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um sabiá sujo

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Coleção Meio de Cultura

Comissão ExecutivaMarcelo Knobel (coord.) – Cristina Caldas

Germana Barata – Osvaldo Novais de Oliveira Jr. Reinaldo José Lopes

Universidade Estadual de Campinas

ReitorMarcelo Knobel

Coordenadora Geral da UniversidadeTeresa Dib Zambon Atvars

Conselho Editorial

PresidenteMárcia Abreu

Ana Carolina de Moura Delfim Maciel – Euclides de Mesquita NetoMárcio Barreto – Marcos Stefani

Maria Inês Petrucci Rosa – Osvaldo Novais de Oliveira Jr.Rodrigo Lanna Franco da Silveira – Vera Nisaka Solferini

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um sabiá sujoa aventura científica sobre

a descoberta de uma ave e de um continente

marcos rodrigues

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isbn 978-65-86253-56-6

R618s Rodrigues, MarcosUm sabiá sujo: a aventura científica sobre a descoberta de uma ave e de um continente /

Marcos Rodrigues. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2020.

1. Biogeografia. 2. Zoologia. 3. Evolução. 4. História natural. 5. Ornitologia. I. Título.

cdd – 574.9 – 591 – 575 – 500.9 – 598.2

sistema de bibliotecas da unicampdiretoria de tratamento da informação

Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro – CRB-8a / 1724

Copyright © Marcos RodriguesCopyright © 2020 by Editora da Unicamp

As opiniões, hipóteses, conclusões e recomendações expressas neste livro são de responsabilidade do autor e

não necessariamente refletem a visão da Editora da Unicamp.

Direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998.É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização,

por escrito, dos detentores dos direitos.

Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à

Editora da UnicampRua Sérgio Buarque de Holanda, 421 – 3o andar

Campus UnicampCEP 13083-859 – Campinas – SP – Brasil

Tel.: (19) 3521-7718 / 7728www.editoraunicamp.com.br – [email protected]

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meio de cultura

Nosso cotidiano é permeado de ciência e tecnologia. Mas o que é ciência? Como é feita? Quem a faz? E a tecnologia? A coleção Meio de Cultura traz textos que, em linguagem acessível a todos (e às vezes divertida), apre­sentam os caminhos e descaminhos da ciência e da tecnologia. Neles encontramos histórias de sucessos e fracassos, contradições e embates, enigmas e polêmicas da ciência e da tecnologia na sociedade – uma bússola para explorar a cultura científica até as fronteiras do saber.

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A Luisa, Tatiana e Camilla.E a meus colegas que participaram ativamente desta aventura,

Anderson, Guilherme, Jordana, Lílian, Marcelo e Fabrício.

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sumário

apresentação ....................................................................................................................................... 11

seção i: o mundo em transformação

1 nas montanhas do sudeste do brasil .............................................. 18

2 o sabiá sujo .................................................................................................................................... 23

3 ceticismo ........................................................................................................................................... 25

4 as escolhas de helmut sick .............................................................................. 30

5 férias em urubici ................................................................................................................. 46

6 helmut sick descobre o pedreiro .......................................................... 55

7 sick descreve o pedreiro cinclodes pabsti ............................. 67

8 nomenclatura zoológica ................................................................................... 79

9 relicto glacial ...................................................................................................................... 83

10 a origem das espécies ................................................................................................... 93

11 a balada do velho senhor wallace .................................................. 101

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12 especiação geográfica ............................................................................................. 114

13 humboldt, os limites da vida e o pico das agulhas negras ...................................................................................................................... 119

seção ii: os rabos-de-cardo

14 a garrincha-chorona ................................................................................................ 134

15 chá em londres com a sentinela das montanhas ...... 139

16 helmut sick sente uma pulga atrás da orelha ............. 151

17 os ninhos da ira e a amante ressentida ..................................... 158

18 rumo a santa cruz de la sierra ................................................................. 170

seção iii: os lenheiros

19 chuva de granizo e mais uma espécie .............................................. 180

20 os campos rupestres ...................................................................................................... 184

21 o mundo perdido .................................................................................................................. 193

22 brigam frança e inglaterra ........................................................................... 199

23 controvérsias que trazem o conhecimento ..................... 205

24 viagem à américa e a redescrição do joão-cipó ......... 212

seção iv: os pedreiros

25 em busca do pedreiro perdido ..................................................................... 218

26 os genes da discórdia ................................................................................................. 228

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27 os pedreiros – o condor passa ..................................................................... 235

28 a conexão com as florestas anãs .......................................................... 244

29 no ar rarefeito ..................................................................................................................... 253

30 o salar de uyuni ................................................................................................................... 261

31 a lagoa vermelha .............................................................................................................. 266

32 chá no atacama ..................................................................................................................... 279

33 o pedreiro-marítimo .................................................................................................... 287

34 terra do fogo: em busca de mais um extremista ........ 298

35 ilhas malouines ou malvinas-falklands ................................... 312

36 o dna dos pedreiros ....................................................................................................... 318

seção v: o sabiá sujo

37 o pedreiro-do-espinhaço ...................................................................................... 330

38 evidências ........................................................................................................................................ 337

39 nas montanhas do sudeste do brasil mais uma vez ................................................................................................................................................. 343

referências bibliográficas ........................................................................................ 353

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apresentação

Quando a bordo de H.M.S. Beagle, como naturalista, fiquei muito impressionado com certos fatos na distribuição dos habitantes da América do Sul e nas relações geológicas do presente com os habitantes do passado desse continente. Es­ses fatos me pareciam lançar alguma luz sobre a origem das espécies – esse mistério dos mistérios, como foi chamado por um dos nossos maiores filósofos.

Charles Darwin

A primeira frase de Darwin em A origem das espécies não poderia ser mais reveladora e atual. Reveladora porque escan­cara o papel crucial de suas viagens à América do Sul para o desenvolvimento de seu pensamento científico. Afinal, a Amé­rica do Sul é, de longe, o continente com a maior diversidade de paisagens e a maior diversidade de plantas e animais do planeta. O deserto mais seco, a floresta pluvial mais úmida, a cordilheira de montanhas mais longa, os rios mais caudalosos, glaciares, salares, pântanos, savanas, florestas temperadas, cha­parrais, planícies, florestas sazonais e tantos outros microam­bientes podem ser encontrados em várias partes deste conti­nente. Não é necessário dizer que sua flora e sua fauna são extremamente diversificadas e ainda pouco conhecidas – e, portanto, subestimadas. A frase de Darwin também é atual porque, ainda hoje, certos episódios sobre a distribuição dessa enormidade de espécies geram dados, fatos e questões que lan­çam luz sobre a origem das espécies, a origem da vida e sua evolução neste planeta azul, o mistério dos mistérios.

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Um sabiá sujo

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Este livro é uma viagem a este continente sob a luz de uma espécie de ave que só foi descoberta em 2007 e formal­mente descrita em 2012. A ave inicialmente parecia nada mais que um sabiá sujo, mas hoje é conhecida como pedreiro­do­­espinhaço. À primeira vista, a descoberta de uma nova espé­cie, mesmo que seja de uma ave ou de um mamífero, fato cada vez mais raro, não suscita mais interesse à comunidade cien­tífica. Afinal, existem mais de dez mil espécies de aves no planeta. Qual seria a importância de mais uma espécie neste contexto de milhares? Na realidade, a descoberta do pedreiro­ ­do­espinhaço representou um enigma biogeográfico, pois a espécie pertence a um grupo que ocorre tipicamente nas altas montanhas da Cordilheira dos Andes e nos frios campos da Patagônia. Como poderia ter surgido nas montanhas de Mi­nas Gerais, local tão distante dos Andes e da Patagônia? É sobre esse paradoxo biogeográfico que discorrerei nas pági­nas seguintes.

O livro está dividido em cinco partes, sendo a primeira delas um preâmbulo sobre os bastidores da descoberta da nova espécie de ave, o tal sabiá sujo, e como ela suscitou uma discus­são sobre a história geológica da América do Sul. Empreendo viagens à Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial; subo o mais alto vulcão do planeta com Alexander von Humboldt; navego pelo rio Amazonas junto a Alfred Russel Wallace; acampo com Peter e Rosemary Grant em uma caverna de uma pequena ilha isolada e sem água doce do arquipélago de Ga­lápagos e rememoro minhas observações feitas nas mais altas montanhas do Brasil. Concluo que algumas descobertas cien­tíficas mostram inequivocamente que vivemos em um mundo em transformação e que todas as espécies do planeta evoluem conjuntamente com a história dele.

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Apresentação

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A segunda parte é dedicada à descoberta de uma pequena espécie de ave no Pico das Agulhas Negras. Trata­se de uma espé­­cie que pertence a um grupo conhecido como rabos­de­cardo, e, para me certificar disso, empreendo uma viagem à Londres do início do século XX, onde encontro alguns renomados na­turalistas numa mesa de chá em um chique restaurante. Esse rabo­de­cardo me leva a procurar mais detalhes sobre o para­doxo de encontrar espécies típicas da Cordilheira dos Andes em pleno Sudeste do Brasil. Como? A resposta deve estar nos Andes, e, por isso, visito Cochabamba, Potosí (a Cidade do Ouro) e o altiplano boliviano.

A terceira parte relata outra descoberta que confirma o paradoxo de mais uma espécie de ave andina habitando as montanhas do interior do Brasil. Dessa vez, trata­se de um le­nheiro, que faz seus ninhos em forma de uma enorme cesta fechada. Mais um enigma biogeográfico para ser estudado. As­sim, vou aos campos rupestres, um ecossistema único onde faço uma viagem lisérgica às montanhas da Namíbia e da Áfri­ca do Sul para conhecer a história da planta mais típica desses campos.

Na quarta parte relato a jornada em busca dos irmãos do pedreiro­do­espinhaço, que já não é mais apenas um sabiá sujo. Descubro que seus irmãos vivem nos ambientes mais ex­tremos da América do Sul, desde o deserto mais seco até o tormentoso cabo Horn. Durante a viagem encontro Pablo Ne­ruda, o capitão James Cook e, claro, Charles Darwin.

Na última parte do livro, descrevo os bastidores do acha­mento do pedreiro­do­espinhaço, numa saga extenuante pelos campos rupestres da Cadeia do Espinhaço. Os pontos se ligam. O paradoxo da ocorrência das espécies andinas em pleno Su­deste brasileiro é revelado.

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Escrevi essa história em formato de ficção. Por isso é um livro de divulgação científica, e não um livro técnico. Escrevi para estudantes que cursam o nível médio e que estejam na fase de escolher uma carreira ou uma profissão. Assim, espero que eles tenham uma vaga ideia do que é a Ciência Biológica, e, mais especificamente, as atividades empregadas por biólogos de campo. Escrevi para os ornitólogos amadores, os observa­dores de aves, ávidos por conhecer as histórias e estórias que cercam as descobertas das espécies, ou desejosos por apenas compreender melhor o mundo que têm diante dos olhos. Es­crevi para os meus alunos de graduação, que, embora já te­nham escolhido uma carreira, pouco ainda conhecem sobre os bastidores que encontrarão num futuro próximo. Escrevi para cientistas de outras áreas do conhecimento, para que eles fi­quem a par do que fazem os naturalistas que só vivem enfiados no meio do mato. Escrevi para os meus colegas de profissão, os ornitólogos profissionais do mundo todo, na esperança de que eles encontrem vários espelhos ao longo dessa viagem. Na ver­dade, espero que eles contem as suas histórias também. Final­mente, e talvez principalmente, resolvi contar essa história para que minhas filhas pudessem entender o que eu andei fazendo nesses anos antes de elas nascerem.

Uma viagem dessas não poderia ter sido feita por apenas um homem. Por isso, tive imensa ajuda de várias pessoas às quais eu gostaria de agradecer. As primeiras são as pessoas que me incentivaram inicialmente a escrever, abrindo as portas e me convidando a enviar meus textos ao blog do jornal eletrônico Oeco, Fábio Olmos e Eduardo Pergurier. Agradeço especial­mente ao naturalista e amigo Marcelo F. Vasconcelos por me introduzir à Serra do Cipó, à Cadeia do Espinhaço e a todos os seus mistérios biogeográficos. Todos os capítulos tiveram a

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Apresentação

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participação decisiva, com críticas e novas ideias, de Marco A. Pizo (Unesp), Caio G. Machado (UEFS), Mauro L. Triques (UFMG) e Isaac Simão (ICMbio). Alguns capítulos tiveram a valiosa contribuição de Marcelo F. Vasconcelos, Guilherme Freitas, Lílian M. Costa, Jordana D. Ferreira, Fernando Straube, José Fernando Pacheco, Luiz Pedreira Gonzaga e Ana Carolina Neves. Tulaci Bakthi teve participação decisiva na elaboração dos mapas e Marina Lodi na das figuras. Agradeço a Mariana Clark e a sua equipe da Oficina Só Português pela revisão do texto. Beatriz Marchesini, revisora da Editora da Unicamp, teve um papel fundamental na edição final do manuscrito.

Obviamente, agradeço às instituições de fomento à pes­quisa que financiaram a maioria dos meus trabalhos, entre elas, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno­lógico (CNPq), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

Agradeço também a todos os meus estudantes que parti­ciparam direta ou indiretamente no desenvolvimento de vários projetos científicos que eu coordeno na Universidade Federal de Minas Gerais.

Finalmente, agradeço à minha família, especialmente à minha esposa Luisa, por ter compreendido a minha necessi­dade de solidão diante da tela do computador enquanto escre­via este livro.

Lagoa Santa, março de 2020

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seção i

o mundo em transformação

A superfície da Terra tem se transformado continuamente durante a história da vida. Continentes se movem, mares ex­pandem­se e contraem­se, cadeias de montanhas se erguem e são erodidas, ilhas aparecem e desaparecem e as glaciações avançam e recuam.

James Brown & Mark Lomolino

Figura 1. A América do Sul, seus países e as principais localidades relata­das neste livro.

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capítulo 1

nas montanhas do sudeste do brasil

A vista do cume de uma montanha ajuda muito a ampliar os conceitos. [...] tudo o que é pequeno some, só fica o que é grande.

Schopenhauer

Lá estava eu com minha esposa e filhas (uma de sete e outra de oito anos) à beira da grande lagoa de Lapinha da Ser­ra, um pequeno vilarejo na Serra do Cipó, entre algumas das mais altas montanhas do Sudeste do Brasil. Binóculos em pu­nho, observando um passarinho. A princípio uma avezinha sem importância, muito parecida com um joão­de­barro.

A Serra do Cipó é um conjunto de montanhas íngremes que faz parte da Cadeia do Espinhaço, uma cordilheira que cruza de norte a sul a porção centro­oriental do Brasil nos es­tados de Minas Gerais e Bahia. Ela é formada por rochas anti­quíssimas do período conhecido por Pré­Cambriano em am­biente de mares interiores. As escarpas estão orientadas no sentido de norte­noroeste, e têm altitude de 800 até 1.700 me­tros. No alto da serra existem planaltos extensos com relevo ondulado e alguns morros, ou conjuntos de morros, que so­bressaem e possuem diferentes nomes.

“Aquele é o passarinho que seu pai descobriu: o pedreiro­­do­espinhaço”, disse Luisa apontando para a pequena ave que

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Nas montanhas do Sudeste do Brasil

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ciscava e andava no gramado que fica à beira da lagoa, exata­mente como faz um joão­de­barro.

“Descobriu como?”, perguntou a mais velha.“Ninguém o conhecia, e seu pai o descobriu”, respondeu a mãe.“Mas todo mundo está vendo o passarinho, mamãe! Nin­

guém o viu antes?”Realmente, estávamos na trilha que liga o vilarejo à cachoei­

ra mais próxima, cheia de turistas passando ao lado da ave, sem percebê­la, ou, no máximo, achando que era um joão­de­barro.

“Bem, a história não é bem essa”, disse eu. “Não fui eu quem o descobriu. Na verdade, a história é muito comprida.”

“Conta, papai”, disseram as mulheres em uníssono.Resolvi, assim, contar essa história de uma maneira que

minhas filhas pudessem entendê­la. Foi dessa maneira que des­cobri que esta é uma história que merece ser contada, porque se entrelaça a outras histórias, muito mais importantes que a mera descoberta de uma espécie nova para a ciência.

Este livro é sobre a descoberta de um passarinho aparen­temente insosso, da família do joão­de­barro, uma família co­nhecida com o pomposo nome de Furnariidae, ou simples­mente furnarídeos.1 É uma história que tenta explicar como ninguém viu essa ave antes aqui, no meio de uma trilha turís­tica por onde passam dezenas de pessoas em cada feriado. Por essas serras passaram também observadores de aves, e, mais do que isso, ornitólogos (pessoas que estudam aves profissional­mente). Será que todos esses observadores e ornitólogos con­fundiram o pedreiro­do­espinhaço com um mero joão­de­­barro? Ou será que ele nunca esteve aqui e, na verdade, se

1 O nome Furnariidae é uma referência a furnus, que significa forno, e tal famí­lia é endêmica da América do Sul, isto é, espécies dessa família só existem na região Neotropical (sul do México até a Terra do Fogo).

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trata de um punhado de pássaros migrantes que resolveram parar para se abastecer, ou mesmo para permanecer em local tão belo e cheio de comida?

Pois o pedreiro­do­espinhaço, apesar de não ter nenhum atrativo aos olhos do observador comum, é uma espécie que testemunha a história das montanhas da América do Sul (Fi­gura 2). Se você quiser saber sobre a história dessas montanhas que se erguem por todo o leste do Brasil, do Rio Grande do Sul até a Chapada Diamantina, na Bahia, você precisa conhecer a história do pedreiro­do­espinhaço.

Figura 2. O pedreiro­do­espinhaço (foto de Guilherme H. S. Freitas).

Para desvendar esta história e para respondermos à per­gunta de minha filha (“ninguém o viu antes?”), teremos que recorrer à teoria tectônica de placas (aquela que diz que os continentes estão se movendo sobre a crosta terrestre), a pa­leontologia (ciência que estuda os fósseis), a genômica (ciên­

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