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1 COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014 ABRIL 2015 BOLETIM INFORMATIVO 35 Manuel Carvalho da Silva Eugénio Rosa Hermes Costa José Maria Castro Caldas Pedro Ramos Elísio Estanque António Casimiro Ferreira Jorge Leite Maria da Paz Lima Vitor Ferreira Participações nesta edição “O papel da negociação coletiva: potencialidades e constrangimentos” “Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho” EDIÇÃO ESPECIAL "A transferência de rendimentos do trabalho para o capital" COLÓQUIO

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Page 1: o A transferência de rendimentos do trabalho para o capital · trabalho extraordinário, da intensificação da carga de trabalho. [ 2 ] “A transferência de rendimentos do trabalho

1COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

ABRIL 2015

boletim informAtiVo 35

Manuel Carvalho da SilvaEugénio RosaHermes CostaJosé Maria Castro CaldasPedro RamosElísio EstanqueAntónio Casimiro FerreiraJorge LeiteMaria da Paz LimaVitor Ferreira

Participações nesta edição

“O papel da negociação coletiva: potencialidades e constrangimentos”

“Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho”

EDIÇÃO ESPECIAL

"A transferência de rendimentos do trabalho para o capital"para o capital"COLÓQUIO

Page 2: o A transferência de rendimentos do trabalho para o capital · trabalho extraordinário, da intensificação da carga de trabalho. [ 2 ] “A transferência de rendimentos do trabalho

2STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

fragilização do direito do trabalho, do enfraquecimento do Estado Social; do agravamento dos desequilíbrios nas re-lações de trabalho, colocando os traba-lhadores em situação de maior desprote-ção e fragilidade e de representação.

Eugénio Rosa (Economista)Realçou o aumento da exploração dos trabalhadores da Função Pública atra-vés do congelamento das remunerações e carreiras, do corte nos salários nomi-nais, da generalização do trabalho gra-tuito através do aumento do horário de trabalho, da redução do pagamento do trabalho extraordinário, da intensificação da carga de trabalho.

[ 2 ] “A transferência de rendimentos do trabalho para o capital”

[ 5 ] intervenção inicial - manhã Manuel Carvalho da Silva - (Coordenador do CES - Lisboa) “Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho”

[ 34 ] Manuel Carvalho da Silva Intervenção final

[ 21 ] intervenção inicial - tarde Elísio Estanque - (Sociólogo) “O papel da negociação coletiva: potencialidades e constrangimentos

[ 7 ] intervenção - manhã Eugénio Rosa - (Economista) Hermes Costa - (Sociólogo) José Castro Caldas - (Economista) Pedro Ramos - (Economista)

[ 22 ] intervenção - tarde António Casimiro Ferreira - (Sociólogo) Jorge Leite - (Sociólogo) Maria da Paz Lima - (Socióloga) Vitor Ferreira - (Advogado)

O Colóquio realizado na Sede do STEC, em 19 de Junho de 2014, e que só agora nos é possível apresentar aos sócios, foi subordinado ao tema “A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL”, tema que se mantém muito atual.

a transferência de rendimentos do trabalho para o capital

índice

Este Colóquio, que reuniu economistas, sociólogos, juristas, advogados e sindi-calistas, procurou, de forma sustenta-da, apresentar abordagens diferentes daquele que é o discurso oficial, con-cluindo-se, entre outras, que, em 2013, mais de 3 mil milhões de euros foram transferidos do fator trabalho para o fa-tor capital; e, também, que a negocia-ção coletiva abrangia, em 2010, mais de 1.200.000 trabalhadores, e, em 2013, já só abrange 196.000 trabalhadores. A juntar a estes factos o de se estar pe-rante uma das maiores ofensivas à con-tratação coletiva e aos seus interlocu-tores principais: os sindicatos.

O painel da manhã teve por títu-lo “Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho”, foi apre-sentado por Manuel Carvalho da Silva (Coordenador do CES - Lisboa), que pre-tendeu debater com sindicalistas e qua-dros técnicos das organizações sindi-cais as implicações desta transferências ao nível dos rendimentos dos trabalha-dores e das suas famílias, contribuindo fortemente para o empobrecimento dos portugueses; dos direitos no trabalho e

Sede STEC - LISBOA Largo Machado de Assis, Lote-A, 1700-116 LISBOAtel 21 845 4970/1 - móv 93 859 0888, 91 849 6124

fax 21 845 4972

Delegação STEC - PORTOR. do Bolhão, nº 85 - 4º Dto, 4000-112 PORTO

tel 22 338 9076, 22 338 9128fax 22 338 9348

Delegação STEC - COIMBRAR. do Carmo, nº 54 - 3º Letra Q, 3000-098 COIMBRA

tel 23 982 7686, 23 982 8554fax 23 982 6802

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Boletim Informativo Caixa Aberta Nº 35 - Edição EspecialAbril de 2015

Periodicidade: Trimestral - Tiragem: 6500 ExemplaresDirecção e Redacção: Departamento de Comunicação do STEC

Concepção Gráfica: Hardfolio - Impressão: Ligrate - Atelier Gráfico, Lda.

caixa aberta nº 35 - abril 2015

C O L Ó Q U I O

O painel da manhã teve por título “Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho”

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3COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

mo de justiça social que está a ser pos-to em causa pela desestruturação das dimensões coletivas associadas ao tra-balho e pelas políticas de austeridade.

Jorge Leite (Jurista)Opinou sobre a responsabi l idade da lei na transformação da negocia-ção coletiva em instrumento de ges-tão das empresas; do direito do traba-lho com "alma" ao direito do trabalho sem "alma". Questionou se a resolução do Conselho de Ministros nº 90/2012 (Nota: Define os critérios mínimos, ne-cessários e cumulativos a observar no procedimento para a emissão de porta-ria de extensão) seria mero reforço do brilho da estrela da Administração Pú-blica no firmamento da autonomia cole-tiva ou expressão da difícil convivência do Governo com o princípio do Estado de Direito e, em particular, com a Cons-tituição.

Maria da Paz Lima (Socióloga)Falou sobre a vaga de auster idade neoliberal observada na Europa, na sequência da crise financeira interna-cional, que visou a desvalorização sala-rial competitiva e a desregulamentação da legislação social, em particular nos países do sul da Europa. As políticas implementadas, em Portugal, no perí-odo de intervenção da troika visaram enfraquecer significativamente as com-ponentes do regime de emprego e do sistema de relações laborais que se distinguiam do modelo liberal. Por via destas políticas operou-se não só uma significativa transferência dos rendi-mentos do trabalho para o capital, mas também uma alteração das relações de poder capital/trabalho a favor do capi-tal, através de uma política anti-sindical e de precarização do trabalho.

Hermes Costa (Sociólogo)Referiu que é num quadro de precarie-dades e desigualdades que o sistema de relações laborais pode ser enquadrado, evidenciando/confirmando o lugar su-balterno do trabalho. As transferências de rendimentos do trabalho para o ca-pital são parte de um processo geral de perda/desvalorização associado ao fa-tor trabalho. A conflitualidade laboral é a compensação/reação face à frustra-ção decorrente do reforço das assime-trias nas relações laborais, ainda que a reação sindical apresente um caráter mi-tigado.

José Castro Caldas (Economista)Fala sobre a desvalorização do trabalho. De como levar à prática o memorando de entendimento de 2011, em que as me-didas de reconfiguração das relações de trabalho produziram uma acentuada des-valorização dos rendimentos salariais e uma acentuada transferência de rendi-mentos do trabalho para o capital, mas que não produzem qualquer resultado quanto à correção do défice externo.

Pedro Ramos (Economista)Encerrou o painel da manhã, tendo con-cluído que, ao contrário do que seria ex-petável num período de crise, se observa um claro aumento do peso da remune-ração do capital, bem como uma dimi-nuição do papel redistribuidor do Esta-do, em particular na provisão de bens públicos.

O painel da tarde, teve por título “O papel da negociação coletiva: poten-cialidades e constrangimentos” tendo sido introduzido e moderado por Elísio Estanque (Sociólogo). Após breve apre-sentação dos oradores que se seguiriam, realçou o interesse e atualidade do tema, e que apesar da realidade do momento, há um caminho alternativo.

António Casimiro Ferreira (Sociólogo)Realçou a centralidade da negociação coletiva, e o facto de ser um mecanis-

Vitor Ferreira (Advogado)Enfatizou que na relação entre o lobo e o cordeiro, a lei não pode colocar-se ao lado do lobo! O contrato de trabalho, de que dependem, em regra, as famílias, não é um contrato qualquer. E não pode ser tratado como o parente pobre dos contratos. O direito à negociação coleti-va não pode ser reduzido à opção entre a cedência de direitos conquistados e a caducidade do contrato.

NOTA FINAL

Uma análise mais detalhada sobre alguns dos temas abordados neste Colóquio pode ser continuada através do livro entretanto publicado com o título "A Economia Política do Retrocesso" (Autor: José Reis (Coordenador), Edições CES-Almedina), onde não só se procura traçar um diagnóstico do "ajustamento estrutural" exteriormente imposto a Portugal, mas também se propõem políticas alternativas.

O painel da tarde teve por título “O papel da negociação coletiva: potencialidades e constrangimentos”

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4STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

austeridade, refOrmas labOrais e desvalOriZaçãO dO trabalhO

Moderador: Manuel Carvalho da Silva, sociólogo

Eugénio Rosa, economista Aumento do horário de trabalho e cortes nos rendimentos dos trabalhadores da Administração Pública

Hermes Costa, sociólogo Do contexto das reformas laborais às respostas do campo sindical

José Castro Caldas, economista Desvalorização do trabalho: do memorando à prática

Pedro Ramos, economista A repartição do rendimento em Portugal: alguns números e breve reflexão

Visite o site do CES para mais informações, transcrições, vídeos e apresentações sobre o colóquio.

Aceda a www.ces.uc.pt/eventos/index.php?id=9861&id_lingua=1

ou utilize o código QR apresentado.

O papel da negOciaçãO cOletiva: pOtencialidades e cOnstrangimentOs

Moderador: Elísio Estanque, sociólogo

António Casimiro Ferreira, sociólogo A austeridade e as políticas do direito coletivo do trabalho

Jorge Leite, jurista Negociação coletiva, o (novo) instrumento de desvalorização do trabalho?

Maria da Paz Campos Lima, socióloga As mudanças do regime de emprego em Portugal na ótica neoliberal: desvalorização interna, desigualdade e reconfiguração das relações coletivas de trabalho

Vítor Ferreira, advogado A progressiva desvalorização do contrato de trabalho e degradação do estatuto do trabalhador, como meio de transferência de rendimento para o capital

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5COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

Manuel Carvalho da Silva

Em nome do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do Observatório das Crises e Alternativas, e tam-bém em nome dos Sindicatos que são nossos parceiros na organização desta iniciativa, desde logo o STEC (Sindica-to dos Trabalhadores das Empresas do Grupo CGD) a quem agradecemos a cedência destas instalações para nós traba-lharmos, em nome do Sindicato dos Trabalhadores Judiciais, do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e do Sindicatos dos Jor-nalistas, em nome de todos e também da equipa organizado-ra em particular do Professor Jorge Leite que teve uma inter-venção ativa na preparação deste colóquio, a todos o nosso sincero obrigado.

Uma nota muito ligeira sobre o Observatório das Crises e Al-ternativas que foi criado no âmbito dos Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, nasceu com o apoio não monetário do Instituto de Estudos Laborais da Organização Internacio-nal do Trabalho, com quem colaboramos de muito próximo, com apoios privados, incluindo quatro dos cinco sindicatos que aqui mencionei e também o Sindicato dos Bancários do Centro e outros apoios privados, e entretanto para a sua pu-blicação de mais fôlego temos também o patrocínio da Gul-benkian.

Dizer-vos que o Observatório vai produzindo algumas inicia-tivas, como colóquios, conferências, reflexões, com equipas especializadas em várias áreas. Para aqueles que não conhe-cem, também lembrar que temos um espaço na Internet onde pode ser consultado tudo o que são produções do Observa-tório e também a cronologia das crises. Produzimos, até ago-ra, 8 Barómetros sobre temas de relevo e vamos continuar a produzir, produzimos cadernos (aliás desta iniciativa quere-mos produzir um ou dois cadernos, com a colaboração de todos os nossos conferencistas), e temos oficinas que traba-lham temas, neste momento estamos concentrados na Segu-rança Social e na mobilidade e transportes e áreas de traba-lho diversas.

Quero também dizer que foi terminado nestes dias, e já está para a editora, um relatório que apresentámos de forma pre-liminar, em Dezembro, sobre as Crises e as Alternativas. Esse relatório vai ser editado pela Almedina e também produzido em língua inglesa que terá o título “A economia política do re-trocesso – a crise, causas e objetivos”, e estará aí dentro de algum tempo. Para além da versão preliminar, que foi retraba-lhada, tem um capítulo final e é à luz desse trabalho que aqui, hoje, estamos.

Para não me alongar muito, preparei três parágrafos de inter-pretação do próprio relatório, que me permito ler e é a par-tir desse conteúdo do relatório que partimos para iniciativas como esta que estamos, aqui, a iniciar.

O relatório fornece-nos uma análise rigorosa a importantes causas, dimensões e expressões, daquilo a que chamámos o processo de reconfiguração da economia da sociedade e mesmo do Estado, processo esse que foi posto em execu-ção acelerada com as políticas de austeridade e do chamado ajustamento estrutural a que o país tem sido sujeito.

O relatório mostra muito claramente aquilo que todos nós pressentimos ou conseguimos identificar, que é a existência de raízes ideológicas por detrás de aparentes soluções téc-nicas ou invocação de determinismos e de inevitabilidades. E podemos dizer que identificados e sistematizados os objeti-vos, os instrumentos e as medidas políticas adotadas, con-clui-se, sem dúvida, que estamos perante uma opção muito concreta: o que tem estado em execução é um programa de economia política de retrocesso, que eu costumo dizer so-cial e civilizacional, aplicado a um país concreto, neste caso a Portugal. Este livro que aí vem, mostra-nos também as op-ções e inflexões do ritmo das políticas europeias e a sua influ-ência neste processo que acabei de identificar, mostra-nos a dependência externa nacional e a sua manipulação para ser-vir interesses privados em vez do interesse nacional, e tam-bém a sua utilização para servir o florescimento de atividade financeira, nomeadamente ao longo de anos fomentando so-bre-endividamento privado que, entretanto, em 2011, repre-sentava três vezes a dimensão do endividamento público. E, entretanto, a campanha de auto-responsabilização do povo português, as posições de cedência e submissão do governo português, das forças que o apoiam e do próprio Presiden-te da República, e a imposição de condições que tornaram cada dia maior o problema e a dívida mais impagável, tudo isto, aprisionou o país, provocou profundas lesões económi-cas e sociais difíceis de reparar, e hoje com certeza que va-mos observar isso: uma brutal transferência de rendimento do trabalho para o capital, que não parou, continua, e conti-nua com medidas de impacto, provocou uma degradação do edifício público de um estado social de direito democrático, e tudo isso também torna muito clara a razão porque o Tribunal Constitucional se tornou, de forma tão emergente, uma das grandes salvaguardas do estado social de direito democráti-co, num quadro que está aí claro de contra-reforma constitu-cional, e ainda ontem tivemos mais expressões deste ataque que tenta concretizar esta contra-reforma constitucional.

A partir deste trabalho que vem sendo feito ao longo de al-gum tempo e a partir do conteúdo do relatório, já tivemos vá-rias iniciativas sobre alguns temas: uma, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; outra, com a Escola de Direito e com a Reitoria da Universidade do Minho. E decidimos (o CES/Observatório e os Sindicatos que acabei de mencionar e de saudar), já há dois meses atrás, que era

Coordenador e Secretário Geral da CGTP-IN (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - Intersindical Nacional). Licenciado em Sociologia no ISCTE, tendo apresentado como conclusão do curso uma dissertação subordinada ao título "Acção social: transformação e desenvolvimento". Doutorou-se em 2007, também no ISCTE, com a dissertação "Centralidade do Trabalho e Acção Colectiva. Sindicalismo em Tempo de Globalização". É investigador do CES desde 2009. Coordena a delegação do CES em Lisboa e o Observatório sobre Crises e Alternativas, criado por este centro em abril de 2012. Desde 2011 é Professor Catedrático convidado da Universidade Lusófona.

o que tem estado em execução é um programa de economia política de retrocesso

intervenção inicial - manhã

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6STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

muito oportuno trazermos um aprofundamento da questão da transferência de rendimentos do trabalho para o capital.

Como sabem, quando o relatório preliminar foi apresentado, nós calculámos que só as alterações da legislação do traba-lho produzidas em 2012 tinham um impacto na transferência de rendimentos do fator trabalho para o fator capital que se situavam entre 1,500 e 2,200 milhões de euros, só essas, e não todas, constantes da Lei 23 de Agosto de 2012.

As coisas não estão só aí, a dimensão é muito maior, há um aprofundamento deste processo também na área da adminis-tração pública que nós não tivemos oportunidade de colocar no relatório, e continua a haver um conjunto grande de medi-das que vão nesse sentido - de transferência de rendimento, muito, muito grande.

E, entretanto, vamos observando que o quadro normativo da contratação coletiva e a efetividade da contratação coletiva são esvaziados, enfraquecidos e até subvertidos, e que o de-saparecimento da efetividade da contratação coletiva tem um efeito brutal neste processo de transferência de rendimentos. E por isso optámos por ter neste colóquio dois painéis: este, que abordará as questões mais gerais de transferência onde vamos ter o contributo do Dr. Eugénio Rosa, a quem queria agradecer, que nos vai abordar questões relativas ao aumen-to de exploração dos trabalhadores da administração públi-ca, o seu significado nas mais horas de trabalho, no trabalho gratuito, no congelamento e cortes nas remunerações; ao Dr. Hermes Costa, um dos autores do capítulo relativo a esta ma-téria destas transferências de rendimento do trabalho para o capital, que nos vai falar do contexto das reformas laborais às reformas do contexto laboral; o Dr. José Maria Castro Caldas, também um dos autores do relatório, que nos vai falar da des-valorização do trabalho, do memorando à prática; e do Dr. Pe-dro Ramos, economista da Universidade de Coimbra, que nos

deu, há ano e meio dois anos, o prazer de ler um livro muito interessante que nos diz “Torturem os números que eles con-fessam”, que é uma reflexão interessantíssima sobre o que são as estatísticas e como se fazem manipulações, naquele caso em relação à Segurança Social. O Dr. Pedro Ramos vai falar-nos sobre a repartição do rendimento em Portugal - al-guns números e breve reflexão - porque as transferências de rendimentos do trabalho para o capital não se fazem apenas nos salários e nos impactos das leis laborais. Tem muitos ou-tros mecanismos também no plano da repartição do rendi-mento e está a acentuar-se.

O painel da tarde volta-se para outras matérias. Julgo que va-mos ter um painel da tarde com conteúdos de novidade signi-ficativa. Novidade no sentido de alertas para reflexão e para a construção de ideias de resposta numa área que é vital no nosso país, não apenas para o mundo do trabalho. A destrui-ção da contratação coletiva alterará as relações de trabalho de uma forma muito significativa, por muito tempo, se ela se concretizar, mas não só, altera as relações sociais, porque nós sabemos que a contratação coletiva não tem dimensão apenas no espaço interno do mundo do trabalho, nas em-presas - ela articula o trabalho com o espaço da sociedade. Portanto, temos um desafio para o qual queremos contribuir: neste tempo de premência de alternativas, ajudarmos a co-locar o trabalho e as causas do trabalho na agenda política – não há alternativas sem este esforço e é para isso que es-tamos aqui.

Obrigado!

intervenção inicialmanhã

A destruição da contratação coletiva alterará as relações de trabalho de uma forma muito significativa, por muito tempo

vamos observando que o quadro normativo da contratação coletiva e a efetividade da contratação coletiva são esvaziados

Manuel Carvalho da Silva

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7COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

sim, num mero instrumento do capital de exploração adicional sendo o seu objetivo transferir rendimentos do trabalho para o capital. Isto é um aspeto extremamente importante que depois até torna mais claro o que está a acontecer a nível da Admi-nistração Pública.

Eu vou analisar os vários instrumentos que têm sido utiliza-dos para fazer essa transferência tentando quantificá-los, eu enumerei-os, são 9, alguns a opinião pública não lhes tem dado uma atenção grande porque eles passam despercebi-dos, mas eles têm representado um instrumento importante de transferência:

1 - O congelamento das remunerações na Administração Pública.

Antes eu queria apresentar um quadro que mostra a evolu-ção da despesa pública das administrações públicas e não apenas da administração central nos últimos três anos, e a conclusão que se tira é que a redução da despesa pública, em Portugal, tem sido conseguida fundamentalmente à cus-ta da redução das despesas com pessoal e do investimento público, o que tem tido consequências bastante grandes. No entanto, mesmo estes números não dão a verdadeira dimen-são daquilo que tem acontecido em Portugal. Se nós olhar-mos para a evolução do poder de compra dos trabalhadores em Portugal vocês têm um gráfico publicado no relatório e

Bom dia a todos.

A minha reflexão vai ser apenas sobre a Administração Públi-ca. Hoje em dia o Estado, isto é importante, é um instrumento adicional de transferências de rendimentos do Trabalho para o capital e muitas vezes não se tem essa noção. Eu vou tentar quantificar aspetos que muitas vezes passam despercebidos, tentando no fim apresentar uma consolidação para poderem ficar com uma ideia clara do que está a acontecer nesta área extremamente importante em Portugal.

A primeira questão que eu gostava aqui de colocar, era con-textualizar, até para se perceber melhor o que está a acon-tecer. Hoje em dia, em Portugal, enfrentamos uma situação, em que tanto a sociedade, como a economia, como o Esta-do, estão extremamente controlados por grupos económicos e financeiros, que muitas vezes de português apenas têm o nome. Se nós analisarmos a estrutura acionista destes gru-pos, verificamos que já são controlados na maioria do capital por grandes grupos estrangeiros, alguns deles até empresas pertencentes a estados estrangeiros. Portanto, o domínio da economia e do Estado acentuou-se muito nestes últimos anos e muitas vezes tem passado despercebido. A agravar esta si-tuação, o país perdeu a soberania monetária, portanto, a ca-pacidade de emitir moeda, o que determina que o Estado es-teja totalmente dependente e refém dos chamados mercados que são constituídos pelos grandes grupos financeiros. Como corolário de toda esta situação, o Estado transformou-se, as-

Eugénio RosaLicenciado em Economia e doutorado pelo ISEG com a tese “Grupos económicos e desenvolvimento em Portugal no contexto da globalização”. Atualmente é membro do gabinete de Estudos da CGTP e do Gabinete Técnico da Federação dos Sindicatos da Função Pública, tendo sido eleito pelos associados do Montepio para o Conselho Geral da Associação Mutualista e para o Conselho Geral e de Supervisão da Caixa Económica – Montepio Geral. Publicou 10 livros e centenas de artigos sobre problemas económicos e sociais portugueses.

cOngelamentO das remunerações da funçãO pública - “pOupança” de 340 milhões €/anO

•Segundo o Relatório que acompanha o OE-2012 (Quadro II.3.1), o “congelamento salarial” representa uma poupança nas Administrações Públicas, e um corte nos rendimentos dos trabalhadores da Função Pública de 340 milhões €/ano

•Portanto nos 4 anos (2011-2014) de “troika” e de governo PSD/CDS significou um corte nos rendimentos dos trabalhadores de 1.360 milhões €.

•Este corte nas remunerações terá efeitos no futuro, pois quando as remunerações forem descongeladas, a atualização far-se-á sobre uma base muito baixa do que aquela que se teria se as remunerações fossem atualizadas todos os anos

Hoje em dia o Estado (...) é um instrumento adicional de transferências de rendimentos do Trabalho para o capital

(...) a redução da despesa pública, em Portugal, tem sido conseguida fundamentalmente à custa da redução das despesas com pessoal e do investimento público

intervenção

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8STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

contas do Banco de Portugal dedicado à economia, verifica--se que são precisamente os salários dos trabalhadores da Administração Pública que sofreram maior queda. Eu co-loquei isto para contextualizar, no entanto a dimensão da re-dução e do corte nos rendimentos dos trabalhadores é muito maior do que está aí representado.

Começando pelo congelamento das remunerações, se nós formos aos documentos oficiais o próprio governo chega à conclusão que o congelamento salarial representa em cada ano uma poupança de 340 milhões de euros. Se multiplicar-mos este valor por 4 anos (os da intervenção da Troika) isto representa uma perda de rendimentos dos trabalhadores da função pública de 1.360 milhões de euros. Isto apareceu uma vez no relatório do orçamento do Estado de 2012 e nunca mais apareceu.

2 - Congelamento das carreirasOutro instrumento que é utilizado que também determina uma redução dos rendimentos, que normalmente não é referido, é o congelamento das carreiras. Não há dados. No entanto, tendo em consideração alguns indícios, coloquei duas hipóte-ses: se não houvesse congelamento, todos os anos entre 5 a 10% de trabalhadores da pública passariam a um nível supe-rior. A passagem de nível representa um aumento de cerca de 51,00€ tendo em conta a tabela única atual da Administração Pública. O congelamento tem representado para os trabalha-dores entre 20 a 40 milhões de euros de rendimentos perdi-dos todos os anos. Se multiplicarmos por 4, varia entre 80 e 160 milhões de euros.

3 - Corte nas remunerações nominaisNão é apenas o congelamento de salários e carreiras. É mes-mo o corte nas remunerações nominais. De acordo com os dados do próprio do Governo, o corte que foi aprovado pela primeira vez pelo governo de Sócrates, representa um corte nos rendimentos dos trabalhadores da Administração Públi-ca de cerca de 420 milhões de euros por ano. Em 2012, para além dos cortes, os trabalhadores sofreram também a expro-priação do subsídio de férias e de Natal, o que representavam cerca de 1.200 milhões de euros de acordo com os dados do Governo. Em 2014, este corte aumentado na Administração Pública a partir dos 675,00€ representava uma redução de 643 milhões de euros. Depois fiz um cálculo a partir da deci-são do Tribunal Constitucional, que admite só o corte em re-lação ao passado. Ele reduz para 247 milhões de euros, mas o governo está a tentar aprovar uma lei que põe em vigor o corte que se iniciou em 2011.

Portanto, mesmo com a decisão do Tribunal Constitucional e sem entrar em linha de conta com um futuro corte que pode ter incidência este ano, só em cortes nominais os trabalhado-res perderam cerca de 2.700 milhões de euros.

4 - O aumento do horário de trabalhoOutro aspeto que tem passado despercebido é o aumento do horário de trabalho de 35 para 40 horas sem qualquer com-pensação salarial. Estive a fazer um cálculo - isto representa cerca de 117 milhões de horas gratuitas por ano. Tendo em conta a remuneração do dia, isto representa uma perda de

O agravamentO das cOndições de trabalhO devidO aO aumentO da carga de trabalhO causada pela saída de 102.046 trabalhadOres que nãO fOram substituídOs degradaçãO serviçOs “pOupança” anual de 2.160 milhões €

ANOS Nº Trabalhadores das AP´s

Despesa Pessoal Milhões €

Despesa c/ Pessoal mensal por trabalhador

2010 663.167 21.157 2.279 €

2011 612.566 19.422 2.265 €

2014 ( Jan.) 561.121 16.389 2.086 €

2014 - 2010 -102.046 -4.768 -193 €

Ganho Médio Mensal - Jan. 2014 - DGAEP 1.512 €

POUPANÇA ANUAL 2.160 Milhões €

O congelamento tem representado para os trabalhadores entre 20 a 40 milhões de euros de rendimentos perdidos todos os anos. Se multiplicarmos por 4, varia entre 80 e 160 milhões de euros.

Outro aspeto que tem passado despercebido é o aumento do horário de trabalho de 35 para 40 horas sem qualquer compensação salarial (...) isto representa cerca de 117 milhões de horas gratuitas por ano

Eugénio Rosa

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9COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

rendimentos dos trabalhadores da função pública - se fossem pagas as horas a singelo - em horas extraordinárias, de 743 milhões de euros por ano.

5 - Redução do número de trabalhadores da função pública

Outro aspeto é a grande redução do número de trabalhado-res na função pública. Entre 2010 e 2014, em Janeiro, houve uma redução de 102.000 trabalhadores. Se nós quantificar-mos esta redução de despesa pela redução do número de trabalhadores, dado que os que ficaram tiveram que fazer o trabalho daqueles que saíram e que não foram substitu-ídos, isso corresponde a uma poupança de cerca de 2.160 milhões de euros.

6 - Redução do pagamento das horas extraordináriasOutro aspeto também importante foi a redução do pagamen-to das horas extraordinárias. Em 2012 para metade, em 2013 e 2014 (pelo menos enquanto não entrar em vigor a lei do trabalho em funções públicas) para 1/4. Para quantificar este valor usei os dados do Ministério da Saúde, onde são feitas cerca de 60% das horas da Administração Pública. Quanti-fiquei isto e cheguei à conclusão que na Administração Pú-blica, antes dos cortes, devia-se pagar por ano em horas extraordinárias cerca de 425 milhões de euros. A redução do pagamento para metade provoca uma redução no ren-dimento dos trabalhadores de 212 milhões de euros e para 1/4 de 318 milhões de euros. São todos instrumentos que se juntam uns aos outros e que determinaram uma redução muito grande nos rendimentos dos trabalhadores da Admi-nistração Pública.

7 - ADSEOutro área importante a considerar é a ADSE. O aumento excessivo dos descontos para criar um excedente na ADSE. O gráfico que consta do relatório de atividades da ADSE de 2013, onde mostra que a participação dos beneficiários já representava 63% e a do Estado apenas 37%. Os descontos dos beneficiários que inclui trabalhadores e aposentados, passou de 226 milhões de euros, em 2012, para 579 milhões de euros, em 2014, isto vai gerar, em 2014, um saldo positivo de 284 milhões de euros.

Porque é que o governo aumentou exageradamente este desconto para a ADSE? É porque a ADSE é uma Direção--Geral, e se tiver saldo positivo entra para o Orçamento do Estado para reduzir o défice, tudo à custa dos trabalhadores da Administração Pública.

Eu consolidei estes valores todos e cheguei a um valor de entre 8.042 e 8.122 milhões de euros o que representa 5% do PIB.

Isto ainda não dá uma verdadeira dimensão, porque nós es-tamos a falar em valores nominais. O impacto no nível de vida dos trabalhadores não se avalia pelo nominal, mas sim o líquido, que é o que levam para casa.

Se analisarmos as tabelas de retenção de IRS nos vários es-calões entre 2010 e 2014, mostra bem o espírito de classe deste governo: os escalões mais baixos têm aumentos de 200%, e à medida que se sobe nos rendimentos o aumento torna-se cada vez menor em percentagem.

Isto também contribuiu para uma redução muito significati-va no rendimento líquido dos trabalhadores da Administração Pública.

Isto teve uma tradução muito grande a nível da carga fiscal. Entre 2012 e 2013 as receitas fiscais aumentaram 13%, mas se virem o IRS aumentou 35%. E de acordo com os dados di-vulgados pelo Ministério das Finanças 63% dos rendimentos do IRS são rendimentos do trabalho, mais de 20% são pen-sões, os restantes rendimentos são quase residuais. E foram fundamentalmente os rendimentos do trabalho e das pensões que sofreram.

Fiz uma simulação (fui buscar dados do EUROSTAT)... o PIB antes das remunerações do trabalho e vê-se a quebra que houve na parte dos rendimentos do trabalho após se retirar a parte do IRS.

Para terminar, fiz um cálculo dos efeitos, quer dos impostos, quer do aumento da ADSE. Aplicando o aumento de impostos e tendo em conta o corte feito no salários em 2014 e tendo em conta o facto do TC ter determinado a inconstitucionalida-de, comparando o ganho médio líquido na Função Pública em termos reais, há uma redução de 19,9% entre 2010 e 2014. Se fizermos os cálculos com base no corte feito no governo de Sócrates a redução é de 15,7%.

Termino colocando estes dados, dados do Banco de Portu-gal: depois de tantos sacrifícios, um dos objetivos era a redu-ção da dívida pública... Agora vejam que ela tem vindo a cres-cer desde 2010 e continua a crescer mesmo em 2014. Deixo isto à vossa reflexão.

Muito obrigado!

Porque é que o governo aumentou exageradamente este desconto para a ADSE? É porque a ADSE é uma Direção-Geral, e se tiver saldo positivo entra para o Orçamento do Estado para reduzir o défice, tudo à custa dos trabalhadores da Administração Pública.

depois de tantos sacrifícios, um dos objetivos era a redução da dívida pública... Agora vejam que ela tem vindo a crescer desde 2010 e continua a crescer mesmo em 2014. Deixo isto à vossa reflexão.

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

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10STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

Hermes CostaSociólogo, Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais (Núcleo de Estudos de Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades, POSTRADE). Tem vários artigos e livros publicados sobre as relações laborais e o sindicalismo, bem como sobre Conselhos de Empresa Europeus.

Queria agradecer o convite que me foi dirigido, cumprimen-tar todos os presentes e os colegas da mesa e dizer que de certa maneira me sinto um bocado enquistado aqui neste grupo... são três economistas e um sociólogo, e realmente a análise que nós temos aqui atualmente reclama muito mais uma intervenção quantitativa e uma análise de economistas, porventura de sociólogos, embora eles estejam aqui presen-tes da parte da tarde, aliás o nosso moderador é-o também nessa condição.

Gostei muito da intervenção de Eugénio Rosa - como sempre aliás - mas queria orientar aqui um pouco a minha interven-ção por 6 tópicos que têm marcado um pouco estas transfor-mações dos últimos anos e as tendências e que se articulam de perto com este sentimento de perda do trabalho para o capital.

Quais são as questões que gostaria de abordar?

Precariedade(s) e desigualdade(s)Parece-me que há aqui uma tendência global de precariza-ção das condições de trabalho no contexto europeu, e que, no fundo, cada vez mais tem afetado o sistema de proteção social ao ponto de nos permitir falar em processos de frag-mentação de classe. Mas antes disso parece-me interessan-te referir que, quando nós procuramos fazer um esforço de caracterização do nosso sistema de relações laborais e do nosso sistema de emprego, encontramos um conjunto de ca-racterísticas que de certa maneira nos sugerem, desde logo, uma relação assimétrica entre capital e trabalho. Portanto, quer na definição do sistema de relações laborais (a sua ca-racterização, o seu modelo pluralista e competitivo, no seu bloqueio da negociação coletiva) quer quando olhamos para o sistema de emprego - e encontramos sinais de baixos sa-lários de forte peso de modalidades de trabalho atípico, por exemplo, - de facto quando olhamos para essas característi-cas, provavelmente encontramos nelas, ou vemos nelas, sub-sumida ou subentendida essa relação desequilibrada entre capital e trabalho.

Eu trouxe uma proposta de hierarquização de fragmentação de classe de um estudioso, que é um economista também, que foi professor de sociologia económica e de segurança económica na Universidade Britânica, Guy Standing, que apresenta em vários dos seus livros uma classificação de uma fragmentação de classe composta por vários estratos, que vão desde uma elite global a um salariado passando por aquilo a que ele chama profissionais de eficiência ou técnicos especializados. Nós temos uma classe trabalhadora em de-cadência, depois um precariado crescente. Aliás este autor é muito conhecido pela sua reflexão sobre o precariado, o que é o precariado.

Guy Standing vai demonstrar que o próprio precariado é frag-mentável em si mesmo, é divisível em si mesmo. Temos ca-madas, comunidades e famílias de classe trabalhadora pouco instruídas que, como ele diz, perderam o seu passado. Mas simultaneamente, temos migrantes e minorias, que não têm local próprio de fixação, não têm presente. E para além de quem perdeu o passado e não tem presente, há também ci-dadãos mais instruídos, mais qualificados, mas que flutuam entre empregos ou subempregos, ou situações de emprego inconstante, e, por isso, não têm perspetivas de futuro.

Portanto, ele diz que o precariado tem estas várias situações hoje em dia, tem quem perdeu o passado, tem quem não tem presente e tem quem não tem expectativa de futuro. E nesta tipificação, o que parece mais ou menos evidente nas análi-ses que têm sido feitas, neste quadro mais amplo, é a ideia de que o trabalho está situado num patamar cada vez mais baixo, do ponto de vista da escala social, da escala de distri-buição de rendimentos.

A própria ideia de segurança está posta em causa, porque estão postos em causa vários tipos de segurança: a seguran-ça no mercado de trabalho, que tem a ver com o rendimento e com o salário que é adequado para uma boa participação no mercado de trabalho; uma segurança que tem que ver com desemprego, proteção contra despedimentos arbitrários; uma segurança no trabalho, que tem que ver com a adoção de medidas que salvaguardem a saúde, a doença, os tempos de trabalho; uma segurança que tem que ver com a aquisição de competências, de conhecimentos e de formação; e há ain-da uma segurança que tem que ver com a representação, ter voz no mercado de trabalho, pertencer a um sindicato, poder fazer greve.

Nós temos uma classe trabalhadora em decadência, depois um precariado crescente.

o precariado tem estas várias situações hoje em dia, tem quem perdeu o passado, tem quem não tem presente e tem quem não tem expectativa de futuro.

6 tÓpicOs para refleXãO

1. Precariedade(s) e desigualdade(s)2. Reformas laborais no quadro europeu3. Síntese de algumas medidas de

austeridade4. Questões controversas5. Impactos 6. Reações no campo sindical

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11COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

Todas estas formas de segurança são também elas postas em causa, estão também elas num processo de desestruturação.

Tempos de trabalhoEm segundo lugar, queria também dizer que este conjunto de reformas laborais no quadro europeu (e à tarde teremos aqui juristas que poderão detalhar melhor estes processos), neste contexto em que a austeridade efetivamente parece estar a contribuir para aumentar as assimetrias nas relações capital/trabalho, há aqui no quadro europeu um conjunto de medi-das de reforma laboral que tem uma dimensão supostamen-te temporária, que tem sobretudo a ver com a questão dos tempos de trabalho, com o aumento do tempo de trabalho e com a redução significativa dos pagamentos decorrentes do trabalho suplementar.

FlexibilizaçãoPor outro lado, há medidas de caráter mais permanente, que têm que ver com a flexibilização das regras dos despedimen-tos e com as alterações do sistema de relações laborais, da negociação coletiva, da descentralização da negociação co-letiva, e, portanto, há aqui dois padrões de medidas aplica-dos em vários contextos nacionais, e todo um conjunto de ilegitimidades associadas aos processos de reforma laboral, que têm que ver com o facto de a crise ter servido como pre-texto para a implementação dessas reformas.

Ilegitimidade da reforma laboral por ausência de debatePor um lado, com o facto de produzirem aspetos negativos sobre a proteção social e sobre os direitos fundamentais do trabalho; por outro lado - é outra ilegitimidade - a questão de muitas destas reformas e muitas destas medidas, pelo menos no caso português, estarem feridas de ausências de debate e de discussão democrática relevante e significativa. O fac-to de o memorando de entendimento não ter sido debatido na Assembleia da República como foi, por exemplo, o caso Irlandês ou o caso Grego, confirma uma certa ilegitimidade associada ao processo de reforma laboral.

Diferentes tipos de medidas e os seus efeitosSobre a questão das medidas que resultam deste entendi-mento triplo (memorando, acordo de concertação social de 2012 e das políticas governamentais), há aqui, de facto, di-ferentes tipos de medidas, medidas de diferente natureza. Nós referimos isso no capítulo do relatório, há medidas de natureza tributária, medidas relacionadas com a proteção so-cial, e há medidas de natureza laboral. E é dessas que nós tratamos, sobretudo no trabalho, embora aqui também fosse possível distinguir aquelas que têm a ver com a desvaloriza-ção económica, e as que têm a ver com a desvalorização de pessoas. Acredito que o Dr. Jorge Leite, falará disto...

Há aqui de facto diferentes tipos de medidas: há a questão dos cortes ( já aqui foi falado), a supressão dos subsídios, a eliminação das progressões, o aumento da carga fiscal, a redução das indemnizações, a desvalorização do papel dos sindicatos na contratação coletiva; enfim, o rol de transfor-mações é significativo.

Eu destacaria aqui as questões mais controversas, que pas-sam pela desvalorização progressiva dos salários, pelo aumen-to dos tempos de trabalho e pelo processo de flexibilização do mercado de trabalho - a tal discussão sobre se o mercado é ou não é rígido (os próprios juristas se dividem quanto a esta matéria). Quanto à questão dos impactos - o Eugénio Rosa falou muito dos impactos quantitativos - há aqui um conjunto de impactos de ordem qualitativa, que depois obviamente se relacionam com a dimensão quantitativa, e esse foi o exercício que aqui foi feito e que no relatório se procurou fazer.

Esses impactos vão desde uma perda de autonomia dos par-ceiros sociais, sobretudo dos sindicatos, há aqui um misto de tensão/colaboração nas relações entre os próprios atores das relações laborais, estratégias de convergência vs. afastamen-to entre essas iniciativas dos atores das relações laborais, o reforço das assimetrias no mercado de trabalho, classes com mais e com menos rendimento, as tensões entre o público e o privado, a diminuição do poder de compra das famílias, a criação de maiores condições de contestação social, a não re-dução do défice de competitividade das empresas e o menor controlo por parte da Autoridade para as Condições de Tra-balho, uma vez que as empresas deixam de ser obrigadas a enviar (para ACT) o mapa de horário de trabalho com o acordo da isenção de horário.

Portanto, há aqui um conjunto de impactos desestruturado-res. Poderia entrar aqui em detalhes mais quantitativos, mas depois da apresentação do Eugénio Rosa dispenso-me obvia-mente de fazer isso.

Reações no campo sindicalUm 6º ponto prende-se com as reações no campo sindical. Menciono aí, também rapidamente, a reação no campo patro-nal, sobretudo porque penso que seria precipitado dizer que os patrões ou os empresários ou as associações patronais são favoráveis ou gostam da austeridade... ninguém gosta da austeridade, o que é certo é que, na perceção que se tem so-bre as políticas de austeridade, a reação patronal foi clara-mente uma reação muito mais favorável, e se olharmos para a posição da CIP, da CCP e da CAP, encontramos aqui fatores que permitem maior facilidade em despedir, é um dos fatores que foi dito pela CIP que suscitava algum agrado. No caso da CCP, a redução do número de feriados e de férias e a ques-tão do banco de horas, que permitiria maior número de horas de trabalho em períodos em que uma maior concentração de atividade comercial assim o exigia, e depois, também na ativi-dade comercial, o papel do banco de horas para responder à sazonalidade do trabalho agrícola.

A reação sindical tem sido mitigada. Nós tivemos aqui, nos úl-timos 4 anos, 2 acordos de concertação social e 5 greves ge-rais, para além de uma diversidade enorme de focos de confli-to setorial, portanto, mais localizados mas também de âmbito

O facto de o memorando de entendimento não ter sido debatido na Assembleia da República como foi, por exemplo, o caso Irlandês ou o caso Grego, confirma uma certa ilegitimidade associada ao processo de reforma laboral

Eu destacaria aqui as questões mais controversas, que passam pela desvalorização progressiva dos salários, pelo aumento dos tempos de trabalho e pelo processo de flexibilização do mercado de trabalho

...ninguém gosta da austeridade, o que é certo é que, na perceção que se tem sobre as políticas de austeridade, a reação patronal foi claramente uma reação muito mais favorável

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12STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

nacional, o que me leva a crer que a conflitualidade laborar tem sido de facto a resposta que as organizações sindicais têm procurado para tentar responder a estas assimetrias do mercado de trabalho.

O que é interessante ver aqui na questão das greves - é que isto tem que ver com aquilo que eu disse há pouco das rea-ções serem por vezes mitigadas. Como sabem, 3 dessas gre-ves gerais foram greves conjuntas: a de 24 de novembro de 2010, resulta do anúncio do governo de José Sócrates dos cortes salariais a partir de janeiro de 2011. É por sinal a se-gunda greve geral conjunta depois da de 1988 do pacote la-boral. O que é curioso é que depois desta greve geral há um acordo de concertação social, creio que em março de 2011, quase nas vésperas da saída de José Sócrates do poder.

Há uma substituição do governo e depois há uma outra greve geral conjunta, em novembro de 2011, que tem muito que ver não só com uma sobretaxa, para esse ano de 2011, extraordi-nária do IRS, quer também com o corte dos subsídios previs-tos para 2012.

E depois vejam que há aqui um interregno, em que há aqui dois tipos de resposta sindical: a CGTP mantendo sempre o padrão constante, e coerente de certa maneira com a sua ati-tude mais combativa. É curioso ver que a austeridade serviu simultaneamente de pretexto para que houvesse uma reação sindical mais coesa, mas ao mesmo tempo serviu também de pretexto para que dentro do campo sindical se suscitassem aqui alguns processos de reação também àquele que era ao comportamento das estruturas sindicais, e, portanto, essa gre-ve de Março de 2012, convocada só pela CGTP, é, em grande parte, uma reação ao facto de ter sido assinado o acordo de janeiro de 2012 pela UGT na concertação social. Ao ponto de aquela greve no final do ano, a chamada greve europeia con-tra a austeridade convocada pela Confederação Europeia de Sindicatos, não ter tido o apoio da UGT mas 30 sindicatos nela filiados terão participado.

E depois a última greve geral conjunta, de junho de 2013, con-tra o documento de estratégia orçamental para 2013/2016. Mas esta greve ocorreu no momento em que, praticamente dois dias depois, havia a crise política: o pedido de demissão do ministro das finanças e depois os outros episódios que se seguiram.

Eu diria que há aqui três desafios que o campo sindical tem pela frente e queria terminar deixando 4 interrogações.

Um dos desafios (e eu creio que isto está subjacente a todas as análises que se façam sobre as transformações e todas as implicações no processo das relações laborais) é combater as tendências de individualização e simultaneamente, em segun-do lugar, resistir às pretensões de enfraquecimento do poder na contratação coletiva dos sindicatos, que está subjacente em alguns desses documentos, quer no memorando quer no acordo de concertação social e obviamente salvaguardar di-reitos e deveres regulados pela contratação coletiva que será o grande tema de logo à tarde.

Questões ao universo sindicalMas uma vez que este público é sobretudo sindical, eu queria aproveitar para deixar aqui algumas interrogações, isto é, pro-vavelmente nós seremos confrontados com questões, mas eu queria fazer ao contrário e eu próprio lançar questões para a plateia, que se prendem com estas questões que temos esta-do a tratar hoje:

1) Em primeiro lugar, é saber se as assimetrias nas relações laborais têm efetivamente gerado simetrias nas respostas sindicais. É uma questão de fundo que se prende muito com esta tentativa de se perceber como é que se anulam, como é que se contrariam esses desequilíbrios na relação capital/trabalho. Portanto, em que medida é que, na vossa condição de sindicalistas, entendem que as respostas sin-dicais atenuaram os desequilíbrios na relação capital/tra-balho. Até porque há entendimentos distintos nas próprias organizações sindicais quanto à eficácia da luta e dos pro-cessos de negociação, portanto, qual o balanço que pode ser feito e quais são, por outro lado, as respostas sindicais mais eficazes: são aquelas que continuam a passar por um padrão de conflitualidade ou não?

2) Outra questão que deixaria no ar é se há condições (ou se alguma vez houve em Portugal) para a construção de res-postas sociais amplas, capazes de minimizar as transferên-cias do trabalho para o capital. Há condições para isso? E se sim, se há condições para respostas sociais mais am-plas que envolvam os sindicatos e não só as estruturas sin-dicais, qual é o fio condutor? Isto é, qual é o fio condutor do ponto de vista da argumentação discursiva, da definição de agendas concretas de ação.

Qual é o fio condutor para uma resposta social mais ampla que envolva sindicatos e outras organizações da sociedade?

3) E depois, por último, qual é, qual vos parece ser ou qual vos parece ter sido, o papel do sindicalismo europeu em todo este processo?

No fundo são questões que eu a mim próprio coloco, para as quais não tenho resposta, mas que gostaria de deixar no ar, porque acho que este desafio das assimetrias das relações laborais, passa muito pelo tipo de respostas que são dadas, pelo tipo de sinais que pode ser dado, não só no campo do movimento sindical, na relação entre si próprio, dentro de si mesmo, mas também com o seu exterior.

Obrigado.

(...) combater as tendências de individualização e simultaneamente, (...) resistir às pretensões de enfraquecimento do poder na contratação coletiva dos sindicatos

há condições (ou se alguma vez houve em Portugal) para a construção de respostas sociais amplas, capazes de minimizar as transferências do trabalho para o capital. Há condições para isso?

qual é, qual vos parece ser ou qual vos parece ter sido, o papel do sindicalismo europeu em todo este processo?

intervençãoHermes Costa

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13COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

José Maria Castro CaldasEconomista, investigador do CES onde integra o Núcleo Ciência Economia e Sociedade (NECES), o Observatório sobre Crises e Alternativas e o Observatório do Risco. Anteriormente foi professor auxiliar do Departamento de Economia do ISCTE e investigador do DINÂMIA de que foi vice-presidente e membro da direção em diversos mandatos. Licenciado em Economia e Mestre em Matemática Aplicada à Economia e à Gestão pelo ISEG é Doutorado em Economia pelo ISCTE.

intervenção

O que vos trago é um exercício simples. Primeiro, tentar per-ceber o que era o memorando da troika num capítulo concre-to, que tem como título “mercado de trabalho”; Segundo: o que é que na prática aconteceu, a partir do que estava esta-belecido no memorando, e em que medida os objetivos dessa contra-reforma do mercado de trabalho foram ou estão a ser (ou não) conseguidos.

A primeira questão é esta: este capítulo sobre o mercado de trabalho do memorando inicial - o único que existe, ao fim e ao cabo, o resto são revisões periódicas pontuais - baseava-se numa lógica. Qual era essa lógica? Era identificado um pro-blema: o país desde 1995 vinha experimentando défices da balança corrente, isto é, da balança comercial, da balança de capital, e, portanto, uma dívida externa galopante. Nós, quan-do olhamos para a evolução da dívida externa a partir de 1995, que é o momento de convergência para o euro (não esque-cer que também essa é uma data fundamental, um momento de rotura na economia e na sociedade portuguesa de meados da década de noventa do séc. XX), este país que tinha uma dívida externa pequena, vai acumulando uma dívida externa galopante que continua a crescer ainda hoje. Há aqui um pro-blema, um problema para toda a gente, para gente de direita para gente de esquerda, para gente nova, para gente velha, há aqui um problema, um país que se endivida brutalmente. Este problema é identificado, é enfrentado, é olhado de uma forma muito particular pelo FMI que tem uma longa experiência de lidar com problemas como este de crise de balança de paga-mentos. E na caixa de ferramentas que habitualmente utiliza, e que utilizou em Portugal em momentos anteriores, consta a desvalorização cambial, como uma ferramenta fundamen-tal para probabilizar com o problema de uma crise de balança de pagamentos, uma crise de endividamento externo. E o FMI foi-se dando conta que na periferia da Europa, ao longo da dé-cada de 2000 estava a surgir uma circunstância que era nova: um conjunto de países que estavam a acumular, sob o impac-to da adesão ao euro, défices correntes e dívidas externas im-portantes. Não era só Portugal, era a Grécia, era a Irlanda, era a Espanha, e o FMI deu-se conta desse problema e ao mesmo tempo deu-se conta que já não tinha o instrumento de desva-lorização cambial para utilizar. Portanto, era preciso conceber uma forma de lidar com o problema do défice crónico e da dívida crescente, sem taxa de câmbio, sem possibilidade de desvalorizar a moeda. E é nesse contexto que surge e começa

a ser experimentada - aliás, foi experimentada na Finlândia e na Suécia, antes de tudo mais - esta ideia da desvalorização interna. Já que não seria possível utilizar a ferramenta da des-valorização cambial, então haveria aqui outras formas de fazer o mesmo por outros meios. E basicamente a desvalorização interna desdobra-se em duas vertentes: uma é a desvaloriza-ção fiscal, que está ali na interpretação do Banco de Portugal e que se pode resumir na ideia de cortar na TSU patronal ou qualquer outra taxa que incida sobre os custos salariais, como eles dizem, para que as empresas possam descer os seus pre-ços de oferta e depois conquistar quotas de mercado. Isto é uma modalidade.

Outra é a desvalorização salarial, isto é, ir mesmo aos salários nominais, não é aos reais, é aos nominais mesmo, ao valor que as pessoas levam para casa ao fim do mês e cortar, tentar cortar. E no memorando inicial a desvalorização interna con-tinha estas duas facetas. Estava lá a desvalorização fiscal, a TSU estava lá no memorando inicial, estava lá escritinho, e es-tava lá também a desvalorização salarial. Eu vou-me interessar pela desvalorização salarial.

Isto da desvalorização salarial passava por medidas em vários capítulos. Passava por medidas muito importantes no capítulo que diz respeito à administração pública, e, portanto, ao que eles chamam a consolidação orçamental, isso o Eugénio Rosa

desvalOriZaçãO interna•Desvalorização fiscal … redução das contribuições sociais da

entidade patronal combinada com um aumento de impostos indiretos ou redução de despesa pública que seja neutral em termos orçamentais, pode ser vista … como semelhante a uma desvalorização cambial.

Banco de Portugal, Desvalorização Fiscal Relatório, Julho de 2011

•Desvalorização salarial Dada a pertença de Portugal ao euro

a desvalorização não é uma opção... O mesmo resultado pode contudo ser obtido, pelo menos no papel, através de uma redução dos salários nominais e do preço dos bens não transacionáveis enquanto o preço dos transacionáveis se mantem…

Blanchard, Olivier (2006), Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal

O que vos trago é um exercício simples. Primeiro, tentar perceber o que era o memorando da troika num capítulo concreto, que tem como título “mercado de trabalho”; Segundo: o que é que na prática aconteceu, a partir do que estava estabelecido no memorando, e em que medida os objetivos dessa contra-reforma do mercado de trabalho foram ou estão a ser (ou não) conseguidos.

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14STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

Talvez sem perder muito tempo nisto, creio que nós conhece-mos, isto estava cá e foi feito, cada um destes vêzinhos que eu aqui tenho é um vêzinho que a Troika foi fazendo:

• Reduziraduraçãodosubsídiodedesempregopara18meses - feito!

• Reduzirsubsídiosdedesempregoa2,5vezesdoIAS–feito!

• Reduziroperíodocontributivonecessárioparaacederasubsídio de 15 para 12 meses;

• Alargaraelegibilidadeatrabalhadoresindependentes• Reduzircompensaçõesporcessaçãodecontratode

trabalho, em grande detalhe com os numerozinhos.

Eu não fiz o exercício de comparação com o que ficou na lei exatamente, mas não deve andar longe. E depois há umas coi-sas que aparecem, não previstas no memorando, como por exemplo, no campo da proteção do emprego, algumas coisas que o pequeno partido da coligação na sua atividade de ma-rketing conseguiu fazer passar: possibilidade de extensão de contratos a prazo, combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordina-do, que existe mas que não funciona com grande eficiência, e tudo o resto são vêzinhos.

Noto, aqui há uma questão para que não encontrei expressão que era mexer no regime de lay-off, não encontrei expressão disso em legislação, pode ser uma omissão minha.

Da fixação de salários, há uma coisa também que não encontrei expressão na legislação até agora, que é a redução da sobrevi-gência dos contratos caducados mas não substituídos por no-vos - pois não - é o que está agora em causa é o que ficou por fazer, trabalho de casa que não estava feito e que falta acabar.

Tudo o resto são vêzinhos e, do ponto de vista do inspetor da Troika, correu bem, o exercício foi escrupulosamente executa-do e ainda por cima com o consentimento de um leque relati-vamente alargado de parceiros sociais da concertação social - é bom que se diga.

Bom, uma pergunta que eu queria fazer era: a desvalorização interna está a resultar nos seus próprios termos?

A primeira constatação - eu só fui ver alguns aspetos, do ponto de vista da negociação do número de acordos de contratação coletiva e do número de trabalhadores abrangidos, eu fui reti-rar este gráfico a um folhetozinho que é distribuído pelo IGCP (Instituto de Gestão da Dívida e do Crédito Público), o folheto é em inglês e é dirigido para “road shows”, feiras montadas pelo IGCP, para promover a dívida pública nos mercados interna-cionais. Portanto, é um livrinho sobre as maravilhas do ajusta-mento português, e esta é uma das maravilhas do ajustamento português promovido junto dos investidores internacionais.

Contratação coletiva: havia, não é? Mas já não há, portanto, maravilha!

Depois aquilo que do trabalho do relatório foi chamado muito à atenção da opinião pública, foi a redução efetiva, e eu não es-tou já a falar da redução que o Eugénio Rosa caracterizou - a dos funcionários públicos, isto é, de todos os outros trabalha-

já as descreveu. Basicamente, se o FMI quer fazer uma coi-sa, que é reduzir os salários nominais, reduzir os salários em valor absoluto, é isso que se está a discutir, não é os reais é os nominais, isto implica ferramentas de vária ordem. E a pri-meira dessas ferramentas é a que está no memorando, que é tentar reduzir os salários da administração pública, é por aí que começa. Reduzindo os salários da administração pú-blica induz-se o efeito sobre o conjunto dos salários da eco-nomia. Portanto, isso estava lá, foi feito, como nós sabemos. Mas depois há outros instrumentos para reduzir os salários nominais, é disso que estamos a discutir. Um deles, impor-tantíssimo, é reduzir a proteção no desemprego. Se nós pas-sarmos a pagar menos aos desempregados e durante menos tempo, o que estamos a fazer é a induzir um conjunto gran-de de pessoas a aceitarem trabalho por valores mais baixos do que estariam dispostos a fazer. Além do mais, também é preciso tornar mais fáceis os despedimentos, no sentido em que poder despedir facilmente é dar às empresas um meio para poder substituir trabalhadores mais bem remunerados por outros pior remunerados, isto é fazer o “roll over”, fazer uma rotação.

Outra forma de o fazer, é diretamente pôr as pessoas a traba-lhar de borla, flexibilizar o tempo de trabalho, embaratecer o tempo extra e obrigando as pessoas a trabalhar sem remune-ração aos feriados, etc. E, por último, é preciso enfraquecer a posição negocial dos trabalhadores, enfraquecer os sindica-tos, enfraquecer a contratação coletiva.

Portanto, tudo isto eles sabem que desvalorizar salários no-minais é difícil, não é fácil, e para conseguir isso é preciso recorrer a um conjunto de meios que são estes e, para além destes, o mais importante de todos que é deixar crescer o próprio desemprego. O crescimento do desemprego é ele próprio uma ferramenta, um instrumento, para um objetivo que é desvalorizar salários.

O que impressiona no texto do memorando, quando voltamos a ler este capítulo do mercado de trabalho, é o detalhe. O detalhe do capítulo do mercado de trabalho em comparação com os outros capítulos, como seja o da educação, que vem logo a seguir, na mesma rubrica, é impressionante.

Isto mostra duas coisas:Em primeiro lugar, havia quem tivesse trabalho de casa feito no que diz respeito ao mercado de trabalho, existem várias hipóteses de trabalho acerca de onde é que se situava exata-mente este “think tank”, mas isso os historiadores do futuro se encarregarão de dizer. Um outro aspeto interessante quan-to ao detalhe, é que no próprio texto do memorando diz que tudo isto é para negociar, em sede de concertação social, está lá um parágrafo que diz isso, mas depois quando se vai a ver o detalhe, a pergunta é: mas negociar o quê? Exatamente o quê? O estado português está a comprometer-se com uma coisa que vai às percentagens exatas, em que o tempo de tra-balho deve ser pago, 1ª hora, 2ª hora, 3ª hora, negociar exa-tamente o quê? Na realidade, é assinar por baixo uma coisa a que o Estado português já se tinha comprometido.

E a primeira dessas ferramentas é a que está no memorando, que é tentar reduzir os salários da administração pública, é por aí que começa. Reduzindo os salários da administração pública induz-se o efeito sobre o conjunto dos salários da economia

E, por último, é preciso enfraquecer a posição negocial dos trabalhadores, enfraquecer os sindicatos, enfraquecer a contratação coletiva

José Maria Castro Caldas

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15COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

sas comparações na maior parte dos casos são desprovidas de sentido, mas neste caso até talvez não fosse) que é como se estivesse a ser aplicada a uma família endividada uma tera-pia que consistia em reduzir o seu rendimento. Portanto, dizer a uma família: estás muito endividada, eu vou resolver o teu problema, reduzo-te o rendimento! É basicamente isso que nos está a acontecer.

Por último, está-nos a acontecer uma outra coisa, que o FMI por acaso também vê com preocupação, que é esta: nós tive-mos a partir do segundo semestre do ano passado uma influ-ência de fatores diversos, entre os quais as decisões do Tri-bunal Constitucional, uma pequena inversão na dinâmica da procura interna, sobretudo do consumo das famílias. A partir de meados do ano passado, o consumo das famílias que esta-va a cair muito acentuadamente, deixou de cair e começou a aumentar. E o que é que aconteceu? Aconteceu basicamente que, do ponto de vista das contas externas, a coisa ressentiu-se imediatamente. Isto é, este ajustamento entre crescimen-to das importações e das exportações que se estava a ve-rificar começou, reparem aqui no primeiro trimestre de 2014 este afastamento, este crescimento das importações de novo maior que as exportações. E a razão é esta: o consumo interno e as importações estão muito relacionadas - quando cresce o consumo interno as importações aumentam. Isto é assim des-de sempre na história de economia portuguesa, desde 1995 neste caso, há aqui uma correlação perfeita entre consumo interno e importações. Portanto, isto é um pouco como se es-tivéssemos sujeitos a uma trela, uma trela que é a trela da austeridade que tem como lógica no futuro poder ser aliviada. Mas o problema é que, logo que há um alívio na pressão dessa trela, o problema que esteve na base de tudo o que é o dese-quilíbrio das contas externas e do endividamento externo dis-para outra vez. Isso torna-se muito nítido na tal relação quase perfeita entre a procura interna e as importações em que te-mos um quadro em que até ao 3º trimestre de 2012 a procura interna e as importações decrescem conforme estava inscrito no programa e uma dinâmica iniciada a partir do 2º trimestre de 2013, em que a procura interna retoma ligeiramente e ime-diatamente as importações acompanham. Isto é um problema que o FMI identifica nos relatórios que faz nas visitas a Portu-gal, dizendo que aquilo que era o problema de fundo parece não estar resolvido.

E é verdade!

O problema está em que a receita proposta pelo FMI para re-solver o problema continua a ser a mesma: seria preciso conti-nuar a descer os salários nominais vencendo todas as resistên-cias que se lhe oponham.

Muito obrigado!

dores, o exercício que foi feito, a ideia de que tudo isto, toda esta parafernália de medidas, conduziu a um corte médio da retribuição do trabalhador entre 2,3% e 2,9%, em 2013.

Isto é apenas o resultado de algumas das medidas das altera-ções da legislação laboral a compensação do trabalho extraor-dinário, o prolongamento do tempo de trabalho, e o abandono do descanso compensatório, e, portanto, para além disto um corte entre 21% e 30% do tempo de descanso dos trabalha-dores, isto é uma perda difícil de medir em dinheiro correspon-dente a 8, 12, 13 dias de trabalho sem retribuição adicional. O que se traduz numa alteração da repartição do rendimento, no sentido em que pelas contas feitas chegámos ao tal valor transferido para as empresas de 2 000 milhões de euros, curio-samente o mesmo que teria sido conseguido através da TSU.

Podemos também tentar responder à pergunta se a desvalori-zação interna está a resultar em dados estatísticos oficiais do Eurostat, por exemplo, o que é que conseguimos no Eurostat olhando para esta medida compensação nominal por empre-gado. Isto envolve o salário bruto mas também outras formas de compensação, e aquilo que nós vemos é que de facto, em Portugal, a partir de 2010, há uma redução da compensação que tem expressão também em Espanha e na Grécia e, portan-to, a desvalorização interna está a ocorrer, os salários nominais estão a baixar e se isto é sucesso em Portugal, o sucesso na Grécia é bastante maior, a quebra da compensação nominal na Grécia é bastante mais acentuada do que em Portugal.

De um outro ponto de vista, relembrando que a desvalorização interna tinha como objetivo reequilibrar as contas externas, ree-quilibrar a balança de bens e serviços. Aqui também a resposta é afirmativa. De facto, a partir de 2010, as importações decresce-ram muito, as exportações, por outro lado, recuperaram o ritmo de crescimento que tinha sido interrompido apenas em 2008 e 2009, portanto, cresceram e, portanto, a partir de 2012, efetiva-mente as estatísticas mostram que as exportações e as importa-ções se encontram num nível de equilíbrio. Portanto, cumpriu o seu objetivo? Sim! De um certo ponto de vista a desvalorização dos salários cumpriu o objetivo que era equilibrar a balança de bens e serviços, equilibrar a balança de transações correntes.

De outro ponto de vista, talvez o que mais importe, qual é o nosso problema? Um país extremamente endividado. Portan-to, medindo esse endividamento por esta variável, a posição líquida da dívida internacional, o que temos é esta evolução de um nível próximo de zero em 1997 para um nível próximo de 200.000 Milhões de euros, atualmente.

E, portanto, uma tendência que, quando muito a partir de 2009, se amortece mas não para. O endividamento externo do país mantém, mesmo no período de intervenção da Troika, uma ten-dência crescente. E podemos comparar esta linha da dívida externa com a capacidade de servir essa dívida. E o que é que nós temos? Temos uma situação em que o rendimento, o PIB nominal, já não é o problema de não crescer ao mesmo ritmo que a dívida externa - esse foi o problema que existiu até 2008 - o problema agora é outro, já não é o problema do rendimento que não cresce ao mesmo ritmo da dívida, o problema agora é de uma dívida que cresce e do rendimento que diminui.

Portanto, temos que fazer a pergunta (eles gostam muito de fazer comparações entre economias nacionais e famílias, es-

Contratação coletiva: havia, não é? Mas já não há, portanto, maravilha!

o problema agora é outro, já não é o problema do rendimento que não cresce ao mesmo ritmo da dívida, o problema agora é de uma dívida que cresce e do rendimento que diminui

O problema está em que a receita proposta pelo FMI para resolver o problema continua a ser a mesma: seria preciso continuar a descer os salários nominais vencendo todas as resistências. O problema está em que a receita proposta pelo FMI para resolver o problema continua a ser a mesma: seria preciso continuar a descer os salários nominais vencendo todas as resistências que se lhe oponham

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

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16STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

Eu começo por agradecer a oportunidade que me proporcio-naram de me dirigir a esta assembleia, ao CES e ao Observa-tório para as Crises e Alternativas, personalizar esse agrade-cimento na pessoa dos organizadores desta iniciativa, enfim é com muito gosto que me dirijo a esta assembleia, uma assem-bleia de sindicalistas. Eu reconheço que, de um modo geral, gosto de falar para todas as assembleias que me gostam de ouvir mas não sou obviamente indiferente à generosidade das causas de cada uma delas. Donde, eu tenho o maior gosto de estar aqui hoje presente nesta sessão e participar nela.

O objetivo da minha comunicação é falar um pouco dos nú-meros da distribuição do rendimento em Portugal, dos poucos números que existem.

Nós nas universidades, nas faculdades de economia, recebe-mos os alunos do primeiro ano, é habitual dizer-lhes, tradicio-nalmente, numa cadeira de introdução à economia, agora com o processo de Bolonha ganhou outros nomes, mas a tradição manteve-se no conteúdo das matérias, que o Produto Interno Bruto podia ser acedido por três óticas diferentes: a ótica do produto, a ótica da despesa e a ótica do rendimento. Eu ouvi dizer isso quando, há quase 40 anos, entrei na universidade e esta afirmação foi repetida por muitos de nós professores de economia, eu próprio, aos nossos alunos durante estes 40 anos, foi passando de geração para geração, ainda que infeliz-mente ela hoje seja basicamente falsa.

A verdade é que a ótica do rendimento na construção do PIB é uma ótica menor no processo de feitura de contas nacionais hoje a nível internacional, muito longe de ter a importância das outras duas óticas: as tais da despesa e do produto. E a ver-dade também é que muito pouco se sabe, nas estatísticas ofi-ciais sobre distribuição de rendimento, e não é por acaso que é assim. O problema da distribuição do rendimento, esteve presente na génese da economia como ciência, como ciência social. Eu não sou um “expert” na história do pensamento eco-nómico mas tanto quanto tenho lido foi assim, esteve presente de forma muito importante na obra de Ricardo, obviamente na obra de Karl Marx, na própria obra de Adam Smith, que é nor-malmente associado àquela ideia de mão invisível, mas havia também uma genuína e verdadeira preocupação também com a distribuição do rendimento, mas a verdade é que os econo-mistas afastaram-se cada vez mais desta problemática. Devo dizer-vos que se afastaram por boas razões e por más razões. Afastaram-se por boas razões porque é verdade que no meio do século XX, a distribuição de rendimento tornou-se menos assimétrica na maior parte dos país quer da Europa quer dos Estados Unidos. O meio do século XX é basicamente o perío-

Pedro Ramos

do desde o fim da 1ª guerra mundial até ao fim dos anos se-tenta. Ao longo deste período, há de facto, tudo o indica, uma diminuição na assimetria da distribuição do rendimento. Esta foi, do meu ponto de vista, a boa razão: o problema ter-se-á tornado, pelo menos nesse período, menos candente. Mas há também uma má razão: a verdade é que a ciência económica foi tomada por um conjunto de economistas que afirmavam que as desigualdades não só não eram nefastas como po-deriam ser positivas. Ou seja, eram sobretudo interpretadas como um prémio de mérito, e sendo um prémio de mérito, o reconhecimento desse mérito e a remuneração desse mérito, seria um incentivo à produtividade, ao crescimento económi-co, e desse ponto de vista seria ou poderia ser uma vantagem para o funcionamento das economias.

Eu devo dizer-vos que creio que há hoje alguns sinais de re-versão desta tendência. Eu não vou deixar esta oportunidade para vos falar de um livro que tem constituído brado nestas últimas semanas, um livro de um francês, Thomas Piketty, o capital no início do século XXI, o livro já saiu em França, em 2013, mas a tradução inglesa só saiu em 2014, e naturalmente o impacto em termos de discussão internacional é subsequen-te ao surgimento da tradução inglesa, é um livro enorme, eu ainda não consegui lê-lo todo, tenho de confessar, portanto, tenho aqui a lata de vir falar uma coisa que ainda não li até ao fim, mas não vou falar muito, vou ser cauteloso, é um livro com mais de 600 páginas, é um conjunto de informação estatística histórica impressionante sobre a distribuição do rendimento desde a revolução industrial e desde a revolução francesa, desde o fim do século XVIII até aos nossos dias. Infelizmente aquilo que tem acontecido é que a economia ortodoxa tem tido a este livro uma reação sobretudo uma tentativa de des-credibilização do seu autor, não vou entrar aqui em pormeno-res, mas seja como for, este senhor, Thomas Piketty teve o grande mérito de colocar a questão certa na hora certa e será certamente lamentável se a sua obra for meramente destru-ída por detratores mal intencionados embora eventualmente possam ter razão numa ou noutra página daquelas 600, e não conheço nenhum livro de 600 páginas que não tenha alguns erros num ou noutro sítio.

Mas o essencial da minha intervenção não é sobre isto, o es-sencial da minha intervenção é de facto sobre a distribuição do rendimento em Portugal.

É verdade que eu disse, e não retiro, que a ótica do rendimen-to na construção do PIB, no cálculo do PIB é uma ótica menor hoje, mas ainda assim as Contas Nacionais portuguesas di-vulgam logo uns números que eu procurei colocar neste slide. Verdadeiramente aquilo que está no site do INE é menos do que está ali, é menos explícito, há ali algum trabalho meu de cruzamento de informação, embora a fonte seja também as Contas Nacionais e alguma estimativa razoável, eu penso que os números são estes.

Licenciado (1980), doutorado (1992) e agregado (2006) em Economia; Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (UC); Diretor da “Revista Portuguesa de Estudos Regionais”; Pró-Reitor da UC (2007-2010); Diretor das Contas Nacionais do INE (2001-2003). Publicou múltiplos trabalhos, entre os quais, “Torturem os Números Que Eles Confessam: Sobre o Mau Uso e Abuso das Estatísticas em Portugal”.

O objetivo da minha comunicação é falar um pouco dos números da distribuição do rendimento em Portugal, dos poucos números que existem

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estrutura dO pib na Ótica dO rendimentO - pOrtugal

surpreendi. No mínimo isto é um claro indício de que aquela história do aumento brutal dos impostos, que foi lançada por um certo ministro mas que tem sido um dos poucos pontos de consenso em Portugal entre governo e oposição poderá em parte ser ficção

Sejamos claros, aqueles impostos que estão ali não são to-dos os impostos. São só os impostos indiretos porque os impostos diretos são os impostos que incidem sobre os ren-dimentos aqueles rendimentos são brutos, ou seja, significa que o rendimento do trabalho por conta de outrem inclui os impostos que incidem sobre esse rendimento, o rendimento do capital inclui os impostos que incidem sobre o rendimen-to do capital, o que ficou de fora para aquela fatia a azul são os impostos que não incidem sobre rendimentos e portanto não podiam estar em nenhuma das outras fatias. Mas estes impostos incluem o IVA, não é assim algo residual. E o que nós vemos é que, de 2007 para 2013, há uma diminuição do peso dos impostos indiretos no PIB. Outro ponto surpreen-dente é o aumento dos excedentes de exploração, surpreen-dente sobretudo porque seria expectável que num período de crise económica, é que diminuísse o peso do rendimento do capital no PIB. Porque isto é assim, num período de crise económica as empresas têm prejuízos, e o que era lógica de uma sociedade capitalista é que os prejuízos sobretudo atinjam os acionistas. É por isso que investir na bolsa é um investimento de risco, quando as empresas têm prejuízo não há distribuição de dividendos aos acionistas. É especialmen-te estranho que num período de crise económica em muitas

Eu creio que apesar de tudo os presentes na sala ficam sur-preendidos mas, comparando 2007 com 2013, não há uma diminuição muito significativa do peso das remunerações dos trabalhadores por conta de outrem no PIB, embora o PIB tenha diminuído, tenha diminuído em valor real e isso significa que as remunerações diminuíram também em valor real. Há uma pequena diminuição, menos algumas décimas de ponto percentual em 2013 do que em 2012, há também uma diminuição que embora seja menor em pontos percen-tuais do PIB é mais expressiva, porque refere-se a uma fatia mais pequena, que é no peso da remuneração do trabalho por conta própria. Há um aumento muito importante nos ex-cedentes de exploração, portanto na remuneração do capi-tal, quase 2% do PIB, e há também um aumento do peso das rendas de habitação. Em boa verdade eu enganei-me, isto não são rendas de habitação só, são rendas imobiliárias, portanto também tem rendas de escritório.

Agora o que é ali muito curioso é que a contrapartida do aumento do peso do excedente e das rendas foi não nos salários mas na diminuição dos impostos. Eu sei que já vos

comparando 2007 com 2013, não há uma diminuição muito significativa do peso das remunerações dos trabalhadores por conta de outrem no PIB, embora o PIB tenha diminuído, tenha diminuído em valor real e isso significa que as remunerações diminuíram também em valor real.

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

Fonte: INE, Contas Nacionais

Rendas da habitaçãoTrabalho por conta própriaTrabalho por conta de outrémExcedenteImpostos Ind. - Subsídios

2007

27,8 %

13,1 %5,8 %

4,3 %

48,9 %

2013

29,7 %

11,9 %6,2 %

4,0 %

48,2 %

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18STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

empresas exista um aumento de rendimento de capital que é bem marcado, há ali flutuações, por exemplo 2003 foi um ano de crise e em 2003 cai o peso do excedente de explora-ção no PIB, mas agora, apesar desta crise económica, acon-tece o inverso, há um aumento do peso deste excedente de exploração no PIB.

Outro ponto que vale a pena investigar é esta questão de ha-ver uma estabilidade nas remunerações dos trabalhadores por conta de outrem. Porque ao fim e ao cabo, eu sei que isto é contra intuitivo, eu sei e vocês sabem bem melhor do que eu, que em termos reais as remunerações caíram, para além disso e talvez até fosse expectável que o efeito fosse maior, o número de trabalhadores por conta de outrem dimi-nuiu significativamente, como todos sabemos o desemprego é bem maior, a questão é como é que compreendemos esta estabilidade?

Bom, a verdade é que a remuneração dos trabalhadores por conta de outrem em valor real diminuiu, mas diminuiu só depois de 2010, ou seja, naquele período de 2007 a 2010, há um aumento em termos reais da remuneração média dos trabalhadores por conta de outrem, e só depois disso é que se verifica a redução. Ou seja, verdadeiramente se nós não usarmos como termo de comparação 2007 mas usarmos 2010, a coisa aqui já é um pouco diferente. Em 2010, a re-muneração dos trabalhadores por conta de outrem tinha re-almente conseguido ser mais de 50%. Em 2013 e 2007 só andava na casa dos 48%, mas em 2010 foi de mais de 50%. Ou seja, basicamente o que tinha acontecido é que aquela redução no peso dos impostos já tinha acontecido em 2010, numa primeira fase, a contrapartida, o benefício parece ter vindo para a remuneração do trabalho por conta de outrem, mas depois numa fase seguinte, há uma transferência des-se benefício entre 2010 e 2013, do trabalho para o capital em particular nesse período, é 2% do PIB, não é tão pouco como isso, são mais de 3 mil milhões de euros. Portanto há aqui de facto, uma transferência importante neste contexto.

Mas eu não vou deixar a oportunidade de estar perante uma assembleia sobretudo de sindicalistas, que são represen-tantes de trabalhadores por conta de outrem, para vos pedir que olhem para a situação dos trabalhadores por conta pró-pria, ou seja, esta é uma situação em termos de distribuição de rendimento muito preocupante porque a verdade é que logo à partida este diagrama vem desde 1995, a remunera-ção média dos trabalhadores por conta própria era inferior

à dos trabalhadores por conta de outrem e a verdade é que esta diferença acentuou-se. Há uma divergência crescente entre estas duas remunerações, enquanto ao longo deste período nós temos um crescimento mais ou menos contí-nuo até 2010, da remuneração média em termos reais dos trabalhadores por conta de outrem, aconteceu o inverso à remuneração média doa remuneração dos trabalhadores por conta própria.

Há aqui algumas coisas que apesar de tudo têm de ser rela-tivizadas, em parte esta quebra na remuneração média dos trabalhadores por conta própria reflete uma diminuição do número de horas trabalhadas. Porque isto é assim, os traba-lhadores por conta de outrem ficam desempregados muitas vezes. Os trabalhadores por conta própria não necessaria-mente. Isto é, eu trabalho por conta própria, ganho cada vez menos, mas não tenho mais nada que fazer, continuo a tra-balhar por conta própria. Todos sabemos que isto é o caso de muitas pessoas nestas circunstâncias, só que, por um lado vão ganhando cada vez menos, e por outro lado tam-bém, em muitas situações decidem trabalhar noutros lados, se se trata de um pequeno comércio, para quê trabalhar tan-tas horas abertas se durante uma boa parte do dia não tem clientes, e portanto há também uma diminuição do número de horas trabalhadas que é documentável nas estatísticas, ou seja, para já se nós compararmos, não a remuneração por trabalhador em valor real mas a remuneração horária, já vemos que aquela quebra significativa no caso dos tra-balhadores por conta própria já não a reencontramos ago-ra, há alguma quebra mas há sobretudo uma oscilação, em termos horários há uma estabilidade na remuneração dos trabalhadores por conta própria. Mas, até 2010, houve um crescimento no caso dos trabalhadores por conta de ou-trem, donde eu não retiro que a situação de trabalhadores por conta própria é particularmente preocupante em termos de distribuição de rendimento, e isto mostra aquilo que vos dizia há pouco, em termos de horas trabalhadas, verdadei-ramente não é horas trabalhadas por trabalhador, foi outro engano meu na elaboração do diagrama, mas mostra-nos de facto, há um declínio nas horas trabalhadas por trabalhador no trabalhador por conta própria, que de algum modo expli-ca aquela quebra da remuneração.

Eu não quis deixar de fazer esta nota sobre a situação dos trabalhadores por conta própria porque penso que ela é re-levante numa perspetiva de justiça se nós falarmos da distri-buição de rendimento em Portugal, mas deixem-me antes de terminar ainda voltar a falar vos de impostos.

Eu já publiquei este gráfico, não o atualizei, é evidente em boa medida por preguiça, porque me ia dar trabalho, mas também é verdade que aquilo que me interessava era o perí-odo anterior à crise, donde, este gráfico só vem até 2009, no caso português até vem só até 2008, mas mostra uma coisa

há uma transferência desse benefício entre 2010 e 2013, do trabalho para o capital em particular nesse período, é 2% do PIB, não é tão pouco como isso, são mais de 3 mil milhões de euros. Portanto há aqui de facto, uma transferência importante neste contexto.

Pedro Ramos

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19COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

impostos são necessários. Esta tendência à diminuição dos impostos é de facto, não estou a falar do caso português, estou a falar do governo dos países ricos em geral, é a meu ver a maior ameaça à sustentabilidade dos estados sociais como os conhecemos hoje. De resto, se forem ler alguns textos de alguns economistas liberais dos anos 90 ou do iní-cio do século XXI, está lá claramente delineada a estratégia que em inglês se chama “starving the beast”. “Starving the beast” significa “matar a besta à fome”. A besta é o grande estado, o estado social, e matar a besta à fome é cortar nos impostos para diminuir o estado. Ou seja esta foi a estraté-gia que foi utilizada no fim do século XX e é precisamente porque os impostos são um instrumento poderosíssimo de distribuição de rendimentos. Se nós assentarmos que de-vem ser diminuídos, significa que é menos um instrumento que pode ser usado com o objetivo de obtermos uma distri-buição de rendimentos mais justa.

pesO dOs impOstOs e (cOntribuições sOciais) nO pib, em alguns países e ZOna eurO, 1995-2009

que não corresponde à noção que normalmente as pessoas têm. Mostra que aquilo que aconteceu no período anterior à crise, na maior parte dos países ricos, foi uma diminuição dos impostos em termos de percentagem do PIB. E agora já não estou só a falar de impostos indiretos, estou a falar de todos os impostos: indiretos, sobre o rendimento, contribui-ções sociais, etc.

Essa tendência neste diagrama é muito clara nos Estados Unidos, é muito clara na Suécia, talvez mais ainda, não é tão evidente mas está lá também na Zona Euro no seu conjun-to, na Alemanha não é tão evidente mas há uma ligeiríssima redução, Portugal e Espanha são a exceção, neste período anterior à crise, Portugal e Espanha viram aumentar o peso dos impostos no PIB até ao início da crise, depois já se vê, no caso da Espanha uma reversão drástica da tendência, mas no caso português, neste diagrama, ainda não é per-cetível, na minha interpretação, isto aconteceu sobretudo porque se tratava, ou trata de estados sociais mais tardios, que estavam ainda numa fase de consolidação do estado social e que por esse facto não puderam ainda prescindir de aumentar de algum modo o peso dos impostos.

Ora, por muito que me custe dizer isto, esta tendência para a diminuição dos impostos é preocupante. Gerou-se, é ver-dade!, em parte isto foi induzido, uma aversão radical aos impostos nas opiniões públicas dos vários países. Os res-ponsáveis políticos não têm feito, não têm querido, ou não têm sabido fazer a pedagogia dos impostos. De facto, os

Os responsáveis políticos não têm feito, não têm querido, ou não têm sabido fazer a pedagogia dos impostos. De facto, os impostos são necessários. Esta tendência à diminuição dos impostos é de facto, não estou a falar do caso português, estou a falar do governo dos países ricos em geral, é a meu ver a maior ameaça à sustentabilidade dos estados sociais como os conhecemos hoje

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

Fonte: OCDE

AlemanhaPortugalEspanhaSuéciaEstados UnidosZona Euro

53 %

48 %

43 %

38 %

33 %

28 %

23 %

1995

1999

1997

2001

2004

2007

1996

2000

2003

2006

1998

2002

2005

2008

2009

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20STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

estrutura da despesa pública em pOrtugal, pOr funções (cOfOg), 2007 e 2012

E, o último diagrama que aqui tenho, que reforça esta pre-ocupação com o peso do Estado e com a forma como o estado intervém na economia, tem a ver com a estrutura da despesa pública em Portugal, nos anos de 2007 e 2012.

É claro que há um aumento do peso das funções ligadas àquilo que é designado “velhice” isto basicamente são só as pensões de reforma, há um aumento significativo, até porque a despesa pública diminuiu, as pensões de reforma nalguns casos também, mas não diminuíram tanto, e sobre-tudo há um fenómeno de envelhecimento da sociedade por-tuguesa, eu não vou hoje falar sobre isso, não é tão preocu-pante quanto normalmente se diz, na minha opinião pessoal, mas de qualquer modo existe, tem este reflexo, já é muito menos nítido noutro tipo de proteção social, eu não podia aqui multiplicar este diagrama mas, por exemplo, o peso do desemprego na despesa pública, despesa que é devotada à proteção social dos desempregados é praticamente es-tável, é praticamente igual em 2007 e 2012, o que é quase inacreditável, em 2007 a taxa de desemprego era tão baixa comparada com a de 2012 e noutras componentes da prote-ção social acontece o mesmo. Obviamente há um aumento do peso com as transações relacionadas com a dívida pú-

blica, isso não é de espantar. Agora, o que é do meu ponto de vista mais preocupante é a clara redução de peso quer da educação quer da saúde. Eu diria que até mais da saúde do que da educação. Porque se eu aceito que há algum en-velhecimento da sociedade portuguesa, eu já escrevi isso, é previsível que a certa altura haja alguma estabilização ou até redução do peso da educação na despesa pública e do peso da educação no PIB, porque há menos jovens para educar. Agora, esta lógica não se aplica à saúde. Ou seja, uma redu-ção de 2% (de 14,9 para 12, 8) do peso da saúde na despesa pública é uma redução dramática e, de algum modo, isto tem a ver com distribuição de rendimento. Porque aquilo que nós usufruímos quando usufruímos de serviços públicos de educação, ou de serviços públicos de saúde é rendimento em espécie, não é em dinheiro, não nos pagam, mas é rendi-mento em espécie e é uma forma de rendimento que usufru-ímos, e usufruímos cada vez menos, e a minha preocupação é com esta diminuição do papel do Estado enquanto entida-de redistribuidora do rendimento.

Muito obrigado por me terem ouvido.

intervençãoPedro Ramos

Fonte: INE, Contas Nacionais2007 2012

100 %

50 %

0 %

Velhice

Proteção social - outros

Transações relacionadas com a dívida pública

Outros serviços gerais da administração pública

Assuntos económicos, ambiente, habitação e desporto

Defesa, justiça e segurança

Educação

Saúde

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21COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

Elísio Estanque

Em primeiro lugar agradeço à organização o convite para este papel de moderador.

Vamos então dar início a esta mesa cujo tema é: “O papel da negociação coletiva, potencialidades e constrangimentos” e vamos ter, a animar esta sessão, 4 nomes bem conhecidos de quem lida e está habituado a relacionar-se com estes de-bates e com estas temáticas, recorrentes na sociedade portu-guesa nos últimos anos.

Numa rápida apresentação: António Casimiro Ferreira, meu colega e amigo da Faculdade de Economia e do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que irá ser o primeiro orador desta sessão, cujo trabalho na área das rela-ções laborais, do diálogo social, da concertação social, é bem conhecido de todos nós, aliás, acaba de publicar mais um livro que esperemos todos que tenha grande impacto na sociedade portuguesa “Política e Sociedade”, e aproveito para lhe dar os parabéns em público. Depois o Professor Jorge Leite, Pro-fessor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Univer-sidade de Coimbra, especialista em direito do trabalho, com uma imensa obra nestas áreas e é uma referência incontorná-vel no campo do direito do trabalho, não apenas em Portugal mas também por outras paragens - eu posso testemunhar isso mesmo. A seguir a professora Maria da Paz Campos Lima, colega também das andanças pelo ISCTE e não só, também uma conhecidíssima especialista nestas áreas que muito tem contribuído para os atuais debates em torno das questões la-borais no contexto europeu, e tem também contribuído para a internacionalização da sociologia portuguesa por diversas paragens, e, também, colaboradora no número recente que acabámos de editar em Coimbra da Revista Crítica de Ciên-cias Sociais. É investigadora sénior de Dinâmia, coordenadora da equipa do EIRO e também membro do comité editorial da revista “Transfer”, com uma atividade bastante intensa nestas áreas. Finalmente o Dr. Vitor Ferreira, advogado com uma in-tensa experiência na defesa dos direitos dos trabalhadores, colaborando com sindicatos há muito tempo e é arbitro da área do Trabalho junto do Conselho Económico e Social.

Vamos avançar com as intervenções, pedindo a cada um dos colegas do painel que sejam contidos no tempo, para que, no final, haja condições e espaço para que todos possam inter-pelar as comunicações e possamos criar espaço de debate aberto à participação do público.

Se achar pertinente fazer algum comentário na sequência das diversas intervenções, procurarei dar um pequeno contributo dentro das minhas limitadas possibilidades nestas áreas, para ajudar à reflexão.

Penso que o tema está bem enquadrado. É de extrema atu-alidade e acho até muito interessante e irreverente, que se retomem conceptualizações onde se refletem naturalmente perspetivas de análises que recuperam, inclusive, um tipo de discurso, um tipo de linguagem e um tipo de abordagem aos temas da economia, aos temas do trabalho, às relações la-borais, que há algum tempo atrás - há umas décadas atrás -, infelizmente, em Portugal e na Europa, muitos pensavam estar ultrapassados. Ora, por via da realidade que se impôs e se tem vindo a impor, os antagonismos, as contradições, as clivagens, as oposições entre o capital e o trabalho, têm-se tornado demasiado evidentes para que se possam ignorar as referências clássicas nesta matéria, designadamente as refe-rências no campo marxista.

Eu penso que isto está bem claro na própria formulação e de-finição do tema “A transferência de rendimentos do trabalho para o capital”. É reassumindo essa perspetiva crítica, crítica não apenas da realidade conjetural, da realidade do momen-to, mas é a crítica do próprio sistema, e é, portanto, no sen-tido de que cada um de nós contribua para reatualizar essas visões críticas, que nos ajudem a descortinar por entre esta nuvem de poeira que a ideologia dominante nos impõe - há um caminho alternativo. Penso que é esse também o objetivo deste Observatório, abrir caminho, de facto para que uma ou-tra alternativa no campo da economia e da sociedade possa ser possível e que recupere, que resgate de facto os “velhos” valores, os valores da solidariedade, os valores pelos quais, desde sempre, desde há pelo menos 200 anos, as classes trabalhadoras do mundo inteiro se têm batido e em especial o movimento sindical. É dando luz e dando um contributo com esse tipo de preocupações, para esse tipo de projetos alter-nativos, que eu suponho que cada uma das intervenções a que vamos assistir a partir de agora irá centrar-se.

Licenciado em Sociologia no ISCTE. Doutorou-se em Sociologia na Universidade de Coimbra, com a dissertação: Classe e Comunidade num Contexto em Mudança: práticas e subjectividades de uma classe em recomposição – o caso do operariado do calçado em S. João da Madeira.Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra sendo também investigador do Centro de Estudos Sociais (CES)

Penso que o tema está bem enquadrado. É de extrema atualidade e acho até muito interessante e irreverente

intervenção inicial - tarde

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22STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

António Casimiro Ferreira

Muito obrigado pelo convite.

Se eu me perder nesta minha intervenção, há pelo menos duas ideias que eu gostaria de transmitir e partilhar. A primei-ra ideia é de que se torna difícil pensar o sistema de relações laborais do mundo do trabalho, e muito especificamente ago-ra a negociação coletiva portuguesa de hoje, se não inserir-mos esta discussão num contexto mais amplo, num contexto que nós, talvez, possamos definir como sendo um contexto em que já não estamos a assistir a uma era de mudanças, mas estamos, de facto, a assistir a uma mudança de era. Se quiserem, ficar com uma ideia de uma sociedade de auste-ridade, de uma sociedade de exceção; se quiserem retomar uma discussão que muitas vezes tem sido invocada, de que existe uma rotura de paradigma civilizacional, e, por isso, fa-larmos da negociação coletiva, que é uma conquista de mo-dernidade política mas também de modernidade do trabalho, implica que levemos em consideração esta alteração estrutu-ral a que nós estamos a assistir.

A outra ideia que gostaria de partilhar convosco é a de que, para além da transferência da riqueza, para além da transfe-rência de rendimentos do trabalho para o capital, estamos a assistir a uma outra transferência, e essa outra transferência é tão importante quanto aquela que decorre deste transva-so de rendimentos das pessoas que dependem do trabalho, quer dependam ativamente, quer estejam numa situação de reformados, quer, ainda, daqueles que são dependentes das pessoas que vivem do trabalho, quero eu com isto dizer que essa outra transferência é a transferência de poder. É a transferência que resulta do aprofundamento da assimetria de poder entre estado, capital e trabalho, e essa transferên-cia de poder eu diria que, estruturalmente, é tão corrosiva para a democracia quanto é aquela que resulta de uma má redistribuição daquilo que existe.

Eu poderia dar como concluída esta minha intervenção, por-que é esta a mensagem que eu queria dizer, mas ainda as-sim iria tentar dar algum conteúdo a estas minhas filosofias.

Quanto à primeira, a ideia do contexto, eu tenho pensado muitas vezes como é que podemos para além da nossa ex-periência subjetiva e objetiva relativamente aquilo que vem acontecendo sob o signo de austeridade, como é que nós podemos dar uma imagem forte desta mudança a que es-tamos a assistir, que é uma mudança que não diz respeito apenas aos países que estão sob os auspícios das ajudas externas, é uma mudança que significa também uma mudan-

ça para os países que aparentemente não estão numa situ-ação tão deficitária como aquela em que nós estamos hoje, mas para os quais os projetos de reforma política que ve-nham a ser implementados, acabarão por beneficiar daquilo que vem sendo feito sob o signo de austeridade. Quero eu dizer com isto, que a austeridade, no meu ponto de vista, é a nova expressão do neoliberalismo. Há muitos de nós, mes-mo quem tem acompanhado fóruns de discussão europeus, alguns colegas que pensam sobre o trabalho, sobre estas matérias insistem na lógica… bom, “é a questão do neolibe-ralismo”… sim, mas não! Porque o que está acontecer ago-ra, e essa é a radical diferença entre o neoliberalismo com paradigma de reforma política, económica e também laboral, a grande diferença do neoliberalismo para o paradigma de austeridade é que a austeridade não tem de invocar princí-pios democráticos. E volto ao princípio da exceção e esse princípio de exceção faz a enorme diferença por relação àquela forma que, mais ou menos titubeante, o neoliberalis-mo utilizava para legitimar as suas decisões, nomeadamente aquelas que dizem respeito à matéria que nos traz aqui e que é da esfera laboral. E isto é muito importante porque, deixem-me dar a tal imagem, nós tivemos o terramoto de Lisboa, em 1755, aí Voltaire e outros autores chamaram a atenção para o facto de “percebemos que a humanidade é diferente da natureza”- a natureza é mais forte que a huma-nidade - e houve uma grande rotura. Depois Auschwitz trou-xe uma outra grande rotura, que foi a de que a humanida-de pode romper com parte da humanidade dizendo “não há humanidade daquele lado”. Hoje assistimos e, insisto ainda nesta minha ideia de vivermos ainda um momento de grande transformação, assistimos a outra grande rotura: é de que a humanidade admite que uma parte da humanidade seja um efeito colateral, isto é, aqueles que são excluídos, aqueles que são mais penalizados pelos processos de desigualdade social, sejam aceites como danos colaterais (a linguagem é propositadamente militar), aquilo que são as respostas para a crise através do modelo de austeridade. E, no meu ponto de vista, esta é uma matriz que vai contra o bom senso, diria eu, da modernidade política e dos princípios da liberdade e da igualdade, da decência e da justiça social.

Licenciado em Sociologia pelo ISCTE e doutorado em Sociologia do Estado e da Administração pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde exerce funções de Professor Auxiliar. É investigador do CES e coordenador do Programa de Doutoramento "Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI", das Faculdades de Economia e de Direito da Universidade de Coimbra (FEUC e FDUC) e do CES. É também consultor da Organização Internacional do Trabalho (Escritório de Lisboa).

para além da transferência da riqueza, para além da transferência de rendimentos do trabalho para o capital, estamos a assistir a uma outra transferência (...) é a transferência de poder

(...) a austeridade, no meu ponto de vista, é a nova expressão do neoliberalismo (...), a grande diferença do neoliberalismo para o paradigma de austeridade é que a austeridade não tem de invocar princípios democráticos.

Hoje assistimos (...) a outra grande rotura: é de que a humanidade admite que uma parte da humanidade seja um efeito colateral, isto é, aqueles que são excluídos, (...) sejam aceites como danos colaterais

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23COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

E parece-me que uma das estratégias que tem sido segui-da não só por este governo, não só por esta crise, mas um processo que bem podemos retroceder alguns anos atrás, é justamente este modo de ir reformando de uma forma mais subtil, mais discreta, o que se passa no mundo do trabalho e o direito do trabalho, como uma peça fundamental na identidade democrática da modernidade. É mais fácil isto no contexto da sociedade portuguesa, do que encetar um processo de refor-ma constitucional, e esta é uma subtileza, uma terrível subti-leza de estratégia política, porque é uma forma de segmentar a discussão, acantonando a discussão sobre o trabalho e a negociação coletiva ao canto das reformas económicas. Mas o que é facto, é que a negociação coletiva é uma peça fun-damental para manter o equilíbrio entre liberdade, igualdade e justiça social. E quando se mexe no direito do trabalho no sentido muito amplo ou quando se pega especificamente na negociação coletiva e se desqualifica, é a subversão desses três princípios, esses três pilares que são postos em causa.

A segunda nota é para falar da relação que existe entre a nego-ciação coletiva e os direitos fundamentais. A negociação cole-tiva é um direito fundamental, não só porque está nessa parte da Constituição, mas também do ponto de vista internacional. Aqui invoco e quero partilhar, subscrevendo as posições da Organização Internacional do Trabalho, que tem insistido na ideia de que a negociação coletiva é um direito fundamental.

Ora, se é um direito fundamental nós temos de pensar de que forma é que a invocação do princípio da exceção, o qual vai sendo aceite de uma forma natural (basta pensarmos na pos-sibilidade do princípio da retroatividade das leis, para não falar de outros), fica-nos esta perturbação de como é que podemos olhar para a negociação coletiva e de direito fundamental como sendo um elemento (mais um direito como qualquer outro, e não, os direitos não são todos iguais, há direitos que têm a ver com uma dimensão fundamental da dignidade, do respeito da pessoa humana e têm a ver com o trabalho, porque por mais voltas que nós queiramos dar, o trabalho continua a ser uma peça central, como muitos de nós temos defendido e partilha-do, na estruturação da vida das pessoas e das sociedades)

Por isso eu diria que esta desconsideração antidemocrática que está plasmada nos documentos, como sejam da troika, como sejam o modo como o atual governo tem perspetivado o lugar da negociação coletiva, é algo que só nos pode deixar muito incomodados.

Enfim, vou concluir dizendo: se há um princípio que eventu-almente pode fazer a diferença, é aquele que passa por uma moratória onde se proíbe, onde se impede, que haja mais uma medida desfavorável ao trabalho, isto é, reforme-se o que tiver de ser reformado, mas não se mexa mais naquilo que são os direitos laborais.

Faça-se essa moratória, experimentem-se as reformas todas, mas não sacrificando mais quem depende do trabalho de for-ma direta ou de forma indireta.

Muito obrigado!

Dito isto, acrescentar que no que diz respeito aos processos de transformação social, quando se invoca o princípio da aus-teridade e o modelo de austeridade para responder à comple-xidade da crise, é regra pôr-se de lado a ideia de discutir a justiça social, isto é, a complexidade é tão complexa que não pode permitir a discussão da justiça social, por isso, o racio-nal das medidas de austeridade deixam de lado os impactos a não ser para aqueles que aqui estão, e partilhamos todos esse ponto de vista, para quem os tais efeitos colaterais ou a tal discussão sobre a justiça social não pode ser dissociada das respostas complexas à complexa crise que atravessamos e que o modelo robusto de austeridade vai como resposta.

Eu utilizo muito vezes a ideia de que vivemos agora sob o sig-no de um certo utilitarismo paradoxal. O utilitarismo tem aque-la ideia de procurar a felicidade do maior número, mesmo que isso implique a infelicidade do menor número, eu acho que há uma inversão deste postulado, porque agora procura-se a felicidade do menor número à custa da infelicidade do maior número.

Portanto, são estas roturas que nós temos que levar em con-sideração, são estes nós estruturais que nos implicam e nos obrigam a pensar. No que diz respeito à negociação coletiva, ela naturalmente está filiada em toda esta discussão. O prin-cipal problema que se coloca quando nós estamos a discutir a negociação coletiva é que ela por sua vez é indissociável dos princípios da democracia laboral, do diálogo social, sen-do que a democracia laboral, o diálogo social, nas suas mais diversas manifestações, não é dissociável da democracia po-lítica e da democracia civil. Quando nós aqui discutimos o lugar da negociação coletiva e a forma perturbada como que-rem desestruturar a negociação coletiva, não nos podemos esquecer que ao minimizar, ao desqualificar a negociação coletiva, está-se ativamente a contribuir para a erosão dos princípios da democracia política.

Esta é uma ideia que a OIT tem sobejamente acentuado, tem insistido. Em boa verdade, é a razão de ser de grande parte da mensagem que a OIT nos foi deixando desde 1919 até aos dias de hoje, e este é um ponto que não é de somenos impor-tância. Nós vamos aqui discutir, e temos estado a discutir, di-ferentes dimensões ligadas a fatores instrumentais, e também de conteúdo, de reforma da negociação coletiva, de bloqueio da negociação coletiva, mas o que é facto é que a negociação coletiva não pode ser desenquadrada da situação que se vive na democracia portuguesa.

Esta é uma boa perspetiva de análise para quem quer, como nós queremos, defender a negociação coletiva como um prin-cípio que expressa a ideia da democracia participativa.

Deixem-me aqui acrescentar um ponto: é mais fácil desqualifi-car e atacar as leis laborais e um dos seus princípios de identi-dade política ou jurídica, que é a dimensão coletiva através da negociação coletiva, do que encetar um processo de reforma constitucional.

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

Quando nós aqui discutimos o lugar da negociação coletiva e a forma perturbada como querem desestruturar a negociação coletiva, não nos podemos esquecer que ao minimizar, ao desqualificar a negociação coletiva, está-se ativamente a contribuir para a erosão dos princípios da democracia política.

há um princípio que eventualmente pode fazer a diferença, é aquele que passa por uma moratória onde se proíbe, onde se impede, que haja mais uma medida desfavorável ao trabalho, isto é, reforme-se o que tiver de ser reformado, mas não se mexa mais naquilo que são os direitos laborais.

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24STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

Jorge Leite

É com muito gosto que aqui estou e passo diretamente ao tema deste painel, “O papel da negociação coletiva, potencia-lidades e constrangimentos”.

Constrangimentos há muitos, potencialidades há algumas, va-mos deixá-las para o fim. Dei ao meu tema o título “Negocia-ção coletiva – o “novo” instrumento de desregulamentação de trabalho”. Nem calculam como me custou este título, porque a negociação coletiva custou tanto a conquistar (como diz um colega meu italiano) por milhões e milhões de trabalhadores anónimos, durante décadas e décadas; e eu agora vou colocar este título? Vejam bem, como dizia Salgueiro Maia, ao estado a que chegamos, porventura também se usa hoje a contra-tação coletiva para desvalorizar o trabalho. Diria até que os poderes públicos, ou os poderes económicos dominantes, tem um interesse especial nesta desvalorização. E ela é também a desvalorização do sujeito do trabalho. Gosto de lembrar que são os direitos que transformaram a pessoa humana em ci-dadãos, mas também foi o direito da negociação coletiva, e outros direitos coletivos, que deram unidade e identidade às camadas trabalhadoras, aos grupos profissionais – e julgo que se assiste hoje a alguns ataques (é a tal individualização) que tem um duplo efeito: desmotivar os trabalhadores e desacre-ditá-los.

Na verdade, o que mais me custa nos tempos de hoje é esse tipo de conduta, de mensagem, de desconsideração dos tra-balhadores. E há muitos sinais contrários à Constituição. Faço lembrar aqui que a Constituição da República Portuguesa re-conhece o direito da negociação coletiva aos trabalhadores, não o reconhece aos empregadores; e é por acaso? Não, não é! Neste momento assiste-se a um agravamento escandalo-so dos desequilíbrios entre trabalhadores e empregadores, ou usando outra linguagem, entre o trabalho e o capital como o faz recordar o título deste seminário.

Como sou jurista, nada de economista, pouco de sociólogo, vou tentar ater-me mais às questões jurídicas.

O caminho da desvalorização vai continuar a agravar-se e atenção que ela não começou agora; verdadeiramente, ela começou com o Código do Trabalho de 2003, não interessa agora quem foram os autores, não importa uma avaliação sub-

jetiva, mas apreciações objetivas. Foi esse Código que acabou com o princípio que era a alma do Direito do Trabalho; e qual era? A lei geral estabelece mínimos e a negociação coletiva só pode melhorar as condições de trabalho; quando, em 2003, com as cumplicidades todas, se acabou com este princípio, aí sim, podemos falar de um novo paradigma que começa. Até aí havia tentativas, mas nunca tinha havido uma tentati-va tão clara como o tristemente célebre artº 4º do Código do Trabalho. Este artigo tem permitido a convenções coletivas estabelecerem piores condições do que a lei prevê, designa-damente em matéria de precariedade. E falemos claro, subs-critas por sindicatos afetos às duas centrais sindicais, não sei em termos quantitativos qual a dimensão. Permitem contra-tos a prazo por necessidades não apenas transitórias, como até uma certa percentagem dos trabalhadores, por exemplo, 20% (e reparem, são 200 em 1000) que podem ser arbitra-riamente contratados a prazo. O Código de Trabalho permite que a negociação coletiva e os contratos individuais “inferna-lizem” a vida dos trabalhadores com questões de alterações de horário de uma semana para a outra. Ora, isto desestrutura completamente a vida das famílias que não tem rendimentos para pagar a quem assegure estas ausências. Isto tudo leva, como Richard Sennet escreveu, à corrosão do caráter. Ainda nesta perspetiva, queria lembrar que houve mais alterações gravosas ao Código do Trabalho de 2003. As normas foram exponencialmente agravadas, primeiro em 2009, depois com a Lei 23 /2012, até ao chamado Código do Trabalho III.

Confesso a minha especial sensibilidade para um outro aspe-to, quando se fala de transferências quantitativas, em termos económicos, do trabalho para o capital. É que o Código per-mite, ou impõe, transferências, sacrifícios, que não são econo-micamente quantificáveis – são de ordem psicológica, moral, mental e extraordinariamente gravosas. Permite uma série de condições que a convenção coletiva agrava e que correspon-de a uma nova visão deste edifício do trabalho em Portugal.

Queria referir-me a duas coisas muito concretas: uma são os poderes da Administração; quando falamos de negociação coletiva falamos de autonomia coletiva, ou autonomia norma-tiva (não faz mal a ninguém tentar perceber estes conceitos

Professor jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, especialista em Direito do Trabalho. É diretor da revista “Questões Laborais”.

Dei ao meu tema o título “Negociação coletiva – o “novo” instrumento de desregulamentação de trabalho”. Nem calculam como me custou este título, porque a negociação coletiva custou tanto a conquistar (como diz um colega meu italiano) por milhões e milhões de trabalhadores anónimos, durante décadas e décadas; e eu agora vou colocar este título?

Faço lembrar aqui que a Constituição da República Portuguesa reconhece o direito da negociação coletiva aos trabalhadores, não o reconhece aos empregadores; e é por acaso? Não, não é! Neste momento assiste-se a um agravamento escandaloso dos desequilíbrios entre trabalhadores e empregadores, ou usando outra linguagem, entre o trabalho e o capital como o faz recordar o título deste seminário.

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25COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

solução e aplicou, resolveu aplicar, uma portaria de extensão e aplicar a todos os trabalhadores do banco.

Há ainda outros constrangimentos que não temos aqui tempo de aprofundar.

Mas há ainda um vasto campo que pode ser explorado pela negociação coletiva, as potencialidades também são gran-des. Eu sei que é difícil, tudo está feito para que os sindica-tos percam poder, disso não tenho dúvida. O que é isto de aderir individualmente a uma convenção coletiva? Fazer uma convenção coletiva custa dinheiro… lembro aqui o Paradoxo de Olson… a mensagem que é transmitida a um conjunto de pessoas é a de que não vale a pena correr o risco em comu-nidade, ter o encargo de pertencer a sindicatos, pagar uma quota, se calhar ainda arrisca não ficar nas boas graças do empregador, portanto o melhor é ficar de fora, este é o quadro normativo presente, tem o direito de escolher qual a melhor das convenções que se aplica na sua empresa… não pagou, mas tem esse direito.

Mesmo assim, gostava de lembrar que há campos que a ne-gociação coletiva não tem explorado, por exemplo, a questão da ecologia da produção, a questão da igualdade, sobretudo a igualdade que se traduz no combate às discriminações verti-cais, discriminações contra o progresso das trabalhadores na sua carreira, e isso é possível, por exemplo, face ao que aconte-ce no país vizinho. Vejam ao que se chegou; em França, recen-temente, chegou-se a um acordo consagrando o direito - esta consagração não é constitutiva, porque o direito já existe - que o trabalhador quando acaba o tempo de trabalho tem o direito de se desconectar, pode desligar o telemóvel, não ver o correio, etc., assinaram isso e como eu entendo que isto é importante! Apesar de ser uma norma declarativa, não é nada de novo.

O trabalhador depois do tempo de trabalho é dono de si, já que não é dono de si durante o tempo de trabalho.

Muito obrigado!

jurídicos), assim, esta autonomia refere-se à capacidade dos trabalhadores e empregadores se dotarem das suas próprias normas. No nosso sistema de relações profissionais, que está cheio de vícios, é impossível ter um sistema adequado sem rever uma série de normas.

Uma delas tem a ver com atuação dos poderes públicos, no firmamento da autonomia, como quando uma convenção cole-tiva é publicada. Nesse momento ela aplica-se a um universo muito reduzido. Mas depois a Administração tem um poder, através de uma simples portaria (de extensão), de poder fa-zer estender a muitos milhares de trabalhadores e empresas a mesma norma. Eu não estou contra isso, mas a lei não pode deixar a Administração do Trabalho ser a estrela, a lei de-via explicar em que condições e que convenções se podem estender. Desde 2012 (Resolução 90/2012, do Conselho de Ministros) exige-se já uma representatividade para os empre-gadores mas nada se exige para a representatividade dos tra-balhadores. De 2009 até hoje, os números das convenções são assustadores… de 259 passaram para 97, mas então as portarias são uma desgraça… 2012 - zero, 2013 - sete, 1º se-mestre 2014 - cinco… como é que a Administração pode ser tão arbitrária?

Ainda por cima tomaram estas medidas dizendo que iam es-timular a negociação coletiva, há uma mentira total, um de-sajustamento total entre os argumentos invocados e os re-sultados conseguidos; e eu até vou mais longe, parecem ser afinal os resultados pretendidos. A resolução que permitiu isto é totalmente inconstitucional. Organicamente inconstitucional, materialmente inconstitucional. Esta matéria era reservada à Assembleia da Republica, são matérias de direitos, liberda-des e garantias; como é que este Governo se atreve? Está visto que preferia governar sem Constituição. Mas como eu gosto de viver num país que respeita a Constituição! Eu gosto de viver num Estado de Direito, mesmo quando o direito que tenho não me agrada totalmente. É melhor viver num Estado que respeite o direito que tem e aos cidadãos compete lutar pela alteração do direito de que não gostam, do que viver num Estado sem direito.

Portanto, entidades que podem requerer a extensão são as Associações de empregadores, segundo esta nova Resolução; no entanto uma das primeiras portarias de extensão emitidas ao abrigo desta Resolução não foi requerida por uma Associa-ção de empregadores, mas foi requerida por um Banco que tinha acabado de aprovar um Acordo Coletivo de Trabalho que reduzia o salário… (eu não vou julgar aqui a bondade ou não desta solução). O Governo não teve nenhuma dúvida porque pediu a aclaração a si mesmo; não respeitou a sua própria Re-

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

Vejam ao que se chegou; em França, recentemente, chegou-se a um acordo consagrando o direito – esta consagração não é constitutiva, porque o direito já existe - que o trabalhador quando acaba o tempo de trabalho tem o direito de se desconectar, pode desligar o telemóvel, não ver o correio, etc. (...) O trabalhador depois do tempo de trabalho é dono de si, já que não é dono de si durante o tempo de trabalho

tudo está feito para que os sindicatos percam poder, disso não tenho dúvida. O que é isto de aderir individualmente a uma convenção coletiva?A lei geral estabelece mínimos

e a negociação coletiva só pode melhorar as condições de trabalho

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26STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

Maria da Paz Lima

Boa tarde a todos.

Eu em primeiro lugar queria agradecer ao Observatório das Crises e Alternativas o convite para estar aqui, e dizer que agradeço, de facto imenso, partilhar convosco, partilhar com os meus colegas, e a experiência esta manhã foi fantástica do ponto de vista das comunicações para compreendermos melhor e agirmos melhor.

Eu começaria por dizer que concordo com o António Casimiro em que a questão não é apenas da transferência dos rendi-mentos do trabalho para o capital, mas é o problema também da transferência do poder do trabalho para o capital.

E a minha intervenção não vai introduzir um olhar completa-mente diferente do que já foi dito até aqui, mas talvez integrar alguns outros elementos que olham para a questão, não só do ponto de vista da situação em Portugal, mas do ponto de vista da situação em geral na Europa, no quadro do recrudes-cimento do neoliberalismo ou da escalada neoliberal que se segue à crise internacional.

Nós não vamos fazer a história aqui, de todo este processo. Eu queria deixar algumas ideias-chave que depois passo a de-senvolver.

A primeira ideia, que muitos economistas e principalmente eco-nomistas da economia política têm vindo a acentuar, é que fo-ram exatamente as transformações da relação salarial introdu-zidas pelo neoliberalismo, desde os anos 80, que potenciaram a crise financeira e económica internacional que emergiu em 2008. E como diziam aqui e muito bem hoje de manhã, a bolha que se está a preparar, a nova bolha, pode ameaçar uma nova crise porque continuam as mesmas soluções neoliberais.

Portanto, a seguir a esta crise que resultou do neoliberalismo, há uma nova onda de neoliberalismo com semelhanças com a an-terior, com alguns elementos novos, incluindo a política de aus-teridade Europeia, mas estamos num quadro que é semelhante.

É importante notar que esta vaga neoliberal que se iniciou nos anos 80 na Europa (na Inglaterra com a Srª Thatcher e do ou-tro lado com Reagan), não se espalhou de forma homogénea e simétrica por todos os países, e que portanto se cristalizaram diferentes configurações e regimes de emprego e de relações laborais, tendo em conta, se quiserem, a intensidade, a velo-cidade desta geografia da distribuição do neoliberalismo. E de facto, nas vésperas desta crise, apesar de tudo haviam algu-mas diferenças significativas de moral.

Doutorada em Sociologia pelo ISCTE-IUL, é investigadora sénior do Dinâmia-CET-IUL. Coordena a equipa nacional do EIRO (CESIS e Dinâmia-CET-IUL) da Eurofound’s Network of European Observatories. É membro do comité editorial da revista “Transfer: European Review of Labour and Research”.

concordo com o António Casimiro em que a questão não é apenas da transferência dos rendimentos do trabalho para o capital, mas é o problema também da transferência do poder do trabalho para o capital.

ideias-chave•As transformações da relação salarial introduzidas pelo neoliberalismo potenciaram a

crise financeira e económica internacional;

•A subsequente vaga de austeridade neoliberal observada na Europa visou a desvalorização salarial competitiva e a desregulação competitiva da legislação social, em particular nos países do Sul da Europa;

•As politicas implementadas em Portugal no período de intervenção da Troika visaram enfraquecer significativamente as componentes do regime de emprego e do sistema de relações laborais que se distinguiam do modelo liberal;

•Reconfiguração regime de emprego – flex(in)segurança – desvalorização salarial e das condições de trabalho e redução da protecção assegurada pelas convenções colectivas; redução da protecção no emprego, facilitando os despedimentos; e redução da protecção no desemprego;

•Reconfiguração do sistema de relações laborais – bloqueio e descentralização desorganizada – erosão da negociação sectorial, redução da cobertura das convenções colectivas; e instrumentalização da concertação social.

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27COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

Há aqui dois níveis. Porque é que eu falo de regime de em-prego e depois de sistema de relações laborais? Podem-me dizer: não é o mesmo? Há aqui efetivamente interseções. Há uma zona de interseção, porque nos regimes de emprego uma das diferenças importantes é justamente o regime de ne-gociação coletiva.

Quando estamos a falar de regime de emprego, estamos a falar da situação dos trabalhadores, da precariedade laboral, da proteção no desemprego, da legislação sobre os despe-dimentos e, portanto, da relação de forças capital/trabalho ao nível mais estrutural. Quando estamos a falar de relações laborais, estamos a falar, então, dos atores do sistema, da organização coletiva, da organização sindical e das estrutu-ras, se se pode dizer assim, de negociação coletiva e de ins-trumentos de negociação coletiva e da relação de poder que define.

Interseções: Alguns autores, e designadamente Gallie, que sugerem este conceito de regime de emprego, define basicamente 4 tipos de regimes de emprego: o regime inclusivo, onde estariam os países nórdicos, e neste regime o que é característico é que a negociação coletiva apoia-se em elevada densidade sindical e numa grande cobertura das convenções coletivas. Portanto, em grande parte, as condições dos trabalhadores e a solidariedade e as medidas que se aplicam à generalidade

A questão que se coloca justamente neste campo, a subse-quente vaga de austeridade neoliberal observada na Europa, traduz-se no sentido de pressionar e de acentuar (e eu digo na generalidade dos países europeus e não é só no sul) no sentido da desvalorização interna e no sentido de completar a agenda neoliberal.

Evidentemente com mais incidência no sul, porque isto co-meça pelo elo mais fraco que é aquele mais fácil de partir, e por condicionantes e com instrumentos que evidentemente se utilizaram no sul da Europa a começar com a intervenção da Troika e do memorando.

Desse ponto de vista, a ideia do memorando da Troika e da intervenção da Troika e das políticas implementadas neste período dos atores externos, como a Troika, e de atores inter-nos, visaram significativamente enfraquecer as componentes do nosso regime de emprego e do nosso sistema de rela-ções laborais, que ainda tinham algumas diferenças com o modelo liberal característico dos países anglo-saxónicos. E é justamente esse o programa da Troika, e é por isso que ele é tão detalhado. Como dizia o José Maria Castro Caldas, é extraordinário o detalhe do programa da Troika aqui ao nível das medidas, ao nível dos números e justamente o detalhe está no sentido da configuração e reconfiguração do regime de emprego.

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

regimes de empregO (GALLIE, 2007, 2013)

DUALISTAEuropa continental –

Alemanha, Holanda, etc,

INCLUSIVOPaíses nórdicos

LIBERALIrlanda, Reino Unido

MEDITERRÂNICO - SUBPROTECÇÃOGrécia, Espanha e Portugal

NEOLIBERALISMO

CRISEFINANCEIRAGLOBAL

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28STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

dos trabalhadores, são definidas por essa presença sindical no terreno, forte sindicalização e grande cobertura das con-venções coletivas, esta é a lógica de inclusividade.

Nos regimes dualistas, pelo contrário, há uma parte da mão de obra que tem este modelo, que tem níveis de sindicali-zação elevados e importante cobertura, mas há uma parte significativa da mão de obra que não tem.

Finalmente o regime liberal, é o regime em que não há nem densidade sindical elevada, nem cobertura elevada das con-venções coletivas, é um regime absolutamente residual. Portanto, é um grupo muito pequeno de trabalhadores que beneficia de alguns elementos de contratação coletiva. É o modelo americano, claramente, hoje em dia, não era, há trin-ta anos atrás não era, e é o modelo da Irlanda e do Reino Unido.

Nos países mediterrânicos o que é que acontece? E no caso Francês? Há um modelo em que justamente se compensa a baixa densidade sindical com o elevado nível das conven-ções coletivas através de um mecanismo de portarias de extensão. Este é um elemento que é diferenciador dos dife-rentes regimes de emprego. Mas há outro elemento diferen-ciador dos diferentes regimes de emprego e que tem a ver justamente com o grau de proteção no desemprego. Os regi-mes inclusivos nos países nórdicos tendencialmente tinham uma lógica de proteção que se está a perder, é preciso que se note, o neoliberalismo também está a fazer estragos na Escandinávia, mas a tendência era justamente que a situação dos trabalhadores em termos de proteção social não depen-dia do seu estatuto em relação ao mercado de trabalho.

No caso dualista esta questão da proteção no desemprego coloca-se também. E é preciso dizer que os países dualistas se tornaram mais dualistas. A Alemanha que é um caso cla-ro de dualista, esse que já se observava no início dos anos 2000, aprofundou esse dualismo com as reformas de 2004.

A questão que se coloca aqui de alguma maneira é dizer se na Europa há diferenças em termos de regimes de emprego, a tendência ao nível das políticas atuais e da política euro-peia, porque não estamos apenas a falar de somatório de políticas nacionais é fazer, se se pode dizer assim (eu chamei a esta estratégia flexigurança e descentralização desorga-nizada), que é por um lado combinar a destruição da nego-ciação coletiva setorial, é disto que se trata, e é preciso per-ceber que a negociação coletiva setorial é a espinha dorsal da existência dos sindicatos, porque justamente a ideia de sindicato é essa. A ideia de sindicato é a de incluir diferentes trabalhadores de diferentes empresas e permitir essa ligação setorial.

É uma das primeiras questões que está colocada a nível euro-peu, e simultaneamente a facilitação dos despedimentos indi-viduais e coletivos e a redução da proteção no emprego.

Digamos que Portugal nas vésperas da crise se distinguia, como eu disse há pouco, do modelo neoliberal na medida em que tinha um elevado nível de cobertura das convenções cole-tivas, em que era muito importante a negociação setorial, tinha uma melhor proteção do que os regimes liberais em matéria de despedimento individual, tinha uma melhor situação relati-vamente ao montante de subsídio de desemprego em percen-tagem do salário anterior e em relação à duração mais prolon-gada do subsídio de desemprego. Estas eram as diferenças. Em variadíssimas outras coisas já estávamos muito próximos dos outros modelos: quanto ao regime do despedimento co-letivo, quanto à baixa densidade sindical, quanto à baixa pro-porção de trabalhadores cobertos pelo subsídio de desempre-go, também já estávamos numa posição muito semelhante à dos países liberais, aliás, pior neste caso do que Inglaterra. No que diz respeito ao nível de desigualdade dos rendimentos Portugal também já estava numa posição pior do que o países liberais, a Irlanda e Inglaterra. E em matéria de redistribuição por via dos impostos, Portugal também já apresentava uma posição muito curiosa: não só considerando o índice de Gini nós estávamos numa das posições de maior desigualdade no quadro dos países europeus, mas depois, através da política de impostos, é possível definir critérios de impostos progres-sivos, que definam que os escalões de maior rendimento, de topo, sejam penalizados em benefício daqueles que têm me-nor rendimento. Essa dinâmica pode ser calculada e de facto Portugal é dos países onde essa compensação é menor. O quadro já era complicado, o quadro já não era famoso e justa-mente o que se passa aqui é que o que se pretende completar e o que se completou através da legislação foi esta reconfigu-ração do regime nesta ótica.

As políticas europeias evidentemente tiveram um grande pa-pel aqui assim, a Agenda 2020, a política do Semestre Eu-ropeu lançado em 2011, o Tratado de Estabilidade do Pacto Orçamental, mas designadamente em Portugal, o instrumento que foi usado foi a aliança com o FMI no âmbito da Troika e o Memorando de Entendimento. Aqui há uma coisa que é mui-to importante notar, é que quando pomos aqui a democracia que foi posta, quer pelo professor Jorge Leite quer pelo An-tónio Casimiro, a questão da democracia não se coloca ape-nas ao nível do direito da negociação coletiva, como direito, mas coloca-se ao nível de qual é legalidade do memorando da Troika.

E esta questão, de facto eu não sou jurista, mas é uma ques-tão que é preciso discutir e que foi muito pouco discutida, parece uma questão tabu. Porque nos memorandos da Troika e nos acordos que se fizeram, qual era a legitimidade para definir medidas daquela natureza, com aquele pormenor, re-lativamente às relações de trabalho. Por exemplo? É que no

é preciso perceber que a negociação coletiva setorial é a espinha dorsal da existência dos sindicatos, porque justamente a ideia de sindicato é essa. A ideia de sindicato é a de incluir diferentes trabalhadores de diferentes empresas e permitir essa ligação setorial.

a questão da democracia não se coloca apenas ao nível do direito da negociação coletiva, como direito, mas coloca-se ao nível de qual é legalidade do memorando da Troika.

Maria da Paz Lima

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29COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

quadro europeu, não existem mecanismos, nem existem po-deres, nem existem competências para definir as normas de legislação laboral dos países. Não há. Não existem. As direti-vas europeias podem ser transpostas e têm que ser transpos-tas, mas não houve nada com estatuto de diretiva europeia até agora, ninguém se atreveu. Houve uma tentativa com o livro verde das relações laborais na Europa, em 2006, de redefinir a legislação do trabalho em cada país através de diretivas, mas isso teve que recuar. Portanto, há aqui de facto, uma lógica de exceção, mas é uma lógica de exceção não só interna, é uma lógica de exceção ao mais alto nível.

Eu penso que esta questão é uma questão de facto muito impor-tante e que se insere justamente naquilo que o Casimiro disse.

Eu queria sobretudo acentuar estas duas questões: por um lado a transformação das condições de trabalho e das rela-ções de trabalho numa lógica de flexigurança, isto é, facilitan-do os despedimentos por um lado e reduzindo a proteção no desemprego por outro, que serve, como foi dito, uma lógica de declínio salarial. A Troika tem uma política clara relativa-mente à descentralização das convenções coletivas, e note-se que isto vai por fases. Esta questão é aprovada basicamente com o Código do Trabalho de 2012, uma parte dos objetivos da Troika no domínio da negociação coletiva, a seguir há a resolução que já foi mencionada, relativamente às portarias de extensão que é imediatamente publicada a seguir, e hoje em dia estamos aqui com duas propostas de lei em cima da mesa, designadamente uma proposta de lei que completa a última exigência da Troika, que tinha a ver com a redução da sobrevigência das convenções coletivas.

Eu não tenho tempo para referir estas questões todas.

Esta questão das portarias de extensão é uma questão chave, como pode ser aqui visto.

Nós, num espaço de poucos anos, passámos de 1.800.000 tra-balhadores cobertos por convenções coletivas para perto de 343.000. É dramático! Quer dizer que 1 milhão a menos de tra-balhadores abrangidos por convenções coletivas. Em Espanha são 5 milhões. Isto é a política europeia neste momento. E é disso que estamos a falar quando tratamos da negociação se-torial. Note-se que é preciso referir que noutras frentes em que houve alguns avanços na negociação coletiva por iniciativa sin-dical, a posição do governo foi de bloqueio completo. Designa-damente na administração pública a operação dos sindicatos, muito bem sucedida, de negociar na administração local para repor as 35 horas, conseguem celebrar 350 acordos, é bloque-ada pelo governo que pede um parecer à Procuradoria Geral da República com dúvidas sobre a interpretação da interven-ção do Estado nesta matéria, ou seja, desrespeita a autonomia negocial. A PGR finalmente agora há pouco tempo, emite esse parecer e, provavelmente, neste momento os membros do go-

verno estão a procurar interpretar o parecer da PGR, segundo as últimas notícias. Deve andar com uma lupa, de cócoras a vi-rar o papel de trás para a frente e de frente para trás.

Mais grave do que isto, é o recente acordo “ad hoc” do Con-selho Permanente de Concertação Social. E porque é que lhe chamo “ad hoc”? Porque por um lado o que sai desse acor-do é a redução da sobrevigência das convenções coletivas de cinco para três anos, e dessa parte do acordo imediatamente, com uma rapidez extraordinária, é formulada uma proposta de lei que já está aí, outra proposta de lei que prolonga a redução para metade do pagamento do trabalho extraordinário, mas a parte do acordo à qual a UGT alude, relativa à extensão das convenções coletivas, que ninguém sabe, ninguém viu escrita, não há nenhuma proposta de lei, não há nenhuma proposta de resolução, não se passa nada. Portanto, é um acordo “ad hoc”, é assim um elemento muito estranho.

Só queria acabar com uma questão, que tem a ver com os Sin-dicatos, com as Confederações Sindicais em Portugal e com o que foi o sistema das relações laborais neste período.

A (des)concertação social, a Troika a decidir com o governo unilateralmente, a negociação coletiva ali é um tracinho muito fininho, a negociação setorial, e o que há fundamentalmente é a decisão unilateral do lado do governo associado à Troika e a decisão unilateral nas empresas. Foi isto que predominou. Mas há ali um problema: Foi isto que predominou mas há ali uma concertação (des)concertação social. Eu sempre achei que a concertação social em Portugal foi sempre desarticula-da, e foi sempre parcial, mas nós chegámos a um ponto neste contexto em que passámos da concertação desarticulada à concertação perversa. E só queria mostrar um quadro que é muito importante. Este é o quadro do acordo de concertação social de 2012. Estão aqui, de um lado as medidas do memo-rando da Troika e do outro lado as medidas que foram além do memorando da Troika e estas foram as medidas que foram aprovadas na concertação social pelas organizações de em-pregadores e pela UGT. É preciso tirar lições disto. É preciso tirar grandes lições disto. E se de facto se quer defender e preservar a negociação coletiva, o direito dos trabalhadores, a capacidade negocial dos trabalhadores, é importante tirar grandes lições disto. Porque estão aqui em grande medida as principais medidas do memorando da Troika e algumas, uma parte substancial das medidas para além da Troika. Este foi um lado da questão. Foi uma das questões centrais cujo balanço é preciso fazer. Quando hoje da parte da manhã um dirigente sindical dizia – Nós temos que responder aos trabalhadores no dia a dia para amanhã, para logo, e portanto estamos pressio-nados pelo momento. É verdade. Mas também é importante que haja às vezes uma visão de conjunto, donde é que vimos, o que é que aconteceu, para onde é que vamos.

a questão da democracia não se coloca apenas ao nível do direito da negociação coletiva, como direito, mas coloca-se ao nível de qual é legalidade do memorando da Troika.

Eu sempre achei que a concertação social em Portugal foi sempre desarticulada, e foi sempre parcial, mas nós chegámos a um ponto neste contexto em que passámos da concertação desarticulada à concertação perversa.

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

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30STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

Para concluir, mencionámos aqui 5 greves gerais e falámos aqui no protesto social. Note-se que também aqui houve uma grande diferença. E essa diferença, para mim, repre-senta o sinal de esperança no meio deste contexto. Porque se não tivesse havido esta diferença, eu penso que todos nós estaríamos aqui muito mais preocupados com esta situ-ação. O que significa que há algum potencial de resistência, de entendimento e de possibilidade de ação coletiva.

Tivemos 5 greves gerais em 35 anos (1974-2009), tivemos 5 greves gerais em 3 anos (2010-2013).Mais importante do que isso, tivemos um protesto social que combinou, ação sindical, iniciativa sindical e movimentos sociais e que em momentos muito importantes conjugou o movimento social e o movimento sindical

Tivemos 5 greves gerais em 35 anos (1974-2009), tivemos 5 greves gerais em 3 anos (2010-2013).

Mais importante do que isso, tivemos um protesto social que combinou, ação sindical, iniciativa sindical e movimentos so-ciais e que em momentos muito importantes conjugou o movi-mento social e o movimento sindical.

Também aqui é preciso fazer um balanço.

E, no meu ponto de vista e respondendo, ou tentando integrar aqui a questão do Casimiro, vivemos de facto uma mudança de era. E essa mudança de era é uma mudança para a austeridade neoliberal. Mas também há elementos de uma mudança de era no sentido da emergência de movimentos sociais e de possibi-lidades de novas formas e novas alianças. E é importante que não cristalizemos posições e que avancemos nesse sentido.

Muito obrigado!

a (des)cOncertaçãO sOcial: "cOmprOmissO para O crescimentO, cOmpetitividade e empregO -2012

Acordo Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego - 2012 - Base do Código Trabalho 2012

Além da TROIKA

a) Possibilidade de o regime de banco de horas ser implementado mediante acordo entre o empregador e o trabalhador

b) Eliminar, com carácter imperativo, descanso compensatório trabalho suplementarc) Reduzir para metade os montantes actuais devidos a título de acréscimo retributivo pela

prestação de trabalho suplementar constantes de IRCT ou contrato de trabalhoe) Durante dois anos lei imperativa sobre quaisquer IRCT’s ou contratos de trabalho

(referente a c e d)f) Reduzir para metade a retribuição do trabalho normal prestado em dia feriadoh) Eliminar o acréscimo, de até 3 dias, ao período mínimo de férias, de 22 dias – eliminação

automática e imperativa das majorações introduzidas em IRCT ou contrato de Trabalho

MoU TROIKA

d) Reduzir para metade os montantes pagos a título de acréscimo pela retribuição de trabalho suplementar

g) Reduzir em três a quatro o número de feriados obrigatórios. i) Despedimento por inadaptação e por extinção do posto de trabalhoj) Compensação por cessação contrato trabalhok) Redução da duração e montante do subsidio de desempregol) Admitir a determinação, nos contratos colectivos de trabalho, de que certas matérias,

tais como a mobilidade geográfica e funcional, a organização do tempo de trabalho e a retribuição, possam ser reguladas por estruturas representativas dos trabalhadores na empresa, incluindo as comissões de trabalhadores e as comissões sindicais, mediante a definição dos termos e condições em que tal se pode verificar

m) Admitir a delegação dos poderes para contratar convenções colectivas, por parte de associação sindical, nas estruturas de representação colectiva de trabalhadores nas empresas com pelo menos 150 trabalhadores.

intervençãoMaria da Paz Lima

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31COLÓQUIO STEC - A TRANSFERÊNCIA DE RENDIMENTOS DO TRABALHO PARA O CAPITAL - 19 JUNHO 2014

O tema da minha conversa é a desvalorização do contrato de trabalho.

Desvalorização do contrato de trabalho, quer a nível do con-trato individual quer a nível da convenção coletiva de tra-balho: contrato coletivo de trabalho, do acordo coletivo de trabalho ou do acordo de empresa.

O tempo não nos permite uma explanação muito desenvolvi-da e muito precisa sobre aquilo que pretendemos dizer e eu vou exemplificar aqui com duas ou três matérias a ideia que está subjacente ao título que atribuí à minha intervenção, começando por uma questão que se colocou logo em 2010, na lei do Orçamento de Estado para 2011, que mostra que o contrato de trabalho, pelo menos em muitas cabeças, não é um verdadeiro contrato. É claro que é um contrato espe-cial, um contrato até especialíssimo, na medida em que é um contrato, desde logo, no século XXI, em que uma das partes tem poder disciplinar sobre a outra e, portanto, isto dá-lhe logo um caráter muito especial. Mas as pessoas continuam a encarar o contrato de trabalho como um contrato, nos seus traços gerais, nos seus traços fundamentais, o contrato de trabalho deverá ser como um contrato de arrendamento, um contrato de compra e venda, de sociedade, etc. Deve preva-lecer a vontade das partes, e aquilo que for convencionado e formalizado em contrato deve ser respeitado por ambas as partes, até que cesse o contrato ou que haja acordo para a sua modificação.

No entanto, na Lei do Orçamento de Estado para 2011, onde foi estabelecida a famigerada redução da retribuição dos funcionários públicos, uma ideia que me assaltou de ime-diato nessa altura foi a de que se é possível fazer isso a um contrato de provimento, um contrato de nomeação, um con-trato de trabalho na administração pública, ou aos contratos de trabalho genericamente vigentes nas empresas do setor empresarial do estado, sujeitos ao regime do contrato de trabalho, do código do trabalho, se é possível fazer isso a esses contratos, isto é, unilateralmente reduzir, fazendo uso do poder legislativo, reduzir a prestação que cabe a uma das partes do contrato, se isso é possível, é possível também em relação aos demais contratos que o Estado celebra com os particulares, sejam empreiteiros de obras públicas, fornece-dores de material informático, quaisquer contratos.

Porquê só estes contratos? Estes contratos em que pessoas singulares auferem uma retribuição de que depende a sub-sistência do seu agregado familiar? Mas isto fica muito mais nítido se atentarmos no seguinte: o Estado resolveu, nessa Lei do Orçamento de Estado para 2011 (e depois reproduziu isso até hoje, e continua ainda em vigor), estabelecer o se-

Vitor Ferreira

guinte: relativamente aos trabalhadores chamados trabalha-dores independentes ou autónomos, eles levarão também os cortes mas nos seguintes termos: só é possível proceder à mesma redução salarial que a dos outros trabalhadores quando se celebra um contrato novo ou quando se renova o contrato. Isto é, quando chegar o momento em que a manu-tenção do contrato ou a celebração do contrato depende da manifestação de vontade das duas partes e do acordo das duas partes.

Então por que carga de água é que em relação a contratos de trabalhadores (é certo que não é trabalho vinculado, é trabalho autónomo, sem subordinação à direção e discipli-na, mas em muitos casos é um trabalho de que o trabalha-dor depende exclusivamente), porque é que nesses casos, o Estado sentiu que não tinha possibilidade, capacidade, von-tade de reduzir à má-fila, como fez com os outros, a pres-tação salarial pecuniária que é devida ao trabalhador e só o pode fazer quando chega ao fim do contrato, ou quando se vai celebrar um contrato novo?

Isto mostra que, de facto, a entidade patronal Estado, e pro-vavelmente a entidade patronal em geral, encara o contra-to de trabalho não como um verdadeiro contrato mas ainda com uns laivos de relação meia feudal.

Isto até levanta agora um problema concreto, com esta úl-tima declaração de inconstitucionalidade da norma que es-tabeleceu as reduções salariais para os funcionários e para os trabalhadores das empresas públicas, o artigo que esta-belece a redução para os contratos de prestação de serviço (que está lá para a frente, é o artigo 73), diz que se aplica aos contratos de prestação de serviços o regime do artigo 33, que é o regime do corte aos funcionários públicos. Como o regime do artigo 33 foi declarado inconstitucional, levanta-se agora a questão de saber o que é que se passa com os contratos de prestação de serviços. Se, como dano colateral da declaração de inconstitucionalidade do artigo 33, desa-parece também o corte; se, em vez disso, como aí o corte ocorreu apenas no caderno de encargos ou na adjudicação do contrato e, portanto, o corte mereceu o acordo das par-tes não deve ser alterado.

Advogado, com uma longa e intensa experiência na defesa dos direitos dos trabalhadores, quer ao nível da intervenção nos tribunais do trabalho e dos tribunais administrativos, quer ao nível da negociação coletiva. É árbitro da parte trabalhadora no Conselho Económico e Social.

O tema da minha conversa é a desvalorização do contrato de trabalho

(...) na Lei do Orçamento de Estado para 2011 (...) uma ideia que me assaltou de imediato nessa altura foi a de que se é possível fazer isso a um contrato de provimento, um contrato de nomeação, um contrato de trabalho na administração pública (...)isto é, unilateralmente reduzir (...) é possível também em relação aos demais contratos que o Estado celebra com os particulares, sejam empreiteiros de obras públicas, fornecedores de material informático, quaisquer contratos

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32STEC | CAIXA ABERTA Nº 35 - EDIÇÃO ESPECIAL | ABRIL 2015

letivos, mas que são verdadeiros contratos, são negociados entre as partes, por representantes das partes e vinculam as partes, têm também uma especialidade que é o facto de te-rem um efeito normativo e aplicarem-se mesmo àqueles que não estavam inseridos nessa relação na data da celebração do contrato e venham a colocar-se nesse âmbito de aplica-ção, mas são verdadeiros contratos.

Esses contratos têm levado grandes machadadas pela via legislativa, como se sabe, isto é, durante décadas, a nego-ciação coletiva a partir de certa altura passou a consistir, em regra, numa tentativa permanente de subordinar a mera atualização salarial à perda de outros direitos conquistados anteriormente, naquele período mais favorável a seguir ao 25 de Abril. E foram perdidos alguns direitos por essa via, pela simples atualização de remunerações que não consistia se-quer em nenhum aumento real das remunerações, era uma mera atualização. Foram trocados alguns direitos por essa mera atualização.

Mas, em muitos casos, felizmente, as organizações sindicais recusaram essa troca, bateram o pé, mantiveram os direi-tos. Houve lutas importantes, casos em que outros sindi-catos cederam direitos a troco de atualizações e depois se reclamou quer no terreno, quer nos tribunais, a aplicação do direito do trabalho igual salário igual, e conseguiram-se algumas vitórias nesse domínio, quer judiciais, quer através de greves e outras lutas. Mas a certa altura os poderes pú-blicos instituídos, representativos de uma parte da relação, em regra, passaram a atrever-se a agir de forma mais dire-ta nesta relação e a estabelecer por via legislativa a perda desses direitos, ou a redução ou a eliminação desses direi-tos através das normas legais imperativas. E começou a ser muito usual ver-se nas leis (embora mais recentemente nas leis do orçamento então com uma grande profusão) que o disposto neste artigo tem caráter imperativo, prevalece so-bre convenções coletivas de trabalho, contratos individuais de trabalho, quaisquer outras normas ou usos nas empre-sas. E por essa via assim se eliminam uma série de direitos. Designadamente uma, feita ainda recentemente a título per-manente, foi aquela que estabeleceu para os trabalhadores do setor empresarial do Estado o afastamento da remune-ração do trabalho suplementar, do trabalho prestado em dia de descanso semanal e feriado, os acréscimos por trabalho noturno, etc., das cláusulas das respetivas convenções e a aplicação do regime da função pública estabelecido sobre essas matérias. E não era no regime estabelecido nas con-venções coletivas da administração pública, era mesmo no regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isso constituiu uma redução significativa em matérias importan-tes e com expressão pecuniária nítida.

Mas esta referência é só para pôr aqui em equação esta duplicidade de estatutos e duplicidade de atitude de quem legisla e de quem tem o capital, de quem compra disponibi-lidade de força de trabalho em relação ao contrato de traba-lho comparativamente com os outros contratos, mesmo com as figuras afins.

Quanto ao direito de negociação coletiva, eu vou usar aqui uma figura de estilo ilustrativa do início da minha interven-ção, com este dito de alguém há muitos anos que o lobo e o cordeiro não poderem ter a mesma liberdade. É claro que não podem porque o lobo come o cordeiro. Não pode mas tem e o lobo efetivamente come o cordeiro! Vive disso, é da sua natureza e come o cordeiro.

No âmbito das relações laborais também se pensou, des-de há muitos anos, que o lobo e o cordeiro não podiam ter a mesma liberdade, e foram estabelecidos alguns limites à liberdade do lobo, porque o lobo, neste caso, não tinha ne-cessariamente de comer o cordeiro, ou de comer o cordeiro todo, e então foram estabelecidos alguns limites. Uns fixa-dos na lei (limites legais) que não é possível ultrapassar por vontade das partes, porque se a vontade das partes preva-lecer em absoluto (como se sabe, há trabalhadores que em circunstâncias especiais estão dispostos a trabalhar ape-nas pela alimentação) e portanto é necessário, por razões de interesse de ordem pública, estabelecer regras mínimas que protejam essa parte mais fraca na relação; e, por outro lado, foram criados direitos coletivos, que foram conquistas sociais importantes ao longo de séculos, como de negocia-ção coletiva, o direito de greve, o direito à organização em organizações coletivas de trabalhadores para defender os seus direitos, colocaram, de certo modo, o cordeiro numa posição mais equilibrada em relação ao lobo e permitiram ao cordeiro, unindo-se, juntando-se contra o lobo, conquistar alguns direitos em relação ao lobo ou, pelo menos, limitar a voracidade do lobo em relação aos cordeiros.

Mas isto tem tido as evoluções que todos conhecem: umas vezes bem outras vezes mal. Nestes últimos anos tem evolu-ído bastante mal e tem-se passado, para não estarmos aqui com muita ciência na explanação do tema, basicamente o seguinte: a seguir ao 25 de Abril foram conquistados uma série de direitos laborais e sociais, consagrados em mui-tas convenções coletivas de trabalho. Quando o clima era favorável a essa conquista por parte dos trabalhadores, os cordeiros estavam especialmente animados e organizados, foram conquistados esses direitos, foram consagrados em contratos, outro tipo de contratos, que são os contratos co-

Quanto ao direito de negociação coletiva, eu vou usar aqui uma figura de estilo ilustrativa do início da minha intervenção, com este dito de alguém há muitos anos que o lobo e o cordeiro não poderem ter a mesma liberdade. É claro que não podem porque o lobo come o cordeiro. Não pode mas tem e o lobo efetivamente come o cordeiro! Vive disso, é da sua natureza e come o cordeiro.

E começou a ser muito usual ver-se nas leis (...) que o disposto neste artigo tem caráter imperativo, prevalece sobre convenções coletivas de trabalho, contratos individuais de trabalho, quaisquer outras normas ou usos nas empresas. E por essa via assim se eliminam uma série de direitos.

Vitor Ferreira

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Corro o risco do direito a esse novo estatuto que vigorava numa convenção coletiva, nesse setor, que abrangia essa empresa e estabelecia esse estatuto, caducar. Caducando a convenção eu perco esse estatuto, mantenho o núcleo es-sencial dos direitos, mas perco esse estatuto. Se perco esse estatuto, todos os trabalhadores ficam sujeitos a fazerem opções de mudança de atividades, de empresas, de setores, que depois podem ver frustradas as motivações, os objeti-vos que os levaram a fazer essa opção. Isto é, torna tudo a prazo. E esta tentativa de redução do período de vigência das convenções denunciadas, para efeitos de caducidade, tem em vista justamente obter, pela via dessa figura, aquilo que os poderes públicos já não têm lata de eliminar pontual-mente por medidas legislativas.

Isto é, acusando ainda os sindicatos e os trabalhadores de serem os responsáveis pela caducidade desses direitos por-que não se dispuseram a negociar, quando é certo que o dispor-se a negociar era o dispor-se a ceder direitos em tro-ca de um prato de lentilhas.

Muito obrigado!

É claro que os poderes legislativos não podem fazer isso em relação à totalidade dos direitos que pretendem eliminar, sob pena de cairmos quantitativamente no domínio da pro-porcionalidade e da razoabilidade, cairmos na negação do direito da negociação coletiva. Isto é, os trabalhadores no exercício do direito de negociação coletiva conquistam um direito, vem o legislador a seguir, fazendo o jeito a alguém, e elimina legislativamente esse direito; então é melhor estar quieto e não negociar convenções coletivas!? E, portanto, tem que haver limites para o legislador, para que se man-tenha uma aparência que o direito à negociação coletiva é um direito efetivo, e que o legislador não suprime totalmente esse direito.

Mas então qual é a marosca?

A marosca consiste nitidamente no seguinte: em fazer ca-ducar as convenções coletivas de trabalho. Fazer caducar as convenções coletivas o mais brevemente possível. E ao fazê-las caducar, fazer caducar irremediavelmente uma série de regalias e direitos que constavam da convenção coletiva e salvar apenas em relação aos contratos individuais vigen-tes, que estavam abrangidos por essa convenção coletiva, o núcleo essencial de direitos que é cada vez mais essencial e mais restrito: é o direito ao salário, à categoria, já não ao horário de trabalho, salvar apenas aquele núcleo essencial do direito que constava na convenção coletiva, o que leva ao seguinte, leva a que, quanto ao conteúdo dos contratos, os contratos passem a ser todos a prazo.

Uma coisa é ser a prazo a vigência do próprio contrato, a manutenção do próprio contrato. Outra, com a caducidade das convenções em relação a uma parte importante do con-teúdo das convenções, ou melhor, do conteúdo dos contra-tos individuais de trabalho que foi projetado das convenções coletivas nesses contratos individuais de trabalho, é trans-formar esse conteúdo do contrato de trabalho em contrato a termo.

Vamos admitir que eu deixo um trabalho que tenho com um determinado estatuto remuneratório e outro, e sou admitido para uma empresa que me oferece uma série de outras rega-lias que conjuntamente com o salário, são muito mais atra-tivas e eu opto por essa oportunidade e vou trabalhar para essa empresa, pensando que, enquanto o contrato durar, eu terei esse melhor estatuto pelo qual optei. Mas não é assim.

A marosca consiste nitidamente no seguinte: em fazer caducar as convenções coletivas de trabalho (...) salvar apenas em relação aos contratos individuais vigentes, que estavam abrangidos por essa convenção coletiva, o núcleo essencial de direitos que é cada vez mais essencial e mais restrito: é o direito ao salário, à categoria, já não ao horário de trabalho, salvar apenas aquele núcleo essencial do direito que constava na convenção coletiva, o que leva ao seguinte, leva a que, quanto ao conteúdo dos contratos, os contratos passem a ser todos a prazo

E esta tentativa de redução do período de vigência das convenções denunciadas, para efeitos de caducidade, tem em vista justamente obter, pela via dessa figura, aquilo que os poderes públicos já não têm lata de eliminar pontualmente por medidas legislativas. Isto é, acusando ainda os sindicatos e os trabalhadores de serem os responsáveis pela caducidade desses direitos porque não se dispuseram a negociar,

intervenção"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

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Manuel Carvalho da Silva

A todas e a todos os presentes quero deixar-vos aqui um re-dobrado agradecimento pela vossa presença que dá sentido a esta iniciativa e, portanto, o nosso agradecimento em nome do Centro de Estudos Sociais e especificamente do Obser-vatório das Crises e Alternativas, em nome do Sindicato dos Jornalistas, do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, do Sindicato dos Trabalhadores Judiciais, do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e do STEC - Sindicato dos Tra-balhadores das Empresas do Grupo CGD -, aqui agradece-mos em particular também a disponibilidade das instalações, agradecer aos nossos conferencistas.

Queria deixar aqui alguns comentários: Um, é a propósito da OIT. Acho que foi importante aqui a nota sobre a OIT e o seu papel. De facto, a OIT é uma instituição com o seu caráter (como o António Casimiro bem referenciou e bem situou) re-formista institucional muito importante ao longo de muitas décadas, está quase com 100 anos, e vale a pena pensar na-quilo que levou à criação da OIT e qual foi o papel da OIT na reformulação, no fecho da Sociedade das Nações e na cria-ção das Nações Unidas, e a relação entre a declaração de Filadélfia e a declaração universal dos direitos humanos, é importante referenciar isso tudo. Mas foi aqui dito: está pe-rigosamente esvaziada de meios. De meios de vária ordem, não vamos falar disso.

E há outras tensões que se mantêm na OIT. Na conferên-cia deste ano, uma das preocupações desta conferência é o bloqueio que está instalado na Comissão de Normas. E a Comissão de Normas paralisada é um problema complicado. E está paralisada com tensões grandes quanto ao seu fun-cionamento centradas em matérias altamente sensíveis, uma das quais é o direito à greve e as interpretações subversivas que o patronato quer fazer sobre o direito à greve, como di-reito universal.

Permitam-me, também, que faça um reforço de referência ao relatório que temos concluído a nível do Observatório, que vai surgir aí, no plano nacional, publicado pela Almedina. O relatório mostra-nos claramente perceções que entretanto vão sendo mais do que confirmadas. Este programa da Troika foi trabalhado, de forma muito concreta, por conjugação de esforços de interesses internos e externos que se articula-ram para o fazer. Ainda numa sessão recente que nós orga-nizámos, no Congresso sobre Relações Laborais, na sessão final, no CES, o Pedro Lains, fazendo um pouco de registo histórico, da história recente sobre o memorando, mostrava, projetava até pormenores da primeira conferência de impren-sa, uma coisa espantosa: a conferência foi feita em língua inglesa, e quando se colocaram perguntas em português foi uma confusão porque não sabiam como responder, e entre-tanto tinham feito referência a um conjunto de pormenores altamente especializados da área da legislação do trabalho e outras que aqui hoje foram lembradas.

Houve autênticos atos de traição do ponto de vista políti-co, de traição, primeiro na preparação das condições para a inevitabilidade da intervenção, e hoje é muito mais conhe-cido as tensões que se viveram a vários níveis no poder por causa dessa questão. Houve depois trabalho sujo, sabe-se, há um triângulo que envolve duas universidades e um centro de estudos bem financiado, onde se move toda uma conju-gação de sustentação teórica e de proposição, e alguns dos produtores da coisa estiveram aí. Depois houve um traba-lho político de credibilização desse programa. E um trabalho político onde entram vários atores e onde o Presidente da República não teve pequena dose de culpas, mas isso dava para outra discussão.

A observação muito bem colocada já aqui da parte da ma-nhã em alguns aspetos, mas aqui trazida ao pormenor por alguns de vocês quanto no plano das relações laborais – o cumprimento minucioso do programa e de tudo o que foi sendo acrescentado para além do programa. As medidas que aí estão em desenvolvimento são apenas as comple-mentaridades do pouco que faltava (de manhã o José Maria Castro Caldas colocou isto e depois outros complementa-ram, a Maria da Paz trouxe aqui elementos muito curiosos acerca disto), mas, portanto, está o programa todo.

E também todos nós conhecemos qual é a técnica da gover-nação neoliberal, certamente já leram, no final dos noventa, aquele livrinho pequenino do Pierre Bourdieu - “Contrafo-gos” - que explica como se faz a governação neoliberal, o lançamento das ideias sempre para além daquilo que querem obter e depois burilando criando a credibilidade na socieda-de antes de chegar à versão final, encostando as partes à parede porque ficam sem capacidade de manobra, como é evidente, e como se quer sempre obter qualquer coisa que seja menos mal, isto cria um quadro muito complicado. E, portanto, todos sabemos o que é a técnica da governação neoliberal. É neste cenário que estamos, é um cumprimento total, e para os executores a ideia de que o caminho está aberto para continuar este aprofundamento de desequilíbrio de relações.

Ainda um comentário sobre a negociação coletiva que ficou aqui da parte da tarde, sobre o prejuízo, ou seja, das limi-tações que provocam a sistemática e continuada revisão da legislação laboral, feita de forma unilateral, e aqui serviram-se também dos compromissos do Estado com a Troika em tor-no do memorando, mas não só isso, criam um cenário, uma situação em que os patrões estão sempre à espera da revi-são seguinte. Não têm pressão nenhuma para negociar coi-sa nenhuma, estão sempre à espera e inclusivamente dizem, por exemplo, sabe-se que em torno do programa horizonte 2020, inclusivamente chegou a ser dito em setores empresa-riais que se abrem disponibilidade à negociação do salário mínimo e não só, os fundos que estão para vir a fundo per-

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ponder a isto e na discussão das alternativas, a colocação do trabalho na agenda política, desde logo nesta perspetiva, não! Isto é exceção! E assumirmos a moratória que o Antó-nio Casimiro nos propõe, a moratória neste duplo sentido: a resistência e formação de alternativas. A resistência para não permitir que isto se consolide assim. Pôr em causa!, Pôr em causa!, Pôr em causa! Aumentar argumentos! Aumentar argumentos! Ganhar alianças mesmo no plano patronal, e são possíveis ser ganhas algumas, com trabalho persisten-te. Nós também não queremos fechar-nos aqui apenas na discussão com os trabalhadores. Pela nossa parte, o que faremos é tentar contrabalançar induzindo conteúdos para que estes desafios sejam concluídos, contrabalançar o que tem sido feito que é a municiação para este desastre. Então trabalhemos a municiação para as alternativas e ajudemos a motivar a ação e a reforçar a ação para que as alternativas no plano social e no plano político se façam.

Obrigado a todos e um grande abraço.

dido deixam de estar disponíveis para vir a fundo perdido. É esta situação de não deixar espaço porque há uma revi-são unilateral, o efeito profundamente negativo de ausência de negociação por parte do governo, mais, um atentado à negociação, a começar logo pela administração pública. O José Maria Castro Caldas apresentou aqui da parte da ma-nhã o prospeto do Instituto de Gestão de Crédito Público em que um dos fatores de promoção é o facto de, em 2010, ainda houve negociação que abrangeu 1.200.000 trabalha-dores mas, em 2013, já só abrange 196.000 trabalhadores. E eles dão isto como um fator positivo feito na subversão que o Jorge Leite e outros disseram que é sempre invocando o contrato. E há um aspeto que não foi aqui trazido, que talvez fosse importante, que é a não atualização do salário mínimo num país como o nosso é, do meu ponto de vista, um fator que influencia também negativamente o não desenvolvimen-to da contratação coletiva. A atualização do salário mínimo de forma regular, projeta numa área ainda significativa a ne-cessidade de mexer na contratação coletiva. E, posto isto, as notas finais: da parte da manhã já dissemos, mas as aná-lises, por componentes que temos vindo a fazer, que estão neste capítulo que nos trouxe aqui, nos cinco capítulos do relatório das transferências de rendimento do trabalho para o capital e que nós começámos a trabalhar isto. Diga-se tam-bém em abono da verdade, julgo que eu o António Casimiro estávamos juntos aqui há uns dois anos quando o Jorge Leite falou que era importante pegarmos nisto, e a confirmação de que o somatório das partes que nós fomos identificando da transferência, estão confirmados pelo volume global que se observa.

Portanto, entre a situação que se vivia em 2010 e a situação que se vive em 2013, significa que, em 2013, nós temos do lado do fator trabalho mais de 3 milhões de euros a menos que passaram para o fator capital. Isto por ano. Se acres-centarmos os impactos das medidas que foram adotadas em 2013, que estão a ser adotadas em 2014, isto projeta uma coisa muito complicada. Confirma-se o aumento do ex-cedente de exploração, e como foi aqui interrogado, para onde é que ele está a ir? E agora da parte da tarde fica-nos um desafio interessante que é o da resistência. Há um perí-odo de exceção, então vamos lá resistir e não permitir que isto passe a definitivo. Temos que provocar reversão nesta situação. É preciso não admitir que isto sejam medidas de-finitivas. Isto transporta a questão para a luta política, como é evidente, é preciso intérpretes no plano político para res-

E agora da parte da tarde fica-nos um desafio interessante que é o da resistência. (...) Então trabalhemos a municiação para as alternativas e ajudemos a motivar a ação e a reforçar a ação para que as alternativas no plano social e no plano político se façam.

intervenção final"A trAnsferênciA de rendimentos do trAbAlho pArA o cApitAl"C O L Ó Q U I O

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Boletim Informativo Caixa Aberta Nº 35 - Edição Especial - Abril de 2015 - Periodicidade: Trimestral - Tiragem: 6500 ExemplaresDirecção e Redacção: Departamento de Comunicação do STEC - Concepção Gráfica: Hardfolio - Impressão: Ligrate - Atelier Gráfico, Lda.