemos um “pacto de proteção” através da intervenção sonora. Mas ao autor que

realiza uma obra considerada cinema de poesia certamente interessa mais recriar,

restabelecer pactos, “desnaturalizar” as emoções promovidas pela música.

Em O anjo nasceu a falta de obviedade sonora trata-se de uma criação poética.

Nas primeiras cenas, após longos planos silenciosos de ilustrações do fundo do mar,

surge a imagem de um dos bandidos ferido e, na sequência, duas mulheres mortas. Tudo

isso está embalado pelo som de um samba “Agora é cinza”,

Você partiu

Saudades me deixou, eu chorei

O nosso amor foi uma chama

Que o sopro do passado desfaz

Agora é cinza

Tudo acabado e nada mais

[…]

6

O episódio é mostrado em fragmentos muito entrecortados e de trás para frente,

quase como um videoclipe. Assim fica explícito, logo no primeiro contato, que o

espectador irá se debater com as escolhas tomadas pelo autor.

Mesmo a trilha musical contradizendo as imagens em grande parte do filme, os

recursos sonoros diegéticos são muito explorados e esse procedimento sugere que

imagens são factíveis, embora tudo pareça muito absurdo. O autor nos põe, assim,

diante de um conflito. É bastante manifesto o ruído do carro, das cadeiras riscando o

chão, da água caindo no copo, a risada escandalosa do bandido Urtiga na sala de cinema

ou o som agonizante dos gritos de dor que Santamaria sente com a sua perna machucada

dentro do carro. Nesta última (longa) cena, a imagem não nega o som e vice-versa, no

entanto ela é sucedida por um plano geral do carro seguindo pela estrada deixando um

grito de dor infinito sendo substituído por uma canção ingênua diante do que estamos

vendo: Peguei um Ita no Norte, de Dorival Caymmi.

7

Peguei um Ita no norte

Pra vim pro Rio morar

Adeus meu pai, minha mãe

Adeus Belém do Pará

Ai, ai, ai, ai

Adeus Belém do Pará

Ai, ai, ai, ai

Adeus Belém do Pará

Vendi meus troços que eu tinha

O resto dei pra "aguardá"

Talvez, eu volte pro ano

Talvez eu fique por lá

Este mesmo longuíssimo plano final (tem quase 10 minutos de duração) terá

ainda como trilha musical o som desordenado de uma bateria com sax e piano, o

barulho de um monitor cardíaco, instrumentos de corda, enfim, sons muito controversos

com um plano fixo magnânimo que nos levam a pensar em inúmeros desfechos para a

dupla de marginais.

Como apontou Ismail Xavier, neste primeiro momento do cinema bressaniano

havia o cenário do ressentimento, onde personagens em desespero assumiam o crime

como forma de reação catártica, personagens desesperançosos que se desestruturam a

partir das suas próprias ações ou se encolhem ainda mais. Havia também a evocação

constante do samba como sublimação e promessa de superação do exílio em sociedade,

ou seja, as justaposições entre música e imagem, em princípio, incoerentes podem ter

uma congruência implícita.

Embora haja evidências de que o Cinema Marginal não tenha surgido apenas

como um enfretamento ao Cinema Novo, estamos falando do momento mais importante

da cinematografia nacional e não há como negar que havia uma arena de disputa

cultural, sobretudo com a estandardização que o Cinema Novo vinha conquistando, o

que era ironizado pelo Cinema Marginal. Queremos destacar então que esse primeiro

8

momento da obra bressaniana era marcado por um enfretamento direto, cujo opositor

era identificável. Mas devemos notar também que os grandes nomes desse movimento,

Bressane e Sganzerla, já na época discordavam da expressão Cinema Marginal, já que

não faziam um cinema com propósito de ficar à margem dos circuitos exibidores, mas o

contrário: os circuitos exibidores e a censura o marginalizaram Nesse sentido, Bressane

não carregava consigo um estilo propriamente marginal, mas estava experimentando ali

seu gesto poético, contestatório sim, porém mais do que isso, começava a mostrar suas

próprias marcas poéticas.

Permitimo-nos a fazer uma análise muito breve que pode ser considerada

prematura, por se concentrar em apenas dois filmes, mas que já nos revelam muitos

indícios do cinema de poesia bressaniano. Destacamos então um filme realizado mais de

trinta anos depois de O Anjo Nasceu, o Filme de Amor (2003), que não utiliza os

mesmos procedimentos do primeiro, não enfrenta as mesmas questões culturais, mas

ainda assim podemos encontrar pontos de congruência: o estado de transcendência da

história ou dos personagens é um deles; no primeiro o transe se dá pelo crime, no

segundo, pelo prazer. Acreditamos que as marcas de poesia de Bressane são notáveis

desde seus primeiros filmes e extrapolam objetivos contestatórios dentro do espaço e do

tempo, em relação a determinados comportamentos e movimentos.

Em Filme de Amor, três amigos de vidas muito simples se reúnem numa casa

vazia movidos pelo desejo inconsciente de transcender sua existência para se entregar

ao prazer e divagar sobre o amor. Trata-se de uma fábula popular livremente inspirada

no Mito das Três Graças associadas ao amor, à beleza e ao prazer e que reflete o triplo

benefício das graças: dar, receber e retribuir, simbolismo que é o princípio de todo

sentimento amoroso, desde a antiguidade. Os personagens vivem assim uma espécie de

intervalo de suas vidas medíocres para entrarem em contato com um episódio aleatório

de fruição. Há uma abordagem muito mais sofisticada com relação à experiência

estética dos personagens, em detrimento ao filme de 1969 (mais atrelado à degradação

individual e a desestrutura social). Nesta fase mais contemporânea, os personagens são

pautadas pela grandeza e não pelo acanhamento, pela invenção e não pelo recalque;

capazes, portanto, de transfigurar horror e sofrimento em experiência de criação a

serviço da vida9. Mas a o estado de transe dos personagens, a iniciativa do autor de

enfrentar o espectador, de sugerir-lhe sensações por meio de imagens e sons com que

nós nos conciliamos, rejeitamos, ou ressignificamos e a mistura de diferentes

referências e manifestações artísticas são marcas que não se dissolveram ao longo de

trinta anos da obra de Bressane. Entendemos que a justaposição desses gestos

9 XAVIER, 2006. p.23

9

cinematográficos só é possível no cinema de poesia, ou melhor, que o filme que se

permite ousar a partir de expressões subjetivas alegóricas e justapostas caracterizam

esse cinema de poesia.

Em algumas entrevistas concedidas por Julio Bressane, o cineasta deixa claro

que fazer cinema é uma questão de necessidade pessoal, um instrumento de

autotransformação e que este ato exige leitura, armazenamento, pois toda arte é alusiva

“e quanto mais repetição, quanto mais parecença, quanto mais citação, mais forte é o

objeto artístico” 10. Filme de Amor parece ser uma síntese de tudo isso, suas

inquietações e o desejo de expressão estão presentes e percebemos o quanto o

armazenamento cultural foi determinante para a composição da obra, que tem inspiração

em um mito da antiguidade clássica e cuja organização imagética faz explícita

referência aos quadros de Balthus que retratam a sensualidade, o que nos leva ao

encontro do erótico de forma sutil e muito trabalhada.

Menina no espelho III

A lição de guitarra

10 Revista Cinemais, número 6, julho/agosto de 1997, páginas 7 a 42.

10

Nu com gato

Nu na banheira.

As primeiras imagens do filme mostram que o que se vê é objeto de uma

criação, integra-se o fora de quadro para dentro do quadro, absorvendo a sua

exterioridade material, como se o diretor fizesse a opção de voltar a câmera para o

próprio ato de criar o cinema: a filmagem, os ruídos dos bastidores, que nada têm a ver

com a imagem subseqüente: os três personagens na praia num dia ensolarado e com

uma representação quase teatral por ser muito marcada.

11

Ismail Xavier já havia destacado a presença dos bastidores, com o diretor

tomando providências, a aparição da claquete ao longo da obra de Bressane, o que

mudou de função e sentido conforme o momento. Conforme termo apresentado por Noel

Burch, no período entre 1969-70, a presença do bastidor ficou associada a “estruturas de

agressão”, que funcionava como um toque de subversão. Em O anjo nasceu e Matou a família

e foi ao cinema (1969), essa subversão podia estar associada “à desconstrução, à denúncia da

representação e do ilusionismo. Já em O rei do baralho (1973), por exemplo, os bastidores

mostrados na abertura do filme têm outra função. Fazem parte da estrutura em mosaico, já

definem desde o início o que será a regra do jogo em todo o filme”.11

Acreditamos, no entanto, que mais do que buscar uma funcionalidade dentro do período

de criação do cineasta, esta prática equivale a um “cacoete” proposital do autor, uma marca que

ele quer sempre reiterar, seu estilo, sua poesia. Essa prática, que evidencia os aspectos não-

diegéticos e não-lineares do fazer cinematográfico, traz à tona uma discussão

metalinguística, metafílmica, pondo em questão o próprio filme. Em Filme de Amor tal

discussão não está somente no plano das escolhas imagéticas, o questionamento do ato

de criar está presente na fala e nos gestos dos personagens – que ensaiam, que são 11 XAVIER, 2006. p.11.

12

observados de um mesmo ângulo, em cores e em preto e branco, e isso nos provoca a

sensação de que cada take, foi aproveitado, como versos aleatórios, que não precisam de

coerência entre si, não são analisados se estão corretos ou errados para compor a poesia.

Em determinada cena, a personagem Hilda (interpretada por Bel Garcia)

questiona também a própria linguagem: “Os idiomas, nós sabemos, não são sinônimos.

Uma língua é uma maneira de sentir o mundo, um modo único de sentir o mundo. Pelas

coisas audíveis e visíveis, chegamos às coisas inaudíveis e invisíveis.” A frase parece

sugerir o pensamento bressaniano, que nos defronta com imagens e sons para nos

provocar sensações e, de fato, o filme constitui-se como um grande bloco de sensações

que revela as percepções vividas pelos personagens em meio a divagações verbalizadas,

mas que só fazem algum sentido para o espectador se ele se permite a vivenciar as

sensações provocadas.

Outro ponto interessante de se observar diz respeito aos posicionamentos e

movimentos de câmera elegidos por Bressane. O “olhar” que ele lança é especial, a tal

ponto que, mesmo numa percepção pouco atenta nos perguntamos: “onde estava essa

câmera?”, “que movimento o ator estava fazendo para surgir na tela assim”?

É notável que o cineasta brinca com os planos e com os movimentos de câmera e o faz

desafiando o espectador, pois age com mais liberdade face à diegese, “(...) pois a

câmera, em Bressane, diverge. E o mundo diegético se fragmenta, podendo chegar a

13

uma presença radicalmente residual . A câmera perambula, cria seu próprio interesse, ou

se assume como extensão do corpo” 12, criando uma coreografia própria. Neste ponto

encontramos um diálogo com a operação pasoliniana de linguagem de poesia no cinema

a partir da subjetiva indireta livre, considerando a indiscernibilidade diante do ponto de

vista de uma câmera. Vemos em Filme de Amor que o olhar da câmera, o olhar do

personagem e as suas sensações se confundem dependendo do posicionamento e

movimento da câmera criados.

A propósito, em O Anjo Nasceu, embora as tomadas sejam mais objetivas e

explorem menos o universo subjetivo dos personagens, a câmera assume seu objeto de

interesse, como se “olhasse” cenas que ela mesma escolhesse, de forma um tanto quanto

independente da trajetória dos personagens. Esse procedimento fica muito explícito

quando, no momento em que os criminosos estão com as suas futuras vítimas - todos

sentados à mesa, eles ironizando a situação na qual as vítimas se encontram, surge em

corte seco, sem nenhuma explicação, a cena de um casal de noivos sendo fotografados

num parque, com crianças correndo, música alta. A sequência dura mais de dois

minutos e é sucedida, também sem nenhuma explicação, pela imagem dos criminosos e

das vítimas em outro cenário.

. .

Da mesma maneira alegórica, como se a câmera quisesse respirar novos ares, há

uma cena em que a dupla Santamaria e Urtiga estão caminhando, a câmera acompanha 12 XAVIER, 2006. p.10.

14

até certo ponto essa trajetória, mas depois pára e nos deixa diante de um plano geral do

alto do morro, durante cerca de meio minuto. Somos levados a constituir assim um

espaço que, no filme, aparece desativado. O espectador olhando aquela paisagem

daquele determinado ponto faz com que aquele espaço não esteja mais vazio e o tempo

dedicado a olhar tal cena não seja apenas um plano longo, estamos participando da cena.

Bressane descarta então o princípio clássico de que tudo deve girar em torno da

cena e se reserva o direito de se afastar a câmera, deixá-la atenta ou não aos

personagens, pois estes equivalem apenas a uma parte dos elementos que compõem o

filme. “Há um espaço de reflexão que não depende das ações, embora possa estar

referido a elas, espaço que se enriquece pelo estilo disjuntivo” 13 de um olhar que não é

pautado apenas pelo movimento dos personagens.

Voltando ao Filme de Amor, gostaríamos de finalizar a análise ressaltando a

criação de um universo muito particular pelo qual os três personagens são absorvidos.

Sabemos que eles não pertencem à casa onde estão, pois acompanhamos, no começo do

filme, todos na praia, depois no trem, andando pelas ruas até chegarem lá. Mas é curioso

observar que nós nos acostumamos com aquele estado de evasão e transcendência no

qual eles mergulharam e, ao saírem e voltarem às suas vidas cotidianas – como

cabeleireiro, manicure e ascensorista de elevador – o que causa estranhamento é

justamente essa realidade tão comum. Por conta disso é que a criação poética de evasão

em Bressane é tão forte, ele consegue nos envolver no estado catártico que ele mesmo

cria.

Observamos então alguns gestos poéticos realizados por Júlio Bressane, mas

sem a intenção de categorizar a maneira como cria seus filmes, muito menos com o

objetivo de sistematizar determinados procedimentos que podem ou não ser

13 XAVIER, 2006. p.9.

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considerados cinema de poesia. Como exercício de análise, foi interessante perceber que

o gesto poético está presente em formas distintas de recriar a linguagem

cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do

cinema. De maneira geral o que se estabelece como poético depende muito da

sensibilidade do autor em captar esses mecanismos distintos e levá-los para dentro da

obra. De fato, a concepção moderna de poesia está essencialmente enraizada no

indivíduo, na subjetividade. Adalberto Muller aponta para a definição hegeliana de

poesia como forma artística na qual o espírito (a interioridade) se manifesta com maior

grau de liberdade em relação à exterioridade. A poesia se realiza, antes de em qualquer

outro meio de expressão, no espaço interior, mas ao ser exteriorizada toma formas até

certo ponto autônomas, por isso entendemos que o cinema de poesia é uma expressão

dialética por natureza, pois depende da dedicação inicial do gesto poético do autor, mas

ao ser realizada cinematograficamente extrapola sua idealização. O próprio Bressane

afirmou que a arte é como um organismo vivo que escreve a si mesmo, mais criadora do

artista que criação dele, “e o cinema, nesse sentido, é devastador; você faz, imagina que

controla e o que de fato controla deve significar uns cinco por cento do filme”.14

Bibliografia:

BERNARDET, J-C, XAVIER, I. & PEREIRA, M . O desafio do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1985.

HEGEL, G.W.F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 1999.

MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina.

MULLER, A.“O cinema segundo Pasolini ou a língua escrita da realidade” in Devires (UFMG), Belo

Horizonte, n. 3, 2006. p. 88-105.

PASOLINI, P. P. Empirismo hereje. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982.

RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo:

Brasiliense/Embrafilme, 1987.

Revista Cinemais, “Entrevista a Júlio Bressane”. nº 6, julho/agosto de 1997, p.7 a 42.

Revista Cinemais “Cinema de poesia” nº 33, janeiro/março de 2003.

XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993

_________. Revista Alceu. v. 6. n. 12. 2006. “Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética”.

Disponível em: <http://www.publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n12_Xavier.pdf> Acesso

em: 13 de julho de 2011

14 Revista Cinemais “Cinema de poesia” nº 33, janeiro/março de 2003.

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