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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ Prêmio Nobel de Literatura Tradução de Antonio Callado

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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERAGA BR IELGA RCIAMÁ RQUEZ

Prêmio Nobel

de Literatura

Tradução de

Antonio Callado

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OBRAS DO AUTOR

O amor nos tempos do cólera

A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile

Cem anos de solidão

Cheiro de goiaba

Crônica de uma morte anunciada

Do amor e outros demônios

Doze contos peregrinos

Os funerais da Mamãe Grande

O general em seu labirinto

A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada

Memória de minhas putas tristes

Ninguém escreve ao coronel

Notícia de um sequestro

Olhos de cão azul

O outono do patriarca

Relato de um náufrago

A revoada (O enterro do diabo)

O veneno da madrugada (A má hora)

Viver para contar

OBRA JORNALÍSTICA

Vol. 1 – Textos caribenhos (1948-1952)

Vol. 2 – Textos andinos (1954-1955)

Vol. 3 – Da Europa e da América (1955-1960)

Vol. 4 – Reportagens políticas (1974-1995)

Vol. 5 – Crônicas (1961-1984)

OBRA INFANTOJUVENIL

A luz é como a água

Maria dos Prazeres

A sesta da terça-feira

Um senhor muito velho com umas asas enormes

O verão feliz da senhora Forbes

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38a edição?

2016

Tradução de

ANTONIO CALLADO

Gabriel Garcia Márquez

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Para Mercedes, é claro.

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Vão antecipados estes trechos:

já têm sua deusa coroada.

Leandro Díaz

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Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre

o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o

sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras,

à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de

um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos.

O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra,

fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se

havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação

de cianureto de ouro.

Encontrou o cadáver coberto com uma manta no catre de campa-

nha onde sempre dormira, perto de um tamborete com a vasilha que

havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado pela pata

ao catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês preto de

peito nevado, e junto a ele estavam as muletas. O quarto sufocante e

salpicado de cores, que servia ao mesmo tempo de alcova e laboratório,

mal começava a se iluminar com o resplendor do amanhecer na janela

aberta, mas era luz bastante para proclamar de pronto a autoridade da

morte. As outras janelas, assim como todas as frestas do aposento, estavam

amordaçadas com trapos ou seladas com papelão preto, o que aumentava

sua densidade opressiva. Havia uma mesa grande atulhada de frascos e

vidros bojudos sem rótulo, e duas vasilhas de estanho descascado sob

um foco de luz ordinário coberto de papel vermelho. A terceira vasilha,

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a do líquido fixador, era a que estava junto do cadáver. Havia revistas

e jornais velhos em todos os cantos, pilhas de negativos em placas de

vidro, móveis que brados, mas tudo estava preservado da poeira por

mãos di li gen tes. Embora o ar da janela houvesse purificado o am biente,

ainda persistia para quem soubesse identificá-lo o rescaldo morno dos

amores sem ventura das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino

havia pensado mais de uma vez, sem ânimo premonitório, que aquele

não era um lugar propício para se morrer na graça de Deus. Mas com

o tempo acabou por supor que sua desordem obedecia talvez a uma

determinação cifrada da Divina Providência.

Um comissário de polícia se havia adiantado com um estudante

de medicina muito moço que fazia sua prática forense no dispensário

municipal, e eles é que haviam arejado o aposento e coberto o cadá-

ver enquanto chegava o doutor Urbino. Ambos o cumprimentaram

com uma solenidade que dessa vez tinha mais de condolência que de

veneração, pois ninguém ignorava o grau de sua amizade com Jere-

miah de Saint-Amour. O mestre eminente apertou a mão de ambos,

como jamais deixava de fazer com cada um de seus alunos antes de

começar a aula diária de clínica geral, e depois segurou a beira da

manta com as pontas do indicador e do polegar, como se fosse uma

flor, e descobriu o cadáver palmo a palmo com uma parcimônia

sacramental. Estava nu em pelo, teso e torto, com os olhos abertos e

o corpo azul, e parecia cinquenta anos mais velho do que na noite

anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e os cabelos amarelados,

e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga costurada com nós

de ensacador. O trabalho das muletas tinha dado uma enver gadura

de galeote a seu torso e seus braços, mas as pernas inermes eram as

de um órfão. O doutor Juvenal Urbino o contemplou um instante

com o coração doendo, como poucas vezes nos longos anos de sua

contenda estéril contra a morte.

— Poltrão — disse a ele. — O pior já tinha passado.

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Voltou a cobri-lo com a manta e recuperou sua postura acadêmica.

No ano anterior celebrara seus oitenta com um jubileu oficial de três

dias, e no discurso de agradecimento resistiu uma vez mais à tentação de

se aposentar. Havia dito: “Terei tempo de sobra para descansar quando

morrer, mas essa eventualidade não figura ainda nos meus projetos.”

Embora ouvisse cada vez menos com o ouvido direito e se apoiasse

numa bengala com castão de prata para dissimular a incerteza dos seus

passos, continuava usando com a compostura dos seus anos moços o

terno completo de linho com o colete atravessado pela corrente de

ouro. A barba de Pasteur, cor de nácar, e o cabelo da mesma cor, muito

bem alisado e com o repartido nítido no centro, eram expressões fiéis

do seu caráter. Até onde podia, compensava a erosão cada vez mais

inquietante da memória com notas escritas às carreiras em papeizinhos

avulsos, que acabavam por se confundir em todos os seus bolsos, assim

como os instrumentos, os vidros de remédio, e outras tantas coisas

embaralhadas na maleta atulhada. Não era só o médico mais antigo e

esclarecido da cidade, como também o homem mais atilado. Apesar

disso, sua sapiência demasiado ostensiva e o modo nada ingênuo que

tinha de manejar o poder do próprio nome acabaram por lhe valer

menos afetos do que merecia.

As instruções ao comissário e ao praticante foram precisas e rápi-

das. Não haveria autópsia. O cheiro da casa bastava para determinar

que a causa da morte tinham sido as emanações do cianureto ativado

na vasilha por algum ácido de fotografia, e Jeremiah de Saint-Amour

entendia muito do assunto para não fazê-lo por acidente. Diante de

uma reticência do comissário, deteve-o com uma estocada típica do seu

modo de ser: “Não se esqueça de que sou eu quem assina o atestado

de óbito.” O médico jovem ficou decepcionado: nunca tinha tido a

sorte de estudar os efeitos do cianureto de ouro num cadáver. O doutor

Juvenal Urbino tinha ficado espantado de não havê-lo visto na Escola

de Medicina, mas compreendeu de pronto ao notar seu rubor fácil e

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seu sotaque andino: era sem dúvida um recém-chegado à cidade. Disse:

“Não faltará por aqui algum louco de amor que lhe dê a oportunida-

de um dia destes.” E só ao dizê-lo percebeu que entre os incontáveis

suicídios que lembrava, aquele era o primeiro com cianureto que não

tinha sido causado por um infortúnio de amor. Algo se alterou então

na sua maneira de falar.

— Quando encontrá-lo, preste bem atenção — disse ao praticante:

— costumam ter areia no coração.

Em seguida falou com o comissário como quem fala a um subal-

terno. Ordenou-lhe que desse um jeito em todas as instâncias para que

o enterro se realizasse nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse:

“Eu falo depois com o prefeito.” Sabia que Jeremiah de Saint-Amour

era de uma austeridade primitiva, e que ganhava com sua arte muito

mais do que carecia para viver, de modo que em algumas das gavetas

da casa devia haver dinheiro de sobra para os gastos do enterro.

— Mas se não o acharem, não importa — disse. — Eu me encarrego

de tudo.

Mandou que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha morrido

de morte natural, embora achasse que a notícia não lhes interessava de

nenhum modo. Disse: “Se for necessário, falo com o governador.” O

comissário, um empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico

do mestre exasperava até seus amigos mais chegados, e estranhava a

facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para apressar o

enterro. Só não acedeu em falar com o arcebispo para que Jeremiah

de Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada. O comissário,

mortificado com sua própria impertinência, tratou de se desculpar.

— Minha ideia é que este homem era um santo — disse.

— Era algo ainda mais raro — disse o doutor Urbino: — um santo

ateu. Mas esses assuntos a Deus pertencem.

Remotos, do outro lado da cidade colonial, se ouviram os sinos da

catedral chamando à missa solene. O doutor Urbino repôs os óculos

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de meia-lua com armação de ouro e consultou o relógio da corrente,

que era quadrado e fino, e sua tampa se abria com uma mola: estava a

ponto de perder a missa de Pentecostes.

Na sala havia uma enorme máquina fotográfica sobre rodas como as

dos jardins públicos, e o telão de um crepúsculo marinho pintado com

tintas artesanais, e as paredes estavam forradas de retratos de crianças

em suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a fantasia de coelho,

o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o revestimento paula-

tino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas das tardes

de xadrez, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação

que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura,

governada e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não

restariam sequer as cinzas de sua glória.

Na escrivaninha, junto a um pote com vários cachimbos de lobo-

do-mar, estava o tabuleiro de xadrez com uma partida inconclusa. Apesar

de sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor Urbino não resistiu

à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior, pois

Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo me-

nos com três adversários diferentes, mas chegava sempre até o final e

guardava depois o tabuleiro e as pedras em sua caixa, e guardava a caixa

numa gaveta da escrivaninha. Sabia que jogava com as peças brancas, e

aquela vez era evidente que ia ser derrotado sem salvação em quatro

jogadas mais. “Se tivesse sido um crime, aqui haveria uma boa pista” ,

disse a si mesmo. “Só conheço um homem capaz de compor esta em-

boscada de mestre.” Não teria podido viver sem averiguar mais tarde

por que aquele soldado indômito, acostumado a se bater até a última

gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final de sua vida.

Às seis da manhã, quando fazia a última ronda, o guarda-noturno

tinha visto o letreiro pregado na porta da rua: Entre sem tocar e avise a

polícia. Pouco depois acudiu o comissário com o estudante, e ambos

tinham revistado a casa em busca de alguma evidência contra o bafo

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inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que

durou a análise da partida inconclusa, o comissário descobriu entre

os papéis da escrivaninha um envelope dirigido ao doutor Juvenal

Urbino, e protegido por tantos selos de lacre que foi necessário des-

pedaçá-lo para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela

para ter melhor luz, lançou primeiro um olhar rápido às onze folhas

escritas dos dois lados com uma caligrafia caprichada, e logo que leu

o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a comunhão

de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada, voltando atrás em

várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou pare-

cia regressar de muito longe e de muito tempo. Seu abatimento era

visível, apesar do esforço que fazia para ocul tá-lo: tinha nos lábios

a mesma coloração azul do cadá ver, e não pôde dominar o tremor

dos dedos quando tornou a dobrar a carta e a guardou no bolso do

colete. Então se lembrou do comissário e do médico jovem, e sorriu

aos dois das brumas do seu abatimento.

— Nada de particular — disse. — São suas últimas instruções.

Era uma meia verdade, mas eles a acreditaram completa porque ele

lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram

um caderno de contas muito usado onde estavam as chaves para abrir

o cofre-forte. Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia

de sobra para os gastos do enterro e para saldar outros compromissos

menores. O doutor Urbino já estava então consciente de que não

conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho.

— É a terceira vez que perco a missa de domingo desde que tenho

uso de razão — disse. — Mas Deus entende.

Preferiu por isso demorar mais uns minutos para deixar todos os

pormenores esclarecidos, embora mal pudesse suportar a ansiedade de

compartilhar com sua esposa as confidências da carta. Comprometeu-se

a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade, caso

quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado

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como o mais respeitável de todos, o mais ativo e radical, mesmo depois

de se tornar demasiado evidente que havia sucumbido à sedimenta-

ção do desencanto. Também avisaria seus parceiros de xadrez, entre

os quais havia tantos profissionais insignes como artesãos obscuros, e

a outros amigos menos assíduos, mas que talvez quisessem assistir ao

enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha resolvido que ele

era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de nada.

De todas as maneiras iam mandar uma coroa de gardênias, pois podia

ser que Jeremiah de Saint-Amour tivesse tido um último minuto de

arrependimento. O enterro seria às cinco, que era a hora propícia nos

meses de mais calor. Se precisassem dele estaria desde as doze na casa

de campo do doutor Lácides Olivella, seu discípulo amado, que aquele

dia celebrava com um almoço de gala as bodas de prata profissionais.

O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde

que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros em-

bates, e conseguiu uma respeitabilidade e um prestígio que não tinham

igual na província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora

começava a tomar seus remédios secretos: brometo de potássio para

levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em tempo de chuva,

gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o bom

dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque

em sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar

paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que

as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que aspirava

fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de

tantos remédios misturados.

Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica

geral que ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a

sábado, às oito em ponto, até a véspera de sua morte. Era também um

leitor atento das novidades literárias que lhe mandava pelo correio seu

livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona seu livreiro

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local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana com

tanta atenção quanto a francesa. De qualquer forma nunca as lia pela

manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir.

Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no

banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em

que cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava

banho, cuidava da barba e engomava o bigode num ambiente satura-

do de água-de-colônia da legítima de Farina Gegenüber, e se vestia

de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de cordovão.

Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito

festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da grande epidemia

de cólera-morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio

continuava igual ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café

em família, mas com um regime pessoal: uma infusão de flores de ab-

sinto maior, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho cujos

dentes descascava e comia um por um, mastigando-os com método

em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em

raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado

com suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com suas

promoções artísticas e sociais.

Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos

sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas

debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor

de motores com o fedor de óleos da baía, cujos eflúvios esvoaçavam

por dentro da casa nas tardes de calor como um anjo condenado à

podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em especial

romances e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao

louro doméstico que há anos era uma atração local. Às quatro saía para

visitar os doentes, depois de tomar uma grande caneca de limonada com

gelo. Apesar da idade, resistia à ideia de receber os pacientes no con-

sultório, continuando a atendê-los nas respectivas casas, como sempre

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tinha feito, desde os tempos em que a cidade era tão doméstica que se

podia ir a pé a qualquer lugar.

Desde que voltara da Europa pela primeira vez andava no landô

familiar com dois alazães dourados, mas quando este se tornou im-

prestável trocou-o por uma vitória de um cavalo só, e continuou a

usá-la sempre com um certo desdém pela moda, nessa época em que as

carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas que ainda

perduravam na cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas

ao cemitério. Embora se negasse a aposentadoria, estava consciente

de que só o chamavam para atender a casos perdidos, mas considerava

que isso também era uma forma de especia lização. Era capaz de saber

o que tinha um doente só pelo seu aspecto, e cada vez desconfiava

mais dos medicamentos comerciais e via com alarme a vulgarização

da cirurgia. Dizia: “O bisturi é a prova maior do fracasso da medicina.”

Achava que dentro de um critério estrito todo remédio era veneno, e

que setenta por cento dos alimentos correntes apressavam a morte. “De

qualquer maneira”, costumava dizer em classe, “a pouca medicina que

se sabe só a sabem alguns médicos.” De seus entusiasmos juvenis tinha

passado a uma posição que ele mesmo definia como um humanismo

fatalista: “Cada qual é dono de sua própria morte, e a única coisa que

podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo nem

dor.” Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do

folclore médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo

mesmo quando já eram profissio nais estabelecidos, pois reconheciam

nele o que então se chamava olho clínico. De todo modo foi sempre

um médico caro e excludente, e sua clientela se concentrava nas casas

fidalgas do bairro dos Vice-Reis.

Tinha um dia a dia tão metódico que a esposa sabia onde lhe mandar

um recado se surgisse algo urgente no transcorrer da tarde. Quando

moço passava algum tempo no Café da Paróquia antes de voltar para

casa, e assim aperfeiçoou seu xadrez com os cúmplices do sogro e com

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alguns refugiados do Caribe. Mas a partir dos albores do novo século

não voltou ao Café da Paróquia e tratou de organizar torneios nacio-

nais patrocinados pelo Clube Social. Foi por essa época que chegou

Jeremiah de Saint-Amour, já com os joelhos mortos e ainda sem o

ofício de fotógrafo de crianças, e antes de três meses era conhecido de

quem quer que soubesse movimentar um bispo num tabuleiro, porque

ninguém conseguira ganhar-lhe uma partida. Para o doutor Juvenal

Urbino foi um encontro milagroso, num momento em que o xadrez

se trans formara para ele numa paixão indomável e já não lhe restavam

muitos adversários para saciá-la.

Graças a ele, Jeremiah de Saint-Amour pôde ser o que foi entre nós.

O doutor Urbino se converteu em seu protetor incondicional, em seu

fiador de tudo, sem se dar sequer o trabalho de averiguar quem era,

nem o que fazia, nem de que guerras sem glória vinha naquele estado

de invalidez e descalabro. Acabou por emprestar-lhe o dinheiro para

que montasse o estúdio de fotógrafo, que Jeremiah de Saint-Amour

pagou com um rigor de pobre soberbo, até o último vintém, a partir

do instante em que retratou o primeiro menino assustado pelo relâm-

pago de magnésio.

A causa de tudo foi o xadrez. A princípio jogavam às sete da noite,

depois do jantar, com justas vantagens para o médico em razão da su-

perioridade notória do adversário, mas cada vez com menos vantagens,

até que emparelharam. Mais tarde, quando o senhor Galileo Daconte

abriu a primeira sala de cinema, Jeremiah de Saint-Amour foi um

dos seus clientes mais assíduos, e as partidas de xadrez se reduziram

às noites em que não se estreava nenhuma fita. Nessa altura se havia

tornado tão amigo do médico que este o acompanhava ao cinema,

mas sempre sem a esposa, em parte porque ela não tinha paciência

para seguir o fio dos enredos difíceis, e em parte porque sempre lhe

pareceu, por puro olfato, que Jeremiah de Saint-Amour não era uma

boa companhia para ninguém.

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