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O amor de si* - Um Comentário 100 anos de Narcisismo Carmen Silvia Cervelatti Inicialmente, quero agradecer o convite de meu amigo Nicéas e da Diretoria da EBP-SP para esta conversa com o autor, por ocasião do lançamento de seu primoroso livro. Diversas vezes estive à mesa com Nicéas, especialmente nos seminários que proferiu na Clipp e, mais recentemente, por ocasião dos 10 anos da Clipp, quando falou sobre o traumatismo. Em ambas as ocasiões, algo me chamou a atenção: são temas que congregam a comunidade analítica da EBP (o próximo Encontro Brasileiro) e, hoje, o X Congresso da AMP, que terá como título “O inconsciente e o corpo falante”. Mais interessante é que nestas duas situações não se sabia disso na ocasião em que a atividade foi planejada, foi uma contingência. Com o Congresso, debruçar-nos-emos sobre o tema do imaginário e como o texto de Freud é um de seus pilares fundamentais, é por este viés que farei minhas considerações. Desde a proposição da clínica borromeana, a imagem e o imaginário deixaram de ter um lugar de desvalor diante do simbólico e do real. O eu e a imagem narcísica são um dos destinos libidinais. Como intervir sobre e no imaginário é um recurso clínico importante, diria até fundamental na clínica pós-edípica, e este é o principal argumento para tomarmos o livro de Nicéas como extremamente atual. Depois de contextualizar o texto freudiano e frisar que o eu se constitui como um dos objetos libidinais possíveis, Nicéas diz: “A partir da Introdução ao narcisismo, Freud demonstrou clinicamente (importante frisar) que o eu se oferece privilegiadamente como objeto das pulsões sexuais do sujeito” (p. 25), e que a libido se diferencia entre libido do eu e libido do objeto. A libido do eu (narcisismo) não se confunde com as pulsões do eu (um dos polos da dualidade pulsional). Sabemos das resistências do movimento psicanalítico da época acerca das proposições freudianas sobre o sexual e a pulsão. O principal opositor foi Jung, que retirou o sexual da pulsão, mas houve também uma desconsideração da última dualidade pulsional (vida x morte) pelos pós- freudianos, o que deu ensejo a Lacan para propor o conceito de gozo, “um quarto andar acrescentado à arquitetura freudiana” (Nicéas, p.32),

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O amor de si* - Um Comentário – 100 anos de Narcisismo

Carmen Silvia Cervelatti

Inicialmente, quero agradecer o convite de meu amigo Nicéas e da Diretoria da EBP-SP para esta conversa com o autor, por ocasião do lançamento de seu primoroso livro. Diversas vezes estive à mesa com Nicéas, especialmente nos seminários que proferiu na Clipp e, mais recentemente, por ocasião dos 10 anos da Clipp, quando falou sobre o traumatismo. Em ambas as ocasiões, algo me chamou a atenção: são temas que congregam a comunidade analítica da EBP (o próximo Encontro Brasileiro) e, hoje, o X

Congresso da AMP, que terá como título “O inconsciente e o corpo falante”. Mais interessante é que nestas duas situações não se sabia disso na ocasião em que a atividade foi planejada, foi uma contingência. Com o Congresso, debruçar-nos-emos sobre o tema do imaginário e como o texto de Freud é um de seus pilares fundamentais, é por este viés que farei minhas considerações. Desde a proposição da clínica borromeana, a imagem e o imaginário deixaram de ter um lugar de desvalor diante do simbólico e do real. O eu e a imagem narcísica são um dos destinos libidinais. Como intervir sobre e no imaginário é um recurso clínico importante, diria até fundamental na clínica pós-edípica, e este é o principal argumento para tomarmos o livro de Nicéas como extremamente atual. Depois de contextualizar o texto freudiano e frisar que o eu se constitui como um dos objetos libidinais possíveis, Nicéas diz: “A partir da Introdução ao narcisismo, Freud demonstrou clinicamente (importante frisar) que o eu se oferece privilegiadamente como objeto das pulsões sexuais do sujeito” (p. 25), e que a libido se diferencia entre libido do eu e libido do objeto. A libido do eu (narcisismo) não se confunde com as pulsões do eu (um dos polos da dualidade pulsional). Sabemos das resistências do movimento psicanalítico da época acerca das proposições freudianas sobre o sexual e a pulsão. O principal opositor foi Jung, que retirou o sexual da pulsão, mas houve também uma desconsideração da última dualidade pulsional (vida x morte) pelos pós-freudianos, o que deu ensejo a Lacan para propor o conceito de gozo, “um quarto andar acrescentado à arquitetura freudiana” (Nicéas, p.32),

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“um único nó de satisfação e mal-estar”, articulado sobre as três dualidades pulsionais. O corpo do texto freudiano É dividido em três partes, assim nomeadas por Nicéas: 1) uma resposta a Jung, 2) circuitos libidinais e o leque das escolhas amorosas dos objetos e 3) as formações do ideal. Do corpo do texto freudiano destaco sete pontos e algumas questões que endereço a Nicéas: 1. o circuito pulsional, o vaivém da libido entre o eu e os objetos. A libido pode ser retirada dos objetos do mundo exterior e se localizar no eu pela ausência do objeto da fantasia (caso das psicoses, delírio de grandeza), ou, como no caso das neuroses de transferência, serem substituídos por outros, imaginários, na fantasia. Este ponto também é trabalhado no texto “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924). 2. não se trata de desenvolvimento: “o investimento originário no eu persiste no sujeito e se comporta para com os investimentos dos objetos como o corpo de um animalzinho protoplásmico com relação aos pseudópodes que ele emitiu’” (p.47), ou seja, o narcisismo freudiano é um dado de estrutura. 3. o eu não é primário na constituição subjetiva, ele advém do autoerotismo – estado inicial da libido. Freud (p. 93, português): “uma unidade comparável ao eu não pode existir desde o começo; o eu tem de ser desenvolvido. As pulsões autoeróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo”. 4. Depois de fazer considerações sobre a libido do eu nas doenças orgânicas, no sono, na hipocondria e nas parafrenias, diferenciando-as das neuroses por dependerem da libido de objeto, Freud propõe uma nova noção, a erogenidade: “uma propriedade geral de todos os órgãos, o que nos autoriza a falar de aumento ou de diminuição dela numa parte determinada do corpo. A cada uma dessas modificações da ‘erogenidade’ nos órgãos poderia corresponder uma modificação paralela do investimento da libido no eu". Nota-se uma série de referências ao corpo, ao corpo erogenizado. Acompanhando Freud, vemos as possibilidades de modificações na

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libido e na erogenidade. Estamos, assim, no campo do fator quantitativo, do gozo e da possibilidade de uma retificação no nível pulsional, conforme propôs Lacan no Seminário 11. 1. O que permite colocar a libido nos objetos, sair das fronteiras do narcisismo? Com esta questão, Freud especula a relação íntima entre

adoecer e amar: “Um sólido egoísmo preserva a doença, mas, no fim, a gente deve se dispor a amar para não cair doente, e a gente cai doente quando não pode amar” (p.67). Nesta frase freudiana, antepõe-se o amor de si, que preserva a doença, a outro tipo de amor, que suponho não se tratar do

amor de transferência, que também é da ordem do imaginário. O amor é sempre imaginário, ele só engana? 2. As escolhas objetais, por apoio e narcísica. A primeira tem por modelo a mãe, enquanto primeiro objeto sexual, e a segunda é a que dá título ao livro, o amor de si. Freud diz: “Nós dizemos que o ser humano tem dois objetos sexuais originários: ele mesmo ou a mulher que lhe dá cuidados; nisso presumimos o narcisismo primário de todo ser humano, narcisismo que pode vir eventualmente a se exprimir de modo dominante em sua escolha de objeto” (p. 71). 3. O recalque provém do amor de si. O amor de si dirige-se e desloca-se, primariamente, para o eu ideal, sede de todas as perfeições. Os deslocamentos do narcisismo não implicam que o homem abdique da satisfação originariamente experimentada, ou seja, da perfeição narcísica que lhe garante o eu ideal. Nicéas nos lembra da dificuldade de entender sua função no texto freudiano e diferenciá-la de uma segunda formação, o ideal do eu. É um modo de tentar resgatar o narcisismo: é “uma projeção verdadeiramente substitutiva do narcisismo” (p. 82). “Aprendemos então com Freud que um trabalho se engendra desde que ele foi obrigado a se distanciar do seu narcisismo originário. Um trabalho para realcançá-lo, e é isso, propriamente, que constitui o desenvolvimento do eu: um deslocamento para o ideal do eu, imposto do exterior, e um retorno à posição anterior, um resgate do narcisismo” (p. 85). Um narcisismo sempre possível, um recurso à mão, um fato de estrutura. Assim, o ideal do eu, sendo também uma instância que vela pela satisfação narcísica ao observar permanentemente o eu, já anuncia a formulação do supereu, por guardar uma exterioridade em relação ao eu. Então, a formulação lacaniana do supereu enquanto “goza!” se distinguiria do amor de si? Talvez nem tanto, quando constatamos na clínica atual que as compulsões envolvem, de alguma maneira, a imagem,

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o narcisismo e uma flagrante dificuldade no laço social. Falamos, inclusive, em gozo autoerótico e gozo autista. Um eu corporal Nesta parte, reencontramos, no texto de Nicéas, a enigmática expressão freudiana “uma nova ação psíquica”. Sabemos que Freud não explicitou o que seria esta nova ação psíquica. Lacan o fará com a proposição do Estádio do Espelho, recuperado de outro texto de Freud O eu e o isso, de 1923: “o eu é antes de tudo um eu corporal”.

Trata-se de uma ação que se somaria ao autoerotismo para dar forma ao narcisismo, disse Nicéas, ou seja, as pulsões autoeróticas encontram no eu uma unidade para investimento, encontram um objeto. Assim, o eu tem o mesmo estatuto do objeto: são passíveis de investimento. O narcísico pode ser migrado ao objeto e vice-versa, graças à labilidade da libido. Ambos são objetos libidinais, porém o eu é feito à imagem da forma do humano.

Com o estádio do espelho, Lacan discute e elabora o momento fundador da função do eu na psicanálise. O eu se estabelece a partir de uma identificação primeira a uma forma, a forma humana, a imagem corporal do outro, cujo reconhecimento é vivido como júbilo pelo infans. Esta forma é constituída pelos “traços de uma imagem de valor afetivo, mas fundamentalmente ilusório”. A imagem do corpo próprio ganha caráter tão preeminente em virtude de um furo, de uma falta, do desamparo proposto por Freud, que poderia vir a ser tamponado. O furo foi, inicialmente, proposto por Lacan como um menos orgânico em virtude do nascimento prematuro do ser humano. Nicéas acrescenta à sua articulação o que Lacan veio formalizar no Seminário 10, o estatuto do corpo freudiano não é somente referido à sua forma (visual), mas também enquanto corpo de zonas erógenas (organismo, apreendido fora do espelho, zonas de borda). Ele retoma o estádio do espelho, mas também traz o objeto que angustia. Apesar do júbilo da imagem totalizadora do corpo próprio, este objeto “não subtrai dessa identificação fundadora do eu uma marca, no sujeito, da presença de um ‘branco’, designado como menos phi, manifestação do não especularizável” (p. 97). O menos phi traduz a castração freudiana e a prematuridade e o déficit orgânico proposto no Estádio do espelho. Então, além do júbilo, há algo que se constitui como marca de um menos primário, constitutivo. Gostaria de um comentário de Nicéas sobre a relação disto com o que Lacan diz no Seminário 4: que o estádio do espelho introduz também a depressão, ou seja, esta imagem unificante não é estável, ela vacila.

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O amor freudiano no dispositivo de palavras Em 1914, o amor é concebido como uma articulação da pulsão libidinal a um objeto, o eu do sujeito. O amor é narcísico. Qual a saída para o narcisismo? Como passar do amor de si ao amor do outro? Economicamente, amar o outro é consequência de um transbordamento, uma transferência da libido do eu para o objeto, do eu ideal ao ideal do eu, esta última uma instância simbólica. Neste momento, o objeto de amor, “imaginário em sua origem, desdobra-se, dentro do texto de Freud, na direção de outro objeto, resultando em uma nova identificação, uma identificação simbólica” (p.104). Para sair do narcisismo em direção ao outro como objeto é preciso falar, “encadear significantes para que se escrevam, na análise, as histórias de amor”. “E esse modo do sujeito da palavra se dirigir ao Outro prévio da linguagem era, para Freud, um amor verdadeiro, que conferia ao objeto um estatuto de ideal” (p. 104), disse Nicéas. O amor de si sob a forma de amor de transferência, ao “fazer esquecer a falta fincada na estrutura no sujeito” (p. 113), vai na direção oposta ao trabalho analítico. O analisante, ao investir seu analista como seu ideal do eu, ama-o segundo a perfeição que o narcisismo impinge; ele retorna ao seu narcisismo, induzindo o Outro, o analista, a olhá-lo em espelho. Freud, embora tenha postulado o amor de transferência como o verdadeiro amor, reconheceu seu caráter enganador, de miragem. Por esta razão, a clínica psicanalítica deve se pautar pelo sujeito do inconsciente e não tratar o eu, apesar do engodo do amor de transferência. O analista, porém, advertido por sua análise, não pode permitir que o amor obstrua o saber inconsciente, recalcado. É nisso que o recalque provém do amor de si. A transferência quer “mascarar, manter negada a realidade da pulsão” (p.114), só quer mentir, apesar de constituir-se como amor verdadeiro, para Freud. Sobre a direção do tratamento: ela “deve manter no horizonte do sujeito a busca de um objeto que não é qualquer objeto? [...] É esse o objeto que o sujeito quer possuir durante todo o tempo de sua análise, que ele

gostaria, enfim, de encontrar: seu objeto de gozo, objeto de atributos singulares, no qual se reconhecem os caracteres eletivos do original [...] objeto que será apenas reencontrado, jamais encontrado”. No final do percurso analítico há uma perda da esperança de que o falo seja o parceiro complementar

sempre buscado, já que ele se define como falta, e o reconhecimento irremediável, "no diálogo impossível entre os sexos, do fracasso de seu voto de completude”, como disse Freud em Mal-estar na civilização: “o sujeito parece não ter sido, por estrutura, programado para a felicidade.”

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Enfim, para terminar, cem anos depois da publicação da Introdução ao narcisismo, a leitura de Nicéas em seu Amor de si nos dá subsídios para mostrar o frescor desse texto denso, que ganha clareza quando Nicéas o articula no interior da obra freudiana, quando localiza o momento de crise política da psicanálise, acrescentando ainda a releitura que Lacan empreendeu sobre a obra freudiana e suas implicações na experiência analítica. Nicéas, Carlos A. O amor de si. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

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