nutrição e bem-estar animal -...

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. julho/agosto 2013 40 NUTRIÇÃO ANIMAL Indubitavelmente a lei será a resposta à primeira parte da nossa questão. Segundo o anexo A do decreto-lei n.º 64/2000, os animais deverão ser alimentados com uma dieta que satisfaça as necessidades nutricio- nais e que promova o bem-estar. Não será apenas por uma questão legal que nos de- vemos preocupar com o bem-estar animal, pois é evidente que os produtores que as têm sempre em mente são também aqueles que têm explorações com melhores perfor- mances, com maior longevidade dos seus animais e portanto mais sustentáveis. Se adicionarmos o fator “mercado”, temos a resposta à segunda parte da nossa questão. A figura 1 espelha por um lado a realidade económica da Europa, e por outro a impor- tância que as questões de bem-estar animal têm para os europeus. Portugal tem um ni- cho de mercado que estaria disposto a pagar mais 28% por ovos produzidos numa explo- ração certificada para o bem-estar animal. E se Portugal seguir a tendência do resto da Europa? E se a tendência verificada para os ovos se verificar no leite? Estas questões apenas servem para eviden- ciar que à parte das vantagens económicas diretas (melhor performance, melhor ren- tabilidade), existem já na Europa nichos de mercado dispostos a pagar os investimentos que o bem-estar exige. Neste sentido desafio- -vos a visitarem a página da internet da free- domfood (http://www.freedomfood.co.uk). Debruçando-nos sobre a segunda questão, surge-nos uma outra. Mas afinal quais são os indicadores de bem-estar animal? No entender de vários autores, a acidose, os problemas podais, a cetose, as mastites e os maus índices reprodutivos são talvez aqueles que melhores indicadores nos dão acerca do bem-estar de um animal. O papel da nutrição é intervir de modo a evitar ou reduzir estes indicadores. A Acidose é um distúrbio da fermentação microbiana ruminal que ocorre quando o pH desce para valores inferiores a 6 (figu- ra 2a). Segundo Hutjens (2008) o pH ótimo situa-se entre 6,0 e 6,3. Como podemos observar na figura 2b à medida que se altera a relação forragem: concentrado (típica das dietas de vacas leiteiras de alta produção), obser- vamos um aumento da produção de ácido propió- nico e de ácido láctico e a consequente diminuição do pH ruminal. Esta dimi- nuição vê-se potenciada pela necessidade de, em vacas de alta produção, trabalharmos com valo- res elevados de carbohidratos não fibrosos (CNF). Segundo Krause et al. (2002) o pH de vacas leiteiras de alta produção é frequente- mente inferior a 6. Existem questões de ordem comportamen- tal e ambiental que devem ser tidas em conta na altura da arraçoarmos um bolo alimentar. A figura 3 evidencia o padrão de ingestão dos animais quando alimentados com 1 ou 2 Unifeed por dia. Se sobrepuser- Nutrição e bem-estar animal Bem-estar animal porquê e qual a sua importância? De que modo é que a nutrição pode intervir para melhorar os indicado- res de bem-estar animal de uma exploração leiteira? Nuno Guedes . Eng. Zootécnico da Sorgal Figura 1 – Qual o preço adicional que estaria disposto a pagar por ovos produzidos num sistema certificado para o bem-estar animal? (Dados do Eurobarómetro, 2005) Figura 5 – Relação da ingestão de matéria seca com o valor de pH (Oetzel, 1997) Figura 4 – Variação diária dos valores de pH (Oetzel, 1997) Figura 3 – Comportamento de ingestão em vacas alimentadas com 1 ou 2 Unifeed (DeVries et al., 2005) Figura 2 – Possíveis situações de pH no rúmen (adaptado de Ernst, A., 2010) a b

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CABEÇA

. julho/agosto 2013

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NUTRIÇÃO ANIMAL

Indubitavelmente a lei será a resposta à primeira parte da nossa questão. Segundo o anexo A do decreto-lei n.º 64/2000, os animais deverão ser alimentados com uma dieta que satisfaça as necessidades nutricio-nais e que promova o bem-estar. Não será apenas por uma questão legal que nos de-vemos preocupar com o bem-estar animal, pois é evidente que os produtores que as têm sempre em mente são também aqueles que têm explorações com melhores perfor-mances, com maior longevidade dos seus animais e portanto mais sustentáveis. Se

adicionarmos o fator “mercado”, temos a resposta à segunda parte da nossa questão. A figura 1 espelha por um lado a realidade económica da Europa, e por outro a impor-tância que as questões de bem-estar animal têm para os europeus. Portugal tem um ni-cho de mercado que estaria disposto a pagar mais 28% por ovos produzidos numa explo-ração certificada para o bem-estar animal. E se Portugal seguir a tendência do resto da Europa? E se a tendência verificada para os ovos se verificar no leite? Estas questões apenas servem para eviden-ciar que à parte das vantagens económicas diretas (melhor performance, melhor ren-tabilidade), existem já na Europa nichos de mercado dispostos a pagar os investimentos que o bem-estar exige. Neste sentido desafio--vos a visitarem a página da internet da free-

domfood (http://www.freedomfood.co.uk). Debruçando-nos sobre a segunda questão, surge-nos uma outra. Mas afinal quais são os indicadores de bem-estar animal? No entender de vários autores, a acidose, os problemas podais, a cetose, as mastites e os maus índices reprodutivos são talvez

aqueles que melhores indicadores nos dão acerca do bem-estar de um animal. O papel da nutrição é intervir de modo a evitar ou reduzir estes indicadores.

A Acidose é um distúrbio da fermentação microbiana ruminal que ocorre quando o pH desce para valores inferiores a 6 (figu-ra 2a). Segundo Hutjens (2008) o pH ótimo situa-se entre 6,0 e 6,3. Como podemos observar na figura 2b à medida que se altera a relação forragem:

concentrado (típica das dietas de vacas leiteiras de alta produção), obser-vamos um aumento da produção de ácido propió-nico e de ácido láctico e a consequente diminuição do pH ruminal. Esta dimi-nuição vê-se potenciada pela necessidade de, em vacas de alta produção, trabalharmos com valo-

res elevados de carbohidratos não fibrosos (CNF). Segundo Krause et al. (2002) o pH de vacas leiteiras de alta produção é frequente-mente inferior a 6. Existem questões de ordem comportamen-tal e ambiental que devem ser tidas em conta na altura da arraçoarmos um bolo alimentar. A figura 3 evidencia o padrão de ingestão dos animais quando alimentados com 1 ou 2 Unifeed por dia. Se sobrepuser-

Nutrição e bem-estar animal

Bem-estar animal porquê e qual a sua importância? De que modo é que a nutrição pode intervir para melhorar os indicado-res de bem-estar animal de uma exploração leiteira?

Nuno Guedes . Eng. Zootécnico da Sorgal

Figura 1 – Qual o preço adicional que estaria disposto a pagar por ovos produzidos num sistema certificado para o bem-estar animal? (Dados do Eurobarómetro, 2005)

Figura 5 – Relação da ingestão de matéria seca com o valor de pH (Oetzel, 1997)Figura 4 – Variação diária dos valores de pH (Oetzel, 1997)

Figura 3 – Comportamento de ingestão em vacas alimentadas com 1 ou 2 Unifeed (DeVries et al., 2005)

Figura 2 – Possíveis situações de pH no rúmen (adaptado de Ernst, A., 2010)

a b

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mos os dados das duas figuras (3 e 4), constata-mos que os picos de ingestão correspondem aos valores mais baixos de pH. Destes dois gráficos concluímos mais uma vez que são as vacas de alta produ-ção as mais sujeitas a terem valores de pH inferiores a 6, fruto de ingerirem maiores quantidades de matéria seca. A figura 5 eviden-cia precisamente essa relação, quanto maior a ingestão de matéria seca, maior a queda do pH. São estas relações que suportam o facto de estábulos sobrelotados possuírem maior incidência de problemas de acidose e consequen-tes problemas podais. Este facto pode ser mais evidente na figura

6, onde se relaciona os padrões de inges-tão dos animais com a densidade animal. Constata-se que um estábulo com uma densidade animal elevada tende a pre-judicar a ingestão individual dos ani-mais e consequen-temente a produção. Mas o facto mais evidente é o aumen-to da velocidade de ingestão. Isto pode--se revelar muito preocupante quan-do as densidades são

exageradamente elevadas. Quando assim acontece, a velocidade de ingestão pode aumentar em 25 vezes (Hill et al., 2009), e a competi-ção pelo alimento pode ser responsável por 88% dos deslocamentos (Val-Laillet et al., 2008). Sabemos portanto que sempre que o animal come sofre uma quebra de pH e quanto mais o animal come maior essa quebra, logo quanto mais rápido o animal comer mais quilos de alimento ingere por ho-ra logo maior tendência de manifestar um valor de pH mais baixo. Relativamente aos problemas podais, apenas quero fazer referên-cia à laminite. Talvez por ser aquela que mais relação tem com a alimentação e a sua relação com a acidose. Portanto à parte dos cortes corretivos que devem fazer parte do maneio da vacaria, to-das as ações que podemos fazer para prevenir a acidose estaremos também a prevenir a laminite. Não obstante, parece-me importante referir que a laminite é uma doença multifatorial. Segundo o bri-lhante livro de Medicina Interna de Grandes Animais de Bradford P. Smith, a laminite é uma “sequela de distúrbios digestivos e outras doenças que provocam endotoxemia e libertação de mediadores in-flamatórios” e “é comum a ocorrência de laminite após enterite, sobrecarga alimentar de grãos, pleuropneumonia, metrite séptica e retenção de placenta”.

Acidose como prevenirA prevenção é de fato a melhor aliada para qualquer doença. Quan-do desenhamos um programa alimentar devemos ter em conside-ração 3 aspetos fundamentais de modo a prevenir as situações de acidose:– Balanço adequado da dieta

– Quantidade e qualidade da fibra

Figura 6 – Padrão da ingestão versus densidade animal (Grant, R.J. et al.)

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– Proporção e qualidade dos carbohidra-tos não fibrosos (CNF)

– Tamanho de partícula– Controlo do pH ruminal

– Substâncias tampão– Alcalinizantes

– Controlo do processo fermentativo– Leveduras– Ácido málico– Óleos essenciais

As cetoses, as mastites e os maus índices reprodutivos serão aqueles indicadores que apesar de muitos distintos entre si, es-tão muito relacionados com o período de transição.O período de transição será aquele com-preendido 21 antes e 21 depois do parto. Es-te período é caracterizado por uma quebra de ingestão, mobilização dos ácidos gordos não esterificados (AGNE), stress ambien-tal, aumento dos níveis em circulação do cortisol, quebra de imunidade e ainda um balanço energético negativo. São vários os estudos que relacionam todos estes acon-tecimentos entre si. A figura 7, 8 e 9 são exemplos disso.

É desejável que os níveis sanguíneos dos AGNE não ultrapassem os 0,65mM/l. Este será o valor a partir do qual vários autores relacionaram um aumento da incidência de problemas pós-parto, nomeadamente au-mento das retenções placentárias (Kaneene et al., 1997), aumento das cetoses (Oetzel, 2004), aumento das metrites (Hammom et al., 2006). Portanto será conveniente fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evi-tar uma mobilização excessiva dos AGNE. Uma medida de muito pouco custo está re-tratada na figura 7. Mais uma vez, a densida-de animal revela-se de extrema importância nas performances dos animais. Através da análise da figura podemos observar a que-bra de ingestão em vacas em pré-parto à me-dida que a densidade animal aumenta. Logo quanto mais penalizarmos a ingestão nesta fase maior vai ser a mobilização dos AGNE

e consequentemente maior a probabilidade de aparecimento dos problemas pós-parto. Podemos concluir que toda a atenção que dedicarmos nesta fase da vida produtiva do animal menor vão ser os problemas pós-parto.

O balanço energético negativo é uma rea-lidade a que todos os animais não conse-guem escapar durante pelo menos 7 a 8 se-manas. Período a partir do qual o animal atinge o pico de ingestão. Como conse-quência, a mobilização da gordura corporal nesta fase vai ser grande o que pode tornar-

-se num problema, principalmente se a nu-trição não potenciar a produção de ácido propiónico no rúmen, principal precursor de glicose – fundamental para o bom fun-cionamento do fígado. Deste modo pode-mos evitar que os níveis de circulação dos

corpos cetónicos estejam altos ao ponto de induzir uma cetose subclínica ou mesmo uma cetose clínica. Um animal que esteja com forte mobilização da gordura corporal e que se encontre em cetose subclínica du-rante a primeira semana pós-parto poderá sofrer uma redução de até 20% na taxa de conceção à primeira inseminação e até 50% se a cetose se prolongar durante duas se-manas. Uma questão pertinente é como é que de um modo expedito podemos anteci-parmo-nos aos problemas?A melhor maneira de o fazer é através da análise do Betahidroxibutirato, que é um corpo cetónico. Após leitura sanguínea do valor podemos perceber qual o risco do ani-mal em desenvolver uma cetose. Este valor não deverá exceder 1,2 mM/l. Após o exposto e em modo de conclusão, as armas que nós temos na nutrição de modo a melhorar os indicadores de bem-estar são:– Otimizar a dieta das vacas no pós-parto de

modo a potenciar a produção de ácido pro-piónico, principal precursor da glicose;

– Otimizar a dieta das vacas em fase final da lactação, de modo a evitar que sequem e que iniciem uma nova lactação com elevada condição corporal (> 3,75). Estes animais demoram mais tempo aumentar a ingestão pós-parto (necessidade de su-plementar com colina protegida);

– Balancear adequadamente a dieta de mo-do a reduzir os riscos de acidose;

– Balancear adequadamente a nutrição mi-neral nas vacas secas com o objetivo de reduzir as hipocalcémias;

– Balancear adequadamente a nutrição mi-neral e vitamínica nas vacas secas e em produção com o objetivo de reduzir a in-cidência de mastites (fig. 10).

Bibliografia

Bourgeois, A. Transition Management: Impact on Cow.

DeVries, T. J., and M. A. G. von Keyserlingk (2005). Time

of feed delivery affects the feeding and lying patterns

of dairy cows. J. Dairy Sci. 88:625-631.

Grant, R.J., Tylutki, T.P., Influence of social environment

on feed intake of dairy cattle.

Jorge, D. (2009): Monitorização da cetose subclinica

Krause, K.M., Combs D.K., Beauchemin, K.A. (2002).

Effects of Forage Particle Size and Grain Fermentabi-

lity in Midlactation Cows. II. Ruminal pH and Chewing

Activity

Oetzel, G.R. (2007): Subacute ruminal acidosis in dairy

herds: Physiology, pathophysiology, milk fat respon-

ses, and nutricional management.

Smith, B.P. 3ª edição: Medicina interna de grandes ani-

mais

Figura 9 – Incidência de mastites clínicas no pós-parto (McDougall et al., 2007)

Figura 10 – Relação com os níveis de Vit. E e a incidência de mastites clínicas no pós-parto (Weiss et al., 1997)

Figura 8 – Relação entre ingestão no pós-parto e densidade animal

Figura 7 – Relação entre ingestão e níveis de AGNE (Bertics et al., 1992)