o adolescente e os ideais - questões sobre um mal-estar contemporâneo

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O adolescente e os ideais: questões sobre um mal-estar contemporâneo¹ Luciana Gageiro Coutinho Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela Puc-Rio, Membro do Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Professora-Pesquisadora/FAPERJ vinculada ao NIPIAC do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da UFRJ. E-mail: [email protected] Sabemos que o conceito de adolescência é fruto de uma situação social e histórica, peculiar à nossa sociedade ocidental moderna, na qual cada indivíduo é responsável pela sua trajetória de vida e pelo lugar que ocupará no socius. Em psicanálise, este processo é definido basicamente como um momento lógico (e não simplesmente cronológico), que em geral acompanha as transformações corporais da puberdade e as novas exigências pulsionais apresentadas ao sujeito, obrigando-o a um intenso trabalho psíquico. Este trabalho psíquico inclui uma reedição edípica, na qual o sujeito adolescente é submetido a um novo encontro com a própria castração e com a castração do Outro. Também implica em mudanças na esfera do narcisismo e do eu, até então sustentado pelos ideais e pelas identificações da infância com as figuras parentais. Assim, entendemos a adolescência fundamentalmente como um momento de falência das identificações e dos ideais da infância, quando a identificação primária é colocada à prova, de modo que o ideal do eu deve buscar na cultura novas ancoragens para que possa se fazer operante. No mundo contemporâneo, entretanto, a "passagem" adolescente está cada vez menos determinada ou apontada previamente por rituais e por grandes ideais da cultura, de modo que o adolescente é deixado cada vez mais só frente à tarefa de encontrar seu lugar no social e ocupá-lo. Esta situação, se, por um lado, pode significar um ganho de liberdade, no que uma certa fluidez identificatória do adolescente pode inclusive se aproximar da experiência do sujeito em análise, por outro, parece resultar num confronto com uma dimensão de desamparo e angústia perturbadora. Tendo em vista esse contexto, gostaríamos, neste trabalho, de levantar então algumas questões sobre os efeitos da pulverização e do enfraquecimento dos ideais da cultura na adolescência contemporânea, questões estas que serão desenvolvidas e pensadas também à luz de uma vinheta clínica extraída do atendimento a uma adolescente. As novas identificações e a refundação dos ideais na adolescência Recorrendo às primeiras indicações freudianas sobre o tema, em 1905 nos "Três ensaios sobre a sexualidade", a propósito das transformações da puberdade, podemos dizer que a

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Sabemos que o conceito de adolescência é fruto de uma situação social e histórica, peculiar à nossa sociedade ocidental moderna, na qual cada indivíduo é responsável pela sua trajetória de vida e pelo lugar que ocupará no socius. Em psicanálise, este processo é definido basicamente como um momento lógico (e não simplesmente cronológico), que em geral acompanha as transformações corporais da puberdade e as novas exigências pulsionais apresentadas ao sujeito, obrigando-o a um intenso trabalho psíquico. Este trabalho psíquico inclui uma reedição edípica, na qual o sujeito adolescente é submetido a um novo encontro com a própria castração e com a castração do Outro. Também implica em mudanças na esfera do narcisismo e do eu, até então sustentado pelos ideais e pelas identificações da infância com as figuras parentais. Assim, entendemos a adolescência fundamentalmente como um momento de falência das identificações e dos ideais da infância, quando a identificação primária é colocada à prova, de modo que o ideal do eu deve buscar na cultura novas ancoragens para que possa se fazer operante.

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  • O adolescente e os ideais: questes sobre um

    mal-estar contemporneo

    Luciana Gageiro Coutinho

    Psicloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia Clnica pela Puc-Rio, Membro do Frum

    do Crculo Psicanaltico do Rio de Janeiro. Professora-Pesquisadora/FAPERJ vinculada

    ao NIPIAC do Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Instituto de Psicologia da

    UFRJ. E-mail: [email protected]

    Sabemos que o conceito de adolescncia fruto de uma situao social e histrica,

    peculiar nossa sociedade ocidental moderna, na qual cada indivduo responsvel pela

    sua trajetria de vida e pelo lugar que ocupar no socius. Em psicanlise, este processo

    definido basicamente como um momento lgico (e no simplesmente cronolgico), que

    em geral acompanha as transformaes corporais da puberdade e as novas exigncias

    pulsionais apresentadas ao sujeito, obrigando-o a um intenso trabalho psquico. Este

    trabalho psquico inclui uma reedio edpica, na qual o sujeito adolescente submetido

    a um novo encontro com a prpria castrao e com a castrao do Outro. Tambm implica

    em mudanas na esfera do narcisismo e do eu, at ento sustentado pelos ideais e pelas

    identificaes da infncia com as figuras parentais. Assim, entendemos a adolescncia

    fundamentalmente como um momento de falncia das identificaes e dos ideais da

    infncia, quando a identificao primria colocada prova, de modo que o ideal do eu

    deve buscar na cultura novas ancoragens para que possa se fazer operante.

    No mundo contemporneo, entretanto, a "passagem" adolescente est cada vez menos

    determinada ou apontada previamente por rituais e por grandes ideais da cultura, de modo

    que o adolescente deixado cada vez mais s frente tarefa de encontrar seu lugar no

    social e ocup-lo. Esta situao, se, por um lado, pode significar um ganho de liberdade,

    no que uma certa fluidez identificatria do adolescente pode inclusive se aproximar da

    experincia do sujeito em anlise, por outro, parece resultar num confronto com uma

    dimenso de desamparo e angstia perturbadora. Tendo em vista esse contexto,

    gostaramos, neste trabalho, de levantar ento algumas questes sobre os efeitos da

    pulverizao e do enfraquecimento dos ideais da cultura na adolescncia contempornea,

    questes estas que sero desenvolvidas e pensadas tambm luz de uma vinheta clnica

    extrada do atendimento a uma adolescente.

    As novas identificaes e a refundao dos ideais na adolescncia

    Recorrendo s primeiras indicaes freudianas sobre o tema, em 1905 nos "Trs ensaios

    sobre a sexualidade", a propsito das transformaes da puberdade, podemos dizer que a

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  • adolescncia diz respeito a um "reencontro do objeto". Desta forma, Freud parece apontar

    que a adolescncia envolve, simultaneamente, um afastamento dos primeiros objetos de

    amor e um reencontro com estes nas novas relaes que ento se estabelecem. De fato,

    como afirma em 1909, no artigo sobre os "Romances familiares", ao se afastar dos pais

    de origem e escolher outros objetos para as suas fantasias, o adolescente no os despreza

    totalmente, mas acaba por enaltecer determinados atributos nos "novos pais" que remetem

    aos seus primeiros objetos de amor e identificao.

    J em "Algumas reflexes sobre a psicologia do escolar" (Freud, [1914]1974), nos

    deparamos com Freud diante de sua prpria adolescncia. Trata-se de um artigo escrito

    por Freud para um volume coletivo em comemorao aos cinquenta anos de fundao do

    colgio em que havia estudado em Viena entre os nove e dezessete anos de idade. Neste

    artigo, Freud descreve claramente o desligamento do adolescente de "seu primeiro ideal".

    "De seu quarto de criana, o menino comea a vislumbrar o mundo exterior e no pode

    deixar de fazer descobertas que solapam a alta opinio original que tinha sobre o pai e

    que apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai no o mais

    poderoso, sbio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a critic-lo, a avaliar o

    seu lugar na sociedade; e ento, em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo

    desapontamento que lhe causou" (Freud, [1914]1974: 288).

    ento que Freud presta homenagem a seus antigos professores, sugerindo que os

    sentimentos por vezes ambguos ou excessivos em relao a eles apontam para uma

    importante tarefa desempenhada por eles na adolescncia, ao substiturem o lugar de ideal

    ocupado na infncia pelo pai. Neste trabalho, Freud constata que, talvez, seu grande

    interesse pela cincia ao longo da vida, deva-se, em grande parte, admirao e afeio

    que dedicava a seus mestres em sua adolescncia.

    Relendo Freud luz da teoria lacaniana (Lacan, [1950] 1994; Rassial, 1996), entendemos

    que, ao tratar do tema do reencontro do objeto na adolescncia, Freud aponta para o trao

    simblico que est na origem do ideal do eu como herana deixada pela identificao

    primria na infncia (Freud, [1921] 1972). Este ideal posto prova na adolescncia,

    devendo assumir uma nova configurao imaginria em funo das novas identificaes

    que ento se do a partir do encontro de novos objetos, idias ou projetos que ocupem

    para estes jovens o lugar de ideais. Este trabalho, como nos mostram Rassial (1996)e

    Manoni (1999), no se reduz a uma simples "troca de penas", mas um trabalho

    fundamental na produo de uma nova amarrao na constituio do eu e dos ideais.

    Assim, pensamos que, dentre os desafios que se colocam ao sujeito na passagem

    adolescente, est o trabalho que visa tornar operante o ideal do eu e assim, possibilitar

    novas vias de escoamento para o real da pulso, diferentes das vias at ento trilhadas

    durante a infncia.

    O ideal do eu justamente esse conceito de fronteira entre o individual e o social, que faz

    com que cada sujeito possa se constituir e se reconhecer numa dada sociedade, com uma

    dada cultura. Como j dizia Freud, "alm do seu aspecto individual, esse ideal tem seu

    aspecto social; constitui tambm o ideal comum de uma famlia, uma classe ou uma

    nao" (Freud, 1974[1914a]:119). Assim, consideramos que a questo dos ideais crucial

    para o adolescente, na medida em que so eles que iro fornecer os meios necessrios ao

    adolescente para elaborar essa passagem da famlia ao mundo social mais amplo, tal como

    se d na nossa sociedade.

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  • Adolescncia e mal-estar contemporneo

    Gostaramos de nos deter agora mais especificamente na questo da falncia das

    identificaes e dos ideais na adolescncia diante do contexto atual de declnio dos

    grandes ideais culturais, o que supomos ter fortes repercusses na elaborao psquica

    desta "passagem" pelos adolescentes contemporneos.

    Vivemos num mundo de aceleradssima circulao de informaes e de idias, onde o

    discurso da cincia ocupa um lugar excepcional, mas onde nenhum discurso ou

    representante possui legitimidade social a ponto de ocupar o lugar de um ideal cultural

    razoavelmente estvel e transmissvel. O que ocorre no mundo contemporneo, como

    constata Dufour (2000) que estamos diante de figuras de Outro que no cessam de

    mudar, de modo que o espao simblico tornou-se movedio. Desta forma, Dufour chama

    a ateno para o impasse que se coloca aos sujeitos no mundo contemporneo,

    particularmente na adolescncia, momento em que, como ele afirma, "cada um est em

    busca de um Outro a quem dedicar sua vida" (Dufour, 2000:22), ou ainda, de um ideal

    que sirva de referncia para o seu desejo.

    Na leitura de Lebrun (2004), trata-se de um "simblico virtual", que se faz notar desde o

    interior da famlia, onde o lugar de autoridade paterna abalado, mas que tambm se faz

    presente em inmeras outras esferas da sociedade, tais como as instituies de educao,

    o Estado, e at mesmo o judicirio, que se torna inflado exatamente numa tentativa de

    suprir a falncias das outras instncias. Este enfraquecimento do simblico, diz ele, tem

    repercusses especficas na clnica de adolescentes e de seus pais, por exemplo, atravs

    da dificuldade dos pais em dizer no a seus filhos, dificuldade esta que ratificada pelo

    discurso social vigente. Assim, segundo Lbrun, como se o discurso social no

    prescrevesse para o adolescente que ele deve crescer, renunciar s satisfaes da infncia,

    ou ainda, diramos ns, no lhes apontassem outro caminho seno o de permanecer na

    posio infantil. Ou ainda, como se sujeito abdicasse de sua necessidade de assumir a

    insatisfao que caracteriza sua condio e que o faz erguer para si um ideal. Citando

    Lebrun:

    "No que no exista mais ideal, que o ideal novo consiste em poder passar sem ideal,

    em ser apenas conforme e transparente com relao ao prprio funcionamento. No

    estaramos, ento, no fim das ideologias, mas na ideologia de pensar viver sem ideologia"

    (Lbrun, 2004: 132)

    Partindo dessas observaes de Lebrun e de Dufour, pensamos que, de fato, diante do

    hiper-individualismo, da profuso de imagens e dos imperativos de gozo que imperam

    em nossa sociedade de consumo miditica, assistimos a uma acelerada pulverizao e

    dissoluo dos ideais da cultura no mundo contemporneo. Assim, no dispomos

    atualmente de ideais que contenham em si um valor efetivamente simblico, que sejam,

    por um lado, passvel de ser compartilhado, mas que tambm consistam em referncias

    para cada sujeito, que possa dela se apropriar seu modo. No mundo contemporneo, tais

    referncias, muitas vezes no passam de imagens transitrias, totalitrias e paralizantes,

    de modo que a falncia dos ideais que se apresenta na cultura tende a tornar ainda mais

    penosa a falncia dos ideais tpica da adolescncia.

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  • Tais hipteses parecem se confirmar ao recorrermos clnica e escuta do mal-estar na

    expresso dos prprios adolescentes que atendemos hoje. Passemos ao caso de Maria,

    uma adolescente de 15 anos, s voltas com questes sobre o seu desejo e a sua posio de

    mulher, seja na esfera amorosa e familiar, na qual revive muitos de seus dramas infantis

    com o namorado, seja na esfera do mundo pblico, quando se pergunta sobre a profisso

    que quer seguir.

    Entre os motivos pelos quais sua me concorda em traz-la para a anlise, a relao com

    o primeiro namorado e o sofrimento experimentado diante de uma possvel separao,

    esto no centro da demanda formulada nesse primeiro momento por ambas.

    Paralelamente, a me tambm traz uma preocupao quanto sexualidade de Maria, a

    partir de determinadas atitudes da filha ao entrar na adolescncia, tais como o fato de j

    ter se declarado homossexual diante da famlia, e, por outro lado, apresentar-se fortemente

    sedutora em relao a todos os homens com quem convive.

    Seu pai apresentado por ela como algum bastante enfraquecido socialmente,

    deslegitimado por no conseguir trabalhar, por no contribuir financeiramente na

    educao das filhas e no se relacionar com nenhuma mulher aps a separao da me de

    Maria h dez anos, a no ser com sua prpria me, com quem mora desde ento. Maria

    se queixa por seu pai nunca assumir uma posio mais firme em relao s filhas, nem

    mesmo no que diz respeito ao direito de v-las. Numa das sesses em que fala dele, Maria

    chora ao declarar que gostaria muito que seu pai a obrigasse a passar os fins de semana

    com ele, como fazem os pais de muitas amigas suas. De sua infncia, uma cena bastante

    representativa desta posio flcida do pai recorrente em suas associaes:

    "Uma vez eu estava brincando na rua e uma amiguinha me convidou para ir casa dela.

    Eu devia ter uns seis anos. A interfonei para meu pai e perguntei a ele se eu poderia ir.

    Sabe o que ele me disse? Se voc achar que pode, v minha filha".

    A me de Maria, por sua vez, tambm no facilita Maria seu caminho em direo

    construo de um ideal de mulher, que lhe sirva de referncia para "amar e trabalhar",

    experincias to fundamentais para a felicidade humana, como j dizia Freud. Casou-se

    de novo com um homem alcolatra e, apesar de mostrar seu empenho em dedicar-se

    integralmente s filhas, no consegue se estabelecer profissionalmente e est sempre

    envolvida em srios problemas financeiros. Vive, ento, s custas da ajuda financeira de

    sua prpria me e dos bens tambm advindos de uma herana da famlia materna. A

    labilidade da posio materna em relao filha tambm se faz notar logo, quando, no

    dia seguinte da primeira entrevista feita com as duas, ela telefona analista perguntando

    como proceder diante da angstia da filha, que no queria ficar na escola naquele dia e

    pede para que a me v busc-la. Assim, ao voltar-se para a me na busca por referncias

    diante da angstia provocada pelas questes em torno de sua sexualidade na adolescncia,

    movimento complexo para toda menina adolescente pois implica em lidar com a tnue

    fronteira entre amor e identificao, Maria acaba por perpetuar sua posio infantil de

    objeto flico da me. Sem encontrar nem no pai na me os suportes necessrios para

    constituir para si um ideal que lhe indique uma posio desejante, tarefa para a qual

    convocada particularmente na adolescncia, Maria permanece alienada numa relao

    ambgua e atormentadora com uma me idealizada que ocupa um lugar central em sua

    vida.

  • O discurso dessa adolescente nos faz pensar que, efetivamente, seu drama ancora-se em

    uma problemtica que transcende sua situao familiar, j que a transmisso dos ideais

    pela famlia esbarra inevitavelmente na fragilidade dos ideais culturais a serem

    transmitidos. Como sair da adolescncia numa cultura que, por diversas razes,

    desvaloriza a prpria posio do adulto como aquele que pode renunciar ao gozo da

    imediatez em nome de um ideal a ser atingido? Nesse contexto, a insegurana, ou at

    mesmo a ausncia e a omisso dos pais pode ser perfeitamente entendida e justificada

    socialmente. No caso de Maria, isto est presente claramente na sua histria e sua famlia,

    na qual a fragilidade da presena e da funo paterna deixa muitas marcas. Marcas estas

    que tambm se fazem presentes na posio ocupada pela me diante da filha, oscilando

    entre a onipotncia e a inconsistncia, o que a faz, finalmente, apelar analista enquanto

    um terceiro.

    Durante a anlise, a fala de Maria aos poucos se desloca da relao imperiosa com a me

    para outras figuras do social, tais como cones miditicos e professores, representantes da

    pluralidade dos ideais culturais contemporneos. Assim, Maria vai falando de uma srie

    de questes em torno do que ser mulher, das primeiras experincias amorosas e sexuais

    com o sexo masculino, da posio que tem ocupado em suas relaes com as amigas, e

    assim vai elaborando sua passagem de objeto flico da me construo de um modo

    singular de desejar.

    Ao longo de seu percurso de anlise Maria tem se deparado, de forma bastante dolorosa,

    com a desidealizao da me, e mais tarde do namorado, e, consequentemente, com o fato

    de que no conseguir levar a vida sem estar sempre "sentada no banco do carona". Quando

    est s, Maria muitas vezes depara-se com episdios de muita angstia, para os quais no

    v outra sada a no ser comer compulsivamente. Diz: "quando estou sozinha s vezes s

    penso em me afogar na comida e nunca mais sair." Em outros momentos, Maria tambm

    levada a outras formas de "agir" para escoar o excesso pulsional para o qual no encontra

    outras vias possveis. Atravs do exerccio de uma liberdade extrema, que tambm beira

    a angstia, Maria se expe a situaes bastantes perigosas e arriscadas, ao sair tarde da

    noite sozinha de nibus, se expor polcia portando maconha, perdendo tambm os

    limites no que diz respeito a sua disciplina em relao escola e aos horrios. Felizmente,

    o horrio da anlise tem sido preservado, e este tem sido o espao onde ela tem podido se

    deparar com seu incmodo frente a esta experincia de perda de limites e de perda de si

    que acompanha seu caminho em direo ao "tornar-se mulher".

    Nossa hiptese que este caso ilustra, de alguma forma, o contexto cultural

    contemporneo de enfraquecimento dos ideais enquanto referncias simblico-

    imaginrias para o desejo, que acaba por exacerbar o desamparo e a angstia decorrente

    da invaso do real da pulso na adolescncia. Assim, ao invs de contriburem para a

    renovao social ao sustentarem novos ideais junto a seus pares, parece-nos que, muitas

    vezes, os adolescentes vem-se desamparados, o que os leva a experimentar momentos

    de uma angstia impensvel e de uma ameaa de desintegrao e despersonalizao,

    como j observou Winnicott (1975). Sem referncias que os ajudem a transpor as

    identificaes e idealizaes da infncia, os adolescentes se vem, muitas vezes, numa

    impossibilidade de sustentar a funo desejante, sendo levados a uma descarga pulsional

    no real atravs do ato. Sendo assim, no difcil imaginar que, em nossa sociedade

    contempornea, a "passagem" adolescente se complica ou simplesmente no se completa

    jamais.

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  • Antes de concluir, gostaramos de marcar que no se trata aqui de um discurso saudosista

    ou retrgrado, que prope o resgate de ideais hegemnicos, ideais esses que, sabemos, j

    foram suporte para muitas formas de opresso e tirania. Cabe, entretanto, apontar as

    particularidades de nosso momento histrico na construo da subjetividade, com seus

    efeitos to constrangedores quanto promissores. Enfim, tomando o adolescente como o

    sujeito contemporneo por excelncia, talvez possamos melhor apreender os impasses

    que hoje se colocam nossa sociedade e aos sujeitos que nela se constituem.

    Referncias bibliogrficas:

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    LBRUN, J. (2001). Um Mundo Sem Limite. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2004.

    MANONI, O.(1983). A adolescncia analisvel? In: DELUZ, A (org) A Crise da

    Adolescncia: Debates entre Psicanalistas, Antroplogos, Escritores, Historiadores,

    Lgicos, Psiquiatras, Pedagogos.Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1999.

    RASSIAL, J.(1996) A Passagem Adolescente- da famlia ao lao social. Porto Alegre,

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  • WINNICOTT, D. (1968). Conceitos contemporneos de desenvolvimento adolescente e

    suas implicaes para a educao superior. In: Winnicott, D. O Brincar e a Realidade. Rio

    de Janeiro, Imago, 1975.

    1 Este artigo foi escrito a partir do projeto de pesquisa que venho desenvolvendo

    atualmente no NIPIAC (Ncleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercmbio para a Infncia

    e Adolescncia Contemporneas) situado no Instituto de Psicologia da UFRJ, contando

    com o apoio financeiro da FAPERJ atravs de uma bolsa de Fixao de Pesquisador.

    2015 Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    Rua Alves Guimares, 1292 apto 52

    So Paulo - SP

    CEP 05410-002

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