o amor - record.com.br · cheiro de goiaba crônica de uma morte anunciada do amor e outros...
TRANSCRIPT
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERAGA BR IELGA RCIAMÁ RQUEZ
Prêmio Nobel
de Literatura
Tradução de
Antonio Callado
miolo_amor-tempos-colera.indd 1 06/09/2016 01:44:25
miolo_amor-tempos-colera.indd 3 06/09/2016 01:44:25
OBRAS DO AUTOR
O amor nos tempos do cólera
A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile
Cem anos de solidão
Cheiro de goiaba
Crônica de uma morte anunciada
Do amor e outros demônios
Doze contos peregrinos
Os funerais da Mamãe Grande
O general em seu labirinto
A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada
Memória de minhas putas tristes
Ninguém escreve ao coronel
Notícia de um sequestro
Olhos de cão azul
O outono do patriarca
Relato de um náufrago
A revoada (O enterro do diabo)
O veneno da madrugada (A má hora)
Viver para contar
OBRA JORNALÍSTICA
Vol. 1 – Textos caribenhos (1948-1952)
Vol. 2 – Textos andinos (1954-1955)
Vol. 3 – Da Europa e da América (1955-1960)
Vol. 4 – Reportagens políticas (1974-1995)
Vol. 5 – Crônicas (1961-1984)
OBRA INFANTOJUVENIL
A luz é como a água
Maria dos Prazeres
A sesta da terça-feira
Um senhor muito velho com umas asas enormes
O verão feliz da senhora Forbes
miolo_amor-tempos-colera.indd 4 06/09/2016 01:44:25
38a edição?
2016
Tradução de
ANTONIO CALLADO
Gabriel Garcia Márquez
miolo_amor-tempos-colera.indd 5 06/09/2016 01:44:25
Para Mercedes, é claro.
miolo_amor-tempos-colera.indd 7 06/09/2016 01:44:25
miolo_amor-tempos-colera.indd 8 06/09/2016 01:44:25
Vão antecipados estes trechos:
já têm sua deusa coroada.
Leandro Díaz
miolo_amor-tempos-colera.indd 9 06/09/2016 01:44:25
miolo_amor-tempos-colera.indd 10 06/09/2016 01:44:25
— 11 —
Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre
o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o
sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras,
à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de
um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos.
O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra,
fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se
havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação
de cianureto de ouro.
Encontrou o cadáver coberto com uma manta no catre de campa-
nha onde sempre dormira, perto de um tamborete com a vasilha que
havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado pela pata
ao catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês preto de
peito nevado, e junto a ele estavam as muletas. O quarto sufocante e
salpicado de cores, que servia ao mesmo tempo de alcova e laboratório,
mal começava a se iluminar com o resplendor do amanhecer na janela
aberta, mas era luz bastante para proclamar de pronto a autoridade da
morte. As outras janelas, assim como todas as frestas do aposento, estavam
amordaçadas com trapos ou seladas com papelão preto, o que aumentava
sua densidade opressiva. Havia uma mesa grande atulhada de frascos e
vidros bojudos sem rótulo, e duas vasilhas de estanho descascado sob
um foco de luz ordinário coberto de papel vermelho. A terceira vasilha,
miolo_amor-tempos-colera.indd 11 06/09/2016 01:44:25
— 12 —
a do líquido fixador, era a que estava junto do cadáver. Havia revistas
e jornais velhos em todos os cantos, pilhas de negativos em placas de
vidro, móveis que brados, mas tudo estava preservado da poeira por
mãos di li gen tes. Embora o ar da janela houvesse purificado o am biente,
ainda persistia para quem soubesse identificá-lo o rescaldo morno dos
amores sem ventura das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino
havia pensado mais de uma vez, sem ânimo premonitório, que aquele
não era um lugar propício para se morrer na graça de Deus. Mas com
o tempo acabou por supor que sua desordem obedecia talvez a uma
determinação cifrada da Divina Providência.
Um comissário de polícia se havia adiantado com um estudante
de medicina muito moço que fazia sua prática forense no dispensário
municipal, e eles é que haviam arejado o aposento e coberto o cadá-
ver enquanto chegava o doutor Urbino. Ambos o cumprimentaram
com uma solenidade que dessa vez tinha mais de condolência que de
veneração, pois ninguém ignorava o grau de sua amizade com Jere-
miah de Saint-Amour. O mestre eminente apertou a mão de ambos,
como jamais deixava de fazer com cada um de seus alunos antes de
começar a aula diária de clínica geral, e depois segurou a beira da
manta com as pontas do indicador e do polegar, como se fosse uma
flor, e descobriu o cadáver palmo a palmo com uma parcimônia
sacramental. Estava nu em pelo, teso e torto, com os olhos abertos e
o corpo azul, e parecia cinquenta anos mais velho do que na noite
anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e os cabelos amarelados,
e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga costurada com nós
de ensacador. O trabalho das muletas tinha dado uma enver gadura
de galeote a seu torso e seus braços, mas as pernas inermes eram as
de um órfão. O doutor Juvenal Urbino o contemplou um instante
com o coração doendo, como poucas vezes nos longos anos de sua
contenda estéril contra a morte.
— Poltrão — disse a ele. — O pior já tinha passado.
miolo_amor-tempos-colera.indd 12 06/09/2016 01:44:25
— 13 —
Voltou a cobri-lo com a manta e recuperou sua postura acadêmica.
No ano anterior celebrara seus oitenta com um jubileu oficial de três
dias, e no discurso de agradecimento resistiu uma vez mais à tentação de
se aposentar. Havia dito: “Terei tempo de sobra para descansar quando
morrer, mas essa eventualidade não figura ainda nos meus projetos.”
Embora ouvisse cada vez menos com o ouvido direito e se apoiasse
numa bengala com castão de prata para dissimular a incerteza dos seus
passos, continuava usando com a compostura dos seus anos moços o
terno completo de linho com o colete atravessado pela corrente de
ouro. A barba de Pasteur, cor de nácar, e o cabelo da mesma cor, muito
bem alisado e com o repartido nítido no centro, eram expressões fiéis
do seu caráter. Até onde podia, compensava a erosão cada vez mais
inquietante da memória com notas escritas às carreiras em papeizinhos
avulsos, que acabavam por se confundir em todos os seus bolsos, assim
como os instrumentos, os vidros de remédio, e outras tantas coisas
embaralhadas na maleta atulhada. Não era só o médico mais antigo e
esclarecido da cidade, como também o homem mais atilado. Apesar
disso, sua sapiência demasiado ostensiva e o modo nada ingênuo que
tinha de manejar o poder do próprio nome acabaram por lhe valer
menos afetos do que merecia.
As instruções ao comissário e ao praticante foram precisas e rápi-
das. Não haveria autópsia. O cheiro da casa bastava para determinar
que a causa da morte tinham sido as emanações do cianureto ativado
na vasilha por algum ácido de fotografia, e Jeremiah de Saint-Amour
entendia muito do assunto para não fazê-lo por acidente. Diante de
uma reticência do comissário, deteve-o com uma estocada típica do seu
modo de ser: “Não se esqueça de que sou eu quem assina o atestado
de óbito.” O médico jovem ficou decepcionado: nunca tinha tido a
sorte de estudar os efeitos do cianureto de ouro num cadáver. O doutor
Juvenal Urbino tinha ficado espantado de não havê-lo visto na Escola
de Medicina, mas compreendeu de pronto ao notar seu rubor fácil e
miolo_amor-tempos-colera.indd 13 06/09/2016 01:44:25
— 14 —
seu sotaque andino: era sem dúvida um recém-chegado à cidade. Disse:
“Não faltará por aqui algum louco de amor que lhe dê a oportunida-
de um dia destes.” E só ao dizê-lo percebeu que entre os incontáveis
suicídios que lembrava, aquele era o primeiro com cianureto que não
tinha sido causado por um infortúnio de amor. Algo se alterou então
na sua maneira de falar.
— Quando encontrá-lo, preste bem atenção — disse ao praticante:
— costumam ter areia no coração.
Em seguida falou com o comissário como quem fala a um subal-
terno. Ordenou-lhe que desse um jeito em todas as instâncias para que
o enterro se realizasse nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse:
“Eu falo depois com o prefeito.” Sabia que Jeremiah de Saint-Amour
era de uma austeridade primitiva, e que ganhava com sua arte muito
mais do que carecia para viver, de modo que em algumas das gavetas
da casa devia haver dinheiro de sobra para os gastos do enterro.
— Mas se não o acharem, não importa — disse. — Eu me encarrego
de tudo.
Mandou que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha morrido
de morte natural, embora achasse que a notícia não lhes interessava de
nenhum modo. Disse: “Se for necessário, falo com o governador.” O
comissário, um empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico
do mestre exasperava até seus amigos mais chegados, e estranhava a
facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para apressar o
enterro. Só não acedeu em falar com o arcebispo para que Jeremiah
de Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada. O comissário,
mortificado com sua própria impertinência, tratou de se desculpar.
— Minha ideia é que este homem era um santo — disse.
— Era algo ainda mais raro — disse o doutor Urbino: — um santo
ateu. Mas esses assuntos a Deus pertencem.
Remotos, do outro lado da cidade colonial, se ouviram os sinos da
catedral chamando à missa solene. O doutor Urbino repôs os óculos
miolo_amor-tempos-colera.indd 14 06/09/2016 01:44:25
— 15 —
de meia-lua com armação de ouro e consultou o relógio da corrente,
que era quadrado e fino, e sua tampa se abria com uma mola: estava a
ponto de perder a missa de Pentecostes.
Na sala havia uma enorme máquina fotográfica sobre rodas como as
dos jardins públicos, e o telão de um crepúsculo marinho pintado com
tintas artesanais, e as paredes estavam forradas de retratos de crianças
em suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a fantasia de coelho,
o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o revestimento paula-
tino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas das tardes
de xadrez, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação
que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura,
governada e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não
restariam sequer as cinzas de sua glória.
Na escrivaninha, junto a um pote com vários cachimbos de lobo-
do-mar, estava o tabuleiro de xadrez com uma partida inconclusa. Apesar
de sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor Urbino não resistiu
à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior, pois
Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo me-
nos com três adversários diferentes, mas chegava sempre até o final e
guardava depois o tabuleiro e as pedras em sua caixa, e guardava a caixa
numa gaveta da escrivaninha. Sabia que jogava com as peças brancas, e
aquela vez era evidente que ia ser derrotado sem salvação em quatro
jogadas mais. “Se tivesse sido um crime, aqui haveria uma boa pista” ,
disse a si mesmo. “Só conheço um homem capaz de compor esta em-
boscada de mestre.” Não teria podido viver sem averiguar mais tarde
por que aquele soldado indômito, acostumado a se bater até a última
gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final de sua vida.
Às seis da manhã, quando fazia a última ronda, o guarda-noturno
tinha visto o letreiro pregado na porta da rua: Entre sem tocar e avise a
polícia. Pouco depois acudiu o comissário com o estudante, e ambos
tinham revistado a casa em busca de alguma evidência contra o bafo
miolo_amor-tempos-colera.indd 15 06/09/2016 01:44:25
— 16 —
inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que
durou a análise da partida inconclusa, o comissário descobriu entre
os papéis da escrivaninha um envelope dirigido ao doutor Juvenal
Urbino, e protegido por tantos selos de lacre que foi necessário des-
pedaçá-lo para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela
para ter melhor luz, lançou primeiro um olhar rápido às onze folhas
escritas dos dois lados com uma caligrafia caprichada, e logo que leu
o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a comunhão
de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada, voltando atrás em
várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou pare-
cia regressar de muito longe e de muito tempo. Seu abatimento era
visível, apesar do esforço que fazia para ocul tá-lo: tinha nos lábios
a mesma coloração azul do cadá ver, e não pôde dominar o tremor
dos dedos quando tornou a dobrar a carta e a guardou no bolso do
colete. Então se lembrou do comissário e do médico jovem, e sorriu
aos dois das brumas do seu abatimento.
— Nada de particular — disse. — São suas últimas instruções.
Era uma meia verdade, mas eles a acreditaram completa porque ele
lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram
um caderno de contas muito usado onde estavam as chaves para abrir
o cofre-forte. Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia
de sobra para os gastos do enterro e para saldar outros compromissos
menores. O doutor Urbino já estava então consciente de que não
conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho.
— É a terceira vez que perco a missa de domingo desde que tenho
uso de razão — disse. — Mas Deus entende.
Preferiu por isso demorar mais uns minutos para deixar todos os
pormenores esclarecidos, embora mal pudesse suportar a ansiedade de
compartilhar com sua esposa as confidências da carta. Comprometeu-se
a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade, caso
quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado
miolo_amor-tempos-colera.indd 16 06/09/2016 01:44:25
— 17 —
como o mais respeitável de todos, o mais ativo e radical, mesmo depois
de se tornar demasiado evidente que havia sucumbido à sedimenta-
ção do desencanto. Também avisaria seus parceiros de xadrez, entre
os quais havia tantos profissionais insignes como artesãos obscuros, e
a outros amigos menos assíduos, mas que talvez quisessem assistir ao
enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha resolvido que ele
era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de nada.
De todas as maneiras iam mandar uma coroa de gardênias, pois podia
ser que Jeremiah de Saint-Amour tivesse tido um último minuto de
arrependimento. O enterro seria às cinco, que era a hora propícia nos
meses de mais calor. Se precisassem dele estaria desde as doze na casa
de campo do doutor Lácides Olivella, seu discípulo amado, que aquele
dia celebrava com um almoço de gala as bodas de prata profissionais.
O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde
que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros em-
bates, e conseguiu uma respeitabilidade e um prestígio que não tinham
igual na província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora
começava a tomar seus remédios secretos: brometo de potássio para
levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em tempo de chuva,
gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o bom
dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque
em sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar
paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que
as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que aspirava
fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de
tantos remédios misturados.
Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica
geral que ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a
sábado, às oito em ponto, até a véspera de sua morte. Era também um
leitor atento das novidades literárias que lhe mandava pelo correio seu
livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona seu livreiro
miolo_amor-tempos-colera.indd 17 06/09/2016 01:44:25
— 18 —
local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana com
tanta atenção quanto a francesa. De qualquer forma nunca as lia pela
manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir.
Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no
banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em
que cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava
banho, cuidava da barba e engomava o bigode num ambiente satura-
do de água-de-colônia da legítima de Farina Gegenüber, e se vestia
de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de cordovão.
Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito
festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da grande epidemia
de cólera-morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio
continuava igual ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café
em família, mas com um regime pessoal: uma infusão de flores de ab-
sinto maior, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho cujos
dentes descascava e comia um por um, mastigando-os com método
em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em
raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado
com suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com suas
promoções artísticas e sociais.
Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos
sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas
debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor
de motores com o fedor de óleos da baía, cujos eflúvios esvoaçavam
por dentro da casa nas tardes de calor como um anjo condenado à
podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em especial
romances e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao
louro doméstico que há anos era uma atração local. Às quatro saía para
visitar os doentes, depois de tomar uma grande caneca de limonada com
gelo. Apesar da idade, resistia à ideia de receber os pacientes no con-
sultório, continuando a atendê-los nas respectivas casas, como sempre
miolo_amor-tempos-colera.indd 18 06/09/2016 01:44:26
— 19 —
tinha feito, desde os tempos em que a cidade era tão doméstica que se
podia ir a pé a qualquer lugar.
Desde que voltara da Europa pela primeira vez andava no landô
familiar com dois alazães dourados, mas quando este se tornou im-
prestável trocou-o por uma vitória de um cavalo só, e continuou a
usá-la sempre com um certo desdém pela moda, nessa época em que as
carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas que ainda
perduravam na cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas
ao cemitério. Embora se negasse a aposentadoria, estava consciente
de que só o chamavam para atender a casos perdidos, mas considerava
que isso também era uma forma de especia lização. Era capaz de saber
o que tinha um doente só pelo seu aspecto, e cada vez desconfiava
mais dos medicamentos comerciais e via com alarme a vulgarização
da cirurgia. Dizia: “O bisturi é a prova maior do fracasso da medicina.”
Achava que dentro de um critério estrito todo remédio era veneno, e
que setenta por cento dos alimentos correntes apressavam a morte. “De
qualquer maneira”, costumava dizer em classe, “a pouca medicina que
se sabe só a sabem alguns médicos.” De seus entusiasmos juvenis tinha
passado a uma posição que ele mesmo definia como um humanismo
fatalista: “Cada qual é dono de sua própria morte, e a única coisa que
podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo nem
dor.” Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do
folclore médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo
mesmo quando já eram profissio nais estabelecidos, pois reconheciam
nele o que então se chamava olho clínico. De todo modo foi sempre
um médico caro e excludente, e sua clientela se concentrava nas casas
fidalgas do bairro dos Vice-Reis.
Tinha um dia a dia tão metódico que a esposa sabia onde lhe mandar
um recado se surgisse algo urgente no transcorrer da tarde. Quando
moço passava algum tempo no Café da Paróquia antes de voltar para
casa, e assim aperfeiçoou seu xadrez com os cúmplices do sogro e com
miolo_amor-tempos-colera.indd 19 06/09/2016 01:44:26
— 20 —
alguns refugiados do Caribe. Mas a partir dos albores do novo século
não voltou ao Café da Paróquia e tratou de organizar torneios nacio-
nais patrocinados pelo Clube Social. Foi por essa época que chegou
Jeremiah de Saint-Amour, já com os joelhos mortos e ainda sem o
ofício de fotógrafo de crianças, e antes de três meses era conhecido de
quem quer que soubesse movimentar um bispo num tabuleiro, porque
ninguém conseguira ganhar-lhe uma partida. Para o doutor Juvenal
Urbino foi um encontro milagroso, num momento em que o xadrez
se trans formara para ele numa paixão indomável e já não lhe restavam
muitos adversários para saciá-la.
Graças a ele, Jeremiah de Saint-Amour pôde ser o que foi entre nós.
O doutor Urbino se converteu em seu protetor incondicional, em seu
fiador de tudo, sem se dar sequer o trabalho de averiguar quem era,
nem o que fazia, nem de que guerras sem glória vinha naquele estado
de invalidez e descalabro. Acabou por emprestar-lhe o dinheiro para
que montasse o estúdio de fotógrafo, que Jeremiah de Saint-Amour
pagou com um rigor de pobre soberbo, até o último vintém, a partir
do instante em que retratou o primeiro menino assustado pelo relâm-
pago de magnésio.
A causa de tudo foi o xadrez. A princípio jogavam às sete da noite,
depois do jantar, com justas vantagens para o médico em razão da su-
perioridade notória do adversário, mas cada vez com menos vantagens,
até que emparelharam. Mais tarde, quando o senhor Galileo Daconte
abriu a primeira sala de cinema, Jeremiah de Saint-Amour foi um
dos seus clientes mais assíduos, e as partidas de xadrez se reduziram
às noites em que não se estreava nenhuma fita. Nessa altura se havia
tornado tão amigo do médico que este o acompanhava ao cinema,
mas sempre sem a esposa, em parte porque ela não tinha paciência
para seguir o fio dos enredos difíceis, e em parte porque sempre lhe
pareceu, por puro olfato, que Jeremiah de Saint-Amour não era uma
boa companhia para ninguém.
miolo_amor-tempos-colera.indd 20 06/09/2016 01:44:26